Missão IntegralJonathan Menezes Novembro/2014 Autor: Ms. Jonathan Menezes Coordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório Jr Projeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. Teixeira Revisão: Éder Wilton Gustavo Felix Calado Impressão: Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 SUMÁRIO Unid. - 01 O que é (e o que não é) Missão?........................................05 Unid. - 02 Teologia e Missão.............................................................15 Unid. - 03 A Missio Dei no AT.............................................................29 Unid. - 04 A Missio Dei no NT.............................................................41 Unid. - 05 Panorama Histórico (1): Lausanne e Clade I-IV..51 Unid. - 06 Panorama Histórico (2): CLADE V.............................75 Unid. - 07 Igreja, Reino de Deus e Mundo..............................93 Unid. - 08 Ecumenismo, Diálogo e Missão................................105 Unid. - 09 Missão e Espiritualidade (I).....................................117 Unid. - 10 Missão e Espiritualidade (II).....................................127 Unid. - 11 Missão e Política (I).......................................................137 Unid. - 12 Missão e Política (II).......................................................145 Unid. - 13 Missão e Cultura (I).......................................................157 Unid. - 14 Missão e Cultura (II).....................................................165 Unid. - 15 Missão e Evangelização (I).....................................177 Unid. - 16 Missão e Evangelização (II).....................................189 03 04 Missão Integral 05 . Começar a se inteirar das discussões acadêmicas que gravitam em torno desse tema. Objetivos 1.Missão Integral Unidade 1 O que é (e o que não é) Missão? Introdução Esta é uma unidade introdutória. A tese maior a ser defendida é de que a missão. o que significa viver e responder à missão? Essas e outras questões servirão de base para discussões posteriores que pretendo propor. com Deus e com o mundo ao seu redor. missionário. discutiremos ao longo dessa disciplina. missão. de modo geral. que é o de Missão. Dessa forma. Como a encontramos na Bíblia? Existem expressões históricas que configuram um movimento em torno desse tipo de perspectiva? Como a igreja tem absorvido e propagado (se é que o tem) essa perspectiva de missão? E quais são os desafios que temos adiante em nossa caminhada em missão? Afinal. designa seu interesse na reconciliação integral do ser humano consigo mesmo. Entender a importância do conceito de missão no mundo contemporâneo. Nesse sentido é que ela é “integral”. Identificar importantes diferenças entre conceitos relacionados com o de missão. você verá de maneira incipiente alguns dos temas e problemas que devem ocupar nossas mentes e corações ao longo desse curso. de um breve esboço do que. pois ela não pretende trazer mais do que algumas discussões iniciais sobre o conceito que permeia esse curso. e suas implicações para nossos dias. missiologia e missional. 2. assim. missões. 3. por ser de Deus. a partir das seguintes questões: O que é missão? Qual é o papel de Deus na missão? E qual é o papel da igreja? Trata-se. como o de campo de missão. O que isso significa? Significa que nossa mente. cremos. Voltaremos a ela em outros momentos. mas a palavra de Deus nunca passará. não é capaz de “dar conta” de toda a revelação expressa na Palavra. o próprio Cristo. Imagine todas essas pessoas pensando sobre temas que não são tão diferentes assim. Isso pode ir um pouco contra ao que você já aprendeu até hoje. mas nós. e tantas outras referências que sobre ela conhecemos por meio dela mesma. O que me importa. mas que são totalmente diferentes. não possuímos as chaves que nos conduzem à interpretação absoluta e única da Palavra de Deus. 3) por isso. ela se renova permanentemente à medida que mudamos e que muda nossa postura de escuta? Isso é mais para vocês começarem a pensar sobre a questão. afinal de contas. missão? Como “definir” uma prática que tem quase dois mil anos de história e está desgastada por tantas controvérsias? Como podemos dizer o que é e o que não é missão quando tantos teólogos(as). 2) nossa capacidade de expressá-las está condicionada pelo espaço e tempo. ainda que conheçamos a Cristo hoje. que a lemos. prosseguimos em conhecê-lo todos os dias. habitam em lugares totalmente diferentes. não podemos entender a total clareza com a qual ela fala. é conversar sobre outro tema que tem diversas respostas possíveis: o que é. como cristãos. se é nosso prazer noite e dia. isso não implica que: 1) essa Palavra é maior que nossas palavras. A Bíblia é muito clara ao falar das coisas que ele fez. missiólogos(as). mas não é. de sentir. Assim. se ela é lâmpada para nossos pés e luz para nossos caminhos. agora. e vou tentar explicar por quê. Pense comigo: se tudo passa. de pessoas que partilham a mesma fé no mesmo Cristo ressurreto. vivem em épocas totalmente diferentes. Por exemplo. missionários(as) e agências de missão afirmam coisas tão diferentes (e às vezes até opostas)? 06 Missão Integral . a Bíblia pode até ser clara. isto é. se ela é viva e eficaz e mais cortante que uma faca de dois gumes. de julgar totalmente diferentes. certo? Bom. o grande Corpo de Cristo espalhado por toda a terra. em quem todos nós. que fazem parte da mesma Igreja.Para começo de conversa Já são mais de dois mil anos de história do Cristianismo. Dois mil anos de irmãos e irmãs. mesmo sendo iluminada pelo Espírito. com formas de pensar. acabamos falando uma série de coisas que ela não é. p. 26). essa falta de intencionalidade e consciência leva a uma tendência muito comum. Se. deixando algumas coisas de fora. e nosso ponto de vista parcial. deixamos de fora todas as ações que não são obrigatoriamente “verbais” de lado. É claro que peguei um exemplo simples. ou seja. que 07 . Quem fala isso é David Bosch (nessa primeira parte do curso. a missão passa a ser manutenção. você vai ouvir falar muito dele e sugiro. logo teremos uma percepção sempre inacabada de missão. não existe imparcialidade na hora de definir algo. segundo o meu ponto de vista. se missão é algo dinâmico. Se entendermos que “missão é a pregação do Evangelho em terras onde nunca se ouviu falar de Jesus”. cada vez que definimos missão. também corremos o risco de exagerarmos em sua “abertura”. ou seja. mas o fato é que toda definição é parcial. lembramos-nos da conhecida frase de Stephen Neil. se você puder. Vamos simplesmente delinear algumas definições de trabalho possíveis. ela nunca deveria ser encarcerada nos limites estreitos de nossas próprias predileções” (BOSCH. Em outras palavras. Além disso. Vamos tomar alguns exemplos. do que seja missão. nada é missão”. compre o livro Missão Transformadora): “a missão permanece indefinível. que. por um lado. sempre definimos a partir de nosso ponto de vista. corremos o risco de “fechar” demais o nosso conceito de missão. deixamos de fora. voltando-se para si e não para fora. obrigatoriamente. Daí. desde já. bem como não definimos quem é o seu agente. tanto no sentido de que ela é uma parte. 2002. quando banalizamos o conceito de missão e entendemos que qualquer coisa feita pela igreja é cumprimento da obra missionária. nós acabamos.Assim.Algumas percepções possíveis A primeira coisa que podemos dizer a respeito da definição de missão é que não se pode definir (por fim em) a missão. todas as outras nações que já foram evangelizadas. quanto no sentido de que ela é tendenciosa. a qual diz “quando tudo é missão. profunda e “completa”. Só que existe outro extremo nessa história. entre outras coisas. Por isso. A cada vez que falamos o que a missão é. não quero buscar uma definição exata. a igreja passa a lutar apenas para manter suas “conquistas”. mas vale lembrar que o Reino é o conteúdo básico da pregação de Jesus. Em terceiro lugar. p. a Igreja é um instrumento de Deus para a realização da missão. que designa nada mais nada menos que “missão de Deus” em latim. 1986. Usarei esse termo várias vezes. É do Reino que ele fala. A proclamação do Reino é sempre acompanhada por um chamado à decisão. segundo essa possível definição. o Reino de Deus compreende todos os anseios e os gritos de angústia do povo de Israel. Esse será o tópico de outra unidade. a vinda do Reino é o domínio transformador de um Deus compassivo (Castro. Em primeiro lugar. que você verá bastante daqui pra frente. Bom. 9 e 10). para participar da missão de Deus. Para Jesus. da sua igreja ou da Igreja como um todo. gostaria de propor o seguinte entendimento: Entendo que Missão pode ser vista como a ação soberana de Deus para a implantação do seu Reino nesse mundo e reconciliação da totalidade da criação entre si e com Ele mesmo. lembre-se de que estamos numa discussão 08 Missão Integral . Responde à mensagem fundamental do Antigo Testamento e revela o propósito. mas desde já você pode saber que existe na literatura missiológica um termo para isso: missio Dei. Dessa forma. não para “gastar o meu latim”. para fins desse princípio de diálogo. o que precisamos saber desde já é que. a missão não é da minha igreja. lembre-se de que vamos discutir tudo isso mais à frente (especialmente esse fato de ela ser apenas “um instrumento”). 67). a missão acontece nesse mundo. Em segundo lugar. é o Reino que ele veio inaugurar em nossa história. Como bem observa Emílio Castro: Nos ensinamentos de Jesus. para seguir Jesus. Convida o povo a responder com obediência radical. Vamos discutir isso mais profundamente mais adiante (especialmente nas unidades 3. a missão tem um conteúdo: as boas novas do Reino de Deus. ela é de Deus. Mais uma vez não fique frustrado(a).nos permitam saber melhor do que estamos falando quando dizemos essa palavra-chave de nosso curso. mas porque entendo ser este o que melhor expressa a ideia de missão que aqui será explorada. Mais uma vez. o caráter e o poder do futuro domínio de Deus. Sobre missão e outros termos Para prosseguir. creio ser importante mencionar uma diferença que. num grau menor na história que não foi tocada pelo Evangelho. pois é mais do que a descrição pura e simples de esforços e atividades missionárias de envio e sustento de pessoas que vão para pregar o evangelho aos “pagãos” de lugares “não alcançados”. a missão da igreja. foi parafraseado como: “a) propagação da fé. e assim por diante. missão não está relacionada apenas com missões. dados sobre a evangelização do mundo. Isso tudo diz respeito a missões. Tem a ver com o ensino responsável de todo conselho de Deus expresso nas Escrituras. “que a missão de Deus é cumprida tanto no mundo quanto na Igreja. portanto. e é uma imensa tarefa inacabada. b) expansão do reinado de 09 . quero me apoiar na esclarecedora análise de Chris Wright (2006). mas não a única) da missão da Igreja. Tem a ver com a edificação da nossa comunidade. é maior ainda! Também tem a ver com o testemunho e serviço do reino em nossa sociedade. E é por amor ao mundo que ela existe. digo que veremos esse assunto mais profundamente adiante no curso. Vemos o testemunho de missionários. p. Antes. sobre Janela 10/40. às vezes. as pessoas não percebem na igreja: missão é diferente de missões. na introdução de seu livro The Mission of God (A Missão de Deus). pode-se também acrescentar.introdutória. Como a Igreja é parte do mundo. 58). e num grau maior onde o Evangelho é crido e obedecido”. Mas o campo da missão é o mundo. Missões. é uma parte (importantíssima. que por sua vez é mais do que momentos íntimos ou comunitários de contemplação. Para ele. Missão. É nesse mundo que ela se realiza. David Bosch ilustra bem essa ideia quando observa que o significado de missão entre a maioria dos cristãos do ocidente até os anos 1950. sobre alguns termos que serão recorrentes nesta disciplina. Tem a ver com a celebração e adoração ao nosso Deus. cuja responsabilidade pesa sobre os ombros da igreja. como veremos. Quero voltar a essa questão daqui a pouco. E tem a ver com muitas outras coisas também. como afirma Andrew Kirk (2006. sobre povos não alcançados. Todavia. Estamos (mais ou menos) acostumados a falar sobre missões na igreja. ocidentais e brancos. p. missão tem a ver com a nossa participação comprometida como povo de Deus. 17). que tenho tentando fazê-los atentar até aqui. Indica alguma 10 Missão Integral . como evoca a imagem de cristãos. p. portanto a ideia de missionário e de campo missionário. Missional. por sua vez. 121). 23). Ao invés disso. pois ele não somente reforça a ideia de missão como “envio” ou “missões”. demonstra certa insatisfação com abordagens à missão que reduzem sua definição por meio da menção à raiz latina da palavra. Afinal de contas. ele não pretende negligenciar a importância desse sentido. expatriados para países distantes. Esse termo designa um tipo de pessoa que se engaja na missão normalmente em outra cultura que não a sua. “todo cristão é um missionário e todo lugar é um campo missionário”. que literalmente significa “envio”. mas apenas chamar a atenção ao fator. 2006. mitto. uma vez que. por serem cristãs. uma pessoa ou pessoas enviadas por quem envia. são chamadas a viver o evangelho de modo digno do intento divino de reconciliação do mundo consigo mesmo inclusive onde estão. as pessoas para as quais alguém é enviado e uma incumbência” (BOSCH. mas também pessoas que. Missionários são tipicamente aqueles enviados por suas igrejas ou agências missionárias. pelo chamado e comando de Deus. em sua missão (missio Dei) no meio da história do mundo em prol da redenção de sua criação (WRIGHT. Amplia-se. de que se definimos missão apenas nesses termos “excluímos necessariamente de nosso inventário de recursos relevantes muitos outros aspectos do ensinamento bíblico que direta ou indiretamente afetam nossa compreensão da Missão de Deus e de nossa própria”. como observa Brian McLaren (2007. Assim. ele prefere descrevê-los como “parceiros de missão”. 2002. É um simples adjetivo que denota alguma coisa que está relacionada com ou é caracterizada pela missão. Assim. Missionário.Deus. Com isso. Wright se desagrada desse conceito. c) conversão dos pagãos. p. Wright. “o termo ‘missão’ pressupõe alguém que envia. segundo ele. para esse autor. e d) fundação de novas igrejas”. missionários são mais do que pessoas enviadas para uma tarefa específica fora de sua cultura. “formas particulares. implica na “auto-revelação (sic) de Deus como Aquele que ama o mundo. o primeiro conceito designa a missão de Deus. o envolvimento de Deus no e com o mundo. 25). Segundo. 28-29) em seu relevante estudo sobre a missão. é uma igreja que explora em sua maneira de ser atributos ou qualidades da missão. gostaria de me voltar a três observações interessantes feitas por David Bosch (2002. e das quais a igreja tem o privilégio de participar”. procura. que entende que foi chamada para uma missão no mundo. p. isto é. Assim. atributos ou dinâmicas da missão. Ela é uma disciplina que. Uma igreja missional.coisa que carrega qualidades. assim. p. lugares ou necessidades específicos. ele distingue missão (no singular) de missões (no plural) – como também já fizemos anteriormente. que compreende tanto a igreja quanto o mundo. Essa frase revela. p. desde já. o termo “missiológico” deve ser usado toda vez que tal aspecto teológico ou reflexivo estiver implicado. de participação na missio Dei”. Missiologia é o estudo teológico da missão. Esse breve aporte ao uso e designação dessas palavras será de extrema importância para o restante desse curso. 11 . 26). ele afirma que a missão não é sinônima de evangelização. Para ele. de missões. Para finalizar. como por exemplo: “Ser uma igreja de Deus de modo autêntico e para o mundo”. como temos visto. referese aos empreendimentos missionários da igreja. mas a evangelização está inclusa na missão como uma de suas fundamentais dimensões. E. pois. “olhar o mundo a partir da perspectiva do compromisso com a fé cristã”. Já o segundo conceito. Primeiro. e que Jesus não veio criar uma religião exclusivista apenas para nós os “salvos”. Missiologia e Missiológico. uma “equação missional”. mas que ama o mundo e deseja reconciliação. nas palavras de McLaren. como um dos braços da missão. exemplos de uma comunidade missional podem ser percebidos (ou não) na visão por ela expressa. relacionadas com tempos. por exemplo. segundo Bosch (2002. a natureza e atividade de Deus. você tem ferramentas para identificar o que efetivamente está se dizendo (se bem ou mal) quando se aplica tais ou quais termos no estudo em questão. em suas elaborações e rigores. De acordo com Chris Wright (2006. a missão é integral. “a proclamação da salvação em Cristo às pessoas que não creem nele. conforme Bosch. Nesse sentido. diz respeito às ações específicas da igreja de envio. Conclusão Essa primeira unidade pretendeu seguir a via elucidativa. que. o autor defende particularmente que a missão é a expressão tanto do “sim” como do “não” de Deus ao mundo. são tratados pela igreja como se fossem sinônimos. Isso propriamente para dizer que a igreja – sinal do reino de Deus e instrumento da graça na reconciliação do e com o mundo– não é nem totalmente idêntica e nem totalmente avessa a ele. não pretende anunciar outra coisa senão as boas novas do Reino. fazer missões é participar na. renovado e observado por diferentes lentes.a evangelização é. Se ainda for necessário insistir na redundância. Por fim. o “não”. Para essa definição vale a mesma afirmação feita quanto à missão: a evangelização permanece indefinível. e não da minha ou da sua igreja. também entendida como “missões transculturais”. (1) que a missão diz respeito ao todo das formas as quais Deus mesmo utiliza para a implantação do seu Reino nesse mundo e reconciliação da totalidade da criação entre si e com Ele mesmo. isto é. muitas vezes. por sua vez. vimos na mesma direção a elucidação 12 Missão Integral . é importante perceber. e esse é o caso dos termos “missões” e “missão”. Por isso. ao ser humano todo em seus mais diferentes contexto. da explicação e distinção de certos termos. apareceria como expressão de nossa oposição e conflito com a ela. Assim. por sua vez. e não igual a. O “sim” de Deus pode se expressar na solidariedade cristã com a sociedade e na valorização da cultura. (2) Missões. enquanto um processo dinâmico. Assim. anunciando o perdão do pecado e convidando-as a tornarem-se membros vivos da comunidade terrena de Cristo e a começarem uma nova vida de serviço aos outros no poder do Espírito Santo”. o evangelho todo. missão de Deus. por isso. Missão é Missio Dei (missão de Deus). treinamento e sustento de missionários para o campo. chamando-as ao arrependimento e à conversão. 2006. Londrina: Descoberta. Missão e unidade na perspectiva do reino. Uma ortodoxia generosa. Nottingham.de outros conceitos objetivando iniciar a visão de conjunto que se quer construir ao longo desse curso acerca da missio Dei. Sinodal. 2002. Brasília: Palavra. Emílio. Andrew. David. São Leopoldo: EST. KIRK. 2007. WRIGHT. 13 . Mudanças de paradigma na teologia da missão. The Mission of God. Brian. 2006. MCLAREN. Missão transformadora. Rio de Janeiro: CEDI. CASTRO. O que é missão. A igreja em tempos de pósmodernidade. Referências BOSCH. England: IVP. H. Teologia bíblica de missão. Christopher J. 1986. Servos livres. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 14 Missão Integral . espera-se. isto é. contingencial. a pretensão de que ela seja fundamental ou essencial. irá se prolongar e se aprofundar ao longo de sua trajetória nesse curso como um todo. perspectiva. e delinear seu próprio entendimento acerca do fazer teológico – afinal. o que quero é ampliar o alcance e a responsabilidade da tarefa teológica e. cabe a você avaliar. quero convidar você – antes de prosseguir discutindo sobre os sentidos da missão –. pelo contrário. quem são os teólogos?). O que a teologia tem a ver com a missão? Essa é outra pergunta importante a ser respondida aqui. a compreensão sobre o que significa ser 15 . sem nutrir. (b) para que (serve a) teologia?. (b) que ela é uma tarefa de todo povo de Deus. a dar um passo atrás e refletir sobre aquilo que julgo como sendo algumas das tarefas básicas da teologia. provisória. é para isso (imagino eu) que você está matriculado/a em um curso de teologia.Missão Integral Unidade 2 Teologia e Missão Introdução Nesta segunda unidade de nosso curso. a partir de três perguntas centrais: (a) para quem é a teologia? (E aqui outra está embutida. como um início de uma conversa que. Meu propósito com isso não é o de reduzir a tarefa teológica a duas dimensões. (c) que teologia queremos? Estou partindo da posição arriscada de dar uma resposta possível a essas perguntas. por consequência. passa por dois entendimentos básicos: (a) de que a teologia está à serviço da Missio Dei. Isso significa que minha resposta é assumidamente “minha”. Por essa razão. porém. refletir a respeito. Encare essa provocação. portanto. e você notará que a compreensão de teologia que aqui expresso tem uma total ligação com a missão que Deus conferiu a seu povo. Logo. Tenho certeza de que isso poderá ampliar um pouco mais seu leque de possibilidades para o fazer teológico.um/a teólogo/a e a quem isso cabe. ministerial. Identificar possibilidades para o fazer teológico em seu próprio contexto e situação de vida: pessoal. 16 Missão Integral . 2. profissional. 3. Objetivos 1. Compreender a relação intrínseca existente entre teologia e missão. Refletir sobre o papel da teologia na formação do povo de Deus. Durante muito tempo. o hábito ou o “costume unificado” (MCMANUS. sustentou-se uma posição um tanto alienígena em relação à teologia cristã (considerando sua razão de ser e propósito). E quando digo que é obsoleto desde o berço. Essa posição. mas não de extinto. seja de maneira deliberada ou implicitamente. qual seja: a de que consiste em uma tarefa e disciplina quase exclusivamente destinada a especialistas – “os teólogos” (no masculino mesmo) – por terem obtido esse título por meio de estudos acadêmicos. E cada crente. como tais. p. assim. tão obsoletas quanto. com algumas exceções. o saber e a autoridade para falar em termos normalmente rebuscados. 1994. e tem a ver com a formalização constante das práticas. 113) que marcou a história do cristianismo desde seu processo de institucionalização. de que ministério e liderança são funções clericais. das crenças e dos comportamentos dentro de uma estrutura de poder hierárquica. sobre a magnífica revelação de Deus. possuindo. junto com ela. ou ainda a visão (embora bastante resistente. No “Ocidente cristão”. já não mais se sustenta em nossos dias. todas essas falácias deveriam ser obsoletas de berço. outras visões do gênero. como a de que a prática pastoral deve ser apenas feita por pastores ordenados. ou não são teólogos. Consciente ou inconscientemente. na vida e no ministério. 2009. eu diria.Teologia para quem? Cada cristão é um teólogo. é devido à lógica antagônica a ele que encontramos nos escritos neotestamentários. isso criou raízes profundas por séculos. 1). cada pessoa de fé abraça um sistema de crença. ou seja. E. Teólogos “de calibre” precisam possuir essas características. metafísicos e. reflete sobre o conteúdo dessas crenças e sua significância para a vida cristã (GRENZ. de modo que podemos até chamar esse éthos de obsoleto. isto é. p. e só não foram (ou ainda não são) por força de um éthos. distantes da realidade. 17 . que se encontra nas Escrituras Sagradas. mesmo em pleno século XXI) de que às mulheres deve ser reservado o papel de auxiliar ou coadjuvante ao homem. a exemplo do universalismo paulino, cuja premissa foi (o máximo possível) de equivalência1 (e unidade em Cristo) entre os gêneros, as raças e as posições sociais (cf. Gl 3.28) ou da visão petrina sobre o sacerdócio de todos os crentes (cf. 1Pe 2.9). Isso deveria despertar os cristãos para o fato de que, se o Cristo é Senhor sobre todos, Ele também habita em todos por intermédio de seu Espírito; e se Ele é o mediador, logo não precisamos de xamãs, videntes, oráculos, profetas ou sacerdotes de alto escalão para nos achegar ao Pai; enquanto Sumosacerdote, Cristo fez de cada um dos membros do povo de Deus um sacerdote. A questão é: por que tendemos tão facilmente a negligenciar isso e a nos contentar em terceirizar a outros a responsabilidade sobre o que fazemos com nosso próprio caminho na fé? O grande lance é que, tendo nos dado, pela graça, a liberdade de nos achegarmos a Ele, também nos conferiu a inteligência para pensar e a paixão para conferir sentido, na luta com Sua Palavra, a essa vida nova que Ele nos convida a viver no, e a partilhar com, o mundo. Por essa razão, Stanley Grenz foi assertivo ao dizer, na epígrafe acima, que em cada cristão há um/a teólogo/a. Lembrando também de Jürgen Moltmann (2004, p. 23), “todos os cristãos, quer jovens ou velhos, quer mulheres ou homens, que creem e fazem alguma reflexão sobre isso, são teólogos”. Stanley Grenz e Roger Olson (2002, p. 13) os chamam de “teólogos anônimos”, a partir de uma compreensão de que “qualquer reflexão sobre as questões essenciais da vida que aponte para Deus” é teologia. São anônimos aqueles que fazem teologias nesses termos sem se dar conta. E, uma vez que esse Deus com quem nos relacionamos e sobre o qual falamos está presente no mundo (pelo que Paulo em Rm 1.20 chamou de “atributos invisíveis de Deus”) e nas “questões básicas da vida”, é possível encontrar teólogos/as anônimos/as também na cultura popular, por exemplo, “através de autores populares, 1 Não pretendo polemizar, nem discorrer de modo mais amplo, sobre a questão das mulheres segundo a cosmovisão de Paulo. Para o momento, basta dizer que concordo com a tese de Alain Badiou de que é tanto premeditada a visão de que Paulo foi uma espécie de fundador de uma misoginia cristã, quanto o desejo implícito ou explícito de fazê-lo comparecer a um tribunal feminista contemporâneo qualquer. Basta lembrar que Paulo teve muitas companheiras mulheres em seu ministério e no trabalho com as igrejas. Entretanto, o mais importante, como pontua Badiou (2009, p. 121ss), “é saber se Paulo, considerando sua época, é mais progressista ou mais reacionário no que se refere à situação das mulheres”. Não há dúvidas de que as questões culturais e as diferenças são importantes nesse caso, mas mais importante é compreender o que a extensão de uma “participação igualitária como essa poderia mobilizar”. Aqui reside na visão de Badiou (ibid.) boa parte da visão universalista de Paulo. 18 Missão Integral compositores, novelistas, e mentes criativas” (Ibid.). Cineastas como Woddy Allen e Terrence Malick; artistas da MPB como Gilberto Gil, Milton Nascimento ou a banda O Teatro Mágico; autores/as como Dostoievsky, Tolstoi, Hermann Hesse, Simone Weil, Simone de Beauvoir, Adélia Prado – apenas para citar poucos/as de minha predileção –, todos foram/são, a meu ver, teólogos/as anônimos/as. Dessa forma, já não deveria ser nenhuma surpresa que às vezes aprendamos mais teologia – mais de uma humana teologia – com esses e outros anônimos do que com os profissionais. Voltando ao ponto inicial, é preciso ter em mente que a vivência e a inteligência da fé são irmãs uma da outra; como diz Gustavo Gutiérrez (2000, p. 51), “o nível da vivência da fé sustenta o da inteligência da fé”, sendo o contrário também verdadeiro: o nível de inteligência da fé também deveria, por suposto, alimentar e guiar a vivência da fé, sob a iluminação do Espírito. De acordo com René Padilla (1986, p. 131), “a função primeira e mais básica da educação teológica é preparar líderes ‘leigos’ para ajudar no ministério educacional da igreja”. Em seguida é que vêm as funções de preparar pessoas para o ministério “ordenado” e, por conseguinte, de formar mestres e “cientistas da fé”. Por que precisamos continuar invertendo essa ordem? A quem interessa essa inversão? A igreja precisa parar para refletir sobre isso, pois essa consciência (ou a falta dela, como parece ser mais corrente) muda muita coisa em seu modo de ser. Com isso, quero concluir essa primeira parte com três afirmações básicas: (1) o fazer teológico é tarefa de todo o povo de Deus; (2) em todo crente há um esboço de teologia, como bem disse Gutiérrez em outro lugar (GUTIÉRREZ, 1986:15); (3) como inteligência da fé, a teologia é tanto servida pela, quando serve à prática de fé. O que significa que ela pode ser uma disciplina acadêmica, mas também é fruto de uma práxis. Isso é o que aprendemos basicamente com o modo latinoamericano de se fazer teologia, como na conhecida formulação de Gutiérrez, é que a teologia (enquanto formulação teórico-conceitual) vem na esteira de uma práxis de fé e, portanto, é ato segundo. Em uma entrevista recente, mais de quarenta anos depois de invocar esses postulados que ajudaram a fundar uma teologia latinoamericana, Gutiérrez (2015) disse: “Repito que a teologia é um ato 19 secundário. Nós dissemos isto desde o princípio. Não é secundário em sentido pejorativo. Eu, pessoalmente, aos 40 anos não falava de teologia e acho que eu era cristão. Sim, foi possível, para mim, ser cristão antes da teologia e espero ser cristão depois da teologia”. Quero insistir, porém, que não reforcemos essa dicotomia, como essa fala de Gutiérrez pode parecer indicar. Não deveria haver antes ou depois da teologia, se a considerarmos como pressuposto (e não o oposto) da fé cristã. Falarei mais sobre isso a seguir. Teologia para quê? Qualquer definição do que é a teologia, ou de sua função, está ligada ao contexto e aos pressupostos de quem fala. Aqui vale repetir o óbvio ululante de que toda teologia é uma teologia contextual e, portanto, historicamente condicionada. Isso para dizer que em minha visão atual da teologia não quero apelar a formulações universais sobre o que ela é ou em que consiste, mas tentar entender o que ela representa, significa e a quem se destina à luz dos problemas do tempo e do espaço a que pertenço. Preocupo-me em pensar atualmente não apenas se (e por que) há necessidade da teologia na igreja, mas também se (e por que) a sociedade precisa da teologia. E, se precisa, de que tipo? (Essa última pergunta nos remete mais ao fim dessa breve aula). Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que, para mim, a teologia, sim, envolve uma forma de saber ou conhecimento racional, que nasce do impulso humano de entender melhor sua própria experiência de fé e conferir sentido para sua existência, o que requer uma ampliação de seu entendimento sobre Deus a partir do que Ele escolheu revelar sobre si em Palavra. Como disse Karl Barth (1960, p. 19), a “fé nele também demanda conhecimento sobre ele”. Isso significa, como já foi dito, que a fé Nele antecede a teologia, mas também que a fé Nele pressupõe teologia. Nesse sentido, minha primeira resposta ao para que teologia deve ser: pelo prazer ou a alegria de conhecer e prosseguir em conhecer a Deus, até para servi-lo melhor. Isso faz lembrar a célebre formulação de Anselmo (1033-1109), em forma de oração: Senhor, não tenho a intenção de penetrar a tua profundidade 20 Missão Integral porque minha inteligência não poderá de modo algum esgotála; desejo, porém, em certa medida, compreender algo de tua verdade, que meu coração crê e ama. Não busco compreender para crer [sic.], mas creio para compreender, pois estou seguro de que se não cresse não compreenderia (ANSELMO, Apud. GUTIÉRREZ, 2000, p. 51). É possível pensar em mais algumas questões a partir dessa passagem. Primeiro, se creio para compreender, a teologia pressupõe, antes de tudo, fé. É claro que é possível fazer teologia sem crer, mas não o tipo de teologia que Anselmo tem em mente, passional antes mesmo de ser racional. Apresso-me em salientar, em segundo lugar, que a racionalidade ocupa um lugar importante para o autor, ou seja: não poderia compreender sem crer, mas o crer pressupõe a busca pelo entendimento constante sobre o crido. Como expressa Barth (1960, p. 18), não é a “existência da fé”, mas a “natureza da fé, que deseja conhecimento”. Em terceiro lugar, sendo um dos pais da teologia no Ocidente, Anselmo se mostra bastante modesto na aproximação ao crido, pois reconhece que sua inteligência jamais poderia esgotá-lo, e que seu desejo é o de compreender algo dessa verdade. Mas não nos enganemos: a “verdade” aqui não é uma abstração da mente, mas o próprio Deus, que nosso coração “crê e ama”; trata-se menos da expressão propositiva da verdade, e mais uma relação com e reverência a ela. Partindo das formulações do Evangelho de João, a verdade (do Evangelho) se expressa na natureza e ser de uma pessoa (Jesus Cristo) e não pode ser reduzida às proposições da teologia de alguém. E, antes que alguém venha me interpelar com essa conversa fiada sobre “cair no relativismo”, reconheço que o fazer teológico parte do anseio natural do fiel de apresentar declarações verdadeiras sobre seu Amado Eterno – o que deveria impedir o ímpeto de “dizer qualquer coisa” ou de sugerir que “qualquer coisa vale”. Mas isso, primeiro, não garante precisão e assertividade sempre e, segundo, essa pretensa fidelidade e veracidade não nos outorga o direito de nos autonomearmos “donos de Deus”, pelo aspecto da contingência inerente a todo fazer-saber humano. Comentando Anselmo, Barth (1960, p. 29,30) nos lembra que “cada declaração teológica é uma 21 Precisamos. Teologia pode ser uma espécie de ciência na medida em que se propõe a fazer uma reflexão crítica e disciplinada sobre a relação do ser humano com Deus. 12). a reflexão teológica. p. teoria crítica. se não problematizarmos o tipo de ciência que temos em mente. a fim de avaliar e iluminar “a fé e a prática daqueles que afirmam conhecer a Deus” (KIRK. como expõe Andrew Kirk (2006. Deus não é propriamente o “assunto”. à luz da Palavra aceita na fé. se seguirmos a etimologia da palavra. Mas é possível uma “ciência de Deus”? Barth nos ajudou um pouco a resolver esse problema: a teologia estuda a Deus em sua revelação ou “na história de suas ações” (BARTH. pode ser vista como “uma crítica da sociedade e da Igreja enquanto convocadas e interpeladas pela palavra de Deus. tendo em perspectiva que seu assunto. 25). baseada em modelos ou provas. toda afirmação teológica dessa natureza permanece sendo “especulativa”. “tem a intenção de levar a um compromisso com o rigor intelectual na busca pelo entendimento de diferentes aspectos da fé. Daqui é possível abstrair uma segunda resposta possível ao para queteologia: a teologia não é apenas “uma função eclesial” e 22 Missão Integral . Pensando em termos mais concretos. como a entende Gutiérrez (1986:23). então ele é apropriado”. ter cuidado ao chamar a teologia de “ciência”. Assim sendo. Portanto. mas um estudo sobre as narrativas do povo de Deus a respeito dos feitos desse Deus ao longo da história. Logo. As ações de Deus são feitas. por isso. p. ou sobre o que Deus já-falou. muito menos “objeto” da teologia. mas quem graciosamente a possibilita. 2003. animada por intenção prática. p. mas também ditas. investigação científica objetiva. Se o uso do termo ciência. primordialmente. portanto indissoluvelmente unida a práxis histórica”.inadequada expressão de seu objeto”. e de Deus com o ser humano e o seu mundo. é Deus. a forma de estudo da teologia não é. e mesmo que seja possível haver expressões teológicas verdadeiras sobre Deus (Aquele que não pode ser “expresso”). Anselmo nos leva a pensar que a teologia enquanto saber racional é uma forma muito limitada de conhecimento. 24). Por outro lado. mas também narradas. 2006. experimentadas. se significa verificação e comprovação da veracidade da revelação por critérios de objetivação da realidade que ela retrata. eu diria que é um erro chamá-la de “ciência”. a não ser que um maior número de seus membros possa articular as afirmações do evangelho nesse tipo de ambiente – ou seja: nas universidades. pois a linguagem teológica. 202). como ressaltei no início. 29). como lembra Grenz (1994. mas também está a serviço da comunidade e de sua missão no mundo. para além daquilo que qualquer teologia é capaz de significar. todas as pessoas engajadas em alguma forma de ação na vida (o que envolve trabalho. mas sim ‘ide e fazei discípulos’. 26 sic) . p. a mensagem teológica em termos e atitudes que as pessoas e seus contextos compreendam e possam ser tocadas de modo significativo por ela. De igual modo. nas tribos. 2006. no mercado de trabalho. é preciso lembrar que nenhuma das proposições que são fruto dessa reflexão crítica por parte do/a teólogo/a deve ter a pretensão de ser unívoca. Parafraseando o que defendeu David Engel (1964. 11). dá a visão para quem está comprometido na ação”. família. p. relacionamentos em geral) e. nas ruas. se os teólogos admitirem. no sentido de que “é feita por seres humanos falíveis tentando construir o sentido a partir de dois dados – a auto-revelação de Deus e a nossa experiência humana” (KIRK. Quem está comprometido na ação. A Teologia é uma hermenêutica da esperança. nos guetos. Nesse sentido. está a ação do Espírito de Deus que “sopra onde quer”. p. a mais verdadeira e legítima. Não se trata de metafísica religiosa. portanto.comunitária (GUTIÉRREZ. na entrevista já mencionada: “A reflexão teológica deve estar ligada à vida cotidiana das pessoas. Isto. a igreja tem uma pequena chance de se tornar não mais que uma relíquia histórica. 2008. como de modo tão feliz pontuou Barth 23 . de pretender ser a única voz. Que teologia queremos? Para começar. isto é. Isto é. Como muito bem nos lembra Gutiérrez (2015). e no coração da cidade. capaz de traduzir. segundo Gutiérrez? Volto a destacar: TODO o povo de Deus. só posso consentir que a teologia seja uma ciência. Nunca li na Bíblia algum trecho que diz ‘ide e fazei Teologia’. E teologia que tenta apagar ou confinar o Espírito não merece o nome de cristã. “é sempre um construto humano”. p. melhor até que o clero ou os “teólogos da torre de marfim”. representante de Deus na igreja e no mundo. isto é. Uma vez que é uma linguagem. sem perder de vista o chão em que nos encontramos. como disse meu amigo. porque o conhecimento de Deus é uma graça. a responsabilidade ao interpretar. “reconhecer que não está livre de determinismos e reducionismos subjetivos. de quem Deus é e da missão na qual somos partícipes-cooperadores. e porque o cogito (as ideias) é fruto de uma relação com o que é cogitado (Deus em sua Palavra). ou. bem como nenhuma linha de pensamento tem. e a Missão. Nicolás Panotto (2012.(2003. mas depois joga fora ou deixa guardado quando percebe que ficou velho e desgastado com o tempo. Para tanto. vários modos de expressar e de dar significado às palavras. Toda boa teologia é aquela em que encontramos consistência. 11). e maneiras de falar são sempre provisórias. contextuais. lembrando aqui de Nietzsche. p. A linguagem teológica é composta por várias línguas. que a gente usa por um tempo. os modos de ser e de agir de Deus no mundo. em que posso me regozijar integralmente sem deixar de lado a reverência. p. teólogo argentino. a mais modesta de todas as ciências. Dialetos teológicos são como roupas. é necessária uma abertura para a desconstrução e ressignificação de nossos discursos teológicos. mas questionando seus pressupostos. 80). e principalmente porque interpretações são geradas e geram diferentes maneiras de falar. E que seja. a Igreja. um prazer. também uma “gaia ciência” ou uma ciência alegre. não apenas passando uma maquiagem neles. Simplesmente porque o Espírito sopra onde quer. por vários dialetos. ou. Por essa razão. a primazia de interpretação sobre por onde deve se orientar o Espírito. através da Bíblia. nenhuma corrente teológica. como eu prefiro dizer. isso deve nos conduzir a uma intimidade e entendimento maior com (o conhecimento de) quem somos. um modo leve e apaixonado de se falar das coisas de Deus. em segundo lugar. e também é a mais divertida ou alegre das ciências. mas também 24 Missão Integral . e como isso afeta diretamente o nosso modo de ser no mesmo mundo. Como consequência. Refiro-me à teologia como uma ciência mais modesta. políticos e discursivos”. expondo sua “porosidade e transitoriedade”. embora pretenda. Panotto afirma que toda e qualquer teologia precisa ser colocada entre parênteses. melhor dizendo. porque reconhece os limites de suas cogitações. que ela é uma “ciência modesta”. E não nos espantemos. mas para nos ajudar a entendê-las e aplicá-las melhor. e pela beleza de Deus e sua relação com o nosso universo e tudo o que nele há”. se permitirmos que a teologia volte a sua vocação de ser. Contudo. porque conta inelutavelmente com a graça de Deus e o sopro de seu Espírito sem os quais teologia alguma é possível. “uma exploração sem fim e na busca eterna pela verdade. crianças questionando seus pais. que precisa de outro tipo de alimento. ainda havia a necessidade de alguém que sentasse com elas para explicar as coisas básicas sobre Deus de novo. como tarefa de todos. autodidatas na Palavra. também. assim. não porque transgride o pensamento alheio. que ninguém venha colocar esse alimento direto na boca delas. Nesse contexto. ao observar o crescimento conceitual (Orlando Costas) da Igreja e nos depararmos com uma realidade muito similar àquela com a qual o autor de Hebreus se deparou em seu tempo: quando as pessoas da comunidade já deveriam ser mestras de si mesmas. Para tanto. Daí vem seu lado “modesto”. quando teologizamos. utilizando a analogia de Brian McLaren (2008. Desse modo. 102). do alimentado destinado a crianças. essa é uma via de mão dupla. então ela será “maravilhosamente ressuscitada por nós”. Hb 5. na vida de ninguém. tornando-se necessitadas.a humildade de manter as portas abertas para uma constante revisão de sua linguagem. precisamos estimulá-las a viver a fé como gente crescida. e não a adultos (cf. mas discípulos rasos e testemunhas rasas. portanto. 103). seu caráter essencialmente humilde. p. “somos vasos avaliando o oleiro. de acordo com McLaren (2008. formigas discutindo sobre o elefante”. Ora essa. todo bom teólogo é um transgressor por natureza. de não se levar tão a sério. Igualmente. Sem isso. questionar seu próprio pensamento. e tem a ver com nossa 25 . é preciso. possivelmente teremos não apenas mentores rasos (superficiais). não para substituir o lugar das Escrituras (como parece ser o receio de alguns. mais que acreditar no que se pensa. e que não necessita mais. pela bondade.12). e deixem de ser infantes. fazer teologia no mundo atual deve passar pelo reconhecimento de que. parafraseando Pedro Demo. caso desejemos que as pessoas numa comunidade rumem à maturidade na fé. mais tradicionais). mas porque desenvolveu a coragem de transgredir os seus próprios. p. tampouco efetiva. Do contrário. também continuaremos reproduzindo a ideia de que a missão é para os missionários. uma teologia emancipadora do povo de Deus. mas o centro do que a igreja é: um espaço no qual pessoas se reúnem em busca de transcendência. teólogos e líderes das igrejas hoje estarão dispostos a promover. um templo e uma instituição. Para continuar a pensar. para a praça? Segunda: a igreja. Infelizmente. aos moldes neotestamentários. ou ficará olhando para trás – como o povo de Israel no Egito – com nostalgia da comodidade da escravidão? Da resposta a essas duas provocações. e não para mim. Meu recado aqui. em suas comunidades. Por essa razão.compreensão da natureza e razão de ser da Igreja. ele conclui que. penso eu. nós fazemos teologia. porém. estará realmente disposta a aceitar não apenas os benefícios. mas também os custos dessa emancipação. pode ser 26 Missão Integral . que contribua para a emergência de todo o seu potencial criativo e transformador? Abrirão mão da patente concentração de poder e saber que envolve o ministério pastoral. a uma organização. é muito simples e direto: nós somos Igreja. considerando cada um/a dos membros de sua comunidade como um/a igual? Terão coragem de mobilizar o povo de Deus “para fora da porta”. e de que a teologia é para os teólogos. Para muitos. 197). povo de Deus. E enquanto continuarmos pensando que vamos à igreja e não internalizando nossa vocação para ser a igreja. ainda reduzimos a Igreja de Cristo. onde quer que estejamos. e não para mim. Assim. como lembra David Engel (1964. de forma geral.. “parece haver um entendimento muito pequeno de que o motivo dessa reunião é para que o povo seja enviado em uma compreensível e comunicável missão”. essas coisas não são meras funcionalidades. e a missão é também uma tarefa nossa. “ainda pensamos na igreja como um lugar para ir ao invés de algo que somos chamados a ser”. depende a eficácia de boa parte do que tratei nessa apresentação.. p. Gostaria de finalizar com duas provocações básicas sobre isso: Primeira: os pastores. ENGEL. Introdução à teologia evangélica. 2000. São Paulo: Loyola. René. _______. São Paulo: Boitempo. O itinerário espiritual de um povo. 2003. 2008. Petrópolis. Tomara que não. David. Acesso em 26 fev. Referências BADIOU.zenit. London: SCM Press. GRENZ. Theology for the community of God. Valparaíso: Concordia Ediciones. Brian. Londrina: descoberta. 2012. RS: Sinodal. Grand Rapids: Eerdmans. São Paulo: Mundo Cristão. Educating the layman theologically. _______. A igreja do outro lado. São Leopoldo. Beber em seu próprio poço. n. São Paulo: Garimpo. Teologia da libertação: perspectivas. 2015. Anselm: Fides Quaerens Intellectum. 1986. Erwin. 2006. MCLAREN. RJ: Vozes. Uma força em movimiento.org/articles/gustavo-gutierrez-a-teologiada-libertacao-hoje>. 2009. Maio. Stanley. Gustavo Gutiérrez: a Teologia da Libertação Hoje. Nuevas alternativas de educacion teologica. fe. BARTH. Disponível em: <https://pt. Gustavo. São Paulo: Loyola. 2008. Sendas nómades: encuentros. KIRK. pp. A densidade do presente. In: Theology Today. 27 . C. Nicolás.que isso não passe de “conversa para boi dormir”. O que é missão? Teologia bíblica de missão. PANOTTO. 21. MCMANUS. 1960. Grand Rapids: Nueva Creacion. 1964. São Paulo: a fundação do universalismo. 197-205. ZENIT. 1994. 2016. GUTIÉRREZ. vol. experiencias. PADILLA. teología. 2. Jul. _______. Andrew. 2009. Karl. 1986. Alain. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 28 Missão Integral . é importante afirmar que não existe a idéia de missionários no AT. vemos dentro das páginas do AT pessoas cruzando barreiras culturais. em minha interpretação é claro. explorar a relação entre a missão e a teologia. Quais entendimentos possíveis de missão podemos adquirir de uma leitura do Antigo Testamento? Como introdução a esse tema. Mais adiante pretendo demonstrar por que este personagem não pode. geográficas. linguísticas. partindo da premissa de Deus como o principal agente da missão. Veja bem. Volto-me para o Antigo Testamento. introduzir o tema da missão e.Missão Integral Unidade 3 A Missio Dei no AT Introdução Depois de. o foco aqui será um aporte véterotestamentário sobre esse tema. Alguém neste momento pode estar pensando: “Mas. no sentido que entendemos essa palavra hoje. mas o fato é que. isto é. para a pregação de Boas Novas. já que ela nasce em seu coração. O NT é um livro que. não está sendo dito que não existe “missão” no AT. e por mais estranho que possa parecer para nós. Uma diferença entre o AT e o NT reside precisamente na missão. estou em busca de princípios bíblicos sólidos (o que ultrapassa a mera citação de versículos) que possam dirigir a nossa concepção sobre como cumprir a missão hoje. em primeiro lugar. não existem missionários. dentro do Antigo Testamento. em nenhum momento. em seguida. se encaixar no perfil acima referido. e Jonas?”. tentando extrair dele princípios que possam nos orientar em nossa construção de uma Teologia da Missão relevante para os dias de hoje. em todos os atos e histórias 29 . Mais do que buscar textos isolados que pareçam apontar para a ideia de que o AT é cheio de missões e missionários. 3. Perceber as maneiras pelas quais sua igreja local pode ser impactada por uma leitura missiológica do Antigo Testamento. deve ser encarado como um documento missionário. este é o próprio Deus. o AT.narradas. 2002. juntamente com as demais nações. E que. p. Objetivos 1. de acordo com o que Bosch elabora. para adorá-lo e servi-lo. 30 Missão Integral . a ideia central a ser defendida aqui é que se há um missionário no AT. mais que um livro sobre missão. pois Deus mesmo é quem conduzirá o povo que chama para si. A intenção aqui é mostrar por que. Assim. Refletir sobre o papel de Deus e nossa participação como seu povo na missão. Compreender alguns dos princípios básicos sobre a missão no Antigo Testamento. aponta para a efetividade da missão (BOSCH. 2. por isso. 35). O Deus da pro-Missão Quando pensamos em missionários no contexto do Antigo Testamento, no sentido tal qual nos deu o Novo Testamento, é difícil não se lembrar de Jonas. Mas a questão é que ele não era um missionário, pois não saiu de sua terra para ir, na confiança de que Deus o tinha chamado, para pregar a boa nova e o arrependimento em Nínive. Jonas, apesar de parecer um missionário, na verdade é uma antítese, ou seja, é tudo o que um missionário não pode ser. David Bosch (2002, p. 35) complementa esse raciocínio da seguinte maneira: No Antigo Testamento não há nenhuma indicação de que os crentes do antigo pacto foram enviados por Deus para cruzarem barreiras geográficas, religiosas e culturais com o fim de ganhar outros para a fé em Yahweh [...] Nem sequer o livro de Jonas tem relação alguma com a missão no sentido normal da palavra [Nota do professor: ou seja, como “missões”]. O profeta é enviado a Nínive, mas não, para pregar uma mensagem de salvação aos não-crentes, e sim para anunciar a sua ruína. Tampouco lhe interessa a salvação da cidade; na verdade, quer vê-la destroçada. Jonas foi chamado para pregar à cidade de Nínive, só que não atendeu ao chamado por amor ao povo, mas por obrigação; nutria poucos sentimentos positivos por aquele povo, por acreditar que ele não merecia a misericórdia divina; mais ainda, ficou extremamente irritado quando Deus se compadeceu e poupou a cidade da destruição. Como eu já discuti em outro lugar (ver MENEZES, 2013), Jonas conhecia muito bem o caráter de Deus no que diz respeito ao perdão: “És Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio de amor e que prometes castigar, mas depois te arrependes” (Jn 4.2). A mais direta implicação desse reconhecimento é ser recrutado para o “programa de perdão” de Deus, que era o que Jonas deveria ter feito. Mas (1º) ele fugiu, e (2º) ele murmurou perante o resultado de ter pregado para Nínive: “Eu sabia Deus que você é pronto, como na queda de um chapéu, a transformar seus planos de punição em um programa de perdão” (na tradução “A mensagem”, de Eugene Peterson). Gostaria de citar uma longa passagem de meu livro em que trago um pouco 31 dessa discussão, para ajudar a esclarecer um pouco mais o dilema de Jonas – que de muitas maneiras por der também o nosso ainda hoje – e por que ele não era um missionário genuíno. Nínive – que já não mais existia quando essa história foi escrita – era símbolo da cidade má e opressora; lugar dos degredados, dos maliciosos, dos “sem-Deus”. Os ninivitas eram, aos olhos de Jonas, indignos do perdão divino, merecedores da condenação e morte. Nosso sentimento em relação ao outro que nos ofende (nossos ninivitas), pode demonstrar o que desejamos de Deus: que castigue, condene, faça justiça (a nossa geralmente). Nessa história, a justiça divina identifica o pecado (1.2), mas não condena Nínive. O Deus que perdoa condena o pecado, desejando libertar o pecador. Nossa postura é inversa, pois não conseguimos separar; logo, a pessoa é igual ao seu pecado. A tendência humana é reconhecer o outro pelo que ele faz. Dessarte, o que ele faz, é o que ele é. Aí entra o confronto com o olhar divino. Enquanto Jonas vê pecadores indignos e imperdoáveis, Deus vê 120 mil pessoas que não sabem distinguir o certo do errado (4.11). Então, o que as pessoas fazem pode ser apenas um lado do que elas são. Quem sabe o lado que seu eu ferido, acuado, amedrontado, cego, infeliz, abusado, permite mostrar. Posso então me despertar para o fato de que o outro também é amado e perdoado por Deus. Que sou pecador e indigno tanto quanto ele/a; que, se a justiça implacável tivesse de ser implantada, não seria somente ao outro, mas a mim, afinal, não há justo que não peque. Que, como eu, o outro também enfrenta a difícil tarefa de perdoar; todos têm dificuldades, alguns menos, outros mais. E que o mesmo Deus faz tanto ao ofendido como ao ofensor: perdoar e nos convidar a fazer o mesmo, afinal amor, justiça e perdão em Deus não estão separados (MENEZES, 2013, p. 122-123). Avançando nesta discussão, apesar dessa certa ausência de missões no AT é importante fazer outra afirmação categórica: o AT nos oferece, sim, bases sólidas para o desenvolvimento de uma Teologia da Missão, até porque as missões são apenas uma parte, e não o todo da obra missionária a que a Igreja é convocada, como vimos na primeira unidade. Nesse momento, creio que dois pontos merecem atenção 32 Missão Integral especial: em primeiro lugar, Deus é apresentado no AT como o criador e senhor de todo o Universo, de toda a História, de todas as nações, e não só de Israel. Timóteo Carriker (1992, p. 62) afirma que: Através de toda a revelação veterotestamentária, se torna patente que o principal ator do drama é Deus (...) É Deus quem cria, quem julga, quem age, quem escolhe, e quem se revela. Ele é ativo não só na criação, mas também nos julgamentos, na libertação do seu povo do Egito, nas exortações dos seus profetas e na promessa de restauração vindoura. Ele é o único e verdadeiro Deus e deseja que sua glória seja conhecida nos céus (Salmo 19) e nas extremidades da terra (Isaías 11.9). Portanto, antes de ter uma conotação humana que fala da tarefa da igreja, “missão” é uma categoria que pertence a Deus. A missão, antes de ser da igreja, é missio Dei. Aquilo que Deus criou, ele pretende restaurar. Contudo, a restauração é salvação não só no sentido de poupar, mas também no sentido de julgar. A mensagem de restauração no Velho Testamento, consistentemente, inclui estas duas dimensões de salvação e de julgamento. A missão se dá, então, na ação do Criador em busca da restauração de sua Criação decaída. Por isso é Missio Dei. A igreja, apesar de ser um instrumento útil nas mãos de Deus, é um instrumento passível de falhas. E quando a igreja falha em ser sinal-instrumento de Deus na tarefa de implantação de Seu reino no mundo, o que implica em reconciliação de toda a criação com seu Criador, Deus continua a frente dessa missão. Isso significa que ela não para, Deus não dorme e nem desiste de seu plano por uma insubordinação ou negligência de seu instrumento; Ele arranja outros meios não necessariamente convencionais a nossos olhos para dar cabo de sua missão. Por isso, é importantíssimo que você dê atenção a essa ideia: uma das maiores lições do AT é que o nosso Deus, Ele sim, é um missionário. Desde o Éden vemos sua intenção de buscar o ser humano perdido quando o vemos chamando por Adão e Eva: “Onde estás?”. Essa passagem é uma boa representação da fuga de Deus pela criatura, por um lado, e a busca incessante do Criador por relacionamento, por outro. E também um bom exemplo de que podemos ver o Deus de amor, revelado na pessoa de Jesus Cristo, já nos relatos do AT, em 33 busca de seus e suas amadas, ainda que estas estejam longe, por iniciativa própria de seu pecado, que implica em afastamento de Deus, ainda que este continue por perto, no silêncio, sofrendo pelo pecado de sua criação. Desde o princípio, Deus se revela como o Deus da pro-Missão (fazendo um trocadilho com a palavra “promissão”, no sentido de promessa, escatológico, e missionário). A revelação, nesse sentido, é um evento no qual “Deus se compromete no presente a envolver-se com seu povo no futuro. Ele se revela como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, em outras palavras: como o Deus que tem agido na história passada e, precisamente por essa razão, também será o Deus do futuro” (BOSCH, 2002, p. 36). Portanto, somos convidados por Deus para participar dessa missão, o que significa que, ainda que Ele não dependa de nossa boa vontade para realizar seus desígnios aqui na terra, ele deseja que participemos, por meio de sua força e vontade, do seu projeto revolucionário de reconciliação do mundo consigo mesmo. Não podemos confundir a independência de Deus em relação a nós e nossos atos falhos de desobediência e fuga com uma falsa ideia de que não temos um papel importante a realizar. Não só temos, como igreja, um papel importante, como temos um lugar especial na economia do reino. A questão é sabermos medir com sensatez e discernimento o alcance e a relevância desse lugar, sem nos julgarmos demasiadamente privilegiados ou até imprescindíveis. Podemos cooperar com o querer de Deus à medida que não só paramos para ouvi-lo e entender esse querer, como em que reconhecemos nosso lugar nesse processo. Dessa forma, a pergunta deixa de ser: “O que devo fazer?”, e passa ser: “Como posso me inserir na missão que Deus já está realizando no mundo?”. A atividade de discernimento é mais importante que o ativismo, nesse sentido.1 O povo da pro-Missão Dessa forma, em segundo lugar, para a que este senhorio divino se manifeste plenamente, Deus escolhe um povo para celebrar uma parceria consigo: o povo de Israel. Uma das más compreensões que 1 Mais sobre essa questão será desenvolvido nas unidades 9 e 10 deste curso, sobre a espiritualidade da missão. 34 Missão Integral ou seja. A eleição de Israel se estabelece no contexto da universalidade de Deus. faz as seguintes afirmações sobre a eleição: 1. “grande era o privilégio. o escolhe na perspectiva da providência sobre todo o mundo. este lhe diz: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. a partir do aporte encontrado em uma série de textos no Antigo Testamento. mas responsabilidade. p. Portanto. o que implica em não tentar monopolizar esse benefício. Israel. Talvez a coisa pudesse ser posta nestes termos: não há serviço mediante eleição. p. ela representa o oposto: O Deus que escolhe Israel. o desejo divino era que todos os povos da terra fossem abençoados. Wright. que receberia o benefício de pertencer e servir a Deus. eleição não é primariamente privilégio. a benção e o chamado estendido a Israel é o grande poder conferido por Deus a esta nação que carregava em si uma grande responsabilidade perante as demais nações. Não se trata. 23) afirma que: Israel não é tanto objeto da eleição divina quanto sujeito do serviço exigido por Deus com base na eleição. você assistiu? Na cena em que Peter Parker conversa com seu Tio Ben no carro. um lugar especial e um papel especial desta nação no meio de outras nações.Israel teve desta escolha foi a de que ela pudesse significar um favoritismo exclusivista de Deus. antes eleição por causa do serviço. portanto. Isso me lembra do primeiro filme da trilogia de O Homem-Aranha (em que o ator Tobey Maguire interpretava o herói). Johannes Blauwn (1966. de privilégio puro em simples. 2. Maior ainda era a sua responsabilidade”. Muito menos um privilégio conferido como recompensa por qualquer coisa. 254). por conseguinte. pois ao abençoar Abraão e. que está debaixo de seu governo. A eleição de Israel não implica na rejeição das demais nações. Desde o chamado de Abraão (Gn 12) vê-se que o Senhor está interessado em fazer de uma só pessoa um grande povo. que tal escolha implicava em uma exclusão dos outros. 35 . Utilizando-a como analogia da questão aqui. Longe de ser um tipo de reforço de uma doutrina exclusivista. Há obviamente inúmeras passagens bíblicas que denotam uma eleição especial de Israel conferida por Deus. Como bem coloca Chris Wright (2006. que lutou por vocês”. Talvez a própria miséria daquele povo que nem era povo. como se vê no texto de Josué 23. foi o SENHOR. vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.5-6). o seu Deus. mas para que essa salvação fosse estendida a todos os povos da terra. Em Deuteronômio 7. não haviam recebido misericórdia. tenha levado o Senhor a se voltar a ele com misericórdia. Deus Não escolheu Israel para que eles apenas fossem salvos. e não tem um fim em si mesmo. são geração eleita. A eleição de Israel é encontrada apenas no amor inexplicável de Deus. o objetivo explícito desde o princípio era para ser em benefício das nações.Pelo contrário. mas agora a receberam (1Pe 2. o seu Deus. O SENHOR não se afeiçoou a vocês nem os escolheu por serem mais numerosos do que os outros povos.9-10). mas agora são povo de Deus.6-7. os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu povo. O SENHOR.3: “Vocês mesmos viram tudo o que o SENHOR. Essa idéia de “finalidade” se vê tanto no AT como no NT. lê-se algo que nos dá a exata percepção dessa ideia: Pois vocês são um povo santo para o SENHOR. Essas são as palavras que você dirá aos israelitas (Êx 19. Por isso. Embora toda a terra seja minha. Vocês. A eleição de Israel é funcional. sacerdócio real. 5. o seu tesouro pessoal. a escolha não tem nada a ver com qualquer condição prévia “favorável” que levasse a isso. Ou seja. o seu Deus. vocês serão o meu tesouro pessoal dentre todas as nações. 3. para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. 36 Missão Integral . Antes vocês nem sequer eram povo. porém. A eleição de Israel não provém de nenhuma qualidade específica desta nação por si mesma. a perspectiva não é de rejeição e sim acolhida na mesma dimensão em que Israel foi acolhido. nação santa. Não houve outro grande motivo senão o grande amor de Deus. pois vocês eram o menor de todos os povos. 4. nos textos abaixo: Agora. povo exclusivo de Deus. o seu Deus. fez com todas essas nações por amor a vocês. se me obedecerem fielmente e guardarem a minha aliança. como retrata Pedro. nos colocamos diante de Deus reivindicando nossos direitos. acabamos nos sentindo no direito de apenas desfrutarmos dessa coisa que já aconteceu. A distorção se manifesta quando é compreendida somente ou principalmente em referência ao passado. Biblicamente. sem levar em consideração o lado do desafio e responsabilidade que isso implica. Essa afirmação de Carriker pode nos levar a pensar que. portanto. está condicionada a uma questão funcional: para anunciar a grandeza e misericórdia do único Deus. p. antes de mais nada. A eleição de Israel é parte da lógica do comprometimento de Deus com a história. Aí então. à sua finalidade. Se santo (separado). mas em viver essa santidade no meio deles. e não apenas soteriológica. p. sendo povo santo no meio das nações. De uma maneira infantil. A decisão de Deus em escolher uma nação na história denota o seu compromisso e preocupação com essa mesma história. assim. Perde o toque da intenção bíblica original quanto à eleição quem a olha apenas sob o aspecto de que ela determina que é salvo e quem não é. 263-264).Observe que a escolha. como esclarece o texto de Pedro acima citado (Cf. Timóteo Carriker (1992. à redenção dos povos. dessa forma. o Senhor da história. exigindo que Ele cuide de nós. O Deus da pro-Missão é. as nossas igrejas podem estar caindo no equívoco de encarar a nossa eleição como um privilégio que devemos desfrutar. sempre que entendemos a nossa eleição em termos de passado. pecadores). afinal de contas. 167) afirma que: A eleição recupera seu sentido quando é compreendida em referência ao futuro. 2006. foi Ele quem nos elegeu! Mas a eleição deve 37 . de modo que Deus seja anunciado e glorificado. como coisa que já aconteceu. fazendo parte dela com seu povo. em vez de responsabilidade e peso. mas também o é. eleição para a missão. 7. A eleição de Israel é fundamentalmente missional. como também sofre as dores da humanidade na história e luta por ela à medida que luta por seu povo. em termos de privilégio e honra. Ele não apenas entra na história. eleição é para salvação. 6. WRIGHT. nada tem a ver com fuga ou afastamento dos outros (pagãos. Assim como Israel foi eleito por Deus para proclamar às nações a glória de Iahweh. Porém. somos eleitos para uma finalidade. referindo-se ao Novo Testamento.ser concebida em termos de futuro. 38 Missão Integral . 2002. nem tampouco nossa condição de “escolhidos” deve nos levar a pensar que podemos simplesmente nos acomodar. Nem nossa participação direta no processo deve confundir nossa missão com a de Deus (como se elas fossem a mesma coisa). juntamente com as demais nações. referindo-se a uma disputa entre diferentes partidos e teólogos cristãos (BOSCH. e que somos convidados por Ele para participar da mesma na qualidade de servos e servas. Ali ele usa o termo para se referir a um status de “documentos de uma disputa doutrinal intracristã”. e não de “privilegiados”. eu e você também somos eleitos para exatamente o mesmo propósito. E para a que este senhorio divino se manifeste plenamente. portanto. Fiorenza. vimos que Deus resolve eleger um povo para celebrar uma parceria consigo: o povo de Israel. entendemos que uma das más compreensões 2 David Bosch é quem usa essa expressão. ou mesmo nos julgar melhor que os outros. no sentido de que ele aponta para a missão. defendeu-se a noção núcleo de que o Antigo Testamento é um “documento missionário”. Devemos viver na tensão dinâmica entre a dependência do Deus da pro-Missão e a nossa condição de vocacionados para participar diretamente nela. sem fazer uma referência mais direta a “envio”. é olhar para o AT e ajudar a desenvolver em nossas igrejas a noção de que a missão é obra de Deus. Em resumo: nessa terceira unidade. 33). Aqui. Você não foi eleito(a) para cruzar os seus braços e ficar apenas recebendo bênçãos de Deus. E o nosso primeiro desafio. como vemos no Novo Testamento. ou de pessoas que ficam simplesmente assistindo ao que está acontecendo. utilizamos no sentido de que o AT não somente é um documento para a missão em si. para adorá-lo e servi-lo. Também que no AT Deus é o grande missionário. “favorecidos”. Conclusão A conclusão a que se chega é que o Antigo Testamento deve ser considerado um “documento missionário”2. conferido aos escritos neotestamentários por Elisabete S. p. pois Ele mesmo é quem conduzirá o povo que chama para si. como para entender a concepção de “envio” encontrada no NT. Jonathan. Sinodal. David. 1992. ou seja. Christopher J. graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. 2013. BOSCH. A Natureza Missionária da Igreja. Longe disso. Missão transformadora. São Paulo: Sepal. 1966. se há um privilégio em jogo é o de ser colaborador com Deus em sua missão. 39 . J. England: IVP. Rio de Janeiro: Novos Diálogos. CARRIKER. Missio Dei. Referências BLAUW.que Israel teve desta escolha foi a de que ela pudesse significar um favoritismo exclusivista de Deus. Missão integral: uma teologia bíblica. de um modo semelhante ao que Paulo se refere quando diz que somos “cooperadores do Evangelho”. 2006. Mudanças de paradigma na teologia da missão. Nottingham. Humanos. WRIGHT. São Leopoldo: EST. Timóteo. Missão é. São Paulo. assim. que tal escolha implicava em uma exclusão dos outros povos. The Mission of God. MENEZES. H. ASTE. 2002. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 40 Missão Integral . retomar-se-á a discussão da unidade passada a respeito da missão como sendo obra de Deus (missio Dei). Objetivos 1. Discernir a importância do discernimento da voz e da ação livre do Espírito no mundo para uma missão relevante. Compreender alguns dos princípios básicos sobre a missão no Novo Testamento. e. Quais entendimentos possíveis de missão podemos obter de uma leitura do Novo Testamento? Para responder essa pergunta. utilizar-se-á das categorias mencionadas por Timóteo Carriker (1992). Perceber como o evento-Cristo transforma as perspectivas e ação da igreja em relação ao mundo e à sua presença na história. tentar-se-á ampliar essa discussão a partir da contribuição de Paul Tillich sobre o reino de Deus em sua “Teologia Sistemática”. ampliando-o para o Novo Testamento. 2. por fim. 3 e 4 do curso. Aproveito para dar crédito e agradecer particularmente ao meu ex-colega César Marques Lopes pela colaboração em boa parte do conteúdo das unidades 1.Missão Integral Unidade 4 A Missio Dei no NT Introdução Essa é a segunda unidade consecutiva em que tratamos de bases bíblico-teológicas. focando agora o Novo Testamento em sua abordagem à Missio Dei. 41 . 3. que ainda não é reconhecido e acatado por todos. e sim uma realidade. nem existe missão. 2. a missão da igreja não vai inaugurar o reinado de Deus. Assim. Nesse ínterim. Seu novo modelo: toda prática missionária deve ser concebida a partir da prática do Cristo vivo. A experiência do/com o Cristo vivo é o motor da missão dos apóstolos – sem ela. 3. 4. uma realidade. não obstante. mas já é. missão significa. portanto: A proclamação e manifestação do reinado oniabrangente de Jesus. David Bosch afirma que no Novo Testamento. p. O propósito da missão: missio restaurare O ministério terreno de Jesus evidencia que a missão é de fato restauradora – todas as suas ações propunham restauração. morte e ressurreição do Cristo. temos “paz com Deus. Seu novo fim: toda obra missionária deve apontar para Cristo (e nunca para a igrejas. Jesus restaura pelo menos quatro tipos de relacionamento dos seres humanos: • Com Deus: através de Jesus. Sua nova mensagem central: o conteúdo da ação/pregação missionária é a vida. Deus continua sendo o ator principal. introduzida pelo acontecimento pascal (BOSCH. porém o possível fracasso dessa missão também não o vai frustrar. Cristo é: 1. por meio de quem obtivemos acesso pela fé a esta graça na qual agora 42 Missão Integral . O reinado de Deus não é um programa. ou para as pessoas que a dirigem). 63).A origem da Missão: missio Dei No Novo Testamento. reforçando esta ideia na encarnação de Jesus Cristo – a missão continua sendo missio Dei. Com relação à missão da Igreja. 2002. Sua nova origem: é a partir dele que ela deve ser desempenhada pelos seus discípulos. a exaltação de Cristo é o sinal de uma vitória já obtida de antemão sobre o maligno. Nas palavras de René Padilla (2005): “Segundo o NT. Essa palavra não deve ser aplicada apenas ao “interior” da igreja – pelo contrário. toda a Criação também aguarda ansiosamente na esperança de que “será libertada da escravidão da decadência em que se encontra. Ap 5. portanto. não podem ser separados dos seus propósitos para o mundo”. que será mais bem discutida adiante. a igreja precisa agir conscientemente pela preservação da Criação. De tal modo que não só ela “geme”. a koinonia ou comunhão é uma das dimensões da ação missionária do povo de Deus. sendo ela também parte integrante não somente das benesses como também do ônus de ser criação. gememos interiormente. e essa nos convida a um 43 . • Com a Criação: essa é a dimensão cósmica da restauração. para a comunhão. como também nós.estamos firmes. língua. Rm 8. Missão implica em encarnação. Como observa René Padilla (2005). aguardando a nossa redenção e adoção final como filhos e filhas de Deus (cf. os filhos.. • Consigo mesmos: existe uma própria dimensão existencial na obra restauradora de Jesus.9). Ou seja. A restauração dos seres humanos nunca pode deixar de abarcar a restauração de sua integridade física ao lado de sua integridade espiritual – é a ideia de “missão integral”. O ser humano só tem a sua dignidade humana restaurada quando atingido pela graça de Deus em Cristo.1-2). povo e nação”. cf. e sofrer com toda a degradação pela qual ela vem passando ao longo dos séculos em função da exploração do ser humano. O alcance da missão: missio creatione A missão deve alcançar toda a raça humana (“toda tribo. recebendo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. A restauração da Criação deve tanto ser consequência da restauração humana quanto também uma área de ação do povo de Deus em missão.18-23).) os propósitos de Deus para a Igreja. de reconciliação de todas as coisas em Cristo. e nos gloriamos na esperança da glória de Deus” (Rm 5.. E de acordo com Romanos. todo o mundo foi colocado sob o senhorio de Jesus Cristo (. “a missão cristã deve se orientar para a restauração de toda a pessoa e de todas as pessoas”. • Com outros seres humanos: Jesus é o caminho para a koinonia. O que nos interessa nesse primeiro momento é que o “local” da missão de Deus e da igreja. Pode parecer uma afirmação banal. à sua igreja): “não rogo que os tire do mundo. onde essa missão acontece e se realiza. povos e nações. 18). a “proprietária” da missão.. ou seja. de marte? Não ser “do mundo”. A esta relação podemos chamar eleição. como ele também não é. mundo e história – teremos uma unidade específica para conversarmos somente sobre isso (unidade 7).15. sempre houve tentativas de “escapar” desse mundo ou de considerá-lo como sendo “indigno da igreja”. Jesus. 44 Missão Integral . O instrumento da missão: missio ecclesiae No NT. fuga do mundo. • Convite ao comodismo ou passividade (já que somos “eleitos” mesmo). eu os enviei ao mundo” (Jo 17. assim como tu os enviaste ao mundo. Vamos relembrar que eleição não é: • Separação social. no entanto. orou assim ao Pai em João (com relação aos seus discípulos e. Deus celebra em Cristo uma Nova Aliança com pessoas de todas as raças. O local da missão: missio mundo et historiae Um dos debates mais interessantes da teologia é o da relação entre Igreja. Reino de Deus. Afinal. mas permanecer no mundo? Nós somos ou não somos do mundo? Se eu não sou do mundo sou de onde. por extensão. mas durante todos esses mais de dois mil anos de história do cristianismo. preservar e pelo bem do qual precisamos lutar. mas também com o ambiente pelo qual somos envolvidos e devemos cuidar. significa não viver conforme os “termos do mundo”. como pensar nessa tensão entre não ser. • Escapismo. e não viver separado dele. A igreja não é.compromisso não somente com as pessoas. não somos do mundo. Mas podemos falar do termo “missão da igreja” se a concebemos como instrumento dessa missão. espiritual ou privilégio. não custa insistir. Em seguida ele diz que nós. os discípulos. é esse mundo e essa história. aqui.. tribos. Não podemos alcançar o reino de Deus transcendente sem participar da luta do reino de Deus intra-histórico. um não-lugar. ele declarou de antemão sua vitória sobre o mundo e as forças de morte que o regem: “Eu venci o mundo”! Assim. é para o Reino de Deus que toda a História aponta. não é uma u-topia (ou seja. não é apenas um estágio. como afirma Tillich. Mas isso já estava dentro das expectativas do próprio Jesus. a vitória de Jesus é a vitória de um reino que triunfa na história. Todo indivíduo é lançado no destino trágico da 45 . que traz uma contribuição fundamental para esse tópico: Paul Tillich. marca o centro desta história. quando disse a seus discípulos que não era de admirar se o mundo os odiasse. Segundo sua articulação de pensamentos. O símbolo do Reino de Deus. o Reino de Deus é o sentido da história. narrado no NT. e que no mundo teríamos aflições. No mundo e na história existem forças que tentam evitar que esta atinja o seu cumprimento. 660). embora um aspecto seja normalmente predominante”. porque o odiou primeiro. Mas para que serve a utopia? Não para negar a realidade. não para nos distanciar do chão. mas a própria tentativa de fazê-lo priva o indivíduo de sua plena humanidade ao separá-lo do grupo histórico e de sua auto-realização criativa. e não distante dela. A presença de Cristo e da igreja no mundo se dá em meio a muitas ambiguidades e fatores limitantes. p. em meios a suas dinâmicas. mas para nos fazer andar melhor nele. ou um lugar que não existe). O evento-Cristo. é uma realidade. contradições. Isso é não apenas impossível. uma direção final. sabores e dissabores.Vamos elaborar um pouco mais essa ideia com a ajuda de um dos melhores teólogos do século XX. Pois o transcendente é atual dentro do intrahistórico. “tem o poder de expressar tanto o aspecto imanente quanto transcendente. Desse modo. nas palavras de Tillich (1987. mas para iluminá-la. Como muito bem arremata Tillich: Não ocorre uma vitória do Reino de Deus na história quando o indivíduo tenta escapar da participação na história em nome do Reino de Deus transcendente. Ao mesmo tempo. o aparecimento intra-histórico de Jesus no meio das ambiguidades da vida é uma amostra de que a dimensão de um Reino transcendente (além da história) não exclui a dimensão de um Reino imanente. Se ela está distante. tanto mais sacrifício histórico é exigido. podemos dizer que é na dinâmica Espírito de Deus.existência histórica. p. aprendiz e instrumento na missão. 684). esse sacrifício com maturidade e coragem? A dinâmica da missão: missio Dei et ecclesiae O Espírito Santo é o responsável pela dinâmica da realização da missão – ou seja. ocorreu uma vitória do Reino de Deus (TILLICH. capacitando e movendo o povo de Deus. Mas quanto mais o destino de alguém é diretamente determinado por sua participação ativa. Vivendo como aprendizes na dança missionária de um Deus transgressor Desse modo. e proporciona força e direção para o seu ministério de libertação (cf. Ele não pode evitá-lo. ensimesmada. Como uma conclusão. O Espírito Santo foi a força motriz do ministério de Jesus: é a força do Espírito Santo que molda Jesus. o profeta. Estamos realmente dispostos e aptos a assumir. é que se dá o cumprimento da missio Dei. já que um dos quatro conceitos fundamentais da nossa filosofia de ensino é “ministérios no poder do Espírito Santo”. seja que morra como criança ou como grande líder histórico. dentro de nossos contextos históricos específicos. o Espírito Santo foi o requisito básico para a missão apostólica descrita no livro de Atos. com desafios e riscos próprios. Lc 4. Consequentemente. precisa de ouvidos para ouvir e sensibilidade espiritual para perceber a dança do Espírito.26). Jo 14. 1987.18). Onde este sacrifício é maduramente aceito. mais uma vez a missão continua sendo missio Dei. É o Espírito Santo quem concede os dons necessários para toda e qualquer ação missionária à nenhuma ação verdadeiramente missionária é possível sem a capacitação especial do Espírito Santo. a igreja. Essa é uma percepção fundamental para nós da FTSA. Também é o ele quem fornece o conteúdo para a ação missionária (cf. alçando um voo próprio e 46 Missão Integral . O destino de ninguém é imune às influências das condições históricas. pessoa ou evento. como podemos nos deslocar dentro dela senão a partir daquilo que diz. O poder de consolo do Consolador não repousa nem cresce na prepotência. ali há liberdade”. desconectada da vontade divina. mas também pode permanecer “fora”. como se pode querer enjaular o Espírito? Se a missão é mesmo missio Dei. de meras palavras. Estamos falando do Espírito de Deus. Ele não se limita ou se reduz às paredes do escravismo institucional humano. Se Deus é o Onipresente. O Espírito pode estar em tudo isso. nas palavras decoradas. mas nunca visível a olhos nus. orienta e inspira o próprio Deus? Sua natureza é livre como é a de um animal selvagem. Paulo estava certo ao afirmar que o homem natural não aceita nem compreende as coisas do Espírito de Deus. das estruturas. A eventualidade humana apenas inibe a verdadeira ação do Espírito. assim é todo o que é nascido do Espírito” (Jo 3. Mas. “Neste encontro ele se manifestará com poder”. ao pretender dizer: “Aqui está ele”. das formas e com as pessoas menos esperadas. porque elas se discernem espiritualmente (1Co 2. O sopro do Espírito é um sopro constante.8). A dança do Espírito não aprisiona. não poderá perceber ou discernir as dinâmicas dessa dança. Definitivamente. nem na manipulação pensada. Ele está presente onde Deus se encontra fazendo suas pequenas e maravilhosas revoluções. nos lugares. Não se faz monopólio de uma instituição.14). Ele é o brilho do tesouro que habita em vasos de barro. das manifestações exóticas. onde está o Espírito? Ele não se encontra exclusivamente aqui ou ali. das inibições de ânimo. pela palavra. esse poder só é fecundo na fraqueza. Não tem como antecipar sua presença ou ação. mas não sabes donde vem. convém perguntar. perde todo seu vigor. mas promove as sábias 47 . ouves a sua voz. conforme diz o salmista. O próprio Jesus é que endereça a natureza livre do Espírito: “O vento sopra onde quer. porque lhe são loucura.procurando cumprir a “sua missão” particular. O Espírito é livre e age em liberdade: “onde está o Espírito do Senhor. vitalidade e espontaneidade anteriores. seja ele secular ou religioso. em palavras e em seres imersos nas imperfeições de sua humanidade. Além das aparências. O Espírito Santo age movido pelo sopro. pelo toque de Deus. Para se saber onde e como ele está soprando é preciso ter a capacidade de enxergar além. que ao ser preso ou confinado. À luz desta reflexão. porque ele não se “encaixa”. imagens e projeções estão em jogo quando falamos. consciente ou inconscientemente. cambiante. “Deus”. Todos os que tentam aprisionar Deus. biblicamente falando. o que se quer dizer é que todo conceito nasce da identificação do não idêntico. Sou levado a pensar em Deus como infinito transgressor. como consequência. privando os outros e a si mesmo nele. oramos.. ele é cotado como X. parcial. Y e Z não entrem em contradição entre si. balbuciamos. escrevemos. Conceitos são sempre visões limitantes e parciais sobre algo. Deus transgrediu sobre si mesmo por causa de nossas muitas e incontáveis “transgressões”. visões e perspectivas de quem Deus é.. parafraseando Friedrich Nietzsche.loucuras revolucionárias e libertadoras de Deus. projeções sobre Deus e sua ação no mundo e na igreja. pudessem ter vida e sentido existencial. e às vezes tão equidistantes. esse montante de expectativas insurge. Diferentes expectativas. mas precisamente pela impossibilidade de fazê-lo. penso que deve ser uma tarefa constante essa de repensar nossa forma de entender Deus e se relacionar com Ele. Deus não é conceito. ávidos por definições que somos. Quem é? Como se revela e como se relaciona com a gente? Geralmente. Isso significa que. eu diria que. Contudo. amar e morrer para que seres humanos. como Y ou como Z. São “igualações do não-igual”. e digo isso não pela pretensão de “encaixá-lo” de modo mais sutil. interditado pela própria linguagem – finita. queremos pôr Deus dentro de caixas. que comportem exatamente o tamanho de nossas ingênuas. 48 Missão Integral . ou seja. nem cabe num conceito. ainda que X. como se Ele coubesse mesmo nelas. embora não seja algo simples. posto que jamais nos encontramos com a essência do que é-em-si-mesmo. a verdade não germina ali. graças a Deus. como você e eu. confiná-lo ou formatar sua natureza em uma caixa. Dependendo das circunstâncias e variáveis existenciais. para que possamos entender melhor sua missão e o nosso papel nela. Ele transgride todas as normas e desvia dos julgamentos. é impressionante como assumem cores absolutas e tons definitivos assim que surgem. O Deus da missão é um Deus transgressor! E a maior de todas as suas transgressões parece mesmo ter sido o fato de ter escolhido viver como humano. acompanhado de uma série promessas. falam de um conceito. David. nem existe missão. e) A experiência do/com o Cristo vivo é o motor da missão dos apóstolos – sem ela. Observouse. Cristo é: a) Sua nova origem: é a partir dele que ela deve ser desempenhada pelos seus discípulos. René. PADILLA. São Leopoldo: Sinodal. vimos que no Novo Testamento Deus continua sendo o ator principal. d) Sua nova mensagem central: o conteúdo da ação/pregação missionária é a vida. 2005. que umas das veias da missio Dei no Novo Testamento. 1992. não se trata de um Deus qualquer. b) Seu novo fim: toda obra missionária deve apontar para Cristo (e nunca para a igrejas. CARRIKER. ou para as pessoas que a dirigem). Paul. 1987 49 . São Leopoldo: EST. Londrina: Descoberta. morte e ressurreição do Cristo. São Paulo: Sepal. Missão transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. Timóteo. TILLICH. Ensaios sobre o reino e a Igreja. São Paulo: Paulinas. c) Seu novo modelo: toda prática missionária deve ser concebida a partir da prática do Cristo vivo. onde Deus quiser.Quer transgressão maior que essa? Quando em missão proclamamos e compartilhamos a vida de Cristo. reforçando esta ideia na encarnação de Jesus Cristo – a missão continua sendo missio Dei. Quem tem ouvidos para ouvir. ouça! Referências BOSCH. por fim. que devemos relembrar e reaprender sempre. Teologia sistemática. Trata-se daquele que transgrediu a si mesmo para nos dar vida e vida em abundância! Conclusão Nessa unidade. Missão integral. é: o vento sopra onde quer. Sinodal. 2002. Com relação à missão da Igreja. Missão integral: uma teologia bíblica. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 50 Missão Integral . Missão Integral Unidade 5 Panorama Histórico (1): Lausanne e CLADEs I-IV Introdução Essa é uma unidade mais extensa que o habitual. diante de um dilema: quando começa a história da missão integral? E a resposta é muito simples: primeiro. Sem isso. Mas nem todos os começos realmente explicam alguma coisa sobre o presente. À luz disso é que trataremos dela aqui. E. não existiria nem faria sentido falar em “missão integral”. devemos partir. faria uma digressão que começasse. segundo. sem dúvida. nosso Deus é um Deus missionário e Senhor da história. a teologia ou o movimento de missão integral. existe a integralidade da missão. nos ajudam a descobrir um começo. remontando séculos ou épocas passadas. mas é desde sempre. temos muito a aprender com os primeiros cristãos acerca de nossa missão hoje. porque é muita história para contar em tão pouco espaço. como até aqui temos visto. da ideia de que antes de existir a história. por exemplo. logo de cara. portanto. cujos propósitos são eternos. Se esse fosse meu caso. quem sabe com a igreja primitiva. o estudo de Michael Green (1989). Aqui estamos nós. que é inerente ao próprio Deus e à sua palavra. à medida que. E os historiadores têm o péssimo hábito de quase sempre recorrer às origens para tentar explicar alguma coisa. e nem todas as digressões históricas longas. 51 . Seguindo os instintos desse afã. fazem genealogias e “escavações” nas fontes para tentar remontar certo começo. como mostra. ela não começa. Analisar criticamente as tensões históricas e lacunas teológicas do movimento. Identificar a contribuição que os congressos latinoamericanos de evangelização (CLADE) trouxeram para a história da missão integral. 3.Objetivos 1. 52 Missão Integral . Conhecer parte da história do chamado movimento de missão integral. 2. rígidas leis. mesmo numa disciplina que trata do assunto. “para santificar seu povo. por conseguinte. Isso começou a gerar incômodo em algumas pessoas – especialmente em países do pejorativamente chamado “terceiro mundo” – cujo compromisso com o reino ia muito mais além de uma vida aburguesada entre quatro paredes: “triângulo da felicidade” (igreja-casa-trabalho. faz uma interessante crítica sobre certa visão pragmática de evangelização e sobre o crescimento 53 . isto é. levando nosso vitupério (Hb 13.14). assim como quem foi a expressão máxima e verificável dessa mensagem. uma missão também parcial. a ele. que. Logo. Costas. um dos expoentes desse movimento de “retorno” à vivência evangelho em sua integralidade na América Latina. também procedeu do Pai. Certo. sofreu fora da porta”. mas uma redundância que se fez necessária (e é preciso perguntar. uma redundância. O evangelho nasceu do coração de Deus como expressão de uma terna e incessante busca do Senhor por uma aproximação com o ser humano. fora do arraial. até que ponto ainda se faz). de modo que nossa resposta não poderia ser outra senão a de também sair. Fez-se necessária porque nos deparamos nos últimos 60 anos ou mais com um evangelho esquartejado. De Deus porque ele procede Dele (Mc 1. a evangelização é o anúncio de um reino cujas premissas são precisamente essas boas novas. Jesus. com algumas partes sendo mais ou menos enfatizadas que outras. fragmentado. parafraseando Robinson Cavalcanti). bem-estar pessoal e prosperidade em todos os sentidos.Sobre a integralidade O Evangelho é identificado como boas novas de Deus para a “casa da humanidade”. O cunho “integral” é uma redundância – porque o evangelho não precisa desse nem de nenhum complemento. Se o evangelho corresponde às boas novas de Deus. pelo seu próprio sangue.12-13). um evangelho concebido parcialmente gera uma evangelização parcial e. O teólogo costarriquenho Orlando E. sendo ele “um” com o Pai. pois. ele já é um todo. distanciado dele em função do pecado. práticas de piedade. Isso gera inquietude num povo marcado pela experiência de Jesus Cristo. passa-se a demonstrar que Deus não é um ponto fixo e distante da história (“ele não vive longe lá no céu sem se importar comigo”. e de uma reflexão-ação missionária integral. mas possui uma história escrita por meio da encarnação de seu filho Jesus. com as gentes crucificadas. é aquela apta a ser agente com Deus dessa missão de transformação da realidade do ser humano como um todo. além de gerar e agir em liberdade. promove as revoluções de Deus no meio da humanidade das formas mais inusitadas. ao fazer algumas opções. Ele usa 54 Missão Integral . e de que missão. injustiçadas e exploradas pela impiedade de outros humanos. portanto. ele estabelece grupos de pessoas. temos todo o direito de questionar a validade da ação evangelística dessas igrejas e sua fidelidade a mensagem da cruz.numérico da igreja evangélica. 82). os mansos. os misericordiosos.1-12). Ele faz “opções naturais”. Ele se identifica plenamente com a humanidade. e logo vemos como essas mesmas igrejas sacralizam o status quo. vigentes já na década de 80: Quando lemos informes sobre o fenomenal crescimento numérico de algumas igrejas como resultado de seus esforços evangelizadores. negando-se a mostrar um estilo de vida qualitativamente distinto e gerando obstáculos à transformação das instituições sociais. Esse tipo de crítica nasce do discernimento de que a vivência da fé não pode estar separada de uma responsabilidade mais ampla com o todo criado por Deus. a prática social de uma comunidade eclesial revela a qualidade de sua confissão (COSTAS. ao humano. que entrou em nosso mundo para viver em solidariedade com a dor e a angústia humanas. culturais e políticas de sua sociedade. os “bem-aventurados”. os pacificadores. A igreja que compreende que ação do Espírito não está circunscrita a seu arraial e nem é seu monopólio. Em especial. é a ação de Deus por meio do Espírito Santo (o seu agente) visando resgatar a humanidade das situações de morte e pecado em que se encontra. Dito de outra forma. como diz a canção “Nas estrelas”). O Espírito é irreverente e. p. os limpos de coração. 1986. que têm “prioridade” no reino: os humildes de espírito. econômicas. os que choram. os que têm fome e sede de justiça. O Espírito habita onde há liberdade. antes de tudo. Em função dessa consciência teológica mais atrelada à vida. E. os perseguidos por causa da justiça (Mt 5. refugiados e imigrantes ilegais. dependem exclusivamente da graça e favor divinos para viver. as credenciais messiânicas de Jesus estavam precisamente em ele ter-se feito um desprezado. os campesinos explorados e a subclasse social permanente que habita em guetos urbanos. desprezados e os homossexuais rechaçados e deserdados (COSTAS. a não o conforto e as mordomias (dignas de “rei”) no interior dos palácios de Jerusalém? Jesus sai do meio de gente desprezada e marginal.3). p. 1986. Judas e Simão?” (Mc 6. os exilados. muito humano. Ele era muito galileu. mas porque. e não em Jerusalém? Por que o lugar de sua criação foi Nazaré da Galiléia e a simplicidade de uma vida no campo. Orlando Costas fala sobre esses “privilegiados” do evangelho hoje: São os povos autóctones e as minorias étnicas. entre os plebeus. e passa a ser visto como um “comum” igualzinho a eles: “Não é este o carpinteiro. Transpondo essa mensagem para a nossa realidade latino-americana. Todavia. subúrbios. os alcoólatras e viciados em drogas. irmão de Tiago. humano e 55 . os presos. muito próximo deles para que pudessem enxergar o contrário. os abusados. assim podem pôr sua fé inteiramente Nele. muitas vezes temos ojeriza. 85-86). Deus parece ter paixão pelo marginal – enquanto nós. favelas e lugares de miséria. filho de Maria. perguntaram os galileus ao se depararem com o Jesus profeta. não têm “mérito” algum no que realizam). o Espírito encontra alternativas “comendo pelas beiradas”. O mais interessante é que essas prioridades de Deus colocam à margem o que era central e no centro aquilo que é marginal: o maior é o menor no reino dos céus. não têm nada mais além de Deus. Assim. promovendo suas revoluções a partir das periferias da vida. os desempregados e os mal-pagos. Os “centros” parecem estar quase sempre muito focados em si mesmos e na manutenção de suas estruturas. por que o Filho foi nascer justo em Belém da Judéia. São também as prostitutas. José. dada a sua impossibilidade de alcançar êxito por suas próprias mãos (isto é. e aquele que se humilha será exaltado – são princípios presentes nas boas novas de um Deus interessado na justiça e restauração da dignidade ao ser humano.essas pessoas como modelo não porque são melhores que as demais. as mulheres denegridas. Senão. os idosos solitários e os jovens frustrados. p. 2 Corro certamente aqui um risco enorme de ser acusado de reducionista. p. sob o mesmo guarda-chuva do “espírito de Lausanne”. ou jogadas ao semi-ostracismo (Samuel Escobar). 2008). sem novidades. mas também. sendo Senhor e Rei. embora. é o desenvolvimento do movimento na América Latina. I e II). na história mais recente. Lausanne e a Missão integral Falando propriamente da ideia (conceito) e. do movimento de missão integral. é agora uma casa mais dividida por cortes regionais. Samuel Escobar (1990.. E não apenas nisso. que readquirira novo ímpeto. de Arturo Piedra (2006.pobre. maturidade. As “estrelas” de Lausanne ou estavam mortas (Schaeffer. respeitabilidade e influência como a mais dinâmica corrente do protestantismo contemporâneo (inclusive junto ao catolicismo romano e à ortodoxia oriental). sugiro a leitura de duas obras: Evangelização Protestante na América Latina (Vols. 2012). Kivengere).. por conseguinte. René Padilla). à época. e O novo rosto da missão. pálida figura do que representou o Pacto de Lausanne para seu tempo. 56 Missão Integral . sem vibração. em estilo Hollywoodiano. buscando as razões de sua expansão. de Luiz Longuini Neto (2002). sendo que o último tem feito enormes contribuições à essa 1 Para uma exposição detalhada da expansão protestante e dos congressos missionários e ecumênicos ocorridos na América Latina. especialmente a partir dos congressos II e III.) O evangelicalismo. ou estavam ausentes (Billy Graham. em ter-se feito servo de todos. Enquanto o primeiro se ocupa da história pregressa do movimento protestante na América Latina. 2000. E se queixava de que em Lausanne II os organizadores deixaram muito pouco espaço à perspectiva crítica (os “porquês”). sem alma. respectivamente em Manila (1989) e Cidade do Cabo (2010). em caminhos quase opostos. e o resumiu a: Um “magno espetáculo”. 1992. portanto. considerando que um dos principais meios de formulação e propagação disso foram os congressos missionários (ou de evangelização)1. mas insisto que a prática das últimas décadas tem mostrado exatamente isso: que o movimento de Lausanne e o movimento latinoamericano da Missão Integral andam fora de sintonia. culturais. nem de esforços de ingleses como John Stott e. teológicos e ideológicos. 25) notou que no movimento de Lausanne. e a missiologia crítica do terceiro mundo (incluindo aqui os africanos). 1979. analisando a relação entre os movimentos ecumênico e evangelical. o segundo explora uma história mais recente. focando-se mais no lado pragmático (os “como”). 32-33) foi mais duro em seus comentários sobre esse congresso. e falo aqui especialmente do Congresso de Lausanne (1974) e dos CLADES I-V (1969. ao longo do século XX especialmente. O máximo que se conseguiu foi a reafirmação do antigo pacto e a recomendação para o estudo (por falta de consenso) de um “manifesto” insosso. respectivamente CELA e CLADE. Basta estudar o que se fez do movimento de Lausanne. a missiologia gerencial norte-americana. sem desafio. de Christopher Wright. Falando sobre Lausanne II. e a história e teologia de seus congressos. em tese.2 Apresso-me em ressaltar que essa afirmação não envolve nenhum demérito em relação a importância que Lausanne-74. com hospedagem cinco estrelas. entendendo que o movimento de missão integral foi e é aquilo que seus representantes latino-americanos fizeram dele. Meu foco aqui. (. pode se dizer que se trata de uma invenção recente. Robinson Cavalcanti (1990. confluíam três correntes teológicas: a missiologia pós-imperial europeia. org. De livros recentemente publicados em português desses autores sobre missão. no Congresso sobre Missão Mundial em Wheaton. e desejo de superação sobre a qual falei. até chegar. se dá mais no campo de uma herança da qual os latino-americanos se aproveitaram e. falando propriamente do mundo evangelical4. decepção. especialmente o artigo de Júlio Zabatiero sobre o documento do congresso. foi parte importante de uma história de conferências (evangelicais e ecumênicas) mundiais de missão e evangelismo. Reuniu 2. 1910. foi inteiramente dedicado à avaliação dos caminhos e descaminhos de Lausanne. Isso também está disponível no portal da FTL-B: <http://ftl. 23). 25). Suíça (16-25 de julho de 1974). 12. Parafraseando Luiz Longuini Neto (2002. para ele. 4 O anglicismo “evangelical” é uma variação latino-americana e/ou brasileira do movimento que surgira nos EUA como uma derivação dos Grandes Despertamentos no século XIX.teologia de missão3. conclui dizendo que esse termo se torna pujante ao se ser adotado como identificação daqueles “teóricos” da MI na América Latina.php/lausanne-3>. ao mesmo tempo. que foi reconhecidamente um marco importante. sugiro a leitura de uma série de ensaios críticos sobre Lausanne III. 2014). “foi especial motivo de gozo o fato de que 50% dos participantes. portanto. o Compromisso da Cidade do Cabo. importante líder no congresso. fossem oriundos do Terceiro Mundo”. é possível indicar: A missão cristã no mundo moderno. Deixe-me explicar melhor isso em três pontos: (1) O Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne. p. perceptível pela fala desses dois dos mais importantes representantes do movimento na América Latina. Seu lema foi: “Que o mundo ouça a sua voz”.pdf>. Nesse caso. mas sem a sua intolerância. a falta de sintonia. p. p.700 delegados vindos de 150 nações. e também oradores. de 1990. ambos em 1966. 2003. Segundo ele. começando em Edimburgo. mais conhecido como Congresso de Lausanne. todo fundamentalista seria um evangelical. procuraram (admitidamente) superar. já havia ouvido a voz de Deus e então respondia a seu chamado.br/new/index. Também nessa linha. sendo referendado à época pela revista Time como “um fórum formidável. E isso mudou completamente (o que poderia ter sido) Lausanne: mais um congresso para falar sobre o que os ocidentais precisavam fazer para alcançar “o mundo dos dois terços”.br/new/downloads/bt012. 25). mas nem todo evangelical um fundamentalista. 3 57 . e no Congresso Mundial de Evangelização em Berlim. possivelmente a mais abrangente reunião de cristãos já realizada” (STOTT. que boa parte do mundo. ambos de Christopher Wright (2012. Falo deles pelo envolvimento com o movimento e o “espírito de Lausanne”.org. Isso significava. no caso latino-americano. e está disponível para download aqui: <http://ftl. de John Stott (2010). bem como da Comissão de Planejamento. n. afirma algo notável a esse respeito. A missão do povo de Deus e A missão de Deus. e que seria berço do fundamentalismo. John Stott (2003. O Boletim Teológico da FTL. Mas me arrisco a dizer que essa importância. fora do plano ocidental. É. Assim. cor. Vozes do “terceiro mundo”. nem a ação social evangelização. Em suas palavras. 1975. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem. como o africano Festo Kingevere. classe social. e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão. “evangelismo e a salvação de almas é a missão vital da Igreja. Acesso em 7 de Abril de 2016. e não explorada. 58 Missão Integral . p. a voz da abertura não foi.br/pagina/pacto-delausanne>. religião. sem distinção de raça. devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana. cultura. a globalização foi inversa. visite o site de Ultimato: <http://www. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus. (2) Senão. mais do que o evangelismo segundo Graham. e os latino-americanos Samuel Escobar e René Padilla. Entretanto. também deram o tom do que viria a se tornar o congresso. Portanto. a voz dominante do congresso. sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida. especialmente por enfatizarem. de nosso amor por nosso próximo e de nossa 5 Para ler o Pacto na íntegra. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus. necessariamente. que aqui cito literalmente (os grifos são meus): Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. 31. e a missão integral. e da missão da Igreja. inclusive na América Latina. era a evangelização. grifo no original). O título do referido artigo é “Responsabilidade Social Cristã”. vejamos: a principal voz convocatória desse congresso foi o notável evangelista Billy Graham e sua associação.com. seu pacto. Graham afirmou claramente que a prioridade do congresso. afirmamos que a evangelização e o envolvimento sociopolítico são ambos parte do nosso dever cristão. até os dias de hoje. Na palestra de abertura do congresso.ultimato. a ação (integral) da igreja no mundo. (3) Isso tornou-se bastante visível no artigo 5 do Pacto de Lausanne5 – pacto este que veio a se tornar uma espécie de confissão de fé para o movimento.ainda que parcialmente. Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. toda pessoa. A Igreja toda precisa ser mobilizada a fim de levar o Evangelho todo para o mundo todo” (GRAHAM. nem a libertação política salvação. e mais. a evangelização volta a despontar como primordial. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação. deixou-a ainda mais explícita quando disse que a “missão de serviço sacrificial da igreja” inclui “tanto a ação evangelística como a social. e depois se contradisse ao considerar uma possível necessidade de optar. A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta. ridícula. a qual pode ser vista expressa no próprio pacto. 53). evangelização e responsabilidade social são ambas importantes e parte de uma mesma missão. então a evangelização é primordial” (STOTT. porém.obediência a Jesus Cristo. a meu ver. a própria composição “evangelização + ação social” é. mas também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo injusto. 2003. normalmente. p. em si. que em uma passagem declarou: “Na missão de serviço sacrifical da igreja a evangelização é primordial”. envolve bem mais que uma ou outra. (b) segundo. enquanto no artigo 6. e assim escolheu a evangelização (deixando bem claro. a meu ver. Quero apenas ressaltar que. ele apenas contempla as reivindicações propriamente terceiro-mundistas presentes no congresso. para ser integral. principal redator do pacto. Bem. a contradição da teologia de missão integral de Lausanne está aí explícita em pelo menos dois aspectos: (a) primeiro. Muito já se discutiu sobre esse artigo 5. e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. para mim. não pode esconder a tensão que existiu nos bastidores daquele congresso. arrisco a dizer (mais como hipótese) que esse artigo só está aí por insistência e pelo trabalho conciliador incansável de John Stott. especialmente nas falas dos teólogos já citados. de opressão e de discriminação. qual foi de fato a opção de Lausanne no fim das contas). se a missão é integral. tendo em vista que tal missão. 59 . no artigo 5. Stott afirmou que a igreja não precisa optar ou pela evangelização. Quando as pessoas recebem Cristo. Mas se for necessário optar. John Stott até tentou resolver a tensão em seu comentário ao Pacto. Stott. Ou seja. ou pela ação social. mas. nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar. em seu artigo 6. não precisa optar por uma delas. de maneira que a Igreja. como também demarcou uma ruptura. p. que aos poucos vai alcançando sua maioridade e independência. na década de 1960. Ricardo Gondim defende que o movimento (de missão integral) nasceu na América Latina antes mesmo do evento de Lausanne. Aliança Evangélica Mundial e a Cristianismo Hoje. Desde então. como vimos. e daí sua ênfase maior e final ter retornado à intenção original de Graham. 84). vou diretamente ao ponto que mais nos envolve: como a missão integral se desenvolveu na América Latina? A história da missão integral remonta a uma série de congressos. segundo o autor. como na América Latina na primeira metade do século XX. centradas na missão como evangelismo. essa perspectiva se confronta. 145-154). e que fosse contextualizada e relevante às circunstâncias vivenciadas pelo povo latino-americano. Num primeiro momento. “os principais temas abordados pelo Pacto configuram muito mais a agenda do fundamentalismo que propriamente um avanço dos conceitos missiológicos” – valendo destacar que essa é uma tese de suma importância dentro do olhar geral oferecido por ele nesse livro. ver minha resenha publicada no número 16 de Práxis Evangélica (MENEZES. No encontro mundial em Lausanne. 2010. Isso se expressou. a iniciativa vem dos EUA e Europa. “missão” aqui significava mais que “missões” ou evangelização. mas logo começa a aparecer um “protestantismo latino-americano”. quando teólogos e pastores autóctones perceberam a necessidade de uma mensagem de salvação que incluísse também o terreno e não apenas o ultraterreno.Na obra Missão Integral: em busca de uma identidade evangélica (2010). pois. Daí ser aquele um congresso de evangelização. p. 1974. realizados tanto na Europa. que representou o elo entre as diferentes facetas ali presentes. 60 Missão Integral . como também no “Pacto de Lausanne”. embora 6 Para uma análise mais ampla (e crítica) do livro de Gondim como um todo. com o objetivo de se debater a missão e as missões. com a visão das agências financiadoras do evento. não apenas nas palestras ora proferidas. implicava no anúncio de uma mensagem mais abrangente que redundasse em ações que promovessem uma sociedade mais justa e igualitária.6 Feitas essas considerações preliminares. como defende Gondim (2010. como a Associação Evangélica Billy Graham. da FTSA. Jesus não se acovarda. Na minha casa. em famílias de certa condição econômica. Para tanto. na próxima unidade. se se utiliza jogo americano ou toalha de mesa. como participante do evento. utilizo um breve histórico escrito por Ruth Padilla. o que se come e o que não se come. apresentarei uma análise de minha autoria. alguém deve pôr a mesa. e nos quais a família se reúne para compartilhá-la. do que vi. come e bebe com publicanos e pecadores!”. ouvi e aprendi em CLADE V. teologia e progressão ao movimento na América Latina. quem põe a mesa tem certo poder de decisão: determina quem fica em qual lugar. Muitos são os cenários que nos pintam os evangelistas de Jesus na mesa partindo e compartilhando o pão com pessoas tão diferentes. Seus críticos lhe acusam: “É um glutão e beberrão”. a partir da pergunta de quem pôs a mesa para quem nos quatro primeiros Congressos Latino-Americanos de Evangelização. Agradeço aos editores de Práxis pela permissão em reutilizá-los aqui. “E para completar. quatro congressos O que acontece em nossas casas quando chega a hora da comida? Pelo menos nos lugares privilegiados nos quais temos comida todos os dias. entendendo que esses foram os congressos que mais agregaram em produtividade. E quando um homem integrado ao sistema religioso 61 . nem esconde sua agenda alternativa aos valores imperantes. primeiramente. Ambos os artigos foram publicados no número 21 da Revista Práxis Evangélica. Breve histórico de CLADE I a IV Quatro décadas.nessa época ainda fosse muito cedo para falar nisso. Não vale colocar garfos. Critica frontalmente as práticas discriminatórias que outorgam postos de importância na mesa segundo o prestígio e a riqueza pessoal do convidado. Mas obviamente terá que se sujeitar a decisões prévias. se só há sopa. Quero aqui ir direto ao ponto. nem faz falta o tempero. e o espírito que culminou em CLADE V. especial sobre o Congresso Latino Americano de Evangelização V. se não há salada! Quem prepara a comida tem muito poder de decisão: determina. trazendo uma visão geral dos CLADEs (Congresso Latino Americano de Evangelização). sua taça dizendo: “Bendito aquele que participa no banquete do Reino!”. quem pôs a mesa. quando olhei maravilhada na televisão dos vizinhos — a família Fernández — o primeiro passo de Neil Armstrong na lua. Vamos considerar quem definiu o menu. os descartados da sociedade “culta” e do sistema econômico (Lucas 14). é que o que pretendo é nos guiar numa reflexão sobre os quatro congressos que antecederam aquele que está em foco neste dossiê. os Congressos Latino-Americanos de Evangelização. se realizou o CLADE II. orgulhoso. Uma orientação geral para começar. O Primeiro Congresso LatinoAmericano de Evangelização foi realizado de 21 a 30 de novembro de 1969. como menina. Costa Rica. me suscitava a ditadura de [Juan Carlos] Onganía e o temor visível de tomar um trem graças ao incêndio 62 Missão Integral . cumpriu-se 40 anos desde o CLADE I. comidas. Confio que o exercício de fazer estas perguntas ao nosso passado nos dará um fundamento para compreender como chegamos a CLADE V. Quase exatamente uma década depois. os cegos. os “ninguéns” de fora da cidade. através da metáfora da mesa. em novembro de 1979. Mas Ruth. O que se pretende é apenas abrir-nos o apetite para tal incursão. o quarto chegou antes de completar-se uma década — CLADE IV coincidiu com o milênio. Vale um esclarecimento: este artigo não pretende ser um registro exaustivo de cada Congresso de maneira que satisfaça as expectativas rigorosas de uma historiadora profissional. Em novembro de 2009. em julho. supunha-se que você falaria dos CLADEs. Já veremos as diferenças substanciais entre os dois encontros. CLADE I: O desencontro catalisador do encontro Ignoro quantos dos leitores têm recordações claras do ano de 1969. quem foram os convidados e quem foi nutrido por estes “banquetes”. Mas também recordo a angústia difusa que. Eu tenho gravada a memória daquele dia. Enquanto o congresso seguinte teve que esperar — CLADE III não se realizou até 1992 —. foi realizado no ano 2000. dirá um(a) leitor(a). Por que você está falando de mesas. em San José. os coxos.levanta. Ao final deste artigo se encontra uma bibliografia para quem queira incursionar com maior profundidade. que ocorreu em julho de 2012. Jesus responde com a parábola do grande banquete onde os convidados favorecidos são os pobres. convidados? Bom. CLADE I se realizou em Bogotá de 21 a 30 de novembro de 1969 e reuniu mais de 900 delegados. a mesa de CELA III (a Terceira Conferência Evangélica Latino-Americana) se propunha como “liberal” e. Desastres naturais e outros não tão naturais: terremotos e furacões. naturalmente se sentiam com todo o direito de determinar o menu — o programa — e os convidados — a quem se convidaria para participar e a quem não. mas também no seio da crescente população protestanteevangélica. especialmente entre aqueles que viam a América Latina como campo missionário. mas sem voz na mesa. como uma ameaça à qual havia que se contrapor. político e social. entretanto.provocado por um grupo guerrilheiro na estação Retiro. ditaduras e desaparecidos. Tensão crescente entre esquerda e direita. Daí o título de CLADE I: “Ação em Cristo para um Continente em Crise”. A crise. Era um continente em crise. A Guerra Fria entre as superpotências começou a definir posições. A mesa para CLADE I não se pôs no vazio: havia outro banquete programado que os organizadores percebiam como ameaça à sua versão de cristianismo. Explico: Quem colocou a mesa para CLADE I? Foram organizações missionárias evangélicas da América do Norte. CLADE I seria o espaço no qual os líderes evangélicos norte-americanos “corrigiriam” a má dieta oferecida pelos movimentos progressistas próximos ao Conselho Mundial de Igrejas e seus simpatizantes. Como eles punham a mesa — convocavam e pagavam a conta —. a Associação Evangelística Billy Graham. Eram anos de turbulência em nosso continente. portanto. Na percepção dos líderes norte-americanos. constou o livro Teologia Latino-americana: 63 . e agora era a vez da América Latina. central no menu. Por outro lado. a Evangelical Fellowship of Mission Associates (EFMA) e a International Fellowship of Mission Associates (IFMA). A leitura da correspondência que circulou em preparação para o Congresso revela o forte filtro conservador e a imposição acrítica de definições nascidas no contexto de controvérsias teológicas nos Estados Unidos. não se vivia apenas no cenário amplo. Foram incluídos vários líderes questionados pelos organizadores. guerras e guerrilhas. depois de um grande em Berlim (1966). Estes grupos já haviam organizado congressos sobre evangelização na Ásia e na África. . E assim foi 64 Missão Integral . Samuel Escobar explica A tomada de consciência teológica se deu em Bogotá. Era hora de teologar como evangélicos latino-americanos e de publicar e difundir esse pensamento pertinente à sua própria realidade. consistiu primeiro em comprovar que uma comunidade evangélica dinâmica e que crescia rapidamente ia chegando a certa maioridade sem identidade nem expressão teológica. Mas para outro setor. Não era mais tempo de seguir recebendo. missionários e professores de seminário se reuniram para projetar uma ‘fraternidade’ dedicada ao estudo e à reflexão” (ESCOBAR. Com fraca base investigativa. que foi entregue no começo e de maneira gratuita a todos os participantes. Assim foi como “durante o transcurso de CLADE I. finalmente. Comprovouse também que a tomada de consciência a respeito de uma crise no continente encontrava os evangélicos sem resposta nem alternativas sérias frente ao pensamento que começava a se forjar no âmbito ecumênico. Critica a ausência de reflexão e produção teológica e postula a teoria do crescimento de igreja como a via mais fiel ao evangelho. católicos conservadores e católicos e protestantes liberais. Wagner descreve e cataloga movimentos e líderes cristãos protestantes evangélicos conservadores.. Boletim 59-60). Alguns participantes receberam com aprovação a perspectiva de Wagner. Boletim 59-60). que deveria surgir da Palavra de Deus e de seu contexto social e político. esta foi a última gota que encheu o copo. investigação irresponsável e fruto de um dualismo nocivo e polarizante —. Percebeu-se. como latino-americanos. agora enraizados no nosso continente. que a dominação missionária que explicava em parte a falta de expressão teológica. seculares e radicais de esquerda. repetindo e polarizando-se a partir de receitas teológicas estrangeiras. O desencontro de CLADE I havia servido como catalisador de novos encontros. um grupo de pastores. o julgaram como uma caricatura injusta. Para vários líderes — que apesar de valorizar os desafios apresentados pelo livro. tentava polarizar a partir de fora a comunidade evangélica latino-americana (ESCOBAR. Deviam gerar seu próprio pensamento teológico.evangélica ou esquerdista?. de Peter Wagner. este prato caiu mal. evangelistas. o menu do Norte. Daquele encontro inicial surgiram muitos outros. Boletim 59-60). especialmente. Na mesa. independente e do movimento estudantil evangélico (CIEE). p. batista. 2004. fundou-se em Cochabamba a “Fraternidade de Teólogos Latino-americanos”. e assim por diante. constituído por Samuel Escobar (presidente). Ricardo Sturtz e René Padilla. John Stott e Michael Green (Inglaterra) e Leon Morris (Austrália). nossa missão na América Latina. o aborto. Estes elementos se plasmaram na “Declaração de Cochabamba” e serviram de norte ao “Comitê Deliberativo”. Reino de Deus. A década de 1970 foi prolífica e a influência da FTL se fez sentir muito cedo no solo da América Latina senão no mundo inteiro a partir. Carl Henry (EUA). se existiam dúvidas antes daquele Congresso Internacional de Evangelização de que havia novos convidados na mesa da família evangélica mundial. não podemos entrar nele neste momento. Vale destacar que. Seguia sendo gestada entre os membros da FTL uma teologia evangélica. voto e contribuições próprias ao mapa teológico. 279).como apenas um ano mais tarde. ética social. através de consultas regionais e nacionais sobre a igreja. de Lausanne 1974. de 12 a 18 de dezembro. 65 . que afirmam que “os evangélicos latino-americanos aportaram à Lausanne 1974 a preocupação pela justiça social” (BEVANS. Isto registram reconhecidos historiadores da Igreja global como Yeats e Bevans. Emilio Antonio Nuñez. para celebração ou temor dos que até então estavam acostumados a pôr a mesa e determinar o menu e os convidados. pentecostal. convidados de fora dos tradicionais centros de poder. essas dúvidas foram dissipadas contundentemente. dispensacionalista. Escobar atribui a sobrevivência da FTL desde o começo a “uma atitude caracterizada por três elementos: firmeza na definição quanto a uma base evangélica comum claramente expressada. Embora este capítulo seja significativo. havia 25 pessoas de nove denominações e diversas correntes teológicas: wesleyana. anglicana. Ofereceram-se “institutos teológicos pastorais” em todo o continente com teólogos como Saphir Athyal (Índia). Libertação e Bíblia. Em meio a debates e controvérsias internas. a busca de pertinência contextual e resistência à polarização por fatores extra-teológicos” (ESCOBAR. Pedro Savage (coordenador internacional). o homem e as estruturas da América Latina. convidados com voz. reformada. nesta ocasião. contras e invasões. acompanhada pelas exposições apresentadas. Os participantes. na Escola Mecânica da Marinha. E meu país não era exceção. CLADE II: Sabor e insipidez latino-americanos Já terminava uma década nefasta em nosso continente. Era inevitável até para cristãos conservadores a exigência de atender às preocupações sociais. que se realizou em Huampaní. milhares eram torturadas e torturados a poucas quadras do Monumental. publicou-se no ano seguinte no livro da FTL: América Latina e a Evangelização nos anos 1980 (México. A “Carta ao Povo Evangélico na América Latina”. em nosso contexto histórico” (BOLETIM FTL 6). em revoltas e repressões. puseram seus próprios ingredientes para gestar “Projeções Estratégicas” para os anos seguintes. Seu propósito central era “considerar juntos a tarefa evangelizadora que somos chamados a cumprir nas próximas décadas. Sidney Rooy (2007) se recorda que inclusive se determinou em 10% o máximo de norte-americanos que seriam bem-vindos ao encontro. Foi nesse contexto que a FTL convocou o Segundo Congresso de Evangelização – CLADE II. em mesas de trabalho.bíblica. Tampouco se recebeu dinheiro dos Estados Unidos: 40% dos recursos se levantaram na América Latina e o resto veio de igrejas amigas na Europa. Na Argentina. crescente pobreza e baixa esperança de saídas viáveis. receberam umas 500 páginas de material de estudo. Diferentemente de CLADE I. de 31 de outubro a 8 de novembro de 1979. 266 participantes de 39 denominações e 22 países se reuniram nessa semana sob o tema: Que a América Latina ouça Sua voz. Peru. As mortes por motivos políticos no continente somaram pelo menos 200 mil durante os anos 1970 e os desaparecidos uns 100 mil. comprometida com os desafios do sofrido contexto latinoamericano e que resistia às rígidas categorizações impostas de fora. 1980). mas no lugar de receber também estratégias pré-estabelecidas como havia ocorrido em CLADE I. a mesa foi posta desta vez por cristãos latino-americanos. 66 Missão Integral . econômicas e políticas de uma terra que sangrava em guerras civis e guerras sujas. enquanto comemorávamos os gols da Copa do Mundo de 1978. foram os mesmos participantes quem. A definição do menu e o convite aos participantes também correram por conta deles. e frente ao que percebem como um retrocesso no Movimento de Lausanne a definições de missão prévias ao consenso plasmado no Pacto de Lausanne. Mas a equipe da FTL não percebeu esta diversidade como uma surpresa negativa. repercutiu nos anos posteriores tanto dentro como fora da América Latina. E nele se vão nucleando com o passar do tempo pessoas de diversos continentes: ISAAC – Instituto para o Estudo da Igreja e da Cultura na Ásia. Seu primeiro encontro se realizou em Bangkok. as mulheres brilham por sua ausência. Costas. David Gitari e Kwame Bediako (Tizón). é resultado. David Lim (China Ministries International). entretanto. sabores — e insipidez — latino-americanos. e o segundo no México. É certo que Beatriz Couch contribuiu no 67 . O diálogo e mesmo a confrontação de diversas perspectivas eram vistos como valores geradores de compreensões novas e mais fiéis ao evangelho em terras latino-americanas. particularmente em relação ao valor das grandes campanhas evangelísticas ou a situação política em Cuba e Nicarágua. Vinay Samuel. entretanto. os líderes da FTL convocam e servem de catalisador inicial à INFEMIT – a Fraternidade de Teólogos Evangélicos da Missão no Mundo dos Dois Terços. Gutiérrez e Rooy como “evangélicos radicais”. Antes de nos despedirmos da década de 1980. nem nas abordagens. em grande parte. O nascimento de CONELA (a Confraternidade Evangélica LatinoAmericana) em abril de 1982. notaremos que embora se agreguem pessoas à mesa. em março de 1982. por exemplo. A insipidez. políticos e econômicos que vivia a América Latina. Houve. Não houve unanimidade nos discursos. consideração apenas tangencial dos problemas sociais. em cujo coração estava a FTL e líderes como Escobar. Padilla. Tom Sine. Começam a identificar este movimento fora da América Latina. em 1984.Era uma mesa latino-americana com os odores. Paralelamente. Infelizmente. Chris Sugden. com Meba Maggay (Filipinas). nem acordo a respeito de certos posicionamentos. Savage. não podemos expandir aqui este intrigante capítulo que segue aberto até o dia de hoje. segundo o historiador peruano Tomás Gutierrez. de setores que julgam como demasiado progressistas a teologia e a missiologia da FTL. Evangelicals for Social Action (EUA). Os líderes da FTL seguiram despertando a suspeita dos grupos conservadores do Sul e do Norte. Apenas na sexta assembléia geral. Nesse contexto teve lugar o CLADE III. organizado sob a coordenação geral de René Padilla. constituindo 20% do total 68 Missão Integral . desde sua fundação. colonização. Equador. como Secretário Geral. perguntas e experiência de campo. Sobre este Congresso se recorda Míguez Bonino: “[CLADE III] ultrapassa os limites da FTL para se constituir num verdadeiro ‘congresso protestante latino-americano’ tanto pela amplitude da representação como pela riqueza dos materiais e a liberdade da discussão. Entretanto. Eram pessoas que haviam sido nutridas pela teologia gerada pelo movimento e chegavam à convocatória com testemunhos. Estivemos. p. 1995. CLADE III: A mesa se amplia Esta assembleia coincidiu com CLADE III. A década de 1990 havia se iniciado com a queda simbólica do muro de Berlim e com a intensificação dos processos de ajuste econômico nos países devedores por parte das entidades credoras mundiais. evangelização. 56). recorda. presidido por Valdir Steuernagel. CLADE III não apenas convidou à mesa líderes evangélicos jovens e emergentes. descobrimento. com o apoio do escritório regional da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos e da MAP Internacional (Medical Assistance Programs). Em plenárias teológicas. Entre elas havia mais mulheres que em conferências anteriores. no Colégio Anderson de Quito. históricas. Esta sim era uma mesa diversa em mais de um sentido.encontro sobre aborto e que Elsie Powell participou em nome da FTL de encontros de IAPCHE (Associação Internacional para a Promoção da Educação Superior Cristã). missiológicas. O ano de 1992 também era significativo pelo cumprimento dos “500 anos” — de opressão. sociais e econômicas e em cerca de cinquenta oficinas e seminários. como também lhes abriu espaço para contribuições em plenárias e oficinas. na presença de um verdadeiro ‘evento ecumênico’ do protestantismo latino-americano” (BONINO. é que se incorporam ao comitê diretivo. Carmen Perez Camargo como vice-presidenta e Dorothy de Quijada como tesoureira. entre 24 de agosto e 4 de setembro. as primeiras mulheres não aparecem até 1992 no registro de líderes do movimento. segundo a perspectiva do que se lembra. os participantes — 1080 mulheres e homens de 25 países — enfrentaram o tema Todo o Evangelho para Todos os Povos desde a América Latina. A confissão. lançado por ocasião deste congresso. mas integradora da missão da igreja na América Latina. é inegável que são inumeráveis os projetos e as igrejas que foram impactadas por esta perspectiva não polarizada. havia pessoas alinhadas tanto com CONELA como com CLAI. 69 . quase todas aludiam ao fato de que era o primeiro encontro público entre as entidades em seus 10 anos de existência. então presidente da FTL. Ao mesmo tempo. p. surgiram entre e marcaram indelevelmente aqueles que participaram de CLADE III. p. frente ao qual o bispo metodista Pagura confessou abertamente sua omissão. às torturas e aos desaparecidos (CLADE III. com muita frequência. dicotomias que se apossaram de muitas de nossas igrejas e escolas de formação bíblico-teológicas nas últimas décadas deste século” (STEUERNAGEL. Introdução). palavra e ação. evangelização e compromisso com a justiça. explica que por meio do livro e do Congresso “se quer contribuir à superação cada vez maior da dicotomia entre corpo e espírito. possivelmente. Valdir Steuernagel. e o reconhecimento da responsabilidade na encarnação da missão no contexto latinoamericano e além. entretanto. No livro Missão da Igreja: uma visão panorâmica (1994). 2007. às ditaduras militares. Introdução). são as excluídas e os excluídos da mesa da igreja e da vida. Padilla qualifica como “um resultado importante” o encontro histórico de membros titulares de CLAI e de CONELA sobre “Unidade e Missão” (CLADE III. E. pensando em CLADE III é que Justo González afirma o seguinte: “É possível traçar na história deste movimento uma crescente consciência primeiro das dimensões sociais do evangelho e depois das dimensões estruturais dos problemas sociais e econômicos da América Latina” (GONZÁLEZ. Sidney Rooy (2007) se comove recordando que das 67 perguntas que o público apresentou aos painelistas aquela tarde. 237).das contribuições nas plenárias. 856-861). Os participantes do encontro indígena pré-CLADE em Otavalo (19 a 23 de agosto) também compartilharam suas conclusões no plenário. A ênfase na integralidade da missão à qual Deus chama seu povo. a consciência a respeito de quem. entre os convidados da FTL. foi de todos os presentes: a Declaração de Quito expressa a omissão do povo evangélico que havia sido demasiado silencioso frente ao aumento da pobreza. indivíduo e comunidade. Embora reste muito trabalho de pesquisa a respeito. CLADE IV: novas mesas são postas Novamente foi Quito o cenário de outro Congresso LatinoAmericano. Desta vez, o anfitrião foi o novo campus do SEMISUD, o seminário das Assembleias de Deus. Entre 2 e 9 de setembro de 2000, encontraram-se mais de 1200 pessoas de todo o continente embora não se esperasse 800. Aconteceu graças ao trabalho árduo de Freddy Guerrero, coordenador geral, e utilizando as casas de retiro e sítios de acampamento ao redor. O tema central foi Testemunho Evangélico no Terceiro Milênio: Palavra, Espírito e Missão. Novamente, houve plenárias teológicas e contextuais que foram reunidas no livro A Força do Espírito. Ouviram-se abordagens e perspectivas diversas que, desta vez, em vez de se juntar num “livro gordo”, publicou-se logo como livros temáticos na série CLADE IV. A tônica particular de CLADE IV foram suas consultas temáticas paralelas que tocaram assuntos tão variados como a Presença Cristã no Meio Acadêmico, Ministérios Editoriais, Educação Teológica, Missão Integral e Igreja e Ministério entre Crianças. Foram justamente estas duas últimas consultas que geraram não apenas reflexão e publicações, mas movimentos que se formalizaram na Rede do Caminho — de líderes e pastores em Missão Integral — e no movimento Juntos pela Infância, que, sob a coordenação logística de Red Viva, tem estado ministrando em todo o continente desde então. CLADE IV serviu de catalisador para colocar em cena outras mesas onde se sentiram particularmente convidadas pessoas, instituições e redes que tinham se nutrido do sólido menu bíblico e contextual oferecido nas décadas anteriores pela FTL. No ano 2000, ao virar a página do milênio, a FTL cumpria seus 30 anos de vida e presença no continente. O contexto tinha mudado, mas o desafio seguia sendo o mesmo. Conseguiria a FTL nutrir espaços de estímulo a uma reflexão que fora tanto pertinente como bíblica, tanto propositiva como denunciadora, tanto de umas como de outros, tanto local como global? (Ruth Padilla DeBorst) 70 Missão Integral Conclusão Historiar a missão integral como um princípio não é possível, porque ele nasce no coração de Deus, por isso é atemporal, ainda que se revele na Palavra e no tempo, sendo gravado no coração de homens e mulheres escolhidos por Deus. A história da missão integral é, antes de tudo, a história de um movimento que tem múltiplas faces. Nessa unidade observamos apenas algumas delas, partindo das lacunas deixadas pelo movimento missionário que invadiu o século XX, até as iniciativas de outros movimentos, como o de Lausanne, no sentido de tentar preencher essas lacunas, pelo resgate da missão em sua integralidade. Isso chega, sobretudo à América Latina, como uma proposta que visou “mudar a cara” da igreja e da missão, em busca de transformação da realidade. Nasce uma hermenêutica missionária a partir da América Latina, e movimentos como o CLADE foram expressões disso. Mas esse movimento também deixou lacunas. Na unidade seguinte, veremos, agora através do ensaio que escrevi sobre CLADE V, que o risco de permanecer como discurso vindo apenas da plataforma ainda permanece, especialmente para as novas gerações que se encantam com missão integral, e procuram vivê-la na prática. Referências BEVANS, Stephen; SCHROEDER, Roger. Constants in Context: A Theology of Mission for Today. New York: Orbis Books, 2004. CAVALCANTI, Robinson. Lausanne: caminhos e descaminhos do evangelismo. In: Boletim Teológico, n. 12, ano 4 (Agosto de 1990), pp. 29-36. CLADE III. Todo el Evangelio para Todos los Pueblos desde América Latina, 868. Quito, Ecuador: Fraternidad Teológica Latioamericana, 1992. COSTAS, Orlando E. Evangelización contextual. Fundamentos teologicos y pastorales. San Jose, Costa Rica: Sebila, 1986. ESCOBAR, Samuel. Lausanne II e a peregrinação da missiologia evangélica. In: Boletim Teológico, n. 12, ano 4 (Agosto de 1990), pp. 15-28. 71 ________. (ed.) Acción en Cristo para un continente en crisis. 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Por essa razão. são aqueles permeados pela personalidade e pensamento próprios de seu escritor. 1992. Textos que “arrastam” leitores. A objetividade é uma pretensão cansativa. que se aventure em relatar percepções sobre um evento como CLADE (Congresso Latino Americano de Evangelização). Ademais. interpreta.Missão Integral Unidade 6 Panorama Histórico (2): CLADE V Introdução Pode um historiador ser objetivo e desapaixonado? Não faz ele suas investigações como alguém que busca uma carta de amor perdida. esquecendo-me de que. esquecidos ou não devidamente trabalhados – de que maneira CLADE V matou minha fome deles? Segundo. 75 . entediante e desinteressante. como alguém que busca o testamento esquecido. carta que faria o amante feliz para sempre. Minhas percepções aqui 1 Rubem Alves. analisa. Equador. a escrita que se resume à terceirização – notas de rodapé técnicas sobre o que outros já fizeram e como aplicaram as regras consagradas que sua ciência celebra – é. se aplica bem a este ensaio. no mínimo. Citado por José Miguez Bonino em sua “Carta aos jovens historiadores do protestantismo latino-americano”. Primeiro. e não um cientista “frio”. que Miguez Bonino faz de Rubem Alves. interfere e também cria. porque se trata de uma busca por temas perdidos. porque cheguei a um estágio de minha vida como pesquisador em que tenho me esforçado para não mais me cercar da pretensão à objetividade. em geral. está um sujeito: que pensa. por trás da análise de um objeto. e certamente permanecerei sob seu impacto por algumas semanas após seu término. fruto de um olhar: preliminar. Objetivos 1. 76 Missão Integral . uma vez que me encontro em meio ao evento enquanto inicio a escrita desse texto. para além dele. Analisar esse breve e pessoal relato histórico sobre CLADE V.inscritas serão. Refletir sobre novos desafios que foram plantados no congresso e que nos levam a uma reflexão sobre a missão hoje. 2. admitidamente afetado e prematuro até. assim. Reconhecer os limites e possibilidades para a teologia de missão latino-americana à das discussões de CLADE V. 3. mas também em seu conteúdo prático. portanto. foi resultado de um esforço conjunto de regiões. O congresso teve a preocupação de provocar diferentes posturas em seus participantes ao longo dos cinco dias que ali estivemos. assim. escutar. talvez. participativa e celebrativa. deixando-se conduzir pelo Espírito Santo em convivência irênica com as múltiplas vozes e pensamentos que nos ladeiam em nossas diferentes “Américas” dentro da América Latina. de diferentes países da América Latina. Mostra.Primeira aproximação: cenários e posturas Reunimo-nos em CLADE V. na Comunidade Vida Abundante. de modo prático. Isso resultou em uma programação dinâmica. a saber: recordar. esteja em sua metodologia. de evitar colisões entre mundos e percepções de mundo. aprendemos a promover mais encontros possíveis sem a urgência de produzir grandes consensos dogmáticos e. e núcleos de reflexão que para sua concepção e desenvolvimento contribuíram. Isto. tiveram com o tema que lhe serviu de guia. A dificuldade. a partir do trabalho realizado pelos núcleos locais desde o final do ano de 2011. não apenas do ponto de vista organizacional e logístico. mais que qualquer outra edição deste congresso na história. como 77 . diversa. de uma caminhada. porém. Guia-nos. em São José. resultante de uma construção. uma intencional conexão com a necessidade de uma teologia que seja ao mesmo tempo dialogal. A novidade desta edição de CLADE começou com a prévia e estreita relação que seus participantes. qual seja. pode estar em dar coesão e concretude a anseios. agradecer. A maior virtude. CLADE V. a de abrigar um processo democrático e plural desde a formação até a realização do evento. como corolário. Quem sabe – como remédio ao irremediável – CLADE V possa ficar marcado como um congresso em que. países. aberta. bíblica e contextual. é claro. Costa Rica. expectativas e posicionamentos tão heterogêneos. tem suas virtudes e talvez alguns problemas. responder e celebrar. mas tão importantes no tempo em que vivemos. que se propôs a olhar para o passado de forma menos nostálgica. sob o lema: “Sigamos a Jesus em seu Reino de vida. Espírito Santo”. de um processo inacabado – reconhecimentos óbvios. nos percursos metodológicos e na dinâmica. pós-modernidade. a voz e presença dos chamados “pioneiros” da FTL se fez perceber menos pela plataforma – com exceção do primeiro dia. talvez em função dessa atenção. juventude. Sidney Rooy e Mervin Brenneman foram reunidos na plenária com a missão de recordar a história e importância dos CLADE’s (da primeira à quarta edição) – e mais ao redor das mesas. quando René Padilla. identidade. e mais das histórias. é possível também ressaltar que falar de CLADE V é tratar menos do fervor do palco. interculturalidade. E essa é uma primeira nota positiva de CLADE V: logo de cara. testemunhos. experiências e amizades partilhadas nos bastidores. “talleres”. Em sua dinâmica. Juam Stam. reflexões em grupo. não só pela interação contínua dos participantes nas mesas – como ficou configurado o plenário a exemplo do que se fez no Congresso de Lausanne 3. seja nas temáticas adotadas.já vi em outros encontros do gênero. Trilha temática: sinais dos tempos A preocupação com os sinais dos tempos também se evidenciou na trilha temática do congresso: igreja. deu um adeus à nostalgia. Foi dado mais valor aos relacionamentos. Samuel Escobar. 78 Missão Integral . empoderar e dar oportunidade de protagonismo às novas gerações nos novos rumos da teologia e da missão. mas com os pés no presente e os olhares voltados aos desafios adiante. alguns deles promovidos pela própria FTL. “refrigerios” (pausa para café) e consultas temáticas. Dessarte. meio-ambiente. política. sociedade. como um convite à comunhão e interação. Pedro Arana. das grandes conferências oferecidas por renomados e icônicos palestrantes. ao mesmo tempo. De certa maneira. Nesse sentido. nas novas utopias que precisamos criar. o congresso parece ter seguido tendências dessa nova geração. Valdir Steuernagel. na Cidade do Cabo em 2010 – mas pelos inúmeros intervalos presentes no programa. procurou dar espaço a diferentes expressões de arte. nos bastidores. a partir dos CLADE e do trabalho da FTL. Isso demonstra a preocupação da FTL de honrar seu passado e. deixando claro que recordar é preciso. mesclando-as com momentos de celebração comunitária. como disse Ruth Padilla em sua palavra de abertura. de motivar. do mesmo vinho. A morte ou obsolência de antigas utopias. e a forjar caminhos de fidelidade a Deus que sejam adequados ao momento histórico atual. Formulação de novas utopias Para que servem as utopias? Para caminhar. por isso resolvi expandir esse assunto um pouco mais adiante. mas que tende a fazer teologia a partir de redomas quase intransponíveis. Jamais me esquecerei das palavras de Pedro Arana. novas utopias para caminhar não surgem da mera reprodução de perguntas e respostas de nosso passado. do mesmo Espírito. fóruns e palestras oferecidos no congresso. economia. em sua busca pela fidelidade à missão de Deus em variadas frentes. Esse é um desafio e tanto para uma geração que cada vez mais tem falado em diálogo. surgiram afirmações. Fomos desafiados por ela a articular novas utopias para novas gerações.. mencionarei algumas que me marcaram de modo particular.. desafios e provocações. con-panes” – isto é. aprenderam a fazer teologia a partir da amizade e do companheirismo.educação. de onde se manda recados “bem dados”. esses foram alguns dos quais se ocuparam os diversos convidados das consultas. disse Ruth Padilla em uma das palavras de abertura do congresso. sexualidade. Temos ainda muito a aprender para construir uma cultura de diálogo. espiritualidade. no horizonte das tendências 79 . A partir dessas instâncias. de batalhar ou fundamentar discursos e práticas (ou práticas discursivas) a partir de conversas francas. missão.. somos filhos do mesmo Senhor e encaminhados para uma mesma missão. gênero. já no último dia do evento: “Nosotros somos compañeros. Daqui para diante. etc. mas sem muita disposição para sair (fora de nossos próprios círculos. Companheirismo e diálogo Ouvimos que a história da FTL é a história de pessoas que.. enquanto partilhávamos da comunhão e do pão em nossa mesa. Ou seja. de compartilhar. partilhamos do mesmo pão. abertas. humildes. na FTL e além dela. de temas tradicionais a temas mais hodiernos. guetos ou tribos). liturgia. globalização. em que somos chamados. E uma nova utopia para um tempo como o que atualmente vivemos talvez seja a de uma solidariedade e uma compaixão que ultrapassem os limites do virtual e do discurso decorado. são. deve nos fazer buscar novos lugares (“topos”) para fazer circular a mensagem revolucionária do reino de Deus e sua justiça em um mundo que está constantemente se transformando. 80 Missão Integral . e seguindo essa trilha. a partir dos encontros possíveis com nossas histórias e vivências cotidianas. mantém viva a Palavra em nosso mundo. Dessa forma. a abraçar a condição e a conviver com o próximo. encarando o próximo. que permeiam as Escrituras. Isso. desafia e nos ajuda a amadurecer como gente e na fé. não como pior ou melhor. porém. 2011). ao lado da ação iluminadora do Espírito. é o que. tampouco como inimigo. Um adeus às metanarrativas e boas vindas às narrativas À procura de uma proposta. senti-me desafiado a estimular em meu próprio contexto a criação de uma cultura teológica de humildade e modéstia. que ele estava lançando no evento. Argentina) falava sobre o livro El Jesus del pueblo: para uma cristología narrativa (Ed. sim. Impressionou-me não apenas a genialidade didática do professor Miguez.humanas no tempo. Kairós. a nos posicionar sobre as questões de nosso tempo. Disse Miguez que as narrativas. incitamo-nos mutuamente a aceitar as diferenças. pretender absolutizar nossas posições. ao que chamaram de “Espaço verde”. caí casualmente (e felizmente) em uma sala onde Nestor Miguez (ISEDET. avançando e penetrando nas intrincadas relações do cotidiano em nossos contextos. Esse talvez seja um dos grandes desafios do seguimento de Jesus em todas as épocas: aprender a aceitar. abertas e convidativas à interação e complementação de seus interlocutores. sem. por natureza. antes. aliás. em uma das tardes do evento. a respeitar. mas a profunda atualidade e relevância dada ao assunto. mas como aquele que nos interpela. A comunidade de fé é uma expressão pormenorizada desse nosso desafio no mundo. e CLADE V só fez reascender. 4. divergências postas à mesa. em si. No que concerne à consulta propriamente dita. 2. foi uma expressão disso: muitos embates. Na consulta temática na qual participei em três dias do evento. 3. o educador cristão. em parte coletiva. Reconhecer a Jesus como a verdade e mote de nossa educação cristã. alertados sobre a possibilidade de promover mais encontros e diálogos sem a necessidade primária de ter na agenda o intuito de formar grandes consensos.Pluralidade. como sujeitos do conhecimento e da história. no vértice das oportunidades pós-modernas para a educação cristã. precisa: 1. entendendo-as sempre como incompletas aproximações desta verdade. entendemos que precisamos desenvolver espírito irênico. Buscar uma postura de humildade. algumas proposições que pessoalmente extraí de nossas discussões sobre a relação entre a fé e educação cristã e a pós-modernidade foram que. tolerância e verdade Investirei propositadamente um pouco mais nesse tópico. a do professor) que tenha suas raízes mais no exemplo e a integridade. coloca à prova suas percepções como educador e pesquisador cristão. fomos desafiados a colocar nossos valores teológicos sob suspeita e avaliação constante e. que será o último dessa breve incursão. que um dos temas recorrentes em 81 . Antes. chamada “A oportunidade pós-moderna para a educação cristã”. a autonomia dos educandos e suas experiências. mas sempre com respeito e deferência às opiniões do outro. ao mesmo tempo em que. É perceptível. que em uma imposição de cima para baixo. em termos freireanos (Paulo Freire). Inspirar. portanto. Comprometer-se com a construção de uma autoridade (no caso. e como corolário. de tolerância e respeito com as diferenças – até porque a consulta. mas que tem me incomodado bastante nos últimos dois ou três anos. construção em parte pessoal. além disso. que se converta em ações de respeito e aceitação da diversidade. ao modo de Jesus. no fim. afinal. gostaria de tecer algumas considerações nesse espaço. enquanto a metafísica. mesmo que de modo periférico. violência e exclusão. No âmbito plural das religiões contemporâneas. mas não se faz presente. avançou mais que Lausanne III2 nesta questão – e a Carta Pastoral é um pequeno exemplo disso –.nossos debates foi o tema da verdade. que compreendiam ser dever do educador “guardar a verdade”. posso estar abraçando ou um vale-tudo relativista improdutivo e sem sentido. caso a relevância do testemunho cristão seja ainda uma preocupação da igreja no atual século. 82 Missão Integral . “A Verdade Verdadeira” (pleonasmo desesperado). ou ingressando na armadilha de. Não se confunde com os chamados “fatos” do cotidiano e da história. ela será mais um instrumento de separação. sempre ela. o orgulho e a pretensiosidade reinarem em nossa “vontade de verdade”. 2 Em meu primeiro livro. tendo como mote a evangelização. depósito do evangelho. Trabalharei esse tema também nas unidades 15 e 16 desse curso. que ela não existe. ainda nos deparamos com a remanescente questão da “Verdade”. de fato. Dizer que a possuímos como quem possui um bem material é insanidade – embora não das mais improváveis. do conhecimento ou da própria fé. por entender que CLADE V. é porque ela já passou por ali. e que só se oferece por relance. pp. Dada a limitação do saber e da experiência humana. talvez. e suas intermináveis variações. Não se detém em palavras. grandes perigos pós-modernos na visão de alguns ali presentes. 179-195). Se alegarmos que ela é atingível em sua plenitude ou dissermos. ter de entrar na discussão de qual verdade é. abordo topicamente o tema da verdade relacionando desafios pós-modernos com a proposta do reino de vida e amor de Jesus. deixando pegadas. como percepção de canto de olho. a verdade? Aquilo que escapa até mesmo ao mais sincero dos olhares seja pela via da experiência. em contrapartida. Humanos. Se defendo. que há a “minha verdade”. ainda que relutante. Quando se diz “aqui está ela”. no domínio da religião. graças a Deus (2013. em detrimento. nos enganamos por não reconhecer o caráter contingente de nossos pressupostos – que em parte tem provocado a insanidade da posição anterior. embora não necessariamente em conflito. Sobre isso. O que parece ser. com a “sua verdade”. porém. mas que ainda precisamos avançar mais. conceitos ou ideias. associado com o pluralismo e o relativismo. nem pôr. tal teoria se faz disseminar entre nós por meio do senso comum de que “contra fatos. caem em nossos colos prontos para serem divulgados. aquilo que recebemos como “fato”. isto é. não se trata de ciência exata aqui. que não “caíram no colo”. nem foram “dadas” e sim produzidas pelo olhar ou perspectiva e traduzidas em linguagem. assim. são construções. Logo. notado e narrado por alguém. retomo aqui o algo que escrevi em outro lugar: Uma das ideias das quais nos abastecemos – os historiadores mais ainda – é a de que fatos existem lá fora. que surge precisamente desse olhar para a realidade. por uma pura observação. à medida que passam pelo filtro do olhar. já que o fato “fala por si mesmo”. sem tirar. Fatos. mas uma criação proveniente do olhar humano. que pressupõe a pura recepção da mente humana dos dados da experiência. nem modificados pelo olhar humano. para que um fato seja reconhecido como tal se teria de ignorar o tal olhar. a recepção e o conhecimento. e nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é. Não foram mexidos. Assim. mas humana (melhor deixar claro. Fatos. Para muitos. contra qual não se poderia ter argumento. sim. surge precisamente de outros argumentos. emergem das coisas. que 83 .pois um fato – refiro-me a fenômenos humanos e não aos de ordem física ou matemática – é sempre um fato construído. uma das ideias é a de que um fato não é um dado proveniente do mundo externo. segundo essa visão. demarcando uma continuidade entre o dado. Ademais. há muito tempo existem argumentos levantados por diferentes vozes contra tal percepção de um fato. informações que emanam naturalmente dos ocorridos e que. Para estes. fatos são “dados”. contra fatos há argumentos – sei que isso irá incomodar uma meia dúzia que costuma usar esse ditado no sentido oposto. É óbvio que isso se aplica ao campo do conhecimento. nisso tudo ainda se propaga a teoria da “tabula rasa” de David Hume. não há argumentos”. Aliás. antes que alguém venha dizer que acredita ser um fato que 2 + 2 é igual a 4). ou informações suscitadas por alguém. como podem ser os ovos. Um fato pode ser entendido genericamente como um fenômeno humanamente reconhecível. Até por isso. Repito. Como resultado. Embora muita gente ainda pense assim. e ordenado a partir do tempo e do espaço. em um enunciado. ele disse “eu sou”. especialmente quando continua a confundir verdade com doutrina ou sua experiência (religiosa) de Jesus. Qualquer “resposta” dessa natureza seria como que decretar a morte da própria verdade. Para que seja verdade. Lewis. Não. Filho de Deus. Não se pode. ainda segundo ele. a verdade e a vida”. E quem “é” é. Esse foi o recado para Pilatos. “Deus é amor” –. mas. não joga todo o peso na precisão do discurso quanto no exemplo de vida humana. Voltemos agora ao assunto principal. é o mesmo que assassiná-la. No âmbito do cristianismo. é preciso ser livre de qualquer dominação. não nos esqueçamos o que disse João. eu presumo um tanto exageradamente. eliminar todas as interpretações naturais. “o que é a verdade?”. por fim. por conseguinte. de Deus 84 Missão Integral . mas o Espírito da verdade. ainda que a verdade (pessoa de Cristo) seja a força motriz da religião cristã – alguns diriam que é o amor. como defendeu Paul Feyerabend em seu livro Contra o Método (2007). mostra a que veio. e continua sendo o recado para qualquer um interessado na questão da verdade. não deve ser usada como arma. pois reduzi-la com um “assim é”. no caso de Jesus. Estar em posse da verdade significa poder manipulá-la. O relacionamento. é uma pessoa chamada Jesus de Nazaré. transformando-a em algo diferente de si mesma. por mais que se tente. que é o único a possuir tal verdade – porque nenhuma religião a “possui”. força de argumento ou meio de imposição. não é a pessoa que determina. Assim. Verdade também não é conceito. e isso basta e já esclarece muita coisa. parafraseando C. S. conforme relato de João). Jesus não responde. O que significa. seria autodestrutiva. E se a verdade ali germina. que declarou ser “o caminho. por não querer cometer suicídio. inacessível como “coisa em si” à linguagem e ao conhecimento. que não faz sentido dizer que o cristianismo é a única religião verdadeira – pois todas são “verdadeiras” no sentido de que buscam a verdade. Por isso é que. ou. o caminhar com e a vida são mais importantes que a certeza do saber e da doutrina correta. mas deixou a pergunta em questão (quando feita por Pilatos. menos ainda. sem resposta pelo menos no sentido epistemológico-filosófico do termo.naturalmente resulta em interpretação e. é aceitar a “oferta do Bruxo”. embora muita gente ainda não entenda. dito de outro modo. E toda tentativa de fazê-lo. no minuto seguinte. aquilo pelo que o Senhor anela no ser humano: Não suporto os encontros religiosos de vocês. na verdade. que na Bíblia não se assevera em lugar algum que o cristianismo é essa religião – por isso digo. Estou cheio dos seus congressos e convenções. versão histórica. falar em “verdadeira religião” é preciso recordar. das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. deixam a Palavra entrar por um ouvido e sair pelo outro. Compreender isso.o de qualquer outra divindade que componha seu panteão pessoal. quando. Não me interessam seus projetos religiosos. O primeiro vem do profeta Amós. e. de Eugene Peterson) e paro por aqui. Coerência é tudo! Quem apenas ouve e nada faz é como quem se olha no espelho. se lembramos bem do finalzinho do Sermão do Monte. esquecendo o fundamental. como “a religião verdadeira”. também crucial para Jesus – que é a coerência entre o falar e o viver. com a vida: Não se enganem. que trata de algo fundamental em sua Carta – e. seus lemas e alvos presunçosos. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. fingindo-se de ouvintes. num certo tom paradoxal. já nem se lembra da 85 . Eu quero integridade – rios de integridade. O segundo vem do apóstolo Tiago. Se ainda quisermos. Cito apenas dois exemplos das Escrituras Sagradas (na tradução A Mensagem.21-24). por enquanto. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. mesmo que em um nível mais basilar possível. é fundamental tanto para o diálogo inter-religioso. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos. ainda que de passagem. num manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do teatro e da hipocrisia sua morada permanente em termos de religião. que ser seguidor do Cristo não me leva (não mais) a forçosamente ter que defender o cristianismo. mostrando que religião é menos o que se professa e se ritualiza e mais o que e como se faz. por compulsão. como para o testemunho de fé num mundo pluralista. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero (Am 5. institucionalizada e departamentalizada desse seguimento. foi a do teólogo católico espanhol Juan José Tamayo. em minha opinião e de outros que. a assistiram. o Pai. sem ser mero ouvinte – essa pessoa vai longe e será abençoada por Deus. termino este ensaio perguntando: 86 Missão Integral . Esse tipo de religião é mera conversa fiada. com grande entusiasmo e. postura crítica. Esta e outras declarações causaram espécie em alguns dos participantes – como se pode ler pela visão mais crítica (e bem fundamentada.própria aparência. pois o dogma. Novos diálogos? O gran finale na voz de um católico Para encerrar. como defendeu. que agrada a Deus. a melhor palestra de CLADE V. sobre o papel desempenhado pela FTL. porém. Religião de verdade. com a qual não pretendo entrar em acordo ou desacordo aqui. está em ser uma plataforma de diálogo. encerra a possibilidade de pensar. mas para promover o encontro”. em acordo com os (novos. Ressaltou isto quando observava que o papel e vocação da FTL. Convidado para ser observador-participante do evento e a fazer uma leitura teológica. Qualquer um que se considere “religioso” e fala demais está se enganando. ele nos lembrou uma vez mais da necessidade (aqui reiterada) de sermos mais modestos e menos dogmáticos em nosso modo de fazer teologia. Mas quem dá atenção à mensagem de Deus e a vive na pratica – a verdadeira liberdade – e nela se firma. ao mesmo tempo. o que atualmente significa migrar do pensamento único ao pensamento plural. e não motivos para distanciamento e/ou enfretamento bélico. prosseguiu ele. Uma das declarações de Tamayo neste sentido foi de que o diálogo – diferentemente do que se preconiza no modelo proselitista de evangelismo – “não existe para convencer ou converter o outro. mas nem tanto) rumos da sociedade.22-27). ao que lhe parecia. é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção do mundo sem Deus (Tg 1. Dessa forma. diga-se de passagem) exposta por Juan Stam em seu relato no número 21 de Práxis Evangélica. as diferenças podem ser encaradas como formas de melhor compreender nossa fé. Inspirado por algumas questões postas à mesa por Tamayo. em uma das mesas do de CLADE V. e privilegiar argumentos que não redundem mais em confusão do que esclarecimento. como foi mais radical. é essencial e deve ser perseguido. ainda que como ideal. que diz (referindo-se a uma atitude de Voltaire): “Eu desaprovo o que você diz. 199). que dirá com o próximo?! (6) Estar aberto e disponível ao relacionamento. Se já fizemos (e continuamos fazendo) isso com Deus e com a Bíblia. apocrifamente atribuída a Voltaire. Nesse sentido. Só que Jesus não apenas foi um modelo nesse quesito. para não colocar na fala do outro aquilo que ele não disse. para haver diálogo é preciso: (1) Aprender a separar o campo pessoal do campo das ideias.que mais é preciso haver. Por mais quimérico que isso pareça. mas defenderei até a morte o direito que você tem de dizer”. mas que foi escrita por uma estudiosa de seu pensamento. Isso significa: ser honesto intelectualmente e criticar as ideias do outro levando em consideração o lugar a partir do qual elas foram produzidas (por mais distante que ele esteja de nós). Segundo o que entendo. Difícil. e não outra instância qualquer. seria proselitismo. seja lá o que for esse pensar. (4) Aceitar que o outro pode permanecer convicto de seus ideais. em The Friends of Voltaire (1906. vale outra vez lembrar a frase. a despeito dos meus argumentos e posições. Fui chamado a esse mundo para ser testemunha de Cristo e não para fazer prosélitos. com essas sete pistas ou ideias soltas que ofereço abaixo. ler com cuidado e interpretar com esmero e discernimento. para que o diálogo exista. (5) Ouvir atentamente. p. você pode estar pensando. quando disse que devemos amar aos nossos inimigos e quem nos persegue – que dirá aqueles de quem apenas discordamos. nesse outro caso. então. e não outra coisa? Arrisco-me aqui a ser pragmático e idealista (se é que é possível a convivência entre os dois). independente da discordância no campo das ideias. beirando o reducionismo. Melhor palavra. O diálogo existe pelo diálogo e não para que o outro se converta à minha “religião”. não? 87 . Evelyn Beatrice Hall. inventada por quem critica só para poder “ter argumento”. (2) Respeitar o direito alheio de dizer o que pensa. especialmente se considerarmos a realidade. E é verdade. (3) Resguardar a crítica à matéria do debate. Apenas Deus é absoluto. Diálogo é lugar para quem. humildes o suficiente para se admitir como tais. (Jonathan Menezes) 88 Missão Integral . Isso significa que a conversa pode terminar. e Deus não tem a intenção de partilhar seu absolutismo com ninguém. Minha oração é que rumemos. E precisar de Deus implica em não prescindir do outro. cosmovisões e nossas imaginações (BELL. não há diálogo sem a presença do outro. especialmente palavras que as pessoas usam para falar sobre Ele. quando conheceremos como também somos conhecidos. 2005. mas o assunto nunca se esgota ali.(7) Entender que temos a tendência de tratar o diferente como ameaça. Até lá. e Senhores do absoluto. Termino com uma frase que meu amigo Antonio Carlos Barro disse certa vez: “Publicar seu pensamento é convidar o pensamento do outro”. como FTL. nós somos aqueles criam barreiras e reforçam as existentes. não há lugar para donos da verdade. rumando para aquilo que é Perfeito. Seres parciais. e em parte profetizamos”. Não posso (falo agora por mim) estar apto ao diálogo sem antes admitir minhas inaptidões naturais para ele. p. em todos os sentidos. precisamos (e muito) de Deus – quem dera se toda ciência admitisse isso. 23). cérebros. isso é o que somos. para novos desafios e novos diálogos. Somente com o Senhor estão a Verdade e o Absoluto. Rob Bell disse o seguinte: Nossas palavras não são absolutas. porém. Sobre isso. admite que “em parte conhecemos. No diálogo. Absoluto. E isso é uma das coisas com a qual pessoas têm se debatido desde o princípio: Deus é maior que nossas palavras. como Paulo. O verdadeiro diálogo é uma conversa que se dá entre aprendizes audazes. Não há vida sem relacionamento. E se for para ser assim. A missão integral (movimento) não existe para salvar o mundo. 3. pergunto: existe alguma ação – por mais eficaz e abrangente que seja – capaz de transformar toda a realidade? Existe algum movimento capaz de realizar integralmente a missão? Um movimento.. por sua própria natureza. A verdadeira corrupção. 4.10-16). porém. contra uma falsa “corrupção”.Conclusão Para finalizar este panorama sobre os CLADEs e a missão integral. Não servimos a um Deus sádico. que assim seja. Nossa missão de amar as pessoas indistintamente implica em romper com as barreiras de lícito e ilícito. A missão é de Deus e não nossa. e que tanto tem se 89 . 6. 2. com os pés no chão. saber que: 1. 5. Mentes e corações corrompidos geram imposições falsas. mais e menos “espiritual” do nosso universo religioso (ler Tg 1. contra as intolerâncias e pragmatismos religiosos de nosso tempo. deixamos de fazer o bem que nos cabe. Precisamos atuar em parceria. Todas as coisas passam a ser santas para aqueles que são santos no Senhor. Nossas ações são eficientes (para o Reino) em sua insuficiência. parafraseando Júlio Zabatiero. A missão é feita por e para deficientes. sagrado e profano. precisa ser combatida. 7. mas a um Deus de amor. graça e misericórdia. Ela não é o messias dos novos tempos. 8. Devemos discernir onde o Espírito está soprando e agindo. miséria e dor.. Muito preocupados em “não-fazer” uma série de coisas. essa corrupção que gera injustiça. Devemos lutar para que a vida seja preservada. É Ele que “dá o tom”. não deixa grandes monumentos. Precisamos nos desfazer das ilusões que gravitam em torno da teologia e prática da missão integral e. pela justiça. EUA: Smith Elder & co. dignidade e igualdade entre os seres humanos? Não basta falar de esperança. FEYERABEND. Velvet Elvis. Buenos Aires: Ediciones Kairos. HALL. que paralisa a força transformadora da missão escatológica do evangelho e termina sacralizando o status quo. Rob. onde não haverá mais lágrima. San Jose. The friends of Voltaire. é negar essa mesma esperança. Mas. 2005. choro ou dor. e até lá? Empunharemos a bandeira da esperança apenas como um ideal vazio. pelo amor. GONZÁLEZ. 2001. California. parte de nossa missão é não nos omitir perante as escolhas que o próprio Deus fez: pela vida. Justo. é preciso lutar para que ela se mantenha viva. Falar de esperança para um novo mundo. Evelyn B. 1906. Contra o método. 80). 1986. São Paulo: Editora UNESP. Evangelización contextual. alegria e esperança. Michigan: Zondervan. 2007. A esperança para a redenção do mundo sem a ação redentora no mundo é uma blasfêmia (COSTAS. Grand Rapids. Como disse. sem participar em esforços concretos para fazer desse mundo um melhor lugar de vida. 90 Missão Integral . com efeito.proliferado no nosso país. Como afirma Orlando Costas. Referências BELL. pela justiça. 1986. COSTAS. paz. Mapas para la historia futura de la Iglesia. Paul. é fugir para uma abstração vaga do outro mundo. ou a vivenciaremos de maneira concreta. Esperança de dias melhores na “casa da humanidade” e de uma vida vindoura na eternidade. Costa Rica: Sebila. Orlando E. O signo de esperança para o mundo que provê o Espírito na comunidade eclesial se confirma no serviço libertador do povo de Deus em favor da humanidade. p. Fundamentos teologicos y pastorales. Repainting the Christian Faith. nas lutas pela paz. 2010. Eugene. Jonathan. PETERSON.LEWIS. 2013. A Bíblia em linguagem contemporânea. Viçosa: Ultimato. 2005. Humanos. São Paulo: Martins Fontes. Em busca de uma espiritualidade encarnada. S. MENEZES. O novo rosto da missão. Luís. A abolição do homem. LONGUINI NETO. São Paulo: Vida. A Mensagem. C. graças a Deus. 91 . 2002. Rio de Janeiro: Novos Diálogos. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 92 Missão Integral . Porém. a tendência é que a ação da Igreja seja restrita a “acrescentar pessoas ao seu rol de membros”. que. a rever nossos conceitos de Igreja. ainda que não pareça. Reino de Deus e Mundo Introdução A articulação teórica entre os conceitos de Igreja. o que torna não somente sua tarefa missionária complicada. Assim. ainda que não de forma plena. Reino e também de mundo. segundo Jesus Cristo. quando se adota a perspectiva de que a Igreja é o Reino de Deus. podemos concluir que sua ação missionária não pode se resumir apenas a apontar para o mundo que há de vir – afinal de contas. por exemplo. mas de maneira natural-inconsciente. o Reino já se encontra presente. ainda que não seja feita sistematicamente. 93 . uma percepção mais integral e integrada dessa relação nos leva. como prejudica sua imagem perante o próprio mundo.Missão Integral Unidade 7 Igreja. obrigatoriamente. Eis o eixo central dessa reflexão: quando entendemos a Igreja como sinal do Reino de Deus no mundo. gera nas igrejas uma postura determinada. Reino de Deus e mundo. tem sim uma visão crítica sobre a conduta de uma igreja que apresenta os sintomas da “síndrome de ser o reino”. 94 Missão Integral . conceitos. Buscar pistas. Integrar as perspectivas teológicas de Reino. 3. mas presente no mundo sem compartilhar de seus modus operandi. Mundo e Igreja à luz da missio Dei.Objetivos 1. Reconhecer que o “não ser do mundo” de Jesus não significa ser apartado do mundo. 2. diferenciações (na bíblia e teologia) que produzam e façam crescer em nós uma “consciência do reino”. . (. É Jesus Cristo e. 83). material e socialmente. é a graça. Howard Snyder e Robinson Cavalcanti: O Reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível por meio de sinais concretos que mostram que Jesus é o Messias. a saúde. ele foi inaugurado na pessoa e obra de Jesus Cristo. O reino é presente e também futuro. por meio da igreja. podem defini-lo de fato. 2005.) Ao se confessar Jesus Cristo como Senhor e Salvador.. Em antecipação da consumação escatológica do final dos tempos. É claro que todas as tentativas de definição do reino. mas também física e psicologicamente.) Envolve tanto a soberania de Deus como a antecipação na história dessa nova ordem e a esperança de sua consumação final em glória. Ele é concreto e deste mundo como o pó nos pés de Jesus ou o vento da Galiléia em 95 . 203). terreno e também celestial. Por enquanto. desde que bíblicas e teologicamente bem fundamentadas. (. p. a reconciliação de todas as coisas nele. respectivamente dos autores René Padilla. reconhece-se a ele como o reino em pessoa: quer dizer. escondido e também em processo de manifestação. A consumação do propósito de Deus se realizará no futuro. A submissão ao Senhor do Reino implica na incorporação ao seu corpo. Orlando Costas.. correspondente ao senhorio e propósito cósmico de Deus de reconciliação e restauração de toda a criação. Está ativo no meio do povo.20-21). É uma nova realidade que entrou no centro da história e que afeta a vida humana não somente moral e espiritualmente..O Reino de Deus Vou começar com uma tentativa pessoal de definição: O reino de Deus é uma realidade presente-futura. porém sempre parcialmente. mas aqui e agora é possível vislumbrar a realidade presente do Reino (PADILLA. podemos notar em outras quatro tentativas de definição que serão transcritas abaixo. Isso. p. como salvador soberano da história. ainda que só possa ser percebido na perspectiva da fé (Lc 17. 1986. a paz e o amor vistos em Jesus crescendo na terra. que é a igreja (COSTAS. a alegria. Uma nova ordem de vida prometida por Jesus e pelos profetas. inaugurada por Jesus Cristo em suas palavras e ações. 15). ele indagava. diversas figuras de linguagem apareceram: o grão de mostarda. é oneroso como a crucificação. uma realidade tanto futura quanto já presente (Lc 17. conceitos. Um aspecto que se pode abstrair das citações feitas acima é que o reino é.20-21. Boa Nova para os cativos dos sistemas injustos. por meio de palavras) o reino é o mesmo que confiná-lo. É Boa Nova de que estaremos na nova terra. Assim. também e também. de que está entre nós. o que Jesus faz é. 15). 120). real. o que é o Reino? Por que será que Jesus não ofereceu um conceito definitivo e claro sobre ele? Pelo contrário. 1997. Afinal. por exemplo.. O anúncio de Jesus é de que o reino está próximo. Boa Nova para os oprimidos pelos espíritos imundos – sejam eles espíritos feios ou charmosos. Essa é nossa tarefa aqui: buscar pistas. tem o inconveniente de limitar o reino à intimidade de cada um. Boa Nova de que Satanás foi derrotado. Boa Nova para os pobres. metafísica. Boa Nova de que o amor de Deus chegou até nós. Boa Nova para os cegos. comparativa ou metafórica: “Com que compararei o Reino de Deus?”. um grande banquete. um homem que saiu a semear. os coxos e os aleijados e para os enfermos do corpo. Mas esse reino só pode tornar-se manifesto quando Jesus Cristo voltar à terra em poder e glória (SNYDER. matar o próprio reino.seus cabelos. oferecer relances e sinais que nos remetem ao reino. em diferentes contextos e por meio de imagens diversas. p. (. Boa Nova porque a sua presença faz uma diferença concreta. em primeiro lugar. etc. e mais. 2004.) Suas verdades e valores são os vividos e ensinados por Jesus Cristo e confiados ao corpo de seus seguidores. Boa Nova de que a morte foi vencida. A tradução “dentro de”. diferenciações (na bíblia e teologia) que produzam e façam crescer em nós uma determinada “consciência do reino”. dando a seus ouvintes uma “consciência do reino”. Mas. E daí por diante. p. O sentido aqui é que o reino 96 Missão Integral .. ectoplásmica (CAVALCANTIi. em preto e branco ou coloridos – porque esses demônios serão expulsos. fermento. não abstrata. a referência que ele faz ao reino nas parábolas. da mente e da alma. é celestial como o Cristo ressurreto assentado à direita do Pai. Mc 1. eterna. é sempre alusiva. E ele não o fez por uma razão simples: definir (pôr fim em. está ao vosso alcance. O futuro invadiu o presente. A libertação não está distante, mas começa a se realizar no presente. É a tensão criativa de Oscar Cullmann entre o já e o ainda não do reino. Sinais do reino já estão presentes, mas ainda não plenamente, visto que “a consumação da nova era se realizará no futuro” (PADILLA, 2005, p. 202). Em segundo lugar, ele desencadeia um ataque geral ao mal em todas as suas manifestações. No tempo de Jesus, como hoje, o mal assumia muitas formas. Em Jesus, como disse certa vez Antônio Carlos Barro, não havia a tensão entre servir e salvar: o mesmo Jesus que servia, salvava, salvando enquanto servia, e servindo enquanto salvava (não há separação). O reino pode ser visto, segundo Paulo, como uma vida livre do domínio de todas as forças malignas que escravizam a humanidade, que tem a sua consumação com a vinda definitiva de Jesus (cf. 1Co 15.24). Em terceiro lugar, sua manifestação é eminentemente política. Ao denunciar todas as formas de alienação, exploração e opressão do sistema judaico, e declarar que coletores de impostos, leprosos, prostitutas e pobres são “filhos do reino”, Jesus estava atacando um campo político (sem, no entanto, pretender estabelecer nenhuma teocracia, ou gerar uma revolução política ou econômica, nem se candidatar a presidente). Em quarto lugar, é a expressão da autoridade de Deus sobre a totalidade da vida. Enquanto não há a consumação dos séculos, porém, as forças contrárias continuam agindo e afirmando-se predominantes. Como vemos na Parábola do Joio (Mt 13.24-30), o bem e o mal coexistirão e crescerão juntos até a colheita. Leonardo Boff disse: “Mesmo a rejeição, a cruz e o pecado não são obstáculos insuperáveis para Deus. Mesmo os inimigos do Reino estão a serviço do Reino” (Apud. BOSCH, 2002, p. 56). Igreja Desde o redescobrimento da missão (integral) da igreja, teólogos começaram a repensar a “condição” de ser igreja. O que é a igreja? Qual a sua razão de ser? Para quê e a quem ela serve? Qual sua relação com o mundo? E mais do que isso: é a igreja quem traz o Reino? A 97 igreja é o Reino? Se não, o que ela representa no Reino? Quando a igreja tem sucesso, essa notícia é boa? Para quem? Nesse ínterim, renasce a consciência de que a igreja tem uma dupla identidade indissociável: como a comunidade do Reino, e como agente da Missio Dei. Logo, refletir sobre a igreja era consequência natural de se pensar as categorias “Reino” e “Missão” de Deus. Não renegando essa forma de pensar, pode-se dizer que a eclesiologia (doutrina da igreja) tornou-se um assunto parcialmente ausente das reflexões sobre missão. Isto, pois em grande parte o conceito de igreja esteve atrelado com o conceito de reino e de missão – o que não é totalmente ruim, visto que essa associação nasce precisamente da tentativa de corrigir um erro histórico, que pode ser visto como uma supressão da missão pela identificação direta da igreja com o reino. O lado negativo, se assim se pode dizer, está em ter se dedicado tão poucas páginas ou tempo de reflexão à igreja em si. Dentre essas raras inserções entre teólogos da chamada missão integral, está a que foi feita por Orlando Costas, que veremos mais adiante. Em todo caso, é inegável que a igreja precisa estar atrelada ao reino (não sendo igual a ele). E isso por algumas razões básicas que podem ser nominadas: (A) No NT a igreja é concebida como a comunidade do reino. Ela não traz o reino, mas é uma expressão visível da obra do reino inaugurada por Jesus, que o reconhece como Senhor (kyrios) do cosmos, e se faz testemunha do caráter e virtudes do reino. Ele chamou homens e mulheres a deixar tudo e segui-lo (Lc 9.57-62; 14.25-33; Mt 10.3438). Àqueles(as) que o seguiram, ele chamou “pequenino rebanho” a quem Deus quer dar o Reino (Mt 26.31). Jesus mesmo refere-se a sua comunidade messiânica como “minha igreja” (Mt 16.18). (B) Essa igreja, porém, não deve ser equiparada ao reino. Ela é a comunidade do reino, mas nunca o reino em si. “O reino é reinado de Deus, a igreja é uma sociedade de pessoas”, disse George Ladd. Logo, embora a igreja esteja intimamente relacionada com o reino, à medida que é ela quem o anuncia – embora os sinais do reino se estendam para além desse anúncio por parte da igreja – o reino será sempre outro, quando relacionado à noiva de Cristo. 98 Missão Integral (C) A igreja é o agente do reino de Deus, pela ação do Espírito. O reino de Deus, que irrompeu na história em Jesus Cristo, não continua por causa da igreja, mas por causa da energia do Espírito Santo que mobiliza a igreja em ação e missão (Rm 15.19; 1Co 2.4-5; 2Co 3.6). Portanto, segundo Snyder (2004, p. 13), “a igreja em relação ao reino não é uma eventualidade, é um ato. Mais que um símbolo (ou sinal), é um agente”. Ela é, segundo Padilla (2005, p. 208), “a expressão do Senhorio universal de Jesus Cristo, a manifestação concreta do Reino de Deus”. Mundo Além do que já foi dito acima, (D) a igreja é testemunha do reino no mundo. O mundo é o lugar por excelência da missio Dei. “Porque Deus amou o mundo de tal maneira...”. O mundo é objeto de seu amor, a quem ele deseja redimir, e por isso nos convoca, como igreja, para ser partícipes diretos dessa reconciliação Dele com o mundo o qual criou. Contudo, há pelo menos três visões pelas quais se pode ver manifesto o equívoco de uma parte dessa igreja ao lidar com o mundo: – O mundo jaz no maligno. E não adianta fazer nada por ele; é habitação dos pecadores, lugar de perdição, sinônimo de pecado. – “Mundo” é o planeta terra, que Deus teria deixado sob gerência de Satanás, salvo algumas “ilhas”, as igrejas, onde os crentes podem encontrar abrigo temporário. – Visão da igreja que, segundo Robinson Cavalcanti (1997), “perdeu o reino”: o reino está dentro da igreja local ou denominação; o reino se resume a essa “ilha de salvos”. Parafraseando este autor, terá razão certo pensador quando diz que o reino poderá vir por meio da igreja, sem ela ou, até, contra ela? Há, porém, outras maneiras de enxergar a questão. Na visão de João, o mundo é o “cosmos” (grego), isto é, a presente ordem de coisas, sistemas inventados pelo ser humano. O mundo são pessoas, estado temporal, modelos antibíblicos (Rm 5.12); esse é o mundo que “jaz no maligno”, mas que não corresponde a toda criação de Deus. O mundo também faz parte da criação, que geme e suporta as dores de parto 99 até hoje (Rm 8.18-25). E se ele faz parte, como haveria de ser de todo abominável? Qual é o sentido de termos de viver nesse mundo, já que teríamos, segundo interpretam alguns, de nos apartar dele? A igreja (nós), portanto, é embaixadora de Jesus Cristo no “ministério da reconciliação” com o mundo (1Co 5.18-21). Ela é o “sal da terra” e a “luz do mundo” (Mt 5.13-14); através dela os sinais do reino se fazem visíveis ao mundo. O reino não se resume à comunidade, mas exige vida comunitária. Sem a comunidade não é possível existir uma representação viva do Evangelho, parafraseando Costas. É na comunidade em missão que o mundo reconhecerá a Jesus Cristo, e saberá que foi ele quem nos enviou. “Rogo também por aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles, para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.20-21). Jesus em sua oração sacerdotal (acima citada em parte) fala do mundo em termos dialéticos: eu não estou mais no mundo, mas eles estão; então falo para que o mundo ouça, e aqueles que aqui ficam tenham conforto e alegria em mim. E nos convoca para aquilo que podemos chamar de espiritualidade dinâmica: estamos no mundo e participamos dele, sem a ele pertencer. Essa é nossa luta, viver na tensão, e ter de lidar com as dificuldades próprias dessa vida. É ter de se perguntar: afinal, que influencia mais a quem? Nós ao mundo ou o contrário? E não pensem que isso se trata de uma visão romântica, pois não é. Porque viver e proclamar o reino de Deus no mundo implica também ter de viver em conflito com ele (Jo 15.18-19). E isso acontece quando, como disse Jesus, entendemos que “não somos do mundo”, assim como ele também não é. Bem, mas se eu não sou do mundo, sou de onde, de Marte? Parece uma estranha sentença, e muita gente confunde isso constantemente. Não ser “do mundo” aqui, não quer dizer viver fora ou apartado dele, numa ilha de supostos santos, e sim significa não viver conforme os “termos do mundo”, segundo as muitas maneiras dele gerir a existência e seus recursos. Nesse sentido é que entramos em conflito natural. A lógica é simples: se vivo nos termos do mundo, o mundo me amará como 100 Missão Integral e eu também o amarei e me revelarei a ele (Jo 14.um dos seus. visto que se trata de um “mundo sem Deus”. E muitas vezes quando nosso amor – o que significa muitas vezes correção e oposição – ao mundo é rejeitado. seja por uma falsa ideia de santidade separada da humanidade. esse é o que me ama. inaugurando desse modo o reino de seu amor. me verão. não pelas vias do mundo nem conforme suas regras. porém. Dentro de pouco tempo o mundo não me verá mais. Aquele que me ama será amado por meu Pai. como resultado. porque antes de vocês ele odiou a mim”. mas também é o “não” de Deus ao mundo (como expressão de nossa oposição e conflito com os valores do mundo). pois o próprio Jesus tratou desse assunto com realismo diante de seus discípulos. E isso. porém. ao dizer a seus discípulos que enviaria outro amigo. o consolador. e de igual modo na missão: em algumas ocasiões nosso amor e dedicação às pessoas poderá ter. vocês também viverão. você vira as costas para o mundo”. poderia ser chamado de “Espiritualidade Hakuna Matata”. quando viramos as costas para o mundo. ofendidos. é o “sim” de Deus ao mundo (no sentido de que salvação tem a ver com o que acontece com as pessoas nesse mundo). e assim por diante. vocês em mim. 101 . Dessa forma a missão. Se deixo. como vista desde a primeira unidade. e por fim diz: Voltarei para vocês. E esse é um dos paradoxos com o qual temos de lidar na vida. é provável que seja odiado por ele. Porque eu vivo. “Não os deixarei órfãos”. vocês. por isso. ele promete. especialmente através de David Bosch. e somos perseguidos. Naquele dia compreenderão que estou em meu Pai. Ele disse: “Não se admirem se o mundo vos odeia. Não se trata. ultrajados. aproveitando a ideia do filme.18-21). Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece. o ódio ao invés do amor. a postura dos cristãos tem se assemelhado com a dos personagens Timão e Pumba do filme O Rei Leão: “Se o mundo vira as costas pra você. seja porque ele tenha se virado contra nós. parceiro indispensável da missão. e eu em vocês. de romantismo inconsciente. mas na força que Deus supre. E é por isso que o consolo de Jesus está no fato dele mesmo ter vencido o mundo. de viver em seus termos. Jesus viveu fora da porta. uma vida que fosse apenas lá fora. dos abrigos. a vida não é apenas pública – o que acontece lá fora – mas ela é muito privada – o que se passa dentro dos recintos. se deu fora dos portões. a singularidade das pessoas e dos acontecimentos. nem onde reclinar a cabeça. mas seu palco era o mundo. mas se dá de um jeito muito pobre se o olhar for duro e técnico. nem é o de Deus. e não sensível e humano. porém. Portanto. Assim é a vida para muita gente. o caso a caso. Quando o vi pela primeira vez. de Jerusalém a Samaria. Jesus sofreu fora das portas da cidade. confesso que fiquei pensando sobre o quão parcial essa declaração é. assim. até os confins da terra. para Jesus. mas com a certeza de que temos um refúgio seguro e aconchegante no fim de cada santo dia. sua missão vinha dos céus. Quando olho para Jesus. Por outro lado. uma dinâmica entre a reserva e a exploração. Ainda me lembro daquele slogan de campanha publicitária. do templo ou do acampamento) não era primordialmente o mundo de Jesus. a gente tem que viver lá fora.Ou seja: Deus continua fora do acampamento! “Assim. ofereceu boas notícias (evangelho) ao mundo. se perca de vista o particular. O que significa dizer que Jesus “sofreu fora da porta”? Em Hebreus. viver e experimentar além de nosso mundinho particular e privado. para santificar o povo por meio do seu sangue” (Hb 13. Assim. a vida era (e continua sendo) lá fora. talvez fosse muito para nós. afinal. dos acampamentos. exatamente pela natureza pública de seus atos. da graça do Pai e dos favores das pessoas de bem. das casas. mesmo a privada. que dizia “A vida é lá fora” [Life is outside]. para dizer que há muito mais para se ver. do Pai. um convite. como o de Jesus. particulares ou 102 Missão Integral . Quero dizer. no espaço em que se plasmam os dramas individuais com os coletivos. ao relento. de cidade em cidade. mais que recebimento. por isso. A vida se dá lá fora. Da Galiléia a Jerusalém. lembro-me que sua vida. Ele vivia e peregrinava.12). do tabernáculo. isso implica em pensar que esse mundo que se vive e que se vê “de dentro” (da sinagoga. entre a reclusão e a dispersão. e. a ideia de que “a vida é lá fora” é um imperativo. Ele não tinha morada própria. sem que. Sua vida sempre foi entrega. Dependia. A cruz é o símbolo desse abuso do mundo em relação a Jesus. boa parte de nossos esforços aqui gravitaram em torno de uma revisão do que cada um significa. mesmo quando experimenta a reclusão. de modo que. Reino é a totalidade do governo de Deus. enquanto buscamos a que a de vir. Conclusão Vimos nessa unidade que. mas não como cidade permanente. do ultraje e do abuso de Jesus (Hb 12. não para julgá-lo. O Senhor 103 . solidária. demasiadamente humana. E. não é possível cumprir a missão em sua integralidade sem uma articulação correta entre esses três elementos: Reino. esta precisa ser uma reclusão aberta. para que saiamos do acampamento. mas para reconciliar-se com ele. Essa é a igreja que vive a anunciar a presença de Deus na vida humana e terrena. torturado e morto fora dos portões. habitando em meio do caos do mundo. junto com o mundo. é que ele foi perseguido. pela fé e pelo testemunho prático. por sua vez. não para dissolvê-lo. ela se manifestou no secreto apenas àqueles/as que. nem provocar histeria ou catarse coletivas. e fora dele. amorosa. Por isso a igreja.13). convidativa. Ela não foi para causar estrondo. que a vida vence a morte. Igreja e Mundo. num ato coletivo e público de escárnio. possa ser vista cada vez mais no meio desta. onde somos vocacionados a ser gente. que se chama de Jesus Cristo. onde a ação e Verbo de Deus estão. calorosa.coletivos. deve viver também nessa dinâmica da dispersão e da inserção no mundo. A morte foi uma cerimônia pública. mas partilhando do insulto. onde a vida acontece. mas que a engloba. deveriam anunciar ao mundo que Ele ressurgiu. e os dualismos por muito tempo propagados de modo prático em seu seio. tendo o mundo como arena. portanto. abraçamos a vida na que aqui vivemos na esperança de que aquela eterna cidade. a ressurreição. não obstante o isolamento histórico da igreja frente ao mundo que a cerca. mas para conferir um sentido à existência que há nele. que não se resume a igreja. e que aqui não é o fim do “Fim”. não. sem reivindicar privilégios. fora dos acampamentos. Por isso. O convite é. São Paulo: ABU. PADILLA. O reino. COSTAS. e a qual nos convida a continuar anunciando ao mundo. 104 Missão Integral . são pessoas. Sebila. visando reconciliar o mundo com Deus. Evangelización contextual: fundamentos teológicos y pastorales. René. Londrina: Descoberta. que é mais do que um lugar. 2004. São Leopoldo: Sinodal/EST. 1986. que Jesus veio anunciar. Orlando. David. nosso chamado ao mundo é um chamado para as pessoas.é Senhor de todo o universo e. 2ª ed. Uma reflexão sobre a Igreja que Deus quer. Utopia Possível: em busca de um cristianismo integral. Dessarte. Referências BOSCH. é a boa-nova. 1997. mas que o anuncia por palavras e obras bem no meio desse lugar onde Deus no colocou. Missão Transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. no convoca a sermos parte de um povo (o seu povo. 2005. assim. Robinson. A Comunidade do Rei. 2002. que não é idêntico ao reino. Ensaios sobre o Reino e a Igreja. San Jose: Ed. a Igreja). como tal. Howard. SNYDER. CAVALCANTI. e não a sua condenação. Missão Integral. Viçosa: Ultimato. sociológicas e antropológicas a respeito dele. esforçando-se por realizar a Igreja que possibilite a vivência do Evangelho da unidade e da comunhão”. desenvolveu-se também uma série de preconceitos – mais fruto do desconhecimento e ignorância que de um embasamento satisfatório – que mais barreiras criaram (além das habituais) para que as pessoas se aproximassem do movimento ecumênico. porém. num sentido mais amplo. logo. pois. até por ser este um princípio bíblico. as muralhas.Missão Integral Unidade 8 Ecumenismo. teológicas. É indubitável que o problema todo não está em concordar e apoiar a unidade dos cristãos. são criadas quando nos deparamos com os múltiplos caminhos que são propostos para se alcançar tal propósito. Diálogo e Missão Introdução O ecumenismo é um daqueles temas difíceis de tratar no meio cristão evangélico. 105 . bíblicas. Com todos os problemas criados em torno dessa matéria. como ressalta Wolff (2005. p. igreja e ecumenismo “se pertencem mutuamente”. desde que esse debate chegou ao seio da igreja. com todas as ideias. 19): “É por amor à Igreja que se busca abrir caminhos de diálogo no interior do pluralismo eclesial. ao longo de anos. nessa unidade quero partir do princípio de que a igreja em missão não pode prescindir da unidade como fator essencial. a causa da igreja é a causa do ecumenismo e ser ecumênico significa ser igreja. isto é. Compreender o que constitui o ser ecumênico e o movimento ecumênico em geral. 2. Refletir sobre o papel da igreja na discussão e prática ecumênicas no tempo atual.Objetivos 1. Identificar as possíveis pontes entre o movimento ecumênico e o da missão integral. 3. 106 Missão Integral . as possíveis polaridades divisórias. Desse modo. É deixar de lado. sem. a abertura para o outro implica em solidariedade. É a celebração de uma unidade em meio à diversidade. deixar de ser diferentes em muitos aspectos. no entanto. em todos os lugares. resultou diretamente “dos vários despertamentos e do subsequente engajamento das igrejas do Ocidente no empreendimento missionário mundial” (BOSCH. a serviço denominacional. 546). mas não dos matizes e diferenças. Ecumenismo. como também por uma compreensão mais ampla de missão: não como um mero departamento eclesial. de minha comunidade. ainda que por um momento ou uma causa. para identificar o que nos une. p. mas missio Dei. por meio de palavras e ações. me desafia a reconhecer na realidade o que é diferente de mim. nesse sentido. A redescoberta da natureza essencialmente missionária da igreja só poderia levar à descoberta de que a missão cristã só pode ser verdadeiramente chamada de cristã se o portador dela for a igreja una de Cristo” (BOSCH. nesse sentido. é uma tentativa de ruptura das divisões e barreiras entre nós. de um Deus que convoca a todo o seu povo. 1987. “unidade e missão constituem uma unidade. “Outro”. 2002.Ecumenismo e movimento ecumênico No que diz respeito ao protestantismo. mas como a razão de ser da igreja. individualizado e. não missão de homens. de muitas maneiras. p. unidade produz missão. É um movimento que passou a ser fecundado não apenas pelo envolvimento missionário. 2002. Assim. de minha maneira particular de compreender as relações com os outros e especialmente com Deus” (SANTA ANA. o que nos faz iguais. o movimento ecumênico é devedor dos impulsos missionários do século XX. é “aquele ou aquela que me interpela. Ecumenismo é solidariedade. Missão e unidade são congêneres. lutando juntos por uma sociedade responsável. 549). e a missão promove a comunhão e aglutina os cristãos em torno de um só propósito: testemunhar do amor de Deus para a aldeia global. justa e fraterna. nesta acepção. caótico. em meio a um mundo fragmentado. 14). a evidenciar os sinais do reino que já veio e que ainda virá. p. O ecumenismo também nasce de uma nova abertura que se foi engendrando para o outro. Pode parecer 107 . que significa “lugar em que se vive”. a edificação mútua e o testemunho de amor a Deus e aos outros frente a um mundo esfacelado pelo pecado. e renovado suas esperanças ao terceiro dia. p. ou para fortalecer-se politicamente e institucionalmente. Diante desse problema. à maneira e às finalidades desse processo em direção à unidade” (SANTA ANA. o termo “ecumênico”. Uns. aparece com 108 Missão Integral .36). Ainda seguindo a análise feita por Santa Ana. alimentados pelo mesmo Espírito. desejam e trabalham pela unidade. deve-se também reconhecer que esse acordo não existe em relação ao modo. Santa Ana defende a tese de que essa é uma tarefa – a de edificar comunidades em que haja abrigo e lugar a todos os que queiram – de todo o povo de Deus. responder a estas e outras perguntas implica em definir os rumos do movimento ecumênico. já outros. Há que se perguntar. “embora haja acordo com respeito à necessidade de plasmar a unidade entre os cristãos. Júlio de Santa Ana considera que nem sempre as motivações para a busca pela unidade são orientadas por e para um mesmo foco. que aqui não nos cabe. Contudo. visando a paz. que decidiram viver como uma grande família. E. hoje. Pressupõe um lugar ou espaço em que há possibilidade de abrigo e acolhimento a todos. cabe a pergunta: o que é ecumenismo? Vem da palavra grega oikos. de modo que ninguém sentia falta de nada. mas também entre instituições? Trata-se de uma unidade com exclusões ou sem exclusões? De um ecumenismo de cúpula ou um ecumenismo popular? Como diz Santa Ana. literalmente quer dizer “todo o mundo habitado”. que vimos sendo cumprida. e não de uma classe sacerdotal ou especializada. 1987. individualismo e a segregação em muitas áreas.utópico. por exemplo. compartilhando entre si o que tinham. Já a palavra correspondente oikoumene. adorando juntos ao único Deus. 15). ou restrita aos chamados “órgãos ecumênicos”. antes de assumir essa conotação religiosa. se é possível um ecumenismo que seja genuíno não só entre pessoas. se unem a outros para destruir a terceiros.41-4. O movimento ecumênico nasce assentado na ideia de catolicidade (universalidade) e unidade. visam interesses particulares. sob os olhares do mesmo Cristo que os havia salvado da condenação na cruz. mas se trata da utopia possível do reino. nutrindo um mesmo modo de pensar e sentir. entre os cristãos primitivos (ver At 2. . tendo uma filiação confessional. quais sejam: a) Dimensão geográfica – a realidade espacial que rodeia o ser humano e os diferentes povos do planeta. pode ser considerado(a) ecumênico “todo cristão ou cristã que. branco ou negro. b) Dimensão cultural – diversas culturas.27-28). todos os que foram batizados em Jesus Cristo e que unidos estão a Ele e a seu corpo pelo Espírito. contemplando outras dimensões da existência humana. que formam a comunidade universal do povo de Deus. diversas maneiras de ser do “homem-no-mundo”. nas tomadas de consciência e lutas particulares de um povo. Desse modo. que precisam ser levadas em conta. 2002. p. homem ou mulher: todos foram feitos iguais em Jesus Cristo (cf. no encontro intercultural. que é flexível e livre na vivência deste encontro”. 45). para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 109 . que enfrentava difíceis guerras religiosas e disputas políticas que sacudiram os povos ocidentais após as transformações ocorridas a partir do século XVI. participa desse esforço maior pela unidade dos cristãos” (LONGUINI NETO. que expressam a riqueza do humano e precisam ser respeitadas em sua diversidade. Gl 3. que tomaram forma a partir do desejo comum que pessoas esclarecidas e de bem nutriram pela paz na Europa reformada e contrarreformada.. escravo ou livre. p. cujo sinal é a igreja. isto é.uma abrangência maior. “Para que a América Latina creia que Tu me enviaste” Talvez essa seja uma boa paráfrase para o contexto latinoamericano do que disse Jesus em sua oração sacerdotal: “a fim de que todos sejam um. o sentido da procura da unidade do povo de Deus precisa levar em conta quatro dimensões fundamentais da existência humana. afirma Santa Ana. c) Dimensão política – expressa na identidade social. não havendo mais judeu nem grego. d) Dimensão religiosa – ressaltando a importância de unidade entre os cristãos. “O ser ecumênico é o que vive nesta disposição de abertura. 22-23). Segundo Santa Ana (1987. primeiramente na igreja. mais precisamente. 256) defende que “o ecumenismo se caracteriza justamente por esta avidez de unidade. a causa da unidade cristã é beneficiada. na opinião de Luiz Longuini Neto (2002). está em função do reino: “quando as igrejas se comprometem claramente em favor dele. 41).17. de uma parcela de cristãos) – e externa. e da qual proveio a centelha da Teologia da Libertação. com a criação do Conselho Latino Americano de Igrejas – doravante CLAI – em 1978. desenvolvida posteriormente em âmbito católico. como o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Segundo Zwínglio M. como também pela abertura a cristãos de outras confessionalidades engajados nessa mesma luta por libertação em nosso continente. p. para que o mundo creia”. que se destacam não apenas pela flexibilização dos meios eclesiais para atender as camadas populares e pobres e a uma maior participação dos chamados leigos. LONGUINI NETO. Dias (Apud. de sua justiça e da nova realidade na qual nos quer introduzir”. e o trabalho de organizações como a Comissão Evangélica Latino-Americana de Educação Cristã (Cedalec). advinda da visão de 110 Missão Integral . p. O surgimento do CLAI é resultante de uma série de iniciativas e organizações que o precederam. que propiciou o surgimento das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base).21). dentre outras coisas. nascem em seio protestante. p. A reunião dos cristãos separados não é um fim em si. Por outro lado. 2002. A unidade. Santa Ana (1987. A falta de unidade entre os cristãos é. 265). aquilo que mais depõe contra o testemunho acerca de Cristo no mundo. da qual fizeram parte protestantes como Rubem Alves. de acordo com Santa Ana (1987. em âmbito macro. Richard Shaull e o próprio Júlio de Santa Ana. essa abertura ecumênica na América Latina se dá após as resoluções do Concílio Vaticano II. e a Junta de Igreja e Sociedade na América Latina (Isal). o CLAI nasce com uma dupla motivação: interna – intereclesiástica e intrassistêmica (em virtude de uma visão acrítica e ingênua da realidade. as primeiras iniciativas efetivas de unidade do povo cristão na América Latina. Nesses termos. mas um passo necessário para mostrar ao mundo a proximidade de Deus. a pergunta feita por Santa Ana é: como traduzir essa unidade na prática para que o mundo dê crédito à boa-nova de Jesus Cristo? Do lado católico. Divergências não são elementos que se deve rechaçar. em geral. falidas em termos de contribuição para a utopia do reino (um evangelho “de todos” e “para todos”). Há aqueles que militam no movimento ecumênico apenas em âmbito institucional (participando de eventos. mas num ecumenismo de pessoas. campanhas. 2002. inclusive entre católicos. cujo eixo central é Cristo. por sua vez. Santa Ana afirma que há um perigo que precisa ser evitado a todo custo: “que se crie uma distância. temos nossa identidade. não a uniformidade. mas uma comunhão caracterizada por unidade na diversidade reconciliada” (BOSCH. É ali onde se dão muitos desses encontros não convencionais e não institucionais. os cristãos evangélicos passam a ter de conviver com uma tensão: entre optar por um ecumenismo institucional e um ecumenismo de movimentos. alimentado. portanto. mas “parte do esforço da igreja para tornar-se o que Deus quer que ela seja”. um fosso. São Paulo. sim. Contudo. completa Bosch. dentre os quais incluo a mim mesmo. posto que elas são inevitáveis. No fundo. entre o ecumenismo de cúpula e o que o povo pratica. 111 . Assim.cristãos que viam a urgência da necessidade de responder aos problemas sociais que já se acentuavam na América Latina. Ambos são chamados a se complementarem. a 1 Parafraseando aqui palavras do Pr. em 09 de Junho de 2007. “O ecumenismo só é possível onde as pessoas aceitam umas às outras a despeito de diferenças. um inspira o outro. sendo. é possível haver cobeligerância entre cristãos de diferentes confessionalidades em projetos que envolvem o bem comum. precisamos focar nossa vida na cruz. Portanto. ao mesmo tempo em que se nutrem mutuamente. registradas por mim em Mesaredonda realizada no Fórum Jovem de Missão Integral. não creem nessa forma de ecumenismo. Nossa meta não é uma comunhão isenta de conflito. mesmo considerando todas as experiências ecumênicas produzidas na base. verdade e unidade pressupõe tensão. David Bosch considera que manter missão e unidade. em Itu. em torno do qual deve se dar nossa comunhão. Em contrapartida. uma tendência antissistêmica e anti-institucional. Ricardo Barbosa de Souza. envolvem mecanismos nocivos de poder. 555). pois acreditam que as propostas ecumênicas. outros. Encontramos irmãos(ãs) comprometidos(as) com o reino em muitos lugares e ambientes diferentes do nosso. entre as pessoas. reuniões de cunho mais coletivo e político). Para eles.1 Não se deve negar os conflitos ou as “tensões”. p. e assim por diante. que são abertos ao diálogo – e aos riscos inerentes ao diálogo – ao respeito à diversidade. Com efeito. falamos não somente de uma. de maneira geral. essa que não tem placa. 1987. isto é. Existem exceções. fundamentalistas. entre protestantes mais conservadores. assim como históricos e pentecostais. como o faz muito bem Júlio de Santa Ana na obra Ecumenismo e Libertação. mas apenas pessoas de carne e osso. evangelicais e liberais. se dispõem a fazer missão em unidade? Nesse sentido. mal conseguimos estabelecer pontes de diálogo entre nós mesmos. a aprenderem conjuntamente” (SANTA ANA. gerando trocas e edificação mútuas entre diversas facetas do corpo de Cristo. movidas pelo Espírito. Os pentecostais têm orgulho da maneira que são e como têm crescido no Brasil. menos ainda com os católicos. não enfatizando demasiadamente aquilo que nos divide. que de fato continua sendo sinal e agente do reino. Levemos em conta as palavras de Antônio Carlos Barro: Antes de aventurar-se nesse diálogo é necessário que os cristãos dessas várias correntes trilhem a estrada da humildade. Para começo de conversa. que atentemos para o fato de que. temos falhado no quesito de valorização. senão a igreja invisível. Afinal. é claro. Poderíamos identificar. tanto as convergências como as divergências encontradas em todas essas vertentes evangélicas com o movimento ecumênico. e que dirá com os adeptos de outras religiões. mas de múltiplas expressões que foram se delineando historicamente. mas o contributo especial que cada um pode oferecer ao outro na caminhada. falamos de posições díspares em relação ao ecumenismo. (. Ao falar de evangélicos na América Latina. que inclui fundamentalistas.. nesse vasto campo chamado “evangélico”. pentecostais.) Os cristãos históricos também são orgulhosos. contra a qual as portas do inferno não prevalecerão. mas o que nos une em meio às diferenças. porém.. p.se interpelarem mutuamente. templo. como os evangélicos pentecostais e os “históricos”. denominação e nem CNPJ. Quero. não as falhas somente. É um dado genérico. precisamos avançar no aprendizado uns com os outros. 296). progressistas. Há muitos movimentos paraeclesiásticos no Brasil que vivenciam uma fé ecumênica. que. à cobeligerância em prol do bem comum e do reino de Deus. 112 Missão Integral . apoio e engajamento no ecumenismo em sua organicidade. qual seria a igreja que realmente milita. por outro lado. A unidade sempre precede a manutenção de nossas divisões. p. a classe social. 2005. “é o lugar de lembrar que a causa do Reino e a credibilidade do anúncio do Evangelho apelam a que se assumam os riscos para serem fiéis ao legado recebido de Jesus Cristo”. E. Em muitas de suas relações “ecumênicas”. por outro lado. há que se questionar a sinceridade e o foco de nossas motivações para que o diálogo ecumênico não venha a ser mascarado por intenções escusas ao Evangelho e ao reino. a Igreja tem que pagar. como mostrava Cone. p. que. é irreverente.) Quando os protestantes históricos irão aprender a combinar teologia com ação? A ação apaixonada pelo evangelho pode ser aprendida com os pentecostais. Em outras palavras. Precisamos aprender a assumir os riscos do diálogo. as oposições históricas radicais que separam seus membros. para sua unidade. em quem e como quer. enfatizando os valores que se supõe serem comuns a todos os membros de tal Igreja. percebo que tanto católicos como evangélicos interessam-se pela busca da unidade visando o proselitismo ou a cooptação do outro para sua forma de crença. Como a ação pode ser guiada e sustentada por um correto entendimento bíblico-teológico? Isso pode ser aprendido com os protestantes históricos.especialmente da herança histórica a que representam. a ideologia política. Isso tem a ver com a tendência das pessoas em ver expressões de originalidade e a salvação somente em seu terreno religioso. em contrapartida. livre e age com liberdade soprando onde.. por maiores que sejam. o que quase sempre corresponde a uma tentativa de monopolizar o Espírito Santo. a situação nacional no mercado internacional etc. 269-270). (. Na visão de Juan L. Portanto. minimizando. 289).. Numa palavra. O Pacto de Lausanne incentiva essa unidade: “Afirmamos que é propósito de Deus haver na igreja uma unidade visível de pensamento quanto à verdade” (BARRO. o preço de declarar as 113 . Como reitera Santa Ana (1987. silenciando a cor. nada contribuem para o cumprimento dos propósitos missionários de Deus de reconciliação de todos os seres humanos. A timidez e resignação. Segundo: Somente se pode conseguir ou manter a unidade interna de uma Igreja cristã hoje em dia. Ser ecumênico. o grande “cheque-mate” do ecumenismo – mais do que as iniciativas institucionais – num mundo no qual se reavivam as intolerâncias e se reativa o individualismo e a falta de solidariedade em muitos contextos. 49). da injustiça. Uma das barreiras ao ecumenismo é esse nosso apego descabido às coisas e às instituições. Na 114 Missão Integral . Um só Deus e Pai de Todos (Ef 4. e termina com o sentimento de que muito ainda precisa ser feito para que esse quadro mude. se atentássemos à unidade nas coisas essenciais. da violência. Conclusão Essa unidade se iniciou com a constatação de que o ecumenismo é um tema espinhoso para a igreja evangélica. é lutar por um mundo melhor. Nesse sentido. em função. biblicamente. O fim maior do ecumenismo consiste em edificar e validar o testemunho cristão no mundo.) jamais deveriam suprimir aquelas que. p. infelizmente. buscar o promover o ser humano em todas as suas dimensões. uma só Esperança. nossas relações talvez não estivessem na melhor situação possível. E. Espírito. Fé. e o amor em todas as coisas. no fundo. isto é. à liberdade nas não essenciais. usos e costumes. mas com certeza estariam numa melhor situação. portanto. sobretudo. os une: um só Corpo. a partir da realidade de cada cristão e de cada igreja local. da fonte e da morte menos decisivas do que as fórmulas ou os ritos religiosos (SEGUNDO. no meio das relações humanas entre as pessoas. tem caído nos últimos tempos perante a sociedade civil. nesse sentido. Eis uma faceta.matizes do sofrimento. a igreja não cairia no descrédito em que. estudando o ecumenismo na América Latina. 1978. Contudo. etc. Como observou certa vez um teólogo luterano. moral. Batismo. ainda será possível ver cristãos com uma visão teológico-doutrinária uniforme? Sinceramente. constatamos que a grande diferença acontece nas “bases”. Após tantas tensões históricas.6). as coisas que os separam (doutrina. dos preconceitos existentes e com um problema de identidade. deixando as pessoas em segundo plano. em que o ecumenismo se encaixa bem com a integralidade da missão. acrescento. que é. não. A. não pode amar a Deus. 2006. ________. nº 2. In: Estudos Teológicos. MG: Ultimato. v. Viçosa. 1978. C. WOLFF. 2005. da missão: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro. 2002. 45. Não há dissociação: nossas relações humanas são um reflexo mais que real de nosso relacionamento com Deus. Elias. São Leopoldo: EST. a quem não vê. da parte dele. pp. Londrina: Descoberta. A instituição deve existir em função do humano e não o contrário. ame também a seu irmão” (1Jo 4. 2002. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: novas forças motoras para a missão da igreja? In: BARRO & KOHL. Libertação da teologia. Quem diz que ama a Deus e não ama a igreja e as pessoas. 18-30. reconhecê-Lo no outro. Luiz. Petrópolis: Vozes. São paulo: Paulus. 115 . Juan L. SEGUNDO. Ora temos. LONGUINI NETO. SANTA ANA. automaticamente anula essa suposta declaração de amor – lembrando aqui da linguagem joanina (1Jo 4). Missão transformadora.bíblia vemos um Deus irado contra as instituições (cujos propósitos são deslocados) e que ama sobremaneira o ser humano.19-21). a quem vê. 253-280. Se alguém disser: Amo a Deus. 1987. Referências BARRO. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano. BOSCH. David. pois aquele que não ama a seu irmão. à medida que se é tomado por uma paixão pelo Senhor. é mentiroso. São Paulo: Edições Loyola. necessariamente. Caminhos do ecumenismo no Brasil. Este é o princípio do ecumenismo. Sinodal. pp. 2002. Ser ecumênico é ser totalmente apaixonado por tudo o que toca o humano. e odiar a seu irmão. Júlio H. do diálogo. de. temos invertido esse princípio: amamos as instituições e odiamos as pessoas. Missão Integral Transformadora. Igrejas e ecumenismo: uma relação identitária. Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. Ecumenismo e libertação. Por outro lado. Quem conhece a Deus precisa. este mandamento: que aquele que ama a Deus. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 116 Missão Integral . entendendo que no discernimento dessa vocação que reside nossos encontros ou reencontros com Deus e sua missão. falo sobre a missão da espiritualidade na Missão de Deus. Reconhecer a importância do discernimento da vocação na espiritualidade da missão. 117 .Missão Integral Unidade 9 Missão e Espiritualidade (I) Introdução As questões que moverão nossa reflexão nesta unidade. em segundo lugar. Entender nosso papel e lugar na Missio Dei. procurando avaliar motivações e a força que nos impele à missão. 3. Compreender as interpolações existentes entre espiritualidade e missão. trato da espiritualidade como busca e resposta a uma vocação. são: Quais são as possíveis relações entre espiritualidade e missão? Como lidar com a questão da vocação? A busca pela relevância e a eficácia é mesmo imprescindível quando pensamos em uma espiritualidade da missão? Para tanto. 2. Objetivos 1. dentre outras. em primeiro lugar. Chama atenção. como contraposto motivacional. diz-se o seguinte: “Eu tenho um chamado. pelas tentações. Minha intenção é analisar sua letra aqui do ponto de vista missiológico. inclusive. o evangelho anunciar/ Eu fui escolhido no ventre da minha mãe/ Eu sei que Deus não abre mão de mim não. Paulo por tantas vezes nos ensinou em suas cartas que a perseverança e esperança em meio às tribulações da vida fazem parte do lugar próprio do cristão – que não se rende por saber que seu Senhor não se cansa – mas isso não o faz melhor nem mais especial que ninguém. Daria uma análise até interessante se entrássemos no mérito da junção de “EU-SOU-me”. perguntando: que força é essa que nos determina a ir ou a permanecer. como uma espécie de escorregão da linguagem. os problemas que tentam “me abater” e. jamais vou me calar/ Eu tenho um chamado. o crente deve ser vitorioso por natureza. afinal.A missão da espiritualidade na “Missão” Meu foco inicial nessa unidade é pensar na motivação da missão (o que diretamente a atrela à espiritualidade). é vencido: pelo Diabo. Nesse viés. vem a lembrança de que o “Grande EU SOU me enviou”. Desde a primeira parte da canção. Dito isto. da banda 4X4 – que expressa bem o que gostaria de tratar aqui. o primeiro aspecto notável nessa parte da canção – e que já não é mais nenhuma novidade ou absurdo – é a quantidade de vezes em que se repete o pronome pessoal “eu”.”. Sei que muito provavelmente você já deve ter escutado e/ou cantado esta música e até goste dela. sem a pretensão de julgar a “espiritualidade” ou a sinceridade de quem a produziu – no máximo. o “sujeito” da missão? Há uma canção cristã contemporânea – “Eu tenho um chamado”. por si mesmo. tudo já indicava que o foco reside sobre esse “eu”: o vento que sopra “sobre mim”. revelar algumas idiossincrasias que apontam para o espírito de uma época ou mesmo uma tendência no mundo evangélico.. nem sempre “vitorioso” em tudo – precisamos. esse lugar-comum da atitude cristã de vencer os problemas pessoais. mas isto talvez soasse a alguns como juízo de valor. No refrão desta canção.. pelo mundo. a falar ou a permanecer calados? Como reconhecemos e/ou discernimos esta força ou esta voz que nos impele a algo? Quem é. por fim. Se não vence. a agir ou a não agir. num primeiro plano. por isso serei muito pontual aqui. quase como que uma obrigação moral. No entanto. rever o sentido 118 Missão Integral . e esse não é o alvo aqui. o que se poderia chamar de “síndrome dos filhos de Deus”. missão é “pregar a Palavra”. Sério mesmo? Deus não abre mão de mim? Não aparenta ser isso um convencimento desnecessário ou mesmo um uso inapropriado do chamado ou da vocação como meio de afirmação de uma admiração divina autoalegada e autogerada? Quem é o ser humano para afirmar que “Deus não abre mão” dele/a? Parte do espírito desta canção lembra-me de duas coisas lamentáveis: primeiro. a realidade ou a cruz. O equívoco de pensar que a missão é minha. que é a noção quase militar de que o chamado é meu. Quem é. que o individualismo definitivamente tomou conta de nossos cânticos. evoca também outros equívocos como. que se vê refletida não apenas na teologia de nossos cânticos. o que revela não apenas que. ou melhor. o de propagar a ideia de ministérios como algo de possessão pessoal (o “meu ministério”). ou mesmo de afirmar coisas como “a minha igreja” ou a “igreja do pastor ou do bispo fulano de tal”. de que “somos mais que vencedores”.17). muito repetida nas igrejas. e não precisa ficar repetindo isso como um mantra a fim de que avulte uma legitimidade seja lá qual for. de modo que pouco lugar resta para a comunidade. nem transformou pedras em pão ou aceitou todos os domínios da terra simplesmente porque o Diabo por três vezes o provocou dizendo “se és o filho de Deus”. No entanto. Isso se tornou tão comum que poucos percebem que não se trata apenas de uma questão de linguagem. parece-me que a mensagem subentendida aqui é a de que “eu sou especial” porque “Deus me escolheu” para realizar uma missão especial no mundo que é a de ir e anunciar o evangelho – ênfase da Grande Comissão de Marcos –. fui escolhido no ventre da minha mãe e. Não era necessário duvidar ou reafirmar sua identidade com atos ou discursos portentosos. é. a missão é minha.da expressão paulina. para o autor. o Filho unigênito. A graça da espiritualidade é que ela implica no exame 119 . mas também em nossos atos litúrgicos em geral. cedeu.1-11). Mt 4. Ele não se jogou do pináculo. por exemplo. em si. de deslocamento de poderes e da ausência completa do bom senso bíblico. pois para ele bastava a confirmação da voz dos céus que em seu batismo no Jordão disse: “Tu és o meu filho amado. mas um segundo importante aspecto. portanto. mas de uma questão de poder. pois sei que “Deus não abre mão de mim não”. em quem eu me comprazo” (Mt 3. afinal. a que nem Jesus. faça isso ou aquilo (cf. sou indispensável. segundo. no limite: “Você acha que se conhece?”. e as paixões como um todo podem nos transformar? Não parece ser à toa que a máxima de Friedrich Nietzsche no prefácio à Genealogia da Moral continua sendo útil. Por esta razão é que me recuso a reduzir a mim e aos outros a rótulos fáceis. escondidos muitas vezes por trás de uma redoma muito frágil de proteção. o poder. dizendo que eles transgrediam a tradição dos anciãos.19). o moralismo. p. o dinheiro. isto. No que a dor. O tempo e as variadas situações vão revelando o ser e a disposição de cada pessoa. contamina o homem”. a violência. homens do conhecimento.11. a pressão. sim. o descontrole. Por isso penso que estas práticas deveriam compor a formação de líderes. por não lavarem as mãos quando comiam – ele disse: “Ouvi e entendei: não é o que entra pela boca o que contamina o homem. Dizia ele que “nós. Por isso é reducionista a visão que associa espiritualidade com performances. a doença. o apuro. o sexo. embora nem sempre para todo mundo. Não me esqueço da pergunta central do filme Crash. portanto. mas o que sai da boca. a raiva. nos equivocamos e pecamos porque desconhecemos a nós mesmos.2. Jesus foi quem desmascarou esse mise en scène religioso quando – em resposta à acusação feita pelos fariseus aos discípulos. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?” (NIETZSCHE. muito evidente nessas alegações acima referidas. uma vez que “do coração procedem os maus desígnios” (Mt 15.constante de si mesmo e suas motivações e na penetração no que há de mais profundo e. 7). baratos e que desmancham no ar. quase sempre oculto no ser – como a ânsia por poder. por um lado. Esvaziamos a espiritualidade quando focamos demais nas supostas demonstrações e desviamos o olhar sobre o coração. de nós mesmos somos desconhecidos. mesmo para fins teológicos ou especialmente para eles. pastores e missionários cristãos como sendo essenciais: o exame do coração e o autoconhecimento. a perda. quem sabe o dia de amanhã? Quem conhece a própria reação ao próximo ato. 2007. sobretudo para a “massa” dos fiéis. não nos conhecemos. o que representa na verdade o seu esvaziamento e denota sua superficialidade. à circunstância seguinte? Quem pode prefigurar o rosto que terá de enfrentar na próxima vez em que se vir diante de um espelho? Apenas 120 Missão Integral . Isso quer dizer que. Afinal. e das quais a igreja tem o privilégio de participar”. na definição de David Bosch (2002. E aqui preciso de novo o que vimos nas duas primeiras unidades desse curso: Missão é. O contrário disso. o que torna a oração do salmista Davi ainda mais necessária. nesse sentido. e sim uma realidade. na Missão que é de Deus. a natureza de Deus é Missão. 63). um ministério ou uma igreja. vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno” (Sl 139. Assim. e da mesma forma da Igreja (rebanho e povo de Deus) e do Ministério (serviço) na força que Deus supre. p. que.Deus conhece e sonda profundamente nossas intenções e motivações. verdadeira e libertadora: “Sonda-me. Qualquer motivação que nos impulsione ou papel que nos caiba precisa ser gestado e gerido dentro do horizonte dessa Missão. que vai além do individualismo 121 . de acordo com Bosch (2002. consiste na “auto-revelação (sic) de Deus como Aquele que ama o mundo. na dependência do Santo Espírito. Por outro lado. facilmente se degenera em um projeto de poder – e como fugir dele? –. o envolvimento de Deus no e com o mundo. nosso equívoco e pecado provêm também do desconhecimento ou ignorância em relação à origem e natureza da Missão. Pensando com Bosch. é assumir. Em suma. antes mesmo da fundação do mundo e de nós mesmos. que nunca fica apenas no deslize gramatical. p. “a missão da igreja não vai inaugurar o reinado de Deus. prova-me e conhece os meus pensamentos. a natureza e a atividade de Deus que compreende tanto a igreja quanto o mundo. como a que se vê na canção “Eu tenho um chamado”. O reinado de Deus não é um programa. em detrimento da ideia de obrigação ou de uma diretriz pessoal. 28. grifo meu). mas participo. em concorrência e não cooperação com Deus e seu reino. o privilégio de participar na Missão de Deus. ó Deus. introduzida pelo acontecimento pascal”. isto é. Missio Dei ou Missão de Deus. porque Deus é amor. Isto significa que “eu” não tenho uma missão. porém o possível fracasso dessa missão também não o vai frustrar. a espiritualidade é necessária à missão no exame de nosso lugar e motivações nela. e conhece o meu coração. antes de tudo. e a missão coloca a espiritualidade nos trilhos de um propósito maior. pela graça. Perceba o destaque que faço à palavra “privilégio”.23-24). A missão da igreja. é praticamente impossível ser honesto 122 Missão Integral . a aventura do caminhar. mas na liberdade do Espírito. político ou professor – não surge com a indicação prévia do caminho a ser percorrido. é a impulsão do ser rumo à sua plena realização em Deus. outros por oportunismo. alguns fazem por necessidade. como vimos. Faz parte do processo de maturação da vocação divina no ser humano o prazer da busca. isto é. o risco da decisão. nem de quando. Envolve desempenho – como no caso do mestre. não por força ou obrigação. Todos sabem que vocação tem a ver com o chamado ou a inspiração quem vem do Senhor. nem todo mundo que faz alguma coisa o faz por força da vocação. A parte difícil dessa história toda é que o saber-ser e o ser-saber da vocação não se adquirem de modo instantâneo. mas da vocação. mas quem “faz” porque “já é”. A espiritualidade como busca e resposta a uma vocação Até aqui. Nesse sentido. não é nossa nem tem origem em nós. e assim por diante. imagens e conceitos em palavras – porém é mais que desempenho. missionário. pelo menos não do modo como vejo. mas em Deus. que traduz pensamentos. onde ou como. a convicção de que Deus nos chama para um modo de ser-no-mundo e para uma tarefa específica – como a de ser pastor. mas por obediência. que com sabedoria e destreza ensina. não por ambição. Ou seja. o fazer é resultado natural do ser.extático e desemboca na luta pela transformação da realidade vivida por cada pessoa no mundo. necessariamente óbvio e de uma vez por todas. Por isso. ou do escritor. a necessidade de discernimento. Aqui gostaria de endereçar uma reflexão mais específica sobre a vocação pensando-a como tema essencial e caro tanto à espiritualidade quanto à missão. que nos presenteia com dons e talentos e nos convida a fazer uso deles no serviço ao reino e à Missão de Deus. médico. Vocacionado/a não é quem “faz” para “ser”. E não há nada como o fazer que segue não o ímpeto do ativismo. os elementos do chamado e da vocação aparecem como ensejo para uma discussão sobre as motivações que nos impelem à missão que. a quem devo. biblicamente falando. com sentimento de rejeição e abandono. Antes de tudo. apressados pra sair dessa logo. “em pânico” (v. encontramos o princípio de que viver bem. para onde me conduz. Então. apela para a justiça e fidelidade divinas (v. Diante dos muitos conflitos que enfrenta. porém. mas e daí? Em que isso me torna. O salmo 143 de Davi. a fim de dar lugar a uma vontade maior e soberana: a de Deus. 3). O ponto para mim. e o que pretendo fazer com isso? O que é a vontade de Deus? Como conhecê-la? O que fazer para cumpri-la? Esse é um mistério que tem permeado a vida de pessoas ao longo de milênios. do que envolve esse “andar conforme”. Normalmente. servirá como ponto de partida aqui. Não há dúvida de que. é um rumo definitivo. 4). trata-se de uma oração. Mostra-se muito angustiado e com o coração aflito. de uma súplica. com temor e dignamente significa dispor a vida para andar conforme a vontade do Senhor. e com as incertezas. quando buscamos a vontade de Deus. O jeito com que se trata esse assunto é o que gostaria de refletir aqui. nós suplicamos com mais força quando sofremos. Gostaria de me deter um pouco nestes dois aspectos. suplicamos para que Deus se apresse a nos responder. também é isto: permitir que nossa vontade saia cada vez mais de cena. com medo. a dar um rumo definitivo. incertezas e dúvidas que fazem parte da vida de qualquer 123 . E muitas vezes ela tem a ver com frustração. uma ferida aberta. Sentimos como se a angústia fosse um peso. Mas descobrimos que na vida não há rumos definitivos – nem a morte. ao lermos as Escrituras. Costumo dizer que a angústia não pode ser desprezada. E é o que está acontecendo com Davi. em parte. Converter-se a Cristo. é: se temos consciência. pois é uma das avenidas que nos conduzem aos braços de amor de Deus. Mas nem sempre conseguimos lidar com ela. humano. honesto e orgânico. posso ter um chamado.e ao mesmo tempo assentir com a percepção da vocação como um lugar inflexível – como quem afirma: “Deus me chamou apenas para ser professor de teologia” – combinada com uma visão tão pouco condescendente com a realidade e a variedade da condição humana sobre a vontade de Deus. uma faca cravada no peito da gente. partindo da aporia: sim. E o mais duro golpe aos apressados é ter que lidar com as indefinições. nos confronte. Entender de dentro para fora é encarnar a mensagem. pela renovação da mente (cf. nos inquiete. a vontade de Deus se experimenta e se pondera. Davi pede que o Senhor o ajude quando tiver que escolher o caminho a se andar (v. deixar que ela faça morada na gente. sofrendo e mudando) que se aprende. 124 Missão Integral . que a vontade de Deus é isso. que brotam de dentro da vida e se aplicam a ela. Rm 12. porque certamente ele cairia. nos transforme. se perdi um emprego. Por isso repito que discernir é preciso! O salmista (119:27) também ora: “Faze-me discernir o propósito dos teus preceitos. tais como: a pregação de que precisamos estar no “centro da vontade de Deus”. quando assim fazemos.pessoa comum. pois é vivendo (errando e acertando. Dessa forma. foi Deus quem quis. e não pode ser aquilo. pois estava preparando um ainda melhor pra mim. Na tradução A Mensagem: “Ajuda-me a entender estas coisas de dentro pra fora”. como também para alimentar o que se deseja. posso concluir dessa primeira parte de nossa reflexão que a vontade de Deus não se mostra instantaneamente. facilmente confundimo-la com a “nossa vontade do que seja a vontade de Deus”. A chave do Salmo 143. quem se lança na aventura de aprender. Parafraseando Nietzsche. quando roga para que o “ensine a fazer sua vontade” (v. do desespero. mas a escolha é nossa. E Deus só pode ensinar sua vontade a quem quer aprender. Como eu entendo a vontade de Deus? Como um mistério revelado que só se compreende e se experimenta na medida em que se caminha e em que se vai à luta. Conclusão Portanto. e assim a Palavra se torna viva em nós. Privatizamos a vontade de Deus e. 10). foi “da vontade de Deus”. e assim por diante. se o avião não saiu do aeroporto. vem quando. então meditarei nas tuas maravilhas”. as melhores verdades são as verdades sangrentas – isto é. 8). a “vontade de Deus” vai se tornando a fórmula religiosa para expiar tudo o que é indesejável. para mim. se desastres acontecem. A vontade é de Deus. Daí brota as distorções. que cada detalhe da vida não pode fugir do plano de Deus para nós. era propósito de Deus.2). quando ninguém espera. Missão transformadora. ELLUL. _______.. não há propagação do evangelho.. 2002. Scottdale. políticas do homem. NIETZCSHE. 2006. 1979.Ademais. quando ninguém espera mais nada. Não há obras. São Paulo: Cia das Letras. A spirituality of the road. Jacques. nem igrejas. nem excesso de sofrimentos humanos que nos permitam dizer: “É amanhã. Deus é Deus. Não há passagem de tempo que corresponda a períodos históricos. (. Políticas de Deus... São Paulo: Fonte Editorial. Referências BOSCH. Deus é livre para fazer sua vontade e a realiza em total liberdade. Mudanças de paradigma na teologia da missão. Ele fala.) Não existem planos pré-concebíveis. nem êxito em missões. de modo que: Não há razão. David.”. 66). causa ou condição para a vontade livre de Deus. motivo. 125 . 2007. RS: Sinodal. p. como bem analisa Jacques Ellul (2006. Genealogia da moral. 65. A Palavra que dirá isso virá a nós como águia. Pennsylvania: Herald Press. discerníveis ou revelados. São Leopoldo. e as coisas acontecem. Friedrich. Não há sinal premonitório que possamos calcular. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 126 Missão Integral . Desenvolver a consciência sobre o lugar e importância de nossas próprias fraquezas na espiritualidade da missão. especialmente no capítulo 28.Missão Integral Unidade 10 Missão e Espiritualidade (II) Introdução Nessa unidade quero prosseguir refletindo nas mesmas questões que nos moveram na unidade anterior (já que esta é uma continuidade daquela). um estudo de caso em Henri Nouwen1. tendo mais especificamente dois enfoques: primeiro. sugiro a leitura da biografia escrita por Michael Ford. 1 Mais sobre a vida e as contribuições de Nouwen pode ser encontrado em meu Humanos. Veremos que a vocação não tem que ser percebida na base da fixidez e da certeza. 2. destacando. 127 . Compreender a questão da vocação através da vida e obra de Henri Nouwen. Segundo. como tese. Objetivos 1. Para uma perspectiva mais ampla e profunda. Nouwen (2005). O profeta ferido: um retrato de Henri J. mais particularmente no modo como ele trabalha o tema da vocação em seus textos sobre espiritualidade. uma reflexão sobre o que chamo de lugar da fraqueza na espiritualidade da missão. e como lidou com a própria vocação que recebeu do Senhor ao longo de sua vida. que a assunção humana de nossas fragilidades é condição prévia para a missão. M. mas pode também ser um caminho em que nunca paramos de perguntar ao Senhor: “Que queres de mim?”. graças a Deus (2013). O discernimento não necessariamente traz direção. Apenas para situar. mas ensejando pensar que existem outros caminhos possíveis de se lidar com a questão da vocação e com a “certeza do chamado”. No meio das atividades. à escrita e ao magistério. Dali foi convidado para ser professor de teologia pastoral na Universidade de Yale. a maioria sobre espiritualidade. Nouwen tinha à época 51 anos de idade e 25 de ministério ordenado. Cursou o seminário. Não conseguiu concluir a contento sua formação acadêmica. Nouwen afirma ter tentado discernir a voz de Deus e seguir um caminho de obediência àquela voz. A pergunta central que o guiou durante aquele tempo era: “Deus está me chamando para viver e trabalhar na América Latina nos anos seguintes?” (NOUWEN. 2005. indefinida. p. p. em 1981. conversas e encontros que ali teve. num certo sentido. No entanto. mas nos ajuda a ser honestos para com a difícil jornada que temos adiante. mesmo após anos dedicados à igreja. renunciou-o para passar seis meses na Bolívia e no Peru. Permaneceu por dez anos naquele posto e. como expressa Nouwen (2005. nascido em 1932 e falecido em 1996. Utilizo sua experiência sem pretender absolutizá-la. que foi publicado em livro sob o título: Gracias! A Latin American Journal. disciplina que estudou durante anos e que futuramente ajudaria muito a construir sua visão sensível e ao mesmo tempo assertiva sobre o ser humano. xvii. 13. Prova disso é seu diário do tempo que passou na América Latina. Desde os cinco anos de idade sonhava em se tornar padre. viagens. uma suma: Nouwen foi um padre holandês. a pergunta pela vocação permanecia viva e. tradução minha). a esta altura já havia alcançado notoriedade mundial como escritor de livros. ingressou como professor de psicologia pastoral na Universidade de Notre Dame. Ainda assim. tradução minha): 128 Missão Integral . foi ordenado aos 31 anos de idade. Daí seguiu para a psicologia. E discernimento permanece sendo uma das palavras-chave para a compreensão e vivência da vocação e da vida em missão. aberta.Henri Nouwen e a questão da vocação O exemplo de Henri Nouwen é uma amostra concreta de onde quero chegar com esta reflexão. Resolveu mudar-se para os Estados Unidos para se especializar ainda mais nesta área. Mas quando continuamente tentamos viver no Espírito.. diga-se de passagem. Ele passou a receber cartas de Harvard. pelo menos estaremos dispostos a confessar nossa fraqueza e a pedir perdão toda vez em que de novo nos encontrarmos a serviço de Baal. que quanto mais se via cativo à ambição (de sua carreira. Mais uma vez.. seu ministério). percorrer o caminho. mesmo que não se obtenha uma resposta rápida – o que normalmente ocorre. Por isso a necessidade de arrependimento. ele percebeu. mais difícil 129 . Discernimento se mantém sendo nossa tarefa para a vida toda. de 1983 a 1985. E observe que Nouwen não é daqueles autores que propõem uma vida no Espírito. uma vida de oração incessante e contemplação. e só é passível de se arrepender quem reconhece a própria fraqueza e admite não ter todas as respostas – como me parece ter sido o caso de Nouwen. com classes sempre lotadas de estudantes ávidos por ouvi-lo. bem como a lidar com as constantes incertezas. Nouwen lecionou na Harvard Divinity School. é uma pretensão tola e infantil. que acontecem e sempre acontecerão.) Nós certamente cometeremos erros constantes e com frequência veremos a pureza do coração sendo requisitada para tomar as decisões certas. de oração e comunhão com Deus. Ao retornar desse período na América Latina. que lhe ofereceu uma posição como professor ali. Nouwen tinha apenas a clareza de que seu desejo de servir os pobres do mundo era genuíno e real. uma vida de profunda comunhão com o Espírito de Deus. portanto. ele diz que esse tipo de vida nos ajuda na tarefa do discernimento. (. enfrentar a questão com discernimento. como fórmula mestra para que Deus se apresse. assim como a tratar nosso eventuais equívocos e desvios. como relatou em um de seus diários. Pelo contrário. Mesmo não aceitando o emprego em tempo integral. mas que não seria na América Latina. ou para que tenhamos total certeza de que estamos “no centro da vontade de Deus” – que. um semestre por ano. Podemos nunca saber se estaremos dando a César o que pertence a Deus. porém. sendo ali aclamado como professor. Eu não consigo enxergar outro caminho para o discernimento que não seja uma vida no Espírito.Somos chamados a discernir cuidadosamente os movimentos do Espírito de Deus em nossas vidas. É preciso. ou um “profeta ferido”. fundamental é manter viva a chama do relacionamento. Por essas experiências. e para discernir se aquele era um caminho para uma melhor realização de vocação no reino de Deus. pois compreendeu que a questão da vocação não está ligada principalmente ao lugar em que atuamos. p. em Toronto no Canadá. Para Nouwen. Como ele conclui na parte final de Gracias!. como ele mesmo denominou em um de seus livros (2001). em Trosly. O lugar não é o mais importante. mas com a constante abertura do coração para Deus e o que Ele quer fazer por meio de nós. Nouwen finalmente decidiu que sua vocação dali para diante seria ser um membro e ministro de cura na Comunidade A Arca. de experiências novas e inusitadas. nos dizeres de Michael Ford (2005). soando um tanto como o apóstolo Paulo: Hoje eu me dei conta de que a questão de onde viver e o que fazer é realmente insignificante se comparada com a questão de como manter os olhos do meu coração focados no Senhor. miserável e deprimido em todas essas situações. 2013. tradução minha). Posso estar lecionando em Yale. 102. porém permanecia a incerteza do caminho. Logo saberá se aquele é o lugar que Deus quer ou não que esteja” (NOUWEN. de ser um ministro da cura. tornandonos agentes de sua Missão onde quer que estejamos. mas também de escolha e do risco de cada decisão. Estou certo disso porque é o que aconteceu. Não 130 Missão Integral . como sentida naquele momento. Assim. De novo. havia a certeza da vocação original. Vocação não é apenas uma questão de “chamado”. Em 1985 Nouwen recebeu um convite do francês Jean Vanier. Ao final daquele período. ou caminhando por aí com as crianças pobres no Peru e me sentir totalmente inútil.era enxergar aqueles que são cativos pela pobreza. na França. onde permaneceu pelos dez últimos anos de sua existência. concluiu que “às vezes a maneira de saber onde você é chamado a estar é indo onde sente que deve ir e estar presente naquele lugar. fundador da Arca – uma instituição responsável por cuidar e ser comunidade para pessoas com deficiência mental – para passar um ano sabático em uma das comunidades da Arca. um “curador ferido”. foi um ano de descobertas. Nouwen finalmente se encontrou. trabalhando na padaria da Abadia de Genesee. servimos e vivemos. 1983. verdade e vida. Quando pensamos a missão na perspectiva triunfalista da nobreza do “meu chamado”. Muito pelo contrário. A diferença nunca foi baseada na situação em si. servindo de inspiração ao próprio Bosch em sua abordagem à espiritualidade missionária de Paulo: “A fraqueza não é nenhum acidente da missão. nenhuma circunstância que se tenha que lamentar. Quando sabia que estava caminhando com o Senhor. 56).existe tal coisa como o lugar certo ou o emprego certo. Com Nouwen aprendo que o mais importante não é tanto a certeza da vontade de Deus sobre onde se deve estar. gostaria de falar sobre a importância de assumirmos e lidarmos com nossas fraquezas enquanto caminhamos pela vida em missão. José Comblin também escreveu algo nesta direção. Tenho me sentido consternado e jubiloso em situações de abundância tanto quanto de pobreza. sempre me senti cansado e dividido (NOUWEN. em situações de sucesso e de fracasso. 76. 2005. Bosch não está sozinho nesta percepção. quero iniciar examinando duas afirmações que devem servir aqui de ponto de partida. mas sempre em meu estado de mente e coração. em situações de popularidade e anonimato. de um grande empreendimento da igreja ou 131 . p. experimentando sucessos e insucessos. Para tanto. de preferência ao lado de Jesus. caminho. 1988. a segurança da posição que se ocupa numa organização. Posso estar feliz ou infeliz em todas as situações. e amadurecendo na fé. tradução minha). é percorrê-lo. Estou certo disso porque tenho estado. sempre me senti feliz e em paz. 152). A primeira é de David Bosch: “A verdadeira missão é a mais fraca e menos impressionante atividade humana que se pode imaginar. O lugar da fraqueza na espiritualidade da missão Finalmente. p. é uma condição prévia de qualquer missão autêntica” (COMBLIN. a própria antítese de uma teologia da glória” (BOSCH. p. colhendo frutos. mais importante que saber o caminho. enfrentando percalços. O caminho se revela melhor quando caminhamos. ou se está ou não “no caminho certo” ou inequívoco da vontade de Deus. Quando me vi preso em minhas próprias reclamações e necessidades emocionais. Assim é para mim a relação entre a cruz e a ressurreição. o linguajar militar. ela provoca um duplo afastamento: (1) o do mundo desse Cristo bélico e conquistador e. desfazendo-se de todo orgulho de ser. já perder a vida. a imagem não é de triunfo. Deus não é sádico. perdê-la. reconhecendo-se como 132 Missão Integral .mesmo de uma cruzada no mundo a fim de “ganhar almas para Jesus”. não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos ver morrendo. mas significativa. Com isso não quero dizer que. para lutar contra as potestades que dominam a terra e aprisionam as almas dos mundanos e pagãos. Mt 17. é que negar-se é uma forma de declarar a morte de algo dentro de si (o que Paulo chama de “velho homem”). mas para afirmá-la. mesmo os de Paulo. Deus foi derrotado. mas utilizado fora de contexto e para propósitos duvidosos. No entanto. não muito estranho aos escritos bíblicos. porém. a si mesmo se negue. O paradoxo aqui. domina esse tipo de cosmovisão missionária. que gera vida. fragilidade e dor. tome sua cruz e siga-me”. segundo Jesus. Jesus também falou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém quer vir após mim. porém. pela causa certa. pode ser caminho para uma vitória não triunfal. Não. em uma ideia desorientada e deturpada de apresentar Deus ao mundo. a fim de fazer brotar e florescer da própria vida um novo ser humano.25). O problema é que. é negando-se a si mesmo. de um ideal-raiz da vocação e espiritualidade cristãs. a evocação de um lugar de um poder e uma unção sobrenatural sobre o missionário ou embaixador de Cristo torna-se necessária e até comum para justificar uma missão de tal natureza. em Jesus. na verdade. é preciso se revestir de força e se lutar com as “armas da fé”. Assim. mesmo arrebatando e convencendo a muitos de sua eficácia motivadora. mas de submissão. A mensagem da cruz carrega o gene da morte. não nos criou para rejeitar a vida. Quando olhamos para o caminho (missionário) de Jesus. glória ou conquista. Ou seja. como no paradoxo do Cristo: tentar salvar a vida é. (2) da igreja da perspectiva do Cristo da cruz dessa missão triunfal e gloriosa. e sim que nele vemos o sentido de que perder nem sempre é signo de derrota. estas afirmações soarão um tanto estranhas e sem propósito. abraçando a própria fragilidade. Afinal. é achá-la (cf. que acaba se transmutando. até para os discípulos à época foi difícil de acreditar. meu poder é magnânimo. Além disso. numa palestra. para que a morte não tenha a última palavra. de alegria. como que dizendo: “Viram só. Julio Zabatiero (2012). mas não sem tristeza. Não. Ressuscitou precisamente porque morreu. triunfal e barulhento. tivéssemos esperança e. mas não sem fraqueza. mas não sem fracasso. mas para o bem-aventurados do reino os quais. para que nós encontrássemos vida Nele e. Jo 20. mas não fora das trevas. mas a grande prova de que Ele É em mim e de que EU SOU. de luz. O Pai ressuscitou Jesus dos mortos porque Ele é o seu Filho amado. creram e creem (cf. espalhássemos essa boa notícia de vida. precisam “ver para crer”. Em suas palavras exatas: “A teologia é a linguagem do paradoxo: quando digo que Deus está morto. e não é porque morreu que deixou de ser o Deus crucificado. Como disse. a ressurreição foi um ato silencioso e marginal de Deus. mas vive. o rei dos Reis!”. por isso curvem-se diante de mim. A ressurreição não é prova de nada nem existe para provar alguma coisa. Para ressuscitar é preciso morrer e é morrendo que se vive. para confirmar a obra do Filho. mas como mito. tendo esperança e pela fé. é que agora ele vive de novo.29). Não é o aguilhão daqueles que. amor e esperança ao mundo. mesmo não vendo. A mensagem da ressurreição. por sua vez. como Tomé. de modo que se a história até hoje a encara não como evento. a ressurreição não foi um evento majestoso. Como vemos nas narrativas da ressurreição em Lucas 24. E assim fazemos seguindo o mesmo modelo e espírito que vimos 133 . de força. Deus está morto e permanece morto. não saiu nos principais noticiários do dia. mas correu de boca em boca.ser codependente. como Mateus indica (Mt 28. mas não sem morte. tendo vida. de vitória. não houve testemunhas à beira do túmulo. apenas anjos que anunciaram a poucas mulheres que Ele já não está morto. é a melhor maneira de afirmar que Ele está vivo”. Deus não ressuscitou Jesus dos mortos preocupado com a propaganda do seu governo sobre a terra.17). não existe nem faz sentido se separada da mensagem da cruz. eu tiro e dou à vida a quem quero. mesmo quando o próprio Jesus de repente apareceu no meio deles. é que podemos afirmar a vida e a liberdade humanas. É uma mensagem de vida abundante. vocês mataram meu Filho. p.. O messianismo ficava totalmente alheio às suas perspectivas. do diálogo. “os homens são vulneráveis.em Jesus Cristo. cercando-se de argumentos fortes para “defender” a perspectiva do reino de Deus. que. p. Na verdade Jesus estava completamente desarmado no meio dos homens. menos ainda com os filósofos pagãos. e quis estar assim. 56. de modo que. para se encontrar com a humanidade em todos os homens. em muitos milagres que realizou pedia total sigilo daquele(a) que o recebeu. da infantilidade espiritual. O sinal supremo que deu aos homens foi sua morte. Estava desarmado para poder alcançar o homem na fonte de sua humanidade. do arrependimento. Não quis argumentar com os escribas e os doutores da lei. Como lembra Comblin (1983. por falta de requisitos mínimos para se encaixar (conforme as caixas de encaixe hoje vigentes em muitas igrejas e agências missionárias do mundo): caminhou à margem da religião e da cultura. abraçou não apenas as vulnerabilidades humanas como escolheu ser humilde entre os humildes e desgraçados. não se faz ninguém se achegar ao reino pelo poder do argumento. Não impressionou pelo poder. manifestação visível da mais completa incapacidade e dominar e de convencer por meio de argumentos tirados das culturas e das civilizações. pelo contrário. Pensando na mesma direção que Comblin. o Filho de Deus. do perdão e da graça. grifos meus): (.) se manifestou sem nenhum dos atributos da força humana. no nível da maior universalidade: concretamente para poder ser recebido pelo mais humilde dos homens. 58). A possibilidade de mudança radica justamente nessa vulnerabilidade”. Não conquistou o povo pela abundância de suas esmolas ou as obras de desenvolvimento. 134 Missão Integral . mas pelo caminho da fragilidade.. Jesus não quis brilhar pela cultura. em Jesus. não partiu para o caminho da apologética ou defesa da fé. como expressa Comblin (1983. não primava por demonstrações sobrenaturais de poder. é possível dizer que Jesus não teria um perfil para ser um missionário cultural ou transcultural em nossos dias. 60). ele complementa esta ideia acrescentando a perspectiva de que a graça de Deus nos é suficiente em tudo. as perspectivas de Bosch – de que a missão não tem nada de impressionante. sem se preocupar em agradar a ninguém ou mesmo com o possível insucesso. Fp 2. do dinheiro e da cultura”. rejeição ou má reputação. enfrentar a ira dos que estavam presente na sinagoga. a tentação da força. a expulsão de sua própria cidade e tentativa de assassinato (cf. 135 . Não é à toa que Paulo desenvolveu toda uma teologia do poder e da fraqueza em sua carta missionária. é antítese de uma teologia da glória – e a de Comblin – da fraqueza como condição prévia de uma missão autêntica – faz jus à perspectiva bíblica e primitiva de missão. apresentou a boa nova do reino em obediência à sua missão. segundo vejo. a de que temos esse “tesouro em vasos de barro” (2Co 4. habitando e agindo através de seres frágeis como nós – e que. em que declarou a palavra do profeta Isaías se cumpria nele mesmo naquele momento. o evangelho. o poder que vulta em nós não é propriamente nosso. e profeta que é profeta não esconde sua fragilidade nem teme perder a própria cabeça.Conclusão Ademais de tudo o que se tratou até aqui. portanto.6). e teve de reconhecer a rejeição dos seus. Ali ele utiliza-se de uma metáfora poderosa. de II Coríntios. Isto porque. p. no capítulo 12. concordam? Por essa razão é que. Por essa razão. mas vem de Deus. ao mesmo tempo em que rejeitou o caminho da usurpação de ser “igual a Deus” (cf. Não poderíamos chamar isto de um início bem-sucedido aos olhos da cultura (especialmente a nossa). Jesus foi um profeta. Adiante. conforme analisa Comblin (1983. que o espinho na carne – ou a “dádiva de uma deficiência”. devemos lembrar que Jesus não se aliou às estruturas e poderes de seu tempo. poder de Deus.7). seu ministério profético iniciou-se com um discurso arrojado numa sinagoga em Nazaré.16-30). a tentação pela qual passa o missionário é parecida com aquela enfrentada por Jesus: “a tentação de messianismo. Lc 4. do poder. e mais do que isso. a fim de que reconheçamos que isso é por pura graça e um milagre – um vaso contendo um tesouro. fecundity and ecstasy in Christian perspective. Jonathan. mas gravar com lança pontiaguda no coração: “A igreja não é composta de gigantes.na tradução A Mensagem – não será arrancado. Essa sim é. 1979. 77. apenas seres humanos feridos podem guiar outros até a cruz”. O profeta ferido: um retrato de Henri J. 2001. Termino com uma frase de David Bosch (1979. _________. uma “verdade sangrenta”. Gracias! A Latin American journal. Henri. em 07 de junho de 2012. nos dizeres de Nietzsche. Petrópolis. 2013. COMBLIN. então é que somos fortes (2Co 12. Discernment. Referências BOSCH. Scottdale. Intimacy. NOUWEN. RJ: Vozes. Palestra proferida na Consulta Nacional da FTL-B em Belo Horizonte/MG. David. Rio de Janeiro: Novos Diálogos. p. 2013. _________. A spirituality of the road. New York: Image Books. José. FORD. tradução minha). Reading the signs of daily life. São Paulo: Paulinas. Nouwen. Julio. Humanos. 2ª ed. _________. pois ele está ali por uma razão: para esbofetear nossa prepotência e nos fazer aceitar com gratidão nossas fraquezas. 1990. Maryknoll. Michael. O Sofrimento que cura. Teologia da missão. 1983. Lugares e modos da teologia para a igreja e a realidade brasileira contemporânea. pois é através delas que o poder de Deus se aperfeiçoa em nós. ZABATIERO. Portugal: Paulinas. Prior Velho. New York. New York: Orbis Books. graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. pois quando somos fracos. 136 Missão Integral .7-10). Pennsylvania: Herald Press. Lifesigns. daquelas que precisamos lembrar não apenas na mente. MENEZES. 2005. 2005. M. NY: HarperOne. Material em vídeo. 137 . parto do pressuposto evangélico (isto é. Objetivos 1. como já deve ter ficado claro. abordando a distinção já mais ou menos conhecida entre “a política” e “o político” e o que isso implica. Nesta unidade.Missão Integral Unidade 11 Missão e Política (I) Introdução Neste curso. graças ao conhecimento que hoje muitos cristãos e igrejas têm a respeito. bem como da missão. partirei da conceituação de política na ordem do ser e do agir humanos. uma vez que tudo isso e muito mais permeia o ser humano em sua complexidade. Reconhecer que “ser político” é parte de nosso modo de ser cristão/ cristã no mundo. ideológico e político. Conhecer e entender as possíveis diferenças entre “o político” e “a política”. a missão de Deus não mais pode ser esquartejada – como no passado – sem que isto tenha implicações sérias para quem o faz. intelectual. emocional. E é precisamente partindo do ponto da indivisibilidade do ser que gostaria de explorar um pouco nesta unidade algumas facetas dessa relação entre missão e política. Defende-se que não é possível – por mais que se tente – separar o ser espiritual do ser físico. psíquico. humano. Desse modo. do Evangelho) da integralidade do ser humano e da vida. 2. uma opção pela omissão. Contudo. aos conflitos e relações da típica convivência. A política. somos fruto de e tomamos parte em decisões políticas. direta e automaticamente ligada. governantes. a cooptação e os interesses de uma classe que se foi criando e profissionalizando – que é a “classe política” (ou “dos políticos”). que é a família e o clã.A política e o político. à pluralidade. do nascimento até a morte. à diferença. p. no sentido grego aristotélico. com tudo o que há de mais sórdido. uma vez que. uma opção pelo não ser. quanto o voto consciente (CAVALCANTI. Diz ele: Todo homem é cidadão de um Estado. sujeito de deveres e direitos. mas com documentos da organização internacional (a ONU) se insere politicamente. A omissão é um voto permanente e reiterado em favor ou contrário a medidas. O apolítico é um personagem de ficção. ou seja. de um organismo político. que nos exponha à alteridade. sujo e trágico em nossa sociedade 138 Missão Integral . Apenas o apátrida não se vincula a um Estado. e à responsabilidade de gerir e contribuir no governo de si e dos outros. 2004. partidos ou regimes. Todo homem (incluindo-se o cristão) é sócio. entende-se como sendo uma maneira estrutural de participação e gestão dos negócios da polis (cidade). faz um esclarecimento importante sobre essa condição do ser humano como “animal político”. na vida do Estado que o recebe. tão culpado. O voto por omissão é tão responsável. como Aristóteles há bastante tempo definiu. Robinson Cavalcanti. Ser apolítico já é uma posição em si – uma posição para fora. alienado. como residente temporário ou permanente. pela corrupção. não-engajado. 14-15). do momento em que somos concebidos dentro de um núcleo social. O termo apolítico pode ser traduzido como apartidário. por boa parte da população. em Cristianismo e política (2004). como a palavra “política” é uma palavra hoje bastante desgastada e carregada no contexto brasileiro pelos escândalos. até o instante em que passamos a participar de uma vida social mais ampla. “somos políticos” em nossa constituição social. o ser e a missão! A política constitui e permeia esse modo de ser humano no mundo. o político. de quem “faz” a política ser o que ela tem sido por milênios. De acordo com Nicolás Panotto (2012. mas é parte constitutiva de toda pessoa. maus são os desígnios e más são as motivações e as ações efetivas dos instituintes e dos governantes. tradução minha). Isto pode ser exemplificado pela situação em que grupos ou movimentos sociais (o político) instituem os termos da luta pelos direitos dos homossexuais. não só para mostrar que uma coisa não necessariamente se mistura com a outra. das ideologias. tradução minha). mas em interação constante com outros e outras”. mas também para resgatar a consciência quanto ao sentido originário do ser político para além de opções partidárias e/ou institucionais. Em outras palavras. Nela encontramos de modo escancarado o que Jacques Ellul (2010. p. o político. representa esta constituição própria de cada pessoa e do social. para ele. Nos termos de Retamozo Benítez (2009. isto é. p. Embora sobreviva e se propague debaixo de uma nuvem de desconfiança e ceticismo. é “o lugar de toda pessoa na construção constante de sua identidade e ‘lugar no mundo’. políticas públicas) em que esse instituído passará a funcionar (pelo menos na teoria). de modo que o que acontece na política está (ou deveria estar) sujeita aos processos do político. 79. 115. toda comunidade”. homens e mulheres aceitos dentro de um estado legal). Dessa forma. por sua vez. não é exatamente a política que nos permeia preliminarmente. Mais do que cidadania (isto é. Nesta acepção. mas o político. não de forma alienada. prefiro dizer que a política não e má em si. p.–. “o político possui um caráter substantivo e uma função instituinte. e o governo estabelece e administra as bases (projetos. leis. Por essa razão é que 139 . o que nas instâncias do político se fomenta e se cria acabam desembocando na administração disso na parte da política. a política nos remete à esfera institucional dos partidos. o político “não é tarefa de especialistas ou de certas instituições. todo grupo. torna-se necessária e útil uma diferenciação entre “a política” e “o político”. 24) chamou de duas grandes características do ser humano: a cobiça e o desejo por poder. embora a política suponha uma lógica instrumental de administração do instituído”. dos projetos políticos ligados ao poder político e ao governo. 5-7. autoridades e instituições políticas – pertencem ao Diabo e são outorgados por ele. 2010). mostroulhe todos os reinos da terra num relance. e nosso papel é refletir sobre o que precisa ser feito a 140 Missão Integral . mas precisa se afastar. aqui. p. extorquir. porém. A questão aqui. se preservar. é assim que as coisas funcionam em nosso mundo. e não de demonização da política – como que dizendo: já que é do domínio do Diabo. até que o Senhor venha.concordo com Ellul quando ele afirma que a política faz parte do “domínio do Diabo” (2006. subjugar. Isso se torna mais acentuado na medida em que. roubar. estados.. E uma base clara para esta afirmação está no relato de Lucas 4. Enquanto deveriam se utilizar do poder para servir. é de discernimento de como as coisas são na raiz na política e na economia das ações humanas. utilizam-no para dominar. reverter todo o possível em benefício próprio. ele não contesta o Diabo. Então fez a proposta: “Tudo isto é meu. O que esse texto está afirmando inverte a lógica com a qual muita gente interpreta as Escrituras e o modo como nelas se concebe poder e autoridade. Basta que você me adore e tudo será seu!” (A Mensagem). que significa “aquele que divide”. Não! Isso já tem se mostrado como coisa do passado.. Ele rejeita este poder porque o Diabo lhe pede pra se prostrar e adorá-lo”. da tentação de Jesus no deserto: Para a segunda prova. se purificar. causar mais injustiça. conforme ressalta Ellul (2010. e não ter de curvar-se ao Diabo? Lembrando aqui que etimologicamente Diabo vem de diabolos. Tentando ser convincente. 65). E a pergunta que fica diante disso é: existe algum meio de envolver-se com o poder político – seja ele institucional. o Diabo transportou-o até o pico de uma imensa montanha. De modo que a política – institucional e partidária – tem sido fator de divisão entre os seres humanos. o crente não pode se meter com política. oprimir. “Jesus não rebate a afirmação. você não tem poder sobre reinos e estados’. tudo o que diz respeito aos domínios políticos da terra – governos. religioso ou governamental – e seus meandros. tanto para o bem quanto para o mal. ele não diz ‘não é verdade. Eu mando em tudo e posso entregar estes reinos com o seu fascínio a quem eu quiser. Apesar de tudo. 8). como se disse na época obviamente se referindo à nação brasileira. com as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. contradições e paradoxos”. e fez emergir não uma. Raquel Rolnik (in MARICATO et. há sinais de esperança no ar. Apesar disso. A pergunta de João Dias de Araújo – “que estou fazendo se sou cristão?” – continua ressoando hoje e de modo ainda mais especial. então o Brasil foi para as ruas para finalmente expressar. mas também que o anseio por mudança partiu da base. precisamente as utopias de que tanto carecemos. de modos aleatórios e a partir de vozes não uníssonas. como filho de Deus e instaurador de seu Reino na terra. começando por São Paulo. no Brasil. dada a ausência de novas “utopias possíveis” especialmente entre as gerações mais jovens. 2013. mesmo que não acreditemos mais na política como meio eficaz de resolver nossos problemas coletivos. nem de “fugir da raia”.despeito de nossa crença ou descrença na política do modo como ela se apresenta em nosso país hoje. Começou com uma agenda.. al. e um deles. revelando. p. um dos saldos positivos deste processo foi que nele vimos renascer. nem que não queiramos nos envolver com ela. interrompendo seu silêncio ou seu trânsito para protestar contra o aumento de tarifas no transporte público. bem acima disso. “que perturbou a ordem de um país que parecia viver uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz. Foram protestos em que o político apartidário deu a sua cara. mas uma infinidade de agendas mal resolvidas. e que proibiu até que muitos destes participassem das manifestações. o desgaste. A resposta de Jesus à tentação da política não foi a de se autodeclarar apolítico. qualificou o movimento como sendo um terremoto. que implicou na população tomando a cidade. No entanto. do povo. 141 . como já dito. se deu com as jornadas de junho de 2013. Se antes estava em casa. como “ser político” e. e ao longo foram acrescidas tantas outras na pauta dos protestos que se deflagraram. segundo Rolnik. a descrença e a intransigência para com partidos e movimentos de massa. e se estendendo para inúmeras outras cidades e metrópoles do país. do político que há em cada um de nós e que precisa ser exercitado. demonstração não apenas de que “o gigante acordou”. seu descontentamento com a política do modo como tem sido feita há muitos anos. Uma vida solidária (social e politicamente) não é parte do conteúdo do evangelho. estabelecendo o que poderíamos chamar aqui de um contrapoder. na vida. “o reino de Deus está próximo de vocês” (cf. mas também com os opressores (Zaqueu é um exemplo). das ações e dos setores da sociedade em que melhor posso desenvolver as habilidades que Deus me deu a serviço de um bem comum. da luta pelo 142 Missão Integral . não forçosas e violentas. Lc 10. 63): A política de Cristo pode ser apreendida na Escritura toda. aquilo que a conversão gera em meu ser precisa se ver refletido em minhas relações/ações públicas. a justiça e a alegria no Espírito Santo. Salvação de algo. Em suma. Não se omitiu de ações públicas. Voltando à relação do começo: se ser humano e ser cristão não é uma via paralela ao ser político. Vocação. mas tampouco se omitiu de “ser político”. ao instruir seus discípulos sobre como deveriam proceder quando entrassem numa cidade para anunciar o Evangelho. que os chama para enviar. na ação da Igreja. pensar no político enquanto dimensão de ser-nomundo vai além do parco envolvimento que temos durante o período de eleições. usando outra vez as palavras de Robinson Cavalcanti (2004. radicais. no Jesus histórico. denunciava os modos de vida das pessoas. dos movimentos. Como disse Jesus. isto é. sendo avesso ao poder político. mas em todo lugar em que se luta por e se celebra a paz. p. ainda assim. Ele não abraçou o caminho da política. se misturam. mas para algo. não apenas com as vítimas do sistema. mas. dons e missão. mas não excluía ninguém de seu convívio. nos sinais da história e. mas sua consequência necessária. a serviço do Reino de Deus – que se não se manifesta apenas no terreno da religião. mui particularmente. que não pede ao Pai que tire seus discípulos do mundo. amar e cuidar. seus adversários diretos. da luta pela dignidade humana e pela construção de relações de paz.9). Portanto. reconciliação e justiça entre as pessoas como parte da missio Dei. de uma política de amor e solidariedade. nem mesmo os membros do Sinédrio.ele resiste lutando com armas diferentes. mas são canais que. É participar da vida pública de minha cidade. mas que os livre do mal. do pleito por cargos e benefícios políticos. que os envia para falar e viver. Na próxima unidade. Rio de Janeiro: Novos Diálogos. e no engajamento da igreja nas questões sociais e políticas que a cercam. 2004. Observou-se que. Anarquia e cristianismo. São Paulo: Boitempo. _________. Robinson. enquanto qualidade da missão. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 2011. políticas de Deus. José Miguez. pretendo prosseguir refletindo sobre a questão então pensando particularmente na ideia de encarnação. MG: Ultimato. In: MARICATO. CAVALCANTI. Políticas dos homens. Jacques. São Paulo: Garimpo. Raquel. Referências BONINO. Viçosa. 2006. 2011. Carta 143 . ROLNIK. p. embora sejamos constituídos pessoal e socialmente pelo político em nosso modo de ser.]. Em busca da política. portanto. 34). um tempo no qual a palavra “engajamento” ainda não tem sido suficientemente incorporada como atitude de vida – mesmo considerando alguns sinais evidentes de um possível despertar. São Paulo: Fonte Editorial.poder político e da política institucional e partidária. Conclusão Vimos nessa unidade alguns desafios concernentes à relação entre espiritualidade e política. 2010. Ermínia [et. ELLUL. Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica. Tem a ver com envolver-se e interessar-se pela minha cidade e seus problemas e contribuir de tal modo que “a vontade de amor. al. vivemos numa sociedade que padece de uma consciência do político precisamente por causa de seu desencanto e ceticismo para com a política. com raras exceções. de justiça e de paz do Senhor alcance a melhor realização possível” (BONINO. Los evangélicos y ló político: análisis histórico y nuevos acercamientos. 2013. PANOTTO. II. RETAMOZO BENÍTEZ. Lo político y la política: los sujetos políticos. In: Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales. maio-agosto. conformación y disputa por el orden social. 206. pp. pp. 69-91. novembro de 2012. In: Práxis Evangélica. 7-12. Nicolás. Martín. n. 2009. núm. pp. 20.Maior. vol. 105-119. 144 Missão Integral . mas com a droga dos “cultões” e “louvorzões”. numa espécie de evangelho às avessas: importa que o(a) crente saia da igreja feliz. que é o vosso culto racional. É uma igreja que perdeu o foco da missão e transformação do ser humano todo por meio da vivência e proclamação do evangelho em sua integralidade.1-2). agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12. Como disse São Gregório. de êxtase na veia do crente para que ele possa suportar as pressões externas contra as quais não tem sido educado na igreja a resistir com a força e sabedoria do alto. da qual tanto prezamos e dependemos. mesmo que isso não produza uma base sólida para que ele(a) possa enfrentar os dilemas e adversidades do dia-a-dia com o discernimento e a lucidez do Espírito. E não vos conformeis com este século. santo e agradável a Deus. o Grande: “É melhor arriscar-se a provocar um escândalo do que calar a verdade”. de louvor.Missão Integral Unidade 12 Missão e Política (II) Introdução Rogo-vos. irmãos. que apresentei o vosso corpo por sacrifício vivo. que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa missão. envergonhados. para que experimenteis qual seja a boa. temos feito o inverso: calado a verdade para que o escândalo seja o menor possível. Os cristãos reunidos em Lausanne fizeram a seguinte confidência: “Confessamos. pelas misericórdias de Deus. Endossamos definitivamente a religião do self (TAYLOR. satisfeito e quase que flutuando em “espiritualidade”. e o esvaziamento de nossas igrejas seja uma possibilidade remota. no trabalho. e será preciso mais uma dose de culto. 2005). em 145 . mas transformai-vos pela renovação da vossa mente. na família. O que acontece é que os problemas se acumulam e permanecem lá. na vida cotidiana. de bem com a vida. parece. pois. Hoje. É aquela que se curva aos seus ditames. o Senhor nos insta a que sejamos inconformados com o presente século. pela renovação de nossa mente. segundo Robinson Cavalcanti (2005. 1997. alteridade e transformação tanto no pensar como no agir. abúlica”. portanto. passiva. é o inconformismo.razão de nos termos conformado ao mundo ou por nos termos isolado demasiadamente” (PACTO DE LAUSANNE. em sua Palavra. p. sua forma é outra. 19). Quem são as pessoas inconformadas? De acordo com Cavalcanti (2005. p. Mas não deixa de ser conformada. 1º). nossa rejeição e atitude crítica em relação ao estado de coisas contrário ao modelo de Deus: o anti-reino das trevas e nossa transformação. à medida que se compromete mais com a manutenção de suas estruturas e. diante das formas. Art. por se afastar demasiadamente dos “valores mundanos”. cooperando para a propagação dos imperativos que têm impregnado as mentes de homens e mulheres no século XXI. Qual é o impacto e atualidade dessa afirmação para a os cristãos hoje? Será que temos sido menos conformados com este século que nossos irmãos e irmãs admitiram estar sendo em 1974? O que. contra ela?”. uma comunidade do reino que “perdeu o reino” de vista. 146 Missão Integral . afinal. tais como o consumismo e o individualismo. poderíamos falar de uma igreja que rejeite esse ajuste. consequentemente. que sintoniza a mente de Cristo e agora consegue ver além da mera letra (CAVALCANTI. não abre espaço para a solidariedade. de nós próprios e de nossos relacionamentos. sem ela ou. Por outro lado. negam-se a tomar a forma”. É também uma das maneiras de atestação de que o reino “já” veio: O reino é ainda atestado pela nossa inconformação. Uma igreja que se conforma é aquela que absorve ou é absorvida pelo estilo de vida preconizado pelo mundo e pelos seus sistemas. Falhará a igreja em antecipar os sinais do reino que já veio a partir de Cristo? Terá razão certo pensador quando diz que o reino poderá vir “por meio da igreja. até. Uma igreja conformada é. como sabemos. p. Um dos desafios de uma igreja politizada ou engajada. caracteriza essa conformação com o mundo? Agir em conformidade com o mundo. Conformismo. elas são inconformadas. “é um ajuste às estruturas existentes de forma acrítica. 119). O fato é que. preguiçosa. é assumir a sua forma. 19). no linguajar de Cavalcanti. A igreja é o “novo Israel” que substitui o velho Israel. Conscientizar-se sobre a dupla tarefa de não conformar-se com e de se engajar na busca pela transformação deste mundo. Estes desafios serão ponto de partida das discussões que apresento adiante. Reconhecer a importância de uma igreja engajada nos territórios do político. 2. Adotar a encarnação. tendo em vista a intersecção entre missão e política até aqui preconizada.Quero nesta unidade sugerir pelo menos mais três desafios à agenda da igreja atual. a compaixão e a solidariedade como qualidades ou modos de ser da missão conferida à igreja. 3. 147 . Objetivos 1. é uma identidade fixa. mas todos os sistemas que se afastam do modelo de Deus” (CAVALCANTI. ser cristão significou (e em alguns contextos ainda significa) viver uma vida extremamente regrada e obediente. sagrado e profano. nesses termos. ou até mesmo práticas que configuram uma “santidade”. “O mundo que jaz no maligno não é a criação de Deus. 120). em si. a qual pressupõe a divisão entre corpo e alma. a verdade que nos desafia é que. p. reduzindo-a a uma ginástica cerebral e a um inconsequente exercício místico” (CAVALCANTI. A identidade cristã. Como vimos na unidade 6. e endossando a profunda 148 Missão Integral . e é resultado também da influência do fundamentalismo norte-americano que para cá foi exportado. p. nem tampouco seus discípulos “são” do mundo (no sentido de provir. 2002). Cavalcanti afirma que uma corrente filosófica chamada dualismo. de que existem lugares mais sagrados que outros. o mesmo Jesus agora nos envia ao mundo como embaixadores de uma “revolução silenciosa” que deve ser produzida pela encarnação desse amor no mundo. má. Prova disso está na ideia. isto é. a ausência do mundo.Uma igreja encarnada e aberta para o diálogo “Que estrago fez o neoplatonismo em nossa igreja. pertencer). juntando-se a ele como expressão do “sim” de Deus ao mundo (BOSCH. conforme os dogmas e a reta doutrina da igreja. 1997. visto que privilegiam a elevação da alma ou espírito em detrimento da matéria. desencarnando a nossa mensagem. 120). é tudo aquilo que “jaz no maligno” e nada se pode fazer por ele. Mundo. Essa concepção ainda sobrevive. assim como o Pai enviou Jesus Cristo ao mundo. Dessa forma. mundo terrestre e espiritual. inflexível. desencarnando-a. Há uma patente confusão aqui entre “ser” e “estar” no mundo. Durante muito tempo. Jesus afirma que nem ele. como expressão inequívoca de seu grande amor pelo mundo. Com isso. para muitos evangélicos. baseada num tradicionalismo engessado e estéril. Provimos do e pertencemos ao Pai e ao Reino dos Céus. tomou conta do pensamento e estilo de vida desenvolvido na igreja cristã desde o século IV. O que predomina nesse modelo é o isolacionismo. em sua oração sacerdotal (João 17). Porém. uma igreja engajada é aquela que se faz presente no mundo a fim de transformá-lo. ainda corrente no meio evangélico. 1997. por diversos fatores que aqui não vale nomear. 65). Após anos e anos de resistência da ala fundamentalistaconservadora da igreja quanto ao seu engajamento nas lutas do político. vimos poucos avanços em termos de aceitação dessa perspectiva entre a imensa maioria dos evangélicos no Brasil. “a nossa presença no mundo é indispensável à evangelização. “Por que trabalhar quando tudo o que edificamos pode ser destruído por outros?”. Uma igreja íntegra. Essa tarefa começa por afastar as vozes da morte. a resistir às forças de morte. dizer um claro ‘sim’ a tudo o que representa a vida. escrever mais um livro ou gastar tempo debatendo quando a realidade não quer ser transformada?”. p. Conforme o Pacto de Lausanne (Art. que dizem: “isto não dará certo”. Em oposição a essas vozes discursivas que nos rodeiam. Outra expressão desse engajamento está no confronto e negação das realidades de morte que no mundo imperam. “Lutar pra quê. “O Brasil não tem jeito”. A igreja hoje é chamada a lutar contra a morte. resistência “significa dizer ‘não’ para todas as forças de morte onde quer que elas possam estar e. como outra vez recorda o Pacto (Art. A fé sem obras é morta” (PACTO DE LAUSANNE. como corolário. sob qualquer forma em que possamos encontrar”. de opressão e de discriminação. De acordo com Henri Nouwen (2001. e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade. precisamos de resistência e participação. “Por que realizar mais um encontro. como ressonância da voz do Espírito de Deus que nos insta a amar o mundo. militância é coisa do passado”. profética e cidadã “A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. também da luta inglória dos cristãos progressistas instando a que acordássemos para a necessidade urgente de assumirmos 149 . a fim de compreender”. Apesar dessa consciência dos líderes reunidos em Lausanne. e de muitos outros que compreenderam que a mensagem do Evangelho deve transformar o ser em suas diferentes dimensões.amabilidade divina por toda a criação. Art. 4º). 5º). 5º): “A mensagem de salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação. e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam”. Robinson Cavalcanti (1997. Precisamos de mais cobeligerância (inclusive com não cristãos) em projetos de reflexão e ação que convirjam aos valores do Reino. diria eu. um dos meios de participação na sociedade civil. aliadas ao conformismo generalizado e à visível apatia. chegamos ao século XXI. na maioria dos casos. Políticos evangélicos têm apoiado teses as mais danosas aos interesses do bem comum do povo brasileiro. com um saldo negativo. 122-123) escreveu há décadas atrás que: Grosso modo. Embora existam iniciativas relevantes de vozes dissonantes da maioria no meio evangélico. tijolos e empregos. mas uma atitude profética e um inconformismo santo com as injustiças que grassam nesses lugares. a conscientização dos mais abastados e sua mobilização junto aos intelectuais e as camadas mais “esclarecidas”. estamos trocando a alienação por uma presença conservadora. atendem às ambições de poder de líderes mal-intencionados e totalmente despreparados para exercer os cargos para os quais foram eleitos. e a levantarmos nossas vozes contra as injustiças que imperam e nosso país. estamos reforçando os problemas. telhas. por uma sociedade mais justa e fraterna. privilegiem o bem comum e a transformação integral da sociedade. nem a defesa estéril da moral individual. que combata a violência e 150 Missão Integral . Se o cristão de fato tem vocação para isso. p. comprometida. o envolvimento com as estruturas de poder requer. reacionária.nosso papel como cidadãos também “daqui” e não somente “de lá”. Não me refiro apenas ao relativo desinteresse geral das pessoas pela política ou por projetos que englobem o coletivo. Projetos que passem pela inclusão dos mais pobres. Em vez de sermos parte da solução. o fato de que a política. O fato que marca a participação (ou não) dos evangélicos nas instâncias públicas é que ainda persistem mentalidades e posturas antigas. ao contrário disso. o exercício da ética cristã e um caráter que se molda ao de Cristo. Lotes de votos estão sendo negociados em troca de lotes de terrenos. Não bastam boas intenções no sentido de ajudar a igreja ou aos irmãos da fé. tem servido como trampolim de projetos pessoais e corporativistas que. clientelista e fisiológica. acima de tudo. é de causar pesar e vergonha. tem sido tão pouco aproveitada para aplicação ao bem comum e. ter a coragem de assumir posições e “dar a cara a tapa”. e mais. compadeceu-se delas. porque estavam aflitas e exaustas. p. como ovelhas sem pastor”. mas com uma carência básica em comum: a de pastoreio para suas vidas. a multidão dos afoitos para ver milagres. Quando olhamos para as multidões nos dias de hoje. por um coração cheio de misericórdia. como definir as multidões de nosso tempo. o que vemos? Que tipo de reação deveria ser provocada em nosso coração por aquilo que vemos? Afinal de contas. Jesus lidou com todo tipo de multidão em seu ministério: a multidão dos que creram em sua mensagem. compartilhando com todos aqueles a quem chamamos “próximo”. então esse engajamento precisa ser temperado por uma paixão incondicional por Jesus e sua maneira de lidar com o ser humano. Parafraseando Cavalcanti (1997. sonhos. botar a “mão na massa”. solidária e compassiva Se engajar-se significa envolver-se. De alguém que se compadecesse o suficiente. doentes.36: “Vendo ele as multidões. Uma igreja cristocêntrica. 123). em quem ninguém prestava a atenção. mas do plano em que elas estão. “não podemos ficar presos ao pêndulo que vai de uma santidade fora da cidadania até uma cidadania sem santidade”. Multidões: diferentes expectativas. cumprindo o ministério que a Ele fora designado pelo Pai. e a imensa multidão dos pobres. cobras que aguardavam o momento certo para “dar o bote”. malditos e excluídos pela sociedade. a multidão dos religiosos enfurecidos com sua pregação revolucionária. entendesse 151 . daqueles que também foram recebidos com misericórdia. não da sacada do prédio. como nosso estilo de vida e espiritualidade pode ser instrumento de transformação no meio delas? O texto de Mateus diz que Jesus andava por todas as partes. as boas novas e valores do reino de Deus.todas as formas de exclusão e alienação. propósitos. necessidades. toda a igreja é convocada a ensinar todo o conselho de Deus ao ser humano todo. Diz o texto de Mateus 9. e pela compaixão. Assim. sinais e prodígios acontecendo. curando e ministrando a palavra. das mais inusitadas formas e nos mais diferentes contextos. Compaixão. sequestros assassinatos. competição. É a via para a certeza de que somos cada vez mais nós mesmos. é entrar no meio de tudo isso sem se julgar um estranho. Compaixão é diferente de dó. mas: ‘O que é que tu tens em comum?’. literalmente significa padecer junto. Isso denota não apenas a falta do Supremo Pastor (Deus) na vida dessas pessoas. Uma coisa é saber que milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza. é gente sofrendo e fazendo 152 Missão Integral . Outra. Jesus olhou para as multidões e teve compaixão delas. doando seu tempo e cuidados para que ela seja uma boa colheita. depressão e carências que são vividas pelas pessoas hoje. Roubos. Dó é um sentimento de alguém que está distante do outro e nada pode (ou quer) fazer a respeito da dor alheia (por isso é desprezível. porém. 95-96). Não é o ‘suplantar’ mas sim o ‘servir’ que faz de nós pessoas mais humanas. A compaixão. A impressão que tenho é a de que perdemos a capacidade de chorar. 2006). lamentar e nos compadecer pela dor e a desgraça alheia (LOPES. compreender suas aflições e amar sem pedir nada em troca. Todo dia vê-se nos noticiários um bocado de gente sofrendo pela violência e exclusão engendradas por um sistema que propõe a “liberdade”.o bastante e fosse eficazmente capaz de cuidar. mas também de trabalhadores que. submissos ao chamado do Senhor da Seara. mas sim confessarmos que somos precisamente como os outros. Outra é vivenciar uma situação em que se está “abaixo da linha de pobreza”. sentir a mesma paixão. se colocar na mesma dimensão. p. mas quando somos uma e a mesma coisa. Na verdade a principal questão espiritual não é: ‘Qual o teu contributo específico?’. segundo Henri Nouwen (2003. egoísmo disfarçado). não quando somos diferentes dos outros. mas uma liberdade que apenas alguns gozam. uma piedade de fachada. bem diferente. Uma coisa é ter consciência do mix de confusão. sofrer junto. se dispusessem a ir à colheita. prisões. não é o demonstrarmos a nós mesmos que somos melhores que os outros. alienação. alienígena ou pensar que nada daquilo tem a ver contigo. partilhar do lugar existencial em que o outro se encontra e estar suscetível às contingências desse lugar tanto quanto o outro está. quando afirma em uma de suas mais conhecidas canções. abramos nossos olhos e vejamos. nosso Deus chorando pela dor e os gemidos de sua criação. Por quê? Porque a adoração 153 . crianças famintas e os incontáveis seres humanos que vivem em constante medo. a partir de nosso próprio sofrimento. querendo ou não”. nossos corações. refugiados. Então. resolve e revive”. Não há homem que não peque. Mas. no qual nada está estabelecido. 21): Nossa dor faz com que experienciemos o abismo de nossa própria vida. tem gente morrendo de fome por todos os lados. É o mundo de prisioneiros. doendo. está na indiferença e na apatia de muitos em achar que essas ocorrências ao nosso redor não nos dizem respeito. Precisamos conhecer melhor o Deus a quem dirigimos tantos sacrifícios de louvor e adoração. uma hora “o raio” poderá atingir a qualquer um de nós. a dor de nossos corações chorosos conecta-se com os lamentos de uma humanidade que sofre.. tá vendo a gente. se envolve. o que inclui tanto ímpios quanto justos. de amigos e de colegas. lembro-me de outro poeta. pacientes de aids. se Salomão estava certo sobre a inevitabilidade de certos males nesta existência sem sentido. Então. João Alexandre (1994). outra vez digo. claro ou óbvio. mas tudo está constantemente passando e mudando. “Em nome da justiça”. Caminhando para o fim. E a gente? “A gente tá vendo tudo. nosso luto torna-se maior que nós mesmos. é o que disse o cantor Gabriel O Pensador na canção “Palavras repetidas” (2005). Então.sofrer por todos os lados. O Deus que se canta nem sempre é o Deus que se vive não. Quando ou se formos abordados diretamente por um desses males. que: “Enquanto se canta e se dança de olhos fechados. O problema. assim como não há quem não sofra as consequências de seus atos ou de sua inoperância. Adoração é muito mais do que isso que se tem ensinado nos cultos (e agora até em escolas próprias pra isso). abrem nosso olho interno para um mundo no qual as perdas são sofridas muito além de nosso próprio mundinho de família. E. quem sabe acordemos para a realidade. p. à medida que sentimos a dor de nossas próprias perdas.. do banco do ônibus ao carro importado: torturas. como diz Nouwen (2005. humilhações e morte. pois Deus se revela. as dores do mundo não poderão ser esquecidas ou ignoradas. ainda somos parte de uma geração que está em busca de conforto e se preocupa bem pouco com o bem comum. Posso entender o que se passa do outro lado do mundo. melhor é viver. e mais encarnação desse compromisso: com a justiça. Que o Senhor mesmo nos ajude a nos encontrar da melhor 154 Missão Integral . integridade. Todos os “agrados” e “mimos” que Deus poderia receber já foram dedicados por Jesus na cruz. envolvendo-se. engajando-se. glória e adoração. mas com a vida inteira. a liberdade. discernimento e ação solidária e compassiva podem ser considerados desafios urgentes para uma missão transformadora. sincero ou abominável de barganhar com ele e de tentar agradá-lo. tem muito mais a ver com o ser de Deus e sua natureza operando em nós pelo Espírito. não sacrifício. lembrando-me das palavras de Jesus. Assim. mas que seja um canto que se expresse não somente com os lábios. que com nosso desejo. nossa justiça em nada excede à justiça dos escribas e fariseus. Conclusão Vimos nessa aula alguns desafios concernentes à relação entre missão da política através de instrumentos como o engajamento e a ação profética. Uma geração que parece se conectar com o mundo inteiro e não se comprometer com ninguém. a paz. Deus não precisa de sacrifícios! Ele disse: “Misericórdia quero.inclui o cumprimento da missão. manifestações e participação públicas após junho de 2013. a não ser consigo mesma. Reconheceu-se que. daí para frente. Do contrário. Ele quer menos de nossa pretensiosidade à ortodoxia (doutrina certa) e mais da eficácia de nosso amor.6). o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos” (Os 6. embora haja faíscas de mobilização. devem ser produto da graça em e por meio de nós. encarnação. Se cantar o amor de Deus é bom. Está consumado! Todo louvor. Precisamos muito cantar o amor de Deus. mas não consigo me envolver com os problemas do meu bairro. ou mesmo com os do meu irmão. Ele não entra no jogo sórdido das barganhas humanas. menos consciência de um compromisso. Palavras Repetidas. 2005.lausanne. 2005. Mobilizando a igreja local para uma missão integral transformadora. mas. Robinson. São Paulo: Loyola. A construção da identidade moderna. Viçosa. 1997. São Paulo: Loyola. Aparecida.org/pt/>. Com o coração em chamas. TAYLOR. sim. CD: Cavaleiro Andante. 131-171.maneira como testemunhas vivas de Jesus nos variados contextos de nossa sociedade. 2003. David. 1994. Rio de Janeiro: GW. LOPES. 155 . ________. Acesso em 27 jun. Charles. CAVALCANTI. Discografia Gabriel O Pensador. Luz Para o Caminho. MG: Ultimato. Henri J. Londrina: Descoberta. um lugar de transformação e liberdade. ________. 2002. CD: Todos são iguais. Epic. M. NOUWEN. Sinodal. João Alexandre. Mosaicos do presente. RS: EST. 2006. In: BARRO & KOHL. na política. Referências BOSCH. PACTO DE LAUSANNE. ________. pp. Escritos sobre paz e justiça. As fontes do self. Disponível em: <http://www. em nossos contextos imediatos. Vida no Espírito. César M. 2014. 2ª ed. A Utopia Possível. para bem além dela. Missão Integral Transformadora. São Leopoldo. Em nome da Justiça. Igreja. 2005. 3ª ed. 2001. Estrada para a paz. SP: Santuário. 2005. Missão transformadora. São Paulo: Paulinas. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 156 Missão Integral . símbolos. p. Essa gama de aspectos pode confundir o leitor no sentido mais estrito de como o termo será aplicado nessa unidade. Gosto de pensar na cultura. expressões da vida material e espiritual dos indivíduos.Missão Integral Unidade 13 Missão e Cultura (I) Introdução O conceito de cultura talvez seja um dos mais difíceis de ser empregados e até mesmo definidos. repleta de cores e nuances por todos os lados. erudição. sem que este necessariamente seja um artesão. educação. O historiador José D’Assunção Barros (2005. um intelectual ou um artista. já há a produção de cultura. podendo ser comparada a uma “tapeçaria”. Assim. Há também a concepção de cultura como instrução. podemos falar não apenas de “cultura”. 57) afirma que “toda a vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura”. adotados e transmitidos de geração em geração. Além daquela que a entende como expressões artísticas de todo tipo. como “um jeito particular de ser gente”. mas de “culturas” híbridas e difusas. Isto. utilizando a conhecida frase de Rubem Alves. Pode se conceber cultura como sistema de valores. signos. pois “cultura” abrange uma gama de significados. e que a simples existência de um indivíduo. complexa. herdados historicamente e por meio dos quais as pessoas de uma determinada civilização se comunicam entre si. expressando uma coesão. saber. A frase engloba três aspectos importantes para se pensar a cultura: 157 . doutrinas e concepções. abrangendo seu conjunto de crenças. Reconhecer como a qualidade de nossa relação com um contexto e cultura específicos é determinante para a vivência de uma missão transformadora. conforme meu aporte inicial. HIEBERT. 31) tanto o conhecimento (dimensão cognitiva). lembremonos dessas três categorias presentes na frase da Alves: modo. que organiza. bem como os valores (dimensão avaliadora) são produtos derivados deste humano em seu modo de ser. Definir alguns parâmetros bíblicos para se pensar a relação entre a missão e a cultura. p. logo. b) Ela é particular: a cultura está inserida nas “culturas” e suas peculiaridades e. 2. regulamenta e lega ideias. mas de algum modo ela se expressa por meio de uma ampla gama de coisas. já que ela envolve um modo particular de ser: cristão e humano. Assim. pluralidades. produtos. 158 Missão Integral . particularidade e humanidade. há sim uma relação com o modo como pensamos e vivemos a missão. Dessa forma. valores. num jeito peculiar de ser brasileiro (“jeitinho brasileiro”). Não se pode pensar a cultura sem levar em consideração o ser humano. c) Ela é de gente: é algo humano. quanto os sentimentos (dimensão afetiva). por isso. Isso implica dizer que a cultura não é tudo. se a cultura é um jeito. símbolos.a) Ela é um jeito: ou seja. padrões associados de comportamentos. 1999. é particular e é de gente. é uma maneira ou modo de ser. Portanto. Objetivos 1. ou em jeitos peculiares de se expressar o tal “jeitinho”. e assim por diante. por exemplo. de modo que se pode falar. quando falarmos de cultura aqui. missão e teologia estarão em livre e não sistemática relação nesta unidade. as noções de cultura. demasiadamente humano. porque as “dimensões da cultura” (cf. cheio de flores e plantas dos mais diversos tipos. ideias. e agora oferece a dádiva de ser cocriador e mordomo ao ser humano. hábitos. organização social. à imagem de Deus o criou. processos técnicos e valores. artefatos herdados. gostaria que olhássemos para a questão da cultura. Segundo observa Richard Niebuhr em seu clássico Cristo e cultura (1967. é o humano (Adam). Criou Deus o homem à sua imagem. na imagem bíblica. sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1. os animais. 159 . p. A questão da cultura é eminentemente humana. árvores e frutos. conforme a nossa semelhança. portanto. é “cultura”. crenças. Deus os abençoou. e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar. que se desenvolve a seguir. Mas digamos que o Criador do jardim resolvesse criar um ser com capacidades congênitas suas. Ela abrange a linguagem. no Gênesis. repleto de belezas naturais e paisagens estonteantes. que possui uma riqueza e diversidade tal. sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão”. pois está na raiz de ser humano Leiamos um texto no livro de Gênesis que embasa esta perspectiva: Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem. sobre as aves do céu. de criar. imagem e semelhança de Deus. as plantas. como a imagem que muitos de nós temos do Éden. cultivar e cuidar. Cultura é o ambiente artificial e secundário que o homem sobrepõe ao natural. surge de suas mãos. Tudo o que. Deus fez todas as coisas no princípio. como subproduto da criação. Esse ser. 64). as flores. do ponto de vista teológico. tal jardim mantém-se na condição original de “intocado”: o solo. Adotando este conceito de Niebuhr. Domine ele sobre os peixes do mar. homem e mulher os criou. costumes.Cultura: uma parceria divino-humana Imagine um enorme jardim. a partir de duas realidades complementares.26-28). Pois bem. 31) “o artífice da cultura é o homem”. bem como as palavras de ordem e confirmação diante do que foi feito. que é criativo. uma palavra é cultura. Cultura é a obra de mentes e mãos humanas. um canal é cultura. a terra. teria sido possível (veja o segundo ponto). Logo.29). Grifo meu). Deus dá ao homem a dádiva de designar. p. E essa legitimidade vem pela atitude do próprio Deus no princípio quanto ao que havia sido feito: “Viu Deus tudo quanto fizera. p. é o natural sendo transformado em artificial. nomear. 55. afinal. A terra passa ser sua habitação e objeto de cuidado e manipulação. como o incita a ser partícipe direto da criação. em benefício dele e da criação. por si só” (MONTEIRO. “Manipular” aqui tem o sentido de manusear. E essa cultura. uma peça bruta de quartzo é natureza. p. 1967.O princípio da criação do ser humano é um princípio cheio de fecundidade. Niebuhr nos dá uma lista mais ampla dessa ilustração: Um rio é natureza. este a sujeitasse (no sentido de um domínio cuidadoso). cultivar. A criação não tem sua forma final. para que. a cultura pode ser vista como uma espécie de matéria-prima secundária da criação. um gemido é natural. instituir. É aquela porção de herança do homem em qualquer lugar ou tempo que nos foi legada intencional e laboriosamente por outros homens. afirma Monteiro. sem esse assentimento divino. as coisas que originalmente eram boas foram corrompidas pelo pecado. e não o que nos tem vindo por intermédio de seres não humanos ou através de seres humanos que agiram sem intenção de resultados ou sem o controle do processo (NIEBUHR. Mas com a queda. Deus. como da laranja se faz o suco da laranja. De tal modo que “isso não é nada menos do que a afirmação da bondade do homem e da sua criação (cultura). não somente dota o ser humano da mesma capacidade criativa. como manifestação humana. a cultura carrega as marcas da 160 Missão Integral . uma flecha é cultura. nada do que foi feito. e eis que era muito bom” (Gn 1. forjar. Assim. 31). tem a sua legitimação na vontade de Deus. a partir de então. se multiplicasse e a enchesse. A grande terra e tudo que nela há em termos de recursos naturais foram dadas ao ser humano. 2007. Segundo pontua Marcos Monteiro (2007. pois Deus criou o artífice da cultura à sua imagem e semelhança “O fundamento da cultura é o próprio Deus”. acabou coibindo a coisa em si. bem como a exploração da natureza pelo homem. por sua vez. vencer o mau uso. Logo. mas acabou militando contra ela. A graça. Assim. segundo defende Monteiro. não é a negação e nem o fim do pecado. Ele deu esse voto de confiança ao ser humano. como elabora Monteiro: “homem-para-Deus versus homem-em-pecado” (idem). a viver pela graça. para se viver uma 161 . assim. portanto. Igualmente. Deus se fez lei em nosso lugar (Cristo) e carregou nosso fardo. anti-humano. desse modo. A cultura seria então uma realização humana sob auspícios divinos. fruto do mau cultivo da terra. confirmar que há algo de essencialmente bom na cultura. há algo de essencialmente ruim na cultura – antideus. A graça é o que gera a possibilidade de redenção da cultura. a graça é essa dádiva única de Deus capaz de conduzir-nos de novo ao bom uso daquilo que ele declarou bom – a cultura humana. A lei de Deus. que os fez. Mas o pecado também fez com que fizéssemos um “mau uso” da lei. e sim o uso que delas se fez. ou que Deus seria um opositor da cultura e que. ou homens militando contra si mesmos. por sua vez. veio para coibir o “mau uso” das coisas em si e todas as artimanhas provenientes da declaração de total independência do homem contra Deus. é uma expressão do ódio contra o próprio Deus. que deveria servir à vida. ele assinou esse “cheque em branco”. A questão da cultura passa a ser também uma questão eminentemente divina. visto que provém de Deus. O mau-uso das coisas que Deus declarou como sendo boas. o que era para coibir o mau uso. assim. provou-se mais forte que a própria lei. Pode-se.ambiguidade humana. por nós mesmos. pelo fato de não conseguirmos. O pecado (outro ser que em nós habita). conforme Paulo desenvolve em Romanos 7. Mas isso não é motivo para afirmar que a cultura em seu todo é ruim. da não solidariedade e harmonia. é a redenção do pecador – “A minha graça te basta”! Assim. da superabundância do pecado nas relações. Passamos. E o grande problema não são as coisas em si. há algo a ser eliminado. como declara José Comblin (2007. mas há também há algo a ser preservado. E para que isso não soe como a ideia. Ou. é contra os elementos da cultura que denotam a ação dessa mancha inerente ao seu artífice que é o pecado. não é violenta ou irracional. A oposição de Deus. uma centelha que seja de divino. e pulsões de morte. celebrado e assimilado pelo evangelho. Não se arranca fora um braço só porque nele há uma infecção. que nos usa como instrumentos para matar os nossos irmãos. mas que podemos – consciente ou inconscientemente – matar ou 162 Missão Integral . arranca-se o braço quando seu estado pode interferir na integridade do corpo. em muitas circunstâncias. e contra o Deus da vida. que militam contra a vida. pois seria assim o oposto de si mesmo. Da mesma forma. Como diz o ditado popular. contra a própria criação. Nesse caso.. expressa na frase de Protágoras de Abdera. pois. porém. não se pode jogar a criança fora junto com a água do banho. Isso. Se os elementos gregários de uma determinada cultura contém algo. no máximo. há também forças de morte que matam.espiritualidade genuinamente cristã seria preciso apartar-se dela. 28): O que preocupa não é a nossa morte. tudo que o destrói o homem deve ser denunciado e abandonado”. Somos capazes de destruir e de matar outros seres humanos.. “tudo que promove e constrói o homem deve ser conservado. poderia ser acrescentar que tudo aquilo que fere o ser humano e o destrói também representa uma afronta contra o Espírito de Deus e. A solução divina não seria a eliminação da cultura. (. Antes. se há em nós forças de vida que nos permitem criar vida. p. p. infringir e explorar a criação também representa militar contra a vida humana. servir a vida. de que “o homem é a medida de todas as coisas”. mas a morte que desencadeamos. A questão é: o que deve ser eliminado e o que deve ser preservado? De acordo com Marcos Monteiro (2007. Sua oposição. procurando preservar a integridade do braço.) O problema maior não é que vamos morrer. Pois. bem como a de seus filhos. logo Deus não é seu oposto. 36). mas a sua redenção por intermédio da graça. no ser humano coexistem forças de vida e que militam pela vida. trata-se a infecção. que passa pela ação intencional de “matar”. Para Comblin. das perguntas que tocam nossa autoconsciência ética e espiritual: com esse ato. que te propus a vida e a morte. existe um sim e um não de Deus ao mundo (cultura). ou pela própria conivência indiferente para com as realidades de morte que envolve nossos mais variados contextos de vida.. por uma dessas realidades. 28) ao tratar da missio Dei (missão de Deus).15-20 é um bom exemplo desse exercício de liberdade que desafia a cada pessoa: “Vê que proponho. são potencialidades inerentes às decisões que fazemos todos os dias. os céus e aterra tomo. Optar pelo ser humano e pela imersão em sua cultura é. Isso propriamente para dizer que a igreja – sinal do reino de Deus e instrumento da graça na reconciliação da cultura – não é nem totalmente idêntica e nem totalmente avessa à cultura. o problema passa pela liberdade de escolha por vida ou morte que os seres humanos possuem. a vida e o bem.19). para que vivas. optar pela vida e por uma espiritualidade da vida. um sinal ofertado pelo “Deus da vida”: “escolhe.ser coniventes com quem mata aos poucos. segundo esse texto. Deus expõe diante de seu povo a possibilidade de escolha. portanto. o “não”. Mata-se até mesmo pela indiferença diante da morte lenta ou rápida dos outros – que são pessoas como nós. como já havia sugerido David Bosch (2002. O texto de Deuteronômio 30. p. tu e a tua descendência” (Dt 31. apareceria como expressão de nossa oposição e conflito com a mesma. hoje. estou optando pela vida ou pela morte? Estou matando ou dando vida? Destruindo ou construindo? Pintando ou borrando o quadro? A dica que o próprio texto dá é.. por testemunhas contra ti. A vida e a morte. Escolhe a vida para que vivas! Conclusão Concluindo. obviamente. por sua vez. O “sim” de Deus pode se expressar na solidariedade cristã com a sociedade e na valorização da cultura. 163 . hoje. a benção e a maldição”. a vida. E se nossa relação com essa cultura passa pela escolha e preservação do que constrói e. todos os dias. pois. a morte e o mal. que nos conduz a uma discussão mais ampla e concebida num horizonte teológico de perspectivas plurais. 1967. São Paulo: Vida Nova. José. Marcos. Deixo este assunto para outra disciplina deste curso que deve tratar disso.ao mesmo tempo. Missão Transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. 1999. que nos remete à interpretação das Escrituras e análise da realidade. HIEBERT. Rio de Janeiro: Paz e Terra. acerca das opções outrora e atualmente feitas sobre a cultura. e a como o protestantismo historicamente tem lidado com a cultura. BOSCH. por exemplo. Viçosa: Ultimato. Cristo e Cultura. COMBLIN. David. A vida. Especialidades e abordagens. A missão da igreja e as cidades. Richard. 3ª Ed. NIEBUHR. que é a de História do Protestantismo Latino-Americano. 2007. O Evangelho e a diversidade das culturas. 164 Missão Integral . Em busca da liberdade. MONTEIRO. São Leopoldo: Sinodal/EST. 2002. José D’Assunção. Petrópolis. RJ: Vozes. 2007. denúncia e abandono do que destrói o humano. Paul. 2004. Referências BARROS. nos vemos diante de outra aporia: o que efetivamente promove e o que destrói? O que aproveitar e o que abandonar da cultura? Qual é o critério que nos permite responder satisfatoriamente e com um mínimo de consenso a essa questão? Entendo que essas perguntas envolvem decisões de cunho ético. São Paulo: Paulus. O campo da história. Um jumentinho na avenida. costumes e padrões. como vista na unidade anterior. descrito no livro de Gênesis. eminentemente divina. indicaria um conhecimento de Deus derivado de Jesus Cristo e que se encontra numa suposta “sociedade cristã” (NIEBUHR. como ela se manifesta e qual a sua relação com a Bíblia. Compreender como a compreensão de cultura. próprios daquela época. 101). ou pelo menos delinear uma compreensão possível. Cabe. nessa unidade. Objetivos 1. já vimos um pouco sobre o que pode ser entendido por cultura.Missão Integral Unidade 14 Missão e Cultura (II) Introdução Praticamente todos até hoje concordaram que o evangelho foi concebido dentro de uma cultura e tempo específicos. com seu povo. e como ela está relacionada com a questão cultural. Todavia. meu interlocutor principal nessa breve conversa será Paul Tillich. por sua vez. olhando para esse plano original de Deus. tentar entender uma terceira realidade a partir do entendimento do que é revelação. 165 . construídos num universo plural e tenso. a divergência maior está no tipo de relação que há entre a revelação e a cultura. ética. ou mais precisamente no papel da mediação cultural nesse processo. Esse problema está ligado a uma “minimização da razão” (termo utilizado para designar os métodos e o conteúdo dos conhecimentos pertencentes a uma cultura) e à “exaltação da revelação” – a qual. a partir de duas realidades complementares: da cultura como sendo eminentemente humana e. esta relacionada com a revelação e a missão cristãs. Para tanto. ao mesmo tempo. Pois bem. p. 1967. respondendo à primeira questão. 98). mas se essa coisa passa a ser revelada ela deixa de ser mistério. mas restaria algum papel ou função ao ordinário à medida que o extraordinário acontece? A resposta a essa pergunta nos conduz ao entendimento que gostaria que fixássemos nesse instante. especialmente pelo povo que Ele mesmo escolheu para si. relutante criação. É preciso pensar que a revelação é da ordem do divino. não há nada que o ser humano ou 166 Missão Integral . pois chegou ao conhecimento. “mistério”. Ora. p. Ou seja. mas por seu amor inexplicável por sua.A questão da cultura envolve sua relação de tensão dinâmica com a revelação A palavra “revelação” na Bíblia tem o sentido de “tirar o véu”. portanto. 97). p. se a revelação é o ato de abrir as cortinas para o mistério divino. abriu as cortinas. Nas palavras de Tillich (1987. e esse mistério continua sendo mistério mesmo revelado. não expõe tudo o que poderia ser dito a respeito daquilo a que ela se põe a revelar. enquanto a revelação seria da ordem do extraordinário. a razão seria da ordem do ordinário. Ora. é uma “manifestação especial e extraordinária que remove o véu de algo que está escondido de forma especial e extra-ordinária”. Se ela provém de Deus. Antes. E não apenas por sua soberana vontade. afinal. Isso implica pensar que alguma coisa estava oculta e foi revelada. e de quem ela estava oculta? Parece claro que as coisas ocultas fazem parte do âmbito do mistério divino. O que não é conhecido hoje. “é a manifestação de algo escondido que não pode ser alcançado através das formas ordinárias de conseguir conhecimento”. a revelação. não é um mistério”. “nada do que possa ser descoberto por abordagem cognitiva metodológica deveria ser chamado de ‘mistério’. e por quê? Quero prosseguir nesse raciocínio daqui a pouco. provém dele e se expressa por sua soberana vontade. Que coisa é essa. Essa é uma boa palavra para se referir à revelação. Assim. descobrir aquilo que estava encoberto ou obscuro. O que me leva a refletir que. mas que poderá ser conhecido amanhã. em que medida. parece que essa revelação seja a feitura daquilo que era impossível à razão humana. Qual é então o sentido da revelação? Quem. Como pondera Tillich (idem. muitas vezes. nascido em Belém. Religião é negócio humano. num sentido geral. Já revelação é a automanifestação de Deus. Esse contato cultural se deu para revelar ao ser humano coisas profundas sobre Deus e coisas profundas sobre ele mesmo. se religião não é revelação. Deus habitou entre nós em forma humana. Ora. não tem aparentemente nada a ver com capacidades e esforços humanos. Afinal. Nesse sentido cabe a distinção entre “religião” e “revelação”. A encarnação. É um ato supremo da graça de Deus. e ao mesmo tempo mantendo sua condição divina. qual é então o ponto de contato que efetiva a revelação como algo inteligível ao ser humano. portanto. de seu 167 . filho de Maria e José. como o esforço ou conjunto de esforços humanos plasmados no sentido de alcançar a Deus. para que a glória de Deus fosse nele vista: “e vimos sua glória. uma correlação entre eles. que habitou entre nós. fazer para alcançá-la.qualquer outra criatura possa. e se revelação é um ato que provém de Deus e. num primeiro momento. É. cheio de graça e de verdade. Primeiramente ao revelar-se por meio de seu filho. pelos meios que lhe aprouver. Jesus Cristo. E quando Jesus inicia seu ministério e começa a falar sobre o reino de Deus e a ministrar à vida de seus concidadãos terrenos. Deus escolheu formas ordinárias para manifestar o extraordinário. 98). Sua linguagem expressa a revelação de Deus. por seus próprios meios. e também aprendiz e seguidor da lei e dos costumes religiosos judaicos. Há. judeu de nascimento. Para que a revelação fosse inteligível ao ser humano.14). a de carpinteiro. glória como do unigênito do Pai” (Jo 1. O mistério revelado é de preocupação última para nós porque é o fundamento de nosso ser”. Religião pode ser entendida. visto que Jesus foi um homem de sua cultura. P. na definição de Tillich (1987. É Deus assumindo sua face cultura. ao ser humano e por amor a ele. portanto. é o ponto de contato divino-humano em grau máximo. já que um dos propósitos é o de “mostrar” algo a ele? Eis que então entra a função da razão e cultura humanas nesse processo. o verbo encarnado. aprendiz de uma profissão. ele o faz em termos culturais. “a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última. Revelação é negócio divino. criado em Nazaré da Galiléia. assumindo nossa condição. a ponto de incomodar a piedade ascética dos escribas e fariseus. portanto. pois significa interação entre o sopro divino e a linguagem e formas de pensamento humano. p. Jesus valorizava a vida do povo como portador de mensagens e lições do Reino.reino e sua vontade para o ser humano nos termos e imagens daquela cultura. abrindo espaço para que o novo – a presença do reino de Deus – se estabelecesse concretamente no antigo – a existência cotidiana do povo. era um atencioso observador da natureza e da história dos homens. da dona de casa (Mt 13. p. 99). natural e sobrenatural. nem totalmente boa. aprendendo com maestria e enfrentando os doutores da lei ao ponto de deixá-los perplexos. como nos termos da própria cultura do ouvinte. Trata-se de um processo dinâmico de inspiração das Escrituras.. Em segundo lugar. digo. e participando da celebração da vida por meio da festa e do sofrimento humano.33) e da fuga do filho do fazendeiro (Lc 15. Disso. contando histórias que têm a ver com a vida de seu povo. depreende-se. e desde cedo se interessou por ela. mas também nem totalmente pérfida. Lc 5.... é ambígua.30) e seus discípulos formavam um grupo irrequieto e barulhento. 2007.) A primeira aparição pública de Jesus foi num casamento. E essa revelação escrita se dá não somente por meio de linguagem humana.1-9). em diversas circunstâncias. Deus se revela por meio das palavras daqueles que deram testemunho de seu filho. de modo a extrair a mensagem do Reino de acontecimentos corriqueiros.. como observa Tillich (1987.. (MONTEIRO. Jesus Cristo. mas como provedor do vinho (Jo 2. 40-41). do trabalho do agricultor (Mc 4. que a revelação mantém os eventos subjetivo e objetivo. das flores e das aves.11-32). Jesus era um aprendiz da palavra de Deus. Ao contar histórias. que compõem a Bíblia. ordinário e extraordinário em interdependência ou 168 Missão Integral . isto é. Seus adversários costumavam acusá-lo de participar de festas de pecadores (Mt 11. (. sendo um aprendiz de sua cultura. onde o encontramos não como oficiante da cerimônia. e criava uma identidade e uma base comum para o diálogo.19. imersas dentro de uma cultura específica que possui elementos tanto da imagem de Deus como do pecado humano e que. Como ilustra Marcos Monteiro.1-12). dinâmico. Ao mesmo tempo. de ordem. como para o Senhor. os conceitos de virtude.tensão dinâmica. obedeçam a seus pais em tudo. Um exemplo claro dessa incorporação de padrões socioculturais para a ilustração da vida cristã está na carta de Paulo aos Colossenses. Como ilustração desse processo dinâmico. Em suas palavras. 103). não somente para agradá-los quando eles estão observando. Filhos. inspiradas em correntes como a filosofia estoica. a trama de relações e regulamentações sociais aceitas como positivas na cultura do momento. O Novo Testamento encontra nas normas e formas da cultura uma linguagem adequada para expressar a natureza do amor que em Jesus Cristo o cristão aprendeu e recebeu – o novo homem pode viver nesse clima (BONINO. 1982. Conforme analisa José Miguez Bonino (1982). Escravos. pode-se mencionar também a inserção de paradigmas próprios daquela época nos discursos de muitas passagens do Novo testamento. para ilustrar a vida cristã. Maridos. É claro. de subordinação. como convém a quem está no Senhor. e não é real sem o lado doador”. mas com sinceridade de coração. obedeçam em tudo a seus senhores terrenos. 169 . Assim. mas para participar na trama de relações e exigências de seu meio. portanto. estudos neotestamentários têm asseverado que esse gênero parenético (exortações) foi utilizado de modo paralelo às listas e instruções vigentes na época. pois isso agrada ao Senhor. Pais. em suma. sendo Deus o doador e o ser humano e sua cultura específica os receptores. para que eles não desanimem. não irritem seus filhos. sabendo que receberão do Senhor a recompensa da herança. como nos chamados “catálogos de vícios e virtudes”. em que constam falhas pessoais e comunitárias. Tudo o que fizerem. e não para os homens. façam de todo o coração. deveres e obrigações que se ordenam aos crentes. p. “revelação não é real sem o lado receptivo. ame cada um a sua mulher e não a tratem com amargura. pelo fato de vocês temerem o Senhor. O crente não é chamado para retirar-se a uma ilha onde domine outra ordem e outra cultura. como sublinha o autor. conforme segue Mulheres. sujeite-se cada uma a seu marido. que o Novo Testamento utiliza. menos ainda das relações sociais. que vocês estão servindo. Os cristãos precisam aceitar a condição estabelecida pelas regras de sua sociedade e cultura. A diferença dos cristãos nesse processo de adesão ou respeito aos velhos costumes seria o modo como vivem sua espiritualidade e se inserem nessa condição humana. Como defende José Comblin (1986). tais como o amor. mas também helênicos. e não haverá exceção para ninguém. já que o mundo do Novo Testamento emerge entre padrões judaicos. a tolerância e o respeito ao outro dentro de tradições próprias. por uma hermenêutica desleixada. 73): Estas regras não constituem a totalidade da concepção cristã das relações de família. e a obediência ao Senhor em primeiro lugar. p. mas ele os mantém. Mas não determina em que consiste essa integração no Senhor. 170 Missão Integral . O próprio texto exorta a viver tudo no Senhor. a “conveniência” asseverada no texto se refere à sabedoria vivida e transmitida na tradição de Israel de geração em geração. de virtudes como a sinceridade. a justiça. mas dando a elas o valor que realmente têm – nem mais e nem menos. se faça isso quase que o tempo todo na igreja.18-25). precisam de uma devida contextualização. não irá ela exigir mudanças na própria estrutura social. absolutos da cultura não devem ser confundidos com absolutos de Deus – embora. Essa é uma típica amostra de como na Bíblia muitos dos preceitos estão estreitamente vinculados a padrões morais e éticos que concernem a uma dada cultura. A longo prazo. Quem cometer injustiça receberá de volta injustiça. (Cl 3. Como indaga e analisa Comblin (1986.É a Cristo. Ao mesmo tempo. Isso é mais um dado que inclusive reforça o argumento de que a aplicação aos dias de hoje de textos como esse. Logo. o Senhor. E no meio dessas “conveniências” culturais. apenas dando a eles a perspectiva do Senhor. há também a expressão de valores divinos absolutos e eternos. o que Paulo faz não é transplantar um modelo alienígena para substituir os anteriores. que trazem regras específicas para a defesa das quais o apóstolo em momento algum parece evocar a autoridade do evangelho. e no caso podemos falar de cultura no plural. 171 . temendo ao Senhor. é a troca de uma postura demonizadora da cultura por uma postura que integra elementos dessa cultura para preservar o que é bom. que já possuíam suas normas próprias dentro daquela cultura. paisfilhos. esperando a recompensa que virá do Senhor. da cultura na qual o indivíduo se encontra. se assim podemos dizer. não fazendo acepção entre pessoas. mas de “integrar as relações e exigências da vida ética. agradando ao Senhor. mas os pais não devem irritá-los. Os limites. isso não se trata de pura e simplesmente de cultivar virtudes ou adotar certas regras.nas relações de família? O que acontece quando mudam as condições econômicas e culturais que forneceram a base da família tradicional aqui suposta? Estas regras não respondem a tais questões. No texto bíblico acima. senhor-escravos. mas os senhores devem tratá-los com justiça. os servos mantêm-se em subordinação (embora a escravidão não se fundamente na vontade de Deus. Trata-se de uma integração crítica e não aculturação indiscriminada. De tal maneira que: as mulheres continuam sendo submissas. em serviço ao Senhor.28). os filhos precisam obedecer seus pais. pois todos somos iguais perante Jesus Cristo (cf. Gl 3. como “para o Senhor”. jamais pensou numa transformação da estrutura nem da sociedade. E isso deveria valer tanto para a relação marido-esposa. mas que deveriam ser observadas a partir de uma regra maior. filhos. era quase inconcebível na época não haver escravos). homem ou mulher. mas os maridos precisam amá-las. Na perspectiva de Bonino (1982. escravos e senhores que continuem se subordinando às regras estabelecidas pelas convenções sociais. p. nem da família. Isso lembrando o que o próprio Paulo disse sobre nossa condição em Cristo. da subordinação e valorização de tais regras são estabelecidos com a relativização destes à luz de um critério maior: tudo se faz “ao Senhor”. com essa nova qualidade de ser do crente”. pois Deus trata a todos indistintamente. Certamente o próprio Paulo. na qual não há escravo ou livre. esposas. pois isso automaticamente o induz a melhorar os conteúdos das relações e exigências da sociedade. pais. como ninguém na antiguidade. judeu ou grego. Essa é a “regra suprema”. 104). vemos Paulo sugerindo a maridos. e transformar o que é ruim. 105): Amar é impregnar a totalidade das relações com a totalidade dos homens da disposição concreta ao serviço e entrega que Deus manifesta. e assim por diante..) Sempre que a revelação entra em contato com uma nova época ou cultura. Tendo em vista que nenhuma cultura em particular esgota o conteúdo da revelação. (. abrindo-lhe a possibilidade de sair de si mesma ao acrescentar-lhe uma dimensão transcendental. a teologia permanece sempre aberta a novas épocas e culturas.. adquire uma nova ênfase ou dimensão (MONTEIRO. como oportunidade da própria igreja se reinventar e crescer: Quando a Igreja participa da cultura ela cresce e ao mesmo tempo isso contribui para libertá-la de seus determinismos redutores.. ao mesmo tempo. mas da vivência da ética de uma nova humanidade em Cristo dentro desse mundo. p. A avaliação de Marcos Monteiro vai nesse sentido de um incentivo à igreja a participar da cultura para transformá-la e. Nesse sentido é que Deus amou o mundo – encarnando-se nele – e nos convida a amá-lo por meio da encarnação na realidade em conjunto com a submissão ao propósito redentor de Deus na cultura. primeiramente por meio da mudança de nossa mentalidade acerca de qual é o nosso papel nesse mundo. não toques naquilo outro”. 2007. (. 42-43). O amor tem a ver com o envolvimento e compromisso de mudar o mundo. não mexa naquilo.) Como não há revelação fora da cultura. Amar é ingressar nas relações e exigências éticas da cultura na qual nos encontramos com a livre determinação do novo homem em Cristo e repensar e reviver essas relações e exigências na forma nova que corresponde a esse novo homem 172 Missão Integral ..Isso significa que a radicalidade da missão cristã não se encontra no abandono do mundo ou na total subversão dos paradigmas ou padrões sociais e culturais de um dado contexto. Esse amor não se conjuga na aplicação de um legalismo piedoso que se detém na simples exortação verbal de como as pessoas devem viver: “faça isso. o que ocorre de fato é o intercâmbio cultural no sentido de significado. nas palavras de José Miguez Bonino (1982. Assim. que contribui para o enriquecimento da própria revelação. É “dar a César o que é de César” e a Deus o que é de Deus. p. Conclusão Na unidade anterior. Entretanto. vale como observação final reiterar que o mundo e a cultura são o contexto para a vivência da missão. pois essa indica não somente uma imersão na realidade. “no esforço da Igreja em ser fiel ao evangelho e relevante ao momento histórico em particular”. vimos que ela abrange uma gama de abordagens possíveis. Em seguida. (2) Também é algo eminentemente divino. de cultura como algo que designa um modo. pois sua comunicação e aceitação ali dependem da inteligibilidade aos povos pertencentes a um determinado contexto. Ele pretende ser encarado mais como um método teológico que requer compromissos ideológicos específicos para transformar situações de injustiça social. aparece como um paradigma inerente à natureza da encarnação. 2006. visto que o ser humano é o seu artífice. Não há revelação fora da cultura. ruim. não estabelece a “agenda” da missão. vimos um pouco sobre a relação da cultura com a teologia e a missão cristãs. p. como afirma Andrew Kirk (2006). pois é onde os cristãos vivem sua obediência a Jesus Cristo. por outro lado. Assim. por si só. pois Deus é o criador do artífice da cultura. a partir de um recorte bíblico. portanto. falamos sobre os sentidos para a palavra “cultura”. minha intenção foi mostrar que a questão da cultura é: (1) Algo eminentemente humano. 1 173 . de alienação política e de abuso dos direitos humanos” (KIRK. 127). e. sendo por um lado boa. assim. Só que o mundo. mas numa releitura do evangelho à luz dessa realidade. Ouvir o mundo ajuda a estabelecer Contextualização. sendo ela uma matéria-prima secundária da criação. significa que se trata de uma realização humana. à medida que carrega também as contradições geradas pelo pecado. Consiste. e que o significado aqui usado depreende-se da frase de Rubem Alves. de modo que a cultura carrega as marcas de uma ambivalência. Como ainda elucida o autor: “O conceito começou a ser reconhecido no início dos anos 1970. uma particularidade e a humanidade. por conter valores que remontam a imagem do Criador e. na arena da educação teológica. deve ser pensada a partir de sua relação com a revelação. (3) Sob um prisma teológico. aqui. a premissa de sua redenção passa pelo modo da encarnação e contextualização1 do evangelho e não pelo modo do escapismo ou demonização da cultura. como afirma Andrew Kirk (2006). tais como comer. bem como de reconhecer nossa dependência do Espírito nesse processo. Uma saída próxima rumo à conciliação seria a maior valorização do que é essencial e negociação de questões não essenciais no evangelho. Outra importante questão é a dos riscos. bem como assegura um pouco mais a relevância da mensagem. com indica o autor. mas. Se a Igreja perde essa dimensão de vulnerabilidade e dependência. mas podem ser relativizados por nossa apropriação ou interpretação da Palavra. Parece-me que a preocupação de Kirk é a de pontuar possibilidades. Esses critérios obviamente provêm do próprio evangelho. namorar. pois somos diversos e nossas leituras também serão. geralmente ligados aos costumes e às práticas cotidianas. aprender a correr riscos e lidar com eles é tão inevitável quanto é importante para a espiritualidade cristã. 128). “nunca pode definir as metas finais da missão”. ela corre o risco de ser cooptada pelo sistema. 174 Missão Integral . Não se pode evitá-los. trabalhar.critérios e ações estratégicos. seriam estabelecidas. iníquas e opressoras que gravitam nas relações socioculturais num mundo caído. Quando existe tal preocupação. beber. começamos a nos indagar sobre os critérios – o que promove ou destrói. se divertir. E isso gera conflitos. etc. mas também limites para ação missionária da igreja em sua relação com a cultura. que varia de acordo com nossos contextos. através de uma profunda reflexão do significado do evangelho: “É por meio de uma interação constante com as afirmações fundamentais da fé que a Igreja pode discernir formas específicas através das quais a realidade de Jesus Cristo é boa nova para um contexto em particular” (KIRK. descansar. 2006. cultuar. p. tornandose refém das normas egoístas. à medida que ingressamos nessa relação com o mundo e buscamos respostas adequadas. Portanto. por sua vez. Esse conflito é inevitável. Tais metas. pois daí surge também outros critérios que são engendrados a partir de fatores secundários. o que aproveitar e o que abandonar. pois apenas reforça o fato de que somos vulneráveis e carecemos de um exame sempre constante de consciência e espírito diante de Deus. São Paulo: Paulinas. José. 2006. Viçosa: Ultimato. Andrew. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon. MONTEIRO. São Leopoldo: Sinodal. Marcos. 1986. Richard. Londrina: Descoberta. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Petrópolis: Vozes. Um jumentinho na avenida. Cristo e Cultura. Ama e faze o que quiseres.Referências BONINO. 1967. São Bernardo do Campo: UMESP. TILLICH. KIRK. A missão da igreja e as cidades. 1987. O que é missão? Teologia Bíblica de Missão. Teologia sistemática. 1982. 175 . COMBLIN. São Leopoldo: Sinodal. 2007. Paul. NIEBUHR. José Miguez. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 176 Missão Integral . para a salvação. quero oferecer uma possível contribuição ao exercício do papel teológico de leitura dos sinais dos tempos. O Compromisso é resultante das discussões e temáticas do Terceiro Congresso Mundial de Evangelização (Lausanne III). sobretudo. abordou-se o tema. No escopo dos temas enfocados em perspectiva teológica. edição espanhola).6). e ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14. esta questão me pareceu representar uma candente preocupação. para a maioria dos evangélicos. Algumas perguntas que me motivam nesta breve incursão: Por que dessa insistência com o testemunho e a defesa da verdade na evangelização? Como Lausanne III compreende a questão da verdade? De que modo esta compreensão está Vale mencionar que estas duas unidades são versões adaptadas de meu ensaio “A evangelização contemporânea como testemunho da verdade”. Out.-2013 (pp. Nesta unidade. que é o documento El Compromiso de Cuidad Del Cabo (Compromisso da Cidade do Cabo. publicado na Práxis Evangélica 22.Missão Integral Unidade 15 Missão e Evangelização (I) Introdução Nessas duas últimas unidades de nosso curso. evangelizar implica. desejo começar olhando para como em uma recente publicação (de 2012. E compreendo não ser à toa tal ênfase aparecer justamente em um congresso de evangelização. “demarcar o território” da verdade cristã como forma de convencer o outro de que não há outro caminho a percorrer. a verdade. a globalização e o pluralismo. ocorrido em Cape Town. retomando outra vez um velho vocabulário da teologia e da filosofia. África do Sul 2010. Agradeço aos editores da revista pela permissão em reutilizá-lo aqui. a vida. que é a questão da verdade1. necessariamente. fruto. uma vez que. 1132). doravante Compromisso). da avaliação que seus redatores fazem de desafios contemporâneos como a pósmodernidade. senão aquele anunciado por Jesus em João: “Eu sou o caminho. 1 177 . ação social ou discipulado/ensino. como se ambos o conceitos fossem sinônimos. Tendo dito isto. 1974). antes de prosseguir. mas que não tem necessária primazia sobre outras dimensões da mesma missão. O mesmo pode ser dito em relação à evangelização. 2. enquanto missões são atividades que a igreja realiza em prol da proclamação do evangelho. Objetivos 1. Observamos que são diferentes. Identificar as intersecções possíveis entre missão e evangelização tomando como caso o documento “O Compromisso”. missão por muito tempo (e ainda hoje) foi confundida com missões. um importante esclarecimento. que pode ser compreendida como a proclamação. podemos prosseguir em nossa breve jornada. especialmente entre povos “não evangelizados” (isto numa compreensão geral. 178 Missão Integral . de Lausanne III. adoração. Por conseguinte. tais como serviço. mas a segunda é uma dimensão e/ou o cumprimento de uma parte muito importante da primeira. enviando missionários para várias partes do mundo. Discutir a questão do testemunho cristão e da apologética “da verdade” a partir de elaborações recentes da chamada teologia evangelical. por palavras e ações. e que a missão diz repeito à missio Dei. Como vimos nas primeiras unidades do curso. das boas novas (o evangelho) do reino de Deus para o homem todo e a todo homem.ou não relacionada com a percepção média evangelical sobre essa questão nos últimos tempos? Em função de quais agendas teológicas e perspectivas se endereça o assunto? Mas. a missão não se resume à evangelização (ou proclamação). apenas para relembrar). em todos os lugares (ou até os confins) da terra – parafraseando aqui o lema do Congresso de Lausanne (Lausanne I. um embaixador de Cristo representa a imagem da verdade de Cristo nos meios em que vive. é bíblica. Observe que a participação nos meios de comunicação globalizados é vista como uma maneira de “advogar” ou “defender” a verdade. como “embaixadores” e paladinos da verdade. amor. No item sobre “la verdad y los médios globalizados”. gracia. Mas o que significa dar “testemunho da verdade” no mundo atual? Gostaria de conjugar a resposta para tal pergunta tanto com incursões ao documento quanto com observações e análises pessoais que serão feitas aqui e. Lausanne III. uma vez que o próprio Cristo. nas palavras de João. Embaixadores. de que devemos proclamar e defender a verdade em termos proposicionais. ainda parece adotar a via da apologética moderna. A abordagem inicial ao tema. Em nosso caso. em geral. portanto. como o movimento evangelical em geral. firma-se o seguinte compromisso: Nos comprometemos com uma renovada participación crítica e creativa em los médios y la tecnologia como formas de abogar por la verdad de Cristo em nuestras culturas mediáticas. são aqueles que possuem a função de chefiar a missão diplomática de seus países e são tidos como legítimos representantes da nação de onde procedem em terra estrangeira. é para que vá e faça discípulos de Jesus (ou da verdade) em 179 . paz y justicia de parte de Dios (EL COMPROMISO. com argumentos consistentes. agindo ou atuando como “embaixadores” da verdade. reflete ou reproduz a imagem de alguém a outro alguém com fina clareza. afinal o chamado do cristão. 2012. segundo os evangelistas. Debemos hacerlo como embajadores de verdad. definições da palavra “representante” convergem para a ideia de alguém que retrata. mais adiante neste ensaio. Nos dicionários da língua portuguesa. p. é aquele que veio dar “testemunho da verdade”. 41 – Grifos meus).Apresentando a questão Um dos primeiros temas propostos no Compromisso foi: “Dar testemonio de la verdad de Cristo em um mundo pluralista y globalizado”. sobretudo. Obviamente. quase ninguém veria neste pressuposto um problema. que parece tocar em um problema que compromete um tanto os demais. No primeiro tópico do item em análise. um convite ao discernimento. sobretudo quando urge “defender” a verdade.todas as nações. 2012. uma vez que o convite ao discipulado é. que procura não separar o viver pela fé da fé pensada ou da fé que pensa. deixando de lado os rudimentos da velha. embora a evangelização seja concebida como proclamação do evangelho por palavras e obras. (c) última e presente. é indubitável que a dimensão proposicional tem enorme importância. Escrevendo aos Efésios e aos Colossensses. porém. passa pela 180 Missão Integral . p. Desde Lausanne I. ou seja. uma apologética sólida segundo uma dada visão evangelical? A meu ver seria aquela que. declara-se que Jesus Cristo “é a verdade do universo”. por meio de arrazoagues e declarações verbais) da verdade. Alguns exemplos servem para ilustrar. Evangelicais em busca de uma “apologética sólida” O que seria. à compreensão e à busca de entendimento. Sendo a verdade. diz-se ainda que ela é: (a) tanto pessoal quanto proposicional. o apóstolo afirma que o revestir-se da nova humanidade em Cristo. também. linguagem tão comum nas cartas de Paulo. (b) universal e contextual. Esto no puede separarse del hecho de vivir la verdad. Há uma clara ênfase aqui na defesa proposicional (isto é. nem tanto em endossar tampouco em condenar esta visão. “sigue sendo de primordial importancia em nuestra misión. Las obras y las palabras deben ir de la mano” (EL COMPROMISO. contudo. p. em primeiro lugar. 2012. como se expressa acima. Detenhamo-nos no primeiro ponto. Não poderia estar mais de acordo com esta visão. 38). segundo o Compromisso. não despreza a dimensão da racionalidade humana. em 1974. Poderia ele ser chamado de um embaixador da verdade? Não soa um tanto pretensiosa esta atribuição? Não podemos nos apressar. Quero retornar um pouco mais no documento para que você possa visualizar o ponto de partida utilizado como escopo de todo o resto. que está associada à proclamação falada da verdade a qual. 39). desde a construção de uma “apologética sólida” (EL COMPROMISO. 16). 1998. mas envolve um treinamento do entendimento com todo o nosso ser. uma das mais assertivas definições de evangelização vem do mundo evangelical britânico. Nós ouvimos a Palavra a fim de descobrir mais e mais das riquezas de Cristo.2). a partir de um duplo encontro: o da Palavra com o mundo. e também aos clamores do mundo que nos rodeia (não necessariamente nessa ordem). p. e no refazer-se para o pleno conhecimento (Cl 3. ouvir com sensibilidade. A tarefa do discernimento. essa escuta se configura como dupla. também. 124). ouvimos ao Espírito. e é de John Stott em seu livro Ouça o Espírito. Fica claro aqui que o exercício da fé não é um “salto no escuro” pura e simplesmente. dentre as riquezas de Cristo. Nesse sentido.renovação do espírito de nosso entendimento (Ef 4. ao que parece. A singularidade desta visão de Stott está precisamente em conceber a evangelização menos como um falar e mais como um ouvir. e nos tornamos atentos à ação do Espírito no mundo.23). mas em que passamos a ter “a mente de Cristo” (1Co 2. E ouvimos o mundo a fim de discernir. consequentemente. não é fazer com que a visão cristã da verdade 181 . O Espírito não fala a uma parte de nós. ouça o mundo: A verdadeira evangelização precisa “ouvir duas vezes”. Além disso. e esse ser é “espiritual” não porque se apartou do corpo ou da racionalidade humanas. por sua vez. e assim a evangelização se dá. Em Romanos ele também fala da transformação e do não assumir a forma deste mundo por meio do que ele chama de renovação da mente (Rm 12. mas na medida em que cogita (pensa) e pulsa (sente) as coisas conforme sopra o sopro do Espírito de Deus. que nos fala pela Palavra.10). ou pelo menos em considerar que o ouvir deve preceder qualquer forma verbal de proclamação (se necessária) ou mesmo qualquer tipo de ação. mas a todo o nosso ser. na obrigação de ouvir a ambos. quais são as mais necessitadas e como apresentá-las a ele da melhor maneira (STOTT. E o propósito deste encontro. pois a testemunha cristã fica entre a Palavra e o mundo e está. em que a escuta é a premissa inicial. e o do/a discípulo/a com seus companheiros/as mundanos. nosso intelecto sim. não é aquela em que podemos conhecer a mente de Deus. mas também nossas emoções. mas se trata de mais um meio que. mas o mútuo enriquecimento sem a forçosa necessidade de abandono das convicções prévia e precariamente assumidas. Resta saber se isto ainda poderia ser chamado de “apologética” (defesa da fé). e em parte (bem pequena) ainda é. nesse sentido. porque embora o esforço de convencimento do outro de que a fé cristã é válida. assim como falar e ensinar. porque. um exercício de integridade”. 147. mas em que haja diálogo. Segundo observa Stott (1998. p. Na próxima unidade explicarei melhor por quê. buscando primariamente não o consenso (embora alguns consensos sejam possíveis).prevaleça sobre a cosmovisão do outro. “diálogo é uma conversação séria na qual nós estamos dispostos a ouvir e aprender. em seus próprios termos. reconhece-se a fragilidade e precariedade de seu depositário. creio que essa não é a principal ou a melhor estratégia – a de defesa propositiva da fé – de evangelização em nossos dias. assim como o próprio evangelismo. O paradoxo da fé. Aposto que não. Minha própria visão sobre a evangelização contemporânea também passa pelo caminho do encontro e do diálogo. Sobretudo. 2 Clark Pinnock (1992. também está. 124). o mundo moderno. nem tampouco de defender a fé cristã do que quer que seja – como se todo tipo de acusação a ela feita fosse passível de uma advocacia. é que a despeito de ela ser a fé de cada um. a serviço da missio Dei2. porque o diálogo serve a missão de Deus na esfera da transformação histórica também. e não de reconhecimento honesto e arrependimento – mas de uma conversa franca sobre perspectivas e labores diferentes de vida e de fé. E o que se busca no encontro não é necessariamente converter o outro à minha verdade por meio da mera persuasão. maior que a própria pessoa que o recebeu. 182 Missão Integral . e os efeitos da obediência podem ser maiores que aquilo que previamente pretendíamos”. quanto de compreender e conviver respeitosamente. relevante e melhor que outras crenças tenha sido uma resposta considerada certeira em um mundo cético quanto ao valor da religião como foi. É. tradução minha) foi quem disse que “não é apenas para os propósitos do evangelismo mais imediato que devemos nos engajar no diálogo em busca da verdade. pois. sobretudo. que na sua essência é uma tentativa não tanto de convencer. embora se creia nelas firmemente. p. embora isto não signifique que o diálogo seja um substituto do evangelismo. ainda mais o científico. teologicamente falando ela é um dom. a fé é superior e não necessita da razão. Henry. “é inaceitável a afirmação irracionalista de que o absurdo intelectual é o que torna dignas as crenças religiosas ou que a obediência espiritual Fideísmo é uma vertente epistemológica que afirma a independência da fé em relação à razão. 3 183 . que é a de uma argumentação lógica e dedutiva em defesa dos conteúdos da fé. segundo ele. Para Henry. de negociar os absolutos da fé bíblica a fim de adequar seu discurso às expectativas do ser humano moderno. possui seus adversários. os escolhidos de Henry neste ensaio são os empiricistas. e que viver pela fé implica em oferecer. os neokantianos e os existencialistas. por sua natureza defensiva. Em um dos ensaios em que mais enfatiza a questão da verdade (“Presuppositions and theological method”). sem dúvida. quanto a de Kierkegaard e de certos neo-ortodoxos. em sua visão. teólogo e editor fundador da Christianity Today. Esta é uma dimensão complementar à primeira. ele rejeita tanto a visão liberal. mas também um aviltamento desta. sem dúvida. Algumas de suas perspectivas sobre a verdade da fé cristã foram endereçadas em seu livro Toward a recovery of Christian belief (1990). No campo teológico. e o último pelo apelo à subjetividade na busca pelo conhecimento. embora não apenas racional. Isto. sendo que. pois admito que a fé seja racional. sua afirmação central é a de que a consistência racional é um “teste para a verdade”. O que não concordo é com o peso dado pelos apologetas da verdade aos argumentos racionais e lógicos sobre a fé. a razão do que cremos e por que cremos dessa forma. H. foi o norte-americano Carl F. Os dois primeiros pelo apelo à objetividade. Um dos grandes arautos dessa perspectiva. é preciso ressaltar. tais visões não podem ser confundidas com a ortodoxia evangelical. como Karl Barth (pelo menos em parte de sua obra). que reúne ensaios de palestras oferecidas por Henry na Escócia em 1989. na busca e alcance da verdade. minha atual posição também difere em muito da evangelical. que a verdade na religião reside mais no campo da fé (como salto) do que depende de raciocínios ou evidencias lógicas e testes racionais. sobretudo de uma segunda dimensão da “apologética sólida” de Lausanne e da visão evangelical que gostaria de mencionar. Como quase toda apologética.Nisto. por defenderem. para a qual. com máximo esforço de clareza e coerência. e um meio para que a teologia não se transforme em mero fideísmo3. 1990. não vejo Henry caindo na armadilha infantil de crer na correspondência da verdade com os discursos (teológicos) sobre ela. 1990. p. para fins práticos. da aposta de que as coisas são como efetivamente se acredita que sejam. como a teoria da evolução de Darwin ou a teoria da relatividade de Einstein. que “a expressibilidade proposicional é. assim. obviamente. persuasiva e propositivamente? Minha insistência nessa discussão se dá precisamente por entender que ainda há uma forte corrente no meio evangelical de insistência nessa proposta. p. embora se ancore na verdade da fé. que não imputo como sendo errada. a partir da inteligível auto-revelação de Deus. ou seja. na defesa proposicional da fé e verificável por meio da Bíblia como meio eficaz de se falar “autoritativamente” sobre Deus. Em tese. p. Henry afirma que mesmo sistemas científicos consagrados. 44). 1990. atestada pelas Escrituras e testada pela consistência lógica do discurso. diz ele. necessitam de fé. Sua premissa básica. “Em suma”. nem a filosofia. A teologia dedutiva. talvez só um pouco fora do lugar. Crê-se. p. nem a teologia podem fazer progressos” (HENRY. A questão crucial aqui. defende que o teste para esta verdade é sua consistência lógica. tradução minha). como e qual é a função e o lugar para o falar dela autoritária. “sem a fé. sistemática e lógica sobre a fé – e a invalidade da alternativa evidencialista. ele insiste na ênfase unilateral de que o Espírito usa a verdade. para mim (embora já tenha antecipado minha posição a respeito). é a da legitimidade de uma teologia dedutiva – fundada em argumentação racional. uma pessoa (Jesus). 40). é indagar se esse tipo de apelo autoritário e persuasivo no testemunho seria algo urgente e a melhor maneira de se tratar da verdade contemporaneamente e se a principal questão de nossa parte com a verdade hoje é a de sua “defesa”. como um instrumento de persuasão e testemunho (HENRY. Ainda assim. acredita na força do argumento. a que necessita da evidência empírica como prova para argumentos racionais (HENRY. Um tanto acertadamente. uma pré- 184 Missão Integral . em certo nível. 59). 1990. nem a ciência. isto é. 39. Se a verdade é.depende de um ‘salto de fé’ indiferente a considerações racionais” (HENRY. 71 – Tradução minha). em certos círculos apologéticos evangelicais. p. conforme disse Henry (1990. o que me parece estar em foco aqui é um debate como disputa. 1990. nem que (b) a sua consistência lógica invalida. Isso fica mais claro ainda quando Henry diz que “se as afirmações revelacionais cristãs são verdadeiras. Em suma. embora não se possa provar (como queriam os empiricistas) que o que se afirma no sistema cristão corresponde à verdade reivindicada. como se um pequeno sinal de incoerência em minha fala (o que sempre é uma possibilidade). Neste momento. nenhum outro sistema poderá ser mais compreensivamente consistente” (HENRY. bem como elimina sua possível aceitação como “verdade particular” em certo contexto. mas na superioridade de consistência e coerência lógica do “sistema cristão” em relação aos demais em sua acessibilidade à verdade. 1990. é todo o peso que se dá a elas. não está tanto na verdade em si. pois este não corresponderia à verdade (e qual corresponde?). de razoáveis proposições. que se basta. automaticamente. fosse prova da invalidade de meu discurso. 82. É claro que em uma discussão nos avaliamos mutuamente com base na assertividade e coerência de nossas proposições. é a pretensão a ser a única “voz da verdade” em um mundo plural. tradução minha). p. Para Henry. Ou seja. Um sistema que não pode ser expresso propositivamente envolve uma ambição à verdade não compartilhável e que de nenhuma forma pode ser testado”. portanto. Vale dizer que ser proposicional não é um problema em si. com alguma garantia para isso sendo apresentada (ver HENRY. quando tratamos nossas convicções nesses termos. não como diálogo. ao reabrir esta discussão.condição para a avaliação de qualquer sistema. estou lançando mão de argumentos. espero eu. sua relevância filosófica depende da afirmação de que a verdade cristã tem validade universal. o discurso supostamente menos consistente de outrem. menos até do que em minha vida. Ou seja. 88). O que me parece um tanto ultrapassada é a pretensão à verdade (a com “V” maiúsculo) a partir das proposições. não sou adepto do irracionalismo ou do “vale tudo”. o que não significa que: (a) elas sejam infalíveis. em suma. A aposta aqui. de perspectivas e. 185 . p. na vivência mesma. ver o capítulo 29 (“Nomear”). é a afirmação da sua em detrimento e exclusão das demais convicções (como que dizendo: se a minha convicção nasce e é expressão da verdade. graças a Deus (2013). 58). isto é. isto é. no ser mesmo. escuta e respeito com as demais. Nisto. diria que se alguma evidência (ou prova) pode ser reivindicada pelos que se consideram discípulos da verdade (Cristo). das Escrituras. p. bem diferente. na medida em que são atividades de segunda ordem. 4 Para um aprofundamento neste assunto. mas uma fala acerca tanto da fala de Deus (isto é. sem necessitar.Conclusão Para finalizar. que contêm sua Palavra) quanto das demais falas sobre Deus. mas apenas sobre a própria linguagem. quero diferir minha análise e abordagem à questão da verdade da de Lausanne III. também a teologia e a doutrina. afinal. não o próprio espelho da fala de Deus. Ademais. p. a do outro não pode ser. de Henry (com todo respeito à sua grandeza e importância como intelectual cristão) e de boa parte dos evangelicais. propositiva e coerente) de suas convicções em diálogo. particularmente. esta seria. penso que uma coisa é a afirmação (racional.4 Enfim. uma “evidência muda”. uma vez que ela seria uma espécie de “fala sobre a fala”. nos termos de André Comte-Sponville (2008. outra. de meu livro: Humanos. nada podem afirmar de verdadeiro ou falso sobre Deus e sua relação com as criaturas. a verdade “é uma só”: ou é verdade. argumentação ou discurso. A visão de Lindbeck parece coincidir com a ideia de que a teologia não produz teorias de correspondência com a verdade. 186 Missão Integral . eu diria que uma resposta coerente a estas afirmações de Henry pode ser encontrada na seguinte afirmação de George Lindbeck (1984. forçosamente de defesa. que se basta em si mesma. mas apenas falar a respeito de tais afirmações. ou é mentira. mais claramente na última unidade deste curso. não tem “meio termo”). 69 – Tradução minha): Assim como a gramática por si mesma não pode afirmar nada que seja verdadeiro ou falso a respeito do mundo em que a linguagem é usada. André. Rio de Janeiro: Novos Diálogos. MENEZES. A wideness in God’s mercy. Jonathan. 2013. Grand Rapids. Wheaton. George A. The finality of Jesus Christ in a world of religions. PINNOCK. The nature of doctrine. graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. Religion and theology in a postliberal age. Pennsylvania: Westminster Press. 1992. ouça o mundo. 1984. Philadelphia. EUA: Crossway Books. Clark H. 2008. 1990. Ouça o Espírito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. Michigan: Zondervan. John. HENRY. São Paulo: ABU Editora. Carl F. 1998. Toward a recovery of Christian belief. LINDBECK. 187 . Una confesión de fe y un llamado a la acción. 2012. H. STOTT.Referências COMTE-SPONVILLE. EL COMPROMISO de Ciudad Del Cabo. Illinois. Comité Lausana Latinoamérica. Valor e verdade. Humanos. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 188 Missão Integral . aliás. tentarei demonstrar de que modo em nossa era. por fim. este passa a ser menos por vias de argumentação lógica e propositiva. e creio que endereça bem a inquietação que me move nesta última unidade de nosso curso – e aqui já adianto que muito do que trabalharei aqui são teses e percepções minhas e que algumas podem ser polêmicas no meio teológico e cristão. Compreender e avaliar uma parte das discussões teológicas e filosóficas sobre a questão da verdade. Em diálogo com a filosofia contemporânea. descrita por muitos como sendo pósmetafísica ou pós-moderna (dentre outras variações).Missão Integral Unidade 16 Missão e Evangelização (II) Introdução A verdade. desde um ponto de vista (cristão) pós-moderno. 2. de modo que. 189 . Reconhecer meios possíveis de se testemunhar da verdade (Cristo) em contextos pós-modernos. questionar e até tentar refutar meu ponto de vista (que é apenas a vista de um ponto). que se ainda resta algum lugar no testemunho para a verdade. Meu intuito é fazê-los pensar. você tem toda liberdade de discordar. Defendo. você não tem que concordar comigo. e mais a partir do paradigma da presença e relacionamento. Objetivos 1. por que sempre a verdade? Essa pergunta foi feita por Nietzsche. desnecessário dizer. peço apenas que você se mantenha com a mente aberta. o uso dogmático e absoluto da verdade torna-se obsoleto e nonsense. para tanto. “todos aqueles que se importam com a verdade. sua experiência e sua fala. Pilatos replica: “Então você é rei?”. na forma de diálogo retomando temas transversais de seu evangelho (verbo. e a sua culminância na eliminação de todas as classes e no estabelecimento de apenas uma: o proletariado. pela fé. que tem a pretensão de apresentar o sentido final da história). por exemplo. ainda que tenha implicações teológicas profundas e envolva diretamente a profissão de fé e o testemunho cristãos – bem como o de outras religiões e crenças. xvi). Isto para ilustrar com alguns exemplos apenas. E Jesus se esquiva outra vez de uma resposta objetiva. isto é. não faço diferenciação aqui entre uma verdade “teológica” e uma verdade “filosófica”. Embora a mensagem do Evangelho. reino. Assim. seja concebida como absoluta. filosóficos. 1 190 Missão Integral . Se tomarmos. com a ideia da história como sendo resultado da “luta de classes”. como o marxismo. por exemplo.A verdade num sentido (cristão) pós-moderno Quando falo sobre “verdade” como ficará claro – falo em um sentido (cristão) pós-moderno1. dizendo que seu reino não é deste mundo. como sendo um estado. para o conteúdo de seu discurso. ditos pós-modernos sobre o assunto. não são (nem poderiam ser).33-38) – aliás. que possuem algum sentimento para A noção de “pós-moderno” que aqui utilizo segue a bastante conhecida concepção de Jean-François Lyotard (1988. testemunho. de “incredulidade em relação aos metarrelatos”. e não por acaso. no fundo. de Deus ou da vida) em termos metafísicos. mas também nas chamadas filosofias especulativas da história (isto é. que é a de dar testemunho da verdade. pois se fosse seus servos lutariam para que os judeus não o prendessem. absolutos. que se podia achar na Europa em fins dos anos 1970. também. a teologia não apenas se baseia em metáforas (da própria Bíblia). No que Jesus aprofunda a questão. de modo que aqueles que “são” da verdade. pois a questão da verdade permanece sendo. mas reforçando o sentido de sua missão (envio – “para isso eu vim”). Podemos dizer que a teologia. o mensageiro. é construída em torno de metarrelatos (como o do reino de Deus). como o cristianismo. verdade) – a teologia e a filosofia estão em intercâmbio. alegando que foi Pilatos quem disse isso. Isto. uma questão filosófica. Nesse sentido. O tema (teológico) do reino surge de uma pergunta objetiva de Pilatos: “Você é o rei dos judeus?”. portanto. reivindicam o valor e verdade (absoluta). sobretudo. mas pode abandonar (como eu defendo) a pretensão de falar (do reino. isto é. p. o que implica em uma tentativa de dialogar com os discursos. a discussão entre Pilatos e Jesus retratada por João (18. Dentre eles podem ser incluídos os das grandes religiões. o Judaísmo e o Islamismo. por exemplo. o único que investe neste encontro. Metarrelatos são os grandes relatos de explicação da realidade que. O tema da verdade. como também fala em termos metafóricos. surge na fala de Jesus ligado ao testemunho de vida. Como resultado. expressa em linguagem. Além disso. É uma verdade que não pode ser posta em palavras. quando isso acontece. mas verdades individuais não são o que Pilatos estava buscando ou o que você e eu estamos buscando. É uma verdade que está sempre acenando pra gente a partir de diferentes lugares e vindo até nós de diferentes direções. segundo ele. E dentre muitas coisas que ele pode estar significando. No caso de Jesus. A VERDADE é o que Pilatos busca: a verdade sobre quem nós somos e quem Deus é.. de fato. como muito bem analisa Buechner no trecho de seu ensaio sobre “A verdade das histórias”. E depois. um ser. pois as palavras não podem contê-la.com a verdade” (v. Verdades sobre isto ou aquilo correspondem a um centavo de uma dúzia. ela deixa de ser “a verdade”. sobre a verdade em si mesma. mas a verdade. mas está sempre se movendo e mudando como o ar. E 191 . Silêncio que disse sem dizer. Pilatos não ouviu ou obteve o que queria. ela é o que é e pronto. teológica ou filosófica sobre o tema. ou melhor. Existem verdades individuais em todos esses meios. ou o que as pessoas ensinavam sobre ele. não ouvimos nada. é uma pessoa. contudo. porque Jesus manteve-se em silêncio. na Igreja ou em qualquer sistema de ética ou doutrina teológica eram a verdade. em si. ou que seus próprios ensinamentos. seja na Bíblia. incluindo as verdades da religião. uma elaboração doutrinária. o ouvem. que afirmou sem afirmar. que significa. Esta é a verdade que todos estamos atrás. que aqui faço questão de transcrever: Jesus não diz que a religião. É uma verdade que nunca pode ser ensinada em nenhuma doutrina ou credo incluindo o nosso próprio porque ele nunca permanecerá por muito tempo. Uma verdade particular. sobre a morte. 37. se encerra com uma pergunta (a que não quer calar) filosófica (digo eu) de Pilatos: “O que é a verdade?”. segundo esperamos e acreditamos. 16). Tradução A Mensagem). a menos que eu tenha perdido meu ponto. a verdade sobre a vida. O diálogo. o que ouvimos não é uma resposta.. é que a verdade não pode ser definida. não. não vemos Jesus repetindo todos os seus principais ensinamentos sobre o Reino ou dando uma síntese teórica da verdade. p. pode ser declarada em palavras. segundo Frederick Buechner (1977. uma resposta eliminaria qualquer sentido para a “busca”. teoricamente inapreensível. se há um Deus. tratar da questão da verdade é ter de pensar tanto teológica quanto filosoficamente. 1984. Não apelo para a metafísica. ele conta histórias (BUECHNER. 30 – Grifos meus). 29). se é filosofia ou se é a matéria da revelação (teologia). 1992. excederia às minhas forças”. A meu ver também não importa. e quando o homem afirma tê-la resolvido. p. também pouco importa. que depois de tudo. enquanto filosofia ou revelação.penso que é precisamente por isso que sempre que Jesus tenta colocar esta irrevogável e inexpressível verdade em palavras. a meu ver. Portanto. Jacques Ellul. Não é a verdade porque não é o questionamento que o homem faz a si mesmo sobre sua vida. Ou seja. que a resposta venha dele ou seja objetivada. muda e acena para nós de diferentes maneiras e vem até nós de diferentes direções. 130-131). pois ambas acabam caindo no mesmo beco sem saída quando tentam transformar a questão (antiga e legítima) da verdade na própria verdade. reduzir a verdade a conceitos ou proposições é igualar aquilo que não pode ser igualado. pouco importa. caso se queira problematizar a questão. Concordo com Ellul. dizendo “isto é verdade” e pronto. Por isso. p. Ellul completa dizendo que não podemos confundir a “questão da verdade” com a própria verdade: A questão da Verdade não é a verdade. em seu livro A palavra humilhada (1984. o de não entender que para ela não há resposta suficientemente satisfatória e definitiva. então fica formulada a questão da verdade. disse: “Certamente não responderei. É ainda um jogo intelectual e uma maneira de estar fora da verdade. portanto. obrigar-me-ia a fazer um imenso desvio. qual seja. ele usa a forma que se move. É nisso. porque seria contestado. possa ele dar uma resposta. que se transformam tentativas de conter. p. uma vez que. desvios tremendamente contestáveis. definir: em imensos desvios. Isto é o que Nietzsche chamou de “igualação do não igual”. neste caso propositadamente estou “misturando as coisas”. Assim. O problema apontado por Buechner é o de tantos que tentam responder objetivamente à pergunta “O que é a verdade?”. Mas quando o homem questiona sobre sua vida (consciente ou inconscientemente). mente (ELLUL. Diante dela. dandolhe um conteúdo. afirmando tê-la resolvido. e não apenas afirmar a correspondência entre palavras e coisas. ou se resignando 192 Missão Integral . E. 2 193 . flexível. Em outras palavras. ele deixa de ser “a verdade”? De modo nenhum (não pelo menos do ponto de vista de quem crê que é assim). não pode ser capturada por ninguém. e sim “verdade para mim” ou “para nós” (pensando em um coletivo ou rebanho). Podemos Uso o termo aqui pensando na acepção dada por Gianni Vattimo (2010. firme. Ser cristão significa viver no limear entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído e capturado pela verdade na vida e a boa-nova libertadora de não poder apreendê-la ou possuí-la no discurso. uma pessoa). no nível da fala. penso que à verdade “conhecida” por meio de nossas proposições ou frases. de que é uma produção que se realiza no mundo da fala e da linguagem. para verificar a verdade em termos cognitivos e objetivos... Verdade. indiscutível”. ela já não mais pode ser “a verdade”. pos. ou de que é “uma propriedade de entidades linguísticas. se torne apenas um fragmento – eis o problema em reduzi-lo em conceitos ou definições. E quando digo isto. estável. A verdade só “é” para quem se vê capturado por ela. E verdade para mim ou nós é sempre parcial. quando afirmamos que “Cristo é a verdade”. acima de nossas cogitações. 1135 – Tradução minha): “A interpretação é a ideia de que o conhecimento não é puro reflexo do dado. Isto porque a verdade “é” (no caso de Cristo. Aquilo que “é” não pode ser declarado sem que. uma vez que a verdade. construção e relativismo Quando Richard Rorty. De novo trazendo Ellul ao diálogo.ao modo (dogmático) de que a minha interpretação2 é “a verdade”. estimativas e apreensões. 31) e não pode simplesmente ser “achada” lá fora. “a verdade é sempre verdade apesar e contra tudo. A tentativa de estabelecer a equivalência entre uma verdade particular de nosso discurso e a verdade em si resulta em dogmatismo. de frases” (2007. mas de vivê-la como “evidência muda”. em si. para tudo aquilo que é a linguagem cala. p. mas apenas uma aproximação interessada ao mundo com esquemas que também são mutáveis ao longo da história”. já a sua é menos verdade. lendo Nietzsche. isto é. parte do ponto de que a verdade é construída. mudando um pouco a frase de Wittgenstein. Isto implica então que. a qual verdade ele está se referindo? Ora. eu preciso dizer: “Isto ou aquilo é verdade”. interpretações. mas para mim é verdade”. então a verdade (em si) não pode corresponder exatamente ao manifesto. Só que. comete-se esta falácia quando não se consegue demonstrar 194 Missão Integral . p. Onde está a falácia aqui? Segundo Stephen Law (2009. que nossas proposições teológicas ou filosóficas precisam ser mais modestas. mas não ser igualado àquilo que muda (nossas visões. Acabam fazendo na prática precisamente aquilo que rejeitam no discurso. continuar propondo. Afinal.continuar lançando mão de critérios? Sim! Mas entendamos que eles são “nossos critérios”. como tenho afirmado. “dizer que abandonamos a idéia de verdade como algo que está aí. ou mesmo quando não demonstram tolerância com quem apresenta o que consideram uma “mente fechada”. à espera de ser descoberto. não somente e nem primeiramente eu). p. conceitos e pressupostos). Primeiro. O que “é” (a verdade) pode até preceder. 199). Discordo tecnicamente da afirmação de Charles Hodge (2003. 329) de que “a verdade é aquilo em que a realidade corresponde exatamente ao que é manifesto”. portanto. tal descoberta? Outra falácia relativista pode ser esta de dizer que verdade é o que eu considero ser verdade: “pode ser falso para você. sem sombra de dúvidas. me aprofundando e defendendo questões sem pretensões universalizantes para estas questões. como ressalta Rorty (2007. Posso. manifesta linguisticamente. podem ser “mente fechada” quando afirmam quase dogmaticamente que não há verdade absoluta. De novo: as correspondências humanas com a verdade são sempre parciais. Fico repetindo isto com o receio de que ainda não esteja suficientemente claro. que podem ser inspirados na e pela verdade. quem seria capaz de sustentar. fragmentárias e. Por exemplo: pessoas relativistas costumam ser consideradas de “mente aberta”. Prossigo defendendo (é claro. sim. Partem do princípio (falacioso) de que descrer no absoluto é o mesmo que afirmar que ele não existe. dessa forma. se o que o (discurso) humano “manifesta”. uma vez que as concebo como. não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma”. ao mesmo tempo. mas que não podem ser confundidos com a própria verdade. relativas! E isto não implica necessariamente no endosso de um relativismo do tipo “vale-tudo”. 33). porque relativismos tendem a contradizer-se. Ora. e não mais que. conhecendo. p. 92): “Reconhecer a validade relativa das próprias convicções. E desde quando urge que a fé seja defendida? Ora. Endossando o que disse Isaiah Berlin (apud. que são relativas na medida em que são fragmentárias ou que não abarcam o todo. por exemplo. p. embora não haja um critério universal de julgamento (para dizer o que é válido e ou que não é). Do contrário. Júlio Zabatiero. a não ser na forma de descrições ou representações. como disse certa vez meu ex-professor. isto também não significa que seja plausível afirmar qualquer coisa que se queira.que a verdade em questão. 2007. Neste caso. não deveria ser esta também uma distinção do cristão (pós-moderno ou não)? Sobre a apologética como defesa da verdade Retomando algumas questões trabalhadas na unidade anterior (e até em resposta a elas). Afirmar a relatividade de nossos pressupostos não é o mesmo que endossar o relativismo. porque nasce do princípio de “defesa da fé”. De que modo então elas são relativas? Na medida em que se assume que não as possuímos em si. é uma espécie de contra-ataque. como diz Law. desde quando ela tem sido “atacada”. de que apologética é má teologia. E o problema é que quando urge falar do evangelho como “defesa” nossa perspectiva tende a ser fechada para as demais e para o diálogo. responder às interpelações feitas a fé. é mesmo relativa. tanto na abrangência quanto no respeito às convicções do outro. é o que distingue o homem civilizado do bárbaro”. sim. diria alguém. “eu poderia tornar qualquer afirmação verdadeira crendo nela: ‘Posso voar’. porém. por assim dizer. que se afirma ser relativa. que precisamos. apenas nos alerta quanto a seus limites. A contingência não nos impede de defender nossas convicções. Entendo. É preciso afirmar e sustentar (não confunda com “comprovar”) a afirmação dentro de certos limites e deixar que os pares ou a comunidade julguem ser razoável ou não. E. acrescento. aqui parto do pressuposto. certamente polêmico em certos círculos. hoje colega. então a apologética. RORTY. E isso vem acontecendo desde que a fé cristã começou a ser propagada. Obviamente a maioria das verdades não é relativa desse modo”. mas sem a preocupação em fazer do diálogo 195 . mas ainda assim defendê-las resolutamente. Primeiro. Segundo. que se reconheça as limitações óbvias dessa roupagem. em pleno século XXI. por natureza. afirmamos mais com a vida. “interpretações”. frágil.um tribunal onde ela possa ser defendida e. e menos com o discurso ou de modo proposicional. Dar razão da esperança que há em nós. A relatividade ou provisoriedade da doutrina não é uma negação ou diminuição do 196 Missão Integral . como diz Pedro. por sua vez. que em si. Doutrinas não são absolutas. Que conseguiríamos com nossa “fala sobre Deus” senão expressar uma parte? Ora. parafraseando Ellul. e é onde pecam muitas das apologéticas. mas acaba sendo (e precisa ser) relativizado quando passa pela via dos conceitos humanos. O discurso. pela fé. sim. podem ser. e sujeita a retaliações. pois se configura como discurso humano sobre o divino. quando “ganharmos a causa”. do passado e do presente. no fim das contas. pois ainda persiste num diálogo de surdos com a linguagem científica do século XIX. E assim precisa ser. O Cristo Verdade-Caminho-Vida é absoluto como ser. a parcela falando sobre o todo. porque a defesa precisa se assemelhar ao ataque para poder partir para o contra-ataque. a apologética peca. é diferente de defender a fé. Nesse sentido. afirmando “certezas” onde só temos “impressões”. de imprecisão. a causa. aquilo que há de mais imperfeito e temporal falando sobre o perfeito e eterno. percepções relativas. porém. Terceiro. e não “O Discurso” e “A verdade”. ainda que fiéis. quando vier o que é perfeito. como a maioria das apologéticas acaba se colocando quando apresenta o Cristo travestido de sua roupagem teológica. recheada de proposições sobre Deus. se nossa teologia é. conheceremos como também somos conhecidos (ver 1Co 13. mas procurou integrá-las com divina coragem e discernimento a sua vivência e prática diárias. o próprio Paulo foi quem disse que hoje conhecemos apenas uma parcela da verdade (“conheço em parte”). defendo que estas sejam modestas e assumam-se como um discurso em meio aos outros. a certeza e a verdade que afirmamos. “linguagens”. ou. Nesse aspecto. de um princípio absoluto. como foi Jesus. ser absolvida de suas acusações – o que já não poderia ser chamado de “diálogo”. a missão. sem. Nesse sentido. é recheado de incertezas. querer que Cristo seja equivalente a nossas ideias sobre Ele é uma pretensão para lá de funesta.12). existe para ser indefesa. Ele não defendeu a fé. de subjetividades. e então. reitero o que já disse anteriormente: afirmar que nosso conhecimento não é capaz de “dar conta”. então nada é relativo (?). esse apego ferrenho ao poder do argumento que convence. “relativista” ou coisa que o valha quem ousa questionar a forma ortodoxa de pensar que tanta distinção e louvor cultivam. sustenta-se sob a pretensão não apenas de “falar de Deus” (o que já seria um hercúleo desafio). ao trocar sua vocação (teológica) para ser a mais modesta dentre as ciências. S. nos ensinou a viver na casa do conhecimento sem abandonar a casa do amor. Que falham ainda mais quando não se assumem como tais. mas de “falar por Deus”. O modo apologético. tão desatualizada e desconectada quanto a primeira no tempo em que vivemos. e ainda se vêem no direito de dizer quem está e quem não está do lado “da verdade”. não convence tanto quanto o poder da vivência (ou especialmente se não atrelado a esta). Ademais. se isso não bastasse. não são 197 . o relativismo acaba sendo outra forma de apologética. Tantas vezes tem cedido à tentação de não questionar seus próprios pressupostos. dominar e condenar. como pode ser expressa? Pode ser expressa por meio da parcialidade imperfeita do discurso – ou da vida. Lewis chamou de “oferta do bruxo”. Se for absoluto não pode ser reduzido – e em grande medida isso é o que são nossos conceitos ou percepções de Deus: reduções. não significa dizer que “não existe mais uma verdade absoluta”. Mas a questão é: se é absoluta. e não do relativismo (a ideia de que “tudo é relativo”). Muitas vezes ainda cede ao que C. “liberal”. mas é a assunção de nossa incapacidade de compreendê-lo.absoluto. portanto. capítulo 13. por sua vez. de deter a verdade ou alcançar a verdade objetiva. No entanto. pelo conhecimento como poder: para legislar. a favor assunção da condição relativa de nossas percepções. em A abolição do homem: “Numa batalha. Lembrando o que disse Lewis. de que a força de seu discurso e vida reside precisamente em sua fraqueza. é a maneira como Paulo em 1 Coríntios. Se tudo é relativo. de decretar como “herege”. pois o “tudo” se transforma em “absoluto” no dizer do relativista. em nosso tempo. e sim que não pode haver uma visão (humana) absoluta da verdade. Afirmar que expressamos ou vivemos em parte. No fim. lidar mal com os questionamentos alheios e. Lutou contra seu próprio princípio de sustentação. Posiciono-me. sem me preocupar muito com as implicações disso no que diz respeito 198 Missão Integral . segundo João) em nome da caridade. além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais” (passionais). p. correm o risco de ignorar a parte do meio. para fins mais “sublimes”. 23). pois “o peito” é o elemento intermediário que transforma o homem em homem. Ou como se diz por aí. “não é o excesso de pensamento que os caracteriza. 2005. E pergunto se estamos dispostos a fazer o mesmo hoje. em relação a uma bandeira. como reitera Lewis (ora se referindo a certos racionalistas de sua época). 2005. 22). enquanto. magnânimos na atitude. e pelo seu apetite ele é apenas animal” (LEWIS. precisamos de “homens de peito” (íntegros.. 2005. exemplos arrastam.os silogismos que vão manter os relutantes nervos e músculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. muitas vezes ela sacrifica a caridade no altar da verdade. na acepção de Lewis. pois. palavras convencem. mas não transformam. Pelo contrário. Sobre o testemunho cristão em um mundo pósmoderno Tenho me focado até aqui em travar uma discussão teórica. coisa que Jesus nunca fez. p. mas uma carência de emoções férteis e generosas. sobre a questão da verdade no meio cristão. Enfim. 23). em si. segundo vejo Jesus preferiu sacrificar a verdade (ele mesmo. Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim” (LEWIS. Meu problema com a apologética reacionária moderna (embora nem toda ela) está exatamente aí: esquecendo-se da “parte do meio”. O mais rude sentimentalismo. no máximo. p. Jesus é o maior exemplo de que as palavras não são tão convincentes quando ou se descoladas da vida. no sentimento). país ou regimento será bem mais útil” (LEWIS. em primeiro plano. podem convencer. O que tudo isso me leva a pensar? As “ideias boas” e bem articuladas.. homens que. crucificar “a verdade” de nossas opiniões e posicionamentos teológicos em nome de algo maior que ela: a caridade. não geram “homens de peito”. assunto de meu próximo e último tópico. para Lewis. ou seja. “pelo intelecto ele é apenas espírito. Talvez aí esteja um mote para pensarmos num discipulado e testemunho em contextos pós-modernos. a questão da verdade – e com isso perdemos de vista os relacionamentos com as pessoas em torno das quais se levantam tais questões. a questão do homossexualismo. na realidade. Quanto maiores as questões se tornam. E penso (não somente eu. por exemplo. o defender a tolerância e não tolerar que não tolera. que sua própria trajetória para a Arca.às posturas ético-relacionais do cristão chamado a dar “testemunho da verdade”. se tornar mais importante que o ser tolerante. da mesma forma. relacional. E o mesmo poderia ser dito da justiça. espero ser bem mais que um paradigma. inclusive com quem não é. E que implicações isto tem? Penso que elas são mais ou menos óbvias. menor fica o lugar para onde as pessoas podem voltar a fim de afirmar seu amor umas pelas outras e rezar juntas pela misericórdia de Deus” (NOUWEN. Henri Nouwen retratou muito bem isto quando disse de modo bastante pessoal. as questões tendem a ser mais importantes que as pessoas. e assim por diante. é claro) que esta base – a despeito de quem. conforme o exemplo de seu mestre. em Toronto – morada de pessoas com necessidade especial. reitero: se a verdade passa a ser tratada mais como questão e objeto de defesa – a “minha verdade” contra a “verdade dos outros” – a tendência é que se perca de vista o princípio (no caso cristão. No que diz respeito à verdade. mas “em que base”. a questão da corrupção. é uma contradição em termos. compaixão. ética. onde passou os dez últimos anos de sua vida – é o movimento de “uma vida orientada por questões” a uma “vida orientada para pessoas”. Não penso que Nouwen esteja defendendo (e nem eu tampouco) um total 199 . A defesa da questão da tolerância pode. como ou onde – é relacional. não a partir da ótica de “como” se evangeliza. No anseio por defender nossas convicções cristãs em meio a um mundo onde elas são cada vez menos consideradas como relevantes para a vida em geral. 2001. de amor) que serve como combustível para que essa verdade possa ser reconhecida como verdade-vida e não verdade-morte. 207 – Grifo meu). E a isto acrescentou: “Vi a igreja na Holanda ser destruída por crescentes divisões quanto a questões de autoridade. solidariedade. sexualidade e feminismo. Em outras palavras. Agora quero pensar em algumas implicações da ordem da práxis propriamente dita da evangelização. Aliás. a partir de um paradigma da presença – que. tendemos a nos focar muito em questões – a questão do aborto. p. não apenas fala mais que a própria fala. transformadora. dialogal. apenas que não deixemos que elas se tornem grandes demais ao ponto de nos cegar para algo que deve ser maior que elas – na verdade. Dessa forma. no colocamos ao lado dele. a pressão social. p. não excludente. Pequenos gestos são. Nossa presença não é equivalente à presença de Cristo – uma vez que ele já se faz presente. amorosa. 200 Missão Integral . que ainda defende a idéia de que “assim como o mal começa muitas vezes com coisas pequenas – a criação da imagem do inimigo. e até dar mais crédito ao que falamos. mais perto do farisaísmo que de Jesus. Penso que dar testemunho da verdade em um mundo pósmoderno é partir mais do paradigma da presença que do discurso.abandono a certos temas como “questões” a ser defendidas desde certos pontos de vista. como disse Hans de Wit. assim. entendo que a presença e o modo como nos fazemos presentes “entre os outros” no mundo é o que (ainda) pode fazer diferença. ao invés da insígnia de “embaixadores do evangelho”. podemos estar diante de um cabal exemplo de como estar no caminho torto e equivocado. A vida. pela graça. razão para que elas existam – ou seja. O colaborador co-labora e não labora em lugar de. a quem Deus ama. “sinais de esperança”. a proibição da dúvida – também o bem muitas vezes se realiza por meio de pequenos gestos de amor” (DE WIT. quando ninguém está vendo. mas de pequenos gestos feitos no dia a dia. usando outra vez a instigante metáfora de Stott. com ou sem a gente – mas é um reflexo possível de sua presença: solidária. e não que nós é que. Quando a defesa da retidão e do “caminho certo” se torna mais importante que a conexão com as pessoas. 302 – Grifo meu). 2010. prefiro a insígnia paulina de que somos “colaboradores com o evangelho”. Nosso trabalho é inútil e pretensioso quando achamos que o Espírito está do nosso lado. nesse sentido. as pessoas. seguindo suas pegadas no mundo e “ouvindo duas vezes”. Não necessariamente através de grandes gestos. mas a legitima. Ainda que não prescindamos totalmente dos discursos e admitamos que eles ainda possam ser válidos. quando não há jornal que noticie e nem público que aplauda. O vaso não existe para “proteger” a integridade do tesouro (ela não pode ser ferida). mas em vocês. o tesouro neles resplandeça. mas é o tesouro que é oferecido para restaurar a integridade do vaso. defensores e nem detentores do tesouro (somos detido-libertos nele). Ela designa o contraste entre nossa humanidade. mas que anseiam para que. mas que escolhem precisamente o que há de mais fraco e incerto para se “abrigar”. em louvor à fragilidade. sendo possuídos pelo tesouro. cofres de segurança ou guardiões. este tesouro não precisa de sentinelas. que estamos vivos. mas existe para morrer: “Pois nós. Não somos. que como o vaso vem do pó. portanto. pela graça. nem nos faz maiores que ninguém. Mesmo possuindo. para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal. cujo autor foi Paulo: é a de um “tesouro em vasos de barro” (2Co 4. e não de nós”. ou melhor. caçadores (fomos achado por ele e nele). que não podem ser contidos. A pergunta é: por quê? Paulo dá a resposta no mesmo verso: “Para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus. a vida” (2Co 4. vulnerável e sujeita a quebra. portanto. O vaso não existe para ser transformado em cofre-forte e blindado.Conclusão Quero finalizar com outra metáfora instigante para pensar em nossa postura na evangelização. Paulo. mas de simples vasos que não querem resplandecer. Curioso. nós nunca deixaremos de ser simples “vasos”. De modo que em nós atua a morte. Somente quando assumirmos este lugar de vulnerabilidade em nossa relação com o mundo e nos variados contextos em que o Senhor no coloca. não? Temos um “poder”. nos convida a rever nossa teologia do poder e da verdade. somos sempre entregues à morte por amor a Jesus. em verdade e com vida. o poder de Deus poderá se aperfeiçoar em nós para alcançar as pessoas (tantas vezes desorientadas) no caminho. e a reservar um lugar em nossa vida e missão como igreja ao acolhimento e aceitação da fraqueza. com o eterno poder do evangelho e a divina companhia.10).7). antes ressalta nossa fragilidade e não imunidade às contingências e sofrimentos de qualquer ser humano. mas que não é precisamente “nosso”. é frágil. 201 . Alessandro. Gianni. New York: Harper Collins. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2003. ouça o mundo. Buenos Aires: ISEDET. 2007. São Leopoldo: Sinodal. Richard. Karl. Ouça o Espírito. 2010. Jacques. 2008. ________. Contingência. NOUWEN. COMTE-SPONVILLE. O pós-moderno. São Paulo: Martins Fontes. Hans. Stephen. Barcelona: Editorial Gedisa. John. São Paulo: Vida Acadêmica. Guia Ilustrado Zahar. André. 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Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 203 . Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 204 Missão Integral .