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March 16, 2018 | Author: Alberto Vieira | Category: Slavery, Azores, Folklore, Interdisciplinarity, Geography


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Rua das Mercês, 89000-420 – Funchal Telef (+351291)214970 Fax (+351291)223002 Email: [email protected] [email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/ VIEIRA, Alberto (1996), O Folclore e a Investigação Histórica. Algumas Notas Soltas COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO: VIEIRA, Alberto (1996), O Folclore e a Investigação Histórica. Algumas Notas Soltas, Funchal, CEHA- Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeira- edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/folclore2.pdf, data da visita: / / RECOMENDAÇÕES O utilizador pode usar os livros digitais aqui apresentados como fonte das suas próprias obras, usando a norma de referência acima apresentada, assumindo as responsabilidades inerentes ao rigoroso respeito pelas normas do Direito de Autor. O utilizador obriga-se, ainda, a cumprir escrupulosamente a legislação aplicável, nomeadamente, em matéria de criminalidade informática, de direitos de propriedade intelectual e de direitos de propriedade industrial, sendo exclusivamente responsável pela infracção aos comandos aplicáveis. O FOLCLORE E A INVESTIGAÇAO HISTORICA algumas notas soltas Alberto Vieira [As cantigas e bailados] São como que a presença do passado, atrás da qual e possível ver em espírito o panorama comovente da terra virgem; e ouvir ainda as enxadas moiras e algarvias a rasgar-lhe a carne ate aí pura de contactos humanos; e assistir ao poetico ressurgimento das vilas e aldeias como fogachos da vida, de cor e de movimento; e passar ao convívio dos nossos avos nas duras azáfamas de dar vida a coisas mortas, com todo o seu sabor medieval; e sentir com eles a sensação do desconhecido. E nosso dever defendê-los e honrá-los não consentindo nem arremedos de investigação nem que esfarrapem o que ainda possa meter de ancestral e muito menos os amortalhem com excrescências, detestáveis e falsas; e nosso dever fazer reintegrar os camponeses no que e verdadeiramente seu, tradicional e historico e despertar-lhes o já muito abalado entusiasmo pelas suas cantigas e bailados. (Carlos M. Santos, Trovas e bailados da ilha. Estudo do folclore musical da Madeira, Funchal, S.D., pp.XXIX-XXX) 0 TEMA: O DITO E O NAO DITO. Este testemunho de Carlos Santos, um dos mais destacados estudiosos do nosso Folclore, surge aqui, ao mesmo tempo, como uma homenagem e provocação. Homenagem ao homem que procurou, com muito engenho e arte, desvendar os seus segredos e desfazer alguns equívocos. Provocação, porque o seu nome parece ter sido votado ao esquecimento por alguns dos actuais estudiosos do Folclore Madeirense 1 . Ignora-se o seu labor de recolha, não obstante ele ser quase sempre o nosso livro de cabeceira. Note-se que esta atitude, que quase se tornou um lugar comum no nosso quotidiano, não abona em nada os seus autores e tão pouco a produção cultural. No muito que para aí se diz, deparamo-nos com leituras apressadas e deturpadas de alguns dos textos de Carlos Santos, o que nos leva a apelar a uma nova, mas critica, pois estes não podem nem devem ser encarados como a nossa Bíblia do Folclore madeirense. Eles são um referencial importante. Mais do que isso, 1 . Apraz-nos salientar aqui a sua evocação em Revista Xarabanda, n. especial. 22 de Julho de 1993. Carlos Santos(1893-1955) e o Folclore Madeirense. o testemunho de uma epoca e geração, empenhadas em recriar e perpetuar as suas tradições. Recorde-se que o autor fez as seus estudos e observações numa epoca peculiar da nossa Historia Contemporânea, em que se procurava fundamentar a lusitanidade na diversidade folclorica 2 . Isto foi apenas o mote para esta incursão pelo nosso folclore e das suas possíveis e adequadas relações com a Historia. E, mais uma vez, outra citação para dizer que o apelo feito por Vladimir Propp 3 continua actual: "O folclore e um fenomeno de ordem historica e os estudos folcloricos são uma disciplina historica. O estudo etnográfico seria o primeiro grau deste estudo historico. A tarefa do estudo historico e a de mostrar, antes de tudo, o que e que, nas novas condições historicas, acontece com o velho folclore e, em segundo lugar, estudar o aparecimento de novas formações". E esta atitude, tão necessária por parte dos nossos estudiosos do Folclore, que, raras vezes, vemos nos seus trabalhos. A Historia e, para muitos, apenas um apêndice e não o fundamental para a compreensão e explicação da singularidade da cultura. As nossas actuais tradições, os usos e os costumes são o que sobra da evolução, do devir historico. A sua permanência ou desaparecimento explica-se pelo isolamento mas, acima de tudo, plo discurso historico. E esta a opção que falta e que pode ser conseguida atraves de uma metodologia interdisciplinar em que a Historia assume uma função aglutinadora. O discurso historico dá corpo ao esqueleto da nossa Historia, tradição e forma de ser e estar no mundo 4 . Ele tem o condão de nos fazer compreender a evolução e emergência da realidade actual, donde se inclui o legado cultural. Já vimos este discurso noutras alturas e o texto de Carlos M. Santos que encima este apontamento e um desafio ao nosso imobilismo metodologico. A primeira observação que nos ocorre e de que, entre nos, o folclore e a Historia estão de costas voltadas. Não há uma relação de mutua confiança. E por isso que a ideia que fazemos do nosso 2 . Confronte-se Jorge de Freitas Branco, "Entre a imagem e a realidade: reflexos sobre a Madeira como experiência antropologica" in Actas ICIHM, Vol. I, 270-305. 3 . Edipo a luz do folclore, quatro estudos de etnografia Historico- Cultural, Lisboa, S.D., p. 195. 4 . Exemplo disso são os estudos de Carreiro da Costa(Etnologia dos Açores, 2 vols, Lagoa, 1989 e 1991), compilados por Rui de Sousa Martins, Jose Perez Vidal(Estudios de Etnografia y Folclore Canarios, Santa Cruz de Tenerife, 1985) e Julio Caro Baroja(por exemplo o texto, Raza, Pueblos y linajes, Murcia, 1990). folclore está eivada de contrasensos. Por um lado, insiste-se na vinculação a uns espaços em detrimento de outros. Por outro lado, o escravo, negro ou mourisco, são a origem de tudo. Parece haver qualquer cumplicidade ou íntima relação entre os nossos folcloristas e os escravos. Uma cumplicidade que, a todos os níveis, nos escapa. Aqui, o pitoresco e sinonimo de escravo e, mais propriamente, do negro e mourisco. Esta opção não e nada gratificante. Esquecemo-nos que, antes do africano, chegou o europeu, arrastando consigo um pesado fardo cultural. E a estes sucederam os canarianos com uma cultura tambem a merecer a nossa atenção 5 . Por outro lado esquecemo-nos dos contactos, pacíficos e violentos, por parte dos madeirenses na Costa africana, que poderão ter propiciado outras vias para a assimilação das culturas africanas. Tambem o historiador parece fazer orelhas moucas aos apelos da Etnografia, esquecendo-se que Herodoto, o pai da Historia, foi, acima de tudo, um etnologo 6 . Continuamos presos ao discurso tradicional dos eventos e personalidades, ignorando que aqueles que nos antecederam tiveram o seu dia a dia como nos 7 . O quotidiano, ainda, não faz parte do nosso discurso historico e mantemo-nos apáticos as aportações da Nova Historia. Isto levou a que qualquer incursão pelo universo do discurso historico a procura de resposta, esbarra quase sempre com um conjunto de ideias feitas ou numa página em branco. E por isso que Carlos M. Santos se viu na necessidade de alertar-nos para "o fantasma da incerteza a barrar o caminho ao investigador e a recambiá-lo automaticamente para o campo das hipoteses, cerceando-lhe, deste modo, a faculdade de afirmar com segurança" 8 . Deste modo, o autor, no estudo das trovas e danças ao ser confrontado com a ausência de descrição historica, foi forçado a guiar-se pelo caminho da hipotese, "baseada apenas no nosso raciocínio sobre observação directa" 9 . 5 . As aportações guanches são um filão a descobrir. A leitura de alguns textos que retratam o quotidiano dos nossos vizinhos poderá propiciar a via para a descoberta das suas aportações quatrocentistas. Veja-se: Gaspar Frutuoso, Livro primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1984; S. Berthelot, etnografia y anales de la conquista de las islas CCanarias, S. C. Tenerife, 1977; Antonio Tejera Gaspar e Rafael González Anton, Las culturas aborígenes Canarias, S. C. Tenerife, 1987;A. Millares Torres, Historia General de Canarias, 7 vols, Las Palmas, 1975(nomeadamente os textos de actualização de Lothar Siemens Hernandez e Dimas Martin Socaz). 6 . A Nova Historia faz de novo o apelo a Etnografia, sendo de destacar o celebre trabalho de Emanuel Le Roy Ladurie, Montaillou. Cátaros e catolicos numa aldeia francesa.1294 a 1324, Lisboa, s.d.(1 edição em francês,1975). 7 . Recorde-se a Colecção vida Quotidiana, publicada em França, que veio revelar-nos esta faceta recôndita da Historia. 8 . O traje regional da Madeira, p. 16. 9 . Trovas e Bailados da Ilha, p. 36. Por parte do historiador o chauvinismo temático impede-o muitas vezes de revelar algumas duvidas, que a todos nos assaltam. Certamente, que uma nova atitude multidisciplinar e abertura a novos temas poderiam ser a chave para as desfazer. E o caso da etnogenia da população madeirense. Alias, o enigma que envolve a origem dos nossos avoengos paira sobre todos nos, historiadores e etnologos. Antes de avançarmos algo mais convem referir que me considero um intruso perante esta plateia. As minhas ligações ao tema deste encontro são puramente sentimentais. Não sou estudioso da materia e tão pouco tenho por princípio me intrometer no terreno que desconheço. Mesmo assim, não deixei de corresponder ao repto lançado pelos organizadores deste encontro para, na perspectiva do cidadão atento ao debate, que nos ultimos anos se tem feito em torno do Folclore, e do historiador que não desdenha a necessidade e valor do discurso multidisciplinar como forma de abertura a novas realidades, dar a minha aportação. E verdade, o nosso campo de trabalho não tem fronteiras e, por isso, são possíveis pontos de contacto. E esta predisposição que, por vezes, nos falta. Mas, nunca e por demais fazer apelo, nestes momento em que nos sentamos a mesma mesa com especialistas de diversos quadrantes, para esta abertura de perspectivas. Em primeiro lugar queremos deixar aqui este nosso apelo a uma investigação sem fronteiras e a necessária conjugação de esforços de todos os interessados, que parecem estar de costas voltadas. Posto isto adiante com aquilo que nos trouxe aqui. A nossa intervenção, aqui e agora, resumir-se-á apenas a três aspectos que nos parecem essenciais na abordagem da temática: dos testemunhos e dos instrumentos de trabalho; a ilha na contextualidade da cultura popular; o processo historico insular; o remate com o modelo de estudos das comunidades migrantes, que poderá servir de referencia, uma forma para suplantar o impasse metodologico que parece existir. Tal como afirma Eduardo Clemente Nunes, o Folclore nasce de forma espontânea "da alma popular, cria-se por influência da natureza física e psicologica do meio ambiente, traduz a origem e indole atávica das populações, repercute-se na sensibilidade colectiva e tem força de continuidade por força da tradição" 10 . Esta deve ser a nossa predisposição quando nops atrevemos a perscrutar os murmurios dos nossos avoengos atraves da tradição. A PROCURA DO NOSSO LEGADO CULTURAL. A principal dificuldade com 10 . "Patrimonio Artístico", in Das Artes e da Historia da Madeira, 1948-49, p.249. que se depara um investigador da cultura popular, e a falta de testemunhos orais ou escritos que se afirmem como adequados instrumentos de trabalho. Ela raras vezes se serve da escrita. A oralidade e a sua forma de expressão e de perpetuação. Por isso, esta memoria não encontra nas sociedades abertas grandes condições de subsistência 11 . A oralidade parece ser aversa ao progresso sistemático das vias de contacto e transmissão da cultura tradicional. Assim, cada porta que se abre e uma mais via para que esta memoria colectiva desapareça 12 . Na Madeira, a grande abertura começou com os vapores costeiros e veio a concretizar-se em pleno, a partir da decada de trinta do nosso seculo, com o rasgar das primeiras estradas. O progresso e aqui prejudicial a tradição cultural que e assaltada pela inevitável padronização de comportamentos. Hoje a ilha está aberta ao mundo e são raros os nichos dessa ancestral memoria colectiva. Por isso, o metodo de observação directa e cada vez mais uma tecnica em vias de extinção. Para alem do testemunho directo atraves do rastreio da oralidade, há que buscar outras fontes de informação. E, aqui, todos os recursos são poucos. Os depoimentos de estrangeiros, nomeadamente ingleses, que nos visitaram, sempre sedentos de singularidades, são fundamenta- is. Eles surgem sob a forma de textos e gravuras. Estas ultimas são importantes, por exemplo, para o rastreio do traje 13 . E parece que muito têm sido aproveitadas a este nível. O mesmo já não poderá ser dito dos textos 14 . Todavia, as nossas provas ou 11 . Tenha-se em atenção que desde 1918, com a Escola de Chicago, a Historia Oral passou a ser um domínio importante da investigação historia, que, lamentavelmente, nunca chegou ate nos. Confronte-se Joseph Goy "Historia Oral", in A Nova Historia, Coimbra, 1980, pp.506-508. 12 . Tenha-se em conta a abertura motivada pelos meios de comunicação nos ultimos vinte anos. Antes disso temos a apontar o aparecimento da rádio (em 1948 da rádio privada e desde 1967 a Emissora Nacional) e da Televisão(1972). A este proposito e de salientar o texto de Horácio Bento de Gouveia,"A telefonia matou o rajão", in Canhenhos da ilha, Funchal, s.d., pp.21-23. 13 . Cf. J. Cabral do Nascimento, "Estampas antigas com assuntos madeirenses", Arquivo Historico da Madeira, vols. III e IV, 1933-1935; idem, Estampas antigas da MAdeira. Paisagem, costumes, traje, edifícios, marinhas, Funchal, 1935; João Pereira Camacho, Colecção de gravuras Portuguesa. V. serie. ilha da Madeira, Lisboa, 1948; Augusto Elmano Vieira, "A Madeira nas estampas da 1 metade do seculo XIX", in Das Artes e Da Historia Madeira, I, n.2, 1950; Estampas, aguarelas e desenhos da Madeira romântica. Exposição-Casa Museu Frederico de Freitas, Funchal, 1988. 14 . Cf. J. Barrow, A voyage to cochinchina in the years 1792 and 1793..., London,1806; Thomas E. Bodwich, Excursions in Madeira and Porto Santo..., London, 1825; Lady E. Stuart Wortley, A visit to Portugal and Madeira, London, 1854; Isabella de França, Jornal de uma visita a Madeira e Portugal 1853-1854, Funchal, 1970; Ellen M. Taylor, Madeira. Its scenery and how to see, London, 1882; Mariana Xavier da Silva, Na Madeira. Offerenda, Lisboa, 1884; A. Brexel Biddle, The Madeira islands, London, 1900; J. E. Hutcheon, Things seen in Madeira, London, 1928. Tenha-se em conta, ainda, os estudos de Maria dos Remedios Castelo-Branco, "Testemunhos de viajantes ingleses sobre a Madeira", in I CIHM, vol. I, Funchal, 1990, 198-245; idem, "Perspectivas americanas da Madeira", in II CIHM, Funchal, 1990, 453-478; Antonio Ribeiro Marques da Silva, "Notas sobre o quotidiano madeirense. secs. XVII e XXXIX", Diário de Notícias, Funchal, 1 de Julho a 21 de Setembro. instrumentos não deverão resumir-se a isto. Há que ir ao encontro da documentação historica (testamentos, posturas, registos alfandegários, notários, processos da inquisição, correspondência particular 15 , a fotografia 16 ...) e saber coalhar a informação adequada para o nosso objectivo de reconstituição do trajo dos nossos antepassados. Mas aqui todas as cautelas são poucas. A definição de um determinado perfil, situação, indumentária, ou seja o que for, não se resume a mera quantificação. Por vezes, a assiduidade das situações não e reveladora da realidade que procuramos, mas tão somente dos fundos documentais disponiveis 17 . Há que ter em conta que a documentação e lacunar e a aferição dos dados deve ser feita de acordo com isto. Mais, a Estatística em universos pequenos não merece credito na composição do discurso historico. O TRAJE. O POMO DA DISCORDIA. O traje e um dos temas que, nos ultimos tempos, tem merecido um tratamento deste tipo 18 . Rastreia-se testamentos e mais documentação. Compilam-se apenas as peças, retirando-as do seu contexto e esquecemo-nos de perguntar: quem faz testamento? Quantos destes chegaram ate nos? E, alem disso, ignoramos que o traje, mais do que uma necessida- de, e uma forma de distinção. Mas, nem sempre e assim. Os senhores, por exemplo, evidenciam-se pelo luxo exibido pelos seus criados nos desfiles e festas 19 . 15 . Aqui e de salientar a de Diogo Fernandes Branco de 1640-1643(que estamos a preparar a edição) Francisco Bolton desde 1695 a 1714(Confronte-se A Madeira vista por estrangeiros, ed. Antonio Aragão, Funchal, 1981, pp. 229-393) e Duarte Sodre Pereira de 1710 a 1712(cf. Maria Julia de Oliveira e Silva, Fidalgos-Mercadores no seculo XVIII. Duarte Sodre Pereira, Lisboa,1992; John Driver, Letters from MAdeira in 1834, London, 1838. 16 . Luis de Sousa Melo, Vicentes Photographos, Funchal, 1978; Fotografia e fotografos insulares. Açores, Canárias e Madeira, Funchal, 1990. 17 . Veja-se M. Maciaz Hernandez, "Fuentes y principales problemas metodologicos de Demografia Historica de Canarias", Anuario de Estudios Atlânticos, n.34, 1988, 51-157. 18 .Confronte-se João Adriano Ribeiro, O Trajo na Madeira. Elementos para o seu estudo, Funchal, 1993; Danilo Jose Fernandes, Os Trajos de "resguardo" e de "cote" do sul da ilha no seculo XVIII, Funchal, 1994. acrescente-se, ainda, o debate havido: Nelson Verí ssimo, "Traje Popular Madeirense", in Diário de Notí cias, de 15 de Janeiro de 1994;Augusta Correia Nobrega, "Folclore. Cores e modelos. Traje típico em debate", in Diário de Notí cias, 15 de Dezembro de 1993,; Teresa Brazão, "Sobre a Verdade Etnográfica. O Vermelho das Floristas", in Jornal da Madeira, 16 de Abril de 1994. 19 .Livro segundo das Saudades da Terra, p.356. Em 1793 John Barrow refere que os pedintes madeirenses cuidavam da sua aparência, usando o melhor fato, por vezes, com cabeleira e espadim. veja-se A. Sarmento, Ensaios Historicos da Minha Terra, Funchal, 1952, vol. III, p.133. Sobre o luxo veja-se: Jose Ezequiel Veloza, "O luxo na Madeira foi de todos os tempos", in DAHM, 1948-49, p.335;Visconde do Porto da Cruz, "Danças madeirenses", in Arquivo Historico da Madeira, vol. I, 1931, p.160. Tal como afirmou Carlos M. Santos "legitimo e duvidar da generalização do chamado traje regional da Madeira e mesmo da sua ancestralidade, como testemunha a diversidade verificada em diversas freguesias" 20 . Mesmo assim, o autor, ainda que averso a imagem de um "traje regional" 21 , define a saia riscada como a imagem de marca do trajo madeirense 22 . Vivia-se uma epoca de regionalismo exacerbado e era necessário criar uma imagem de marca, vendável a turista. Estamos perante uma contingência da epoca e do Estado Novo. Mesmo assim o autor parece não estar equivocado no seu modelo, pois esta era uma dominante desde o seculo XVIII 23 . Aqui e de referir o que tem sido dito e escrito. O Tema tem preocupado, historiadores e folcloristas em toda a Europa e, ao contrario do que pensam muitos dos presentes, não e apenas uma questão nossa. Os especialistas da cultura material dizem-nos que este e um dos problemas mais complexos que, segundo F. Braudel, deve ser encarado na sua totalidade 24 . Certamente que o confronto das nossas descobertas com aquilo que tem sido feito lá fora poderá permitir que o debate ganhe novo folego 25 . Apenas para despertar a atenção dos interessados ficamos com dois testemunhos. Primeiro, o pai da cultura material, F. Braudel diz-nos que "A Historia dos fatos e menos anedotica do que parece. Levanta todos os problemas, os das materias-primas, dos processos de fabrico, dos custos de produção, da fixidez cultural, das modas, das hierarquias sociais" 26 . Depois, o jovem Fernando Oliveira, esclarece-nos de modo perspicaz: "O acto de vestir desde cedo, ganhou codigos e linguagens, numa verdadeira 20 . O Traje Regional de Madeira, p. 22. Confronte-se o que diz Danilo Fernandes, "O traje tradicional da Madeira de Carlos Santos. Uma avaliação crítica", im Revista Xarabanda, n. especal, 1993, pp.5-6. 21 . Ibidem, p. 37. 22 . Ibidem, pp. 66-87. 23 . Cabral do Nascimento, "Trajo Popular da Madeira", in Arquivo Historico da Madeira, vol. IV, 1934-35, pp.178-183; F. C. Menezes Vaz,"A indumentaria Antiga", in DAHM, vol. III, n.1952; F. A. Silva, "A indumentária Madeirense", in DAHM, vols. IIIV e VI, nos. 23 2 34, 1956. 24 . Confronte-se Jean Marie Perez, "A Historia da Cultura Material", in A Nova Historia, Coimbra, 1990, pp.131-132. 25 . Entre nos e pioneiro o estudo de Oliveira Marques, Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, 1974(com 1 edição em 1963), pp.23-62. A este deverá juntar-se o mais recente de Fernando Oliveira, O Vestuário português ao tempo da expansão seculos XV e XVI, Lisboa, 1993. Aqui uma referência especial para a Historiografia francesa, que a partir da Escola dos Anales, dedicou a esta temática poscrita grande atenção. Aqui referência especial para o texto de Fernand Braudel, Civilização Material e Capitalismo, 3, vols, Lisboa, 1992. Com tratamento especializado do traje temos: Roland Barthes, O sistema da Moda, Lisboa,1981; Philippe Perrot, Les Dessus et les Dessous de la Bourgeoisie. Une Histoire du vêtement au XIXe siecle, Paris, 1981; Gilles Lipovetski, O imperio do Efemero. A moda e o seu destino nas sociedades modernas, Lisboa, 1989; Daniel Roche, La Culture des apparences. une histoire du vêtement. XVIIe- XVIIIe siêcle, Paris, 1989. 26 . ob.cit., vol.III, p.271. necessidade de comunicação e ostentação, transformando-se, assim numa atitude social. Ganhou expressão mental e cultural. Reflecte o gosto de uma epoca, um modo de vida e a personalidade de quem usa determinada veste. E o reflexo de uma certa categoria social, de costume e tradição." 27 . E, por fim, remata: "o vestuãrio distinguia as classes sociais. Não se vestia determinada peça por opção, mas sim pela condição social." 28 . Por isso, estamos com Fernand Braudel, quando ele afirma que tudo isto so se torna compreensível numa visão de conjunto 29 , caso contrário a nossa leitura poderá rondar o mundo do anedotico. A esta diferente forma de ver a questão, que poderá servir de guia para uma abordagem distinta, deverá juntar-se um conjunto de situações que não podem ser ignoradas. A Madeira, pela sua posição geográfica e protagonismo historico, não esteve isolada no meio do oceano. Por isso, ficou permeável as "modas" europeias. As culturas da cana de açucar e da vinha permitiram a ilha uma ligação com o mundo europeu e seus centros produtores de tecidos: Inglaterra, Flandres e cidades-estado italianas 30 . Alias as ilhas está ligada uma fase importante na evolução da industria textil europeia, com a expansão da área de cultivo do pastel e apanha da urzela, plantas com grande importância na tinturaria 31 . A Madeira ficou conhecida pelos genoveses, no seculo XV, como a ilha do pastel. Note-se, ainda, que o comercio do vinho em mãos dos ingleses definiu uma política peculiar: os adiantamentos. O mercador inglês adiantava ao lavrador os alimentos, artefactos e tecidos a troco do vinho, na altura da vindima. Alias, fala-se de assíduas trocas, entre os madeirenses e os marinheiros ingleses, de passagem, ou os soldados do presídio de 1801, de peças de vestuário por vinho 32 . Este era escasso, sendo poucas as oportunidades para as classes populares arrumarem o seu enxoval. A TRADIÇAO E A CONJUNTURA POLÍTICA. E de salientar que o 27 .ob.cit., p.5. 28 .ibidem, p.46. 29 .ob.cit., vol. III, p.290. 30 . Confronte-se Alberto Vieira, O comercio inter-insularnos seculos XV e XVI, Funchal, 1986, pp.150-152;"Cartas de W. Bolton", in Antonio Aragão, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981. 31 . Cf. A. A. Sarmento, As pequenas industrias da Madeira, Funchal, 1941; Alberto Vieira. oComercio inter-insular(...), Funchal, 1986, pp.115-118 32 . An Historical sketch of the island of Madeira, London, 1819, pp.36-37; A. Sarmento, Ensaios historicos da Minha Terra, Funchal, 1952, pp.157. Folclore ficou conhecido quase sempre pela componente das danças e cantares. Popularmente ele significa apenas isso. Esta e, mesmo assim, uma situação recente surgindo, com grande evidência, nos princípios do nosso seculo. Hoje, a necessidade de valorização da vivência e cultura populares e cada vez mais premente. A exaltação do "popular" expressa-se atraves do estudo e publicação, mas tambem na recriação destas vivências ou da sua institucionalização com os chamados grupos folcloricos 33 . As comemorações e o turismo são um momento ímpar desta exaltação. Como exemplo disso, ao nível da ilha, temos as festas do Quinto Centenário do Descobrimento de Madeira 34 (Dezembro 1922) e do bicentenário de elevação do lugar de S. Vicente a categoria de Vila (1944) 35 , a que deverão juntar-se as festas centenárias de 1940. Tambem, o turismo e as festas de fim de ano que tiveram, a partir da decada de trinta, um grande incremento, contribuíram para esta valorização na presente centuria 36 . E, tambem, nesta conjuntura que surgiram os primeiros estudos sobre Folclore, apostados em afirmar a identidade cultural madeirense. Aqui, merecem a nossa atenção os trabalhos de Fernando Augusto da Silva(1921-22), Jayme Sanches de Camara(1931), Fernando Aguiar(1937-1951), Visconde do Porto da Cruz(1924-1963), Alberto Artur Sarmento(1940-1956), Carlos Maria dos Santos(1942-1953), Jaime Vieira Santos(1948-1956) e Eduardo Antonino Pestana(1957-1970). Com estes temos uma tradição, que por ser escrita e divulgada, ganhou foros de evidencia, da ligação íntima das tradições populares - ao nível das danças e cantares - com os escravos africanos da costa de Guine e Marroquina 37 . Diferente e a aportação de Carlos Maria dos Santos que pode ser, com propriedade, considerado o patrono do nosso Folclore. Os livros que publicou - Tocares e cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e bailados da Ilha, Estudo do Folclore Musical de Madeira (1942), Traje regional da Madeira, Estudo (1952) - contrariam algumas ideias feitas sobre o nosso folclore, mas não foram suficientes para abalar a sua divulgação e continuidade, pois, ainda hoje, elas teimam em manter-se. 33 .O primeiro foi o Grupo Folclorico da Camacha constituído em 1948. 34. Fernando Augusto da Silva, Elucidário Madeirense, vol.III, 1966, pp. 154-159; Abel Marques Caldeira, O Funchal no primeiro quartel seculo XX, Funchal,1964, 88. 35. Diário de Notícias, 25 Agosto, 1944. 36 .Francisco de Lacerda, Folclore da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1993, pp.14-17. 37 . Neste caso e de destacar o enciclopedico estudo do Pe. Fernando Augusto da Silva, Elucidário Madeirens(publicado em 1921-22 para a comemoração do quinto centenário do descobrimento da ilha e refundido na 2 edição em 1940-1946). Veja-se os temas:influências etnicas, indumentária, Folclore, crenças populares, costumes antigos, Madeira(costumes da gente do povo). Para muitos, e ponto assente que os instrumentos - rajão, machete, viola - são criação madeirense, enquanto as danças e cantares - charamba e mourisca.... - buscam as suas origens remotas aos escravos negros da Costa da Guine ou mouriscos. Com isto esquecemo-nos da ancestral ligação ao continente pelos primeiros colonos. De opinião diferente e Carlos Maria Santos que, apos um estudo aturado sobre as danças, cantares e instrumentos, não hesita em afirmar que "o Povo madeirense não soube criar as suas canções, mas adoptou as melodias que apareceram ou caíram em moda, inovando outras sobre os respectivos temas a que deu o interessante e inconfundível sabor regional" 38 . E dá-nos uma lição de historia: "Embora a tradição sirva, de certo modo, de pilar ao edifício de Historia não satisfaz absolutamente ao investigador honesto, sempre ávido de bases seguras assente em afirmações" 39 . E esta permanente necessidade de duvidar de verdades feitas que leva o investigador a procura das raízes recônditas, atraves do recurso ao metodo comparativo. E, ainda, o mesmo autor que anota a dificuldade de conhecer em profundidade as origens e percurso historico do folclore madeirense. A tarefa e espinhosa, uma vez que nas cronicas não ficou nada: "foi preciso reconstruí-lo adentro das vagas alusões deixadas por alguns escritores e depois de demorada e paciente investigação, em virtude de estarem hoje tão misturados que e quasi impossível separa-los" 40 . A mesma dificuldade se nos depara quando pretendemos encontrar nos acervos documentais a vivência do íncola atraves das suas danças e cantares. O raro testemunho credível disso e dado por Gaspar Frutuoso 41 para a festa de Nossa Senhora do Faial, considerada lugar de peregrinação. Do Monte e da Ponta Delgada nada se diz. Mas tal silêncio não e sinonimo de inexistência. Na verdade, nem sempre as actuais exigências do investigador coincidem com a ideia que os nossos avoengos faziam daquilo que deveria constar na memoria historica. O quotidiano não fazia parte disso. Os raros testemunhos são particulares e surgem-nos atraves de cartas e diários. Mesmo assim estes são poucos e so ganham algum interesse nos seculos XVIII e XIX, com os de autores estrangeiros, nomeadamente ingleses. A habilidade do historiador, ou investigador, está em descobrir essa realidade implicita no acervo documental, tal como o demonstra a experiência da historiografia francesa. 38. Tocares e Cantares da Ilha, p. 47. 39. Ibidem, 7. 40. Trovas e bailados da Ilha, p. 3. 41. Livro segundo Saudades da Terra(1964), pp.129-130. A ILHA.UM UNIVERSO A PARTE. A Ilha, pela sua geografia, define-se como uma forma singular de mundividência. A insularidade e a sua expressão, evidenciada na vida, historia e mentalidade islenha 42 . A ilha e, tambem, um cadinho da tradição e cultura. O isolamento, definido pela linha de água do litoral, e o mecanismo que favorece a tradição e dá forma a este cadinho que a preserva. Deste modo, não será por acaso que os primeiros passos da investigação do Folclore tiveram as ilhas como palco. Tenha-se em conta os estudos de Teofilo Braga 43 e Alvaro Rodrigues de Azevedo 44 . Note-se que a função da ilha como casulo de salvaguarda das ancestrais tradições peninsulares foi de novo evidenciada por Pero Ferre 45 . Não será desproposito referir, aqui e agora, o debate havido nos Açores sobre o problema da açorianidade, isto e, o modo de ser e estar no mundo do açoriano 46 . A definição do insular mergulha as suas raízes no devir do processo historico e meio geográfico. Ambos os factores condicionaram o modo de ser e estar no mundo do colono que aí assentou morada desde o seculo XV, moldando-se e demarcando-se do reino pela acumulação de factores de ordem historica 47 . E, se tivermos em conta que aquilo que sucedeu nestas ilhas foi um processo de descobrimento e ocupação, não podemos alhear-nos da cultura do povoador que, depois, se moldou as novas condições. 42 . Confronte-se B. Escandell Bonet, Las Baleares encrucijada de culturas mediterraneas, Madrid, 1989. 43 . Cantos populares do arquipelago açoriano, Porto, 1869. 44 . Romanceiro do Arquipelago da Madeira, Funchal, 1980; Jorge de Freitas Branco, art. cit, pp. 270-272. 45 . Romances Tradicionais, Funchal, 1982. 46 . Sobre este debate veja-se Luí s de Silva Ribeiro, Subsídios para um estudo sobre a açorianidade, Angra do Heroí smo, 1966, V. Nemesio, Sob os signos de Agora, Coimbra, 1962; A. Vieira "A Açorianidade em questão" in A Memoria de Agua-Viva, n 17, 1980, 17-19;Victor Pereira da Rosa e Salvato V. P. Trigo, "Da insularidade a açorianidade: algumas reflexões", in Arquipelago(serie Ciências Humanas), n.2, 1987, pp. 187-201; Onesimo Teotonio de Almeida, Açores, açorianos e açorianidade, Ponta Delgada, 1989. Para a Madeira não existe qualquer estudo a este nível. Mesmo assim a leitura do que se segue poderá propiciarnos uma visão: Jose Osorio de Oliveira, "Originalidade do madeirense. Tema para um estudo", in AHM, vol.VI, 1939, pp.49- 51;Fernando Aguiar, "A alma da Madeira. Apontamentos singelos para a sua interpretação", in Das Artes e Da Historia Da Madeira, vol.I, n.2, 1950, pp.31-33, n.3, pp.26-27, n. 5(1951), pp.7-8; Santana Dionísio, Ilha da Madeira e suas virtualidades esperituais, Lis`oa, 1970; Vieira Natividade, Madeira a epopeia rural,Funchal, 1953. 47 . Já o afirmámos que "a açorianidade surge como síntese reflexiva do devir e meio historico-geográfico açoriano", art. cit., p. 19, corroborado por Jose de Almeida Pavão, Popular e popularizante, Ponta Delgada, 1981; idem, Aspectos do cancioneiro popular açoriano, Ponta Delgada, 1981. A HISTORIA DAS ILHAS. Uma das insoluveis questões da Historia das ilhas prende-se com a origem geográfica dos primeiros colonos que as povoaram. A etnogenia das gentes insulares e ainda motivo de polemica e não se vislumbra qualquer solução. Note-se que a revelação deste enigma e fundamental para o tema que nos ocupa. Rastrear as origens das gentes e ir ao encontro das suas ancestrais tradições e definir o mosaico das multiplas aportações culturais, de que hoje somos herdeiros. E, mais uma vez, nunca e por demais referir o caso dos Açores 48 onde se da conta de uma cultura e tradição nacional moldadas nas singularidades do arquipelago 49 . O mesmo sucedeu na Madeira. O colono que pela primeira vez pisou o solo, não sofria de amnesia e na sua bagagem constava, para alem da utensilagem agrícola, a tradição cultural 50 . Mais, se tivermos em conta que as ilhas estavam desabitadas, não estaremos perante fenomenos de assimilação, sendo a herança cultural fruto, em primeiro lugar, desta aportação e da sua acomodação ecologica, que define as suas especificidades. Aliás, Eduardo Pereira, no caso da musica popular madeirense, não hesita em afirmar que ela "e mais de adaptação que de criação regional" 51 . Sendo assim para quê esta incessante busca daquilo a que consideramos genuíno e regional? E caso para perguntar: o que entendemos por regional? Tambem, não entendemos o porquê da excessiva valorização da componente escrava (mourisca e negra) na definição da cultura e tradição madeirenses 52 . Há uma desmesurada atenção a este grupo, que está circunscrito a uma determinada epoca e não adquiriu, entre nos, a dimensão social que insistentemente se proclama. 48 . Carreiro da Costa, Etnologia dos Açores, 2 Vols. Lagoa, 1989, 1991; Jose de Almeida Pavão, Aspectos do cancioneiro popular açoriano, Ponta Delgada, 1981. 49 . Confronte-se a apreciação recente sobre estas questões, feita por Rui Sousa Martins, "Os processos criativos e as origens do povoamento", in Oceanos, Lisboa, 1989, pp.65-67. 50 . Rui Sousa Martins(art.cit., p.66) diz-nos que "nos primordios do povoamento não se assiste a um mero processo de transplantação de padrões culturais mas a complexos fenomenos de difusão/inovação/adaptação". 51 . Ilhas de Zargo, Vol. II, p. 593. Platão Lvovitch Waksel("alguns traços de Historia da Musica na Madeira", Das Artes e Da Historia da Madeira, 1948-49, p.36, nota 4)refere que "o povo madeirense tem muita inclinação para adoptar melodias estrangeiras, vulgarisadas entre elle pelas bandas militares ou de artistas e os musicos ambulantes...". 52 . Tenha-se atenção comentários de Fernando A. Silva, Elucidário Madeirense, 3 Vols, Funchal, 1984. Artigos: influências etnicas, indumentária, Folclore, costumes antigos Madeira (costumes de gente do Povo); Eduardo Pereira, Ibidem, Vol. II, pp. 548-617; Carlos M. Santos, Trovas e Bailados, Funchal, 1942, idem, Tocares e cantares da Ilha, Funchal, 1937. A Historia não so nos abre os caminhos para a busca da ancestralidade de nossa cultura, como nos propicia os meios para desvendar certas opções do passado recente. Já o referimos, que foi na primeira metade do nosso seculo que mais se avançou no conhecimento e divulgação do nosso folclore. Mas, tambem, neste momento a cultura popular ficou exposta aos maiores atentados que, ainda, hoje se reflectem naquilo que se nos oferece. Note-se que este foi um momento importante na Historia Contemporânea das ilhas. O protagonismo da luta política pela autonomia gerou o discurso cultural da diferença, a consciência insular ou arquipelágica 53 . E de salientar que este movimento e o inverso do oitocentista. Esta primeira incursão e discurso da cultura popular pretendia definir as suas especificidades 54 . A estas sucederam-se outras que oscilam entre o discurso regionalista, uma componente fundamental da autonomia, e a definição da ancestralidade peninsular 55 . A Madeira não e mais uma parte do todo, mas sim uma região com uma identidade socio- cultural diversa 56 . A isto associa-se, depois, o discurso do Secretariado Nacional de Informação com o Portugal típico, construído na diversidade folclorica 57 . Neste contexto insere-se, por exemplo, o estudo de Carlos M. Santos sobre o traje 58 e a decisão do Governador civil em 1933 ao estabelecer o traje riscado como o típico a usar pelas floristas 59 . O ESCRAVO COMO PONTENCIAL VEÍCULO CULTURAL. A presença na Madeira de um significativo numero de escravos de Canárias, Norte de Africa e Costa da Guine deverá ter propiciado, ao nível social e material, multiplas aportações ao quotidiano madeirense. E comum apontarem-se inumeras influências deste grupo nas tradições, nomeadamente no folclore e na alimentação. Esta ideia, 53 . Confronte-se Nelson Verí ssimo, "Em 1917, a Madeira reclama autonomia", in Atlântico, n.3, 1985, pp.229-232; "A nossa autonomia. um inquerito de Armando Pinto Correia", in Atlântico, n.19, 1989; "O Alargamento da autonomia dos distritos insulares. O debate na Madeira 1922-1923", in Actas do II Coloquio Internacional de Historia da Madeira, Funchal, 1989. 54 . Adolfo Coelho (Exposição Etnográfica. Portugal e as Ilhas Adjacentes, Porto, 1896) vê Portugal e as ilhas como um todo. 55 . Confronte-se Orlando Ribeiro, Aspectos e Problemas da Expansão Portuguesa, Lisboa, 1962; Carlos Alberto Medeiros, "Acerca da ocupação das ilhas portuguesas do Atlântico", in Finisterra, IV, n.7, Lisboa, 1969, 109-121; Rui de Sousa Martins, art.cit.. 56 . Fernando Augusto da Silva (Elucidário Madeirense, 1 edição, 1921-22) aparece com o discurso regionalista, a condizer com o efervescente movimento político regionalista. 57 . Confronte-se Jorge Freitas Branco, art. cit. 58 . Traje Regional da Madeira, Funchal, 1952. 59 .Arquivo Regional da Madeira, Governo Civil, n.64, fol.44. ainda que hoje se tenha generalizado, não resulta de uma investigação científica mas sim de meras observações empíricas ou suposições. Parece-nos que ainda não ultrapassamos a fase do lirismo abolicionista, da segunda metade do seculo XIX, que marcou o pensamento e a investigação contemporâneos sobre o escravo. A Etnografia e prenhe neste tipo de observações. No campo do folclore regional, as musicas e as danças que não se enquadram no filão português são, imediatamente, associadas a este grupo. Por isso, algumas, que definem a tipicidade do folclore madeirense, são apresentadas como resultado da presença dos escravos: o charamba, o baile pesado, a mourisca, a canção de embalar e o baile da meia volta, são universalmente aceites pelos folcloristas madeirenses como resultado desta hipotetica aportação cultural dos escravos. A maior parte dos autores que o defendem têm como mira a situação da escravatura do Brasil. Todavia, aqui ela assumiu proporções muito diferentes das que adquiriu no arquipelago madeirense. A forma de dominação e sociabilidade daí decorrentes favoreceram no Brasil a manutenção nas senzalas dos usos e costumes das terras de origem. O estudo que fizemos sobre os escravos na Madeira 60 permite- nos reforçar a ideia lançada alguns anos atrás por Carlos M. Santos. Os dados avulsos sobre o quotidiano dos escravos permitem-nos questionar algumas falsas visões em que se filiam as explicações dadas para a origem das danças e cantares. O escravo -- negro ou berbere -- era, então, um filão em permanente descoberta. O colono europeu parece, por este modo, ter esquecido as suas tradições quando sulcou o Atlântico...! Avaliar o contributo de uns e outros, eis a tarefa espinhosa que nos espera, a historiadores e estudiosos do Folclore. Uma primeira ideia se impõe. Na Madeira a escravatura foi algo diferente daquilo que sucedeu no Brasil. A dispersão geográfica das áreas arroteadas, o reduzido numero de escravos por proprietário e as limitações ao espaço de convívio social, não favoreceram este tipo de convivência. Ainda, na Madeira, tendo em conta as limitações impostas pelas posturas a circulação dos escravos apos o sino de correr, parece-nos difícil, senão impossível, encontrar um momento para eles se divertirem em conjunto, com as suas danças e cantares. Mais, será possível encontrar entre o reduzido numero de escravos de cada senhor um grupo da mesma etnia ou cultura, capaz de recriar as suas danças e cantares? Desta forma apenas lhes restavam os momentos de folia estabelecidos para o proprietário, a que certamente não deviam 60. Os escravos no arquipelago da Madeira, seculos XV a XVII, Funchal, 1991. ser alheios: com os jogos de canas, as touradas e lutas. O escravo e parte integrante da sociedade madeirense, não existindo para ele qualquer separação ou delimitação espácio- social. O mundo do escravo entrecruzava-se com o do livre. A dimensão reduzida do arquipelago, associada a forma de estruturação da sociedade e economia fizeram com que esta simbiose se concretizasse em pleno. Os regimentos regios, as posturas municipais, insistiam na necessidade de controlo, no acanhado espaço de convívio, do escravo, no sentido de evitar qualquer situação propiciadora da revolta. Estamos perante um processo de assimilação forçada, que deixa pouca margem de expressão a cultura dominada. Perante isto, o escravo estava amarrado ao quotidiano do senhor e so se poderia desprender-se dele em condições especiais e mediante o seu consentimento. O escravo nesta sociedade so existe em relação ao proprietário, pois era ele quem lhe atribuía a sua posição na estrutura social. Desde o nome, que o identifica, a profissão, que ocupa, no dia a dia, e ao cumprimento dos preceitos religiosos, a figura do proprietário e omnipresente. No caso das escravas a ligação e mais estreita, servindo elas muitas vezes de concubinas. Em todo esta problemática há uma questão fundamental que tem sido preterida pelos estudiosos e defensores das aportações africanas a cultura madeirense. A Africa foi e continua a ser um mosaico de culturas. Por isso, defender a aportação africana implica a busca desta diversidade cultural, que e como quem diz, da origem geográfica e etnica dos escravos que vieram para a Madeira. A Costa da Guine, um dos principais mercados fornecedor de escravos para a Madeira, e, tambem, como sabemos, um autêntico mosaico de culturas e etnias 61 . Note-se que esta ideia e tida em conta por todos os estudiosos da aportação cultural negra as regiões aonde chegaram os africanos. Somente entre nos este tipo de comportamento e esquecido 62 . Por tudo isto, podemos afirmar que estamos perante um campo ainda em aberto a aguardar um tratamento cuidado pelos investigadores. Por exemplo, o alargamento da investigação ao período final da permanência do fenomeno na ilha poderá 61 . São muitos os estudos feitos a vários níveis. Confronte-se: Artur Ramos, As Culturas Negras no Mundo Novo, S. Paulo, 1979(1 edição em 1937); Philip Curtin, Atlantic Slave Trade, Madison, 1969; Basil Davidson, Revelando a velha Africa, Lisboa, 1977; idem, A descoberta do passado de Africa , Lisboa, 1981; idem, Os Africanos. Uma introdução a sua Historia, Lisboa, 1981. 62 . Tenha-se em conta o que foi dito e feito para outras áreas: Roger Bastide, African Civilisation in the New World, N. York, 1971; idem, Las Americas Negras, Madrid, 1969; Artur Ramos, O Folclore negro no Brasil, 1 edição, 1935; Eugene D. Genovese, Roll, Jordan roll. The World the slave made, N. York, 1974; Daniel C. Littlefield, Race and slaves, Baton Rouge, 1981; Sterling Stuckey, Slave Culture: nationalist theory & the foundations of black America,N. York, 1987; JJJ. William Harris, Society and Culture in the Slave South, N. York, 1992. propiciar-nos novos dados capazes de justificarem o desenvolvi- mento dos rastos e que poderão testemunhar, ainda hoje, a sua presença na sociedade madeirense. As possíveis reminescências da presença dos escravos na ilha podemos ainda colocar outras questões. A evolução da escravatura desde o seculo XV ate a sua abolição não foi unilinear e nãO e entendida por muitos. Na Madeira e evidente a sua incidência nos primeiros cem anos de ocupação, ate que foi chegado o momento da sua maior procura pelo mercado americano. Para a maioria dos eruditos esta realidade e ignorada, sendo a escravatura negra ou mourisca uma constante da Historia da ilha. Por tudo isto podemos concluir que há, ainda, muito a fazer e a repensar sobre as aportações culturais da população escrava a sociedade e cultura madeirenses. A sua definição e permeabilidade as influências externas devem ser feitas num correcto enquadramento historico. So assim estaremos em condições de afirmar que o actual folclore madeirense e a manifestação sincretica de multiplas aportações e da evolução no tempo. Definir uma e outra situação e tarefa do investigador, a quem se depara um vasto campo a desbravar. Tudo se misturou, por uma poção mágica, dando origem as multiplas manifestações das danças e cantares que ritmaram as tarefas agrícolas, e ficaram a evidenciar a transbordante alegria do íncola nas festas populares e de homenagem aos oragos e santos da sua devoção. A COMUNIDADE EMIGRANTE- UM OLHAR AO PRESENTE NO RASTREIO DO PASSADO . A concluir, resta-nos referir um dos possíveis caminhos para a redescoberta da tradição e cultura madeirenses. A reconstrução desta pretensa identidade perdida entre multiplas aportações pode ser concretizada de diversas formas. Mas, se tivermos em atenção os estudos que os cientistas sociais nos tem legado sobre as comunidades de emigrantes, podemos estar por uma nova via a desbravar 63 . O estudo destas comunidades, seja qual for a sua proveniên- cia, permite reconstruir a identidade portuguesa numa dimensão transnacional. O folclore adquiriu aqui uma dimensão fundamental, sendo um meio de definição e reforço da identidade da comunidade. Neste caso e de salientar a L(USA)landia de Onesimo Teotonio de 63 . K. David Jakson, "O texto do folclore indo-português", in Revista Crítica de Ciências Sociais, n 38, 1993, 169-191; Bela Feldman-Bianco, "(Re-)construção da classe etnicidade e Nacionalismo entre imigrantes portugueses" in Ibidem, 193-223; Jose Antonio Alpalhão e Victor Pereira da Rosa, Da emigração a aculturação, Angra do Heroismo, 1983. Almeida, isto e, "uma porção de Portugal rodeado pela America por todos os lados..." 64 . Isto acontece porque "em qualquer parte do mundo, imigrantes são conhecidos por suas elaborações de imagens da terra natal que tornam-se sentimentalizadas em canções, poesias e narrativas" 65 . Mas, qual a relação disto com o que nos ocupa? A emigração não e um fenomeno novo no mundo peninsular, mas sim uma das constantes da sua Historia. A expansão quatrocentista fez alargar horizontes e propiciou o primeiro movimento transnacional. Os colonos quatrocentistas são emigrantes como aqueles que no presente seculo venceram o oceano rumo a America. Como eles foram portadores de uma cultura. No destino recriaram o seu torrão natal, moldando o seu lar, espaço de convívio de acordo com as suas origens. Mas, não ficaram alheios aquilo que os rodeia, pelo que o produto final acaba por ter uma manifestação de sincretismo que dá corpo a alteridade. Sucede, assim, hoje mas não ficou de fora no passado. Na Madeira a alteridade expressa-se na imagem do mourisco e negro, resultado da sua presença na ilha, como escravo, ou dos multiplos e assíduos contactos na costa Africana. Mesmo assim a cultura dominante e europeia porque tambem o europeu domina a sociedade. Deste modo, quando pretendemos explicar as tradições da comunidade emigrante, será logico buscá-la nas aportações resultantes do contacto com outros povos e culturas, ou antes, naquilo que levaram agarrado ao corpo e na sua "mala de cartão"?. E esta abertura de perspectivas que deve fazer parte da nossa prática de investigador do social no passado e presente. Posto isto, resta-nos lembrar aquilo que nos disse Vieira Natividade 66 : "Para amar e para compreender a Madeira, temos que nos debruçar sobre a ilha mártir, sobre o que ela contem de dramaticamente humano, de tenso e de comovente; ver o homem humilde, rude e simples, nas suas mudas angustias, na sua persistência heroica e na sua imensa grandeza." E este tipo de atitude que faz falta...!POzÜHuJORNALßßDOCß 64 . L(USA)landia: a decima ilha, Angra do Heroí smo, 1988, p. 231. 65 . Bela Feldman-Branco, art. cit., p. 220. 66 . Madeira. A epopeia rural, Funchal, 1953, pp.41-42.
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