Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung

March 20, 2018 | Author: Carlos Pereira | Category: Time, Experience, Science, Physics & Mathematics, Physics


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coleçãoartefíssil H a n s U l r ic h G u m b r e c h t Atmosfera, ambiência, Stimmung Sobre um potencial oculto da literatura TRAD U ÇÃO Ana Isabel Soares COBITRAPOnTO E d it o r a PUC R IO PUC R [o Reitor Pe. Jo s a fá C a rlo s de Siqueira, S.J. Vice-Reitor Pe. Francisco Ivern Sim ó, S.J. Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. Jo sé R icard o Bergm ann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Lu iz C arlo s Scavard a d o C arm o Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. A u gu sto Luiz D uarte L op es Sam paio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Prof. Sergio Bruni Decanos Prof. Prof. Prof. Prof. P aulo Fernando C arneiro de A n drade (C T C H ) Lu iz R ob erto A. C unha (CC S) Luiz A lencar R eis d a Silva M ello (C T C ) H ilton A u gu sto K och (C C B M ) H ans Ulrich. H ilton A ugusto K och.© 2 0 1 1 .2 0 0 exem plares CIP-BRASIL. RJ G 9S4a Gumbrecht. 1948Atm osfera. V edada.con trapontoeditora. C arl H an ser V erlag M ünchen Título original: Stim m ungen Lesen: über eine verdeckte W irklichkeit der Literatur D ireitos ad q u irid os p ara a língua portu gu esa por C on trapon to E d itora Ltda. da Editora. Vicente.R io de Jan e iro . Filosofia.com . Título.Rio de Janeiro : Contrapon­ to : Editora l’ UC Rio. p or qu aisqu er m eios. .Cep 2 2 4 5 3 -9 0 0 Telefax: (21) 3 5 2 7 -1 7 6 0 /1 8 3 8 Site: w w w .br E-m ail: contato@ con trapon toeditora. por escrito. I. C ontraponto Editora Ltda. sem au torização. 2 lcm Tradução cie: Stimmungen Lesen: über eine verdeckte Wirklichkeit der Literatur ISBN 978-85-7866-097-0 ISBN (PUC-Rio) 978-85-8006-132-1 I. tradução Ana Isabel Soares . 225 C asa A gên cia/E ditora . ed. Luiz A lencar Reis da Silva M ello.CEP 2 0 0 2 1 -1 2 0 T elefax: (2 1) 2 5 4 4 -0 2 0 6 Site: w w w . C esar R om ero Ja c o b . ambiência.2-3 . 2014 176p. a reprod ução total ou parcial deste livro. 2. R J . R J . F ernando Sá. Jo sé R icardo Bergm ann.1.br/editorapucrio E-m ail: edpucrio@ puc-rio.R io de Ja n e iro .112. CATALOGA ÇÃ O-NA-PUBLICAÇÀO SIN DICA TO N A C IO N A L D OS ED ITO R ES DE LIVROS. Literatura.b r E ditora PUC-Rio R ua M arq u ês de S. Avenida Franklin R oosevelt 23 / 1405 C entro .puc-rio. Luiz R ob erto C un ha.Projeto C om unicar G ávea . M iguel Pereira e P aulo Fernando C arneiro de A ndrade P rep aração de originais: C ésar Benjam in R evisão tip ográfica: Tereza da R och a C ap a e projeto gráfico: Aline Paiva e A ndréia Resende C oleção dirigida por Tadeu C apistran o E s c o l a d e B e l a s A r t e s / U n i v e r s id a d e F e d e r a l d o R io d e J a n e ir o Ia edição: m aio de 2 0 14 Tiragem : 1 .com . . Stimmung : sobre um potencial oculto da literatura / Hans Ulrich G um brecht. 14-11253 CDD: 833 CDU: 821. nos term os da lei.br C onselh o E ditorial: A u gu sto Sam paio. O caráter interdisciplinar desta proposta visa a am­ pliar o campo da historia da arte.A Coleção ArteFíssil se propõe a pensar a experiência estética no mundo contemporâneo. priorizando diá­ logos cada vez mais intensos com a filosofía. políticas e cultu­ rais que marcam seus caminhos. A coleção publica­ rá textos que contribuem para a análise das práticas artísticas na atualidade. . os estudos de mídia e as teorias da imagem. refletindo sobre as condições e as forças históricas. tecnológicas e midiáticas. enfatizando a influência das novidades conceituais. a lite­ ratura. . Sumário Ler em busca de Stimmung: como pensar hoje na realidade da literatura Momentos 9 35 A legrias fugazes nas canções de W alther von der Vogelweide 37 A existência precária do pícaro 45 As m uitas cam adas do m undo dos sonetos de Shakespeare 55 M elancolia am orosa nas novelas de M aria de Z ay as 69 M au tem po e altas vozes: O sobrinho de R am eau . ascetism o e autocom placência 161 Agradecimentos 169 Referências bibliográficas 171 . de D iderot 75 H arm onia e ruptura na luz de C asp ar D avid Friedrich 83 O peso da Veneza de T h om as M ann 95 Tristeza linda no último rom ance de Jo aq u im M ach ado de A ssis 107 A liberdade na voz de Jan is Joplin 121 Situações 129 A energia iconoclasta do surrealism o 131 “ O sentido trágico da v id a ” 145 D esconstrucionism o. . os estudos literários foram dominados durante a segunda metade do século X X por uma grande variedade de paradigmas teóricos. Em rápida sucessão e com diferentes níveis de produtividade intelectual. O “ new criticism” deu lugar ao estruturalismo. Pelo contrário: agora que relaxou um pouco a pressão de rever constantemente cada epistemologia.ou com a “ ciência da literatura” . muitos de nós encontramos tempo. nem que sejam poucos os pensadores de respeito. que.tem sido marcada por um am­ biente de incerteza. para nos concentrarmos nas literaturas das diferentes épocas e para olhar para as complexas realida­ des históricas que lhes deram o eco do tempo.Ler em busca de Stimmung: como pensar hoje na realidade da literatura 1 Ao longo dos dez últimos anos. por sua vez. M as desde o começo da década de 1990 não surgiu nenhu­ ma nova teoria da literatura que trouxesse um verdadeiro desafio intelectual ou institucional. N ão é por Atmosfera. M arxismo e estru­ turalismo abriram passagem para o desconstrucionismo e para o novo historicismo. Stimmung 9 . nem que escasseiem as discussões. como se diz em alemão . cedeu o passo ao marxismo. mais do que nunca . Essas duas correntes viriam a ser substituídas pelos estudos culturais e pelos estudos de iden­ tidade. a ligação do mundo acadê­ mico com a literatura . ambiência. Isso não significa que faltem publicações interessantes. A norma passou a ser a mudança quase compassada dos pressupostos básicos acerca da interpretação literária.além de mais inspiração -. Edward Said ou Raymond Williams.) O que quero dizer com “ ontologia da literatura” é o conjunto de modos funda­ mentais como os textos literários . o desconstrucionismo. Richard Rorty. Este fato é ainda mais notável porque durante muito tempo esse espa­ ço pertencia a figuras cuja imponência levava os seus con­ temporâneos a se declararem apoiadores ou opositores das suas ideias. Claude Lé~ vi-Strauss. Libertou-se espaço para novas pesquisas. (Desnecessário referir que a atual paisagem inte­ lectual é bem mais complexa. podemos até admitir que lemos essas obras pelo puro prazer de as ler. Wolfgang Preisendanz. Os estudos literários não podem. Lucien Goldmann.enquanto fatos mate­ riais e enquanto mundos de sentido . Em nossos dias.quantas vezes aparente­ mente inconciliáveis e mutuamente exclusivas . Hoje. De um lado. Paul de Man. sem sacrificarmos a honra acadêmica.entre os pressupostos básicos relacionados com a ontologia da li­ teratura.acaso que testemunhamos hoje um regresso às obras literá­ rias mais canonizadas e mais clássicas. ele sempre pertenceu àque­ la “ virada linguística” da filosofia. em regra. mas creio que sua estrutura começa com uma divisão básica.se relacionam com as realidades que existem fora deles. para 10 Hans Ulrich Gumbrecht . Apesar de insisten­ temente se proclamar inovador. Jacques Derrida.e. essas reorganizações e meta­ morfoses (as quais. Wolfgang Iser. após essas faltas. Kenneth Burke. Que não se encontrem mais personagens assim é ao mesmo tempo sintoma e causa da mudança que se foi operando. não foram geradas por ne­ nhum projeto ou programa explícito). manter-se inalterados com o desaparecimento de professores tão distintos e tão intelectualmente vivazes quanto Erich Auerbach. Isso significou . damos por nós a encarar profundas diferenças . pura e sim­ plesmente. mais do que nenhum outro. Quando muito. parecer quase sedutor. as sugestões em contrário são vistas como ingê­ nuas e logo descartadas com desprezo. Para ultrapassar tais perigos .os seus defensores. desenvolvida por Atmosfera.que não pode existir contato entre a linguagem e a realidade que existe fora dela.que todas as funções da literatura e dos modos de relacionamento com os textos. os estudos culturais .nunca foram céticos quanto à relação da literatu­ ra com realidades extralinguísticas. Stimmung 11 . ao menos em termos filosóficos. foi quem suge­ riu . por serem “ alegorias da leitura” . Paul de Man. eles compartilham os pressupostos metodológicos (talvez fosse melhor dizer: ideológicos) do marxismo.tal como surgiram na Grã-Bretanha e vieram a transformar-se.que. cujas tensões e contrastes podem anular-se mutua­ mente. no qual se combinam diferentes forças intelectuais. continua a significar . precisamos de “ terceiros” . em parte. Pelo menos em parte. Ao con­ trário do desconstrucionismo. Do outro lado estão os estudos culturais. já se materializaram -. ambiência. em Kulturwissenscbaften (sem grandes dife­ renças) . demonstram que a lingua­ gem jamais se refere ao mundo. com sua rejeição do referente. Acredito que o campo dos estudos literários.como se fosse dado adquirido . A palavra ale­ mã Stimmung (muito difícil de traduzir) exemplifica um “ terceiro” que eu gostaria de defender. Por analogia com a noção de “ ler para conhecer a intriga” . os pes­ quisadores nessa área de estudos fundiram de tal maneira sua fé na validade da pesquisa quantitativa e empírica e sua atitude de despreocupação relativa à epistemología. arrisca ficar estag­ nado enquanto permanecer empacado entre essas duas po­ sições. que consideram seu precursor e seu ponto de partida. que os modestos resultados filosóficos desta convergência fazem o desconstrucionismo. na Alemanha. o ami­ go de Derrida. “ afinar um instrumento musi­ cal” . eu gostaria de propor a ideia de que os intérpretes e os historiadores da literatura leem com a atenção voltada ao Stimmung. Interessa-me muito a componente de sentido que rela­ ciona Stimmung com as notas musicais e com escutar os sons. M ood refere-se a uma sensa­ ção interior. stimmen significa também “ estar corre­ to ” . E bem sabido que não escutamos apenas com os ou­ vidos interno e externo.e. não têm de estar .Peter Brooks já há alguns anos. será útil pensar nos conjuntos de palavras que servem para traduzir o termo em algumas línguas. Só em ale­ mão a palavra se reúne. como escalas de mú­ sica. Apresentam-se a nós como nuances que desafiam nosso poder de discernimento e de descrição. Tal como é sugerido pelo afinar de um instrumento musical. Climate diz respeito a alguma coisa objetiva que está em volta das pessoas e sobre elas exerce uma influência física.conscientes desse fato). A pele. por extensão. A primeira significa “ voz” . bem como o poder da linguagem para as captar. O sentido da audição é uma com­ plexa forma de comportamento que envolve todo o corpo. a Stimme e a stimmen. um estado de espírito tão privado que não pode sequer ser circunscrito com grande precisão. os estados de espírito e as atmosferas específicas são experimentados num continuum. Em in­ glês existem mood e climate. 2 Para podermos ter consciência e perceber o valor dos dife­ rentes sentidos e das nuances de sentido invocados pelo Stimmung. assim como modalidades de percepção baseadas no 12 Hans Ulrich Gumbrecht . claro. Uma das razões pelas quais recomendo tal abordagem é que esta é a orientação de grande número de leitores não profissionais (que não estão . a segunda. cotidianamente. tal como todos os mais breves e leves encontros entre nossos corpos e seu entorno material. um encontro (no sentido literal de estar-em-contra: confrontar) muito concreto com nosso ambiente físico. Precisamente por isso. porém. poderia parecer que a música e o clima atmosférico não seriam nada além de metáforas para aquilo que chamamos de “ tom” . Cada tom percebido é. creio.tato. Atmosfera. ambiência. Outra dimensão da realidade que acontece aos nossos corpos de modo semelhante é o clima atmosféri­ co. Ainda assim. Ser afetado pelo som ou pelo clima atmosférico é uma das formas de experiência mais fáceis e menos intrusivas. 3 À primeira vista. mas é. descreveu uma vez esse fenômeno através do paradoxo exa­ to de “ ser tocado. ganhadora de um Nobel de literatura. muitas vezes as referências à mú­ sica e ao tempo atmosférico aparecem na literatura quando os textos tornam presentes . M as o meu argumento é que esses tons. uma forma de realidade física (ainda que invisível) que “ acontece” aos nossos corpos e que. ou mesmo o Stimmung de um texto. afetam também as nossas mentes. não conseguimos explicar a causalidade (nem. No caso. claro. controlar os seus resultados). tem funções muito importantes. uma experiência comum a todos: que as atmosferas e os estados de espírito. nem que con­ sigo fazer dela uma imagem completa. como que de dentro” . interes­ sava-lhe. os “ envolve” . “ atmosfera” . N ão quero afirmar que com­ preendo a dinâmica que aqui está em causa. a cir­ cunstância não é motivo para não se chamar atenção para o fenômeno e descrever as suas variantes. Stimmung 13 . ao mesmo tempo. fisicamente.ou começam a refletir sobre os estados de espírito e as atmosferas. Toni Morrison. dito de outro modo. Ao contrário. “ Ler com a atenção vol­ tada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem. A prin­ cipal diferença entre o desconstrucionismo e os estudos cul­ turais tem a ver com a rejeição ou a afirmação da capacida­ de que os textos têm de se ligar a outras coisas.e a possibilidade de existir . ou a leitura em voz alta de uma obra em prosa.atmosferas e Stimmungen não existem nunca completamente independentes das componentes materiais das obras principalmente da sua prosódia. mesmo que tal seja impossível). De fato. Sem exceção. os textos afetam os “ estados de espírito” dos leitores da mesma maneira que o clima atmosférico e a música. N a já mencionada oposição entre o desconstrucionismo e os estudos culturais. De ou­ tro modo. enquanto realidade física . o que significa que obras ricas em Stimmung não terão de ser 14 Hans Ulrich Gumbrecht .algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam necessariamente envolvidas.a “ ontologia da literatu­ ra” . Então. Pressupõe-se que os textos “ representem” uma realidade extralinguística (ou. com ênfase na componente rítmica. alcançasse e afetasse mesmo aqueles leitores ou ouvintes que não compreendem a língua das obras em questão. que envol­ vem nossos corpos. “ queiram” fazê-lo. uma ontologia da literatura que depende de conceitos resul­ tantes da esfera do Stimmung não põe o paradigma da re­ presentação no centro da questão. ambas as partes fazem afirmações sobre a ontologia dos textos em termos do paradigma da “representação” . todos os elementos que contêm textos po­ dem contribuir para produzir atmosferas e ambientes. seria impensável que a declamação de um texto lírico. Por essa razão acredito que a dimensão de Stimmung abre toda uma nova perspectiva so­ bre . existe uma afinidade especial entre a performance e o Stimmung. sons e. acima de tudo.em nuances. N ão consigo pensar num único leitor conhecedor desse texto que alguma vez se tivesse surpreendido com o fato de Aschenbach e Tadzio nunca ficarem juntos. que tanta fama deram a essa obra.e. em toda a sua complexidade . Stimmung 15 .pelo menos desde que chegam a Veneza . cores. nas dramáticas alterações do clima at­ mosférico. o que de mais fascinante há nesse livro é uma atmosfera específica. N a relação que mantemos com as coisas-no-mundo (e isso é uma consequência do processo de mo- Atmosfera.e revelo-o aqui para não deixar nada de fora .de natureza descritiva. de Machado de Assis. de tornar os efeitos de “ presença” um objeto de pesquisa nas humanidades. O cânone da literatura mundial oferece uma série de exemplos de prosa narrativa que. Existe uma relação entre certas formas de narração e determinadas atmosferas específicas (por exemplo. a convergência entre um ambiente elegíaco e a estrutura de Memorial de Aires. 4 Numa nota à margem. ambiência. não exclusivamente .seja a de um ser-para-a-morte. poderíamos associar ao Stimmung. sem hesitar. ou de que a existência de Aschenbach . O livro é mesmo a evocação de uma decadência fin-de-siècle. mais ou menos filosófico. que só pode ser experimentada numa consciência historicamente específica da presença da morte em vida. Em outras palavras (e dito de um modo mais filosófico. com certeza.primordialmente . alguns dos meus bons amigos fize­ ram-me ver . que se discute em um dos capítulos deste livro). Veja-se o caso de Morte em Veneza. odores.que devo apontar a relação entre minha defesa do Stimmung e o objetivo mais amplo. ao menos na perspectiva de Nietzsche e de Eleidegger). de Thomas Mann. Por oposi­ ção. podem nos tocar (ou não). duzentos ou quinhentos anos. sem dúvida. A essa relação chamo “ presença” . Talvez esse estado de 16 Hans Ulrich Gumbrecht . inequivocamente.um modo que. que apenas registra os primeiros). entre estes. para a maioria de nós. Per­ tencem.numa relação necessária com os nossos corpos. por assim dizer. tudo fica mais complicado. àquela parte da existência relacionada com a presença. Escusa di­ zer que isso não significa que ficou mais fácil causar efeitos de presença (e. Em vez disso. consideramos a interpretação .dernização).a atribuição de sentido . Pode dar-se o caso de agora prestarmos mais atenção às atmosferas.) Em termos conceituais. Contra o pano de fundo histórico da modernização abso­ luta. e podem ser experimentados como coisas que se im­ põem ou como coisas inconsequentes. suspende a experiência da presença. (Claro que isso não significa que cada articulação da presença que vale como “ estética” va­ lha também como atmosfera ou como ambiente. aos climas e à dimensão da presença em geral do que se presta­ va há cinquenta. as suas formas de articulação pertencem à esfera da experiência estética. Podemos tocar os obje­ tos ou não. funde consciência com software . Tal como aqui as descrevo. eu gostaria de sublinhar que as coisas estão “ sempre-já” . atmosferas e climas). poderá ter alguma coisa a ver com um modo cotidia­ no de ser-no-mundo que. as atmosferas e os ambientes incluem a dimensão física dos fenômenos.e simultaneamente ao nosso hábito irrefletido de atri­ buir significações a respeito do que as coisas supostamente implicam .um processo da maior importância. e as suas articulações valem como formas de experiência estética. podemos considerar que “ a experiência estética” con­ siste numa muito carregada simultaneidade de efeitos de sentido e efeitos de presença (por oposição à experiência cotidiana. Os objetos. por seu turno. de Goethe.num texto.a história do Stimmung e explorou as várias camadas históricas e semânticas do termo.em que a metáfora de referência é a afinação de um instrumento musical -. mas também porque seus métodos de pesquisa nos incitam a refletir sobre a forma específica da historici­ dade própria ao Stimmung. o Stimmung viria a desempenhar um papel determinante no início do discurso da estética filosófica. na loja do sapateiro). Os artistas. esse fato sugere que a homogeneida­ de das situações e das experiências tinha se transformado num tema para a sociedade contemporânea. esse texto põe em discussão a sensação de unidade e harmonia que tudo abarca. Stimmung 17 . Kant afirmava que “ um Stimmung equilibrado” é condição necessária às faculdades emocio­ nais e racionais da compreensão humana quando se combi­ nam em juízos de gosto. que rapida­ mente se via sujeita à diferenciação interna. Gostaria de revisitar alguns pontos-chave desse artigo. David Wellbery recentemente reconstruiu pela primeira vez . observou Goethe. N a Crítica do juízo . ambiência. Wellbery começa por examinar o ensaio “ Falconet” . procuram dar forma objetiva .às coisas intangíveis que en­ contram. 5 Numa brilhante contribuição para o dicionário Ästhetische Grundbegriffe.de encontros com a presença. principal­ mente porque ilustram o modo como a abertura às atmos­ feras e aos climas pode engrandecer nossa experiência da literatura. frequentemente vivenciada em contextos absolutamente triviais (por exemplo. que começava a surgir naquela altura.retirada tenha provocado uma necessidade aumentada . A interseção de sentimento e razão Atmosfera. Pouco tempo depois da publicação do ensaio. por exemplo .e um maior desejo . publicado em 1776. em que a alma não está constrangida nem física nem moralmente. lê-se na vigésima carta de Schiller.da Grécia antiga. Sensibilidade e razão combinam-se para suspender a energia que determina ambas. Stimmung passava a significar uma existência completa. Duas cor­ 18 Hans Ulrich Gumbrecht . Para Nietzsche. O con­ ceito é importante até hoje. cuja complexi­ dade ia muito além das tarefas de mediar entre posições opostas (inclusive as radicalmente contraditórias) e de forjar unidade e harmonia. a palavra Stimmung designava as memórias e intuições das fases primordiais da existência humana. isto é. Alois Riegl estava convencido de que o Stimmung teria boa fortu­ na no século X X como “princípio de nostalgia” . Essas maneiras de empregar o conceito de Stimmung produziram um novo sentido.e nas obras . De modo semelhante. o antagonismo delas gera a sua negação.também determinava o sentido do termo para os filósofos do idealismo alemão (que muitas vezes faziam equivaler sentimento e razão a subjetividade e objetividade). mas mui­ to mais especulativa. a palavra referia-se aos sons que eram dife­ rentes daqueles que existiam no seu tempo e no seu espaço. Agora. mas está ati­ va de duas maneiras . unificada . a alma atra­ vessa uma posição de equilíbrio na qual a sensibilidade e a razão atuam simultaneamente. Setenta e cinco anos depois. Essa situação de equilíbrio . que ele acreditava ter encontrado no mundo .merece ser chamada de estado de liberdade. D a educação estética·. Friedrich Hõlderlin propôs uma concepção de Stimmung que divergia da visão dos seus amigos e dos seus contempo­ râneos.um estado impossível de atingir na idade moderna. A partir dessas reflexões. Para ele. Para passar da sensação ao pensamento. Nietzsche postulava uma conexão semelhante em estrutura. Nessa obra. não somos li­ vres para os escolher.e em constante mutação -. Tomando como ponto de partida principalmente o últi­ mo sentido dessa plêiade (e deixando de fora os conceitos arcaizantes). em 1944 e 1945. Enquanto princípio de nostalgia com “ futuros” (isto é. Stimmung é descrito como parte inte­ grante da condição existencial de “ estar-lançado” . foi um uso do conceito que. por ou­ tro lado. Ao mes­ mo tempo. depois de o autor ter emigrado para os Estados Unidos): com a afirma­ Atmosfera. “ escolhas” ). de modo paradoxal. no século X X . Heidegger concede ao Stimmung um papel fundamental em Ser e tempo (1927). Stimmung 19 . como essa sua definição tinha se torna­ do um ponto de referência na filosofia da história. a ligação entre Stimmung e as fases pré-históri­ cas da evolução humana sugeriam que o futuro da humani­ dade passava por ceder às forças do irracionalismo. sua obra mais impor­ tante. E certo que esse aspecto da obra de Heidegger . condicionam nosso comportamento e nossas sensações na existência do dia a dia. Essa confirmação era paradoxal porque a carga de sentido que Riegl atribuíra a Stimmung demons­ trava.seu entendimento da noção de Stimmung não foi muito difundido.rentes intelectuais seguiram-se a tal previsão.Prolegó­ menos para uma interpretação da palavra “ Stimmung” (publicado em duas partes. ambiência. por um lado. Era desse modo que Leo Spitzer (judeu nascido em Vie­ na e filólogo das línguas românicas) concluía o seu Ideias clássicas e cristãs sobre a harmonia do mundo . fez que surgissem influentes vozes que negavam sua aplicabilidade no presente. Stimmung tornou-se o objeto de pensamento que se pode considerar como pertencente à filosofia da história. Am­ bientes e atmosferas variados . confirmou a anterior previsão de Riegl sobre o futuro. escreve Heidegger. M ais importante para a sua re­ cepção. Nessa altura.que a atmosfera e o ambiente do seu tempo se caracteri­ zavam pela frieza e a sobriedade do “ existencialismo” . o que significa que é possível procurarmos o Stimmung caracte­ rístico de cada situação. ou seja. Stimmung . sem seu ambiente “ próprio” . o livro que o leitor agora tem em mãos não se limita a contextos histó­ ricos em que o desejo de mediação e de harmonia ocupe lugar central.. a partir daí. em vista da Guerra Mundial que então termina­ va. 20 Hans Ulrich Gumbrecht . desde que a au­ sência de Stimmung no sentido clássico passou a valer como uma das formas de Stimmung. Por isso.deixou de exercer o papel de “ mediação” e de “ harmonia” . Haveria de escrever depois . tinha ali o seu fim. N ão há cultu­ ra nem época que não admita a questão universal das at­ mosferas e dos ambientes específicos.quase com uma nota de desdém .e não fica claro se essa contra­ dição aparente foi proposital ou se escapou à sua atenção . o poeta ale­ mão (e médico militar) Gottfried Benn também sublinhou . acontece o contrário: o Stim­ mung é explorado como categoria universal.ção de que.inflexão totalmente incom­ patível com seu sentido original . Hoje não existe situação sem sua atmosfera própria. Durante os meses finais do conflito. uma das varia­ ções semânticas da palavra .mais precisamente.que o Stimmung. 6 Desde que Stimmung deixou de implicar qualquer forma de reconciliação ou de harmonia . deu-se uma viragem na história do conceito. enten­ dido como mediação entre contrários. o conceito ficou dis­ ponível para uso universal. a “harmonia” perdera para sempre o lugar enquanto enquadramento potencial para a cosmologia e a existência humana. obra ou texto. N a verdade. Foi também quando Riegl declarou que a atmosfera e o ambiente se desenvolveriam Atmosfera. Em primeiro lugar. Niklas Luhmann chamou tais instruções de “ comunicação compacta” . é significativo que. Vejo o final do século X IX como o terceiro momento em que o Stimmung ganhou forma condensada e intensi­ ficada. quando se tom aram populares a pintura histórica e a arquitetura historicizante. Talvez a maior atenção e consciência do Stimmung tenha se desenvolvido a partir da experiência de isolamento que condicionou a emergência das modernas formas de subjetividade. O Decameron. a seguir proponho três teses como resposta. é o exemplo mais conhecido. O Romantismo é a segunda .N o entanto. ele queria dizer que. e por quê? Desse enquadramento faz parte outra questão coadjuvante: que períodos da tradição ocidental entenderam o Stimmung (ou seus equivalentes funcionais) como matéria a ser explicitamente tematizada? Para ser breve. Com isso. restam algumas outras questões. de Boccaccio.e talvez a mais exemplar . Que sentidos e dimensões particula­ res do Stimmung se obtêm sob determinadas condições his­ tóricas e culturais. de nature­ za histórico-filosófica. no início da era moderna.época de atmosfera e ambiente. Stimmung 21 . ambiência. Stimmungen que exprimiam nostalgia ou revolta opunham-se à monotonia da vida na sociedade “ burguesa” . os autores iam definindo enquadramentos de comunicação (eu acrescenta­ ria: enquadramentos de atmosfera) para sua recitação e para sua recepção. mas a obra de M aria de Zayas (de que falarei adiante) é também exemplar. à medida que a literatura se autonomizava e se tornava independente dos contextos e dos lugares específicos da sua performance. as antologias de narrativas e de poemas literários fossem acompanhadas de indicações sobre o espaço onde deveriam ser desfrutadas e sobre a música que deveria acompanhar a sua apreciação. tornou-se cada vez mais pronunciado o desejo de pontos individuais de acesso à harmonia. esse tipo de objeção pode mesmo ser formulado contra este livro. do mesmo modo.] filosofia superficial é fundamentar a ciência não no desenvolvimento do pensamento e do conceito.o protesto se fazia ouvir contra a sobrevalorização da harmonia nas obras culturais. mas na percepção imediata e na imaginação contingente.no século X X enquanto apetite crítico de nostalgia . e. na medida em que ainda persistem .. podemos afirmar que esses mesmos protestos pertenciam a uma atmosfera particular ou a um ambiente cultural específico. em consequência. nesse momento Wilhelm Dilthey propôs fundamentar os métodos humanísticos de interpre­ tação nos encontros pessoais com os textos literários e com as situações que os tinham originado.embora essa tendência se tives­ se acentuado de forma mais marcante na década de 1920. É interessante notar que. através de 22 Hans Ulrich Gumbrecht . a partir de uma concessão univer­ salizada de Stimmung.que. N ão por acaso..e continuam a surgir. As reservas críticas sobre a análise desse aspecto do fenômeno foram surgindo . Aliás. como vimos.uma previsão que viria a confirmar-se de modo paradoxal.. os con­ tornos semânticos do termo) . re­ duzir a complexa articulação interna do ético [.. Hegel já le­ vantara questões sobre a falta de objetividade: A principal tendência da [.] à arquitetônica da sua racionalidade . e à medida que se aproximava o meio do século (com conse­ quências que alterariam para sempre.da crença de que o Stimmung só está acessível a partir da experiência rara e subjetiva. Já no tempo de Dilthey . O final do século X IX foi um tempo cuja complexidade parece cada vez mais escapar às formas tradicionais da lite­ ratura e da arte. suspeita de incentivar os maus hábitos da ilu­ são e da compensação. no campo mais fenomenal e objetivo dos textos li­ terários: na sua forma prosódica e poética.ine­ vitavelmente .e o desafio que nele se apresenta . produz a for­ ça do todo a partir da harmonia de suas partes redu­ zir esta refinada estrutura a uma tolice de “ coração. O ponto de partida e o catalisador da experiência da al­ teridade histórica e cultural residem. Sem saber com rigor do que se tratava. em formas intensas e íntimas. para as quais uma vez ou outra pudéssemos querer escapar. os atores e os espectadores da Paris do século XVII estavam obcecados com o verso fortemente grave. arco e proteção se sustentam. Não se trata de procurar possibilidades de existên­ cia há muito desaparecidas. ele fazia parte da realidade material da cidade naquele tempo. amizade e entusiasmo” .é a de que concentrar-se nas atmosferas e nos ambientes permite aos estudos literários reclamar a vitalidade e a proximidade estética que.determinadas distinções entre as diferentes esferas da (. ou de quais “ sentimentos” estavam ali envolvidos. contra a polêmica de Hegel.. pesado de páthos.. com a forma que chamavam de “ verso alexandrino” . podemos ter certeza de que os dramaturgos. Em vez de revelar o sentido ou os objetos Atmosfera. que ao mesmo tempo nos alertam e nos motivam. como as de Hegel. Num sentido literal. o objetivo é seguir as configurações da atmosfera e do ambiente. 7 A tese deste livro . ambiência. em grande parte. Essa atitude só será eficaz se tivermos em conta obras determinantes.. Stimmung 23 .] vida [.. desapareceram. de modo a en­ contrar.] e através das estritas proporções em que cada pilar. a alteridade.) Em vez disso. (Essa orientação logo seria . O sobrinho de Rameau. através do seu prota­ gonista e do ambiente em seu redor. relaciono o tom surpreendentemente “ nervoso” (ao menos da pers­ pectiva atual) das cantigas compostas por volta de 1200 por um homem conhecido pelo nome de Walther von der Vogelweide com o clima de instabilidade política e de incer­ teza religiosa que deve tê-lo rodeado. Através das novelas picarescas do sé­ culo XVI. Os sonetos de Shakespeare abrem todo um mundo de dese­ jo erótico. grande luz das letras brasileiras. Sempre que recitamos os monólogos ou os diálogos da maneira que Corneille ou Racine os imaginaram. mas claro que não se concen­ trando exclusivamente na prosódia. escre­ veu no começo do século X X .nos conduz à melancolia e ao vago abandono que deve ter sido o cenário do Rio de 24 Hans Ulrich Gumbrecht . convocamos esses textos para uma nova vida.um imediatez. inseparável do seu entorno material específico. Aí reside um encontro . Por exemplo.de referência. o tom desses versos é uma componente texto-imanente do passado da cidade. Os sons e os ritmos das palavras são atirados contra nossos corpos do mesmo modo que eram atirados aos cor­ pos dos espectadores naquele tempo. imediatez e objetividade . os capítulos deste livro revisitam casos de presença.que não pode ser minado por nenhum ceticismo. acredito que seja possível vivenciar uma atmosfe­ ra de tensão entre a vida do dia a dia e a ortodoxia religiosa que deve ter sido típica da Espanha da Contrarreforma. Memorial de Aires . e no qual ele dirigiu suas polêmicas lutas. de Diderot. nos confronta com a rudeza quase asfixiante de uma atitude que deve ter sido dominante nos anos que antecederam a Revolução Fran­ cesa.e prestam particular atenção aos contextos sempre já asso­ ciados com atmosfera e ambiente. Sobretudo nesse sentido. uma objetividade do passado-feito-presente .o diário ficcional que Joaquim M achado de Assis. ) Tal abordagem parece procurar libertar o conteúdo ideacional das entediantes complexidades da forma. recorrer a conceitos ou argumentos filosóficos para ler lite­ ratura. o texto combina de modo fatal as sen­ sações inefáveis do protagonista com o clima atmosférico da cidade . mas. (É evidente que. é quase uma obrigação profissional. torna presente esse mesmo período. ambiência. nem a sua representação. esse modo interpretativo é inca­ paz de responder à questão sobre o motivo de os escritores decidirem tão enfaticamente usar formas literárias compli­ cadas. De maneiras diferentes.Janeiro no tardo-império. para os acadêmicos e os críticos de hoje. Temos tendência para desconsi­ derar os efeitos de imediatez que provocam. M es­ mo no melhor dos casos. que os desconsiderem. não temos de saber quais motivações ou circuns­ tâncias os ocasionaram. Stimmung 25 .como se elas se propusessem enquanto alegorias de argumentos ou agendas filosóficos. uma vez ou outra. Morte em Veneza. N o contexto europeu. Essa imediatez na experiência de presentes passados ocorre sem que seja ne­ cessário compreender o sentido das atmosferas e dos am­ bientes. todas essas obras permitem que o leitor encon­ tre realidades do passado. complexas.e não um sinal do passado. para sugerir afirmações filosóficas.o seu entorno material. a famosa obra de Thomas Mann. por meio de diferentes elemen­ tos textuais. aqui. En­ contro aqui a confirmação da minha crença de que uma função mais importante dos textos literários é o potencial Atmosfera. não se trata de. E que aquilo que nos afeta no ato da leitura envolve o presente do passado em substância .especialmente as canônicas . 8 Uma tendência recente nos estudos literários é ler as obras . de fato. A leitura que Vossler faz das obras espanholas do século XVII torna presente um momento do passado. Isso não significa que não se possa querer atingir a “ presentificação” das atmos­ feras e dos climas do passado tendo objetivos filosóficos em mente. N o entanto.contido na sua concretude e na sua imediatez histórica. As leituras que se concentram no Stimmung .têm a qualidade singular de um fenômeno material.e talvez também um sentido de esperança . não devem ser rejeitadas sem mais) . naturalmente.em muitos dos casos . resultou um ambiente .é uma ausência da distinção entre a experiência estética e a experiência histórica. En­ tendo por “ concretude” que cada atmosfera e cada am­ biente . qua singularidade. aquilo que distingue a leitura voltada para o Stimmung de outros mo­ dos de interpretação literária . Acredito que Vossler compreendeu essa componente dos textos que analisou como “consolo da filosofia” .insistem na distância. A ênfase da imediatez histórica na leitura que tem como foco o Stimmung não deveria corresponder a uma ingenuidade política.publicou um livro sobre a poética da solidão na Espanha do século XVII. porém.a partir do misticismo lírico dos judeus marranos. nem circunscrita por conceitos. nunca poderá ser definida em absoluto pela linguagem.que na década de 1920 já tinha escrito uma série de ensaios que podem ser consi­ derados reflexões sobre o Stimmung . N o começo da Segunda Guerra Mundial. pelo menos aos nossos olhos hoje. o grande filólogo Karl Vossler . por exem­ plo. Da sua leitura. que pretendia con­ trapor às ameaças e às imposições de silêncio da Alemanha do seu tempo. Esse passado-tornado-presente se define no seu 26 Hans Ulrich Gumbrecht .por mais semelhantes que sejam a outros . Podemos apontar para essa singularidade.por opo­ sição aos esforços de encontrar as alegorias dos argumen­ tos filosóficos (que. ao ten­ tar encontrar a atmosfera e o ambiente.caráter estrangeiro. porque são de qualidade diferente da alteridade histórica. qualquer uma dessas obras pode absorver atmosferas e ambientes e. uma sinfonia. Ao fazê-lo. nenhum gênero e nenhum meio que revele uma afinida­ de exclusiva em relação ao Stimmung. Foi o que procurei fazer nos capítulos que escrevi sobre o “ surrealismo” do início da década de 1900. a partir da análise de obras de dife­ rentes origens. então. sobre a ausência de representações da alegria nessa mesma década e sobre o ambiente intelectual do “ desconstrucionismo” no fim do século X X . pos­ teriormente. Aquilo que Vossler transformou em objeto de expe­ riência . Ainda assim. a canção de Janis Joplin. é importante retomar a questão: depois de caminharmos para além da objetividade da forma. não o ambiente de uma situação individual. uma canção. Um quadro. A princípio .não exis­ te nenhum período histórico. Por isso mesmo há capítulos deste livro que se debruçam sobre as telas de Caspar David Friedrich ou Me and Bobby McGee. e. Simultaneamente à experiência históri­ ca.com base num número limitado de obras de um só gênero . deveríamos tentar capturar os ambientes predominantes de situações históri­ cas mais abrangentes. Além de tornar pre­ sente o ambiente de textos particulares.foi a atmosfera de um momento histórico. como podemos evi­ tar nos afogar na “ tolice do coração” ? N ão há resposta definitiva a essa pergunta. devolvê-las para uma experiência num novo presente. deparei-me com uma curiosa continuidade entre diferentes sentidos da (suposta) impossibilidade de representar o mundo. ambiência. nem um modo de garantir imu­ Atmosfera. é correto chamar esses fenômenos de “ estéticos” .e isso deve ser sublinhado . nenhum plano fenomenológico. convenções gráficas. formas e conteúdos. a leitura produz consolo e edifica. Stimmung 27 . nem fazer afirmações existenciais sobre uma suposta superioridade . o seu movimen­ to se inicia por “ palpites” . e olho com suspeição para a viabilidade de “ métodos” que os iden­ tifiquem.ou “científica” ? Precisa­ mente pelo fato de que cada Stimmung é histórica e cultural­ mente único. Aliás. (E isso por boas razões!) Antes. Muitas vezes percebemos um po­ 28 Hans Ulrich Gumbrecht . e porque os mesmos elementos que constituem o fenômeno desaparecem quando está em causa o sentido . Concentrar-se nos fenômenos formais permite evitar o pior. pois acredito que os pesquisadores na área das “ ciências humanas” devem confiar mais no potencial do pensamento contraintuitivo do que em uma “ trilha” ou um “ caminho” preestabelecido (ou seja. Em muitos casos. 9 M as como poderemos revelar atmosferas e ambientes. Ao ser acrescentado à experiência da empatia. o ato de leitura com foco no Stimmung deveria ser acompa­ nhado de uma medida de sobriedade e de moderação ver­ bal. o sentido etimológico de método). voltar a percorrer o seu caminho e compreendê-los? Haverá alguma abordagem profissional . mas é igualmente importante não atribuir qualidades absolutas . O pensamento contraintuitivo não receia des­ viar-se das normas da racionalidade e da lógica que regulam o cotidiano. pelo pouco interesse que nosso campo de estudos tem demonstrado pela questão duvido do poder das “ teorias” para explicar atmosferas e ambientes.nidade a esse afogamento. mais vale apontar na direção de am­ bientes possíveis do que descrevê-los em seus pormenores (muito menos celebrá-los).ao deparar-se com atmosferas e ambientes de culturas do passado ou de outras. meu ceticismo quanto aos métodos é mais forte ainda. com certeza.e. Quando tal des­ crição acontece. assim será com o ensaísta . Um ensaio que se concentre nas atmosferas e nos ambientes não chegará ja­ mais à verdade inclusa num texto. ambiência.o efeito coincida com o do texto “ primário” . Escrever assim tem algumas semelhanças com a ideia do ensaio crítico-literário desenvolvida por Georg Lukács no seu livro A alma e as formas. referindo-se a uma obra literária. Seguir um palpite significa confiar durante algum tempo numa promessa implícita e dar os passos no sentido de des­ crever um fenômeno que seja desconhecido .porém. escreveu.o palpite de uma diferença de tom ou de ritmo.isto é. antes. no caso de atmosferas e ambientes. o da tarefa de desnudar a “ verdade” (isto é.até certo ponto .que nos des­ pertou curiosidade e.aquele que é de fato capaz de procurar a verdade -. aquilo que não procurava: a própria vida. o conteúdo proposicional) que se presume estar contida nas obras. abarcará a obra como parte da vida no presente. Lukács reclamava que os ensaios desviam-se do objetivo “ científico” de des­ coberta da verdade.” A distinção que Lukács estabelece entre “ a verdade” e “ a vida” situa os seus objetivos num lugar diferente daquele próprio às questões de “ interpretação” . de 1911. é prová­ vel que . “ É correto que o ensaísta busque a ver­ dade” . chega a nos envolver ou até nos encobrir. “ mas deve fazê-lo à maneira de Saul. encontrar.tencial ambiente do texto a partir da irritação ou do fascínio que uma palavra ou um pormenor nos provoca . Tal abordagem tem conse- Atmosfera. Saul partiu em busca dos burros de seu pai e descobriu um rei­ no. cer­ tamente estava do lado contrário ao da defesa que Dilthey fazia da “ interpretação” como prática central das Geisteswissenschaften [ciências do espírito]. no final de sua busca. Lukács talvez tenha seguido Dilthey no seu desejo de uma expe­ riência imediata na leitura de textos literários . Stimmung 29 . e seu modo de articulação textual. Ler em busca de Stimmung não pode significar “ decifrar” atmosferas e ambientes. meu intento é chamar atenção para os Stimmungen. não é necessário sequer acompanhar o desenrolar de um ambiente ao longo de toda uma obra. imagino. em alguns capítulos. conforme esta vai se desenvolvendo em toda sua complexidade.quências para este meu livro. por exemplo. O que estou buscando é uma experiência em que as certezas e as convenções de como se escreve estão ainda por definir. pois estes não têm significação fixa. 10 Como já foi dito mais de uma vez. mas é impossível dar conta das suas reais dimensões.render-se a eles e apontar na direção deles. escrever sob a influência do Stimmung poderá bem significar atirar os tão propalados “ métodos” no rio do esquecimento. revelar o seu po­ tencial dinâmico e promover . O que importa. Aliás. Para conseguir realizar esses gestos expressivos.tanto quanto seja possível seu tornar-se-presente. começo por sondar as profundidades. A longo prazo. nem sempre é necessário escrever na escala dos tradicionais debates acadêmicos. mas análises assim são secundárias. nos capítulos sobre a 30 Hans Ulrich Gumbrecht . com suas pesadas notas de rodapé e todo esse aparato. a possibilidade de ir além dos meros gestos expressivos pode concretizar-se se seguirmos a emergência histórica das atmosferas e dos am­ bientes. Tais exercícios são o que proponho. Da mesma maneira. tal leitura não implicará reconstruir ou analisar a sua gênese histórica ou cultural. Acima de tudo. Claro que não há qualquer problema em reconstruir a gênese ou a estrutura de atmosferas e ambientes particulares. é descobrir princípios ativos em artefatos e entregar-se a eles de modo afetivo e corporal . sim. a construção de nações ou a frustração de tais esforços. Stimmung 31 .ou seja. Para que a exigida densidade de sensações seja articulada nos textos.em um nível mais abstrato . Este livro..quando a sensibilidade ao Stimmung foi refinada.novela picaresca e sobre a ausência de representações de felicidade na década de 1920. prosperidade ou pobreza.ou até em particular. Essa série viria a fazer amplo sucesso. para que as formas e os tons sejam “ carregados” . ambiência. mais do que no nível da representação . é impossí­ vel formular uma teoria geral acerca das condições que são necessárias à produção de Stimmung em geral . mas admitia que poderia vir a se concretizar: Poderíamos supor que o desaparecimento do Stimmung dos vocabulários de estética tenha algo a ver com o fato Atmosfera. e sua recepção foi mais empolgante e mais complexa do que a de outros textos meus. entre o que referia Wellbery no final do seu artigo sobre Stimmung. ao ponto de tornar-se reflexo pré-consciente. como é o caso do nosso presente cultural. como se de carga elétrica . Ao mesmo tempo. Em outras pala­ vras: sempre que um texto seja penetrado pelo Stimmung. começara já a tornar-se realidade. poderemos assumir que terá ocorrido uma experiência pri­ mária. por exemplo. Algo semelhante acontece . N a altu­ ra em que escrevia. Talvez essa reação fosse um indicador de que qualquer coisa. é necessário que ocorra a habitualização. também com temas específicos e publicados nas páginas daquele mesmo jornal. As circunstâncias favoráveis podem ser cumpri­ das por meio de eventos de tipo variado: derrotas ou vitó­ rias militares. começou por ser um conjunto de ensaios breves sobre atmosferas e ambientes literários publicados há alguns anos no comple­ mento Geisteswissenschaften do jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung. Wellbery descartava a possibilidade para o seu tempo. Seja como for. Talvez a adaptabilidade do conceito tome possível ultrapassar a sua atual irrelevância e. No que toca ao meu entendimento da situação nos dias de hoje. na mudança das noções e dos paradigmas estéticos que en­ tretanto ocorreu. já sublinhou o cumprimento surpreendentemente veloz de suas previsões. Para debelar essa ânsia. como sabemos.talvez principalmente pessoas de mais ida­ de . A ânsia pelo Stimmung tem aumentado. Se assim for.ambientes com substância física. a ideia de Stimmung. pois muitos de nós . a atual discussão sobre o conceito revela que. aqui.talvez uma variante dessa ânsia que pressupo­ nha o prazer de lidar com o passado cultural.sofrem de uma existência cotidiana que é muitas ve­ zes incapaz de nos rodear ou de nos envolver fisicamente. terá morrido uma tradição semântica que data da Antiguidade. gostaria de falar menos no desenvolvimento de um novo “ potencial para o sentido” do que no intensificado fascínio estético que agora surge associado a Stimmung·. E. já não é neces­ sário associar Stimmung e harmonia. sempre que pos­ sível. são secundárias as questões de sentido e de significa­ ção. em confi­ gurações futuras.de as metáforas musicais terem deixado de ser autoevidentes enquanto meios de dar às realidades físicas uma expressão figurativa. O que me interessa são os ambientes e as atmosferas absorvidos pelas obras literárias enquanto forma de “ vida” . desde que as at­ 32 Hans Ulrich Gumbrecht . Desde então.preci­ samente. A ânsia pelo ambiente e pela atmosfera é uma ânsia pela presença . Wellbery já alterou sua afirmação . que nos toca “ como se de dentro” . comprova a capacidade de revelar novos aspectos do sentido. venha a manifestar-se um inesperado potencial para o sentido. Isso não importa quando estamos lendo com a atenção volta­ da às atmosferas e aos ambientes: eles pertencem a subs­ tância e à realidade do mundo. Stimmung 33 . O ceticismo do “ construtivismo” e a “ virada linguística” têm a ver apenas com ontologias da literatura baseadas no paradigma da representação. Atmosfera.mosferas e os ambientes continuem a nos tocar física e afetivamente. também é secundário procurar demonstrar que as palavras que usamos podem designar realidades extralinguísticas. ambiência. . Momentos . . esses textos estimulam uma alegria autoconfiante entre os nobres provavelmente obce­ cados pela excentricidade desafiadora dos seus gestos. não deve haver dúvidas de que o surgimento dele se deu por Atmosfera. Porém.para toda a nossa compreensão da boa ou da má sorte no amor. “ Amigos.Alegrias fugazes nas canções de Walther von der Vogelweide A Idade Média. cantarei uma canção ao nosso gosto” . tal como foi imaginada pelos românticos valentes cavaleiros em combate.assim co­ meça um poema atribuído a Guilherme IX da Aquitânia (um dos príncipes mais poderosos do seu tempo). a alegria e a juventude são mais de loucura que de razão. “Nela. O ce­ nário imaginado resultou de algumas centenas de canções. lindas donzelas nas torres altaneiras no meio da densa floresta e outras imagens do tipo -. pode até ter determinado o sucesso ou o fracasso de vidas individuais. Com uma infinitude de variações.que vei­ culava um sentido do eu típico da altivez das elites. o amor. Desde então. ambiência. essa Idade Média não durou muito tempo. em alguns casos. Stimmung 37 . no Sul da França. Que aquele que não compreender as suas palavras seja considerado um peão. essa fantasia tem dado o tom de modo específico. depois no Norte e nas terras de língua alemã. mas também de modos historicamente variados . entoadas pelos bardos nas cortes dos reis e dos nobres primeiro.” Os pesquisadores não chegarão nunca a um acordo sobre as circunstâncias exatas que pos­ sam ter favorecido o desenvolvimento desse tom . a partir de um repertó­ rio finito de situações e motivos. em Mainz. Os seus sucessores mais capazes concordam que as formas e as fór­ mulas literárias sempre encobrirão a verdadeira natureza da atmosfera nas cortes. pode ter dado origem aos mais antigos conceitos de felicidade e de sofrimento. por vezes. só experimentados como realidade social meio milênio depois pela alta burguesia influenciada pelas ideias românticas. a música e as melodias das canções com base apenas na notação musical e nas formas dos versos (divididas em “ tons” ) que chegaram até nós.um medievalista inultrapassável na sua capacidade de imagina­ ção . ilusórias. nos comparativamente reserva­ dos tons da lírica amorosa germânica. 38 Hans Ulrich Gumbrecht .dão pouca informação acerca dos rituais sociais e das circunstâncias da cerimônia.por exemplo. Hugo Kuhn . por vezes. nem mesmo parcialmente. a ordenação dos filhos do Barba Ruiva no Pentecostes. e Guilherme IX. que se detecta nas Minnesang. As pistas de individualidade que se encontram nos textos líricos e nos levam a papéis convencionais revelaram-se. em 1184 .oposição às rigorosas condições da vida medieval (nessas canções. o casa­ mento e as paixões do amor eram vistos como coisas incom­ patíveis. até pare­ ciam encurraladas na melancolia do Romantismo. As poucas fontes que nos restam sobre os festivais das cortes . dúvida e. seria possível perce­ ber alguma impressão não mediada da elevação dos espíri­ tos nas cortes medievais. As respostas dadas pelo próprio Kuhn revelavam.especulava que o orgulho nos papéis de homem e de mulher. Décadas atrás. Nunca seremos capazes de recons­ truir. nada é mais celebrado do que o final do inverno solitário e cinzento). A questão que ocupava Kuhn nas suas interpretações filológicas era a de saber se. levou a vida em lutas com a Igreja). o “ primeiro trovador” . assim como para contrariar os manda­ mentos religiosos de austeridade (na Idade Média. de uma vez por todas. cantaremos. para nós. Livres do rude e entediante prazer. o seu distinto ambiente de­ riva . Verde nos bosques e noutros lugares. Dançaremos. riremos. compostos cem anos antes. também? Sim. o duro frio do inverno sempre ameaça a bênção do mês de maio.É verdade que já deveríamos saber disso. tudo. Seremos alegres. Estaria em perfeita concordância com o que sabemos sobre a maneira como a poesia medieval era composta. vez por outra as canções retomam uma imagem que se destaca da mudança das estações . nas obras de Walther. evitar a tentação de ceder à emoção quando. Terá agora o mundo outra cor. Ainda que os versos de Walther lembrem os de William IX. ficou todo pálido e cinza.de um contraste entre o cená­ rio da primavera e as cores e os sons do inverno: O mundo brilhava. em breve. ambiência. M as. desde o século XIII. Assim se enrugaram muitas frontes. ficará bem. Stimmung 39 . amarelo.quase obsessivamente .imagem incompatível com os gostos e com as Atmosfera. entregue a maio? Agora. Mas agora crocita o corvo encapuzado. vermelho e azul. Q ua­ se todos os prazeres referidos nos seus textos aparecem car­ regados com o fatal pressentimento do seu próprio fim. por exemplo. Para transmitir esse estado de emoção. lemos as palavras de Walther von der Vogelweide: Consegues ver o poder da magia. mas continua a ser tão difícil para nós como para um leitor desavisado. Ali trinavam as avezinhas. se conseguíssemos distinguir entre poemas da primavera e poemas do inverno. por uma boa razão. o anjo exclama: Ai de mim. Agora lhe entrou veneno. três vezes ai de mim! A Cristandade já esteve lindamente ornada. N o tom e no ambiente que percebemos ao ler essas can­ ções e essas declarações políticas. Con­ trapondo-se aos gestos altivos e desafiantes dos trovadores de antanho. Dez anos antes. como me desviaram do caminho as coisas doces deste mundo! Vejo entre o mel flutuar a bílis: Por fora. a combinação de doçura e de obscuro amargo o alemão usa o verbo scbweben para representar o modo como o mel e a bílis flutuam um no outro .alcança um ápice de ascetismo religioso segundo o qual todos os prazeres mundanos se revelam grandes decepções. verde.cores que pertencem a cada uma delas. Walther utilizara a imagem da bílis como metáfora do que interrompe a ordem e as alegrias do mundo fugaz: Súbito. os comentadores interpretam como a visão amarga que o autor tem quando se volta ao seu passado: Ai de mim. vermelha Mas por dentro negra. a beleza do mundo .um texto que. Seu mel se tornou em bílis. numa invectiva que se compôs contra o papa Inocêncio III (que se aliara aos Guelfos e ao rei da França con­ tra a dinastia Staufen). escura como a morte. Essa imagem tam­ bém surge na chamada “ Elegia” . a intensidade da alegria nas obras de Walther é fundamentalmente ameaçada. Isso o mundo lamentará. 40 Hans Ulrich Gumbrecht .alva. ai de mim. Aqui. prazer e alegria ocupam posições precárias em face da amargura do mundo. esse orgulho nos prazeres e nas dores mundanas transforma-se num am­ biente de fugacidade e de flutuação. N os madrigais. a celebração do sofrimento no amor exprime ainda a autoconfiança do pessoal da corte. os quais interferiam na vida do cantor. Os poemas de Walther contêm uma espécie de “ irritabi­ lidade” que é uma reação ao caos dos conflitos entre os poderes políticos do seu tempo. onde prevaleciam distintas relações de lealdade. E regressando. subiu ao trono em Aachen o filho e herdeiro de Barba Ruiva. como resposta às canções francesas que ridicularizavam os hábitos e os modos nas cortes germânicas. de algum modo. Desde o Elba até o Reno. onde quer que fosse. a compor o infame verso inicial do hino alemão: O jeito dos alemães é um melhor tipo de vida. ele tinha que ser bem acei­ to em todas as cortes. quando exilado em Heligoland. por exemplo. ambiência. Os especialistas concordam que esses versos. vive o melhor Que no mundo tenho conhecido. o arce- Atmosfera. o príncipe guelfo Otto. O mesmo vale para o poema aparentemente autoconfiante que teria inspirado Hoffmann von Fallersleben. o mundo o desiludia no que ele acreditava serem as previsões do Di­ vino. As alterações constantes de alianças de Wal­ ther são menos relevantes do que a permanente dor que sentia perante o fato de que. que pare­ cem destinados à autoglorificação.O contraste entre o calor da alegria e o frio “ existen­ cial” nada tem a ver com as tensões entre paixão erótica e sofrimento que encontramos nas canções de seus con­ temporâneos. Ali. estou certo. N as canções de Walther. até a Hungria. Stimmung 41 . depois da morte inesperada do imperador Henrique IV. de fato. foram escritos. Em junho de 1198. é “ uma rosa sem espinhos. irmão do falecido imperador e ele mesmo pretendente ao trono. M ais do que uma alegoria da legitimidade política. assim ele se convencia . ele descrevia. e três meses depois da de Otto. a coroa e as insígnias do império permaneceram em posse da Casa de Hohenstaufen. Porém. 42 Hans Ulrich Gumbrecht . Um ano depois. prossegue Walther. a todos visível. Essas descrições cen­ tram-se na correção cósmica: o casal real ocupa a sua posi­ ção em consonância com o plano divino.de que tal ordenação do mundo temporal correspondia aos desígnios de Deus. Walther compôs um poema afirmando que a velha coroa tinha sido feita especialmente para o novo rei: A coroa antecede o rei Filipe Todos se admirarão com o milagre: O ferreiro a forjou justa. Por ocasião da coroação do príncipe Filipe em Mainz. pomba sem am argor” . a imagem da coroa sobre a cabeça de Filipe foi o modo que Walther encontrou para exprimir essa certeza em uma esca­ la cósmica. Que ninguém jamais separe coroa de coroa. Cabendo na imperial cabeça. A época. Walther (assim como a maioria dos príncipes) apoiou Filipe da Suábia. irmão de imperador. A rainha. bem-nascida. as comemorações de N a­ tal na residência dos Hohenstaufen em Magdeburg: Avançou o rei Filipe.bispo de Colônia presidiu à entronização. Levava o cetro e a coroa do reino Com gravidade e confiança.e convencia a corte de Hohenstaufen . Filho de imperador. presidida por um arcebispo da Burgúndia. Na tripla dignidade de ser rei. da mesma perspectiva. Porém. os momentos de calma e de alegria que evocam têm também uma intensidade . duvidar de que o ambiente de irritabilidade .surgido da ânsia de perene ale­ gria . tal leitura não violará todos os tabus estabelecidos . ela aparece no centro de todas as suas canções e lhes determina o ambiente. que tocava o grotesco. poderá garantir-lhe maior satisfação do que o cenário “clássico” e da corte. também nasce da esperança de que uma situação erótica. cantando na coroação de Mainz. Sua ânsia pela retidão cósmica e pela paz temporal nunca era satisfeita. que expri­ mem o amor terreno. Stimmung 43 .própria.pela moderna crítica literária contra as interpretações biografistas? É certo que o Walther von der Vogelweide “tardio” e grato pelo feudo ganho não deve ter sido o mesmo que o Walther “inicial” . precisamente porque seu trabalho está cheio de lamentações e de avi­ sos. Porém. mais básica. Atmosfera. Walther atenua seu anterior tom exaltado.era um aspecto objetivo das décadas por volta de 1200 me parece ser desnecessariamente acadêmico. dos poemas que chegaram até nós sob seu nome). ambiência. A magia das últimas composições de Walther. Transformada em irritabilidade atenta. Informa a seu destina­ tário imperial que deixou de temer “ a dentada de fevereiro nos seus pés” . Ora. não é apenas o poeta asseverando as qualidades de uma nobre dama sobre as de uma moça plebeia. uma dignidade . nem a corte dos Hohenstaufen nem nenhum outro centro de poder escapava da “ bile” de Wal­ ther (ou.por uma boa razão . para ser mais preciso.Apesar de tudo isso.aliás. com seus prêmios por excentricidade e paixão. Como agradecimento pelo feudo concedido a ele em 1220 em nome de Frederico II. . Muito influentes eram os “ romances corteses” de Chrétien de Troyes. Atmosfera.como incluem as novelas picarescas . Em meados do século X X .A existência precária do pícaro Talvez os leitores do século XVI tenham tido uma expe­ riência diferente. compostos no terceiro quarto do século XII. da perspectiva da história literária. por assim dizer. nelas se davam vários encontros que permitiam exibir os diferentes aspectos do protagonista. o gênero do pícaro surgiu. E verdade que durante a Idade Média havia obras e gê­ neros que incluíam . de maneira inespe­ rada na cultura castelhana. Os cavalei­ ros recuperam suas posições por meio de um ciclo de duas aventiures·. aparentemente. as primeiras três edições da obra anônima La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades.tem levado. sem avisar. o gênero não ter precursores . ambiência. em Alcalá e em Antuérpia. à especulação acadêmica sobre possíveis “ modelos” e “ in­ fluências” que remontam às Confissões de Santo Agostinho. durante o processo. foram publicadas. mas. A partir de então. Em 1554. ele logo encantou autores e leitores por toda a Europa. em que brilhavam os jo­ vens cavaleiros que . O fato de. exibem paradigmas do comportamento aristocrático.séries de episódios do tipo mais ou menos “ aventuroso” . Stimmung 45 .de não ter sido descoberta uma tradição tex­ tual que culminasse na estrutura narrativa e no tipo de pro­ tagonista característicos dele .haviam perdido a honra e status na corte do rei Artur.pelas mais variadas razões . há décadas. ao mesmo tempo em Burgos. A inovação e a notável descontinuidade histórica repre­ sentadas por Lazarillo de Tormes residem na maneira como os episódios da obra formam. Como encarnavam valores abstratos e imutáveis. a historiografia vernácula do século XV sobre a Península Ibérica revelaria coleções de peque­ nas obras biográficas em que os traços de distinção e as cas­ tas virtudes que se esperariam de monarcas e de membros da alta nobreza . N os chamados “ ro­ mances em prosa de condição espanhola” .que os roman­ ces de cavalaria de Miguel de Cervantes logo iriam parodiar a estrutura bem diferenciada e as várias componentes surgiam aplanadas. A complexidade resultante dessa combinação não chega a alcançar total coerência (o que torna o Libro de buen am or ainda mais fascinante.várias vezes de maneiras surpreendentes e sem uma ordem clara . por seu turno. ser ampliados sem nenhum critério. assim como seus percursos de aventura. no conjunto. ainda que faça excluir a possibilidade de essa obra ser um precursor direto da nove­ la pícara). uma única obra . E neces­ 46 Hans Ulrich Gumbrecht . até com mais frequência. N o século XIV.a personalidade do pícaro.no sentido literal do termo . Esse livro conjuga diferentes níveis narrati­ vos e formas linguísticas para contar o desaparecimento de um grande pecador chamado Juan Ruiz. um arco narra­ tivo que.foi composta em língua castelhana com essa mesma estrutura: o Libro de buen amor. os heróis do gênero pícaro. condensadas numa série de episódios que poderiam ser resumidos ou. permite fazer emergir o tipo distin­ tivo do protagonista . podem ser considerados “ alegóricos” .se mesclam com notas sobre suas fraquezas físicas e seus vícios. “ el Arcipreste de H ita” .o grande medievalista Hugo Kuhn foi o primeiro a mostrar de que modo os componentes específicos desse comple­ xo “ ciclo duplo” cumpriam funções narrativas essenciais. M ais tarde. um no­ bre de baixa condição. ambiência. a trilha do pícaro. na maneira como procuram reabilitar-se logo que per­ dem seu estatuto -.” Mal terminara de dizê-lo. Por exemplo. arremeteu. (O lei­ tor percebe depois que. “ para conseguir ultrapassar a água. Ele logo descobre que seu novo amo é ainda mais pobre do que ele mesmo. “ Salte com a força que tiver” . com toda sua força. mas também em cada um dos episódios.por várias vezes o castiga.nos quais os heróis revelam uma atitude decidi­ da. produzindo um som semelhante ao choque de uma abóbora. Lázaro reage endurecendo e aguardando até que possa se vingar de modo refinadamente ardiloso. Lázaro diz ao seu amo que perante eles há um córrego de água abundante. apresenta-se como um processo de aprendizagem. Ao contrário da estrutura narrativa dos romances corteses de Chrétien de Troyes . usando extrema crueldade. abalançou-se o pobre cego e.) Tal educação . porém.um pedinte cego que explora essa condição com grande efeito . surpreendentemente. e deu com a cabeça na coluna de pedra. se se quiser .faz de Lázaro um personagem mais forte e capaz de sobreviver. Lázaro vai embora de vez. Lázaro faz-se contratar por um terceiro mestre . Quando os dois estão à frente de uma coluna de pedra. Obtida sua liberdade. diz-lhe então. M as o herói não é um mero rufião astuto. Stimmung 47 . o pri­ meiro mestre de Lázaro . de cabeça aberta.sário. dando um passo atrás para fazer mais largo o salto.Bildung. mas sua con­ dição social não permite ao nobre recorrer a estratégias de sobrevivência como a mendicância ou o roubo. e logo ali caiu semimorto. Lázaro Atmosfera. Depois de servir a um padre tão avarento que chega a ser sádico. esclarecer duas classificações. o cego sobre­ viveria ao logro. de capítulo em capí­ tulo. dando-lhes Deus a ambos. tenho de meu senhor sacerdote todo o favor e ajuda. dá-me carne. se a principal diferença entre os romances corte­ ses e Lazarillo de Tormes está no fato de o protagonista aprender diariamente com a vida . quando cruzo com um desses cavalheiros. e até agora não estou arrepen­ dido.também de Toledo . ao qual. uma vez ou mais. A história é contada ao amigo de um sacerdote . Só nesse ponto o leitor percebe quem. além de ser boa filha e diligente serviçal. como o leitor rapidamente depreende): E assim me casei com ela. pela Páscoa. que quase me matam de fome. como é bem sentir compaixão desse daqui. caminhando naquele passo e pompa. e.em vez de ser nada mais do que uma alegoria complexa dos valores aristocráticos é importante notar que as aventuras de Lazarillo. Mas ao avarento cego e ao padre mal-aventurado e mesquinho. apesar de toda sua pobreza. onde ela é concubina. dizia eu. tem sido o destinatário do relato autobiográfico. Lazarillo descreve. perto de um saco de trigo. com orgulho. na ficção. folgava de servir mais que aos outros. àqueles é justo não amar. porque.” Deus é testemunha de que hoje. depois do terceiro episódio e do bom mestre. de vez em 48 Hans Ulrich Gumbrecht . sinto pena ao pensar que padece tudo o que a meu amo vi sofrer. não revelam um arco narrativo unificado. e ninguém lhe dá o que lhe falta. Então. N o sétimo e último capítulo do livro. como é agora servo do carrasco de Toledo.em cuja casa a mulher de Lazarillo “ entra e sai” (ou seja. E todos os anos ele lhe dá. “ é pobre.então resolve ajudar o “ Escudero” e sua gente com toda a generosidade de que é capaz: “Esse” . a um de mão beijada e ao outro de língua solta. pelo que disse. quando, dois pães votivos, ou as calças velhas que deixa. E fez-nos arrendar uma casinha perto da sua; aos do­ mingos e feriados quase sempre comíamos em sua casa. A natureza e a implicação do acordo são claras. Exceto uma das primeiras edições da novela - em que certos co­ mentários acrescentados tornam impossível o leitor não ti­ rar suas conclusões o texto não dá provas “ objetivas” de que Lázaro seja enganado pela mulher. Aquilo que “ trai” o herói ficcional é a quase insuportável intensidade de sua insistência - a qual não condiz com suas origens ou biogra­ fia - em ocupar um lugar estável na sociedade. Isso torna precárias suas afirmações e gera um ambiente de crescente nervosismo e de irritação logo nas primeiras páginas da obra, quando Lázaro, filho de um homem executado por roubar grãos de trigo, cita Plínio. Regressarei adiante a esse tom e a esse ambiente de irritação e nervosismo. Também em 1554 veio a público Lazarillo de Tormes a primeira novela picaresca - , que inaugurou um gênero cujo percurso é curioso, até mesmo bizarro. Logo em 1555, o livro foi impresso numa edição que continha uma segun­ da parte, com vários episódios interessantes; o texto acres­ cido, porém, não retoma o desenvolvimento do caráter do herói. Ou, melhor, faltava a essa continuação a qualidade que distinguira o gênero picaresco na sua origem. Durante quase meio século, o picaresco não gerou nada de novo até que, em 1599, em Madri, apareceu Guzmán de Alfaracbe, de Mateo Alemán, obra em dois fascículos; em 1640, M ateo Luján escreveu a sequência. Guzmán de Alfarache é um personagem que, à semelhança de Lazarillo de Tormes, vai aprendendo com suas aventuras; mas a sua longa histó­ ria não culmina num equilíbrio (precário), como acontece, por exemplo, com o “ acordo” de Lázaro. As frases finais Atmosfera, ambiência, Stimmung 49 da sequência de 1640 mostram que o texto, assim como o gênero, estava aberto a novas elaborações: Aqui têm ponto final essas desgraças. Rematei a conta com minha má vida. A que gastei depois, tudo o mais verás na terceira e última parte, se o céu me der essa vida antes da eterna, pela qual todos esperamos. A continuação de Guzmán de Alfarache não chegou a ser escrita - talvez porque o gênero, em 1640, já tivesse ultrapassado os limites da sua produtividade. E de se notar que o Buscón, de Francisco de Quevedo, havia sido escrito em 1604, apesar de só ter sido impresso em 1621. Em todos os sentidos, o Buscón deve ser lido como paródia do gênero picaresco. Em 1605, veio a público a Pícara Justina, que tem como protagonista uma mulher. A impressão que se tem é de que, no começo do século XVII, o gênero já tinha entrado numa fase de involução - etapa do desenvolvimento que se caracteriza por novas versões, com a mesma estrutura bási­ ca, mas que deixaram de ser verdadeiramente produtivas. Dito de maneira mais incisiva, isso poderia significar que a história do gênero picaresco entre Lazarillo - que não manteve até o fim o potencial de seu desenho narrativo - e Guzmán - que abandonou por completo seu potencial pro­ dutivo - deixou em aberto o que se poderia chamar de seu “ culminar lógico” , como uma espécie de hiato. Ao mesmo tempo, entre os leitores de literatura - para muito além da história do gênero no sentido mais concreto e, aliás, sem ne­ nhuma interrupção até os nossos dias - permanece vivo um fascínio pelos personagens picarescos. Em termos de sua re­ cepção e sua influência, uma quantidade extraordinária de energia parece ter emanado dessa forma literária. Seguem-se algumas perguntas: Que plêiade histórica em particular deu origem à novela picaresca? Por que o gênero entrou em fase 50 Hans Ulrich Gumbrecht de involução antes de se ter tornado, de fato, produtivo? O que subjaz ao fascínio que o herói pícaro exerce sobre e além da situação histórica em que “ ele” surgiu? Um dos traços constitutivos do pícaro - e, acima de to­ dos, de Lazarillo de Tormes - é a maneira como se preser­ vam e se salvaguardam a “verdadeira identidade” e a “ falsa identidade” do herói, resultantes da sua adaptação. O pro­ tagonista chantageia a si mesmo a atingir uma posição pú­ blica honrosa, que depois paga com humilhação doméstica. O ambiente da obra - que nunca é explicitado - resulta do lato de que a “ ascensão” de Lázaro à respeitabilidade (ou seja, a identidade que ele obtém através da adaptação) é comprada pelo preço da permanente desgraça dele na con­ dição de marido enganado (identidade que ele não conse­ gue ocultar). Devem ter sido comuns na Espanha do século XV condições de vida como essa - não apenas para os ju­ deus ou muçulmanos que, depois da expulsão de 1492, per­ maneceram no país e se mantiveram fiéis às suas crenças religiosas sob a máscara da conversão. A discrepância entre os hábitos do cotidiano e o status público - ou seja, a alternância entre a decepção (engano) e a desilusão (disengano) - atingia camadas sociais muito amplas, numa socie­ dade em que, já pelo começo do século XVI, haviam emer­ gido estruturas distintas da subjetividade moderna. Foi sobretudo essa discrepância que fez com que os reis católi­ cos Fernando e Isabel criassem o primeiro império mundial dos tempos modernos; para enfrentar o desafio da Refor­ ma, esse papel imperial incluía a missão de aplicar à subje­ tividade e à autonomia o jugo da ortodoxia cristã. A mobi­ lidade social não era impossível nessa sociedade, mas só ocorria mediante o pagamento de um tributo à autoridade da ortodoxia. Desde o final do século XVI, a novela pica­ resca partilhou - e articulou - esse clima de duplicidade. Atmosfera, ambiência, Stimmung 51 deveriam ser feitos sacrifí­ cios à honra atacada na esfera pública . de Sartre) e a filosofia analítica contemporânea parecem ter passado por todas as variantes dessa condi­ ção. N essas condições. Por que continuamos fascinados até hoje pelo pícaro? De onde vem o prazer que retiramos da descoberta de “ he­ róis pícaros” em obras que pouco ou nada têm a ver com esse gênero histórico? Suspeito que a resposta esteja mais relacionada às pequenas .vitórias.tem relação com a admirável capacidade humana de autodecepção. O complexo fenô­ meno histórico que confrontou o mundo por volta de 1550 .Cem anos depois. a história de vida de alguém como Lazarillo de Tormes era parca em imediatez afetiva. A conclusão deve ser que estamos entalados .entre a 52 Hans Ulrich Gumbrecht .e o problema que tem preocupado a filosofia desde então (hoje mais do que nunca) . de Calderón. O Guzmán de Alfaracbe e o Buscón com pro­ vam isso. Conforme se depreende de El mé­ dico de su honra. enquanto tomavam lugar de destaque a instabilidade e uma capacidade verdadeiramente doentia de usar a m ás­ cara social. assim como com a impossibilidade de alguma vez conseguir praticar a auto­ decepção até à absoluta (auto)certeza. e à sua capacidade de disfarce. o fosso entre o valor nominal e o verdadeiro valor do dinheiro era cada dia maior. do que à atitude alegre desses aventureiros.mesmo quando não parecesse haver razões para tal. ela se dividia em duas esferas bem independentes da vida. A filosofia existen­ cial de meados do século X X (acima de tudo a obra O ser e o nada. Longe estava o momento histórico em que a experiência do cotidiano validara o ambiente dúplice da novela picaresca. os postos e as funções na política eram distribuídos independentemente das reais qualificações daqueles que os recebiam.e quantas vezes dúbias . aparentemente ilimitada. dizendo não sei o quê. e amo a ela mais que a mim. e que veem minha mulher ir fazer-lhe a cama e cozinhar para ele. Com frequência isso leva a reações exageradas . Quando Lázaro explicitamente proíbe quem está à sua volta de falar da sua “ situação” . e não sei o que mais. principalmente se for para intrigarem com minha mulher. atalho e digo: “Veja bem: se você é meu amigo. Mesmo quando conseguimos discernir a diferença entre verdade e ilusão .por exemplo. ambiência. a última frase é tão confusa e desesperada quanto na tradução.num estado de diferentes graus de erro autoinfligido. que é no mundo a quem mais amo. não nos deixam viver. ele admite que o que não é para ser dito é. ninguém mais nos ouviu falar sobre o caso. não me diga nada que me apoquente. Melhor que Deus os ajude. Tal como muitos outros que também viveram nessas condições da Espanha de meados do século XVI.inacessível transparência e o engano total . Lázaro inflige a si próprio esse dilema e se vê apanhado: Mas as más línguas. que nunca faltaram nem faltarão. que eles dizem a verdade. a verdade: Até hoje. que não tenho por meu amigo a quem me apoquenta. o herói parece ter atingido um ponto em que a im­ possibilidade de acreditar na mentira que o sustém é tam ­ bém o que o impede de verbalizar essa mesma mentira de maneira convincente. quando sinto que alguém quer dizer alguma coi­ sa dela.como faz o ficcional Lázaro ao escrever a sua história vibra uma nota de incerteza em cada afirma­ ção. E faz-me Deus com ela mil bênçãos e mais bem do que Atmosfera. antes. N o original. de fato. a rejeição de objeções em que ninguém antes pen­ sara. Stimmung 53 . é o clima de tensão que se gerou em circunstâncias históricas específicas. Com cada uma dessas palavras. e me mato com ele. Os leitores. a frase final soa como o começo de um fim que não tardará a chegar: Passou-se isso no mesmo ano em que nosso vitorioso Imperador entrou nesta insigne cidade de Toledo e nela assentou Cortes. como se trata de uma obra de ficção. Aquilo que nos arrebata. que sobre a Hóstia Sagrada jurarei que é tão boa mulher como qualquer outra que viva dentro das muralhas de Toledo. O sentimento que ainda hoje os espanhóis chamam de vergüenza ajena ou seja. como vossa mercê terá ouvido. em prosperidade.fica evidente a densidade desse clima de vergonha ou embaraço ao longo da obra.eu mereço. o embaraço que se sente por alguém (mesmo que seja personagem de um romance) . Mato quem disser o contrário. qual “ verossimilhança” mas eles podem ter certeza de que não devem confiar no narrador mais do que ele mesmo confia em si. claro.e sobretudo nas releituras da novela . e que o texto de Laza­ rillo de Tormes tornou presente. 54 Hans Ulrich Gumbrecht . até mesmo em passagens em que o narrador tenta um tom mais autoconfiante. e se fizeram grandes festejos.ou. ao ponto de quase sentir­ mos desconforto físico. no cúmulo de minha boa fortuna.se torna cada vez mais intenso. nunca saberão qual “ verdade” está por trás dessas palavras . e tenho paz na minha casa. Pois nesse tempo estava eu. o leitor fica esclarecido sobre a verdadeira situação do protagonista.” Desta maneira nada me dizem. Ao fim . Por essa razão. mais frequentemente há um amante dirigindo-se a outro homem. alimentavam). na Inglaterra. M uitas vezes . Stimmung 55 .o comentário de que. Atmosfera. meu professor de inglês se chamava Emil Reuter. Que eu me lembre. ambiência. consigo recitar algumas passagens de cor.revelava essas cadências quando recitava os clássicos. Era mais conhecido por ser o que as pessoas chamam de “ uma figura” do que por seu estilo intelectual ou por suas ambições acadêmicas fora da sala de aula (que muitos professores. na lírica shakespeariana. uma úni­ ca vez. até então. O inconfundível sota­ que da Baixa-Francônia. só recitou numa aula.se tivesse chegado a ouvir . pala­ vra a palavra .As muitas camadas do mundo dos sonetos de Shakespeare N o sétimo ano dos nove que passei no liceu Siebold. era lendá­ rio. Foi com Emil Reuter que le­ mos e discutimos Canterville Ghost. como o chamávamos. o maravilhoso soneto 18. isto é. o Velho Emil teria rechaçado . passados mais de quarenta anos. dissesse sobre as obras geralmente não era posto em questão: os sonetos de Shakespeare têm estrutura diferente da dos sonetos de Petrarca (vale revelar que nenhum de nós tinha. menos quentes do que na Alemanha (para não falar da Itália ou da costa do Adriático). à época.e com gosto . O que o “Ve­ lho Emil” . cujos ca­ torze versos (iniciando com “ Poderei comparar-te a um dia de verão?” ) posso reproduzir agora mesmo. lido Petrarca). quando falava inglês. de Oscar Wilde. em Würzburg. de Shakespeare. os “ dias de verão” são bran­ dos.tão lentamente que. ainda hoje. dão-nos a certeza de que. Bloom declarou que Shakespeare é o permanente e inevitável con­ temporâneo da nossa modernidade.que permaneceu comigo. perma­ neceu comigo por todos esses anos . Parece que se concen­ traram em . podemos mergulhar nesse tempo. Des­ de então . dezessete anos . “William Shakespeare” de modo nenhum é mais uma invenção minha do que a figu­ ra . ligeiramente di­ ferentes: o que.como se fosse a promessa de algo que eu não conseguia nomear? Em outras palavras. por breves instantes. estou certo de que o que me fascina em Shakespeare. me tocou tão fundo .me faz particularmente feliz a lembrança do soneto 18. tout court.as ideias e os sentimentos associados com esse nome que hoje usamos para vivenciar e compreender o que o gran­ de Harold Bloom (dando particular atenção às peças de teatro do Bardo) chamou. dessa aula única. terno e perigoso da Londres do final do sécu­ lo XVI. é a diferença histórica que apresentam. num longínquo ponto qualquer do futu­ ro. Hoje. muito mais ficou na minha memória do que apenas divertimento anedótico.Apesar de tudo isso.não obstante o sotaque de Emil Reuter .e mesmo sem reviver o sotaque francônio . do vigor e da beleza desse soneto. veloz ao vento (mas também os ocasionais resultados menos aprazíveis dessa atividade). torço para. Quem quer que recite os sonetos 56 Hans Ulrich Gumbrecht . aparentemente.quando eu tinha meus dezesseis. M as me pergunto: o que. nas peças e mais ainda nos seus sonetos. tão vincado quanto a pequena cicatriz da minha mão esquerda. de “ o humano” . que ganhei de um acidente de bicicleta? A cicatriz me recorda o prazer de andar de bici­ cleta. Nesses mo­ mentos. sujo. ter mais tempo para me dedicar aos 150 poemas de Shakespeare. em espí­ rito e também em corpo. Seja como for. M as talvez sua grandio­ sa afirmação não tenha ido suficientemente longe. precisamente.e absorveram .todo um mundo: o mundo ruidoso. Mesmo assim. Ao que parece. essas fórmulas ganharam uma energia nova e diferente.o som “ exterior” das pala­ vras e a força que contêm no seu interior . na sua maioria. alunos numa sala de aula em Würzburg.conseguem trazer o mundo de Shakespeare para o presente. nem sequer conseguiremos. não conseguimos deixar de ver o autor como um “gênio da identificação ima­ ginária” . quer em termos históricos.com suas imagens. as palavras tocam os corpos dos ouvintes a partir do exterior. evo­ cando um mundo desaparecido. quer em termos es­ téticos. aos ritmos do seu tempo. Shakespeare tinha mais uma Atmosfera. Nunca saberemos ao certo quem terá inspi­ rado os poemas. enquanto escrevia suas obras. ao mesmo tem­ po. saber a quem pretendiam deleitar.e. esses dois aspectos . que poliu o verso do trovador da Occitânia (o qual muitas vezes cria uma impressão de imediatez) até conseguir um repertório retoricamente perfeito de fórmulas elegantes .ou encene suas peças .se inscrevem na tradição europeia do petrarquismo. os poe­ mas de Shakespeare .como prontamente diríamos mas de “ fazer-presente” . Por princípio. tudo depende da medida em que os textos operam essa absorção. nas palavras de Stephen Greenblatt. ambiência. Juntos. Porque são sonetos de amor. às frases. textos e artefatos absor­ vem a atmosfera de seus tempos. a rigor. impessoais e distantes.de Shakespeare .como as imagens e os sentidos que transmitem nos afetam “ como um toque de dentro” (como escreveu Toni Morrison com tanta eloquência). Porém.empresta presença física às palavras. N as mãos de Shakespeare. Por essa razão é tão ex­ traordinário que ela nos tenha tocado. N ão se trata de “ recordar” . Ao serem evocadas para uma nova vida. e da intensidade com que os atos de leitura e de declamação tornam de novo pre­ sentes esses ambientes. Stimmung 57 . elas . suas formas métricas . A atmosfera é dife­ rente daquela que nos é familiar. suas figuras de retó­ rica. o Universo e as estrelas . não podemos . Gostaria ago­ ra de mostrar como os sonetos de Shakespeare preservam essas atmosferas e esses ambientes em camadas diferentes. as obras de Shakes­ peare têm o potencial . E. 58 Hans Ulrich Gumbrecht . ao mesmo tempo .talvez sem igual na nossa cultura de atingir densidade e imediatez nas maneiras como tornam presente a atmosfera do seu próprio mundo.e em cada momen­ to alguns elementos ficam em suspenso enquanto outros se iniciam. Para conseguir ir além da lógica da história e da hermenêutica. Ainda que possamos nem sempre dar por isso. quer astrológica . ao mesmo tempo.série de funções que lhe ocupavam a vida. julgo. mas. no entanto.constituem o horizon­ te cósmico onde ocorrem situações de amor: Não das estrelas extraio meus juízos. Para Shakespeare. É impossível não ver como esses momentos do passado encontram necessariamente maior ou menor eco em “ pre­ sentes” específicos e em situações concretas da vida da pos­ teridade. Afetam simultaneamente leitor e ouvinte. distinguem-se uns dos outros e podem ser classificados como es­ feras de fenômenos distintos. uma forma definitiva.com relevância quer astronômica. Esses níveis de significação interligam-se ao longo de múlti­ plas linhas. e nunca assumirão. como diferentes instrumentos numa orquestra. sentimos que esse mun­ do e a sua atmosfera nunca se materializarão por completo. variadas e muito diferentes.duvidar de que a atmosfera de um determinado presente pode tocar-nos de maneira direta. O Renascimento mesmo viveu esses “ renascimen­ tos” ao longo dos séculos X IX e X X . para nós. porém. tenho astronomia.nem deveríamos . ele conquistou ter­ reno para os seus textos. estrelas constantes.ao menos vistas da pers­ pectiva do nosso tempo -.ou seja. nele..] (soneto 14) Quase todas as passagens pertencentes a essa camada peri­ férica parecem. percebemos. Em vez disso..Mas não para dizer da boa ou da má sorte !··.nem por mais nada . minha rosa. ele as carrega de energia. no contexto dos sonetos shakespearianos -. em uma segunda leitura. a presença dinâmica de todo o Universo na companhia da pessoa amada não é só uma fórmula hiperbóli­ ca da retórica do erotismo (como seria o caso em versos de Petrarca). que o amante não dá por mais ninguém . traduzir as referências cósmicas como descrições metafóricas da pessoa que se ama.] Porque a nada mais chamo. como Shakespeare faz no segundo verso (“ nele.ou seja. seria totalmente desnecessário enfatizar. his­ toricamente . se levarmos a sério a linguagem . nesse Universo largo. Assim. eles encar­ nam e materializam suas realidades. senão pela pessoa amada. as concretas e as espiri­ tuais. porque fazem parte do Universo. M as. ou as coisas nele. Tirando a ti. é neles que leio [. em metáforas para as questões hu­ manas e pessoais. que os amantes e seu amor não se fazem presentes apenas através das metáfo­ ras. és tu meu tudo [. Shakes­ peare nunca chega a transformar completamente o mundo natural.no “Universo largo” . Stimmung 59 . Atmosfera. ambiência. ao primeiro olhar .. E... Ao permitir-lhes reter a vitalidade da literalidade e da concretude possíveis. és tu meu tudo” ).] (soneto 109) Se aqui se tratasse apenas de amplificação retórica con­ vencional. num sen­ tido completamente físico ela revelará seu verdadeiro poder: [..] De teus olhos recolho o saber. .Podemos dizer o mesmo de outra camada do mundo de Shakespeare e da atmosfera nele contida: as estações do ano.mas também outros .. Que do calor haviam abrigado o rebanho... assim como as folhas do outono. E a estival erva colhida em ramadas 60 Hans Ulrich Gumbrecht . aumentam..] (soneto 75) M as a natureza também se revela na violência com que visita os corpos que envelhecem. Shakespeare sublinha que a existência humana pertence à mesma ordem de realidade que a do crescimento das plantas: [. como as plantas.tratam da possibili­ dade de o amante. o clima meteorológico e a influência que exercem so­ bre tudo o que é da natureza. O amante sabe que a natureza não poupará nenhum. Ou como doces águas para o chão da terra [.. mesmo que esteja no pico da perfeição terrena: Quando vejo despidas de folhas as altas árvores. Os sonetos introdutórios em particular . do mesmo modo que a chuva refresca a terra: Como alimento para a vida és tu para meus pensamentos.] (soneto 15) Pensar na pessoa amada refresca o amante.] Vejo que os homens.] (soneto 72) Nem a pessoa amada está segura. ou nenhumas. ou poucas se seguram [.. estar condenado a murchar e a cair: Aquela altura do ano em que em mim verás Que as folhas amarelas.. Alentados e vigiados pelo mesmíssimo céu [. Ao lem­ brar o caráter fugaz da beleza física.. Vagas folhas vão se imprimir em teu pensamento. e o ambiente se intensifica: O vidro te exibirá o desgaste da beleza.] (soneto 68) Atmosfera.. os sinais da passagem do tempo deslocam-se para o corpo da pessoa amada. N o nível se­ guinte de significação. como as flores [. Shakespeare pode ter pretendido alertar os jovens para a importância de fazer um casamento legítimo e de transmitir aos descendentes suas radiantes qualidades. E deste livro este tanto poderás provar: As rugas que com verdade o vidro te dirá De túmulos falantes memoria te darão [. as cicatrizes vincam o semblante: Assim é seu rosto. Quando vivia a beleza e hoje morre.] (soneto 77) A partir das rugas do rosto de quem se ama.. M as o fato de os sonetos shakespearianos vez por outra .De esquife levadas. barba branca hirsuta: Sobre tua beleza me pergunto [. ambiência.levantarem tais conjecturas confirma a vida que corre dentro deles. conhecido por sua bela aparência e por declarar que nunca se casaria.. Esse tipo de especulação nunca produzirá mais do que hipóteses. Stimmung 61 . Teus ponteiros como gastam precioso tempo.e contrariamente a toda descrença .] (soneto 12) Uma interpretação biográfica plausível tem referido es­ ses versos ao Conde de Southampton. o mapa dos dias desgastados. Das associações comparativamente gerais com o ciclo das estações do ano... surgem os traços primeiros de um mais grave declínio. Além das estrelas. pelo menos poderia trazer à proximidade desejada. e que só um salto . da atmosfera e do ambiente. de estratégias ou de opi­ niões nos sonetos de Shakespeare.uma dimensão de intenções. não é apenas . uma e outra vez.] (soneto 44) Uma vez firmada a proximidade espacial. nenhum desejo ou sacrifício poderá alterar os seus ritmos. Vão os minutos se alongando para o seu final. nada é mais forte do que a imbricada e gradativa sensação do tempo que passa e que escapa.ou principalmen­ te .. das estações e do corpo que envelhe­ ce. a presença fí­ sica dos corpos oferece o outro registro palpável do mun­ do. o espaço que os poemas invocam sepa­ ra. dela não decorre nenhu­ ma “ comunicação” ..N a complexidade da atmosfera e do ambiente do mun­ do nos sonetos de Shakespeare. Que o ágil pensamento salta terra e mar Assim que pensa onde quereria estar [. de ti apartado. mas nenhu­ ma vontade. o espaço é mais uma camada do mundo que rodeia os amantes. o jovem radioso e amado do seu aman­ te que envelhece. podemos olhar para trás e vê-lo. como pode se chamar esse nível. M as muitas vezes permanece como mero palco onde decorrem o movimento e a temporalidade: Como as ondas que se alongam nos seixos da margem.mental. ela é percebida nas vozes das pessoas que habitam o entorno: 62 Hans Ulrich Gumbrecht . Não importaria que meu pé estivesse Na mais distante terra. (soneto 60) Acima de tudo. Sobretudo. A “ sociabilidade” . Ainda que a ti roubes toda a minha pobreza.. ambiência. Então. a presença dos outros . Acontece no momento em que a proximidade física do amado se junta à presença do amante. se unem o respirar e a voz dos próprios poemas: Como pode minha Musa querer inventar tema Enquanto tu vivas. E.. o estado de satisfação na companhia do outro não é de todo impossível nos sonetos de Shakespeare.] (soneto 38) Atmosfera. como ela a língua por vezes detenho..] (soneto 6) A mera presença da pessoa amada traz consigo a possi­ bilidade da ferida: Teu roubo. Que não pretendo. perdem o bom prazer: Por isso.f.. sabe o amor ser o maior ladrão Quem tolera o mal de amor que a ferida do ódio conhecido [. (soneto 102) De qualquer maneira.é sentida como desconforto e até.e. eu te perdoo. que no verso te derramas [. Mas que essa música louca carrega cada ramo.. gentil ladrão. por vezes. Stimmung 63 .] (soneto 40) Assim.. quase nunca há a experiência da satisfação: Não é esse um uso de usura proibida Se alegra os que pagam os juros de vontade [. quase nunca há uma virada positiva no decorrer dos acontecimentos.. com meu canto. E as delícias.] Quando seus lúgubres hinos aquietavam a noite. trivializadas. porém. entorpecer. como um estado de ameaça. tanto quanto percebemos. a presença do eu perante os outros .. Que milhões de estranhas sombras te servem [. Claro que essa circunstância não re­ duzia a força da pura atração física entre homens e mulheres: Dois amores tenho. de conforto e desespero. até as estrelas. ainda me sugerem: O anjo bom é claro homem de intenções.] (soneto 146) A vivacidade do mundo de Shakespeare. o “ respirar” não se limita a fornecer a metáfora da animação espiritual que se dá por intermédio do ser amado. Os quais. Que alimentas as forças rebeldes que te cercam [. As convenções ..] (soneto 144) 64 Hans Ulrich Gumbrecht . a matéria central do ambiente dos sonetos.. as preferên­ cias .a força mais íntima que regula o mundo -. de que coisa és feito.pelo menos. a voz e a energia viva oferecem aos sonetos toda uma presença física. também se deve à elaboração explícita de múltiplos contrastes entre formas heterossexuais e homosse­ xuais de erotismo... em última análise. a unidade corpórea dos amantes é. É que o respirar. Por isso. que tão profunda­ mente nos toca. que os envolve em tons e dimensões de várias camadas. O pior espírito mulher de ruins cores [. Como um ímã .desse momento particular da história permitiam cele­ brar o fascínio sexual entre homens como a forma mais feliz e mais bela de intimidade..] (soneto 53) A alma do amante sente uma atração inexorável: Pobre alma.Também nos versos. tais dois espíritos. centro de minha terra pecadora.. o ser amado atrai para si os elementos do mundo: Que substância é a tua. creio. há correlações em demasia entre os 154 sone- Atmosfera. o soneto 20 apresenta as diferenças fí­ sicas (genitais) entre homens e mulheres como matéria de tal forma inferior à admiração entusiasmada entre pessoas do mesmo sexo que tais diferenças nem sequer provocam ciúme no amante. Seja meu o teu amor e o uso do teu amor tesouro delas.Por essas razões. fazer vibrar A harmonia de cordas que o ouvido me confunde.] Somando uma coisa. De mulher tens gentil coração.especialmente do período medieval e do início da era moderna . quando. mestre senhora de minha paixão. Stimmung 65 . surpreendentemente diretas de excitação sexual. ambiência. pintado pela mão da natureza É o teu. aos nossos olhos. [a natureza] a mim nada somou: Mas. também existem . Para beijar o terno interior das tuas mãos. se para prazer das mulheres te tomou.em poemas onde se evoca o amor heterossexual . [.. em relação às mulheres com quem seu amado mantém relações íntimas: Rosto de mulher. quando tocas A abençoada madeira que a percussão ressoa Com teus doces dedos. (soneto 128) Como em grande parte das antologias de canções e poe­ mas .. Apesar de tudo. Invejo as teclas que ágeis saltam..descrições maravilhosamente vívidas e. minha música. mas ignaro Da volubilidade que nas mulheres falsas se usa. gentil. Entre elas se inclui a seguinte alusão à ex­ trema sensibilidade da pele delicada das palmas das mãos: Quantas vezes. e muito menos de estatismo. A impressão global não é a de “ episodios” ou “ capítulos” .tos. polifónica e carregada de tensão. pois eles pertencem a ordens diferentes de realidade. ao passo que os anteriores . para que desconsideremos de todo os sinais narrativos. Esse estado de coisas elementar pode ser facilmente exemplifica­ do. a realidade da poesia .não apenas dos poemas compostos por Shakespeare . Tal como sucede com a poesia em geral.claro que com algu­ mas nuances . encontramos um fenómeno que divide nossa atenção entre o conteúdo e a forma. nosso enfoque tem de ir se alternando ininterruptamente entre sutilezas de sentido e nuances de som. Ao mesmo tempo. M as não existe um enfoque “ correto” quando se lê poesia. tal como estão dispostos. Jam ais pode ocorrer uma correspon­ dência perfeita entre o tema e os sons da poesia.são inspirados por uma pulsão homoerótica. Os sonetos que apresentam um grau particularmente elevado de complexidade semântica ou jogos de palavras complicados são poemas a cujos conteúdos conseguimos 66 Hans Ulrich Gumbrecht . ou poderá oscilar entre os dois. O “ acordo” entre sentido e som .não oferece um equilíbrio estável porque esses elementos não são conjugáveis dentro dos mesmos parênteses. desde a primeira palavra. nem a sequência existente permite traçar com clareza uma narrativa biográfica. N ão há dúvida de que os sonetos 127 a 152 se destinam a uma mulher. O som da voz que procura incorporar-se e a relevância das imagens poéticas não se conjugam num acordo de total complementaridade . A nossa aten­ ção poderá deter-se de um lado ou do outro.desafia leitores e ouvintes: em cada mo­ mento. Antes. nunca chega a emergir uma historia coerente. mas. Essa fusão complexa é o ambiente característico dos sonetos de Shakespeare. antes.que a crítica de gerações anteriores tão prontamente invocava . de uma unidade dinâmica de tons. Aqui.ou seja. claro.na última linha: “ Odeio” de “ ódio” ela atirou. uma frase que começa no segundo verso só chega a uma conclusão definitiva . de “ Will” . ambiência. no qual Shakespeare embaralha os muitos sentidos do verbo “ querer” (will). a forma abreviada do seu próprio nome: Will há de cumprir o tesouro de teu amor. Stimmung 67 . na sua di­ mensão absoluta. todos os sentidos associados ao declínio da juventude e da beleza . Outras tantas vezes a questão assume forma claramente inversa . e. por outro.no sentido descrito acima. por exemplo. Em coisas de grande recebimento que fácil provaremos.reúnem-se em uma sequên­ cia de ritmo contínuo que parece acelerar suavemente antes de. experimentaremos a impossibilidade de captar totalmente o complexo conteúdo semântico das palavras. ou para combiná-las com imagens ou sentidos par­ ticulares.ao qual o poema exige. surpreendente . se seguirmos bem de perto a prosódia. que chegue ao fim .e. em tímidas pausas: Poderei comparar-te a um dia de verão? És mais aprazível. mais moderada: Atmosfera.fazer justiça quando recusamos ser levados pelos ritmos que neles se oferecem. para o sone­ to 136. Acredito que a razão da dificuldade em apreciar o sone­ to 18 na sua totalidade seja a magia especial que reside na intensidade particular da harmonia oscilante e carregada de tensão . no final. Outro exemplo surge no soneto 145. desaparecer. E não ajuda nada tentar isolar as componentes sintagmáticas com vistas à análise. E dizendo “ não a ti” minha vida salvou. N o soneto 18. Isso vale. por um lado. desafiante. combinando essa simultaneidade.que são imunes até a recitações mais infelizes ou a comentários triviais. Toda a beleza de belo vai por vezes declinando. E quantas seu dourado semblante se ensombrece. Encontra­ mos as várias dimensões de um mundo passado que conse­ gue nos tocar através desses poemas e de seus versos . respirando e vendo. o sentido de condensa­ ção e de homogeneização produzido pelo ritmo. a complexi­ dade resultante da imbricação das camadas de um mundo desaparecido. apesar de todas as explicações sobre as suas condições. Talvez agora .tenhamos captado. N ão há qualquer prova desses eventos. mais do que no começo. Nem perderá jamais o que de belo tens. além da certeza empírica daqueles que os experimentam. 68 Hans Ulrich Gumbrecht . Por acaso ou por capricho da desenfreada natureza: Mas teu verão eterno não morrerá. E o intervalo do estio é em demasia breve: Por vezes brilha demasiado forte o olho celeste. que te vai a vida dando. N o entanto. o momento de experiência estética perma­ nece um evento individual que não pode ser induzido nem garantido. Talvez consigamos avaliar com mais clareza. Nem a morte ousará dizer que com ela caminhas Se fores crescendo no tempo em eternas linhas Enquanto gente houver.Ventos fortes agitam os tenros botões de maio.lendo ou recitando o poema na íntegra . Enquanto viver este. explique também por que as várias autoras que escreveram naquele tempo não obtiveram qualquer reconhecimento durante mais de três séculos. ambiência. O grande teatro do mwido. se não mesmo verdade eterna .que parece ser um fato na­ tural. seguidos de declínio. Esse arco dramático começa em mea­ dos do século XVI. Molière e Racine. Talvez a sua canonização . de Miguel de Cervantes (1605 e 1615). a “ época clássi­ ca” da Espanha cai numa série de erros militares e desastres econômicos que duram até 1700.terem unido seus territórios feudais para formar um Estado moderno. através de traduções e de imita­ ções. Foi também o tempo de Shakes­ peare. o Sécu­ lo de Ouro atingiu o seu radiante pico no começo do século XVII. tendo como ápice literário Dom Quixote. depois de Fernando e Isabel . e de o gênero pícaro ter assegurado leitores por toda a Europa. e só nas fases mais recentes da história literária Atmosfera. Depois dos descobrimentos no Novo Mundo. Stimmung 69 . Foi nesse contexto que surgiram as comédias de Lope de Vega e a peça de Pedro Calderón. As obras desses autores definiram as expectativas dos leitores europeus desde en­ tão. Corneille. M as aquele longo século não foi uma época de ouro só na literatura espanhola.Melancolia amorosa nas novelas de Maria de Zayas O período conhecido como Século de Ouro da literatura espanhola coincidiu com o drama da monarquia dos Habsburgo na Península Ibérica: ascensão e domínio mundial. Em seguida. que juntou no palco a existência terrena e a vida no além.os reis católicos . Assim. nenhuma dessas silen­ ciosas expressões de lamento levou alguém a procurar uma perspectiva historicamente informada dos seus textos.em glosas mar­ ginais . Logo no prólogo de Novelas ejemplares já se percebe que 70 Hans Ulrich Gumbrecht .deveriam ser narrativas curtas. Entre essas escritoras encontra-se M aria de Zayas: nascida em 1590 numa família da nobreza madrilenha. em que o conhecimento derivado do passado (exemplum) se aplicava ao sempre inovador e incerto presente. que outra interpretação inspirada no feminismo se poderia fazer dos textos de Zayas senão a do seu caráter “ subversivo” ? Somente em certas ocasiões . entre 1635 e 1650 distinguiu-se com a publicação de duas coleções de Novelas ejemplares. a bem da instrução e da orientação.se fazia notar que a suposta autora “ transgressora” não chegara a fazer nenhuma crítica fundamental à ordem social vigente no seu tempo. não se levou em conta o ponto histórico mais óbvio: o fato de M aria de Zayas ter sido uma grande escritora dentro das convenções literárias do seu tempo em vez de isso ter se dado a partir de uma posição excêntrica. As Novelas ejemplares . Ora. Nesse sentido. mas também protegidas pela segurança de instituições como o casamento e o véu .de acordo com as expectativas herdadas da Idade Média . Porém. apenas para lhe dar a certeza de que nunca se atre­ veria a ser tão liberal no relato se a história fosse verdadei­ ra.foram redescobertas (certamente com a celebração progra­ mática de alguma efeméride). Assim. uma de suas personagens chega mesmo a relatar ao seu marido cada pormenor imaginável de uma escapadela sexual.afir­ mam a vontade feminina contra a dominação masculina. as novelas de Zayas são todas histórias de amor nas quais as mulheres determinadas e inteligentes. que ti­ veram grande número de leitores e também foram admira­ das pelos escritores homens da época. Com o máximo de virtuosidade. ambiência. Nesse clima retórico. de “ feminismo” no século XVII.ela não participava das correntes intelectuais que foram chamadas. de fato. a partir de uma perspectiva que leve a sério a sua linguagem e não se limite a focar em intrigas muito esquematizadas. o qual. mulher. que só na aparência são “ trans­ gressoras” . da novela pícara aos dramas de Calderón. comportam-se exatamente da mesma maneira que a maioria das outras personagens na literatura clássica espanhola. Em termos da história e da estética da literatura. nada indique que devemos duvidar de que Zayas era. até o nome de uma mulher na capa de um livro poderia ser interpretado como parte de um disfarce . não poderemos deixar de notar como a confusa mui- Atmosfera.a partir de um entendimento cartesiano da exis­ tência humana. Nesse processo. tornam-se emblemas de um mundo cuja modernidade só poderia se desenvolver “ debaixo dos panos” (conforme Maquiavel observou a propósito dos reis católicos) e na contramão da cosmologia cristã. Stimmung 71 . Zayas. por se sustentar apenas no pensa­ mento.sobretudo na França .embora.numa questão filosofica­ mente muito menos convincente . neutraliza as diferenças físicas entre os sexos (pelo menos implicitamente).no conceito aristotélico de “ substância” enquanto fusão entre matéria e forma.após o crescente ruidoso e o bem mais silencio­ so minguante do entusiasmo feminista . com alguma razão. aproveitam todas as oportuni­ dades de engano retórico e de disfarce. importa per­ ceber que suas heroínas. desne­ cessário dizê-lo. a diferença entre formas corpóreas não era neutralizada.seja agora o mo­ mento de nos concentrarmos nas novelas de Zayas. ao contrário. Ao fa­ zê-lo. mas persistia. fundamentava a sua afirmação da igualdade . Talvez . Esse “ feminismo” desenvolveu-se . porque apelava à “ igualdade” da matéria. tiplicidade de estruturas textuais parece bloquear - e até mesmo impedir - o acesso do leitor do século X X I às nar­ rativas. O denso crescimento dessas estruturas começa, por um lado, com a reprodução das inúmeras licenças de publi­ cação e das intermináveis dedicatórias em verso; e vai se concluir (entre outras passagens) no final da primeira nove­ la, com a premissa de que a história da apaixonada Jacinta, que ali se inicia, foi passada a Fabio, cavaleiro peregrino na região de Monserrate. Entretanto, vai-se desenrolando aquilo que Niklas Luhmann, numa discussão sobre o início da literatura moderna, chamou uma vez de “ comunicação com pacta” - ou seja, descrições de situações ficcionais de ação e de atenção. N o começo da era moderna, essas cenas ajudavam os leitores isolados das obras impressas a se sin­ tonizar com os mundos que ali estavam contidos. A si­ tuação de comunicação compacta que Zayas desenha com tanta mestria é o serão, tertúlia literária dos jovens das me­ lhores famílias, que se reuniam na semana do N atal para ajudar sua amiga Lisis, doente, a passar as horas. À volta da sua cama, sentados num “ estrado de almofadas de velu­ do verde” , juntam-se e ouvem a bela Lisarda - objeto do olhar lascivo de Juan, noivo da moça doente - contar a triste história que Fabio ouvira de Jacinta. A intriga mais (ou menos) subversiva se desenrola sem se aprofundar em níveis psicológicos - os leitores moder­ nos, em particular, acham-na seca e mecânica: Jacinta se entrega a Félix, que está comprometido com Adriana; Adriana fica sabendo daquela união e suicida-se tomando veneno; sem ficar nem um pouco afetada pela morte da outra mulher, Jacinta se atira nos braços de Félix nessa mesma noite para o “consolar” ; mediante a suspeita bem fundamentada, o pai de Jacinta tenta matar Félix; tanto persegue o jovem, que este acaba se alistando na armada 72 Hans Ulrich Gumbrecht espanhola e vai para Flandres, onde vem a morrer; Jacinta volta a apaixonar-se, dessa vez por Celio; mas, infelizmen­ te, este não lhe dedica a mesma afeição. O que cativa nas novelas de Zayas não é a narrativa, muito convencional e com pouca substância. O que nelas seduz são as descrições, que regalam nossa imaginação com o fausto retórico dos pormenores elaborados. Só tangencial­ mente essas descrições estão relacionadas com realidades externas ao texto. Logo no começo da primeira novela, a paisagem montanhosa ao redor de Monserrate aparece esti­ lizada à maneira dramática de um cenário alpino, com “ pontas de empinados montes” , “ sendas estreitas” e riachos “ que derramam suas pérolas entre as ervinhas” . Quando, no fecho do conto, as criadas de Adriana - que morreu, ví­ tima da inveja daquelas - a despem, descobrem uma carta de despedida, para a mãe, escondida “ entre os seus formo­ sos peitos” . Um pouco mais à frente, o leitor encontra Jacin­ ta - agora só “ com uma pequena saia de damasco e descal­ ça” - fugindo do pai. Ao longo do caminho, a autora usa todas as oportunidades que a narrativa lhe dá para apresen­ tar os nomes das cidades e das regiões, que se apressa a or­ namentar com uma profusão de adjetivos, como se preen­ chesse páginas de um livro de brasões. O efeito combinado dessas passagens faz lembrar a atmosfera dos poemas de Luis de Góngora, que estimulam sem parar a imaginação do leitor. Esses sinais movem-se, apontam em direções diferen­ tes, mas sem nunca resultarem na imagem coerente de um mundo real. Antes, o gesto da descrição estilizada - como na pintura e na música da época - gera a intensidade dos mais variados ambientes e atmosferas. A obra de M aria de Zayas aguarda ser redescoberta, pela mestria com que convoca esse tipo de Stimmung literá­ rio. Aliás, a frase de autorreflexão com que Jacinta conclui Atmosfera, ambiência, Stimmung 73 a primeira novela antecipa o entendimento filosófico de Martin Heidegger, segundo o qual os diferentes ambientes e atmosferas dependem de diferentes configurações que ocorrem entre horizontes do passado e do futuro: “ Amei Dom Félix até que de mim a morte o apartou; amo e amarei Célio até que ela triunfe sobre minha vida.” Entre a satisfa­ ção perdida para o passado e o desejo de um amante futu­ ro, a novela de Zayas elabora uma densa atmosfera de me­ lancolia enamorada. Esse ambiente envolve também os jovens moços e as damas reunidos junto à cabeceira de Lisis, escutando, arrebatados, o relato de Jacinta, tal como Lisarda o vai contando. E, porque sente que o tom melan­ cólico do seu amor por Juan está como que suspenso no ambiente da novela, Lisis canta um triste soneto que, no final, é acompanhado ao violão. A canção começa assim: “ Não desmaia meu amor com vosso olvido, pois que é gi­ gante armado de firm eza...” Seja qual for o preço a pagar pela redescoberta do char­ me retórico das novelas de Zayas, o esforço promete abrir uma nova perspectiva sobre a maioria das obras do gran­ de período da literatura europeia que também fundou a tradição a que ela pertence. Talvez nos tenhamos detido por demasiado tempo nas intrigas das peças de teatro ou das narrativas em prosa. Assim, parece que esquecemos o fato de que nomes e títulos como Hamlet, Otelo e Lear representam a intensidade de atmosferas substancialmente variadas, nas quais poderemos - e deveríamos - querer nos envolver. N ão será o mesmo válido para o páthos das tra­ gédias de Racine, o registro completamente diferente das peças de Corneille, os mundos das comédias de Molière (que quase nunca dão a imagem de uma felicidade inin­ terrupta) e mesmo até das aventuras de Dom Quixote, “ o cavaleiro da triste figura” ? 74 Hans Ulrich Gumbrecht “ [f]aça sol ou faça chuva” . Quase não sofreu alterações desde que.como se estivessem ali por acaso e fossem. Em nossos dias. antes da Revolução. há 240 anos. que todos se juntavam.em segredo. É fácil imaginar o narrador na primeira pessoa de O sobrinho de Rameau .nos vo­ lumes de ilustrações que acompanham a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert. ou nos recém-inaugurados restaurantes (que antes não existiam). de fato. ambiência. a perfeita geometria dos prédios parece negar ao ser humano as suas dimensões. o Palais Royal é uma praça bastante sossegada no centro de Paris.como uma das figu­ ras marginais num conjunto de objetos daquele tipo. totalmente dispensáveis. Stimmung 75 . Era ali.Mau tempo e altas vozes: O sobrinho de Rameau. de Diderot Em algumas gravuras setecentistas de cenas urbanas na França.que entra em cena referindo-se ao há­ bito que tem de “ passear. enchia-se a praça de partidos política e economicamente ambiciosos. a céu aberto. O centro da cena dessas gravuras é ocupado pelos objetos materiais. no Palais Royal” . Atmosfera. Onde isso acontece de um modo que se aproxi­ ma de uma atmosfera de euforia é nas pranchas . artistas. lá pelas cinco da tarde. Porém. que sempre recebem espaço suficiente para atingir a sua dimensão completa. Diderot escreveu . atrás da Comédie Française. As figuras sempre surgem como perdidas no espaço resplandecente da razão monu­ mental . escritores e as mais belas mulheres de Paris.o manuscrito de O sobrinho. ou nos cafés. o que não era típico dele . um vagabundo da mais elevada estirpe. M ais ainda do que suas convicções e seus valores.e atropela . “ mediocridade mimada” . encantar-se com pratos delicados. tartaruga e bela lagosta.) Rameau era chamado de “gigante meio malfeito” e “ uma águia. de cabeça. de Horácio.Esse milieu fascina o narrador de Diderot. ou as­ sim parece. o ritmo violento do seu discurso põe de lado .as posições filantrópicas defendidas pelo filósofo narrador. Seu temperamento é tão inconstante quanto o clima atmosférico. [_| Abandono o espírito à sua libertinagem... “ mentiroso” e “vigarista” . “ bajulador” . que. tenta também sublinhar como são distantes deste mundo os seus pensamentos e movimentos: “ É a mim que veem. acoito-me no Café de la Régence. de pés” . Autointitula-se “ rematado vagabundo” . na linguagem da época. ou se chove muito. um filósofo -. por se considerar um intelectual . Rameau exige toda a 76 Hans Ulrich Gumbrecht . Eis a filosofia de vida de Rameau. Tudo fará para “ beber bom vinho. um homem conhecido entre os parisienses como um “ original” .ou. O queixo protuberante era o emblema da sua filo­ sofia pessoal.” É nesse Café de la Régence que o narrador encontra JeanFrançois Rameau. centrada na comida e nos prazeres da mesa. Acima de tudo. sonhando.ou. sobrinho do famoso compositor JeanPhilippe Rameau. Diderot invoca o deus romano das estações do ano e dos elementos. sentado no banco de Argenson. aninhar-se junto de belas mulheres e dormir em camas m acias” . vendo jogarem xadrez. em termos menos eufemísticos. ele afirma repetidas vezes que é um pobre-diabo destituído de princípios. ali me divirto. (Na epígrafe.] Se faz demasiado frio. sempre sozinho. Rameau descreve-se a si mesmo com menos piedade do que nas descrições que faz de seus contemporâneos. aquela que lhe permite ver a si mesmo como um sujeito pensador dos seus tempos. e tem genuíno prazer em provocações extremas. [. Quando Rameau. depois de ter co­ mido. Stimmung 77 . comi quando se me apresentou a ocasião. o artesão. pura e simplesmente não poderia “ dar tanto quanto recebe” . o filósofo co­ meça a notar que se ofende menos com as convicções do interlocutor do que com o “ tom ” que ele usa . o mestre de danças . na Fenomenología do espírito. tive fome. Vai gri­ tando salvas de nomes e de verbos ao interlocutor. o ministro.O mesmo que todos os outros: o bem. pois o Diderot da ficção. Enquanto isso. o financeiro.. Sobretudo. soam irônicas as pala­ vras que profere (“ O soberano. cres­ cia-me a barba. eu a fiz raspar.a perversidade de seus sentimentos e a sua excepcional franqueza. o comerciante. o procurador. tive sede e algumas vezes bebi. ao contrário do autor Diderot.atenção com a sua poderosa voz.” Ao mesmo tempo. ensurdecedora.mas nem assim é capaz de distinguir completamente entre as pala­ vras que o atingem e o gélido cinismo que lhe espanta a consciência. conta Atmosfera.tudo gente honesta” ). nada. ao afirmar que Diderot quis desempenhar no diálogo ambos os papéis ao mesmo tempo . o homem de letras. o soldado. porque cresceu. o magistrado. o mes­ tre de cantigas. ele frustra os esforços que o narra­ dor faz para ter um verdadeiro diálogo quando desvaloriza as perguntas daquele: “ O que fez você? .significam escândalo e descrédito. surpreendentemente. o banqueiro. ambiência. A ironia autoderrisória que o filóso­ fo consegue manter no começo (“ O espírito e a arte têm seus limites” ) se dissolve num relato sóbrio da situação: “ Confundiam-me o poder do espírito de Rameau e a sua depravação . o advogado. o mal.” Estava certo Hegel.principalmente para os defensores do Iluminismo . Além disso. mesmo quando têm referentes específicos. Rameau também joga com nomes que . e.a “ consciência fragmentada” do sobrinho (“ ELE” ) e a “ consciência pacífica e honesta” do filósofo (“ EU” ) . descia em regos. Agora. Mesmo naquele momento. nunca o teria’. desenhava o topo de sua veste. “ Ele” está mais do que uns passos à frente de “ Eu” . a instabilidade do clima atmosfé­ rico funciona como emblema do temperamento de Rameau. Como diríamos hoje. Tais vocalizações ser­ vem de ponte para uma explosão que o narrador descreve como a “ pantomima de Ram eau” . Faz isso até a exaus­ tão: “ O suor que descia pelas rugas de sua testa e ao longo do queixo se misturava ao pó dos seus cabelos. “ Então. que quase sente orgulho dele: “ Não mereço suas honras” . cada vez mais o som da sua voz se transforma no meio pelo qual a sua disposição se expressa e se materializa como ambiente dominante. Rameau passa do modo digital para o modo analógico de comunicação: copia os sentidos com gestos físicos em vez de representá-los com palavras. R a­ meau já enfeitiçou os atores e a audiência.” O sobrinho do grande compositor aca­ ba por interpretar todas as partes na orquestra e mimetiza até mesmo os movimentos do maestro. Rameau passa o tempo a can­ tarolar. executou a panto­ mima. Depois se levantou bruscamente e recuperou o tom sério e ponderado. soluçou. finalmente.por um instante .em gestos de deses­ 78 Hans Ulrich Gumbrecht . ganhou a admi­ ração do filósofo. chorou.” N o começo do texto. prometo. um “ traidor” que abusou da confiança de um amigo judeu para o aterrorizar mais tarde com invenções sobre a Inquisição e acabar se apoderando da sua fortuna. dizia ‘sim. minha pequena rainha. E assim Rameau desmorona .” A essa altura. de rosto colado ao chão. Ficou prostrado. a calma: “ Não sei o que me causa mais horror: se a maldade de vosso re­ negado ou o tom em que me fala dele. parecia que tinha entre as mãos o fundo de um chinelo. ou a entoar peças musicais que parecem acompa­ nhar e glosar os tópicos da conversa. assevera.a história de um “ renegado” . o filósofo perde. estão condenados a essas convulsões. a tradução de Goethe serviu de base às primeiras edições do texto de Diderot. Ele “ suspirava. ba­ tendo com os punhos na cabeça” . desolado. ao ponto de se saturar. soluçava. Ali.que inclui as famosas cartas a “ Bãsle de Augsburg” . a eles lhes é negada a verdadeira oportunidade de ver seus desejos satisfeitos. como ele. Stimmung 79 . corre para a ópera. Apenas os elementos so­ cialmente marginais. Se pensarmos em termos puramente cronológicos. ao contrário dos poderosos. pretende ouvir a música de Antoine Dauvergne (figu­ ra hoje esquecida).depois de seu amigo Schiller ter obtido o manuscrito do arquivo de Catarina. De repente.para perceber incríveis afinidades. diz ainda Rameau.encontramos nada menos que o próprio Wolfgang Amadeus M ozart esforçando-se Atmosfera. deixando o filósofo sozinho e deso­ rientado. ainda que trivial.é que. em 1805. à energia.perado abandono. Em O sobrinho de Rameau. N o século XIX. dirige o nosso olhar histórico . quando se pensava que o original estava perdido. Foi claramente essa atmosfera que levou Goethe. apres­ sado. O diálogo entre as duas personagens termina tão abrup­ ta e surpreendentemente quanto se iniciara. Rameau se dá conta de que ficou tarde. poderia ser uma ópera de Mozart.. ambiência.contra o sentido da convenção . Em sua correspondência . Quase não tem tempo de se despedir e. tra­ duzindo o texto (até então inédito e sem título) que em ale­ mão recebeu o nome de Rameaus Neffe. Diderot. soube “ unificar os elementos mais heterogêneos da realidade num todo ideal” . de São Petersburgo . o espaço habitualmente es­ tático da razão do século XVIII se derrama em atividade fre­ nética. lamenta-se Rameau . escreveu Goethe. a Grande. à imaginação. o autor era ímpar no que res­ peitava à “vivacidade. Essa pos­ sibilidade. variação e encantamento” . a reagir com tanto entusiasmo . M ozart sofria a memória da sua sensa­ cional fama durante a infância.especialmente à multiplicidade de formas e à total ambivalência de sentimentos dos seus Caprichos. nos quais o “ sono da razão” (expressão que igualmente se pode traduzir como o “ sonho da razão” ) engendra uma procissão de criaturas noturnas cujas asas de lã cobrem o adormecido filósofo. associa-se menos à geometria e à ar­ quitetura ultrarracional do que aos mundos pictóricos de um Francisco de Goya . vaidade de nossos pensamentos! Oh. pobreza da glória e de nossos trabalhos! Oh.esse ou­ tro clima do “ Iluminismo” . miséria. amar e dormir. Sabemos hoje que os humilhantes problemas financei­ ros pelos quais M ozart passou tinham menos a ver com falta de sucesso ou de pagamentos do que com a inabili­ dade do compositor em manter o extravagante estilo de vida que ele e sua mulher. As obras de M ozart são também comparáveis a uma conhecida cena de O so­ nho de d ’Alembert . o matemático . comer.outro diálogo de Diderot.que o sobrinho de Rameau. A exclamação de d’Alembert. assim como sua devoção aos prazeres mundanos. o seu modelo histórico) se furtava a comparações com o tio famoso. a pequenez de nossas vistas! N ada existe de sólido. e o sonho é tão febril que ele ejacula. levavam. não pertence M ozart a esse outro espaço .sonha com a vida microscópica que existe numa gota de água. Da mesma maneira que o personagem de Diderot (e.para conseguir um estilo cujas hipérboles e imprecações es­ tejam no nível das torrentes verbais do Rameau ficcional. Ainda as­ sim. presu­ me-se. tão galantemente encarna e assume? A música sensual de M ozart.” 80 Hans Ulrich Gumbrecht . deixa espantada sua amiga Mademoiselle de Lespinasse: “ Oh. além de beber. viver.amigo e colaborador do autor . nesse momento. no texto de Diderot. Nele. Constanze. Dois anos mais tarde seria cons­ truída a primeira das passagens cobertas de Paris. num aparta­ mento que ocupara algumas semanas antes. as alterações do mercado financeiro . Em 1827. Atmosfera.Diderot morreu em 31 de julho de 1784. onde habitava o sobrinho de Rameau. no Palais Royal. mais que tudo. A atmosfera e o ambiente do capitalismo que hoje conhece­ mos .os altos e baixos das taxas de produção. Muito rapidamente a região se encheu de lojas de luxo e de uma série de cafés e restauran­ tes. Em gravuras dos anos seguintes. do lado oposto da razão. Sua morada ficava na Rue Richelieu. ambiência. essa Galerie de bois traz algum ruído à transparência e à harmonia austera que predominavam no espaço ao redor.podem bem ter co­ meçado nesse outro mundo. Stimmung 81 . e a madeira foi substituída por metal e vidro. os índices variáveis de confiança dos consumidores e. ainda de madeira. um incêndio a destruiu. . alguns anos antes. tendência então em voga. que nunca mais viria a se casar. Stimmung 83 . N ada houve ali de notável no final do século XVIII. conseguiu prosperar. ar­ deu em 1901.e até 1815 -. típicos do final da Idade M édia. O pai de Friedrich fabricava sabão e velas. ambiência. que caíra na água quando andava de esqui. A mãe morreu em 1781. Caspar David. Três dos seus seis irmãos não chegaram à idade adulta.afogou-se em 1787.cidade com poucos habitantes . ao tentar salvar o irmão de treze anos. Um deles . perto da igreja de São Nicolau. Como o seu concorren­ te mais próximo estava em Stralsund . naquele tempo isso nem sempre acontecia.Harmonia e ruptura na luz de Caspar David Friedrich Caspar David Friedrich nasceu em 1774 em Greiíswald. construída próximo aos belos edifícios da universidade. cada vez menos estu­ dantes se matriculavam na universidade e menos navios procuravam atracar no seu porto. na Academia Real. mas os filhos e as filhas devem tê-lo compreendido.. À época . Greifswald pertencia à Pomerânia Sueca. deixando sete filhos e um marido tão abalado pela sua morte. as casas eram construídas em estilos variados. e pouco se via do classicismo. Em 1798. tinha vindo da povoação vizinha de Neubrandenburg para Greifswald. Greifswald tinha cerca de 5 mil habitantes. Atmosfera.Johann Christofer . Friedrich foi para Copenhague aprender a arte do desenho e da pintura. A infância de Friedrich deve ter sido vivida por ele como um tempo de dolorosas perdas e separações. a casa onde veio ao mundo. Sete anos mais tarde. ele ficou mais tempo do que lhe era costume: aos 44 anos. Ao contrário de muitos pintores. Para Caspar. uma jovem de Dresden. Aquilo que. o artista casara com Caroline Bommer. Foi ali. essa participação não estaria de acordo com a forma de protestantismo que ele praticava e pela qual vivia.pessoas que observam. Mi- 84 Hans Ulrich Gumbrecht . N o verão de 1818. que lhe daria três filhos. as que ele re­ cordava da Pomerânia Ocidental. Faceleceu em 7 de maio de 1840. onde passou um ano. Chegou a obter algum reconhecimento nacio­ nal. que criou quase todas as obras que conhe­ cemos hoje. de forma muito evidente. Dezessete anos mais tarde. * X * É bem sabido que muitas das telas de Friedrich mostram quase todas em primeiro plano . e remontavam com fre­ quência à sua região natal. N o en­ tanto. pintar era questão de autodisciplina e de “ trabalho consciente” .foi feita durante uma excursão ao longo dessas duas semanas. músicos e escritores de seu tempo. há mais de quarenta anos. Friedrich sofreu um ataque cardíaco de que não se recuperou. A famosa pintura dos penhascos de Rügen . enquanto viveu não teve a fama que o coloca entre os grandes artistas do seu tempo. especialmente nas obras feitas a partir de 1815. porém. em Dresden. Frie­ drich nunca teve a ambição de participar de debates filosó­ ficos contemporâneos (que hoje consideramos “ clássicos” ). Caroline e o marido em primeiro plano.regressou a Greifswald. no seu ateliê. essas figuras de observadores colocam o artista Frie­ drich e suas obras numa relação óbvia com a epistemologia da sua época. As paisagens de suas telas são. sobretudo. ela mostra.uma obra-prima de luz . mas as cir­ cunstâncias cada vez mais o chamavam para Dresden. Os historiadores da arte afirmam que isso é muito frequente. N ão sabemos exatamente o que terá levado a esse profundo realinhamento da relação entre a cultura e o Atmosfera. as figuras dos quadros de Friedrich tornam possível que. nos “ vejamos vendo” .. ao contem­ plá-los. precisamente .Penhascos de giz em Rügen chel Foucault identificou e descreveu em As palavras e as coisas como a “ crise da representação” ocorreu no mesmo momento histórico em que se deu a emergência e a institu­ cionalização de uma função que Niklas Luhmann chamara de “ observação de segunda ordem” .obser­ varmo-nos no ato de observar o mundo . Stimmung 85 . ambiência. é que parece ter-se tornado inevitável aos intelectuais do Ocidente a par­ tir de 1800. Um observador de se­ gunda ordem observa o mundo a ser observado. Isso. surgiu algo como um horror vacui epistemoló­ gico: o medo (por mais rara que fosse a compreensão da ori­ gem ou da essência do fenômeno) de que.e mesmo impossível .do mundo e de tudo o que nele existe depende da posição particular que ele. Con­ trariamente à natureza e aos modos do racionalista. a questão .exem­ plificada pelas figuras nos quadros de Friedrich .seu entorno material. ocupa. Isso equivale a dizer que.nenhum índice material no mundo. Trata-se do problema que surge sempre que ocorre ao observador autorreflexivo que a sua perspectiva . na qual se tornou cada vez mais difícil . em face de um número potencialmente ilimitado de representações para cada objeto ou experiência.e a sua interpretação . para cada objeto pode existir uma série infinita de interpretações e de modos de en­ contro. podemos supor que terá tido algo a ver com uma progressiva diferenciação interna da socieda­ de burguesa. 86 Hans Ulrich Gumbrecht . tendo em conta o número poten­ cialmente ilimitado de perspectivas.presumir que aqueles com os quais in­ teragimos veem o mundo da mesma maneira que nós.dá o tom para a discussão filosófica. O segundo problema aproximava-se mais das preocupações que o próprio Frie­ drich reconhecia.sobre o caráter preciso da relação entre experiência e percepção.que está ainda por ser respondida . observador. o observador de segunda ordem redescobre como a sua relação com as coisas-do-mundo é determinada não só pelas funções conceptualizantes da consciência. para quem a capacidade do intelecto se baseia apenas na consciência. o sujeito “cartesiano” (cogito ergo sum) herdado dos séculos XVII e XVIII. Resulta. mas implica também os sentidos. A emergência da observação de segunda ordem . então. ao colocar dois problemas.e isso se percebe de modo muito claro na nossa visão retrospectiva das primeiras décadas do século X IX -. Consequentemente . em última análise poderia não haver nenhum referente . Friedrich descrevia isso em ter­ mos de “ alm a” e de “ harmonia” : Deverei [. enquanto processo de ajustamento e de trazer-para-o-foco. É essa a impressão que tenho quando olho para o emocionante e muito colorido quadro Mulher diante da aurora (1818)...uma mera técnica. a saber. permitisse um modo de obter a perspec­ tiva certa sobre o mundo. vemos como era importante para esse artista .Mulher diante da aurora Friedrich certamente conhecia este último problema e tentou solucioná-lo com as figuras dos seus observadores. que davam perspectivas “corretas” com suas visões do mundo devidamente focadas e ocupando posição central no espaço pictórico. Stimmung 87 . ambiência. que a arte não é . e de tantas maneiras diferentes. Lendo os relativamente parcos co­ mentários de Friedrich sobre suas obras.que trabalhava num estúdio .] repetir aquilo que já tantas vezes disse.e não deveria ser . mesmo que muitos Atmosfera.que a pintura. pintores pareçam pensar assim. [. entre outros) buscavam a harmonia entre a existência e as coisas-do-mundo .. * * * Friedrich e seus contemporâneos ansiavam por esses mo­ mentos de harmonia. por si só. A situação incitava ao Stimmung .ou até a linguagem da devoção e da oração. evidente.atmosfera e ambiente. Antes.uma relação “ adequada” que deixara de ser. ela deveria ser a linguagem de nossos sentimentos e a disposição de nosso caráter . Daí advém que a harmonia tivesse se tornado o objeto do seu desejo. o ambiente dele . As fabricações de um mestre artesão também não são importantes. intimamente. o importante é exteriori­ zar aquilo que captou e emocionou a alma: puramente. As sensações passa­ ram a ser a lei que o governa.o Mais Alto o escuta. quando os grandes pensadores (Goethe e Kant. tal como o quadro.não dará outros frutos. até mesmo as pessoas relati­ vamente tolas conseguem pressentir o que ele quer dizer. se terá dissolvi­ do num estado de pura harmonia. e aqueles que estão imbuídos de sentimento o entendem e o reconhecem.] Os objetos não são importantes... Esse ideal emergiu na transição do século XVIII ao XIX. [. pois eles não são nada fora do comum. seja como for. O homem crente reza dizendo nada . É assim que pinta o artista imbuído de senti­ mento.. Por estas palavras podemos perceber que não era tão claro para Friedrich que artistas como ele mantivessem uma rela­ ção adequada com as coisas-do-mundo.sua elevação espiritual .] Talvez o artista deixe de estar em contato com aquilo que chamou sua atenção por estar bem considerado ou disposto de um modo in­ teligente porque ele. pelos quais já não esperavam e muito 88 Hans Ulrich Gumbrecht . profundamente. Heinrich von Kleist ficou impressionado com a tela Monge junto ao mar. de Frie­ drich. Claro que isso não significa­ va que pretendessem agarrar-se aos momentos de harmonia em detrimento de tudo o mais. ainda assim. a figura do observador permitia ao espectador do quadro. Stimmung 89 . que teremos de sair dali. sob um céu carregado e som­ brio.Monge junto ao mar menos tinham por garantidos. ambiência. na tela. Em sua descrição do quadro (mais precisamente. passar pela expe­ riência de uma relação muito tensa: É glorioso contemplar um deserto ilimitado de água na solidão infinita da margem. em seu comentário sobre uma discussão entre Achim von Arnim e Clemens Brentano) fica claro que. que aquilo é impossível. na sua posi­ ção de observação de segunda ordem. e. que falta ali tudo o que precisamos ter para viver. es- Atmosfera. porque viu como essa obra apresentava a impossibi­ lidade de alguém se situar numa relação “ correta” com o mar. Fazemos isso sabendo que é o que procuramos. cutamos a voz da vida no marulhar da maré, no soprar do vento, no movimento da nuvem, no solitário clamor das aves. Parte disso é a demanda que faz o coração - um “libertar-se” , se me permitem, infligido pela natureza. Isso não é possível acontecer num quadro; mas encontrei o que queria quando olhei para esse: uma demanda que meu coração realizava em busca daquele quadro, e a li­ bertação que ele me infligia. Assim, eu mesmo me trans­ formei no monge; o quadro tornou-se a duna. A “ libertação” que o quadro - e a natureza - impõe ao observador está tão longe do conceito kantiano de belo quan­ to se possa imaginar. Kant falava de uma “forma de intencio­ nalidade de um objeto, na medida em que ele fosse percebido sem a representação de uma intenção” . Ao contrário: a des­ crição de Kleist tem o efeito de uma encenação do sublime, que Kant define como “ uma sensação de desprazer, resultan­ te da inadequação da imaginação na estimativa estética da magnitude para chegar à sua estimativa pela razão, e um pra­ zer, despertado simultaneamente, que resulta desse mesmo juízo sobre a inadequação de a maior das faculdades do sen­ tido estar em consonância com as ideias da razão, ao menos no que esse esforço de o conseguir é, para nós, uma lei” . N ão deveríamos, portanto, tentar reduzir as paisagens de Friedrich à fórmula única da harmonia entre o homem e a natureza. Ao contrário, natureza e homem devem ser entendidos em termos de um espectro de perspectivas do observador, que vai, por um lado, da bela harmonia das figuras devidamente ajustadas até o desprazer sublime ex­ perimentado quando da libertação que ocorre entre a natu­ reza e o observador, por outro. As três figuras no primeiro plano do quadro Penhascos de giz em Rügen surgem-nos como cautelosas e um pouco intimidadas - se bem que não 90 Hans Ulrich Gumbrecht Viajante sobre um mar de névoa do modo dramaticamente isolado do Monge junto do mar. A jovem esposa do pintor está sentada, do lado esquerdo, numa incerteza graciosa e sem se atrever a debruçar-se mais. Do lado direito há um homem desconhecido que ba­ lança sobre uma raiz protuberante, quase pedindo para es­ corregar e cair. N o meio - com medo, mas ao mesmo tempo com curiosidade (de um jeito quase cômico), olhando para o abismo - está o próprio Friedrich, de joelhos no chão. Bem acima da luz cinza, o famoso Viajante sobre um mar de névoa convida e desafia também o perigo. Antes de meados do século X X , essas imagens do subli­ me nunca seriam associadas ao conceito de Stimmung, por Atmosfera, ambiência, Stimmung 91 Campos perto de Greifswald mais que hoje a associação nos pareça óbvia. Até aí, pensava-se ser indispensável uma componente de harmonia para que esta dimensão existisse, e a harmonia é incompatível com o sublime. Friedrich trabalhou com uma gama mui­ to vasta de Stimmungen, no sentido que o termo só mais tarde viria a adquirir; isto é, ele o fez de um modo que es­ tava à frente do pensamento e dos conceitos do seu tempo. Quando olhamos os quadros de Friedrich, os observadores que neles se apresentam nos abrem espaços para a imagi­ nação; podemos então experimentar mil e uma formas de contato físico. Em contraste com o que é “ representado” nos textos e imagens de épocas anteriores - um nível de experiência que muitas vezes requer explicação e tradução para os termos do nosso presente - , os Stimmungen do passado podem nos atingir de modo direto e sem mediação, desde que estejamos 92 Hans Ulrich Gumbrecht Atmosfera. Os Stimmungen conseguem.abertos a isso. em deter­ minado momento do dia. certa vez no começo do século X IX . ultrapassar as barreiras da interpretação hermenêutica. Stimmung 93 . haverá um ponto que corresponde rigorosamente à posição geométrica do observador que olha para o quadro Campos perto de Greifswald. por assim dizer. ambiência. Ali. a luz do sol fere os nossos olhos precisamente do mesmo modo que. Se nos aproximarmos hoje da cidade natal de Friedrich. na es­ trada que vem do sul. terá ferido os de Caspar David Friedrich. . Mann também refletia sobre o estilo e as temáticas “ dignas” de um autor que havia obtido reações positivas da crítica e parecia corresponder às expectativas de grande número de leitores em todo o mundo.a vida que quer ser comple­ tada.numa relação com o tema da “ tragédia da mestria artística” .go­ zava de alguma popularidade. Em 1901. tópico que então . porém. não se sabe se Mann conhecia essas palavras de Lukács. A renovação dos artistas sempre conduz à tragédia.publicado em 1912 e que logo se tornaria uma obra cultuada por inúmeras ge­ rações de leitores . pois uma forma simples deve unir o herói e seu destino. Georg Lukács sugeria um pon­ to de condensação para os debates sobre a “ tragédia da mestria artística” . o autor já se ocupava de repetir o mesmo sucesso. então com 26 anos. Mann publicara Os Buddenbrook: decadência de uma família.” Em termos biográficos. Thomas Mann pa­ rece considerar Morte em Veneza . ambiência. N o ensaio “ Nostalgia e form a” . por isso. Nesse texto. conforme acreditava. O objeto de seu desejo tem um peso próprio . Dez anos depois. Stimmung 95 .O peso da Veneza de Thomas Mann A tomar pelas suas notas de trabalho.cem anos atrás . não poderia limitar-se a seguir as modas mais recentes entre os intelectuais e no mundo da literatura. mas extraía dali consequências sombrias para os autores de literatura: “ Aos poetas sempre será negada essa renovação. é certo que o ensaio expressa Atmosfera. o jovem Lukács chamava atenção para a “ renovação intelectual” que Só­ crates experimentara já no fim da sua vida. época em que registrou uma “ experiência de viagem pessoalmente lírica” . Tendo especialmente em conta a 96 Hans Ulrich Gumbrecht . oferecida pela história da literatura.a abertura do protagonista ao poder da pura beleza.a matéria mais procurada entre os admiradores conhecedores de um autor que. o efebo polonês. os críticos literários continuam ainda hoje a ler Morte em Veneza antes como alegoria do tema da “ tragédia da mestria artística” . ocorrida quando encon­ trou um jovem polaco.como a história melancólica do fascínio que um homem envelhecido sente por um rapaz. o seu “ deus delicado” . a intuição tor­ nava-se um evento literário. tal como eles mesmos.ou pelo menos não principal­ mente . depois de esta ter sido demonstrada. Gustav von Aschenbach. Informações biográficas não eram . como evento de boa sorte e de inspiração. Porém. em última análise.e não são . é de igual erudição: o motivo nietzschiano da “ morte-em-vida” como manifesto no conteúdo da novela. O fato de Mann ter passado uma temporada em Veneza no verão de 1911. vai rebaixando o seu admirador até que este não passe de um “ suado e cosméticamente rejuvenescido perseguidor de rapazes” . Outra perspectiva.acreditava Mann . O herói da obra.o seu lapso em relação à ideia normativa . Isso pode ser entendido como a abertura inaugural de uma atmosfera de idealismo . se transforma num ídolo que.precisamente e de maneira muito concisa a situação que tinha diante de si.dá-se na medida em que Tadzio. Com Morte em Veneza. e não .uma resposta inicial positiva à questão de saber o que poderia seguir-se à mestria. A s­ sim. Essa seria . percebe a beleza de Tadzio. a queda de Aschenbach para um estado de pecado . reve­ la tamanha ambição e esforço para parecer conhecedor. tem interessado menos os comenta­ dores do que as suas reflexões filosóficas anteriores à pre­ paração da novela. do que por meio da autorreflexão.é a consciência. por outro). Aquilo que o texto revela no nível da narrativa . Atmosfera.é comunicado ao leitor mais pelas mudanças meteorológicas de Veneza. se entendermos que esse termo refere-se a acontecimentos que se sucedem entre as personagens. E sobretudo aí que se faz mais visível a grandeza da narrativa de Mann.a crescente conscientização do amante que envelhece . da importância e da intensidade do seu encontro com Tadzio. A experiência de entender o trabalho sob esse prisma não invalida. Stimmung 97 .especialmente depois da chegada de Aschenbach a Veneza . Os personagens em seu redor não se alteram. Aliás. Apesar disso. cada vez mais profunda no protagonista. até esse processo . por um lado. teremos mesmo que ir de encontro a um modo de leitura centrado no desenvolvimento da “ intriga” . de modo nenhum. e a “ tragédia da mestria artística” . para nos concentrarmos nas atmosfe­ ras e nos ambientes. a possibilidade de também considerá-lo como documento de eventos e cir­ cunstâncias específicos na vida do autor enquanto estava escrevendo. Ao mesmo tempo. Prefiro perguntar-me se um leitor atento. que não esteja obcecado pelos efeitos (e pelas afetações) da erudição. não seria levado a uma terceira via de leitura . Morte em Veneza apresenta-se acima de tudo como uma série de atmosferas e de ambientes. não pode restar dúvida da presença desse motivo. não estou particularmente preocupado em escolher entre temas filo­ sóficos (“ morte-em-vida” .o tipo de interpretação que valoriza mais a visi­ ta de Mann a Veneza em 1911 do que o trabalho que fez sobre a sua autoimagem de escritor. ambiência.admiração confessa de Mann pelo filósofo. amplificadas pelas diferentes formas da percepção. Morte em Veneza não tem lá grande intriga. Para um leitor imparcial. M as. Isso fica ainda mais patente na grandiosa adaptação que Luchino Visconti fez para o cinema.que vão da admiração platônica à submissão absoluta (à distância.com as mudanças no clima meteorológico ou com a variação dos sons da música. dentro da “ lógica dos ambientes” . para subordinar as atmosferas da obra à sua intriga vagamente desenhada . por isso mesmo. A concordância complementar das descrições meteorológicas e das fases de amor pelas quais ele vai passando . é. até situações em que a sensação física se torna inseparável da constituição psíquica.por vezes tam­ bém irresistíveis . quem toma o lugar do escritor. em alternativa. e o que torna apelativas .. claro) .é tão habilmente engendrada . como vimos. assim como a linguagem literária.Atmosferas e ambientes.de modo quase obsessivo .ou. de fato. associam-nos . Stimmung é a dimensão mais concreta . possibilita sermos transportados. é um compositor e maestro. E claro que o que pode pensar um leitor não profissio­ nal é uma coisa.em que decorre a paixão de Aschenbach.e. os acadêmicos pesquisadores da literatura deveriam pensar em ter como objetivo uma abor­ 98 Hans Ulrich Gumbrecht . pois ela permite que a dimensão secundária da música intensifique a importância primária do clima atmosférico. são disposições e es­ tados de espírito que não estão sujeitos ao controle por par­ te do indivíduo que afetam.com tal mestria autoral . N o fil­ me. Se o leitor é livre para embarcar numa tal cumplicidade com o texto .que o leitor quase não repara no improvável que essa convergên­ cia. essa substituição não poderá ter sido ca­ sual. A linguagem do dia a dia. talvez a mais “ literária” . cuja estrutura nem precisamos reconhecer. que faz lembrar Gustav Mahler. pela imaginação. A formulação literária das atmosferas e dos climas.essas leituras é outra. N a melhor das hipóteses. tende mais ao comentário textual do que à interpretação.mundos que parecem entornos físicos. como a estrutura do teatro clássico erudito. poderemos amplificar a impressão de completude que produzem . a paixão e a tragédia do herói ocorrem quando ele morre. a sequên­ cia das condições meteorológicas pode corresponder a cin­ co atos. pois se trata mais de liberar o potencial que a narrativa contém do que de revelar o sentido que subjaz a ela. Neste sentido . Tal abordagem. Se incorporarmos algumas cenas que precedem a chegada de Aschenbach a Veneza (cerca de 1/3 do texto). não produzire­ mos novas visões analíticas. Porém.dagem que se concentrasse no Stimmung. o escritor que verdadeiramente procure a verdade muitas vezes achará aquilo que não esperava mesmo encontrar . nem apresentaremos novidades interpretativas.isto é. achará a vida.não efeitos de sa­ bedoria edificante e algo filosófica. Lukács dava uma resposta impressionante à pergunta.escreve ele . se seguirmos a sequência e a convergência do estado dos sentimentos e das condições meteorológicas no texto de Mann (estado e condições que constituem a própria narrativa). E claro que . ambiência. Logo no segundo Atmosfera. vítima de uma epidemia de cólera. Stimmung 99 . N o ensaio a que me referi no início deste capítulo (editado no ano anterior ao da publicação de Morte em Veneza). Além disso.o sentido da Lebensphilosophie [fi­ losofia de vida] do começo do século X X -.quase no sentido das ciências naturais: no final da história. esse potencial per­ mite que o leitor habite mundos de sensações . porém. o nosso encontro com o texto ocorre de modo “ rea­ lista” .os au­ tores sempre se preocupam com a verdade. mas a concretude intensa da experiência que a obra possibilita. pousados no chão salobro. outras mais distantes. chegou por fim um verão enganador. olhavam para o lado. para “ chegar a 100 Hans Ulrich Gumbrecht . afogavam as raízes pelo ar abaixo. sem fazer qualquer movimento.. uma espécie de mata virgem. que o atinge (e a nós) como a concretização exótica do Föhn. que se erguiam de um chão gordo. Duas semanas depois. Aschenbach partiu para Trieste no trem noturno. com ilhas e longas extensões de água lamacenta. formando arranjos que desorientavam. ou vento seco.molhado. viu o brilho fosforescente do olhar de um tigre à espera. Dali tomou o barco até Pola. Aschenbach anseia por um ambiente que ele vê como num sonho des­ perto. luxuriante. de verdes de luxúria. espécies de pássaros com ombros salientes e bicos sem forma. o encontro casual com um “ homem de aspecto es­ trangeiro” faz Aschenbach “ querer viajar” . entre as plantas aquáticas. Após semanas de frio e umidade. o Jardim Inglês esta­ va tão úmido quanto no meio de agosto.. sempre surpreendente no seu calor: Contemplou um pântano tropical sob um céu pesado de úmido . umas mais perto. via os troncos das palmeiras explodir em fartura. terra abaixo. em marés desiguais. quase disformes. de horror e de expectativa. em termos sintáticos) do clima atmosférico típico de Muni­ que: aquilo que é conhecido como Föhn. brancas como o leite e grandes como tigelas. de sombreadas ondu­ lações verdes. Ainda que surgisse decorado apenas com algumas folhas.” Num dia como aquele. que inchava de fabulosa floração. árvores estranhas.. as raízes surgiam dos troncos e uniam-se com a água ou com a terra através do ar. o texto apresenta uma descrição (quase elíptica. impondo-se .] Durante um instante. [.parágrafo. “ Era no começo de maio. O coração bateu-lhe. o “ céu está cinzento e o vento é abafado” . um tempo assim tinha-o afetado de tal maneira que abandonara Veneza como um fugitivo. No fim do seu pri­ meiro dia em Veneza.” N a gôndola a caminho do hotel.tão longe da praia. O terceiro ato encena toda a tensão do drama emergente do clima atmosférico e da paixão. o mar estava pesado e calmo. ambiência. Stimmung 101 . com espanto. Aschenbach parte para Veneza. E “ perce­ be. Aschenbach repara numa família de poloneses. M as. céu e mar ainda estavam nublados. “ encostando-se nos abandonados assentos de almofa­ d as” . que o jovem era de uma beleza perfeita” . de uns catorze anos” . que revelava as linhas das extensas du­ nas. sente “ o peito rasgar em Atmosfera. ponderou re­ gressar. Abrindo a janela do quarto. Ali permanece só o tempo suficiente para perceber que “ não encontrara seu lugar predestinado” . desiludido. a caminho do trem. Estaria de volta esse mesmo desconforto febril . o seu olhar detém-se num “ rapaz de cabelo comprido. o tempo não melhorou. Nesse instante.a pressão nas têmporas. depois de algumas semanas alegres. e parecia ter encolhido enquanto o horizonte. O de­ sânimo apoderou-se dele. Começa então o segundo ato. as pálpebras pesadas? Alguns dias depois. na primavera. Sob um céu carregado. Uma vez. durante a via­ gem. como arco que leva de um leve mau humor até a decisão: Nos dias seguintes. O vento soprava pelo lado da terra. Aschenbach informa à recepção que “ determinadas circunstâncias inesperadas obrigam-no a partir” . aqui e ali baixava uma chuva enevoada.uma ilha no Adriático que ficara famosa nos últimos anos” . sente “ o bafo morno do siroco” . carregados. se adensava . sentados para jantar. Aschenbach pensava que conseguia sentir o cheiro horrendo da lagoa. “À chegada. muitos anos antes. que o levara a partir. retrabalhadas em tom caricatural: Agora. por toda a extensão do céu. em golfa­ das profundas. as velas cor de fer­ rugem cresciam diante das cabanas da praia. suaves. N ada lhe 102 Hans Ulrich Gumbrecht . numa roupa de ba­ nho de linho riscado. o odor levemente fétido do mar e do pântano. Tal como num ro­ mance rococó. no “ azul dos mares do sul” e.decide permanecer em Ve­ neza. assentava um brilho branco de seda.breve interlúdio de felicidade para Aschenbach . preguiçoso. Debai­ xo do firmamento prateado do Éter. com um laço vermelho. A areia resplandecia. de dor” . de novo o olhar de Aschenbach se detém em “ Tadzio. Deixa-se perder na “ aprazível” fragrân­ cia das plantas do jardim.com um pastiche. sobretudo. que inchava. seus cachos louros bri­ lhavam no vento tormentoso que vinha do leste. Então. ape­ sar de o céu parecer mais escuro” . a praia . caminhando pela praia e pelo calçadão” . “ nos sons líquidos que se derretem” .que antes vivia “ para os augustos deveres. Aschenbach tinha se apai­ xonado havia já algum tempo. saindo do mar. dia após dia o deus de rosto de fogo nadava nu. N o momento derradeiro .as cabanas e os botes .com mais cor. Mann inicia o quarto ato . o ar parecia mais rarefeito e limpo. Respira a “ atmosfera da cidade. mas parecia-lhe que só a cidade possuía seu coração.as malas já a caminho de Como .dois” . Sobre o rosto de sardas. Aschenbach . Quando chega de regresso ao hotel. dirigia a sua quadriga de cavalos que cuspiam labaredas. o mar “ adquirira uma coloração verde pálida. o dia seguinte amanhece com sol e nele a paisagem e as figuras de um épico de Homero. santos e graves serviços no altar do seu ser cotidiano” permite que os seus sentidos se abram a um mundo de dias iluminados de sol. ven­ do deuses. em nuvens de infância” . Então. o modo verbal altera-se: Aproxima-se dele na passadeira. ao rapaz. que se transforma em pura melodia para o homem que não tem como enten­ der as palavras do jovem: “ O tom estrangeiro dava às pala­ vras do rapaz o caráter musical.toda uma série de “ lindas visões e flores nascendo.. o medo se apodera dele: medo de que estivesse seguindo o rapaz por muito tempo. com a música da sua voz embalando seus ouvidos” ..transformado no seu mito. querubins . Hesita. talvez dizer-lhe uma frase curta. Talvez seja da agitação do passeio.] à vista do seu ídolo. Quer tocar-lhe na cabeça ou no ombro. sob o céu radiante. em francês. um lascivo sol o banhava em esplendor pródigo. falar-lhe. erguia-se. de volta ao pretérito imperfeito. e a majestosa visão do mar distante servia de cenário à figura. tentando se acalmar. lê-se . De onde vinha esse bafo que descera nele tão suave. ter o prazer de sua res­ posta. atrás das cabanas. Aschenbach “ apressa o passo” . [. Súbito. enquanto escrevia. Aschenbach en­ controu o jovem . N a manhã seguinte.para “ se apre­ sentar. M as.traz mais prazer do que a voz de Tadzio. caminhando do hotel para a praia. mas está tão afogueado que não consegue evitar que a voz lhe trema. o dia. Stimmung 103 . Receia que ele tenha notado. cabisbaixo. por ter nas suas proporções um modelo.” O amante “ ansiava por traba­ lhar na presença de Tadzio. alegre. que começara com um jeito fogoso e festivo. o seu olhar” . mas porten- Atmosfera. aproxima-se. a narrativa desliza. ambiência.“ sozinho” . mas passa ao lado. Aschenbach sonha outra fantasia rococó. total . Nesse ponto. deusas.e estranhamente . de­ pois do sonho. Mas sente o coração a pul­ sar na garganta. por fim. velozes. até que. nas mãos do cólera. Parecia que uma lúgubre corrida de espíritos do vento se desen­ rolava por baixo da maquiagem que cobria o rosto do homem febril. que batiam e se apressavam.toso. Aschenbach sente-se indispos­ to: “ lutava contra ataques de vertigem. que lhe pareciam “ quase orientais” . que deixou de ser dono de si mesmo. como um suspirar vindo das alturas a afagar-lhe as têmporas e os ouvidos? Nuvenzinhas como plumas suspendiam-se. espaçada. que constitui todo o quinto ato. Na manhã da sua morte. Percebe então que a família de Tadzio se prepara 104 Hans Ulrich Gumbrecht . A chu­ va era intermitente. Após esse entusiasmo súbito.combina com a “ pestilência da cidade doentia” . no ar. As hesitantes ten­ tativas de Aschenbach de levar a sério os sinais do perigo mortal e da morte iminente se dissipam. e a morte de Aschenbach. físicos apenas em parte” . baço incenso” das oferendas dos cren­ tes. se torna claro para ele que nada o perturbaria mais do que quebrar o “ feitiço do sonho” que lhe “ mantém ca­ tivos a cabeça e os sentidos” . dá-se a transição para o “ peso da vida” . É intensificado pelo “ odor dos germici­ das” e pelo “ doce. em grupos. O “ cheiro doentio do mar e do pantano” . Vibravam ruídos. contra seus ouvidos.que o incitara a ficar e lhe abrira os sentidos . Os seus sentidos foram de tal modo despertos. sob um céu perturbado pelo siroco. concluin­ do com a partida de Tadzio. Precisamente nesse momento começou a soprar um vento tépido de trovoada. mas o ar adensava-se e enchia-se de vapores decadentes. quais rebanhos dos deuses na pastagem. e tão completamente tomaram conta de si o desejo e o contágio. encolhido de lado na espre­ guiçadeira. “ Passaram-se alguns minutos antes de se aproxi­ marem as pessoas do homem. Stimmung 105 . Aschenbach acaba por se entregar à fantasia de que o rapaz lhe “ sorri e acena” . Nessa experiência de Stimmung.para partir depois do almoço. nos cinco atos de Morte em Veneza. Esse efeito de “ autoevidência musical” pertence Atmosfera. perfeita demais para sequer ad­ mitir qualquer comparação com qualquer tipo de realidade. e de que ele o segue. Nesse mesmo dia. Depois o levaram para o quarto. respeitosamente. continua Bohrer. mais do que a sua verdade. que é derrotado numa luta com outro da sua idade. dividido em cabeça e coração” . num debate sobre a lírica europeia dos dois últimos séculos. identificou como a marca da mo­ dernidade literária. através da combinação retórica de diferentes formas de percepção sensorial. a sinestesia unilateral absorve “ a dupla natureza do sujeito. N o entanto. sua incidência é “ ain­ da mais imediata do que os efeitos da consciência romântica da atmosfera e do ambiente” . esse drama e sua estrutura correspondem à “ consciência romântico-musical do pensamento distante” . nas obras dos escritores “ clás­ sicos” da modernidade. o mundo estremeceu. Talvez alguns leitores achem essa acentuada convergência entre os sentimentos do protagonista e seu entorno meteo­ rológico. ambiência. com a notícia da sua morte. E seu último pensamento antes de morrer. com certeza. outonal” sobre a praia. Ele afirmava que a “ forma particular da consciência romântico-musical do pensamento é apreendida como uma linguagem de Stimmung” ·. que Karl Heinz Bohrer. E.” A morte dentro da vida de Aschenbach revela a intensidade da vida. Há um “ ar suspenso. obsessiva ou rebuscada. O amante observa uma vez mais o amado. Além desse efeito temporal. vimos o modo como Mann convoca. Numa variação da intuição de Bohrer. não terá prepa­ rado as possibilidades linguísticas da filosofia existencial do século X X . a impressão do “tempo parado” . tão típica da lírica moderna e pré-requisito estrutural para os efeitos da atmosfera e do ambiente que nela se geram. 106 Hans Ulrich Gumbrecht . Talvez as questões que nos habituamos a chamar de “ existenciais” tenham iní­ cio na dimensão de atmosferas e de ambientes. Tal como Heidegger escreveu em 1927. sempre que nos depararmos com fraseado desse tipo deve­ mos agradecer antes às formas mais suaves e aos tons mais gentis que a literatura nos dá.parece incluir também a amplificação da impressão de que estamos fisicamente envolvidos num mun­ do material.que vai muito além da “ tragédia da mestria artística” . Seja como for. Por mais que estejamos gratos a Heidegger por sua formulação concisa.não se terá expandido e.pelo menos na prosa . Em caso afirmativo. o escritor teria con­ seguido captar matérias de substância filosófica em con­ dições completamente diferentes das que derivavam das suas ambições filosóficas escolares. a dimensão de Stimmung . poderemos nos perguntar se a prosa de atmosfera e de ambiente de Mann . Stimmung é a “ dispersão de um tremor do ser como evento no D asein” . nesse processo.mais “ naturalmente” (por assim dizer) às potencialidades linguísticas da lírica do que à prosa. por meio de uma alteração nos tempos verbais da prosa. ambiência. também os Aguiar não tive­ ram filhos. M ais recentemente. Apesar dessa condição. desde aquele ano. Muito antes de 1888 (quando a história se inicia). como o autor pretendesse que os imaginásse­ mos gentis e afetuosos pais em potencial. nos descreve suas vidas como sendo de “ orfandade às avessas” . o jovem vivia com seus pais brasilei­ ros em Lisboa. Pode­ mos imaginar que estejam ambos nos começos dos sessen­ ta.como as bodas de Romeu e Julieta . haviam acolhido Fidélia. uma bela e jovem viúva que. Stimmung 107 . eles ajudaram a criar o afilhado Tristão. não é tarefa difícil. após a morte prematura do marido. Carolina. ou pelo meio dessa década da vida. o narrador. antes de 1889. Atmosfera. em 1904. O livro conta a história de Aguiar. os Aguiar conseguem preencher o vazio de suas vidas com “ filhos postiços” . isto é.e contrariara a vontade de seus progenitores. não pôde voltar para o lar paterno porque o casamento que fizera tinha sido de paixão . e os Aguiar nunca mais souberam dele. Carmo. alto empregado bancário no Rio de Janeiro do final do Império. e de sua mulher. Tal como os M achado. Memorial de Aires (1908). era a idade que tinha M achado quando perdeu sua amada mulher. Aquilo que inúmeras vezes é mencionado como a “ idade” que já têm (o autor ficcio­ nal.Tristeza linda no último romance de Joaquim Machado de Assis Resumir o curso dos acontecimentos no último romance de Machado de Assis. chega a referir-se a Dona Carmo como “ a velha m oça” ) alude provavelmente a uma fase da vida que hoje não consideraríamos tão tardia assim. e. através dele. Nesse erro incorreu um dos primei­ ros a resenhar o livro.Os acontecimentos mais importantes no romance são o regresso de Tristão ao Rio de Janeiro. De qualquer modo. Aires . uma antologia de memórias. du­ rante o qual apresentará Fidélia aos seus pais biológicos promessa na qual ele acredita -.algo de fato extraordinário . Dito isso . M as. para a alegria de todos. que. Esse tipo de síntese deixa necessariamente de fora aquilo que faz da obra derradeira de M achado de Assis uma obra-prima.de quem nunca sabemos o primeiro nome . Almáqui Diniz. o duplo engano de Diniz foi exce­ 108 Hans Ulrich Gumbrecht . para seguir carreira na política. Tristão embarca para Portugal com sua jovem mulher e põe termo à alegria dos anos de ouro dos Aguiar. que se queixava de que Fidélia . Pro­ metendo deixar o Brasil apenas por um breve período. à melhor sociedade do Rio de Janeiro). se não lemos Memorial de Aires percorrendo as li­ nhas da intriga. a intervalos nem sem­ pre regulares. Em seguida eles se casam.. Tristão não pretende renunciar ao sonho de uma vida política. Semanas antes de regres­ sar a Portugal. A forma do romance é a de um memorial. Tristão de­ clara aos Aguiar o seu amor por Fidélia (e. o romance pouco tem a ver com essa desig­ nação genérica. inaugura um período de felicidade calma mas in­ tensa para os seus pais adotivos.é um conselhei­ ro diplomático já aposentado que. registra observações e pensamentos que lhe suscitam o lento passar dos seus dias. apesar de ter tardado. à maneira de Hollywood.que considerava a “ heroína” da história era uma personagem pouco “ desenvolvida” e dizia “ não se justificar” no enredo do livro. * * * Parece uma história “ agridoce” . mas. ele estava no auge da fama. ambiência. com diversos enfo­ ques. transforma o autor (o conselheiro Aires) no verdadeiro herói. . o uso que M achado faz do memorial. o público tinha em boa consideração a leveza do seu tom. O segredo da grandiosidade desse romance . Stimmung 109 . Por outro lado. pode dar-se ao luxo de o fazer. como na ópera. A maioria dos leitores admirou o engenho de Machado. Memorial de Aires sempre ficou na sombra dos romances anteriores de Machado . na maior parte dos casos.um daqueles segredos que. agora Aires gostaria de acreditar na honestidade de todos. se mantêm segredo . ainda que acertassem ao apontar . era o autor mais reconhecido na emergente nação brasileira. quase em silenciosa reverência. foi justamente para crer na since­ ridade dos outros. Seu estilo era visto como “ tão perfeito quanto o dos melhores escri­ tores portugueses” .” Ao passo que seus deveres profissionais lhe haviam exigido que não confiasse implicitamente nos outros.ção entre as reações contemporâneas a Memorial de Aires. Ai­ res acredita possuir uma disposição especialmente benigna e alegre: “ N ão odeio nada nem ninguém.mais por intuição do que em resultado de análise .perdono a tutti. Que os efetivos desconfiem! Atmosfera. precisamente. por serem tão óbvios. parece que nenhum leitor tentou explicar o que. era inquieto e desconfiado. constitui a incomparável grandeza des­ se livro.mesmo que os leitores. Acima de tudo.que sua obra era comparável à de Flaubert. N a verdade. estivessem convic­ tos de seus conspícuos méritos. Este herói leva uma vida descansada. Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acre­ ditava em tanta coisa junta. se me aposentei.está precisamente no seu enre­ do. Ao mesmo tempo. não a jovem moça apaixonada. seus pensamentos comandam seus senti­ mentos íntimos e a aparência externa que encontramos. Sua irmã Rita . mas respondi que sim. pois sente que deve isso ao seu caráter e à sua anterior profissão: “ Os meus hábitos quietos.” Sobretudo existe uma distância entre Aires e o mundo que Tristão abandona pelo Rio de Janeiro.1888 e 1889. Embora tenhamos apenas algumas pistas sobre os lugares onde ele representou seu país. e re­ cusei. na realidade muito comple­ xo: “ N ão vejo necessidade disso. Escreve a Aires para pedir-lhe que a perdoe por não ir visitá-lo no dia do aniversário do seu regresso ao Rio e sugere irem juntos no dia seguinte visitar a tumba da família . Aires declina o convite.” * * * Tudo no diário de Aires fica distanciado . Os dramáticos even­ tos políticos do Rio de Janeiro durante os anos registrados no diário .único parente vivo do narrador .também no sentido espacial.a uma certa distância.A princípio. suas atividades profis­ sionais não o teriam levado muito longe.conforme variadas circunstâncias . Em certo ponto. condensa seu caráter. e a que o jovem 110 Hans Ulrich Gumbrecht . Até mesmo os seus próprios impul­ sos e reações espontâneas são vividos por Aires com tal afastamento que só raramente ele se sente inclinado a segui-los. os cos­ tumes diplomáticos. É precisamente com essa atitude que ele ganha centralidade no palco da intriga. Depois de refletir um pouco. a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro.“ dar graças pelo seu regresso” . quando se aboliu a escravidão e foi fundada a República do Brasil . onde se expressa a reação de Aires.ficam também apenas em segundo plano. a perspectiva que lhe dá sua vida serena parece pôr tudo e todos .é uma viúva que vive feliz e em paz com sua vida e com o mundo em que se move. um antigo colega convida Aires para uma reunião política. A linha seguinte. É Tristão que sempre fala ao capricho­ so Aires das atmosferas “elegíacas” e da melancolia.regressará. porém. Stimmung 111 . Contrário ao mundo diplomático que Aires deixou para trás. Aliás. Atmosfera. como vem do continente. essa distância do mundo da Europa . É o mundo europeu do pensamento afetado e da política do pós-romantismo. Num dado ponto.tenta instalar uma distância reconfortante entre ele mesmo e os pensamentos da sua própria morte: Que sei eu de leiloeiros ou de leilões? Quando eu mor­ rer podem vender em particular o pouco que deixo. absolutamente incapaz de sentir tristeza . e não há uma única palavra que nos permita imaginar como é a casa onde ele escreve todas suas observações. Tristão é o único que acredita ter alguma coisa de apropriado a dizer sobre tudo o que vive e sente. quase não hesita em esquecer todos os votos de lealdade eterna prometidos a seu defunto marido. sua futura esposa. Ao mesmo tempo.e. poderemos mesmo crer nessas palavras e nas suas operísticas promessas quando o próprio nome Tristão parece tão desajustado? Ali está um jovem determinado. M as Aires nunca descreve as paisagens vibrantes da cidade. mais que tudo. como o Flamengo e Botafogo.com surpreendente intensidade de sentimentos . a consciência sempre presente de que ela ocupa o centro das coisas . ambiência.do mesmo modo que Fidélia (a “ fiel” ). Esse ambiente ecoa nos sons suntuosos da ópera. o aqui-e-agora da sua vida de aposentado e do seu di­ ário é o mundo do Rio de Janeiro e arredores pós-coloniais: partes da cidade. e cidades-satélite. ela provoca o úni­ co momento em que Aires .é o que mantém as personagens afastadas da cultura colonial. que aproximam Tristão e Fidélia junto ao piano da casa de seus pais adotivos (assim cumprindo a pro­ messa implícita nos seus nomes). sua irmã pede-lhe “ informações de um leiloeiro” . Apesar disso. Com isso. como Petrópolis e Niterói. um “ narrador não confiável” . e Aires sublinha vez ou outra que tais espaços resultam de estados emocionais e físicos distin­ tos . Sacudo a preguiça. Entre algumas entradas há longos hiatos de tempo. e a minha pele com o resto. Mesmo quando o diarista encontra um ritmo. mas esse personagem não escreve com regularidade. Aires é.e não do lento decorrer dos próprios acontecimentos. Já lá vão dias que não escrevo nada. depois visi­ tas. 112 Hans Ulrich Gumbrecht . Explico o texto de ontem. sem outra informação. E possível consi­ derar seriamente cada palavra do romance como honesta expressão do personagem principal. um pouco mais dramático. não é nova. Cesária. só é mencionado o dia da semana. 9 de junho. As entradas do diário às ve­ zes começam com a indicação de dia e mês. Aires volta mui­ tas vezes a entradas anteriores e sempre faz revisões. Agora volta. falta de tempo também não.com abatimento ou sem ele. já no final do livro: Sem data. falta de matéria. consegue ser ou doloroso ou espantosamente lento. não é fina. co­ mentários. A prin­ cípio foi um pouco de reumatismo no dedo. enfim preguiça. outras vezes. mas sempre dará para algum tambor ou pandeiro rústico. pode­ mos nos sentir mais ou menos preparados para a viagem através da intriga do romance. e por vezes só a hora do dia aparece. Conforme aquilo que Aires registra em seu diário. A matéria sobra. Não tem sido falta de matéria. Não foi o medo que me levou a admirar o espírito de D. interpretações: 21 de março. Este mês é a primeira linha que escrevo aqui. falta de disposição é possível. não é bela. ao contrário. de maneira muito específica. Ou. Escrevo isto só para não per­ der longamente o costume. o autor ficcional de Memorial de Aires encontra-se com o verdadeiro escritor Flaubert. e ao contrário de Flaubert. Sete dias sem uma nota. posso dizer oito dias. por mais que eu lhe ache os dentes bonitos. Por vezes. um fato.mesmo a escrita que seja sobre nada e que não tenha uma direção clara (como se vagueasse) . Stimmung 113 . N o entanto. e o resto da noite não passei mal. na sua correspondência com a amada.os olhos. Aires observa que escreve mesmo quando não há nada na sua vida que mereça registro: 13 de julho. Não. cunhou a famosa expressão “ um livro sobre nada” .pode dar forma à nossa existência: Atmosfera. as mãos. ambiência. e aquela dama. M as há algo ainda mais desconcertante do que a irregu­ laridade das entradas ou a lentidão do narrador (que nos exigem paciência) .isto é. A verdade.um livro que não dependeria nem de intriga nem sequer de referência com a realidade. se for oportuno. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê. Neste ponto. e implicitamente o resto da pessoa. é que o gosto de dizer mal não se perde com elogios recebidos. mas para divertir-me. uma re­ flexão.há algo desconcertante no sentido filo­ sófico. e dizer isso mesmo quando se não vê nem se pensa nada. que. Ai­ res parece sugerir que a escrita regular . que sonhava com “ um livro sobre nada” enquanto desafio estético. não deixará de mos meter pe­ las costas. porque também hoje não tenho o que apontar aqui. porém.parece muitas vezes “ vazio” precisamente nesse senti­ do. Já confessei alguns dos seus merecimentos. o diário do autor ficcional Ai­ res . O ro­ mance de Machado . não a elogiei para desarmá-la. Ele diz a sua irmã que o nome de Fidélia 114 Hans Ulrich Gumbrecht . seu túmulo fica muito longe . mas ainda me não cansei de o escrever nestas páginas de vadiação. Aires vê a linda Fidélia pela primeira vez ao visitar o cemitério. nada disto vive para mim.de “ nada” no texto que o narrador compõe sobre sua vida. Já chamei a este memorial um bom costume. carros. Tal como sua irmã e Fidélia haviam perdido seus maridos. ilusões em que Aires e os Aguiar nunca chegaram a acreditar completamente. Os rumores de fora. sequer adotivos: Eu tenho a mulher embaixo da terra de Viena e ne­ nhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. bestas.Estou cansado de ouvir que ela vem. Cha­ mo-lhes assim para divergir de mim mesmo. Aires demonstra com grande habilida­ de que é capaz de dar forma ao curso lento de seus dias e. no começo do livro. mais do que isso. Aires não tem filhos. totalmente só. campainhas e assobios. Quando muito o meu relógio de parede. parece falar alguma coisa. Uma e outra vez.na Europa. ao contrário dos Aguiar. }J- 5[- íf- Apesar da calma impiedosa do narrador para consigo mes­ mo. dão a mes­ ma coisa. gentes.isto é.mas fala tardo. Vadiação é bom costume. Há ainda outro sentido . Estou só. pouco e fúnebre. é um sentido mais forte do que o “ nada” do não-referir-se-ao-mundo. e. Ao cabo. bem pensado. Memorial de Aires também é um romance que fala com ternura das ilusões perdidas . batendo as horas. E. ambas as opiniões se podem defender. . Porém. Aires também perdera a esposa. às maneiras que tem de pensar nisso.parece-me que mais agressivo . e. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito.diz: Escuta.dizendo para si mesmo que a linda Fidélia continuará viúva. Aires tem menos folga para especular e perde a capacidade de acalentar as racionalizações que poderiam ajudá-lo a preservar seu modo calmo de viver. Aires imagina que Fidélia vai a sua casa perguntar-lhe se deverá ficar para sempre sozi­ nha. dizendo que talvez ele mesmo possa pôr termo à viuvez dela. Quando. Rita provoca-o. Tristão entra fi­ nalmente na história. Alguns dias antes de Tristão pedir Fidélia em casamento Atmosfera. tal união se­ ria possível nos escalões mais elevados da sociedade nos fi­ nais do século X IX . Algumas páginas adiante. ela confessa que tem pensado nele para futuro marido. que já lhe vi algumas vezes. o seu fascínio. Tempo sobra-me. Descontada a diferença de idades. N a sua solidão.. Stimmung 115 .ao menos por um instante . demora até que Aires “perceba” final­ mente que aquilo não passa de um sonho ..assim que é apresentado a Fidélia na casa de seus pais adotivos.e de si mesmo . Mesmo quando re­ conhece. agora podemos dizer. especialmente nas colônias. Desabafando com as páginas do seu diário. como por magia. ele ainda insiste em que apenas está interessado na personalidade da jovem viúva.dificilmente a impedirá de contrair novo matrimônio. Que­ ro estudá-la se tiver ocasião. papel. o solitário ob­ servador do mundo . Seja como for. em parte. ambiência. algo parecida com o sorriso fugitivo. Aires chega mesmo a alimentar essa ideia . Ele retoma o controle das suas emoções .um sonho “ en­ graçado” . mais tarde.à qual a irmã não se referira muito a sério (e depressa esquece) . Aires sente que sua mudança de atitude foi causada ou por inveja ou por ciúme. ele concede que ela não terá sido feita para a viuvez. explica-te se podes. N a posição que ele ocupa. de longe. decide não lhes falar. Esse último 116 Hans Ulrich Gumbrecht . é-lhe mui­ to mais simples reconhecer a perda pela qual passam os seus amigos Aguiar. afinal de contas. Todos estão bem cientes da impossibilidade de suprimir o sentimento de perda em situações como essa. o nome “ T ristão” . Tu não a queres para ti. Como. consegue perceber a tristeza deles. N a última cena do romance.ganha todo o sentido porque Tristão é aquele que inflige a ferida nos seus pais adotivos .(mas sem ter garantia de que ouviria um “ sim” como res­ posta). que intuímos na dor de Aires. na derradeira entrada do diário (“sem data” ). ouvindo do moço Tristão a dor de não ser amado. sentiste tal ou qual prazer. Aires admite que não consegue ser totalmente ho­ nesto consigo mesmo: Aires amigo. Graças a essas “ conversas” . Em última análise. confessa que. Aires poupa-se a necessidade de admitir as esperanças que teria de uma união com Fi­ délia: afinal.nome de um homem que.ferida que só se cura quando eles morrem. Desde o momento em que Fidélia e Tristão anunciam que partirão para Portugal. ele nunca se permitiu sequer pensar que essa esperança poderia ter existido. que aliás não foi longo nem se repetiu. mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele. está sempre feliz . Aires entra na casa dos amigos por uma porta que ficara aberta. Dona Carmo e o seu marido parecem perceber que a sua “vida familiar” terminará em breve. em cada uma das palavras que ele usa para nos dizer que não sente nenhuma dor. não podes. A meu ver. saudade refere-se a um an­ siar por uma condição passada que se tornou irrecuperável para sempre. o sentido da palavra saudade é mais complicado do que sugere sua raiz latina. em experiência simultânea.mesmo se um pouco problemática. poderemos reescrever assim a última frase do Memorial: “ O que lhes dava consolo era a lembrança da felicidade passada . à esquerda. olhando um p ara o outro. combinada com a consciência da perda presente e fu­ tura. dá à dor dos Aguiar uma forma que Aires observa encarnada na aparência dos dois: “Ao fundo. dei com os dois velhos sentados.felicidade que sabiam perdida para sempre. à entrada do saguão. Se tomarmos esse sentido mais complexo como nosso ponto de partida. Stimmung 117 .relance do olhar e as duas últimas frases fixam a tristeza dos Aguiar numa imagem belíssima: Ao transpor a porta para a rua. vi-lhes no rosto e na ati­ tude uma expressão a que não acho nome certo ou claro. ou seja. solitudo.” E difícil dizer o que. alternativa­ mente.deveria fazer corresponder às últimas pala­ vras a expressão “ a solidão deles” . ambiência. em termos gramaticais .” Ou poderíamos afirmar.” A memória de um passado feliz. achamos de belo nessa Atmosfera. com as mãos sobre os joelhos. sob a forma de um paradoxo existencial: “ O que os consolava era perceber que eles mesmos e as suas vidas es­ tavam perdidos para sempre. M as. os Aguiar acham “ conforto na própria solidão” . Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. o que os consola é “ a saudade de si mesmos” . tinha os braços cruzados à cinta. digo o que me pareceu. Porém. Aguiar estava encos­ tado ao portal direito. exatamente. Aires acredita que vê o esforço de seus amigos para sor­ rir e para parecerem alegres. Acima de tudo. Dona Carmo. na verdade. uma leitu­ ra correta . Consolava-os a saudade de si mesmos. a descoberta de um número infini­ to de perspectivas possíveis). quem quiser discutir um autor periférico à cultura ocidental vê-se forçado a assegurar ao público que a parte em questão conseguiu atingir a mesma catego­ ria intelectual e estética de seus contemporâneos europeus. é fácil cumprir esse requisi­ to (ainda que fazê-lo possa parecer condescendência).e nisso nada há de cínico. pois essa beleza só aparece aos leitores se eles se identificarem com a dor das personagens. M as.obviamente. ao passo que as conquistas do observador de segunda ordem incluem a des­ coberta de que cada representação do mundo depende da perspectiva (e.imagem .ou seja. Aires exemplifica uma po­ sição epistemológica que emergiu na época do romantismo europeu e desempenhou um papel importante na reconfi­ guração da visão do mundo predominante no Ocidente. Acima de tudo.a forma que assume a tristeza dos Aguiar. Certo é que Machado dá aos leitores a possibilidade de ver na dor das suas personagens algo de belo . Não farei especulações psicológicas. Afinal. um obser­ vador que não consegue evitar observar-se a si mesmo en­ quanto observa. que são sempre banais. Por exemplo. poderemos afirmar que o conselheiro Aires é um típico “ observador de segunda ordem” . Por esta razão. ele quer acreditar nos outros e gostaria de ver o mundo como o veria um diplomata velho e aposentado. em grande parte. à 118 Hans Ulrich Gumbrecht . N o caso de Memorial de Aires. ele sente-se reconfortado por perceber que a sua própria perspectiva corresponde. N os dias de hoje. com isso. Aires consegue amplificar o potencial de complexidade dentro do campo de observa­ ção.de “ crise da representação” . para a eterni­ dade . e que Michel Foucault batizou . de Martin Heidegger . em Ser e tempo. enquanto “ tradição” . com alguma surpresa.visão dos seus amigos Aguiar. Tentei mostrar que o romance de M achado não se limita a ser uma obra sobre a tristeza. e um passado que. Refiro-me.outra obra que não propõe solução conceptual. Heidegger declara. à visão de Heidegger sobre a ideia de temporalidade como elemento constitutivo das atmosferas e dos ambientes. a “ entusiasmo” . todos são constituídos por algo que pertence à dimensão existencial do passado. Stimmung 119 . Respon­ dendo à pergunta . Heidegger procura demonstrar como. Nenhum outro escritor do século X IX (ou do século X X ). que a análise desses diferentes ambientes conduzirá a uma compreensão particularmente profunda do “ atirar-se” da existência humana . segundo Flaubert. de maneiras diferentes. “ ânimo” e “ tédio” . mas demonstra de que modo a tristeza pode Atmosfera. duas décadas depois. ambiência. a “ esperança” e “ alegria” . Outro aspecto do romance que o engrandece . podemos ler Memorial de Ai­ res e Ser e tempo como textos convergentes. chegou mais próximo que M achado de Assis da façanha de com­ pletar o projeto de escrita de “ um livro sobre nada” . no sentido literal.em termos acadêmicos e intelectuais tem a ver com a proximidade que revela com o relato da modernidade.o que os vários Stimmungen têm a ver com o tempo? -.ou seja. Antes. A partir dessa perspectiva. Para explicar o que quer dizer com Stimmung. gostaria de concluir dizendo que Memorial de Aires nos coloca um problema intelectual que surgirá. especificamente. de me comprazer no jogo quase infantil das “ influências” ou da “ antecipação histórica” . porém. sempre limitou e determinou aquilo que somos capazes de fazer no presente. de uma po­ sição entre as dimensões “ extáticas” do tempo: um futuro que nada tem a oferecer além do “ nada” . Heidegger refere-se a “ medo” e “ ira” . ou precisamente porque . Há algum tempo sabemos que os trópicos são. a tristeza é também uma atmosfera e um ambiente especialmente típicos do Novo Mundo .e através dos movimentos . na verdade. um mundo de tristeza.como que se aproximando do ponto de imobili­ dade absoluta. isso implica que seu presen­ te está vazio e que lhes falta um meio para projetar a satis­ fação do passado no presente. aquilo que em termos filosóficos é simplesmente uma descrição impiedosa da exis­ tência humana pode ganhar em beleza.é triste. Entre um futuro existencial sem “conteúdo” . N a obra final de Joaquim M achado de Assis.o mundo colonial que parece afastar-se cada vez mais da vida na Velha Europa.e como se fizesse parte de um estranho quiasma -. Porém. Não há dúvida de que a tristeza pertence a Stimmungen mais característicos das fa­ ses tardias da vida . Ao mesmo tempo . um presente vazio e um passado que não desaparece. o tempo tem necessariamente de se mover com lentidão . que agora se foram para nunca mais voltar. 120 Hans Ulrich Gumbrecht .adquirir substância e forma entre as dimensões . pela literatura. esse conhecimen­ to pode transformar-se na experiência do próprio leitor.quando confiamos cada vez mais nas memórias dos momentos passados. mesmo quando . Se os Aguiar se reconfortam com “ a saudade de si mesmos” .do tempo. Conta­ mos histórias das noites quentes de verão. incapazes de dis­ tinguir entre sonho e realidade.quanto a voz de Janis Joplin em Me and Bobby McGee. desde o final dos anos 1960. Os nomes e as palavras que ela canta pertencem a uma América cheia de charme e de paisagem: Baton Rouge. a minha geração se arrastou ao longo de mais de quatro décadas. os “ Rolling Stones” . tudo o que se lhes seguiu parece plano. Stimmung 121 .fazem parte da minha geração.nada incorpora esse mundo de maneira tão completa . Ou será o que descobri que queria ser quando cres­ cesse . Califórnia. ambiência. Kentucky. e que sempre nos agradou. entediante. regressamos ao que aqueles que nasceram mais tarde gostam de escutar. Salinas.algo que agora projeto no passado? Talvez nunca tenha havido um tempo em que Janis Joplin estivesse mais próxima do presente do que hoje . que parece tão caloroso como “ uma guitarra nacional” (referência às guitarras fabricadas artesanalmente pela National String Atmosfera.são nomes que evocam uma sensação de intensidade. New Orleans. comparando. Reclamando esse passado.e talvez “ Berkeley” e “ Paris” . Penso no olhar de Paul Simon diante do delta do M ississippi. Nada é tão forte . “ Liverpool” . “Jimi Hendrix” . Eles .ou a aura que possuem . “Janis Jo ­ plin” . a música e as vozes do passado eletrificam nossa pele e nos chamam para longe do presente. condenada à eterna juventude.A liberdade na voz de Janis Joplin “ Woodstock” .agora que a idade nos parece irreversível. ” Não é possível perder mais do que aquilo que não custa nada. A voz soa como metal es­ curo. com pouco valor (como os que to­ cam em bandas de escola. Suaviza-se quando a memória toca as costas da mão de Bobby McGee e o corpo dele. quieto e terno como a sua respiração. cálida no pescoço da cantora. para logo em seguida perder toda a definição e prati­ camente se fundir com a música. Essas palavras parecem ter sido escri­ tas para a voz de Joplin. M as quem quer que a ouça sabe que não poderia ter sido de outro modo. desafia o total entendimento. mas o seu autor não poderia saber que ela as haveria de cantar .a cantora achou aquela letra por mero acaso. a nossa pele.Instrument Corporation. capital do estado de Louisiana. cheia de dor e de espe­ rança.como se não houvesse outro jeito. a voz e os instrumentos geram algo cuja essência. Essas visões quase sempre revelavam imagens de desespera­ da felicidade.vazio como um pneu furado . 122 Hans Ulrich Gumbrecht . “ Liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’. vibrante em todos os níveis. que cintilavam misteriosamente). sabemos que aquilo era a nossa juventude . ou no lado B dos discos para gramofone).quando a vida estava só começando e num ins­ tante terminaria. As palavras. para trazê-los até si. Os sons dos instrumentos são triviais. semelhante a uma laboriosa narrativa. Nenhum ponto baixo é mais baixo do que a frase inicial: “ Busted flat” . súbito. a voz fica tão só e tão cheia de felicidade perdida que desmo­ rona. Os especialistas concordam que Joplin nunca teve o acom pa­ nhamento musical que merecia. Soam os diferentes regis­ tros como se fossem os únicos possíveis . depois. tão firme que toda uma vida poderia se segurar nela. se nos tocam. Vivia rodeada de músicos profissionais medianos. Acomodam-se sobre o nosso cabelo. A voz de Joplin tinha de transpor os instru­ mentos e sua batida uniforme.em Baton Rouge. Até New Orleans. Esse casal é a nossa juventude. tudo é apre­ sentado numa voz de calma poderosa. com a memória do que acabou por Atmosfera. Aquilo que deve ter começado como coincidência sob a chuva de Louisiana. desde as minas de carvão do Kentucky até ao sol da Cali­ fórnia. A chuva cai enquanto o veículo se transforma num mundo do lado de dentro dos limpadores de pára-brisa. a cantora sente-se tão gasta quanto seus jeans. por isso. que vão marcando o ritmo dos três viajantes até New Orleans. ambiência. como uma reza que não está com­ pletamente certa de si mesma .” Em vez do trem. a voz que os rodeia é quase tí­ mida. de repente aparece Bobby e pede carona para os dois num caminhão. “ Sentir-me bem bastava para mim / Bastava para mim e para o meu Bobby M cGee. Eles cantam e tocam blues . entre Baton Rouge e New Orleans.” A voz de Joplin desliza de um instante breve de êxtase puro até o ponto em que se dissolve em sílabas indefinidas. meu querido Bobby me protegeu do frio do mundo. sempre sob céus instáveis. a força da voz é transportada através das fronteiras. nos sentirmos bem enquanto cantávamos blues. Senhor. de costa a costa. abraçando-se bem e aquecendo-se contra o resto do mundo: “Através de todos os climas. vem da ternura. “ Esperando o trem.” Então a voz se altera e se transforma em dor. esse é um mundo bom para quem não tem nada a perder e. que atinge a todos. se transforma na extensão de uma jornada mítica.'” Agora a voz preenche o mundo que os viajantes partilham.e cujo nome promete mais beleza do que o lugar contém. na medida em que a cantora e Bobby. nada a esperar: “ Era fácil. se transformam num casal sem segredos.mas nada mais existe para acrescentar. afinal? Ela e Bobby vão de mãos dadas.de que haveriam de falar. Stimmung 123 . sob um céu carregado de nuvens que ameaçam chuva. através de tudo o que fizemos / Isso. A voz ganha um tom cortante. mesmo enquanto ela continua a cantar. meu Deus. Quando Bobby desaparece em Salinas. Por fim. fugaz e feliz: “ Trocaria todos os meus amanhãs por apenas um simples ontem / Abraçando o cor­ po de Bobby junto do meu. e foi isso que Bobby me deixou.a tragédia de procurar a feli­ cidade em primeiro lugar .na maldição de ansiar por um ver­ dadeiro lar. procurando a calma e o sossego lá em cima. a felicidade destrói a grande liberdade daqueles que nada têm a perder.acontecer entre Los Angeles e São Francisco: “ Um dia. Por isso nunca houve voz mais suave. perto de Salinas. ela trocaria todos os dias do futuro por um dia daquele passado.” Bobby deve ter desaparecido tão subitamente como apa­ receu em Baton Rouge .até mesmo a tragédia de acredi­ tar que a felicidade existe.” E nunca houve voz mais desesperada. mais aberta. Joplin conheceu também esse sonho e não se queixa disso: “ espero que encontre” . espero que encontre. para depois revelar uma irre­ sistível doçura. pois seus braços estão vazios. yeah 124 Hans Ulrich Gumbrecht . Hoje. nas nuvens. M as ela perdeu para sempre a liberdade de uma existência que não tem nada a perder . Talvez tenha tentado escapar da eterna liberdade de ser livre para seguir sempre em frente.e essa liberdade se perdeu muito tempo antes. declina-se em complexo sofrimento: Liberdade é só outra palavra para “não ter nada a perder” Nada. Ou talvez tenha morrido numa trip de droga. N o entanto. Quando se possui. “ Abraçando o corpo de Bobby junto do meu. A felicidade nos toma vulneráveis. a memó­ ria transforma a liberdade reconquistada numa perda eterna.” Esta é a tragédia que ameaça todo amor e toda felicidade . ou mais delicada. deixei-o ir / Ele anda buscando o tal lar. ela recupera a li­ berdade dos que não têm nada a perder. mais sedutora. Seu páthos está ao alcance de ouvintes que não en- Atmosfera. antes de o tornar. Ao longe. a cantora sonha com o passado. Podemos ver que. yeah. chamava-o meu homem Disse. A voz segue a par com a música. Segue-se um minuto completo de um cenário musical típico dos tempos de Joplin.como que dizendo adeus e lançando um feitiço ao mesmo tempo -. sentir-me bem era o bastante para mim.depois da que a levou de Baton Rouge a New Orleans.. incapaz de mais palavras. Senhor. ela entregar o corpo ao nome dele.as palavras que dão forma à sua perda: Senhor. venha E.Mas sentir-me bem era fácil. antes de.. No presente. uma última vez. acima de tudo.. Bobby. Stimmung 125 .. nas modulações e metamorfoses da voz de Joplin. só uma vez mais ela cantará . e. na viúva de Bobby. hmm-mm O bastante para mim e para Bobby McGee. chamava-o meu amante. e Bobby McGee. Nessa última viagem. mesmo sem voz e música. as palavras conservam suas qualidades literárias e históricas. ambiência. no final . só uma vez mais a voz encontrará palavras para transformar a cantora na mulher. entre o Kentucky e a Cali­ fórnia. como uma canção que surgisse de diferentes sons.. o drama da música e seu poder sobre os ouvintes depen­ dem muito menos de palavras e imagens do que podemos pensar. quando cantávamos blues Hei. oh.. ouve-se a voz dela uma ou duas vezes mais.como se tropeçasse no futuro . é como se esti­ vesse numa terceira viagem . Só uma vez mais a voz poderá agarrar-se a mais do que um nome.. o nome de Bobby é invocado e ganha forma e substância. O drama de Me and Bobby McGee se desenvolve. presente. No entan­ to.. e da outra. chamei-o meu amante o melhor que pude. escreveu a canção para uma voz masculina. O fenômeno foi mais claro durante a Primeira Guerra Mundial. quando soldados deixavam gra­ vações ligadas nos postos que haviam abandonado nas trincheiras. Além do mais.alcança o nosso corpo em con­ dições muito diferentes da forma como experimentamos sons ao vivo.algo que é condensado em dois versos de Me and Bobby McGee: “ Liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’ ” e “Trocaria todos os meus amanhãs por apenas um simples ontem” . com Kris Kristofferson (que. durante anos. logo depois de ter sido inventado.tendem inglês. poucos dias antes de a cantora ser 126 Hans Ulrich Gumbrecht . qualquer um que tenha ouvido a música os identifica. não só pelo fato de Joplin ter es­ tado emocionalmente envolvida. o sentido das palavras é secundário. o registro de vozes do passado . mais precisamente. em Los Angeles. atmosferas e estados de espírito que uma voz tão poderosa convoca estão assegurados.mais do que o registro de imagens . M as o caso de Me and Bobby McGee e de Janis Joplin é singularmente dramático. a gravação com a voz de Joplin foi feita nos estúdios Sunset Sound. diga-se de passagem. ou. pois a canção usa palavras como vultos. As emoções. Em princípio. o gramofone foi associado com a morte. mesmo na falta de conceitos que possam permitir entendê-los e dividi-los com outros de maneira descritiva. com a so­ brevivência da morte. A famosa marca “ His M aster’s Voi­ ce” exemplifica isso. o que implica que o papel de Bobby McGee era originalmente feminino). Essa circunstância técnica pode explicar por que. o registro de canções e da voz de Joplin mantém vivo o Stimmung existencial da ju­ ventude que passou . Da mesma maneira. Stimmung 127 . Só hoje. Essa au­ tenticidade nos permite pressentir uma grande cicatriz nas costas antes bronzeadas da geração que nunca ficou adulta.encontrada morta. Os amigos tinham razões para crer que o fornece­ dor de Joplin lhe passara uma droga excepcionalmente for­ te na semana anterior. Acredi­ ta-se que a causa da morte tenha sido uma overdose de heroína. e os mais jovens. que desaparecem. de fato.ou mesmo “ querer não ter nada a perder” . recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado. uma autenticidade que nos agarra . Como muitos outros artistas daquele tempo. de fato.uma autenticidade diante do rosto da morte iminente. não consigo dizer se a sensação de “ não ter nada a perder” . assim como às atmosferas e aos ambien­ tes que ela evoca. para sempre.me atingiu com toda a força tantos anos atrás. em 4 de outubro de 1970. que com pouco esforço nos ultrapassaram . Joplin determinara que seu corpo deveria ser cremado e as cinzas espalhadas no oceano Pacífico. só agora consegui­ mos. Atmosfera. contra quem quisemos nos revoltar. no motel Landmark M otor. ambiência. Talvez grande parte de nossa “ experiência geracional” tenha sido. O fato de Me and Bobby McGee ter sido gravada tão próximo do momento da morte de Joplin confere a essa voz. Quarenta anos depois. Perdemos. perceber quais eram as promessas daqueles meses. estava estacionado do lado de fora. o seu Porsche.algures entre nossos pais. quando nos tornamos uma geração de velhos tantas vezes infantis . Joplin tinha tatuado um coração pequenino no peito esquerdo. uma adaptação superficial às convenções. famoso pelas pinturas “ psicodélicas” . nosso encontro com Janis Joplin. N a voz de Janis Joplin. que lembro como um breve e eterno verão.. . Situações . . ambiência. no caso. Eles servirão para de­ monstrar. por razões heurísticas. Minhas considerações têm subjacentes três pressupostos. de fato. uma pesquisa exaustiva deveria resultar em mais do que a descoberta de paralelos e de superfícies coextensivas entre as culturas fran­ cesa e alemã . Justifica-se o ceti­ cismo.um maior entendimento de suas profundas diferenças. Primeiro.A energia iconoclasta do surrealismo É difícil determinar se o “ surrealismo” . Em última instância. que são. completamente diferentes entre si.) Atmosfera.as formações de uma mesma época encontram-se em todos os contextos nacio­ nais. Stimmung 131 . uma atitude fundamental de reserva em relação à hipótese de que . desde que. do mesmo modo que compreende­ mos melhor a literatura alemã do começo da modernidade se não a considerarmos em termos do “ Renascimento” . Ou . compreende-se melhor a literatura espa­ nhola se não se procurar nela um “ Iluminismo” setecentista totalmente articulado.pelo menos nas culturas europeias . essa divergência.para dizer com mais cautela.é certo que se podem encontrar na literatura e na arte alemã alguns elementos “ surrealistas” que estavam até agora mais ou menos escondidos. enquanto movimen­ to. acima de tudo. surpreendentes. porém. mais rigor e em termos menos densos . de saber se a Alemanha da década de 1920 teria tido um estilo correspondente ao conjunto de gestos culturais desenvolvidos e cultivados na França dessa época. terá atravessado fronteiras europeias. (Por exemplo. recorramos aos conceitos resultantes do fenô­ meno francês. N ão é desonra nenhuma para as letras alemãs afirmar que não possuem um “ surrealismo” próprio. no “ surrealismo” e no “ dadaísm o” ). assim como as particularidades que cada um reclamava. os his­ toriadores da literatura têm-se sentido obrigados. a tarefa será identificar pontos espe­ 132 Hans Ulrich Gumbrecht . “ criacionismo” .e circunscrever . A maior parte das literaturas europeias do primeiro terço do século X X viram proliferar uma série de projetos pro­ gramáticos. há uma observação de Walter Benjamin decisiva para o meu enten­ dimento deste tópico da história da literatura.como se a prática artística e literária tivesse aderido aos manifestos e panfletos típicos daquele período. Em face dessa explosão verbal. em vez de usarmos noções e expressões daquele tempo que tentam agregar cer­ tos objetivos programáticos e métodos artísticos (como se deu. Foi feita pelo filósofo em 1929 no ensaio “ Surrealismo: o último instantâ­ neo da intelligentsia europeia” . por exemplo. “ dadaísm o” e “ surrealismo” designam aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Benjamin declara que exis­ tia um canal de sinergia entre o surrealismo francês e os mo­ vimentos alemães da época. estou convencido de que um canal desse tipo explica-se melhor se recorrermos ao conceito de Stimmung. no mesmo intuito. depois. Segundo. Historicamente. Terceiro . em gran­ de parte.e sobretudo -. “Vanguardas” . “ futurismo” .a efu­ são energética que deve ter animado o impulso programáti­ co nas culturas nacionais americanas e europeias na aurora do século X X . é mais adequado e importante começar por descrever . a levar a sério todos os conceitos propostos pelos movimentos. os acadêmicos procuraram redescobrir as maneiras como essas noções eram suposta­ mente concretizadas pelas várias obras . ser. Ele consegue calcular as energias do movimento.conceito originalmente cunhado por Niklas Luhmann para um uso estritamente sistêmico. Agora. refiro-me de novo a ele como a “ emergência da observação de segunda or­ dem” . os quais.cíficos de ruptura. Michel Foucault caracterizou esse fenômeno como “ crise da representação” .. à superfície. ambiência.. [. A “ energia” partilhada .e que nada têm a dizer sobre isso a não ser que ali estava ou­ tra panelinha de literatos confundindo o digníssimo pú­ blico . valorizo o enten­ dimento de Benjamin. O observador ale­ mão não está na frente da corrente de água. Em As palavras e as coisas. após longa delibera­ ção.] Ele [.. Stimmung 133 . N ão pretendo me incluir entre os críticos de literatura da minha geração que vestiram Benjamin com a roupagem de “ visionário” . a experiência humana tor­ Atmosfera. com condições de surgimento que variam de acordo com o contexto nacional: Os sabichões que até hoje ainda não conseguiram ir além das “ origens autênticas” do movimento . Com o início da filosofia do Iluminismo tardio. Apesar disso. [.. consequência de longo prazo de um complexo evento epistemológico que já ocor­ rera no início do século XIX..] Está no vale.são assim como uma reunião de especialistas junto de uma nascente. sem dúvida.o clima europeu internacional que operava nos movimentos literários e artísticos do co­ meço do século X X foi. para historiar.. segundo o qual o surrealismo é uma fonte essencial de energia.] não tem justificação para considerar o mo­ vimento como a corrente “ artística” ou “poética” que parece. concluem que aquele pequeno e insignificante ria­ cho jamais dará energia a turbinas. por seu lado. pois a representação. que acabariam por não captar realida­ de alguma. não poderia ser perfeitamente verdadeira em relação à vida. desde meados do século X IX . de qualquer modo.ou. uma e outra vez. desde o final do século XVIII até o começo do século X X . É como se os artistas e suas obras pretendessem dizer que já não estavam interessados na representação. senão uma realidade apenas parcial. isso foi uma reação ao crescimento rápido do ceticismo quanto à capacidade que teriam nossos órgãos (no sentido mais amplo) de fornecer uma “ representação adequada” (seja qual for o sentido da expressão em contextos específicos) do mundo além da consciência humana. têm frequentemente evoluído para sentimentos de frustração e tentativas passivo-agressivas de automarginalização (por exemplo. Pouco depois de 1900 . Podemos ver que a história da filoso­ fia ocidental dos últimos 250 anos enxerga a história da literatura e da arte ocidentais. a esforços para negar esse fosso. Um momento-chave nessa “ virada” em direção à representação fragmentada é o movimento D ada . es­ ses sentimentos viram-se transform ados em gestos icono­ clastas. como uma série de confrontos com esse problema.primeiro na Europa Central e depois se espalhan­ do rapidamente por todas as culturas do Ocidente . quer em termos cognitivos. nos seus métodos ou técnicas.nou-se autorreflexiva.acontecimento cultu- 134 Hans Ulrich Gumbrecht .. A literatura e a arte. quando Baudelaire designa a si mesmo como irmão “ do leitor hipócrita” . A dimensão filosófica é o lado menos dramático do fenômeno: articula-se na topologia de uma distância crescente entre o “ sujeito” e o “ objeto” e conduz. quer em termos práticos . no último verso do poema com que abre Flores do mal [1857]). pelo me­ nos. A meu ver. para reduzir os seus efeitos. confrontam o pro­ blema de maneiras que. Tam­ bém ele vê a energia que foi subitamente libertada como efeito de um processo iniciado no século XVIII. comum à herança europeia: Se esse movimento.] eleva-se a lirismo concreto e direto. o qual os autores que se limitam a descrever [aquilo que já existe] nunca conseguem atingir.ral que foi uma experiência europeia partilhada. Num ensaio de 1913 sobre poesia moderna. anima­ da por figuras como o romeno Tristan Tzara. a necessá­ ria abertura da superfície geométrica exigirá do artista em busca da representação perfeita do objeto . mas europeu. cujas origens podem ser identifica­ das já no século XVIII. a ele e à verdade objetiva do que ele pretende representar.especial­ mente no caso de objetos com formas complexas . na verdade. parece limitado à França. Stimmung 135 .” Atmosfera. o movimento não é francês.. Apollinaire acaba por transformar a ruptura do princí­ pio da representação na afirmação de que a arte não representacional está próxima a um nível mais elevado de reali­ dade e de verdade: “ O novo movimento poético [. é por­ que Paris era a capital da arte no século XIX.que produza uma pintura que aliene até mesmo aqueles ob­ servadores que querem compreendê-lo. ambiência. um Mesmo no caso do cubismo mais elementar. Em segundo lugar.. Porém. Guillaume Apollinaire descreve a sua época a partir de três pontos de vista que se cruzam com a nossa análise histórica. Apollinaire entende a vez maior entre a realidade (ou o que passe e suas representações como consequência vivenciar a impossibilidade de obter. o alsaciano Jean Arp e o alemão Hugo Bali. dessa retrato perfeito: distância cada por realidade) paradoxal de realidade. nunca chegou realmente a romper com o princípio da referência extratextual (tal como. Um notável ensaio de José Ortega y Gasset. como podemos avançar a partir daqui. Por um lado. em direção à “ ausência de obje­ to ” ).apesar de uma tendência para a abstração linguística em antologias como o Romancero gitano e Poeta en Nueva York . em última análise. articula os riscos de manter intacta essa fronteira. Os histo­ riadores da literatura nunca chegaram realmente a domi­ nar o assunto. ele nunca chegou tão longe quanto muitos contemporâneos seus. o que poderá contar como “ causa” ? Como saber que as formas características de cada 136 Hans Ulrich Gumbrecht . um clima de energia iconoclasta. o dadaísmo reclamava).Espanha. Isso pode ser demonstrado com as obras de Pablo Picasso. mais precisamente. É natural nos sentirmos tentados a especular acerca das causas por trás das formas específicas das idiossincrasias nacionais. através de pelo menos três “ casos” nacionais . Gostaria de indicar. M as. serão éticas. O mesmo vale para o grande Fe­ derico García Lorca.O fato de que o clima europeu partilhado. É óbvio que não foi sob a bandeira espanhola (nem latino-americana) que se deu o passo radical em direção à “ grande abstração” (ou. Alemanha e França -. ganhou forma de modos que variam de nacionalidade para nacionalidade apresenta um desafio à análise histórica e à descrição com nuances. Por outro lado. que . o crítico se revela contra os afastamentos radicais em relação à forma: as obras demasiado abstratas tornam precária a conexão entre a experiência estética e a vida humana. na verdade. “ A desumanização na arte” (1927). por exemplo. Picasso distanciou-se de uma pintura orientada para o objeto antes de qualquer outro artista do seu tempo: são boas as razões para considerar Demoiselles d ’Avignon como o primeiro grande quadro do cubismo. Por razões que. pois abriu espaço considerável ao jogo da expe­ riência subjetiva sem.veio a revelar-se de uma in­ fluência incomparável. a vontade . pelo contrário. exis­ tiu. artísticos e literários. a proposta de Hei­ degger de substituir a topologia sujeito/objeto pela noção de “ ser-no-mundo” . Hugo von Hofmannsthal cunhou a expressão em 1927. em ter­ mos filosóficos. abandonar a referência à realidade enquanto experiência comum. de acordo com essa ideia. Nesse contexto. En­ tre os esforços para achar essa solução. Hoje. quer na pintura. a principal preocupa­ ção continuava a ser a questão de encontrar solução para o problema da (aparente) distância entre sujeito e objeto. desde cedo e com grande determinação. ambiência. que não está tão próximo. no entanto. pertence à mesma dimensão histórico-cultural.nacionalidade foram mais do que marcas da sedimentação institucional afetando os desenvolvimentos individuais . Muitas dessas experiências e propostas foram reunidas sob a designação de “ revolução conservadora” . que não corresponde totalmente à situação histórica da década Atmosfera. quando apontou os esforços contemporâneos para solucionar problemas do presente observando as culturas do passado e em contextos não eu­ ropeus.ou mesmo o desejo . (Note-se a hifenização obsessiva do filósofo!) Entendo que o “ expressionismo” alemão. Stimmung 137 . N o que diz respeito à situação alemã.e muito possivelmente coincidentes? Vou restringir-me às vi­ sões do oposto. numa dimensão não representacional.de ir além dessas fronteiras. o que quer que esteja confortavelmente “ à-m ão” tem preferência sobre aquilo que esteja “ presente-ao-alcance” . sem dúvida. o sentido da palavra “ conserva­ dor” derivava da sua oposição em relação a “ inventado” . quer na escultura. N o entanto. a expressão “ revolução conservadora” é usada com a conotação política de “ protofascista” .a existência humana entendida como Dasein espacial (“ ser-aí” ) . se não mesmo exclusiva­ mente. Ninguém mais do que Apollinaire soube incorporar o Stim­ mung do primeiro surrealismo. essa perspectiva é tipicamente. As coisas-no-mundo “ agem” com frieza . por exemplo. no início. nem às con­ dições existentes na Espanha. O surrealismo concentra-se nas confrontações do indivíduo com a realidade material. em 1918 . as intenções. que tanto fascinava os surrealistas. À semelhança do conceito de “ revolução conservadora” na Alemanha.mesmo que tenha havido posições protofascistas que vieram a fazer parte do espetro cultural da revolução conservadora. os sentimentos e as façanhas intelectuais do homem transpõem-se para um nível puramente mecânico de existência .entre as quais não pode ocorrer nenhuma mediação demonstrável .porque recusam ao observador uma visão “ adequada” e não se adaptam a programas individuais. Ele en­ 138 Hans Ulrich Gumbrecht . a noção francesa de “ surrealismo” parece ter sido.que se mantém até hoje. independente de quaisquer conotações polí­ ticas. Nesse contexto. A ideia do surrealismo .existem em paralelo.como fica exem­ plificado.Apollinaire foi quem usou o termo pela primeira vez.não corresponde às tendências então predominantes na Alemanha. Só no final da década de 1920 se estabeleceu um elo entre o surrealismo e a esquerda .de 1920 . Conceitos paradoxais como hasard objectif (acaso objetivo) ou épifanie profane (epifania profana) são característicos desse clima. na ideia de écriture automatique (escrita automática). francesa.e até com brutalidade . quando o movimento ainda não era politicamente determinado nem restringido. eles sublinham o modo como dimensões ontologicamente diferentes . ele decidiu se casar com a primeira mulher que encontrou no trem. filho de um nobre polonês que vivia em Roma. morreu em Paris. a ela envio minha mais pura amizade. “ Sobretudo escreva-me uma carta longa” .” Os pontos-chave na vida de Apollinaire parecem estou­ ros súbitos . Num a ocasião. Apollinaire abraçou tudo o que tivesse a ver com os militares. cada uma das cartas é curta e febril. em sentido estético . pede Picasso a 16 de agosto de 1918 . Quando a Guerra Mundial come­ çou.carnou. veloz. Porém. N as­ ceu em 1880.em staccato.surge nos Calligramas. o surrealismo por completo. O seu gesto artístico mais tí­ pico . Esse percurso de viagens era quase sempre determinado por sua mãe (ou pelos caprichos dela). Depois de uma convalescença prolongada. de gripe espanhola.menos de três meses antes da súbita morte de Apollinaire. Nesses Atmosfera. ambiência. em que constantemente surgiam novos projetos. no tom do hasard objectif. Os dois também nunca poupam cumprimentos ao outro e às suas companheiras: “ Dê meus cumprimentos a sua esposa. o nome do pai não aparece nos documentos oficiais. pois é impossível desenhar uma linha divisória entre sua autoencenação artística e a realidade biográfica.e exibia a atadura ensanguentada. pode-se dizer. Stimmung 139 . Cada momento em que escre­ viam se apresentava como um período de trabalho intenso. recuperou a saúde e. Após ser ferido na cabeça. essa correspondência exprime o desejo de trocas mais extensas. Apollinaire passou os primeiros vinte anos de vida migran­ do por toda a Europa. Em face do presente fugidio. poucos dias antes do fim das hostilidades. envergava com maior orgulho seu uniforme . N as cartas que tro­ cou com seu amigo Picasso vibra uma energia ativa que faz com que todos os tópicos tratados na correspondência pare­ çam triviais e insignificantes.o que não significa que foi a coisa mais interessante que fez. e ao mesmo tempo. a questão principal inclui “ encontros” com um ser humano . poderíamos mesmo falar de uma condi­ 140 Hans Ulrich Gumbrecht . desenha os contornos de objetos que também se apresentam verbalmente. considerando que o surrealismo circulou também fora da França. a experiência central está ligada aos confrontos com as reali­ dades materiais da cidade . dito de forma mais precisa: o auge do surrealismo na Europa. de Louis Aragon (1926). de André Breton (1928). os processos que outros usariam para ex­ primir protesto chegam a raiar o lúdico.ou. Apollinaire (ou. N o posfácio a uma recente tradução de N adja. no dia da sua convocação para o Exército.num momento anterior a sua transformação em ideologia por uma codificação expli­ citamente política. Karl Heinz Bohrer já sugeriu esse juízo histórico.uma obra que conta como. O ambiente é um cotidiano em que já aconteceu a desumanização. Um exemplo é “ La petite auto” .os objetos e as coisas que a fa­ zem ser aquilo que é. o momento de canonização é assinalado por duas obras: Paysan de Paris. aqui. a disposição dos grafemas. escritos ou im­ pressos na página branca. Para Breton.na medida em que se consegue falar nesses termos que reconheço a “ essência” do surrealismo. o “ eu lírico” ) regressou a Paris com um amigo e o condutor de automóvel. para ser mais preciso em termos crítico-literários. embora tenha sido um movimento de impulso ico­ noclasta essencialmente francês .Nadja.poèmes image. A meu ver. a propósito da figura feminina. As principais preocupações dos dois textos incluem a descrição e o incentivo às “ epifanias profanas” . e Nadja. Eu gostaria de situar o auge do surrealismo francês . Esses poemas-quadro parecem descontraídos e animados ao mes­ mo tempo. Para Aragon. é aqui . E significativo que ele descreva o surrealismo como uma energia que circula através de toda uma nação. historicamente específica de “ reificação” . que existe escondida nessas coisas. em esquecidas tardes de domingo. até o ponto de explosão. Eles levam a imensa energia da “ atmosfera” . quer no leitor (que ocupa uma posição exterior). no entanto. o narrador) -. ambiência.aquele que está den­ tro do texto (ou seja. nunca se reúnem num ponto de referência coerente em rela­ ção aos conteúdos das obras ou às identificações que pro­ põem aos leitores. no seu ensaio de 1928. Ben­ jamin considera que explicam a razão da superioridade do surrealismo francês em relação aos seus correspondentes alemães. Stimmung 141 .é o que suspeita o surrealismo . Que forma imaginarás que uma vida teria se fosse de- Atmosfera. esses momentos podem desencadear súbitos instantes de êxtase e até de iluminação. se não mesmo em ação revolucionária.e.não reconhece que a verdadeira identidade só é atingível num piscar de olhos” . Quer no observador .ção geral . A conversa trivial sobre a identi­ dade . em bairros proletários das grandes cida­ des. A “ energia profana” parece nos dar o fugaz ponto concei­ tuai para todas as razões que. em expe­ riência. ao mesmo tempo. Segundo Bohrer. Isso equivale a dizer que a situação na França forma uma atmosfera e um ambiente distintos: Bretón e Nadja são os amantes que convertem todas as coisas que vivenciamos em lúgubres viagens de trem (as ferrovias começam a envelhecer). trata-se de uma questão da “visão trágica sobre a necessária dificuldade em reconhe­ cer a identidade do outro. em um primeiro olhar através das janelas molhadas de chuva num apartamento que estreamos. à atmosfera e ao ambiente ocupam posições-chave naquilo que ele escreve: “ insurreição” . e. e por aí vai. Nizan entendia o “ nada” no sentido das epifanias profanas do romance de Breton . Ao fazê-lo. a tal ponto que apresentou Heidegger aos seus leitores como o “ fundador da filosofia do nada” . tanto quanto possível.aliás.consiste em substituir uma visão histó­ rica do passado por uma visão política. Benja­ min entendia o surrealismo como uma energia pulsando na fronteira entre o sono e o caminhar. afirmando que todas as suas observa­ ções são políticas. Embora não recorra a essa metáfora. Paul Nizan traduziu para o francês O que é a metafísica?. por volta de 1930. que fluía para as literaturas nacionais. é claro que Nizan terá pensado que também ele estava “ no vale” de uma energia crescente. desconsiderar a ob­ sessão de Benjamin.ou seja. Em 1931. Deveríamos. como a impossibilidade de fornecer à existência os contornos de sentido (ou. a lição inaugural de Heidegger em Freiburg. haveria de tornar-se loucura. “ vontade indó­ mita” .terminada num momento decisivo precisamente pela última das canções de rua que andasse na boca de todo o mundo? O estratagema que faz dominar esse mundo das coisas .e é melhor falar de um estratagema do que de um método . “ explosão” . É historicamente importante que sua leitura da filosofia de Heidegger se tenha centrado nos motivos do “ nada” e da “ niquilação” . na 142 Hans Ulrich Gumbrecht . em que a atribuição de forma ou a produção de sentido estável são impossíveis. poderemos ver que as referências à energia. Esta tendência é característica daquele tempo. “ linguagem comandando o eu” . começando desse ponto de profundidade. Stimmung 143 . tecer afirma­ ções teleológicas . se reconhecermos os limites da nossa pró­ pria vida como o fim da consciência . poderemos.ou de voltagem. sem.um fim que é absolu­ to .uma versão filosófica . em sua “ Car­ ta sobre o humanismo” (1947).acerca dos campos opostos de energia que liga­ vam as culturas francesa e alemã na primeira metade do século X X .. Heidegger escrevera completamente no espíri­ to da “ revolução conservadora” .. Outro relato dos acontecimentos . atribuir uma forma ao nosso próprio Dasein.terminologia de Heidegger. respondeu ao seu admira­ Atmosfera. em última análise. esse gesto experiencial daria o tom e o mote dos primeiros romances existencialistas: A náusea. apenas uma versão da história . Isto é Heidegger depois da analítica existencial. Só aqueles que não se expõem à experiência radical do nada caem no deficit de sentido que Heidegger chama de “ o impessoal” e “ conversa trivial” . uma oportunidade para o Dasein achar autenticidade e. de Sartre. Para Heidegger.torna-se. Dez anos mais tarde. porém. e O estran­ geiro. Para ele. localizar uma morada existencial. preocupado com novas relações entre o sujeito e o mundo.para o qual eu gostaria de chamar atenção.. contudo..). Dasein). ambiência.poderia ser chamado de “ a vingança da epifania profana” . Assim. a leitura de Nizan transformou a importância do “ nada” em Ser e tempo precisamente no seu oposto. '!* 2[* Esta é. a coragem de confrontar o futuro da morte como um evento irredutivelmente individual . o homem que. Esta versão tem a ver com Heidegger depois da “ Kebre” (o momento preciso em que acontecia a alteração de moeda . nesse processo.a experiência da morte como “ niquilação” . de Camus. Pode ser que as pessoas sejam chamadas a agir como catalisadores nesse processo. aliás. 144 Hans Ulrich Gumbrecht . Por isso mesmo.poderíamos. tampouco dos seres humanos.assim como a revelação . o Ser-que-se-auto-oferece é um desafio constante ao Dasein. a essência mais íntima do surrealismo e sua energia iconoclasta não terão arrefecido por completo. mas tudo depende dos movimentos do próprio Ser. O Ser-que-se-auto-oferece . Creio que este mesmo Heidegger tinha chegado a uma concepção de Ser que . elas são parte disso. o Ser-que-se-auto-oferece \das sich selbst entbergende Sein] é o ser das coisas individuais na sua concretude material e substancial. Enquanto ressoar intelectualmente a ontologia do Heidegger tardio . sem que elas estejam enquadradas em nenhum contexto es­ pecífico.pertence à dimensão da epifania.e aqui não deveríamos desperdiçar energia inte­ lectual em questões de “ influência” . mas isso não resulta do Dasein. não dita o sentido nem o pouco que a epifania profana faz.talvez sem a par­ cialidade de perspectivas específicas -. algo maior do que o que elas são. Seja como for. assim. após a Segunda Guerra M un­ dial. N a filosofia tardia de Heidegger.revela interessantes pontos de convergência com a visão da epifania profana no surrealismo.ainda era uma possibilidade. afirmar -. se “ o humano” . quando este lhe perguntou. Tal ser “ pretende” mostrar-se .por mais modificada que tivesse sido sua concepção .dor francês Jean Beaufret do modo mais frio possível. talvez. Essas ideologias de massa deram ori­ gem ao maior sentido coletivo jamais produzido pela mo­ Atmosfera. parar para pensar era entendido como sinal de morte. foi talvez a mais destacada . e cujos tabus quebrados ainda são vistos. Seu feitiço cativou o resto do mundo. nas experiências de vida indi­ vidual .apesar de a Revolução Russa já ter. Subita­ mente. como provocadores. em termos culturais."O sentido trágico da vida" Ainda hoje associamos a terceira década do século X X que. acima de tudo. seja como for. e ainda não desapareceu. ambiência. Tóquio e Chicago. emergiu a vida das grandes metrópoles .isto é.primeiro em Nova York. à época. grande parte do seu caminho assim como o emergente fascismo. Os “ loucos anos 1920” são tantas vezes apresentados como uma dança frenética que. percorrido. O socialismo nos dá a imagem de fun­ do . Stimmung 145 .e nas variadas articulações filosóficas e artísticas que a ela se seguiam. como associamos a dança ao estar vivo. M oscou.à alegria. percebemos que essa década se caracterizou por um clima desesperador de incerteza e de profunda desorientação. Talvez fosse uma dança num vul­ cão oculto.à imagem vibrante dos “ loucos anos 1920” : um tempo tão explosivo quanto intenso. em muitos sentidos. essa é a imagem desses tempos. e o estar vivo . Buenos Aires. numa dimensão existencial . mas rapidamente em Berlim. M as. devemos analisar melhor a questão.sem necessária justificação para o fato . num encantamento constante e obsessivo. Essa falta de orientação era sentida. Ao fazê-lo. o escape da felicidade requeria as tentativas desa­ fiantes de protestos desse tipo . ou viessem a ser. temos a mesma geração de homens e mulheres. ou como tópico de especulação filo­ sófica. gestos vazios. precisamente esta perspetiva já perturbara a autocelebração permanente da Belle Époque. considerando que o conflito levara a eventos de libertação nacional e social (sobretudo na Rússia e nos territórios an­ tes ocupados pelo Império dos Habsburgo). Como fora o mundo . mesmo como horizonte distante de existência concreta. a que muitas vezes . de meras tentativas. De vez em quando. num ensaio intitulado “ A traição da alegria” .fato impressionante.e felizmente . as mensa­ gens otimistas que ofereciam (por razões muito diferentes. fascismo e socialismo quase nunca deram resul­ tados felizes. já em 1922. Ao compararmos fotografias do verão de 1914 com outras do inverno de 1918-1919.chamou a si mesmo Belle Époque? N a dé­ cada de 1920. movimentos de massa.pelo menos.dernidade. é claro) dificilmente penetraram na esfera da existência indi­ vidual. M ax Scheler se insurgia contra o esquecimento da filosofia contemporânea. depois do início tão auspicioso do século X X . Num pequeno período. pa­ recem ter envelhecido não alguns anos.junto com os vários esforços de renovação dos ensinamentos cristãos fossem. Se tomarmos por confiáveis os relatos das décadas 1920-1930.que não passavam. porém. o mundo ocidental cair num tal ambiente de insegurança e desespero. quase nenhum adulto teria dificuldade em listar os efeitos da Grande Guerra . Embora o socialismo e o fascismo . A felicidade perdera o estatuto de ponto de referência e possibilidade. N ão foi por acaso que. mas algumas déca­ 146 Hans Ulrich Gumbrecht . liquidou a sua rica herança para destinar sua energia e sua atenção a projetos filosóficos e filantrópicos. inaugurou (ao criar. sobretudo. O chama­ do Materialschlachten.como Ernst Jünger e Louis-Ferdinand Céline . por exemplo. ninguém na Europa conseguia reunir energia para participar. Mesmo que seja impossível chegar a uma explicação do contraste. Ao que parece.deram forma literária.o presidente dos Estados Unidos. acima de tudo. ambiência.Ludwig Wittgenstein. dos projetos que Woodrow Wil­ son .feriu bem mais fundo do que a Primeira. o Estado iugoslavo). por exem­ plo. an­ tes de tudo.a metralhadora. as reações intelectuais e existenciais. em colunas ordenadas.e. As fisionomias estão marcadas por preocupações. que regressaram derrotados (mas continuam a marchar. pouco diferem das ex­ pressões dos soldados franceses nas paradas de Paris. o seu efeito sobre os civis . Os rostos vazios dos soldados em Berlim. especialmente desde que os anos 1939-1945 transformaram o conflito de 1914-1918 na “ Primeira” Guerra Mundial. havia só uns pou­ cos veteranos de guerra que não pretendiam mudar total­ mente suas vidas . magnânimo. como é óbvio). que tinha carreira acadêmica -. A questão se mostra ainda mais fascinante tendo em vista que a destruição ocorrida na Segunda Guerra M un­ dial . depois da trégua de 1945. e a que alguns dos grandes escritores que estiveram na frente de combate . teremos de considerar. Stimmung 147 .das. Por outro lado. es­ tão endurecidas. uma experiência ocorrida de milhões de ma­ neiras diferentes. deixou de ser imediatamente óbvio que mudanças no mundo foram tão chocantes que impactaram profundamente o entendimento dos indivíduos sobre suas vidas. e os novos armamentos .origi­ naram a sensação de que a coragem e a inteligência indivi- Atmosfera. que ocorreu a partir de 1915. Hoje. foram surpreen­ dentemente reservadas. por exemplo . T. com a inflação no começo da dé­ cada de 1920 e com a “ Sexta-feira Negra” em Wall Street.* Esses dois rompimentos foram intensifica­ dos pelas crises econômicas. tornou-se conhecida com o O A njo A zul. nobres. b ase a­ do no livro.ou. sobretudo na Monarquia do Danúbio e na Alemanha . no entanto. de Proust. nos anos que se seguiram a 1918. o principal resultado da implosão da hierarquia dos Estados foi o desaparecimento de formas de autoridade que.e sobretudo hoje somos tentados a observar . Tinha sido previsto . Aqui se deu a primeira “ morte do sujeito” dos tempos modernos: desapareceu o papel do herói. título do fam o so filme estrelado por M arlene Dietrich.dual não aumentavam as chances de sobrevivência dos soldados.que o fim do heroísmo haveria de criar felicidade ao ali­ viar o peso da existência. sem distinção.nem mes­ mo para os intelectuais socialistas. os escalões mais elevados da burgue­ sia. professores e muitas outras posições sociais. Todos esses cenários de crise foram consolidados por uma atmosfera de base epistemológica: a sensação de que o sujeito da cognição e o mundo dos objetos * A obra P rofessor Unrat. [N. Há que se acrescentar a tudo isso o fato de que. ou Professor Unrat. Esses resultados aparecem descritos em obras tão diversificadas quanto os volumes finais de À la recherche du temps perdu. garantiam a ordem.mas também em outros lugares -. de H einrich M an n . no fim daquela década. Isso afetou. não teria sido plausível .acima de tudo.] 148 Hans Ulrich Gumbrecht . dito de outra maneira: suficientemente heroico . essa interpretação não deve ser rejeitada. membros do clero. de Heinrich Mann. que chegaram como desastres naturais . juizes. Do ponto de vista dos valores e dos ideais da social-democracia da classe média europeia dos nossos dias (que parecem tão óbvios em si mesmos). até então. ambiência. a “ revolução conservadora” entrou em cena de um modo que condizia com o derrotismo que a crise financeira mundial desencadeara. Essa autoencenação era mais dramática do que o modo como o socialismo definia a si mesmo. para o alemão.a saber. M as isso não faz jus­ tiça aos fatos. pois o alcance da “ revolução conservadora” e o horizonte dos movimentos que surgiram nesse contexto . A questão da felicidade individual ou coletiva ocupava uma posição secundária. Ela causou as reações e as maneiras de pensar que logo . Atmosfera. A “ revolução conservadora” era ani­ mada pelo sentido de que a condição mais básica para a continuação da existência humana . como a matriz que deu origem ao fascismo. Além dis­ so. O fenômeno per­ manece na memória dos nossos dias. Stimmung 149 .se distanciaram tanto ao longo de todo o século X IX ao pon­ to de se ter exaurido até mesmo a certeza pré-teórica de estar em contato com o mundo e com as coisas nele inseridas. O clima posterior à Grande Guerra se expressava numa metáfora usada inúmeras vezes: a de que “ o chão fugira sob os nossos pés” . por uma viragem para longe do presente. na década de 1920. e quando muito.seus objetivos eram de natureza muito mais fundamental que os do fascismo . a certeza da relação que mantemos com o mundo exterior . depois da introdução do simbolista Hugo von Hofmannsthal ã nova tradução.vão muito além do compasso estreito de projeto político. por um regresso ao arcaico e ao elementar. de As mil e uma noites . exclusivamente. esse movimento ain­ da nutria pensamentos otimistas sobre o futuro. e por conta da Revolução de Outubro.era atingí­ vel apenas.vieram a ser conhe­ cidas como a “ revolução conservadora” .mais precisamente. porém.e de comandar seu pensamento . Atrás do “ ser” . Nós. Heidegger simplesmente descartou o binômio epistemológico.durante os cinquenta anos que se segui­ ram. Logo na página de abertura.procura achar o caminho de volta a uma situação pri­ mordial. A filosofia do século X IX ficara fixada na impressão de que “ sujeito” (no sentido de “ consciência individual” ) e “ objeto” (no sentido de “coisas-no-mundo” ) continuavam se afastando cada dia mais. clima. Heidegger . ao ambiente daquele tempo. agora ficamos perplexos. vocês têm estado cientes do que querem di­ zer quando usam a expressão “ser” . substituindo o esquema sujeito/ob­ 150 Hans Ulrich Gumbrecht .uma vida destituída do sentimento de sua importân­ cia elementar e irredutível. ao clima.por assim dizer. Essa obra era ao mesmo tempo a con­ densação filosófica da problemática e uma reação à atmosfe­ ra. de Martin Heidegger. escrito em 1926 e publicado no ano seguinte. está a “ questão do sentido do Ser” .tem um papel de destaque. A fenomenología de Edmund Husserl.Em Ser e tempo.atmosfera. ambiente . prometia lidar com essa condi­ ção e chegar a uma nova certeza acerca do que definia sujeito e objeto. “ Esquecimento do Ser” não significa apenas uma vida vivida sem a resposta à pergunta. em dois níveis históri­ cos . mentor de Heidegger. citando uma frase de Platão retirada de O sofista. pelo menos em termos quantitativos. Por seu lado.e acima de tudo . mas também . a ideia de Stimmung . Essa questão haveria de caracterizar sua filosofia como disciplina ontológica . que traz uma censura aos seus contemporâneos no sentido de que se perdeu aquilo que se compreende por “ ser” : Claramente. que julgávamos entender a palavra. como nota Heidegger. identificou e descreveu uma sequência de existentialia . a existên­ cia individual enquanto ser-no-mundo e. a felicidade não sofrera nenhuma “perda” em Ser e tempo..jeto pela ideia de “ ser-no-mundo” .e talvez mesmo a uma receita para a . o Dasein inclui corpos e espaço (por oposição a ideias filosóficas transmitidas pela tradição cartesiana). Porém.e em termos nada metafóricos . um ambiente concreto . Heidegger transformou um enquadramento primário. naquele momento da história.poderíamos dizer: a dinâmica irredutível e básica que constitui a exis­ tência humana. N o ponto diametralmente oposto ao da fi­ losofia do Iluminismo. se podia fazer para se chegar a uma concepção de .ou seja. Como a partícula D a bem indica. podem invocar a infelicidade. Dentro dele. ou a uma sensação de completude nas vidas individuais. a filosofia de Heidegger co­ meçou por propor devolver à existência individual humana o “ chão que havia desaparecido sob os pés” . O conceito de “ ser-no-mundo” sublinha que o Dasein está “ desde sempre” situado em. de epistemológico. logo. O termo que ele usa para a existência humana é Dasein (literalmente. a rigor. a condição irredutível de partilha da existência com outros seres hu- Atmosfera.felicidade humana. isso era o que. Heidegger não afirmava que essa dinâmica levaria necessariamente à felicidade. Com referência à situação histórica . “ ser-aí” ). Identificar essa existen­ tialia possibilitou apontar os modos de ser que impedem tais dinâmicas e. e está familiarizado com. Stimmung 151 . A partir desse entendimento do Dasein . ambiência. Ter os pés no chão é condição prévia para a felicidade .o que não quer di­ zer que com isso se complete a felicidade.e não em distanciamento com relação ao mundo. com isso. em existencial. o Dasein individual se dispersou no impessoal. mas para devolvê-lo autenticamente.quer venham do falatório. essa figura de pensamento contém uma experiência duplamente condensada da Grande Guer­ 152 Hans Ulrich Gumbrecht .isto é. tem de voltar a encontrar a si mesmo pela primeira vez. na sua potencialidade-para-ser existencial . Existe também a possibilidade de um tipo de consideração que não salta propriamente para o outro. são Dasein por direito próprio) . todas as tentações de voltar as costas à captura do eu autêntico . Claramente. Dentre os motivos identificados na análise existencial de Ser e tempo. por seu turno. Distinguimos o impessoal do eu autêntico .não de modo a afastar o cuidado. de distrações ou de curiosidade . é particularmente famoso o “ impessoal” . em modalidades diferentes de consideração pelos outros: A consideração. A partir do ponto de vista do Dasein individual. em grande medida. que consiste. Heidegger desenvolve a dinâmica (o existentiale) do “ cuidado” .manos (que. Na existência do dia a dia. acima de tudo. Em última análise.. que entra de um salto e leva embora o cuidado.parecem derivar do medo primordial de confrontar-se com a morte no que ela tem de “ meu” . mas salta para diante dele.) O eu corre sempre o risco de se perder nesse elemento de existên­ cia comprometida: O eu do Dasein cotidiano é o impessoal. “ falatório” dá-lhe a forma agregada. a morte é um fim impiedoso e absoluto que destrói qualquer possibilidade para além da fronteira que define a existência individual. (Na comunicação. é. determinante para o estar-um-com-o-outro e implica principalmente oferecer o que esteja ali-à-mão. o eu que apreendemos enquanto pertencendo-a-si-mesmo. Porém. nos libertamos da nossa pró­ pria morte.. porém.] tudo o que está à nossa frente.pode permitir concretizar o autêntico potencial do Dasein. ela exprime a sensação de que desaparecera a clássica convergência do heroísmo e do triunfo da pátria. Aqui. Segundo. mas mais a simples .negação de uma vida individual. é notável que na coragem de enfrentar a morte surja. “correndo em direção à morte” ) um sentido friamente específico. Primeiro.de acordo com Ser e tempo . libertamo-nos de estar perdidos em possibili­ dades que se foram impondo por acidente. nas trincheiras ou num ataque surpresa. tornamo-nos livres. Só a determinação de encarar esses desafios sem nos pouparmos .ra. aquela possibilidade que não pode ser evitada. o filósofo pretendia ver “ alegria existencial” na prontidão dela para entrar nas possibilidades e nos de­ safios existenciais da feminidade. isso parece ser uma questão de nos resignarmos a um desti­ no triste. não era tanto um sacrifício pela na­ ção. assim se rompe a garra de tudo o que limita o Dasein. tratava-se da questão de evitar o perigo de cair em uma existência Atmosfera. aparen­ temente. A antecipação revela que a possibilidade ex­ trema da existência está em nos abandonarmos. uma possibilidade de libertação: Quando. o armamento mecanizado conce­ deu à formulação heideggeriana “ antecipação da morte” (“ das Vorlaufen in den Tod” . Stimmung 153 . A ontologia existencial de Heidegger da década de 1920 não vai além no que toca ao campo da felicidade ou da satisfação. de um modo que pela primeira vez nos permite entender autenticamente e escolher. entre f. N a correspondência com sua amiga Elisabeth Blochmann.e indiferente . N o começo. ambiência. quando a morte acontecia. por antecipação.. que é simplesmente parte da existência. literalmente. Por fim. Os contemporâneos de Unamuno costumavam especular sobre a inspiração que o autor co­ lheu de tradições filosóficas para escrever esse livro (e ou­ 154 Hans Ulrich Gumbrecht . identificados formam ilhas dentro do sentido trágico da vida. que Una­ muno reúne sob a designação geral de “ sentido trágico da vida” . Em princípio. que está para sempre vedada ao ser humano.muito menos de atingir . sem querer e estranhamente. por assim dizer.especialmente os dos tempos modernos. não estava à vista nenhum out. é impossível alterar essas condições negativas . Nessa obra. Por outro. Por um lado. como o livro.no complexo sentido do pensamento grego antigo. a expressão revela o pressuposto fundamental de que a disforia não pode ser eliminada. a narrativa da ressurreição de Cristo dera razões para ter esperança: der­ rota-se a morte. o desejo . pelos estratagemas da racionalidade e da razão . porém. o impulso cristão de afirmação da vida é contrariado e destituído de força. de Miguel de Unamuno.a felicidade. Os momen­ tos e as possibilidades positivas de existência que podem ser.esse clima negativo. e a visão do autor inclui todos os tipos de experiência humana .ro meio de revelar . caracterizava com perfeição o am­ biente da década de 1920. A tensão entre vitalismo e ra­ zão explica toda uma série de desilusões diárias.de eternidade. uma e outra vez. sua fama e sua influência não se revelaram logo nos anos seguintes. um único tipo de experiência abre todo um horizonte de inquietude: a ânsia . Em 1913 já tinha sido editado Del sentimiento trágico de la vida. An­ tes.não autêntica.aliás. N ada do que ele ali discute é verdadeiramente trági­ co .a co­ meçar pela interpretação alegórica da crucificação como redenção do pecado original. era parte conspícua da “visão trágica” .conceito à época popular .de que seria impossível. ver esse desejo satisfeito. Quando se falava de atos. a luta teve lugar no topo de um edifício em Nova York. Schopenhauer e Kierkegaard eram as referências mais frequentes. a suposta arte “ primitiva” do continente era a grande excitação.o que tanto dizia muito como não dizia nada. pelo menos fora do mundo da filosofia acadêmica. N a Espanha que.fosse o que fosse o que o motivava . assim como na Noruega e na África. O fundamento histórico da década de 1920 associava as exóticas regiões dos extremos geográficos com possibilida­ des positivas para o Dasein. a questão não era se as ações pretendiam . contava como lugar à margem . Em outras palavras: a ideia do ato pertencia a um entendimento estetizante da vida. mas se pertenciam a uma concepção da existência que se preservava na resistência à falta de autenticidade. M ais do que qualquer outra forma de arte Atmosfera.ou de fato faziam .reclamavam-se atos. o ator Rodolfo Valentino não se limitou a or­ ganizar um combate com o campeão de boxe de pesos pesa­ dos daquele tempo. ambiência. Resultado: ganhou a reputação de uma erudição eclética. Unamuno envolvia-se em indefinição .cumprir objetivos práticos. Stimmung 155 .também correspondia a esse ambiente. Buscava-se alegria de viver nos topos das montanhas ou dos arranha-céus. algu­ ma vez.tros). M as as obras de Unamuno respondiam ao ambiente dos seus contemporâneos por ou­ tras razões além da sua familiaridade com o cânone filosó­ fico. à época. N a tentativa de terminar com os boatos de que era afeminado e homossexual . as regiões polares representavam locais ideais para a ação simbólica. Acima de tudo.palavras então ainda sinônimas -. Isso se devia à contradição fundamental entre um de­ sejo incessante de alegria e o simples pressuposto . A semântica das valorizações contemporâneas do “ ato” . que depois sobre­ viveu quer na ideologia nacional-socialista do “ Grande N orte” . Os gestos de sobriedade (ou. como seria errado procurar seguir carreira na Berlim metropoli­ tana. “ faticidade” |Sacblichkeit]) não impediam certa elegância. eram caracterizados por desilusão e resignação. Se a existência era destituída de todas as pos­ sibilidades de fazer afirmações monumentais e de assumir formas monumentais. paí­ ses como a Espanha ou a Noruega despertavam o desejo de beleza. O Ártico e logo depois a Antártida passaram a atrair aventureiros prontos a desafiar a morte (a qual não raro encontraram). nos objetos 156 Hans Ulrich Gumbrecht . o filme de montanha alemão combinava satisfação erótica e morte. para recorrer a outro termo programático da época. porém.nos quadros. Proponho chamar-lhes “ sobriedade” e “ êxtase” . Nesse mundo . ele gostava de dizer que um camponês lhe dera a entender. ainda parecia possível voltar-se para posições mais modestas que sempre estiveram ali. na maioria dos casos. ao se retirar para sua caba­ na na Floresta Negra.onde a autocompreensão dependia do senti­ do trágico. com um simples acenar de cabeça. É precisa­ mente esse o gesto de Heidegger.popular. num espetáculo de intensa atualidade. da estética existencial e do apelo a experiências extremas -.uma atitude de distanciamen­ to reflexivo) quando procuraram . a relação deles oscilava entre uma tensa oposição e uma complementaridade harmoniosa. Paul Klee e outros artistas da Bauhaus não estavam muito longe do pensamento de Heidegger (particularmente da sua ideia de Gelassenheit . quer como envolvimento com as brigadas socialis­ tas e comunistas na Guerra Civil Espanhola. de heroísmo e de autorrealização. foram-se desenvolvendo dois estilos de vida. resultavam em experiencias de êxtase e epifania. de Bretón. contava também (pelo menos em termos latentes) como abordagem das . N o entanto. quando se con­ centrava na experiência da metrópole. As paisagens e a tecnologia não eram as únicas etapas da concretização da faticidade. de Aragón. aquela década . ambiência.que quase não conseguiu acreditar nas possibilidades individuais de “ chegar lá ” . a descoberta da forma “certa” implicava mais do que o sucesso abstrato.ou até mesmo como fusão com as . alguns dos mais ambiciosos filmes da década de 1920 bus­ cam esses ambientes. mais ainda. Do mesmo modo .regressar às formas e às cores elementares que se impunham pelas “próprias coi­ sas” .e mui­ tas vezes inesperadamente .leis da matéria e do cosmo. ou em N adja. Claro que Gelassenbeit e Sachlichkeit sempre .para os engenheiros e os designers contemporâneos -.que os indivíduos ocupa­ vam numa atitude paciente . Enquanto acessório da sobriedade e da Gelassenbeit. essas configurações de pluralidade e de anonimato .manifestava-se nos papéis assumidos pelos empregados de balcão e pelas coristas dos bares (cujas po­ sições eram marcadamente desindividualizadas). Funcionar sem pretender sobressair era a encarnação da atitude de sobriedade que convinha à vida cotidiana na metrópole. Isso não era somente uma possibilidade de intoxicação oferecida pelos locais exóticos.quase nunca eram vivenciadas como lugares de felicidade.de uso doméstico. Subjetivamente. na arquitetura . ainda que com­ plementares). Uma estética da Gelassenbeit .e. do anonimato . ter sucesso ou Atmosfera. como em Le paysan de Paris. podem muito bem ter providenciado zonas de relaxamento dos gestos con­ temporâneos existenciais que exigiam o êxtase. da Gelassenbeit e do êxtase (que representavam possibilidades opostas. Ocorria tam­ bém nos registros extremos do surrealismo. Stimmung 157 . por boas razões .como uma época de ideologias de m assa. entretenimentos que ofereciam níveis excepcionais de contentamento. mas também a sua outra face.e no mundo das danças de salão. quer afetivos. quase nunca podia ser satisfeita. Porque se alimentava de senti­ mentos de suave resignação em vez de energias primor­ diais. ao apresentar riscos quer físicos. A década de 1920 também conta .felicidade . o exílio da felicidade na década de 1920 é tanto um sintoma como um emblema do(s) ambiente(s) da existência individual. da Gelassenbeit e do anonimato. Olhar a morte nos olhos não era mero motivo de reflexão filosófica.talvez até a exaustão. Desse modo. que a Belle Époque tinha tão rigidamente reguladas .também era viciada em situações que prome­ tiam perigo. que expressava uma forma dramática de contestada excitação.os supostos impulsos naturais excitavam e amplificavam o desejo de cada vez mais intensidade. o mundo metropolitano da década de 1920 transformou-se em cenário de uma desafiante forma de liberdade sexual que. Outras formas populares de desporto in­ cluíam m aratonas. esses feitos atléticos testavam os limites externos de resistência física (e men­ tal). Também eroticamente . A déca­ da de 1920 foi a grande época do pugilismo e das toura­ das. intensidade e excitação. a experiência sexual era mesmo como dançar sobre um vulcão . Nesse complexo jogo. ainda que o fascismo e o socialismo voltassem a renovar o seu potencial de fascínio 158 Hans Ulrich Gumbrecht . corridas de seis dias e jornadas de na­ tação através do Canal da M ancha. Claro que essas ideolo­ gias forneceram o palco para o espetáculo dos gestos exis­ tenciais .não apenas o contrário da sobriedade. da cultura e da educação . o que implicou grandes esforços e muitas. não eram totalmente filhos do seu tempo. em particular. O fascismo. Após a Revolução de Outubro. nada teriam a opor ao terrorismo de Estado além da prontidão para o suicídio (por desilusão) ou a pálida melancolia do exílio (como. suas passadas eram confiantes. Mussolini ensaiou a tomada de poder na Itália. Sobretudo na França.não conseguia dar. os anos de Leon Trotsky no M éxico). destinada a cumprir um chama­ mento imperial. na esperança da vida no além).em suma. a uma tradição de pensamento cristão que sempre procurara as respostas que a filosofia . o socialismo iniciara sua longa marcha em direção ao comunismo. Os revolucionários de 1917 pretendiam tornar-se “ engenhei­ ros” construtores da sociedade. E. Por oposição aos passos hesitantes do Risorgimento.na década de 1930. grandes desilusões. por exemplo. como Georges Bernanos e Paul Claudel. quase não conheceu a felicidade. A marcha dos Camisas Negras em Roma destinava-se a resgatar o país da decadência.por definição. A promessa de satisfação imediata pode ter constituído a atração fatal do movimento na década de 1920 . prometia um futuro sedutor para muita gente. ademais.uma década que. N o outono de 1922. pertenciam. ao contrário do socialismo (que adiava o fu­ turo melhor para um tempo distante. Stimmung 159 . uma demanda terrena . quando o verdadeiro comunismo finalmente se materializaria) e do cristianismo (que renunciava em absoluto a este mundo temporal. M as alguns autores. o fascismo agia no aqui e ago­ ra. Outra reação ao choque da Grande Guerra foi o regresso às formas e aos confortos teológicos do cristianismo. mas nun­ ca chegou a prometer novos valores ou experiências. no Renouveau Catbolique. esse impulso viveu um breve momento de vitalidade cultural. ambiência. Atmosfera. antes. . de Stimmung tem ocupado uma posi­ ção tensa entre prognósticos filosófico-históricos contrários. Stim­ mung significava o sentido em que os fenômenos não rela­ cionados entre si estavam. afinal. mas completamente na linha do seu contemporáneo Spitzer. o historiador de arte Alois Riegl propôs a ideia de que os efeitos da atmosfera e do ambiente carac­ terizariam a arte dos tempos que então se aproximavam. significa “como são as coisas” . o filólogo romanista Leo Spitzer haveria de declarar . Stimmung 161 . Contrariando Riegl. Meio século depois. Por volta de 1900. Gottfried Benn observou. o conceito multifacetado .Desconstrucionismo. e que. neles. por seu lado. os intelectuais e os escritores con­ cordaram em que chegara ao fim o tempo do Stimmung.sob a rubrica poderosamente evocativa da “ desmusicalização do mundo” . ligados . para dizê-lo com mais precisão: o que essas pessoas apreciam nos objetos do passado são as marcas do uso e do desgaste que ostentam. pessoas guiadas pelo ambiente e pela emoção) apreciam os objetos do passado porque estes são velhos .ou.que tal estru­ tura estava definitivamente perdida para a existência. Para Riegl. exprimia uma ânsia por evidências imediatas e por garantias teleológicas da ordem cósmica que faltavam na modernidade.e fenômeno fugaz . Riegl chegou a essa antevisão observando que as Stimmungsmensch não letradas dos tempos modernos (ou seja.um sentido que. em “ Landsberger Fragment” [Fragmento de Landsberg] (1944): Atmosfera. ascetismo e autocompíacência Desde meados do século passado. ambiência. . Em aparente contradição.e contrariando a afirmação de Gottfired Benn viria a afirmar-se como texto-chave do existencialismo do após-guerra. de Sartre. Um movimento de estrutura análoga ocorre no final de A náusea. pombos castanhos elevando-se. que ela requer dura. os últimos raios de sol a derramar-se pelas janelas .é o golpe final d» romance. artificial. O individual perde atributos mas ganha peso. inflexível. urgência. todo um clima e que. a qual se dissolve em face da “ dura” demanda existencial por um mundo livre de ilusões. “ raios de sol” ) para ilustrar uma concepção romântica de Stimmung .não implica que elas. sejam impossíveis. porém. gravidade. dissipar as ilusões . Pelo con­ trário: na obra de Benn.. por um lado. Existencial . o “ existencial” é um Stimmung que surge da resistência ao Stimmung. ao mes­ mo tempo. Ela faz passar o peso do ego psicológico-casuístico para aquilo que é obscuro e está escondido. deseja asfixiar 162 Hans Ulrich Gumbrecht .convencional­ mente representada por imagens meteorológicas . Porém.Tudo aquilo que se pareça com Stimmung está definiti­ vamente terminado. o qual.a nova palavra já está conosco há alguns anos. Colunas de fumo subindo no ar e desaparecendo no azul infinito. [. Antoine Roquentin. Como foi possível que o fascínio exercido pelo “ existen­ cial” negasse. O herói. per se..tudo é puro acaso. fosse ele mesmo um clima literário-cultural? É óbvio que Benn escolheu seus exemplos introdutórios (“ colunas de fum o” .] Existencial . “ azul” .des­ cartar ambientes e atmosferas excessivamente emocionais . precisamente enquanto ro­ mance . para a raiz. a frase seguinte dizia: A existência é o ambiente que a move. cujo estilo existencial . Stimmung 163 . vindo da construção na nova estação de trem: amanhã vai chover. N o final do romance. Assim como os seguidores de Sartre e de Camus pretendiam admi­ tir a dureza de um mundo sem Deus. não estranha que im­ plique “ uma pálida inclinação” [fable Ungestimmtheit] (Heidegger). Ouvindo as notas que saem de um saxofone. em vez da música que reconforta. o ambiente patético de recusa transformou-se em melancolia pela perda da referência (ou da ilusão dela). No primeiro andar do hotel Printania acen­ dem-se as luzes de duas janelas. Tal como acontecera na acusação existencialista da “ injustiça” de um mundo sem Deus. a ilusão) de referir-se à realia ou de possuir um sentido estável. a renúncia ativa do desconstrucionismo ao páthos transformou-se em cativeiro dentro de uma renúncia de p á­ thos carregada de páthos. Foi também um desenvolvimento desse tipo que ocorreu com o movimento do desconstrucionismo. Roquentin luta agora por viver em sintonia com “ o sofrimento que se transformou em forma e métrica . em estrita pureza” .im­ placável e sem autocomplacência. Mesmo a “ dura” decisão (Benn) de adotar uma atitude “ estrita” (Sartre) induz os ambientes.não obstante os protestos de suas fileiras em rarefação . M as essa resolução não o liberta das questões da atmosfera e do ambiente. ele percebe de súbito que esses sons são “ sofrimento em métrica” (souffrance en me­ sure).. ambiência.se torna cada dia mais óbvio. Sobe o cheiro da madei­ ra úmida.no peito todos os sentimentos não autênticos. os desconstrucionistas fizeram uma afirmação “pós-metafísica” da existência. na qual a linguagem não teria a possibilidade (ou. um clima sombrio o rodeia: Cai a noite. Atmosfera.. Assim como aconteceu com o existencialis­ mo. no seu modo de falar. ainda que nem sempre 164 Hans Ulrich Gumbrecht . mas já se podia sentir a sua “ finalização” . que a crença na referência linguística à realia era uma ilusão. um exegeta particularmente entusiasta . Esse gesto não era dirigido a ideias transcendentais. até o fim. Derrida afir­ mou que. os desconstrucionistas congratulavam-se mutuamente pelo rigor ascético com que cumpriam sua missão. oferecia o romper com o domínio da palavra falada enquanto paradigma e garantía da lógica (o que correspon­ dia. Quanto ao futuro. a “ gramatologia. seu amigo. Essa austeridade programática . mas contra ilusões supostamente logocêntrico-metafísicas relacionadas com a função da linguagem. À semelhança dos heróis da literatura existencialista. tal como o existencialismo. Ainda que “ tecnicamente corretas e irrefu­ táveis” .mesmo que em “ traços” disper­ sos e isolados . mas demons­ travam. vez por outra. para ele. Então. por todo lado . enquanto ciência da es­ crita” . á época da referência ilusoria e do sentido isto é. o acadêmico literário Paul de M an era aclamado por suas análises retóricas “ entediantes” e “ monótonas” . o desconstrucionis­ mo começou por fazer afirmações de que acabaria com as aparências ilusorias. O motivo messiânico das promessas que seriam resgatadas “ no futuro” era recorrente como gesto central na escrita de Derrida..de então como de agora . Jacques Derrida . sua principal obra descreveu o desconstrucionismo como urna conjuntura particular do passado e do futuro. M ais ainda do que o próprio Derrida.desperta infalivelmente o desejo por aquilo que rejeita. do “ fonologocentrismo” ). o “ fim” da metafísica não chegara ainda. elas “ jamais continham surpresas” . Tal lógica elementar de compensação é explicitada nos escritos de Christopher Norris.Como se fosse para capitalizar todos os aspectos da filo­ sofía de Stimmung de Heidegger. Em termos do passado.na in­ trodução a D a gramatologia (1967). o filósofo americano John D. na ocasião. olhando à dis­ tância. uma aura de promessa. sem necessidade de prova. Stimmung 165 .sob a capa da fic­ ção . e o dedo do desconstrucionismo se tocam. da urgência e da indecisão. em que fosse apenas permitida essa imagem esculpida. Termos-chave como “ différence” e “ suplementaridade” palavras que. permitia uma “ forma de conhecimento sui generis” . que aponta à justiça. N o fim das contas. entre os discípulos de Derrida.filosoficamente convincente . era proibido definir . Norris tranquilizava os leitores afirmando que o desconstrucionismo. que poderiam ser usadas contra quem estivesse de fora. como um visionário. Os mais fervorosos entusiastas de Derrida pretendiam vê-lo pura e simplesmente como um profeta. na linguagem e nos tex­ tos. como na pintura no teto de uma nova e judaica Capela Sistina. de traços ascéticos. de fato.do desconstrucionismo. Algumas fotos que ainda estão em circulação reve­ lam um filósofo jovem. o dedo profético. Após verbalizar o seu agrado pelo modo como Derrida confundira todos os pressupostos epistemológicos do pensamento ocidental. N a última página de um livro de título notável . ambiência.precisamente esse tipo de metamorfose contribui para Atmosfera.e até em ambientes de profecia? Certamente que não na literatura. M as será que podemos realmente objetar contra o modo dinâmico como o pátbos ascético se transforma em ambien­ tes carregados de afeto . onde .sugeriam correntes de movimento profundo.Orações e lágrimas de Jacques Derrida -. Caputo escreve: Neste ponto da paixão e do não saber. essa formulação exemplifica o desejo de ordem entre os adeptos de Derrida .trata-se simples­ mente de um tipo de ordem diferente daquele que é permi­ tido pela tradição. A palavra “ escrita” em particular pos­ sui. no mundo acadêmico é de se supor que outras regras subsis­ tam.. Tenho quase certeza de que o mesmo se passa com muitos outros.dele e sobre ele. quase amistosas... elementos antissemitas. [. acredito que o que nos sucedeu era duplamente necessário. ou pelo menos não mais do que estão os melhores legados. a agressiva apologia adqui­ ria um tom autocomplacente e pesaroso: Depois do período de tristeza e dor. questionava com o habitual ceticismo desconstrucionista . a amizade e a confiança em mim. Recordo o nosso encontro. do tabu aca­ dêmico. [. precisamente em razão da influência merecida e crescente de um pensador sufi­ cientemente enigmático para que as pessoas quisessem saber mais . de fato. Alguns desses artigos continham. depois da morte do crí­ tico.] O legado de Paul de Man não está envenenado. Porém. que sempre mostrou. da qual o desconstrucionismo jamais viria a se recuperar. descobriu-se que Paul de M an tinha escrito para publi­ cações colaboracionistas na Bélgica sob ocupação alemã. Primeiro. algum dia. o que levou a uma perda de prestigio. Haveria fatos suficientemente “ objetivos” sobre o passado do crítico que justificassem a acusação pública? Em seguida. destinadas a evitar que os sentimentos e os ambientes triunfem sobre os argumentos. N o auge da sua fama. 166 Hans Ulrich Gumbrecht . Derrida defendeu seu amigo num texto de título bem evocativo: “ Como o som do mar profundo dentro de uma concha” .] Te­ ria de acontecer.o charme e o carisma dos heróis do existencialismo. Em meados da década de 1980. como um golpe de sorte em minha vida. se não existe legado sem algum veneno. M as uma vez ele avaliou falsamente as consequên­ cias desses gestos..as afirma­ ções dos críticos de de Man. O estilo intelectual de Derrida incluía pequenas violações. à vontade. ambiência. a vali­ dade dos critérios da razão. O desconstrucionismo fazia ouvir os primeiros acordes da sua própria marcha fúnebre. Stimmung 167 .Vários leitores que estariam a favor de Derrida tomaram esse afastamento do ceticismo do Stimmung como um sinal de que ele estaria pronto para suspender. Atmosfera. O pátbos da autocomplacência ascética parecia ter-se transformado numa licença de autoindulgência a favor de juízos lógica e moralmente arbi­ trários. . Agradecimentos Este livro resultou de muitos climas e atmosferas. Gostaria de registrar minha gratidão àqueles que contribuíram para as melhores dessas atmosferas, para os melhores desses climas: Henning Ritter, que me pediu mais complexidade e insistia em dar às obras o orgulho do lugar; Michael Krüger, por não se contentar com pouco; Tatjana Michaelis, pelo rigor da precisão; Miguel Tamen, que sempre vê através de mim; Vittoria Borsò e Jan Soffner, cuja concordância se revelou tão aprazível; Heinrich Meier e Cari Friedrich, da Fundação Siemens, pelo tempo que me deram para contemplar; e Laura, Christopher, Sara, Marco, Anke, e Ricky, a quem tudo isto é dedicado, porque não conseguem viver sem música. Atmosfera, ambiência, Stimmung 169 Referências bibliográficas Sempre que possível, confrontaram-se com o original as tra­ duções de outras línguas que não o alemão; quando exis­ tentes, acrescentaram-se edições em língua inglesa às infor­ mações bibliográficas dadas no texto alemão; por razões de estilo, essas traduções nem sempre foram citadas ipsis verbis. Ler em busca de Stimmung: como pensar hoje na realidade da literatura H E G E L , G. W. E Elem ents o f the Philosophy o f Right. Trad. Allen W. W ood & H . B. N isbet. C am bridge: C am bridge University Press, 1991. LU K Á C S, G eorg. Sou l a n d Form . Ed. Joh n T. Sanders & K atie Terezakis. N o v a York: C olum bia University Press, 2 0 1 0 . SC H IL L E R , Friedrich. O n the Aesthetic E ducation o f M an. Trad. Reginald Snell. N o v a York: Dover, 2 0 0 4 . V O SSL E R , K arl. Poesie der Einsam keit in Spanien. M unique: C. H. Beck, 1940. W ELLBERY, D avid. “ Stim m ung” . 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