FILOSOFIA DO DIREITODefinições e fins do direito Os meios do direito Michel Villey Prefácio François Terré Tradução MÁRCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR Revisão Técnica ARISOLON -' Martins Fontes São Paulo 2008 como o gênero filosófico é ima invenção dos gregos. ela mesma se define. nada tem acima de si. Mas. deparamo-nos com uma questão difícil: pouco acordo existe sobre o que é a filosofia. da química. Não seria difícil citarmos cem definições disparatadas . ' Antes de poder afirmar que a filosofia do direito está apta a cumprir este papel. Não faremos isso. Porque as ciências têm. Kant. Heidegger. acima delas. De cada ciência conhecemos aproximadamente (da física. do que resulta que cada filosofia pode considerar-se livre para forjar.QUESTÃO SEGUNDA O que entendemos por filosofia? .secreta sua própria concepção de filosofia. segundo seu ponto de vista pessoal. Marx. A filosofia parece ser de difícil definição.Descartes. uma disciplina que chamamos de "arquitetônica" (precisamente a filosofia . O que o leitor constatará rapidamente se consultar sobre tão discutido problema os manuais de história da filosofia ou as crônicas filosóficas do jornal Le Monde. cuja tarefa é defini-Ias.ou a "filosofia das ciências"). O que não ocorre com as ciências. que o emprestaram à Euro- . resolver seus freqüentes conflitos de competência. entretanto. Gabriel Marcel . Parece que cada grande filósofo . uma nova idéia da filosofia. ou da própria ciênia jurídica) seu objeto específico. A filosofia. remontaremos às suas origens para conhecer-lhe a natureza. a filosofia aparece como um esforço de conhecimento cujo objeto parece ilimitado. é para nós inimaginável. da "metafísia". e Pitágoras não tinha menos cordas em seu arco. sua obra trata de tudo: da moral. da lógica. Sem esquecer. contudo. Artigo I Campo original da filosofia Na concepção da Antiguidade. A filosofia. físico. O que exige um comentário. durante muito tempo considerado como o modelo do "filósofo". enfim.. que muito se dedicou às ciências naturais . t- ~i 20 FILOSOFIA DO DIREITO pa. 9. Mas é manifestamente verdadeiro relativamente à filosofia dos gregos. sozinha. matemático. da retórica. uma espécie de ciência universal. da física e. Alberto Magno.. Tales era ao mesmo tempo filósofo. dada a presente organização de nossos estudos. não menos universais se pretendem o mestre de São Tomás. Quanto a Aristóteles. da cosmologia. da política e das leis. abarcar todo o campo do conhecimento. ciência universal.ou -' . da psicologia. da matemática.. Que uma única disciplina pretenda. Também na Idade Média (se bem que nessa época a filosofia já sofresse a oposição da teologia).. que ocorreram mudanças em nosso regime intelectual e que o campo da filosofia não corresponde mais ao que era no tempo de Aristóteles. Sabemos que esta acepção muitíssimo ampla do termo "filosofia" ainda vigorava no século XVII e mesmo depois. neles discerne o verdadeiro e o falso. É nesse ponto que o modo de ver dos filósofos da Antiguidade contrasta mais com nossos hábitos. os morfemas. No corpo humano que disseca. e. matemática. sob o nome de filosofia. Último exemplo: quando um Platão na República considera as instituições.objeto exterior à consciência e para o qual esta tende -. suas intenções. Porém. Pode-se adivinhar como ste tipo de ciência dirá respeito ao direito. e os vícios correspondentes. E a filosofia antiga pretende ser autenticamente conhecimento . seu único objetivo é o de conseuir apreender o justo e o injusto. os argumentos dos sofistas ou dos dialéticos. Ora. sua idade. O mais notável. a sintaxe. força. da qual se extrairiam axiomas de moralidade ("o imperativo categórico") ou as formas racionais através das quais nosso espírito conceberia o mundo. ondição psicológica ou sociológica. A aposta do filósofo grego (que hoje poderia ser tachada de intelectualismo) parece ser que da visão mais integral que possa ter da natureza ou do cosmos. . Quando. ao contrário. além de tudo. capacidade de bem se conduzir. Fomos formados no espírito das ciências modernas. mas somen- a espécie de fatos abordada por cada especialidade científica. só existe conhecimento no sentido próprio da palavra de alguma coisa exterior à nossa consciência. como resultado dessa ciênia. e. a sabedoria. não vê sua beleza. relaciona-os om uma "causa final". física. célebre sobretudo por seu asno (e sua análise da vontade) mas que não cultivava menos a física. um Aristóteles estuda as constelações ou os órgãos dos animais. Ao menos a . não qualquer fato.o que não a impedia de ser uma espécie de ciência objetiva. o anatomista contará os ossos e os músculos. despojam o mundo de seu va-rlor. que significa ver) . a temperança. e a observação da natureza leva-o à xistência de Deus. restringem-se a olhar os "fatos". subjetiva ao espírito do homem. O geólogo só considera. Inclusão do Bem.Se estuda o discurso humano. Busca da sabedoria. ou as relações do discurso com os sentimentos do locutor. Assim. numa paisagem. naquele mundo que eles contemplavam . A primeira grande obra do Descartes "filósofo" continha ótica. o belo e o justo ."teoria" (do verbo theorein. à nossa "razão". contudo. as camadas de que se constitui. os gregos fundadores da filosofia não duvidavam que estivessem incluídos o que a cultura contemporânea chama de "valores". Discerne nessa ordem a mão de uma natureza artista. . as ciências modernas fazem justamente abstração das qualidades que estão nas coisas. observando as diferentes espécies de homens. Nem sequer imaginavam tirar seus conhecimentos de uma pretensa "razão pura". Num discurso o lingüista considerará somente os fonemas. a arenga dos oradores. com suas emoções.olhar sobre o mundo exterior. moral tirada de um onhecimento.22 FILOSOFIA DO DIREITO DEFINIÇÕES te E FINS DO DIREITO 23 Buridan. Com efeito. o objetivo que almeja . além do Discurso do Método. ou as relações entre os fatos. A sabedoria (sophia-sapientia) é ao mesmo tempo ciência. o biólogo considerará as operações químicas que se efetuam em cada tecido. e quem sabe não acabaremos por preferir a atitude dos filósofos gregos.. Nada com efeito mais estranho ao espírito dos filósofos gregos do que pretender construir.Caracterologista. Devemos aqui fazer um esforço para esquecer Kant e a postura do idealismo moderno. o sábio extrairá seu modo de viver. encanta-se com sua disposição. eu estudo visa definir o que é a prudência. é que nesse campo universal a filosofia antiga incluía o Bem. a composião material. procura reconhecer sua beleza. um conhecimento a priori.. onhecimento da realidade. entenderemos melhor o ará ter universal da antiga filosofia e que a palavra filoofia tenha significado na origem a busca da sabedoria. autônomas. Pois a partir do início do século XVII nasceram. depois as "ciências humanas" e "sociais": psicologia. e constituir a biologia (as "ciências naturais").24 FILOSOFIA DO DIREITO função da filosofia será de fornecer para a conduta uma orientação geral. Conhecemos seu triunfo e como proliferaram: matemáticas. as iências no sentido moderno do termo. Desde então as ciências avançaram nobre o campo da filosofia. Ainda vivemos sob o efeito desta expansão das ciências. história científica . Artigo II O campo da filosofia no mundo moderno Mas uma noção tão abrangente certamente não poderia mais vigorar hoje. Também esta imagem dá uma idéia da amplitude do antigo conceito de filosofia. Desde o início dos tempos modernos. e logo depois separadas da filosofia. Recuo da filosofia. como os muros de um jardim o protegem dos ladrões. E como o modelo da ciência moderna devia conquistar novos terrenos. Os estóicos reconheciam-lhe comumente três partes: primeiro a "diaiética". a lingüística etc. Finalmente a moral. A agressão das ciências. como a lógica e a estética. e em vista dos quais todo o jardim foi plantado. o . estudo da natureza. que serve de barreira contra o erro. astronomia química e física (que. Não pode ser útil nas circunstâncias contingentes da ação cotidiana. Em seguida a física. no sentido moderno se limita ao estudo da matéria inerte) etc. vemos a filosofia se retrair como uma pele de onagro. produto da física. semelhante às árvores ali plantadas. 10. economia. mas ameaçando tomar seu lugar.todos os ramos da sociologia. Sem falar das 'iências "normativas". a moral corresponde aos frutos que dão as árvores. num primeiro momento. Fora-lhe reservado. contrariamente à física da Antiguidade. Esposam deliberadamente os preconceitos corporativos e evitam olocá-los em questão. se nada soubesse a respeito da moral e dos métodos das ciências sociais? Se dispusesse apenas de uma experiênia limitada à sua profissão. Nós. como poderia julgá-Ia ou julgar conceitos e métodos admitidos por rotina. Desconfiam dela. sem relacioná-Ias com nosso propósito. para sublinhar que esta disciplina não é um olhar narcíseo da arte jurídica sobre ela mesma. A filosofia exerce esta função tanto em relação à ciência do direito como em relação às outras ciências. Cabe-lhe determinar o domínio do direito relativamente à moral. o título filosofia do direito. estritamente científi('o. e que ela não é apenas induzida da ~xperiência do direito. pois. Aceitaremos essa definição a título acessório. Uma filosofia que se dedica a discernir as estruturas gerais do mundo está em condições de fornecer ao direito sua definição.DEFINIÇÕES E FINS DO DIREITO 31 Artigo III Da filosofia do direito Se. reduzir a filosofia (o que constituiu () erro da maior parte desses neopositivismos) a uma "anáIlsc da linguagem" de tipo descritivo. América. 13. omo o jurista poderia diferenciar o direito da moral ou os métodos da ciência do direito dos da sociologia. A filosofia aplicada ao direito. E. a distinguir suas respectivas fontes de conhecimento. repetimos. Mas é verdade que as linguagens das quais nos servimos e das quais somos prisioneiros (sistemas dos con- . o fim da atividade jurídica. e a especificidade do método da ciência jurídica com relação a outras fontes e métodos. recusando. Disciplina "arquitetônica". ousar um Julgamento crítico? 14. 1':Hcandinávia. porém. que afirmamos ser da alçada da filosofia.seral do direito. É conhecido o sucesHOdesta fórmula em certas regiões: Inglaterra. Uma ouI ra definição possível da filosofia lhe atribui como prin- ri pal objeto o estudo da linguagem. toleram apenas as chamadas "teorias gerais do direito". ao contrário. a resolver seus conflitos de fronteiras. ou ao menos da estrutura do todo. Filosofia e teoria . à política e à economia. fizemos questão de conservar. acabamos de nos arriscar fazendo insistentes reflexões sobre a palavra filosofia. que se pretendem a-filos6ficas. pedimos ao leitor que não se ponha a julgá-Ias apressadamente. a determinar-lhes os limites. definir o direito (quid jus). ela desempenha o papel de pastora da multiplicidade das ciências. A filosofia (como esforço de apreensão integral) deve ser 'rítica. entendendo por isso que ela busca esta visão total. A linguagem da filosofia do direito. apta a definir o lugar de cada uma delas. Ela constitui pois um trabalho inabitual. mas é filosofia. quase "científicas": seu único objeto seria a "análise" ~a ordenação das idéias aceitas no mundo atual. Deve também discernir as fontes específicas do direito. permitir-se juízos de valor. um palrear de velho jurista discorrenfo sobre seu passado. em nossa obra. muito raro que os juristas se arrisquem a sair de sua especialidade para enfrentar a filosofia. Tal vocabulário distinguirá a "alma" do "corpo". enquanto o professor permanecer em oxcrcício). de fato. esforço de divisão do mundo em seus principais elementos. grandes filósofos. iremos consultar seus livros. nós IIH passaríamos em revista.!tcndesse abordar a história da filosofia do direito. É girar em falso. na linguagem de seu próprio grupo social. porém. Tal sintaxe opõe fortemente o ser e o dever ser. quando se ti ispõe de tais riquezas. UESTÃO TERCEIRA Quais serão nossos meios de estudo? A resposta parece evidente. 111aS em países como a Espanha. Se este compêndio pl"<. nosso léxico nos compromete filosoficamente. o que não faz o hebreu antigo. Nosso progra- .. como muitos fazem. não é de fato filosofar. tem-se a impressão de IlIC cada professor publica seu próprio manual (a clien(ela estudantil é suficientemente numerosa para conven'llr os editores. estamos enredados nas malhas de uma linguagem que nos impõe a visão de mundo de nosso meio. o que é. A questão da escolha dos autores. através de um esforço crítico. mas nos lançará de novo na incerteza. Seria totalmente insano. para a filosofia do direito a literatura é superahundante. 15. todos eles falam em maior ou menor medida do li lrcito. Não é o caso. de estruturação do mundo. na comparação das linguagens. pôr-se a construir uma filosofia pessoal. Esta nova forma de apresentar o objeto da filosofia do direito engloba de fato a precedente. desanimadora. enquanto em outras línguas esta distinção se acha menos marca da. Como já assinotamos. é preciso desconfiar de alguns desses mnnuais de juristas. e aquilo que devemos fazer. Mais uma vez. já \I' IC a filosofia do direito é filosofia. cuja competência parece incerta. Já que autores eminentes consagraram seu Icmpo e não raro seu gênio ao estudo da filosofia. Somos cativos. inconsciente. conseguiremos nos libertar desta servidão. uma certa filosofia cujos efeitos são desastrosos. De modo que pretender abordar problemas filosóficos. porém. inesgotável. espontânea. Mas. Aqui começa nossa dificuldade. sem ousar colocá-Ia em questão. Articulando a estrutura geral do Inundo. Além disso. Melhor seria recorrer IUfo.32 FILOSOFIA DO DIREITO ceitos e dos termos mais gerais) constituem por si mesmas esboços de conhecimento universal. Já se disse que cada linguagem contém em si uma filosofia. sentimo-nos soterrados sob a (1liOnne quantidade de doutrinas. Não na França. A filosofia deve apoiar-se no estudo da linguagem.