Fiama Antologia -AMAGO

March 24, 2018 | Author: Moiiica | Category: Poetry, Trees, Death, Sea, Birds


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documenta poetica / 143ÂMAGO antologia Fiama Hasse Pais Brandão ÂMAGO antologia A S S Í R I O & A LV I M pela autora. quer as sugestões que pedi a alguns atentos e dedicados leitores da obra poética de Fiama Hasse Pais Brandão: Carlos Mendes de Sousa. Jorge Fernandes da Silveira. Tive ainda em consideração as selecções feitas. 146). em 1986 e em 1997. quer a minha escolha pessoal. polícromo (p. Gastão Cruz Água significa ave se a sílaba é uma pedra álgida sobre o equilíbrio dos olhos se as palavras são densas de sangue e despem objectos se o tamanho deste vento é um triângulo na água o tamanho da ave é um rio demorado onde as mãos derrubam arestas a palavra principia Manteve-se a grafia polícroma (p. por ter sido a utilizada pela autora e por se entender que é essa a acentuação tónica que se integra na prosódia dos respectivos versos. Maria de Lourdes Ferraz e Rosa Maria Martelo. para as suas «antologias próprias» intituladas F de Fiama.GRAFIA 1 Esta antologia foi organizada tendo em conta. 7 . 101) e púdico (p. 10). GRAFIA 2 TEMA 4 Está no rio o embrião da noite O rio livre com apenas o princípio evidente de todas as formas A água íntima dos lábios Nenhum sinal nos calcina as órbitas Voluntários somos de frente com a imagem na grafia dos espelhos Um teorema de pálpebras nos situa imunes à cicatriz dos limites que bebemos Um sismo incontém nossos ombros fechados Limítrofes os nossos pés anfíbios invocam o rio 8 9 . Ai. sobre lo ler barcas novas mandei fazer. mia senhor velida! Barcas novas mandei lavrar e no mar as mandei deitar. Ai. Ai. mia senhor velida! Joan Zorro Lisboa tem barcas agora lavradas de armas Lisboa tem barcas novas agora lavradas de homens Barcas novas levam guerra As armas não lavram terra São de guerra as barcas novas ao mar mandadas com homens 10 11 . mia senhor velida! En Lixboa. Ai.TEMA 6 BARCAS NOVAS Água polícroma inumerável corpo de ligação no centro dos subterrâneos lábios superfície de lago água interna com espessura de mar En Lixboa. mia senhor velida! Barcas novas mandei fazer e no mar as mandei meter. sobre lo mar barcas novas mandei lavrar. Barcas novas são mandadas sobre o mar Não lavram terra com armas os homens Nelas mandaram meter os homens com a sua guerra Ao mar mandaram as barcas novas lavradas de armas Em Lisboa sobre o mar armas novas são mandadas INÊS DE MANTO Teceram-lhe o manto para ser de morta assim como o pranto se tece na roca Assim como o trono e como o espaldar foi igual o modo de a chorar Só a morte trouxe todo o veludo no corte da roupa no cinto justo Também com o choro lhe deram um estrado um firmal de ouro o corpo exumado O vestido dado como a choravam era de brocado não era escarlata 12 13 . Também de pranto a vestiram toda era como um manto mais fino que a roupa O NOME LÍRICO Esta manhã hoje é um nome Nem mesmo amanheceu nem o sol a evoca Uma palavra palavra só a ergue Com um nome amanhece clareia Não do sol mas de quem a nomeia 14 15 . TAMBÉM DA CHUVA PEDRA EM EXPANSÃO Também da chuva havemos de falar e onde cai diremos que uma queda diferente nos faz dizer da chuva que é uma queda muda Calada quando só cai por nós quando cai só Também no poema é nossa só porque cai muda como cai no solo a chuva Diz não são os anos que passam é a pedra Não o tempo o que por mim passa mas ela que somente acompanha Diz não passam anos para a minha idade só uma pedra está 16 17 . com as vias da respiração opressas porque estão a erguer casas de telha vã e pastoreiam só animais que restam impolutos das ribeiras cheias de temporais e frutos que nas águas tristes se despenham. A dúvida do tempo incerto não aquieta. a dos que andam por fora por ruas e por roupas. Aqui o inverno mata as profissões que têm acesso ao ar. sítios de campo.SÍTIOS DE CAMPO O AR OS TECTOS A nociva doença da verdura. Como repetido é sempre o inverno. enquanto a guerra esvaziou. também a erguer os corpos opressos pelos tectos. 18 19 . agora se o cobre esta neblina. as cornijas nas ruas devorando os temporais e nós sem profissões libertas. A névoa: abrigo nas terras de pousio. cio. com a chacina de animais. oculta campos. nem a guerra. o lenço muito molhado das mulheres deixadas em campos rentes com o gado sem cuidado esparso em plantas secas. a cordura dos animais e todo o demais sanguíneo solo que faz um campo pobre. com os ventos iguais que nos descoram. antes de secos. redobram. de embarques nas praças públicas e acenos de aços. depois no chão dos olhos. ei-lo a ver detida a floração no mês e perdidas as seivas: crescendo as arestas. O silêncio procede da terra enxuta. trazendo águas correntes com o destino. lembrando as ocultas tempestades que molharam de ruídos os mundos calmos e profundos do chão. frestas das terras. no seu pássaro. 20 21 .AS OBRAS NAS FORNALHAS NO CHÃO DOS OLHOS Há rios de abas perversas como o Tejo. O rio devasso inunda. de trabalharem aços contundentes. Não sobe a floração nem de si mesma. ei-la invisível durar ao longo da estação e nós somente ouvimos: as quedas de bátegas contínuas no ramo estéril. Nos fornos do ferro o fogo não tem a claridade dos ferreiros debruçados sobre as obras da paz. de barcos com destino posto não às brumas dos mares seculares cortados mas a outras de rios de súplicas. posto em águas lodosas do Tejo. temia a vez da solidão. a alba. o nascimento. no miradouro. cadentes. A voz. as gralhas de alentejo trasmudavam-se tão quentes. Aproximava-se. logo a extensão das terras baixas. As pedras de Marvão estavam ligadas. profusos traços de uma estação de tempo que me deteve. efémeros. revelam-se. o seu contrário. Que face do objecto ou parte natural se mostra? Desde o princípio. que começava — eu vi — entre muralhas. A própria fala cria o objecto e separa-o do silêncio. As qualidades certas destes lugares. tépida no miradouro. existe a harmonia. CRESCENTE O MIRADOURO Começa a alba. crescente. o verão. os tumultos de um miradouro alto despenhado sobre sopés.A VOZ. emerge da natureza viva. de bermas e de vistas. o monte só da vila. à sua tarde. às pedras da paisagem. A memória funda a sua fábula — noites e. a véspera. a luz. Manhãs com os seres diurnos: sombras. Vi-o transparecer do que é parado. os vários astros rápidos. Temi o verão. brenhas. as aves. O temor — era o poente — então reverberava sobre as partes do horizonte. Em tudo era a passagem da temperatura. os dias duram. São da memória os sons. o tempo. a denegrida pele dessas lareiras em redor. 23 22 . como poderiam ser os fogos da vila mais vorazes? Esses fogos nas lajes. a curva constelada do céu estria-se. assim como temendo a posição de ver. a mesma combustão das pedras. A noite. PUNGENTE O VERDE e é algo que à tona de água vem verter a imagem na sua origem turva. Cria-se o fio que junta ao que se vê. vendo. salino liquefaz. rente ao solo. pungente o verde tinge a curva de rocha ou ponta térrea emersa. intérmino. A rocha escava. Sinto-me atenta. a pedra exígua no limite da água furtar na sua renda a harmonia? Quem entretece. as conduz ao ponto corrosivo da imagem. a flora ondula. de um rochedo isola-se. em conflitos de nexo e de desenho que toda a ave traça — saída do seu tempo sobrevoa a costa. sendo imagem. nome dito. à luz? Por que soa o tempo a quem o vive tão pungente. O verde amplia o fim que é dado à vaga. é mais visível a imagem da água corrente que decide o meu olhar que vê e o mar que cede à rocha ou à imagem que o percorrem. Assim repousa. Ténue. com a cor. tanto como o verde dissonante? A luz ou realidade exerce o seu fascínio: cinjo-me à linha que de coisas entre coisas parte. que dor. a luz acesa em si. O simples dom de ver que o olhar emite ou colhe: a parte entre uma orla e as margens recolhidas. Como as mistura? Quanto dura impreciso o seu contorno? Onde o corrompem limos. o leito espraia a areia. fios visíveis? Entre o declínio e a mancha de água. na superfície. e vibra a minha face já defronte da foz que da água o curso. logo. a primavera ser o tempo. Agora o olhar progride sobre tudo e a pua. a de rasgar a berma de água unida. as formas em que retêm as ondas vívidas a pupila que no acto excede o seu volume 24 25 . definida. A crista de linhas convertidas em figuras. doce. quem nomeia essa mudança do inverno para o tempo primeiro da estação aonde o mar começa. 26 27 . É neste fio que o insecto segue o seu percurso (vivo) sobre o nome apis aracne teia ou o favo a bordadura de árvores ou o núcleo (das mesmas) que formam o bosque a zona florestal as suas leis defesos. as nebulosas. das noites todas. são os nimbos espessos. símbolos. não germinam antes de palavras — sendo a abelha (o nome apis) que as fecunda: disse-se o léxico óvulo a semente a terra (a terra) os séculos as línguas mortas estas novas palavras. na entrada. com o tempo. caminham e cantariam alto se algum silêncio vasto se formasse ou o criassem os gestos — a semear. amam a terra. Mulheres que habitam o tempo: jubilam com a luz de primavera ou verão (só a suavidade). Mulheres cavam desfazem os mesmos cômoros. dormem debaixo de águas sendo agrestes.ª (AGRICULTURA) DIZER AVIS (AVE) Eu vi a agricultura: semeavam. Assim não permanecem. Assim lançaram ao pó o seu grão. poisam a semente. Dobram o flanco — é a poeira. Seriam os nomes ver-se-iam assim árvores toda a paisagem a sua implantação: eis mais uma vez árvores (já floriram já antes emurcheceram) são chamadas: cyparissus. Param. em casas áridas. As vinhas são o campo duro aonde andam.GERMINAÇÕES / 1. abaixam-se sobre a leira. silvas. assim a morte as prende. E conforme as aves voam (rémiges) dizer avis (ave). outrora) se apascentem em erva rasa (a eterna qualidade desse gado. neve dolorosa). Porém. 1 Poema sobre três versos de Carlos de Oliveira e uma frase. espaços inúmeros. a necessária ao rosto (depois de longas noites entre seus dobres. o mês onde o lugar pressente ser o verão entre a proposta de flores e a face do fruto (a de um sólido). e que era a espécie. a matinal. una. e os animais (idênticos. de Egito Gonçalves. linhas (de veias) reflectindo o mundo (vário) (alheio). pensar que a rosa apazigua: diria que era rosa. Perdida. a doce luz do inverno. o tacto insaciável. Enquanto a luz transpõe copas. ROSAS E LÍRIOS (ESTE) ROSTO 1 Em quantos séculos eu não vi: as rosas e outros seres (a cor sulfúrica) nem vi as naturezas mortas — se o mundo é a figura delas. Nem tinha antigamente (dia imaturo) este saber: porquanto seja enorme o mesmo mundo. Rosto com o vidro. caprino. e o segundo crepúsculo (a tarde) é incessante. epistolar. Sombra com a luz ainda nos últimos ramos do próprio desejo: a invocação de abril. pois. 28 29 . suguem a cada hora os lírios o seu líquido. é a de ser parco). isso é fugaz. Percurso para o rebanho ou outra coisa: a finitude.ROSAS. os cumes. o aniversário. E que urna ou ornamento (essa mesa)? É um sentido vário. 15 Agosto 69 Uma noite coincidindo com a metáfora. ou. apenas estava na posse dos seus gestos e me olhara. A omissão de cidra ou mármore ágrio é um dom do luto: meu exercício e o mundo. num puro tampo (de mesa). Eu caminhei manifestamente entre os juncos e encontrei tão-só o curso de água lenta. A emoção de ser corpo (um fruto) decomposto que hoje recrio ou lego: a minha existência (entre os iberos) urge. celta ou da ibéria. muda. É um suco mortífero. houve o soalho. vem do tempo. Meus anos expostos (a frutos) que formas confirmaram. Passara próximo do camponês e do seu dia e ele acompanhou a minha mitologia. Mas o sítio era outro. já me transcende? Ó reino pressuposto de um vegetal. conduzira-nos a outro sentimento. O tempo solar. noutra hora: a meio da noite. embora a junção da terra ao Cavador me desse a bastante medida desse campo. a consciência da queda sonoríssima da água movimentara-nos sonâmbulos até ao enigma. Num tempo celebrado. no espaço a hora ocorre. ou o de um real aberto porque o vêem muitos modos ou o dizem. ouvimos a água oculta que na manhã seguinte como no mito não conseguimos desvendar. matinal. por coincidência perfeita com a tradição do indizível e do invisível nocturno. essa paragem — cidra — no percurso. O camponês que ali. mas.MODO HISTÓRICO DA CIDRA PRÓXIMO DO CAMPONÊS Numa lápide. não que pereça. nos pirenéus. seguia-me ainda com o olhar de assombro por me ver estrangeira junto a um dos regatos. ainda à imagem da tradição. quando imóvel. afinal. em si a sua origem. mais longínquo. 30 31 . cidra. Eu ocultava dele além do meu país alheio o mistério do bater forte de água no plenilúnio. um ente nasce: o fruto (diáfano). Procurava um outro sítio além do campo. autor! Ignorando como recomeçar o uniforme. Depois. Apercebo-me de que apenas no fim do texto. 32 33 . pois. herberto ou autor. no esmalte. na vigília. de lamentos. Da metáfora e veracidade do chão recolho a poesia toda . perante as flâmulas. cujo nome como o de um leitor antecede esta ambígua e ubíqua biografia. na corola negra. 1 O chão. Livros lívidos! Palavra suicídio entre números dígitos de anos. Esta é o símbolo da tempestade ou a realidade traduzida do diálogo sobre a estrela entre os tópicos. as estrelas negras na descrição de Autor.HORA OBSCURA AUTOR FRAGMENTO Por muito que a minha escrita decalque as páginas de fernando pessoa eu digo numa fissura do verso uma outra coisa. no túnel do universo pensa no exemplar bilingue de celan ou na vontade de morrer sensivelmente sem a escrita. Dedica o livro. na sua própria longínqua ortografia dos symbolos. lera as oitavas. o verso e o reverso. levanta-se sobre o verídico1 e desaparece nos precipícios que são os textos. o país onde o leio tem na hora obscura o historiógrafo. afastando-se começara a escrever a mensagem com incidências subtis como a da duplicidade de pedro o regente ou a das duas batalhas. no último poema. inscrevera novo desígnio filosófico ou desenho. essencial. O poeta não subira. Este é a figura de estilística da mesa ou do ciclo. A bibliografia de um verso é-me. Aí. Que nas comemorações da sua morte me apercebi de que ele não regressaria aonde estivera presente: a calecute. à coberta das naus. Leio-o com a avareza de quem herda os antigos e os contemporâneos. ainda. que eu nunca ouvira na margem do rio precedente. e deste à imagem fabulosa. a ver as folhas de palma é como figurar em naturezas mortas. são estas. as imagens instituídas para a relação com o irreal. anfíbio! Dilata a pele. se existem. igualmente. de ser lacustre. Agora eis o uno e o exótico. depois da metamorfose. Tinha as visões do rio. Poderia este gnomo. para a visão mirífica. Recapitulo a minha aprendizagem dos seres supostos vivos tal como o parágrafo de um grilo. e deste a humano ou poeta. o terceiro termo de ambos. e a colocação do vento. onde for. Lápide e versão. Coaxa. É um jardim antigo. Mudada. o gesto da escrita. De max reinhardt recebi. Estar aqui. É de ouro a pele húmida mítica da sapiência da fábula e da ignorância. 34 35 . Coaxa rã. nesse século. na eterna mudança. Existimos sobre o anterior. era a vontade de imaginar. Rãs. passa. a habitante da erva. a realidade. uma vez mais. indistintamente. pinho e a palma. para além do nome. ter o dom bovino. posso atribuir os meus textos a joan zorro. E. eu já vivia em sistemas de símbolos. o das imagens que inovam. O progresso dos textos é epigráfico. O movimento da escrita e da leitura exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra e da maior mutabilidade da grafia. no entanto vejo-as.O TEXTO DE JOAN ZORRO O GNOMO Levando ao limite. homenagem. o fantástico. as insistências. irreal histórico. oculta ou não. eu estava a jazer. transactos. quando a imaginação imprime ao verso uma rapidez inignorável1 está a ser percorrido o poema. a chuva flutua. Desfaz-se a linha divisória entre duas tonalidades de cinzento. Um indivíduo. Tudo se vê. a constelação animal e vegetal. Se eu isolara assim o meu decurso entre traçado de muros e legibilidade das letras. Esse granito obceca. tal como o sentimento de peso da chuva fria. Sempre senti a nostalgia de tudo o anterior. panorama das palavras. recebendo de cada século uma narrativa. Elogio a nebulosidade e o nácar.INSCRIÇÃO HIPÓTESE DA MORTE DE UM IRMÃO DE ANTÓNIO FERREIRA O século anterior deixara a inscrição na vereda que me antecede. Amora. A mímica e a lírica desses estranhos esboços restaurei-as. no chão eterno. a possível deambulação hermética ou cabalística. Com esta chuva sazonal revivo o que me pertence. é duvidoso. dispondo-se as figuras. Malva. Vi os meus actos descritos. Ortiga. ocasional. 1 Fernando Pessoa. o texto. no entanto. as variações que introduzo. Tão-pouco pude esquecer para sempre que o conceito de nacionalidade não é o de uma herança ou estratos do passado mas a mais original e mais inovadora obra de um indivíduo. 36 37 . A Nova Poesia Portuguesa. Então pressinto como esses homens cuja existência individual reconvergia para o fundo côncavo de um rio ou de um vale poderiam ter criticado a expansão marítima como a dispersão do eu ou sua possível perda. Exigi diferenças minuciosas. também quando exulto ao recuperar a visão de quem já viu para além da paisagem. no campo da visão. estabeleceu a mobilidade da sua história única. Arminho. Eu passava. nos intervalos dos dísticos com os nomes. e depois irradiei de uma experiência. Diversas faixas de nuvens me fazem verificar a diversidade das minhas emoções. Não pude regressar a outros vocábulos. hipótese da morte de um irmão de antónio ferreira. expandirem-se da pedra. Segundo aquelas palavras pétreas. entre a enumeração dos tópicos da imagética da Renascença. aí. Aqui e além. o destino dos enunciados. não o histórico das sucessivas gerações. mas o puro singular campo de visão que se escreve. Resumo a fatalidade das letras. mesmo que nessa vereda chova. um arco de folhagem. o aviso de que a minha vida é a mais hermética. Sobre a colina tradicional. com mais numerosas referências. A MINHA VIDA. Como um paradigma entrego eu a outros a forma como passou o tempo enquanto dia se fez noite. agora. a aproximação da consciência é a situação mais nítida sobre a profundidade dos gritos. soube que certas imagens constituíram um corpo teórico no Renascimento. tudo difere. Mesmo em minha vida o meu texto se distinguia do meu corpo e era por mim legado à decifração. Porém não terminava o crepúsculo. Sofri por não ver a fisionomia desses mortos. Tudo o que disse com literalidade deverá parecer. Nada se opõe. o pormenor dos lábios. sentia-me solitariamente votada a prosseguir a específica sinuosidade dos meus símbolos. tons de cinzento desapareciam e eu me tornava tão incorpórea para sempre. A MAIS HERMÉTICA Este amor literal.Quis reflectir sobre o passado e a visão de outros. 38 39 . nem os jogos se estavam a tornar obscuros. sendo a tradicão um único momento. Ao louvar. estou na mesma situação de blake e na situação de mim mesma quando ouvia o infinito no grito das crianças e quando era evidente. Tinha o dever de observá-los. nem junto à casa aparecera a fisionomia da imagem de mãe. este sistema simbólico inclui os gritos. toda essa aragem dupla que redemoinha entre árvores firmes eleva as telas frágeis das asas. a restante brisa que sopra em outras copas.ASAS MALIGNAS Vejo sobre a grandiosa árvore de palma a contraluz as cegonhas como aracnídeos talvez através de um véu de cassa. embutidos na noite como garras. O resto do tufo das árvores tornou-se uma imagem desapercebida porque já desde o princípio o seu movimento ofuscado contrastava com as asas negras. Esta visão isola-me do mundo e beneficamente reconduz-me depois aos significados que formam o mundo. 41 . para que alguém as agrupe num indício. Que mensagem posso dar para além da aberração dos colos enlaçados como um insecto a estrebuchar num precipício real elevado? Até os fios da teia na treva mesmo que se assemelhem a folhas são cada vez mais angulosos. apenas íntima a elas e estranha a outros restos de sentido. O casal de cegonhas é um alvo demasiado fascinante 40 para eu sustentar o olhar nos seus círculos. qualquer outra árvore que dobrando-se simula também um par de asas malignas. Entre a noite e as imagens que me suscita esse ponto branco. o par. Nunca as cegonhas me tornaram excêntrica de mais. A brisa que confunde as asas temíveis com as varas agitadas de palma. giram em volta frestas luminosas. a razão duvida de que os símbolos não sejam sempre as razões verosímeis dos movimentos da voz. a tarde esplêndida acende como uma tocha a madrugada. Se tudo é cognoscível a quem está no reino do conhecimento com as beatas palavras (felizes) geradas no horizonte. Este silêncio místico prepara a tábua rasa das comparações. O rectângulo da ravina está sob o teu corpo há uma luz sem recantos. do ouvido. e tornar histórico todo o corpo a quem a carência faz amar 42 43 . e embora o fogo ainda esteja próximo da semiologia da fosforescência eu distancio-o com a frase divinatória: amanhã a alva há-de romper de sangue. Basta o vapor que desliza sobre os bordos da ravina sem jamais enevoar o teu corpo que tem outra espessura e o latejar solitário do animal que não foi ainda transcrito para a gravura.TÁBUA DAS COMPARAÇÕES HOMENAGEM À LITERATURA Quando o céu está vermelho comparo-o. que aprender a transformar as formas entre si é tornar inteligente a linguagem para a História. consente que na elipse do horizonte a grande mancha seja comparada a um sinal ignoto que engendra os sinais. comovidos pela presença da imaginação em todas as obras. Pela separação semântica coloco o tom sanguíneo à distância sobre uma árvore calva. Basta a areia ocre ter sido destruída pelo ácido mate e nada ter corroído o teu corpo que pulsa ou que adormece para eu dizer que tudo é díspar. Nos seus ramos o pardal sente também a premonição da noite. Estas avencas hão-de desenhar nódoas nos traços distintos da tua pele o tempo de que disponho para viver e ao qual a consciência me concede um prazo divino para pensar. não estava destinada a exprimir-te. a quem o delírio mostra a forma tosca ou difícil dos objectos. o meu próximo. 44 45 . para que eu o possa expandir ao limite. imagem filosófica. porque ela em si. pedras cáusticas. Sobretudo depois do abandono a que vos votei pensando apenas na duração da vida.substâncias pobres e faustosas. nos tons baços. Mas eu sei que foi o teu corpo que a transformou em termo de comparação. que estão sobre o teu corpo sem que cirros de nuvens o arrefeçam porque a fatal imaginação te distingue a meus olhos da cor térrea com que a ravina pertence ao pensamento da História. ou mesmo esconder a silhueta que ao longo do monólogo se esvai ou regressa. Perguntarei se partilha vida das figuras ou se figura a vida de que participo como outro espelho. que dilui a cor da água corrente que deveria nascer entre as fissuras. na brevidade da imagem vil do ocaso humano. um tronco áspero oblíquo. O rectângulo da ravina que está sobre o teu corpo tem como a vida certos dias a cor espessa cinzenta por sinestesia. Estou a sentir que qualquer descrição acrescenta Voltado sobre o flanco tu próprio ainda ignoras que já houve a ameaça da queda do teu corpo sobre ondas de rochas. conceito de divino. A litografia que na parede me é dada pelo autor como outro ser. um corte no terreno que revela o sulco a percorrer até à cordilheira a que eu te disse ter sido um dia espelho sombrio da tua voz. Reconheço que uma imagem serena pode ser expressão do drama como o desta praça cheia de estalidos da cremação de muitos segmentos de árvores 46 47 . portadora de um facho que é uma última nuvem contorcida. hipótese de uma aproximação do mar ou a crença de que as figuras da mente têm no momento predestinado a sua figuração no espaço. como uma víbora hiante. reposteiro da noite inédito até à ode à noite. o assobio de um barco que se sobrepõe à massa da terra. Que à medida que os anos e os vocábulos se acumulam mais incompreensível me torno para os detentores de outras técnicas e que só deve ler-me quem não tema reconhecer-se como leitor único. o que a torna o fundamento de toda a diferença. Embora eu já tenha sentido saudade em certos poentes hoje as fachadas largas dos prédios derrubados pela monstruosidade da noite trazem-me o silêncio.já há muito associado ao do astro. Esta evocação da luz em forma de réptil. círculo escaldante. Agora. Posso dizer que o poeta imorredouro é o que introduz na língua a metáfora mais densa. reafirma toda a distância entre pensar e estar. e uma cova. NOVA OCIDENTAL Assim o silêncio. tão pungente como ele porque duvido da verdade de ambos. cisco negro que turva o ar representa o anoitecer tão livremente que as saliências altas disformes têm uma irisação de chumbo. Descrevo este lugar como face e visão de uma cidade tornando-se cada vez mais turva depois do zénite sendo por fim a descrição de uma catástrofe. contém o fumo que ilumina a abóbada no centro da convergência. o escamejar da água. Olhara o rectângulo da ravina que está sobre o teu corpo para dizer que é a metáfora que constitui a língua pátria e que cada metáfora é na sua íntegra incompreensível. Somente me faltava duvidar da presença descrita do teu corpo com as sombras da meditação sobre a verdade. entre chamas. O acaso fez-me presenciar de novo a transição do final da tarde para uma noite. as escadarias em plena imagem debaixo dos focos do interior do cenário por onde passa uma figura perdida. das superfícies simples em mistérios submetidos à interpretação. em que o milagre transforma o pensamento até ao prazo nulo da noite quando as significações atribuídas ao sol. 49 . imagino que figurantes mutilados regressados com um archote propagam a evaporação da luz que prolonga a meditação metafórica que possa espelhar a casa sobre si mesma somente com fendas. Substâncias voláteis como as cinzas. Mais uma vez anoitece com um caudal de pedras como brasas. já são vãs. Percorrida pela síntese das figuras alusivas ao dia. Cair a noite esmaga-me pela cadência com que a Natureza extermina a minha fantasia e me substitui na sua própria criação. Ou o crescimento súbito de um intervalo de vácuo entre os meus olhos separa das sombras demoníacas a humanidade áurea. seres sem sofrimento. ulceram como chagas. Bálsamo contido num círculo igual à exagerada imagem lantejoulas rápidas criada para enredar nas línguas de fogo das estrelas a sensação mortal do sujeito que enuncia o poema. a maresia. que uma emoção absurda mais potente do que a imaginação transforma em evaporação de fel. o ambiente das figuras desde sempre associadas à vivacidade do fogo. a dos dardos ao anoitecer 48 em plantas. excesso de luz. A escuridão exprime-se por imagens inversas. para aquela língua viperina ocultar a luminosidade traiçoeira. a da continuidade do tempo em tempo puro. sem a noção de que os símbolos. sem que a alma tenha de não ser um véu de transparências que seja diferente consoante a teoria das convicções sobre os momentos verídicos.ou dessa água coagulada com os veios sanguíneos até alcançar a sugestão perfeita que na madrugada pode recuperar um tom alheio de malva e ser novamente desejada. Eu própria temente das metamorfoses inevitáveis que assinalam dias. à virtude. como o painel de janelas queimadas destas casas em transe para reviver. Onde tudo o que amanhece incinerado à noite renasce. mesmo visuais. Formada de triângulos. Esse remoinho que a posição dasfiguras levanta na atmosfera entre osdois ouvidos.O CEDRO minhaárvoreespiritual a diferença nas tuas várias imagens. Agora anteriormente nunca todo esse tempo em que lentamente te formaste detriângulos corresponde afinal à perda datua forma. Éverdade que estou impávida diante dacatástrofe dafatalidade. Olha minhaprópria vista o grande cedro queantigamente viste aqui ainda dotado de umaexistênciasensível. Galhosgalhos cor de florestas queimadas. Que já estava esquecida na tuaNatureza. Já não necessito da eloquência daNatureza. O teuser animado que oscilavaaovento. Reduzida. Folhas lancetas aceradas folhaslanças folhas. Vês meuespírito uma miniaturaenorme diantedeti. Esta árvore que estavadespojada como uma veste lisa vista do ladoexterior. Copiada em pormenor da Natureza. Tão naturalmente utilizo alinguagem que tudooque deti obtenho linguagem já não tem ên51 Árvore tão una como um trajo. Formo comotu formaste umtrajo umafigura triangular uma cadeia de sílabas emqueos significados se amontoam nessaszonas. Repousatu árvore destruída. Esta síntese é natural. Todaacor de um bosque incendiado num ponto só. Franjas lanceoladas fímbriaspregas. Sim unouno as impressões aossentimentos. Um raio decerto a atingiu umdia umahora repentina umanoite. Não lamentes 50 . A única vítima A única diferença entre eucaliptospalmas acáciasciprestesvinha. Secaoca agrestefulminada. Esquece avida que tinhas fora da minhaimagem. Possivelmenteum dia um ano deumaestação um raio cortou a tuacoroa muitoalta. Estásó como a solidão desteverso. Éuma árvore quenão vai recuperar aminhaideia passar-se para dentro dosmeus sentidos. As silvas que o cão vigia. Mas seeunão souber fugir aodesespero senãosouber nãoimaginar aaflição avançarei mais pelopoema até obter estes sons ligadosvários queressoam para serem correspondências demetáforas vazias. Aminha alma que ele quer. Louca pelo calor dobarranco quesei da teoria do verso a não ser nada? Os zimbros que são arbustosbaixos. Há um cão cuja corrente tine. Há salgema longe destas pa- 52 53 . Anda na ribeira sobrenada. Deixaramasfendas atulhadas de pedras. O cão soluça. Azeitão. Loucalouca pela sede. O cão gemegeme. Ela presencia ideias e ideias. Estou num elevadolimite da cultura comosetu minhaimagem falante te tivesses formado ecultivado com as várias formas. Osmoradores saíram atalho adiante. 1977 JUNTO DAS CORRENTES A extensão do céu sobre este lugar. Olho a mó grossa. Os moleiros queescutam ossilvos os que amarram feixes degravetos.fase. Passei nobarranco junto daazenha. Perto daí na linhaférrea estou junto àazenha. tas do cão. 1977 COLINA Numa parte da colina os trevos estão a ab rir. Peloatalho ondea moleira vinda andaincólume à beira dapodridão. Ao lado os trevos que estão a abrir. Articulam os movimentos par a o interior até serem vistos subitament e. Houveágua clara. Lisboa. Noutra parte o melro saltita. Édifícil passar além da ânsia de água. É também dessa cor a dob ra oculta das pétalas. Parecendo um crivo branco as flores estão circundad as de vermelho. Mesmo para não me obcecar deversos. No t erceiro lado hexágonos incolores que são insectos confundem-me. Dir iam que tem uma forma semi-esférica. Na última parte a colina forma um declive ou uma rampa para o lado interior. Mas eusou mais exausta. 1978 54 55 . É uma c olina com várias partes unidas em que fal ta juntar o rectângulo dos lírios. Doutro modo resvalariam da única face. A mosca transportaa até ao limiar das pernas. Outro lado da col ina desce por trás do primeiro lado. Só assim se equilib ram nos planos as várias flores. Torres poronde a extraem. Deslocam-se para a área onde está o melro que ali é o máximo ruído. O loureiro em flor fic a por trás do seio da colina. As margaridas abundante s avolumam-se com a superfície radiosa v oltada para fora. Vai parao fundo do caminho. Mas são lados facetados. Corre baba dafábrica. Confia nessahiena que o cão me parece desesperado. Mais hiante esempre a mesma nos versos. Versosque de rojo seguem nascorrentes. Estão a desabrochar virados para o mananc ial do leite. Torres Vedras. não percas a ideia nítida do que és. Ó ci garra que tão radicalmente consegues confundir-me o conhecimento e de sorbitar-me! Canta o que não cantas. Quinta das Torres. apesar da grande obra da cantora que domina o real. A cigarra martiriza-me com a sua cons ciência de ente maravilhoso. ela é uma ár vore. E até ao fim do Verão. alguém é igual a alguma coisa. Olho o trinado e vejo um cas tanheiro da índia lábil. Tão estridente que es 56 57 . encontro-os atravessados no que posso chamar caminho. 78 A cigarra tem a intuição de que vence os outros cantores. A magna nimidade do seu canto ríspido não cessa. Um outro som procurado em pormenor é o corpo do bugalho gretado. Vinha. Menos o seu. na comunhão que se estabele ce entre nós. A ave debicava as uvas comunicando fervo rosamente com o artifício. E. cujo pensamen to aceita ser conduzido em arco. Coi sa cuja fidelidade artificial su planta o primeiro conceito na latada. os sons que eu procuro. E as folhas de parra esplendorosamente falsas vão lançar as suas gavinhas naturais. ela é gran diosa. quando o chil rear curto que se repete no fim do poema atrair finalmente esta hipnose. Debaixo destes espaços sonoros alguém é vítima. A ave também cantava. Mas eu transformei a grande árvore pela im posição do canto.CIGARRA teve no centro da filosofia como um vidoeiro igual ao de um ex-libris. Tão bela a sua rude za como a libertação. Este besouro passa subitamente. e é uma folha de vinha de acrílico. Um tirano canta. Agosto. Aquilo que zumbe ao olhar-se é um seixo. Estamos a ser glorificados. Longe dos cerros no horizonte onde o e 58 59 . Estou absorta. ó sol. a boca cavernosa. Marco de Canaveses.CASAS co flutua e ao aproximar-me bois cavam caleiras nos atalhos de rocha. Alheia à magnificência da imaginação desta folhagem que fala. estes fetos crepitantes. Sinto-me tão afastada do espírito da paisagem como inerte. é um verso. Entre estes milheirais que zunem. oco silêncio na parte superior dos milheirais. Pe quenas crostas de mica são o teu espelho. quando a Natureza está chapea da de sol. Tu. Tudo o que chamo meu. A especulação que se reveste da forma de écloga é a minha lin guagem. A sua medula em arco. A cons ciência demonstra-me que sou aonde estou. há caminhos esguios entre as fanerogâmicas. Têm uma alma escura e olorosa no seu centro impenetrável. Até os sons oca sionais e a tangibilidade da água não me tocam. As nascentes eram verdadeiramente seres novos a trinarem. As capelas de granito escaldam entre o milho agreste que está sombrio. és o tecto. uma elocução ou um parágrafo. Grandes penedos que a erosão entorpeceu. 1978 Tudo é rarefeito nestes atalhos. As casas toscas são também seres mortos. tudo isto surpreendente. com uma pasta arroxeada no lugar mais adequado à água. que não quero esquecer como anjos necessários. que me obriga a ranger como uma arte os meus ossos de poeta. Para quem como eu viu o próprio corpo do poema tomar uma configuração mole. pois é possível pintá-lo com o bico superior alto e o bojo rotundo cheio de esquírolas e de depósitos.ÁREA BRANCA / 1 Considero à vista o poema uma gota de lodo. uma dimensão espaçosa cheia de cavername solto. Considero o poema o mar. tantas vezes azuis enquanto o céu se dourava. Escuro e medonho foi como os renascentes me indicaram o abismo do mar. Também tem um fundo de desperdícios. Olhado como uma abóbada de pele plástica estendida e repuxada pelos querubins. estando longe de mim neste caso uma associação de ideias com a morte ou a agonia. viram que o elemento água ensopava a alma e os olhos sem diferença. e que o estrépito das situações extremas no mar traduzia o pânico de morrer. 60 senão a de que a morte teve noções diversas e que a noção mais cruel foi a que a assemelhou tanto à vida. Maio 76 61 . sem nenhuma crença herética. que os bizantinos confundiram em demasiados pormenores com aves nítidas. esta hora é já a imagem de púrpura de um ocaso impessoal. Os hipostáticos. semelhante a um licor em gotículas ou à de coágulos. que os meus contemporâneos a sentem como a ser assistida imediatamente pela sua consciência. os frenéticos românticos ao sentir brotar o terror existencial. Tudo aquilo que se reveste de maior importância no pensamento desperto pode ser um étimo 62 onde concentro a minha vida. deixa de ser súbdita do universo. ao atingir uma grande fracção de factos ou. com critério. por vezes. de quem não considera este clarão diáfano necessário à compreensão. de pontos siderais. como involuntariamente aconteceu no verso em que rimei. mesmo secos. idealmente ou trazida pela minha presença. em poema. Não posso portanto permitir que alguém. de tonalidades. manhã a manhã. porque estou a passar da primeira razão do discurso para a distracção plena. queira incutir no espírito humano a ideia de uma essencialidade desenraizada daquele fundo com que cada um se torna essencialmente em ocasiões únicas o ordenador de rosas registadas por sinais. Eu vigio a minha permanência na terra. Vim. Cada consciência. Depois de muitos dias o roseiral. que era frágil e concreta. Mas com que intensidade senti essa oferta natural. ver as rosas em maciços submetidos à luz forte do sol nascido daquele lado. uma pacificação do espírito bem diversa da passividade. Cada sentimento que a vida diária apreende de um modo difícil ou astucioso é eterno. Nem tão-pouco é necessário passar no subconsciente entre frisos. talvez sem a minha conivência. visto dia a dia. isto que eu transformo na minha consciência. acompanhando-as de frases preciosas.ÁREA BRANCA / 9 O tema das rosas não é ainda estéril. sob a acção do vento. impõe uma imagem mais do que secundária ou marginal. É este o sinal da separação entre quem possui o domínio e aquele que é dominado pela artificialidade de produzir e que não sente a distância atroz que o separa do dia a dia. Não procuro fugir às referências mais do que o que necessito para tornar legítimos os contornos duvidosos. que me levou a inflectir a linguagem para a rima. leito eficaz para cada um engrandecer diariamente. A partir de rosas começo o caminho visível pela ladeira diurna. Maio 76 63 . o papel da aragem a que chamei vento é sobressaltar-me devagar. Sempre que me distraio de mais das rosas através da teoria. mas igualmente dócil. Aqueles que não imaginaram na ceifeira de uhland o cântico mais remoto da nova ceifeira de fernando pessoa podem agora começar a imaginá-lo. Como evitar que o fim da página se ligue ao cosmos materialmente e. o poeta. Se nem um tecido é rigoroso com traços e sombreados quando muito harmoniosos. com o ritmo passando a tempos regulares os fios obliquados pela luz. O próprio termo poesia pudera orientar a sua sombra no sentido de manter cintilante 64 a metáfora da tecedora. Ao chocalhar todas as frases. repetindo assim o movimento de que nascera e fora contrariado pela escrita. Ela soube ser responsável pela perdição ou a desaparição dos homens nas palavras. até estes voltarem a emergir dessas palavras alteradas e inalteradas. Mas eu admiro sobretudo a injustiça para com a tecedora. Julho 76 65 .ÁREA BRANCA / 10 Admiro a tecedora porque tem consentido que a assemelhem à poesia. nunca simétricos. Toda a crítica tem exaltado o poema como uma produção da mecânica manual oposta à idade do amor espontâneo. até nova comparação. e o poeta vê-se perante a impotência de os refazer sílaba a sílaba. a de atribuir aos seus dedos esfacelados a incipiência do poema. os versos caem uns dentro dos outros. os jorros do lirismo. até terminar e recomeçar a teia. como o pode ser a soldagem dos termos lexicais ligados continuamente por espaços brancos. ela tece os caudais líquidos que escorrem na sensibilidade do poeta desde que era criança. o poema se desagregue. A poesia iludira-se ao pensar que a alteração que atingira os objectos deixara ser idêntico. Só a tecedora tem o privilégio de romper os fios pelo fogo. Eu abjuro da tecedora porque muitas vezes tem correspondido a quem lhe diz que a harpa produz estopa. Mesmo com os cílios a perturbar-lhe o movimento dos fios e os dedos tocados por uma estranha resignação. em vez de tornar-se um tecido tranquilo. e estou a predestinar-me ao fim. porém. sem a mancha embaciada compacta que paira diante dos olhos sempre que se fala. Não sei imprimir as três linhas convergentes do pé da gaivota. Só de uma forma rudimentar escrevo. quando as mãos podiam apenas escarvar na terra ou no corpo. A mancha que se desloca no raio de visão e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela com a fuligem constante a torná-la opaca. Setembro 76 67 . Uma fieira de montículos e ranhuras até ao infinito que para ele é o mar. Nem estou convicta de que seja digno escrever desta maneira. Na areia. E poderia descansar a cabeça no regaço da lama. Há quantos séculos os seres humanos me aprisionaram no mito da caligrafia. únicas propensões inatas. Podem ficar as palavras somente na fita magnética como nas cabeças loiras. seriam necessários. e por isso é supérfluo escrever. Aproximar dela a mão até alcançar a harmonia do trilho do escaravelho. O som da boca deve escrever-se no écran. Prefiro aprender pormenorizadamente a conservar uma impressão digital. Sei que é inútil e desumano mover as mãos assim. porque sinto a opressão com que alguém o tornou mais nobre 66 do que a minha fala ou a minha visão. Nada na infância nos deveria obrigar a traçar as patas dos roedores repelentes que são letras. mas com menor perfeição alucinatória. Ensinaria à infância a gravar no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras modulações da voz pura. Há um pensamento abstracto e maquinal que decora a História com inteligência mecânica. com a nova razão da nova máquina da realidade. e só eu o renego.ÁREA BRANCA / 17 Escrevo como um animal. nem os pomos leves da pata dos felinos. ou no mosaico molhado terei de aperfeiçoar a minha pegada. Só alguns raros escribas. Depois de tantos séculos posso afirmar que a escrita é uma escravidão dura. há tanto tempo. Como tem sido penoso esse gesto. é uma manufactura triste. como os desenhadores de máquinas. O tempo abstracto vai-se tomando impensável à medida que apreendo os pormenores da realidade. São tão inacessíveis que só com amargura lhes toco. Com vinhetas de malvas rubras entre riscos de ouro e pinceladas. Admiro as horas naturais sobretudo o poente ilustrado. A que passa lembra-se de mim. As molduras dos animais estão colocadas demasiado alto. O meu pensamento é invisível debaixo dos arcos escuros. quando me extasiei com a Natureza enriquecida pelas interpretações estranhas. Entro no túnel do reconhecimento. Por olhos que mastigam. Tudo se fundamenta na existência das coisas. Pelos dedos onde descansa a minha medula encostada. Janeiro 77 68 69 . Vejo cores e vultos que me entristecem. Crio este encadeamento de metáforas que se harmonizam com as minhas obsessões. Eu mesma analiso a minha biografia sincera. Até que um passante desfere o golpe e corta a seda dos raios. Tenho mais prazer em esperar a madrugada como um corpo inerte do que em seguir tresloucada o rasto da destruição. Um pomo do tamanho da abóbada celeste. O pavão que é o sol no Ocaso caminha com a majestade dos sonhos. Passo a tarde com o cérebro inclinado na direcção da mão. Todas as metáforas de alimentos me saciam.ÁREA BRANCA / 34 Roço a minha testa pela luz poente que posso sorver. Vai chegar a manhã espessa cheia de lodo leve para apagar os vestígios da posição das coisas. Estampa na minha cara o seu leque negro. A que se fundamenta na existência da minha mesma parte ausente. Um olhar saudoso percorre as últimas formas. A vida cruel nas áreas contaminadas pela ininteligibilidade. Trepadeiras confusas parecem muros. Enquanto vivo gozo a aparência de cachos de glicínias roxas enroscadas nas colunas sem matéria. os aromas. parte de mim entrega-se a essa aparição. Março 77 70 71 . Que é uma gruta. Uma arena onde os acrobatas viveriam com exuberância. Em cima volteiam mariposas por dentro de um vapor. A mesma fuga leva os insectos entre um ponto claro e outro. Os versos que ainda amarfanho. Na casa transparente a metade translúcida aumenta esse esplendor em silêncio. Estas visões evitam que a casa se destrua. Sou o sujeito que imagina o pensamento dessa figura comparada a uma ruína. Abençoo o meu texto que não me despreza. o vapor que oscila no fim da queda de um fragmento. Segue-me a voz maviosa que orienta os cegos. O arame atravessa já as minhas órbitas.ÁREA BRANCA / 35 ÁREA BRANCA / 37 Quando rebenta a flor nova no alpendre da casa. Março 77 Embrenho-me na área branca da noite. A porta que dá para o caos. O hálito da garganta que a abertura da janela expele do interior de um halo. Os elementos brancos. As janelas foram escavadas nas faces. Reparo que me torno homónima do poema. Terá a vida própria de um conceito. A que floresce com o vulto da primavera há-de deteriorar-se na penumbra que vai ruir. Encontro na casa o tema da despossuição e a agonia. A pobreza antiga com que o corpo cai para uma vala. me reconhecer. Aceito coroas para depor sobre mim. A fragrância delas leva-me a imaginar poemas em branco. Tocará na meninge como num cofre. Todas as coisas comunicam entre si a totalidade das suas formas. quando as figuras austeras da Natureza perseguem os mortais. vou interromper o que escrevo. ao fundo. hei-de ajoelhar no soalho. esperar ansiosa a atracção que a insónia desse vulto há-de exercer sobre mim. Vejo assomar a natureza nua. Rodo até à tontura da morte. Querem ser reais. Se essa figura imponente. onde já não é a silhueta volúvel enovelada pelo vento. Que me poise a marca incandescente na testa. Preso apenas às pérolas que tinem nas orelhas. Fevereiro 77 Quando eu vir vaguear por dentro da casa o abeto que cresceu no bosque. Vem dos recantos. Dante deixou-nos resvalar. A mão que vai surgir do abeto apontará para mim. Querem confirmar a sua configuração. Vai para diante da minha face. Depois de percorrer um longo encadeamento de sílabas sou outra. Torturo-me até à alegria. Com lentidão arrasta a forma táctil até à passagem do poema. como se o poema 72 73 . quando se aproximam. Deixo os pés do abeto empurrar com a biqueira violetas. com os cânones clássicos. É-o. as cadeias de ouro dos rins. a árvore. Deixar que as unhas longas da árvore passem entre mim e o imo dos quartos interiores da casa. Tenho de despir as tiras de brocado que envolvem as veias.ÁREA BRANCA / 39 fosse uma escada. Sou eu que me vergo ao domínio. à janela. Esse léxico que possuo permanentemente para ter acesso ao fio áspero que liga pela verosimilhança casas. verde. Nas esferas dos jacarandás que borbotam de flores e folhas. areia. Prédios em que o alumínio fulge. Pracetas onde estala o granito. Mudo a cena para me alegrar com a vida das curvas dos ramos entre a frieza urbana. ruas. Fio solto. Nas avenidas despovoadas de visões vegetais sinto-me desesperada a olhar as paredes de cimento lívido. Rosinhas claras e minúsculas nas sebes. Aquilo que o faz perturbar-se. A vista do princípio do meu conhecimento poisa sobre um amálgama verde.ÁREA BRANCA / 55 Penso a minha vida no âmago das imagens. Talvez eu verseje por esta razão. Nesse alpendre de buganvília. Fragrâncias e adejos das pétalas com que me extasiei. Maio 77 74 75 . monumentos. Estas flores que florescem simultaneamente na primavera e se acumulam nos parques cativam-me. Materiais fortes que duram nos leitos da Natureza. do alto para a sofreguidão do fosso. As vivências que guardo ciosamente para ampliar as minhas visões. Só no íntimo das memórias trago a consolação. A mudança dos dados e dos factos através do quotidiano recente. barbacãs. A primeira nascença sobre terra. Somo-as a todas as outras com que sonho. cinzas. A nesga da memória vital. A resistência à entrada no mundo que surgiu depois da minha nascença entre dons naturais. A minha resistência à morte do pensamento. Crio o hábito de possuir os elementos naturais que vão comigo para as jornadas interiores através das ruas. Os nomes por que se repartiu a bela verdura. ANJO ENLOUQUECIDO PELO TEMPO O ANJO MARINHO Esmaga-Te um grande círculo que eram as ruas. Vi-Te ao longe tactear e correr. Despedi-me a olhar o Teu pânico. Da varanda vi as ruas que eram sórdidas. Naquela luz de verão Tu estavas nítido. Os despojos das flores roxas emaranhados nos Teus pés no alcatrão escuro esvoaçavam. Automóveis esbatiam-Te a figura. Qualquer eco ao partires havia de morrer. Pedras tornavam as ruas uma paisagem onde cabeceavas. Tu partias arrastado pelo Tempo. Assim como eu ficava a ver-Te ao longe entre as folhas. Grandes copas verdes todas de flores minúsculas escondem o resto dos Teus movimentos. Dócil ante o destino eu imagino-Te. Tu eras frágil como as minhas sílabas vagarosas. O pensamento às vezes torna-se material e tórrido. E às vezes nas imagens da ausência nada é frio. Ou outras associações nascem. Estou sem Ti percorrida por esse fogo. As frases cálidas que ainda ecoam. As faúlhas azuis e a baba do verdadeiro fogo. Expectante e em cinza. Não me reconheces já. Eu transfiro o meu poder para a cinza. É encantatória. Suave e com um cinzento de rolas. Certos dias a poeira brilha. Tu ainda podes aturdir-me. Soprar com lentidão para dentro do mar. Até que eu me deixe afastar. 76 77 ANJO DE PAPEL OU DE ÁGUA? ANJO DE OLHAR FIXO Se Tu não voltares estes poemas hão-de tornar-se trágicos. O texto vai revelar a cicatriz de seda e os laivos claros do meu choro. A contra-coração vou reescrevê-los. Hei-de encontrar aqui uma placa lisa para arrastar as letras até à regueira turva. A imagem da água que era a de uma simbiose entre Ti e a minha ideia de Ti vai enegrecer. A podridão há-de macerar o poema. Vou ser eu o autor a quem a agonia devora juntamente com um livro inerte. Quando Tu não voltares eu saberei ler como um iluminado. Os significados metafóricos levá-los-ei até à ironia. A realidade levantá-la-ei dessa valeta. Vai fascinar-me o torvelinho mortal em que mesmo os poemas sem dor sempre se desfazem. Quanto mais estes em que se ostenta o Amor em páginas ásperas até eu perder a noção de estar presente. Talvez o meu tempo se consuma através da alucinação. O velame afastado. O lamber da espuma. O chapinhar das raízes pequeníssimas que sustêm as crianças. E até o ritmo duro e inabitualmente forte de um petroleiro que passa. Tudo isto que está fixo na paisagem. É estranho estar a ver tudo através de uma perspectiva alheia. Ver como tu. Triângulos brancos. Depois proas oxidadas e escuras e neblina rala. Recortar na totalidade uma forma geométrica. Ver aí. Inebriar o olhar de fixidez. O que já conheço agora tem outro ângulo de visão. O apogeu no mar. Gramíneas e estampas de miosótis. Tudo o que é branco se sintetiza. Cada vez mais o real se diversifica. Tu justificas esta cisão. O Teu nome marca a imagem. Não me vi nunca tão verdadeira. Através da barreira enorme do tojo que esconde o mar. É uma provação. O acesso a Ti. Esse óleo azul é pastoso. Os tentáculos das crianças 78 79 que sobrevivem levam-nas até ao fim. Eu estou no ponto onde escolhi ver-te. Contorno o meu discurso subtilmente. Não quero reconhecer nada nem possuir. Entrego-me. GOTA DE ÁGUA A gota de água cai na corola. Essa queda também me movimenta. Assisto a um condão estranho. Ser gota e ser figura. Não ter ainda caído no caos como nos outros poemas. Ver a corola no meio do buxo. O buxo no meio do parque. Guardo ciosamente a proporção. É o que resta da inteligência. Desfo lha-te tu flor. Ao morrer em ti nasce sob ti. Para que eu te apreenda. An do afastada das coisas. Mas sou visí vel para elas. Aquela pálpebra vê -me. Tem os signos incrustados no arb usto e o mais simples é a brancu ra. Ainda sou arguta. Incito a escri ta a provir das palavras. Como é pungente manter-me no ardor das figuras. Por elas renunciei à pará frase. Possa a arte gráfica ilu minar-me no sofrimento da criação. 80 81 Um andar alongado de colina para colina. Tudo o que é exterior e visível como o corpo atrai-os. Uma carta cai no matagal como um pássaro. Um espelho para reproduzir as mutações da vida. O não ser caçadora dá-me um sentido conciso da realidade. Fulgurações que des lizam no ritmo dos passos. O que nos fulmina é belo como a última queda depois de um salto livre entre as montanhas. Eu transcrevo-te mas não vivo no poema. Uma aprendizagem exa cta. das pequenas orelhas. Vou existir onde jamais vivi. Mostra o acetinado do pêlo em chispas. 82 83 .LINCE AS CARTAS Aprendendo a mímica do lince podes amar a morte. pontiagudo. Tenho um limite onde estou e nada está. Apreender um desenho mais profundo do que o do prateado do vulto. Eles não me vêem até ao âmago. As cartas caem diante da avidez de cães. A sua silhueta articula-se como um o bjecto artificial. Não temas o fim como os outros seres vivos que amam a própria morte. Desenhar o sombre ado dos olhos fitos. Morro na mancha do papel. Esperas os sinais da minha existência. Recorda os ângu los com maior espessura do que numa superfície de mármore. Nem os belíssimos perdigueiros me sentirão passar aqui. Na morte há um perfil especial. Seguir o contorno pardo. Resíduo do fim das paisagens. Palavra flutuante sobre o rochedo invisível a meio do rio. 85 . Ecos de silêncios. O sabor suave do mar quando se torna um gás expansivo da terra até ao zénite. Distância sem dese jo ou repulsa. O contorno mordido. O nunca. Ou os poentes verde ma rinho debaixo de poentes paralelos. As vozes. Aquele nevoeiro transparente que navega numa taça. Marés como um pêndulo. Também golfinhos entre nuvens e dunas de sal. Já nem é uma imagem escura — o sinal das duas faces. O farol que se tornou apenas um vocá bulo. Tudo o que é visto à beira do estrado onde estava inanimada a infância. O profun do. Silêncio sem sentido.ESTUÁRIO DE UM TEJO Sempre que as nuvens passam passa a memória do silvo dos barcos. Que vão diluir-se eter namente além na literatura. Bebida acre como um filtro de circe. A costa atlântica depois da boca e da garganta de água. O vago. E na outra margem um país profano com árvores que dão pérolas e arti 84 fício. Peixes de vapor e pássaros pétreos atrás de cargueiros vindos de uma baía de liliput. Às vezes chuva imóvel como um pano sem vento. Os pinheiros verti cais rígidos perante o in finito. A pluma poética recorta um precipício. Hora a hora descrevo a Natu reza indómita e mortífera. Um descante longín quo no lugar do eco. Ausên cia fiel. É um acto do meu delírio. Canção das ondas que não ecoa na paisagem igual. Sempre a mesma secura como a de um líquido que não está delimitado. Água que é água. Estes pinhais de bronze na primavera na beira de água móvel.GRAFICOLÍQUIDO ALBUFEIRA I Tudo na minha biografia a todo o momento se repete. Exponho -me. In color e só. O nada que há em tudo. Ela própria está abandonada. Salvo-me. 86 87 . As rochas rugo sas são o centro da har monia. A minha imaginação não é sinistra. Estou a passar nas escarpas. A humidade que se expande. Une o olhar do solo raso ao olhar sobre a altura. Noutro tempo foi numa aresta verde. Coisas pensáveis. As que já estiveram dispersas nos caracteres tipográficos. 88 89 . Onde as crianças diminuirão. Ouvem-se as suas palav ras convergindo para o rio das sonoridades. Vistas pela visão que cria as visões. Por vezes ve mo-nos nas brenhas junto ao mar. Fragmentadas pelo comércio dos livros. Nas figueiras de Ogygia cantando. Muda e depois é igual. O li mite no interior do pensamento. Além os pequenos pardais negam-no. Depois a água estígia para elas se afo garem na beleza. Na mancha de erva verde navegável. Todos os anos estou atenta. A filosofia fora dos contornos. Este poema afirma e recorda. Sonhadas depois de vivas. O que tem um assobio tranquilo e eterno. Por Er. Vem da viagem de Ulisses. O mesmo que vive na minha vida. Um cantor. Até serem um ponto.PARQUE INFANTIL ER As imagens dentro das imagens. Não os contemplo. Sobre um fio da er va. Segue-me com o seu amor ocul to. Oiço-o com a mesma penetra ção com que já foi ouvido na Natureza. Esta ave chama por mim como eu. Por fora do coração voa a asa negra do melro. Está a estender as linhas brancas do seu rasto. O vento é copioso quando escorre em turbilhão pela escarpa. No fim do atalho ela é a ideia mais súbita e mais clara que eu concebo. Praia rasa a seara em tracejado alto. Quando a víbora canta aluci nada pelo clarão.ALBUFEIRA II. Estremece quando as árvores a prendem. Talvez sedosa se se pudesse tocar com a polpa dos dedos o alto monte. Quando se afasta do mar sereno brilha sobre as terras agitadas. No halo mais longínquo uma serpente brilha como um relâmpago. 90 91 . SERPENTOMAQUIA SÚBITA E CLARA A terra acaba numa linha de argila. Água humilde e o trigo magnífico. No rumor da fila de sobreiros sobre o horizonte. As formigas vivem a sua existência eterna. A seara estreme ce vista na perspectiva do mar que também oscila. Agora é alvinitente. A lua poucas vezes tem manchado este rectângulo branco. A leveza do mar é a de uma aura estendida sobre as coisas que vão reunir-se na existência e na inexistência. Os pássaros incansáveis passam sobre a seara quie ta e os sobreiros que rodam. Todas as formas são asas que batem em todo o espaço. Na passagem dos invernos agitados por estas cores ruivas dissemos algo. O início do silêncio do tojo. Abismos verdes que se tornam negros. Eco que se divide em par tículas. Mar de outra água que ondula sem lugar. Ainda está vivo o minuto que impede que morra sem raízes cada minuto de hoje. Não significa agora mais o fim do inverno do que o outro verão descoberto no esquecimento. Fora de cada um de nós o oculto vivido é uma ima gem errante no nosso tempo.VEM NOITE ARTE-VIDA Vem noite templo dos sons escondidos entre formas cada vez mais insignificantes. Daquelas árvores estavam a cair hoje as palavras fugazes e é assim figurado como frutos que eu acolho o passado. Caos ordenado por ouvidos que se ine briam desde o anoitecer. Não posso também mergulhar a minha deambulação de acaso no vazio das imagens! Serão as folhas ocres as bocas que falaram ainda vivas. Aqui há vozes fantásticas que são de ambos. O som do relâmpago do insecto. As folhas caem dupla 92 93 . POÉTICA POSTÚLTIMA A glicínia é amada vorazmente pela abelha. Estas são árvores que falam da sua memória própria. Des crever a libidinosa abelha minha amante que pela glicí nia minha figura me atraiçoa. Fascina-me também a deli cada suspensão daqueles cachos. Num círculo fez-se o espaço do silêncio.mente na sua queda de antes e na cascata harmónica. 94 95 . No centro o castanho sedoso vo látil transmuta-se num ponto lilás na escadaria lilás. Por mim amar a glicínia com a sua amante alada é dar-me a este transe devorador mágico. Os últimos voos das mensageiras antes do sonho. mergulhas e sem equívoco revês o peixe que passa com a onda possível a espraiar-se. E trilos que formam musicalmente a noite. VÊS UM PEIXE? Eu saúdo a laranjeira iluminada pelo sol apenas ela. Chegas à beira do tanque. O fim dos raios no vértice de espelhos.PROGRAMÁTICA LEITOR. O recanto apenas seu onde recebe esfericamente o sol. Haver frutos que são reflexos. Pões o joelho gasto na deslocada pedra antiga. Diverso azul que te perturba lembrado da visão pueril! Se ajoelhas no meio da vida inteira vês sinuosamente percorrer o azul a soma das vidas onde te encerras. As esplendorosas laranjas mais altas voadoras assim do que as andorinhas pretas que volteiam. 96 97 . tecido leve que soerguido revela os quintais sem arte. Pelos dedos feitas linhas e sílabas são dela o retrato fiel e eterno. na aura da janela vívida. Do barro frio. encerra e de esplendor cerca da ceramista e poeta o rosto. a ceramista pôde verter o barro em verbo. as serras longínquas não verídicas esbatidas no vento de sempre.J. que uma vez se vive outra se revive. Cena também sempiterna. No lambril branco da janela bate a cortina franzida presa. agora não vivo. de que se desprende a inteira alegoria da cerâmica e poesia. do odor das formas e da substância e ideia do que moldava. deixou delineada a ceramista a sua falsa e verdadeira imagem. 98 99 .MEUS ECOS DE LUIZA N. É o que vejo e penso nesta casa mortuária que se abre branqueada para o pátio. Aí. onde a luz se coa e ecoa e uma branca poalha espessa trazida por ventos fortes nos isola. oficiadas a contraluz intensa outrora na minha casa viva que revivo. nem morte só. O podador escolhe assim a aparência da obra que devagar executa. A miragem do raio de luz hexagonal. Não há um estalido simples. 1985 O relógio polícromo coroado pela estatueta de um trovador exangue. É inevitável que tudo isto me crie nostalgia. Lugar no tempo. O recanto e a aresta bafejados pela poeira. os troncos curvos para os pardais escuros e ocultos. a folha de fuligem. a flor.O PODADOR O SÍTIO Devagar a tesoura poda o arbusto tornando-o de realidade em desejo da forma. Devagar os ramos caem e os que o podador despreza vão entrar na génese da nova terra. na ordem e no capricho da folhagem para sempre jovem e ágil. 100 101 . corte só. Carcavelos. O que me atrai. a morte daqueles ramos estendidos pelo gradeamento a viver naturalmente entretanto. Separando nomes. Luz que tem a forma de tubos de órgão. Mas profusa. fruto do texto passageiro. Pelos seus ouvidos atentos aos sopros. Erro inocente. para viver parcimoniosamente na literatura. Tem a linha própria oblíqua do brilho metálico. Olhar para as palavras. Paradoxo causado pela Ode. Talvez o terror perante as mutações da Matéria. Água significa ave isto é a forma de exprimir a parte mínima das essências. Isto é. o ouro. Um equívoco pictográfico. 102 103 . Torna-se absurdo nesse halo o sentimento que mais inominadamente me acompanha. Frase. Diminuir a área da imagem.UM RAIO DE SOL ESTÁ A CAIR NA ABSIDE DA SÉ DE LISBOA QUOD NIHIL SCITUR Como a trombeta que na Sé tocava Bruckner este raio de sol metaforicamente é um arauto. Pela Presença. Dividir o abstracto em fotões. Onde se encostam as sombras que são distintas da Sombra. O claro-escuro que se divide em espaldares. A luz terrível e eufórica da Queda. Nomear. Ver o vazio a preencher-se linearmente. as mãos claras no colo. As páginas balouçavam do mesmo modo que as rosas porque ao começar a tarde nos dias de Verão brisas e vapores estendem-se desde o mar até às margens floridas. Ficas a ler comprazida diante das rosas silhueta que vislumbrei. permanentes povoadores da costa. a exaltação a que nos levava. No teu banco adornado por festões de rosas trepadeiras afastas os olhos do livro não absorta mas para sempre atraída por inúmeras imagens. os cabelos despojados do brilho das cabeleiras soltas. compus e reanimei. que regougava nas esquinas da casa à noite e nas manhãs ansiosas em que voltava a aragem matinal deixava irremediavelmente os frutos a juncar a terra e os atalhos.A CASA IMAGEM MINHA Sempre se conheceu o vento de Junho. 104 105 . Tinhas o perfil marcado cruamente pela luz. nessa orla. E para lamentar dizíamos as palavras usuais e alguns suspiros próprios da insónia de ouvir o vento. mas juvenis e sacudidos no início da tarde com alegria. E sempre se lamentaram as velhas pancadas do vento. no seu ritmo marítimo. AUTO-RETRATO QUANDO BANHISTA NATUREZA MORTA COM LOUVADEUS As emoções antigas facilmente se transferem de um objecto para outro objecto como se o próprio sujeito mudasse de passado e de futuro. nuvens terrestres. um santo mártir. e nada nunca lhe sugeriu a praia. e a pequena criatura. Perdera o rumo sobre a película cintilante de água no riacho parado. Mas ainda pensa: porque não confundir para sempre os objectos próximos nesta emoção simples e igual? Foi o último hóspede a sentar-se no topo da mesa. Não por outro sentimento senão o louvor da harmonia vasta. com o belo corpo magro arquejante. já depois do martírio. o contorno dos varões negros forjados. que viera partilhar a nossa mesa. As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas por algum vento. Mais tarde pensou que o grito profundo era o de alguém que se debruçava num terraço quando habitualmente anoitecia. ainda segundo o seu nome. lembrava. Tal como poisou junto de nós. depois de ter sido banida das águas foi banida da terra. Viu o perfil contemplativo. Enquanto meditávamos. Alguém pegou no volúvel alado corpo morto abandonado sem nexo na brancura da toalha — que maculava — e o atirou para qualquer arbusto raro que o poeta ainda pôde fotografar. a morte sobreveio. 106 107 . Ela quando ainda personificava a infância ao entrar no mar outrora gritava alto. Nas outras horas o mar era visível. Quando as pás do moinho de vento paravam na penumbra ouvia-se melhor o mar. E na penumbra e no tempo das marés de outono. mais o víamos consubstanciado. Os sons nocturnos e diurnos fundem-se.ANALOGIA SILENCIOSA MOINHO-MAR Emocionava-me a analogia silenciosa do tumulto do comboio e do cortejo das nuvens. 108 109 . Imagino a passagem monocórdica e invisível dos ventos que desfazem. No verão. uivam e arrastam. ouvia-se um seu rumor. depois de vaguear em volta do moinho. no crepúsculo vermelho. Víamo-lo volátil sobre as árvores embora o soubéssemos um ser rasteiro e térreo. Mas vinha o som quando se ia o vento. Assim como os volumes e os sulcos no céu eram perfeitas formas celestes que obsessivamente me lembravam os caminhos ao rés da terra. Via-os e ouvia-os segundo o princípio de identidade entre a natureza superior e inferior. depois de ter girado até à imobilidade o rodízio das pás. AS GALINHAS MEIO-DIA Em versos obscurecidos pelo desejo de mudar memórias e factos lembrei o canto dos pássaros. os alegres cacarejos ao meio-dia outrora. antes do primeiro verso. 110 111 . É hoje mais fácil distinguir o interior e o exterior da casa do que quando a única onda de luz liquefeita preenchia os espaços e os pormenores comuns no sítio onde vivíamos imersos numa só qualidade da matéria viva. quando ainda o tempo se identificava com lugares e idade. Agora que não há mais aproximação nem distância. voltam no fim do ciclo para o regresso de mim mesma. o gato negro. 112 113 . tão verde-cinza e tenras como esses coentros que na sombra rescendem. solitária. entontecia os seres que a rodeavam para escutar a paz do seu arrulho — os seres tão diversos de três reinos. Tempos depois os hibiscos vieram decalcar a silhueta sobre velhas alfombras. Quando decaía o sol da tarde. dos próximos pinheiros exilada.A ROLA OS COENTROS O cheiro acre da penugem nova da jovem rola fiel. a pedra e eu no mundo. os arbustos meãos multicolores deixavam alongar-se esguias as copas jazentes. numa só minha pulsação! Sê breve. e agora na fieira das memórias trazidas até hoje para a purificação. Só as escarlates rosas que viam o portão entreabrir-se acompanhem a evocação. aceitavam escassamente a luz. 114 115 . eterna matéria. Enrubesce. na estrada. neste poema. Floresce e seca. Na hora do zénite do sol passava também a carroça do vendedor de petróleo.QUARTO INTERIOR MNEMÓNICA Na cómoda algumas gavetas com os caprichosos guinchos da madeira não só entoavam sons como aspergiam o ar de antiquíssima alfazema. gemiam até estacarem abertas e exalarem por fim a plena onda de aroma. Moviam-se devagar para o regaço. Ao ressoar o zunido das rodas da carroça. ramo de rosas miúdas escarlates que tomba sobre o arco do portão. semelhança absoluta. para si próprios são os que no baile real no povoado me imprimiram memórias. verso de ouro. Nem os que comigo bailam. perífrase vã. ainda mais íntima.VERSO VÃO BEIRA DA ESTRADA Onda de sol. mistura de brilhos. a consciência extensa como o céu. Ou. Extasiar-me. por esta fusão. Os que tocam adufe na beira da estrada não reconhecem que a estrada o adufe e o seu tocar estão em alguma parte da minha vida. Respirar na quebra da onda. Na água. antes. 116 117 . uma braçada lenta até ao limite de mim. O galaico falar que ciciam está neste cômputo final irreconhecível porque é um poema feito de versos na minha língua. o corpo de tudo. As copadas árvores estavam quietas.POESIA NÍTIDA PÃO A atenção dói quando os objectos embora inteiros se dividem ou parcialmente emergem de dentro da sua própria imagem. actuais e vivos. que me dava assim a sua essência. A branca flor do pão lêvedo todas as manhãs se abria sobre a mesa. Um estranho dirá que esfumados estão nas diferentes qualidades do ser. Um próximo parente viu que nas marcas do tempo se confundiram os diversos sinais do mesmo tempo. nas frias repetidas matinas — e agora nelas percebe-se a nitidez que forma os espectros. Porque a harmonia do largo mar calmo contra a costa alcantilada ou a rasa ria híbrida e o terreno interior dos verdes brumosos — que de o serem são puros brancos — é a mesma suave união de duas faces da escura côdea e do miolo alvo. 118 119 . Era a razão do meu viver nesse tempo na pátria galega. Só em mim a atenção é um modo de doer. e o que hoje dói flui como um bálsamo. TÂMARA O SOPRO Pura circunstância trazerem-me num cesto levíssimo as tâmaras. Com os olhos sou ávida. 120 121 . através da vida. Fazer os poemas. é pegar em meus gritos emudecidos para que fiquem. O meu sopro está neles. em papéis. Os meus poemas reunidos no seu todo são o meu som. não está a boca que os soou. Com a boca peso três sílabas. melódicos. Com as mãos repouso e saboreio os frutos translúcidos. única e própria. podia hesitar-se entre o modelo e as sombras de Platão. dos entes naturais aos transcendentes. a imagem até ao seu século do real múltiplo era una. E o poeta pôde resistir a esta perda das formas consagradas e consubstanciais das coisas que ainda ecoam a Criação como o eco cósmico. segundo disse Baudelaire. agora as flores malignas podem reproduzir-se no mundo nítidas. sempre. iguais.CANTO DAS IMAGENS Ao princípio era só uma em cada olhar após a grande divisão das águas e mesmo. Ao crítico e amante da Pintura as dúbias imagens decerto deram a cada rosto um só outro rosto. E de repente. a prata traziam a incerteza aos traços. cada uma. nos olhos do poeta cada coisa reproduziu a imagem inumeradamente. idênticas. e cada cópia fotográfica muda na liminarmente máxima diferença. a cada paisagem uma só tela. e a ideia decaíra no banal prolixo. Antes. Dementes chamou este cantor aos fotogramas que roubavam à alma a unicidade e deram aos olhos frívolos as figuras plurais. Já os vidros. 122 e cada imagem cria o seu espírito. singulares. supérfluas. poucas. Só uma esta vermelha afelandra embora as suas irmãs se lhe assemelhem e desassemelhem. dispersivas. Era somente uma a imagem mística. a água. 30/10/93 123 . O concreto pulsava neste ritmo das coisas parcas. Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire e cada coisa vibra no seu mito. como se os olhos que nos deu a Natureza nos fossem infiéis. de mais se derrama sobre mim a Música e de mais por mim o Verbo se fez carne. entoando um canto de epifania. O início da voz ou o do livro foi o princípio que gerou a Terra. desde o bíblico ao franciscano canto e aos poemas a esmo dos poetas. retorno ao meu monólogo em que apenas 124 tenho como interlocutor o tempo. 30/11/93 125 . De todos estes cantos o início me procurou. Depois de a Voz ter o dom da cosmogénese todos os cantos puderam ser cantados. Escritas.CANTO DO CANTO É fácil receber o primeiro verso como uma nascente aberta pelos sons que instilam a emoção nos vocábulos e passam na língua e unhas como sopros. A melodia por vezes concita as lágrimas secas do prazer subtil. é ouvido. as palavras são palpáveis. concha acústica que te apercebes da ténue melodia que retoma a curva da sua frase. soando. Mas são de mais pródigas as palavras. como o instrumento musical. Ó bendita abóbada. As notas do piano cantam o Som contam o ritmo que reparte o Tempo e o número ama para sempre o Ritmo. como no exacto agora os Musicais Momentos schubertianos de novo me arrebatam. Possuída do som renovo os versos que outrora escrevi por amor às coisas. agora e aqui no presente sem fim da minha orelha frangente como folha. longe dos objectos mas dizendo deles o afecto que cada um nos lega e que é igual à dádiva dos sons. mnemónicas para reconhecer-me. vejo as bagas rolarem na ressaca e as pegadas perderem-se no encalço. O meu lar funda-se na ideia do Paraíso perdido tão literária onde se chega nesta vida infinda indo pelo atalho a par e passo. Cumpro por meus pés infirmes a peregrinação que me foi mandada por ter perdido a Terra e sentir saudade até ao grande encontro das estrelas negras. Do amor por que os astros giram aceito o testemunho em Dante e do amor de corpo e alma patentes amei algum leitor mas tarda o uno. Sou a que sente a paisagem como uma casa duradoura e frágil e nela envolvo os ombros até a névoa chegar e me deixar ao abandono. do canto ao silêncio. 126 127 . Também os sentimentos são percursos que me arrastam entre a alegria e a dor e. os meus passos levaram-me ao escutar das outras vozes.CANTO DOS MEUS PÉS Tamarindos encheram o meu caminho tão cedo junto ao mar em confusão. as siglas pessoais da arte. 3/11/93 Todos os meus poemas foram escritos deambulando no horto em que nasci e depois pela virtude agrícola medram na memória instante a instante. Esse adubar do instante vivo em pequenos vislumbres de memórias. ainda. 128 Hoje a bica refresca a água do tanque. ouvi rodarem as roldanas do cenário. olhar dos melros. No entanto algures. A água escorre da bica com ruído. A tranquila tarde enche as vidraças. os melros espiam-me na latada seca. em que as palavras representavam a cena da pintura da paisagem num telão constantemente vário. Só o chá me traz a minha tarde. A Natureza copia esta pintura do fim de tarde que para mim pintei. As palavras movem-se e repõem no seu imóvel eixo de rotação o espaço onde esta mesa de verga gira nas grandes nebulosas. num poema. A minha mão e a chávena nacarada — se eu temperar o lirismo com a ironia — são. e as vidraças devagar escurecem. É assim que muitas vezes o chá evoca: a minha mão de pedra. os melros descem da latada para o chão. 15/11/93 129 . som leve da bica.CANTO DA CHÁVENA DE CHÁ Poisamos as mãos junto da chávena sem saber que a porcelana e o osso são formas próximas da mesma substância. familiares dos pterossáurios. Como se eu merecesse esta paisagem a Natureza dá-me o que lhe dei. com a chávena e a minha mão que são o mesmo pedaço de calcário. tarde serena. retribui-me os poemas que eu lhe fiz de novo dando-me os meus versos ao vivo. E é tão vária e imprecisa a vida que não pode ficar toda contida em palavras que apenas a resumem. 20/2/94 Horácio enganou-se ao contar os longos anos da vida breve vivida. quotidianos. No sexto dia pára. O meu relógio de caixa alta. Só os meus imensos dias jamais cabem nos versos escritos ou ditos. Nunca a Arte mais se demorou do que estas mãos que são frugais: o pouco pão e a água abundam nos muitos anos longos de penúria. Os bens que entesourei excedem 130 131 . se a vida é longa e breve soma-lhe ainda a mudez e a cegueira e dá tu aos versos a medida inteira. Cronos. e se somarmos as horas dos sentidos é curta a memória e alonga-se o desejo. os silêncios. O periquito que ganhou a plumagem há uma semana. Ó morte. é também um ser de pulso escasso e fugaz. Os afectos. e espera que eu de novo lhe ofereça o seu bafo.CANTO DA ARTE BREVE a Arte que quisesse neles contentar-se. e morre mal concebe as cores no seu corpo. os sinais são a diversa linguagem dos meus dias e o corpo soma a sua soma em vida. que como um animal ferino me segue. é apenas breve. sem vista. verme. que sabes que eu outrora já fui muda.EU CANTO A CHUVA. porque não hei-de vestir-me com a túnica da chuva. que todos os filhos levam em si. Não era Eurídice aquela que o seguia mas a sua face figurada pelos olhos de Orfeu ainda capazes de criar o modelo e a imagem. O cheiro da flor de laranja perfumou esta água. sendo depois punido pelos Anjos. não-gerada e ausente. ó laborioso? 25/5/94 Pendurou no salgueiro a cítara. O VERME CANTO DE ORFEU Toda a chuva a cair me torna grata por ela e pela que tem caído sobre mim nos anos sem tacto. enquanto outros Anjos doces coroavam aquele Filho que também levara na memória dos olhos a figura da Mãe. como és sinuoso nela. Depois da morte ela ainda vivia pronta para o prender em espelhos dúplices e ele que amava nela o corpo. e eu que devo fazer na pura terra contigo. a linha dos dedos. sem olfacto. o suor. vivente. onde esta lama doce e insonora calidamente me vista e me sepulte? Verme. que constróis o altar da chuva com os teus pequenos montículos e covas e sob o córtex da nogueira velha escondeste a tua vida. Foi punido por Anjos ciosos da sua ciência da Origem. Aqui. como oferenda que vai ser recolhida pelas mãos de uma criança que ame os dons naturais. o aroma. folhas e as flores perdidas. Caminhou sempre para o futuro mesmo olhando para trás na memória e por esse futuro foi punido pois levaria consigo a imagem viva. A TERRA. para sempre ascendida ao Tempo do Espaço depois do futuro. lado a lado. caminhou diante dos seus passos. que me envolva como árvores ou um corpo humano vivo e natural? Dormir. 133 132 . Um terrível canto de lamento humano depois soou: «Che faró senza Euridice?». gravetos. Depois. bebo-a misturada com os resíduos que o vento traz do fundo do pomar. mostra-me o que mais sabes da chuva. para a ablução dos pés de um poeta que antes fora nómada. a alma. levou-a. uma perdida imagem. medo maior foi a presença e a ausência. 11/11/93 EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS Sois: os sons roucos. poisais no peitoril. como os caídos anjos.com o som das vogais mais dolorosas. sinto-vos. vindes ao rés da terra. degustaste o figo úbere. E um dia. O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem. da infância em que por vós chorava encostada a um rosto. ó escuridão no poço. no alto da catedral de Gaudí. ó rastejar de víboras nos caniços. a alegria e as dores de outros que não eu. Sois muito antigos e jovens. Depois. como ventos baixos. Que saudade eu tenho. Mas o sábio Orfeu deixou a lira somente ser tocada pelo vento quando o canto perseguia a imagem. 134 135 . a espera vã. chorei de horror da Queda. como eu. ó vespa que. de bruços na amurada. se embebia de luz.EPÍSTOLA PARA UM CARAMANCHÃO COBERTO POR MADRESSILVA MEMORANDO. Solitário. o gato era um corpo penando a dualidade de ser e de não ser. O desterrado Ovídio mandara-me aquela ave para me lembrar Alcíone por amor transformada. a olhar com amor o mar. com o frio da primavera dácia. Vi-o. A sombra de alguém que se sentasse junto aos vasos estendia a mão nítida para uma flor de sombra. 136 137 . e havia uma espiral de sombras claras. só ela. Dançasse uma criança em volta do pequeno lago no centro. ESTANDO NO DELTA DO DANÚBIO Nesse caramanchão que a madressilva cobriu sempre estavam mais sombras do que corpos ou coisas. no exílio. depois. na própria sombra. Fechei os olhos. por ser de sombra se quebrava em ângulo. depois voltou a terra. Não porque todos não estivéssemos em vida ali mas porque a madressilva. fitar a água. que espantava as aves silvestres das margens. perto. e vi-me a mim. linha de sombra oblíqua. e ao abri-los um imenso voo planava sobre o barco. Descemos o Danúbio num velho barco a motor ruidoso. mais duas aves cruzaram o horizonte. Até a pá do jardineiro. Quando. uvas e figos com que os dois camponeses efémeros me pagaram a pouca água real que quebrara o enigma das imagens. a enxada. duas figuras curvas. como imagem vem atrás de imagem. ou os ouvi falar tão só pedindo água para a sua sede. à tarde. frutos da estação. — enfim falaram. E os ruídos mortos pelo gume da luz. a contraluz. abri a porta diante do Sol universal límpido. compunham uma imagem silenciosa de roçadores que mondavam cerce. de fora da janela. como sempre na casa de Verão. Água lhes trouxe apenas. sem som. Abri os olhos e vi riscos de luz cruzarem as paredes. o restolho entre as árvores. cansados de serem vultos a labutar sob o Sol. e os meus olhos de novo a luz abriram da porta imaginada e verdadeira. 138 139 . da Sombra ou sombras guardadas no interior da casa. tão clara era para o olhar a luz. na entrada da casa. ainda dormia. ao apagar do Sol ouvi calar por fim o som de enxadas e dos passos. em demasia. levantada. no chão de tojo e fetos. depois vi sombras passarem entre as fendas da madeira que iluminavam as manhãs tão cedo. a medrar. Tão quente. enfim. subiram os degraus da sombra fresca. E só os meus olhos recolheram a oferta deixada no sol-posto.para mim vieram dentro da minha imagem. ouvi bater de leve. e me pediram Ao raiar do Sol. que os camponeses. E. na soleira. e a distância das aves. apaziguado e meu. Se os abria. de faces nuas. porque é tão-só próprio e bastante. indo por um carreiro. mas a mão que me trazia a mão puxava-me para a luz de cada dia. mestra de sentimentos. tudo me rodeava. 140 141 . oferecidas sempre apenas à água. mão na outra mão.Amor é o olhar total. ela punia-me com o silêncio cruel das ondas. que me cega. entre árvores. E. a mudez imerecida dos insectos. insectos e aves. como a chuva cai na minha cara. que nunca pode ser cantado nos poemas ou na música. que doía. em si mesmo absoluto táctil. a caminho do mar. e eu discípula. pedras. Fui criança. Toda a Natureza me coube nas pupilas. se fechava os olhos. que nada nos dizia. A chama do petróleo ardia junto à boca.Na casa antiga. e pelo sonoro desalinho de algumas árvores que são os nossos cabelos imaginários. com que arrastava o seu duplo de penumbra e de sombra. Mesmo os ouvidos cantam até à noite ouvindo o amor de cada dia. A pele escorre pelo corpo. Porque ele passa com um rumor nas pedras que nos cobrem. Até nas íris dos olhos o tempo faz estalar faíscas de luz breve. Mas não sentimos dentro do coração que somos filhos dilectos do tempo e que. numa órbita apartada. Chamas nos queimavam as entranhas e em archotes vivos nos tornaram. vagueando por corredores e por escadas atrás do Outro. Nada tão silencioso como o tempo no interior do corpo. Só no interior sem nome do nosso corpo ou esfera húmida de algum astro ignoto. que ocultamos como a Terra. 142 143 . à semelhança das musicais manhãs dos pássaros. Entre o princípio e o fim vem corroer as vísceras. o tempo caladamente persegue o sangue que se esvai sem som. Trilam os lábios nossos. se hoje amamos. com o seu correr de água. podíamos devorar a própria luz. cada um de nós levava consigo um candeeiro. e as lágrimas da angústia são estridentes quando buscam o eco. parentes. Ainda amo a pátria. a mesma Paz. Ainda amo. porque também eu calei a minha voz pública de outrora. o tempo faz e desfaz a vida.foi depois de termos amado ontem. Guardado no silêncio mais espesso. Hípias Maior. Cidade. O tempo é silencioso e enigmático imerso no denso calor do ventre. miséria e cúpida opressão. em harmonia. não sou. Calei-me porque as memórias minhas e a voz sozinha também pertencem ao Todo. 144 145 . que os antigos sábios todos se tenham afastado dos negócios públicos?»1 perguntei. meu semelhante. « omo se explica. a dor. C 1 Platão. e do vento. dos próximos. feita de lugares. Hípias. perdoa-me a ausência e o rancor. perdoa que a minha voz agora não nomeie os teus cais de embarque. Sábia. neste exílio de paz. de repente. desdentado. É o anjo da nossa perdição. amemo-los aos dois anjos. Das mãos impuras cai-lhe. enorme. Nem as coisas têm forma própria mas a que lhes dá a mão. Nem o arqueólogo ama em absoluto a matéria. Porém. ou a nossa alegria fez-se do proveito parco. Mas não usámos nós as coisas até ao excesso. guarda para nós vida e esperança. é mordaz. introspectivo.O anjo de Luini é terrestre. A alegria das coisas não é a posse mas a semelhança delas com os nossos dedos. Tem um esgar sombrio. por vezes capaz de trazer-nos as lágrimas. vida nossa que mereceremos. também terrestre. o segundo adorna-nos os ossos. lúgubre. o rosto e os olhos. o sexo. do mínimo? 146 147 . quando procura a escala musical na flauta e espera que os meus ouvidos o descubram. O primeiro sarar-nos-á a alma do abandono. E vai agora coroá-lo absurdamente com uma coroa de ramo de oliveira. sobre a insólita almofada de cetim. A tristeza das coisas é tanto maior quanto mais subtil for a sua imagem no olhar. Por trás da alta fronte e no suave semicerrado olhar. usando-as. sem queixo. púdico. poder e glória. mostra o corpo de terra. O galeão levantado do lodo ou do olvido é um objecto sem presença. um crânio. Nu. Sorri. de crueldade ou troça. O anjo de Lotto. ou sem destino. depois de tantos séculos em silêncio. Na verdade. de haste em haste. Como a história geológica da Terra. num trilo entrecortado por gemidos. agora. enfim. antes. cantavam os melros o hino de finos assobios e de soluços. os pardais. Primeiro. Nunca como hoje. a hera mais ágil e as rosinhas trepadoras que tentam apanhá-las. com o voar dos vultos. negras. Equivocadas. num turvo Maio da alma.Uma vez mais as andorinhas voltam ao poema. que faz vibrar a água. o tanque mais translúcido. ao verso que as vê. Depois. gritavam o desespero de cada dia. nos fundos dos canteiros. sob as copas. doridas. este ano. as andorinhas. deste modo. redobravam em coro um canto grave. 148 149 . aqui. a história dos pássaros no meu jardim é a dos lugares que se uniam ao Tempo. Os periquitos. Nesta estrofe. as andorinhas são riso. em círculos concêntricos. Na hora do pôr do sol. No crepúsculo. pelo descer da tarde. Tudo era assim. na água quieta. escolhem. Voltam. quando vivi. rejubilavam. na manhã translúcida. haviam assim voltejado sobre o círculo do tanque. na erva. no torpor da luz plena. bebiam em Maio a água negra de um largo fosso infernal. surgem e levam-me até ao seu poema. Deles fica a obra que fizeram. mas na portuguesa língua. mas o da suspeita. não só no sangue ou só na carne. E tão grande alegria dão os vivos quanta os mortos. na memória. L. 150 151 . tal como os lugares dos vivos.. como se eu tentasse entender uma pintura eterna. não. N. nesta suspeita que recebo do real. N. Todavia vocábulos. para a enxertia. Por exemplo. e ainda habitarias os campos. vieste também. demonstram que os poetas todos morrem sempre mais na língua. L. em minha vida. Ou tal como os outros mortos cuidadosos. antes de mim. B. ou no futuro incriados. quando. meu amante morto. R. se tu estás. Tu. mas aqui.. para sempre insonoros. Suspeito de mim porque te reconheci. C. O caseiro tem um lugar cativo no laranjal. na luz reconhecida. em corpo visto.. de O. agora insubstancial. como o caseiro. Fosses tu um homem dos ofícios rurais. não caberia nunca na memória. pegam na enxada ou na navalha. G. M. vejo-te porque suspeito de que a tua presença veio.NO LARANJAL Para N. nunca. que não é o da memória.. e os outros que já viveram Tantos poetas morreram. porque há tanto tempo suspeito de que a tua presença. aparam um pequeno ramo. J. não me consentem alguma vez ser poeta. o real e o divino. que eu já amava. como se ele viesse do passado? e depois o de outros ofícios vagos que eu conhecia? Como vivi. tal como um dedo escrevia nessa bruma devagar o nome das vagarosas sílabas mais longas do que o horizonte por detrás das janelas. terei de reconhecer que é a hora de ser. entre eles exegetas. solitária habitante do paul. o espaço ia. Onde estive. alguns leitores. de abrir tão atrasado. poeta inútil. quando esperava o antigo carro do leite. como se de papel toda a água. * Se perante o sujeito zoomórfico dos poemas. que nadavam entre as minhas mãos tão demoradas. ou o passo do carteiro junto ao portão de ferro. tal como saía da boca lento o bafo contra a vidraça. tocava tantas vezes o sino quantas as pancadas do velho metrónomo da minha vida? Com o meu corpo de rã entoei a literatura. também. rã cantante. rouca. E o mar vinha comigo até ao lago dos juncos e dos peixes. soluçando. Tão plano. e em segredo louvei cada vez mais alto o Verbo que me deixa ser. tão vasto. louvando a auréola de gotas que acorrentou meus pulsos. Amando as palavras ecoadas pela contracção da pele. para não ser. ao chegar até mim o carro do petróleo. vivi só. que a suave mão do carteiro vinda da feliz Arcádia.SED IN ARCADIA A VOZ DA RÃ Houve um tempo em que o tempo passava passo a passo. * Aquele que vê e descreve visões e alucinações 152 153 . pelo amor. Como rã. até ao mar. devagar. que da fauce me saiu nos versos. o amado. cães. sem olharem em si a razão intimíssima. as rãs. muitos. * Versos. raça de leitores. Os críticos. e os poetas que de seu dolo fazem os poemas. como as coisas. Sendo como aquela rã poética que invejou o touro e de finitude estoirou. * Toda a literatura está não lida. para finitamente alcançar conhecer as coisas próprias. é o escrevente ínfimo. aliás. o único. E. estão ligadas. tu.de rãs. Por vezes. com tão longa paixão na Natureza. leitor. ao olhar o real. o Verbo os bendiga. sou cúmplice da minha mutação. Conforte-o a Natureza-mãe. nenhum leitor. me trouxe o louro e a coroa. E nem assim. porém. no futuro mais será perdida. seu semelhante. nos poemas. pois os mais subtis e estultos animais foram. se os seus exegetas ao menos lho consentem. hipócrita leitor de si. uma sílaba quebra-se e cai no fundo oco. * Se o sujeito é fitomórfico. viram as minhas sílabas mutiladas como a miséria do amor de quem vãmente ama. Toda a literatura foi traída. melhor dito. * Tanto com a língua e os olhos delapidei o real — incluindo os livros onde está descrito e dito vezes várias — que um dia tive de juntar os restos e ligar com linhas as sílabas que. * Os largos anos em que sorvi lodo para dessedentar poemas são desamados. na fábula. 154 155 . Deves punir-me. insectos. no real. além de sua natureza sempre nula. sou de caduca folha em consciência. quando o avesso da mão roça a grande Natureza manifesta na árvore. por momentos. que a cantava e canto. Assim os meus versos são o meu pó na poeira dos livros já delidos. Mas ante mim. até que ambas aceitemos o fim. Outra matéria nova e. que hoje em belíssimas folhas se folheia. na larga capoeira defronte. loquaz. Aos periquitos. Era uma romãzeira em flor e fruto. segura do seu reverdecer. não vã há-de captar as vozes dos poetas bardos.Também o papel. NA MINHA QUINTA / À ROMÃZEIRA QUE ESTÁ A SECAR Todos os diálogos acabam no silêncio. mesmo o murmúrio entre dedos e folhas. de ouvidos mais atentos aos sons sonoros. entre os dedos humanos. respondia com o júbilo da mudez. 156 157 . ela deixa-se estar como está um surdo junto de um cego trovador lírico. será roído um dia. * O tépido calor cobre-me por fora de tules em flor. como janelas afloram nas casas ou como a palha envolve medas. sem cambraia ou a memória simples dela nos sentidos. * O pequeno velo de roupa é o da imaginação. como tudo o que a memória gera. veludos inverosímeis e. Acreditava só que o gesto amado de me cobrirem de panos ao nascer seria a minha glória. fontes de dores. o que em mim confirma agora que o vento me reveste. Agradeço. As escassas vestes 158 . matéria e as pompas que entregam roupas e versos ao comércio. pois. * 159 Aquela saia roda como o topo do moinho de pás. * Quando depois do nascimento me vestiram. a roupa então em mim resplandeceu. * Tão devagar cosia pelo traço do giz a máquina que os pés moveram balançando quanto os meus olhos devagar seguiram o traçado dos pontos e o meu espanto de ver a ordem surgir dos riscos soltos. Nua e solene. Mas estava nua. às bocas de parentes os nomes ditos. E a linha nas mãos da costureira assim imaginada era. E ignorava valor. Vestiram-me para me velar. com a roupa alheia em torno do meu corpo.A ROUPA nas montras eram também sinais da imaginação. O rosto atento caía sobre o pano que pouco a pouco me tomava a forma do meu corpo tocado pela luxúria de tão belos cetins. As folhas do loureiro ridentes assemelham-se ao meu vestido de verde cassa. Depois. o fez singrar. foi esta a manhã das camélias brancas. que eu decifro. cravadas com dureza em rostos. ainda de olhos fechados. o lírio roxo. com o seu ruído feito de sons de pássaros. que. Um lírio com a mão que o cortara já decepada e presa ao passado. águas do poço. que me traz consigo a criança viva que o colheu e. CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA Principia a estação. roxo. tal como a um barco. coisas da quinta tão diversas todas. porque me haviam dito que ao entrar pelos olhos ele me cobria de fulgor. sem o seu corpo. Vejo as três pétalas assim a confundir-se com os três dedos. 161 160 . só.Todas as roupas usadas próprias do Verão são aquele vestido único. Manchas brancas de círculos informes. na água que descia por um rego. Mais difícil sinal são as cores várias. E amei cada um dos vários nomes. e ainda atraem a face dos mortos. como se as nossas mãos por vezes vivessem mais do que os passados corpos. ano após ano. que despontam cada dia e eu vejo. e também as palavras especiosas que na retrosaria designam o belo fio e aquelas que me mostravam os tecidos em sequências de alucinações novas. iguais e singulares. macerado. tocam as corolas em busca do seu cheiro. cada círculo contendo outro círculo. Primeiro. São camélias mortais. * Com a saia de tobralco leve passei entre as nossas hortas. que algum dia as bafejaram com o seu hálito próximo. um pouco além. solitária. de orelhas. embora não como eu. saltitando sobre cômoros de terra. a respirar ao ritmo dessa rosa. Rosas terás em redor. na manhã em que surgiu. Estão. por cada dia mais trazer um diverso cacho pendente. de alto. Mas são absolutos. ao Tempo. 163 . que me surpreende somente por estar a ser olhada. São cachos também roxos. aliás porque. — Eis os melros. rosa. Sobre a laje do poço correm dois. para salvar. Havia uma boca assim. com a negra plumagem que os cobre. na sua latada. Mas hoje perante o mistério das flores súbitas. e já a abrem aquelas mãos que haviam sabido lançar barcos de pétalas aqui. Misturam-se com a cabeleira antiga estes cachos de glicínias de hoje. e eu quero sentir-me aqui e ali. única. A cor da rosa mostra-me o lugar daquela boca. Alguém que os colhera os fez pender entre cabelos fecundos. Se aquela rosa rubra. sobre o esplendor do crânio ou do cabelo. em cada Primavera. o vento lhe tocou.E. Carne de alguém que tinha um nome seu e que se oferecia. primeira rosa na natural frescura. Já caem as glicínias. olho-a como um visitante. Junto da rosa só cabe esta boca. Recebo-a. dúbios coabitantes do ser que relata esta actual Primavera. Rosa de repente vista. duram os olhos. rasteiros. depois dos lírios e das camélias. o viço dos cabelos. apenas. A Primavera. com deleite. pronta a beijar com amor as suas línguas ou a beber a linfa que é da abelha. 162 dando-me inteira à nova Primavera. a que foi beijada. e vejo a outra. que insistem em tornar-se evidentes. com saudade. E. singulares. sem a face. novos. os seus insectos e as suas sombras. os momentos com a sua luz e cor. em cada dia novo. adornos para os filhos da Terra. no centro de cada rosto. que hoje nasceu fadada para ser a sempre minha. Só pode ter sido a de parentes. mais eternos do que a já sepultada carne. eu não estaria aqui neste papel. em manhãs de assombro. igual. logo fosse ignorada. também. Pois vejo-te. ela está perto do meu sólio. são como eu. não posso mais do que olhar. Assim. próximos da rosa. ágil. de amarelas frisadas campânulas e de sépalas perto do solo.negros contendores no mesmo sprint. prendendo-os no seu seio. Junto aos eternos matizes das pedras. sob o fascínio do cálido dia. E são amadas. Hoje. a debicar sempre nas pedras húmidas. hesitante. e os da criança. que eu revivo. nítida. atrás de cada flor. erecta. vêm ligar-se a fragmentos de vida antiga. 165 . Mas outra prece. que se elevam na luz de cor. como hei-de separar os corpos da haste e da corola dos narcisos. amando o beijo da rosa e a prece ao sol destes narcisos. em pleno dia de êxtase. porque se chamam páscoas. para lugares e tempos. há muito. A aragem devagar as sacode. eu vejo. desponta ao raso dos terrenos. a cor dos narcisos. evoca esses desejos saciados em tempo ido: o da mulher. que atrai a cor intensa dos narcisos para contraste. finas folhas e hastes a dançar. Apenas um nó de sombra. comovidas pela unção da luz. oscilando no riso. estão a nascer os narcisos. benditas. 164 Abrem-se na aurora. músicos de assobio que eu bem entendo. Anunciam a passagem eterna da luz sagrada entre noite e aurora. Flores solitárias que. de um vermelho ardente. pois cada espécie vista tem em si um sinal visível de outra estação. Também uma figura de mulher genuflectida as colhia. Noutra manhã. submissas como pálpebras. a poalha da brancura florida que envolve os troncos velhos da ameixoeira. pois a mancha amarela tem a forma humana contida em si. clara. mostra a imagem de antes ou a espessura de um fruto futuro. São as flores do jardim que guardam o enigma. outra tensão. Salva-me o vermelho vivo da rosa. Tão nítidos. dispersa. curva. mas alheios. ao cair da noite. flores que o ar conhece e o vento leva. a presença deles não cabe ao lado de uma flora rara. seguindo o movimento que pertence ao tempo. E. tão certos. quer ter para si uma flor solar. uma a uma. no sono das corolas exaustas pela noite. Poalha em que não estão vultos humanos. e uma criança. deslumbrada. a desta Primavera em narração. — Repetem-se os melros plo empedrado. Flores que vibram esguias e tácteis. Também os loureiros em flor. entre a verdura vária. Aqui. entraste no meu espaço. floriu a acácia. enfim. soterrado. Cada manhã me põe diante dos olhos nova forma de cor e luz e. com a floração e as folhas na mesma cor de sempre. está só. Se o meu relato é vivo é porque olho c’os outros a Primavera. em cada dia de visão e ganho. são visões completas. Vem de um único bolbo. Carcavelos. unidas em redor da cor suavíssima das flores de hoje. a florir aqui. o findo. há muito tempo. 1997 167 . Os braços são as linhas de matizes. E. consigo. às vezes. visíveis ao longe como nuvens. constantes na pura relação com a luz solar. talvez por fim. ou do que eu fui e agora sou. Mas a perda. também sem qualquer vulto 166 escondido no seu florir imenso. e o seu eflúvio. E. Alguém pega no ramo do loureiro. num intervalo entre o concreto e o abstracto. se tenha aberto. Março. presa do assombro do que é novo e antigo. São árvores solitárias. num verso clássico. uma flor de palavras muito branca chega até mim. diante de tão nítidos canteiros. nesse florir de goivos. uno. Braços levaram-nas juntas. Grata. prendo-me a esses elos vivos da corrente de vozes. e o dá a toda a humanidade. depois do loureiro. de repente. e nesta Primavera eu vi melhor. inane. e é esta estação. depois de recolherem o real. virá somar tudo igual a si mesmo. porém perdida já. indecifrável. uma inflorescência de gladíolo rosada. figuras esbatidas de outra estação igual. neste infinito. que se oferecem aos ouvintes. Uma carta traz-me inscrita as palavras de Eugénio. não vejas que eu represento o Tempo. o que foi amado. que te aproximas mais de mim. A tua colheita de grãos e de larvas seja o teu mais subtil pensamento! E. goivos. para o mundo. erecta. — Melro audaz. o espírito e as mãos pegam em cada imagem de uma flor. Os meus olhos. Junto de si viveram outras hastes também de gladíolos. passado. pois a memória da poesia passa de poeta a poeta. em braçadas de amor e de alegrias. Esta transcreve-a ele de Pessanha. afinal. antes do grande Cosmos. mulher e voz. dia a dia. no regaço da tua mãe equívoca. Ainda estás muda. pássaro cantante. contigo. seio. flosa. era a galáxia. ali. maternais. que veio nascer contigo. equívoca. ouviste já dois nomes. Terceiro nome que tem a força para separar. mensageiro sem início. tu queres dizê-los. A primeira palavra já a dizes. a fala de quem chamar. 168 encastoada na substância do mar. quando tornas 169 . além das vozes ocultas. tacteias. Cantas. Alguém não é um eco. Esta ao menos tiveste de a ouvir. depois de teres sido o primeiro pássaro. E tu. no mamilo astral. a ouvir. a do primeiro nome. antes do seio. e erras. mas agora é a mim que me falo. o teu cérebro. Se ouviste cantar a flosa contra o fundo murmúrio do mar. eu te pus a cantares-te a ti mesma. das palavras mar. o espaço lateral de outro. foi porque também depois o bebeste na matriz da carne ou na dos astros — a tua mãe de berço. Este é o mar. o mar. Flosa. Alguém é outra voz. de outrora. de um lugar de mães. no berço. E já uma vez. murmúrio. o tacto do mar. sugas. e ao dizer-te a palavra. rumor. Nunca teu gémeo. de outrem. num verso. quando antes vagias tal como as tuas mães. Tão roucas como a palavra flosa. a Natureza — no seio falador. não é ela. junta. TRATANDO-A POR TU Ouves cantar a flosa. é a terceira fala. ou duplo. as do primeiro dia da tua fala. também estranha. apenas boca presente. adejo. o teu canto é confuso como o de minha mãe. a meu lado. trocado pela tua mão que tacteia. terceira fala. redizes. era o mar antes criado. alguém no espaço. mulher e luz. ouvido das palavras. agora que puseram o mar todo a teus pés. tacto. alguém a poisou e ao mar debaixo dos meus passos. apenas de um lugar. aquela que já ouviste ao aprenderes a fala. mas ouves cantar um nome.TEORIA DA REALIDADE. Mas. tu poisaste o teu pé nas pegadas do mar. Tens na inspiração do ar o a total que une em si a boca dos poetas tal como. 170 E o inteiro ouvido engendrou a máxima palavra Portugal. Tão de repente. Três são as palavras comigo — a flosa. e quantas das águas serão as lágrimas de Portugal. os nomes naturais matrizes guardadas por sua mãe. (Agora tenho em mim o tempo instilado pela fala mútua e pelo ouvido.) E com as três palavras posso ouvir essa poderosa voz. Chamaste a coroa das palavras. realidade. o mar. 171 . realidade. Estou ou sou debaixo do fascínio deste tríplice tudo. similares no a vivo. depois de terem a fala perfeita. pela fala. o nome de todas as palavras. neste lugar: a língua. tu. no tempo de Portugal. realidade. Este fundou a fala já falada. Agora tens de saber o que podemos ser: águas. analogias. das três palavras minhas. Foi o mar. e tu. ter bebido o leite da palavra. o canto refeito. o uníssono e o tacto. criança que saiu do próprio berço e se torna. ó mar salgado. em mim. o ser da água ou das águas. E os meus olhos mostraram também ao mar as lágrimas com o a de sal.a tua fala um som. que é legado. O eu mais rápido. o Portugal. além. és nome de ti e do que os poetas fundam. Era criança. depois de. dobrou o antigo canto clássico. ao ouvir palavras. e de súbito o mar foi o sinal da palavra nova. e repetiste: lágrimas. Meu poeta. um poeta. Aquele leu o já lido. exorbitaste dos olhos. lágrimas. o Camões ao de Estugarda. elemento. ela mesmo. a mais audível nascente do alfabeto. meu poeta. o eco. que era. quem? Aquele que fala com as assonâncias. Tu. Foi o mar. Tens de tactear os meus olhos com o toque do mar. Perto do mar a tua boca toca-lhe e toca-me. como eu. disseste águas. no lúdico mar. em lágrimas de sal. em que versos somente sois as palavras minhas? Tu deste-me as palavras novas da tua fala escassa. a língua mudou-te as dimensões. ouvi um poeta. que é derramada sobre esta língua e os versos. e aquelas palavras.ó minha palavra muda. porém. a galáxia. refundei a língua em que Portugal me falava: mãe tão longe já da minha fala. em ti. E dele. Vai alto o sol. Balbuciando. repara nas marcas da água. Depois. em que eu te fundo. te deixou presa entre dois tempos. Agora estás rodeada desta língua que nasceu do a. Já falas nos poetas. calada pelo escorrer do leite. as três de toda a realidade. mãe mutilada. e os barcos estão a ser chamados por um nome. além das tuas três palavras. nos seus dez cantos. Ouviste a flosa ser cantada. a cantar-se. 172 Inspiras. e cada verso é uma linha tua. o cérebro e até um verso. cansada. as palavras: águas. Os versos só são o que os poetas fundam. mais dado à realidade. assim os poetas nascem das mulheres-braços. palavra após palavra. a ti. 173 . agora são as estrofes dos meus versos. a um verso. mar. Pelo plano do mar correm crianças. na sua fala. Flosa. Depois da voz cansada. pensada. ó realidade! Este era. fitos na Graça do mar. muralha a bordejar-te. que os poetas fundam? Mas deixo o abstracto. Toda a longa costa continua Portugal. em si. Narravas. porque a fala-língua já não é clara. deixaste-me falar comigo. velha água. que os lançam no concreto. assinalavas as tuas marcas. expiras. no mar. tu não sabes como o Camões. por ele. detém-te. ó águas! Depois das três palavras. ao chegar a um limite da fala. só tens o ar. mãe. como eu. Quando tu me tocaste. renova-se o real pelos meus olhos. inspira o mar. Minha realidade. Estou no simples lugar do mar. O que sou. e eu. sem nunca saber do de Estugarda. que as seguem de outros. na cova que cavou. mas não recuas. tu que conheces já o primeiro som da vida. nem que os poetas te chamem à sua língua antiga. Os baldes da infância. crianças abandonam o seu riso. e uma criança. as bolas. Por vezes. já tu sabes. realidade. 175 . tu. mas outra criança-mundo a começar. pujante. na singradura. É a terceira voz. seguem as pegadas de outros. estendes-te. Falaram-te os poetas gregos. vazou o mar. vital. crianças duvidam do jogar. solar. poetas lidos. o Cosmos. Sim. 174 Realidade. se eu me calar. se essas crianças repetirem crianças. aberto numa página com o mar. que amaram o mar com a boca do canto dos aedos e da escrita. estás. que te revelo agora ser a voz de poetas. a Via Láctea. que apontavam pelas linhas dos códices. realidade! Também aqui estarás. O sol brilha. no chão da praia. Mas aqui. Não eu. a ver mãos moldarem o mar. Ler faz embater a fala nas palavras que são ouvidas no ouvido.Que. és um livro. o Caos. Vem. grega. ninho de galáxias. em jogos. seguindo o plano dado pela voz de alguém do meu início ou de um livro de páginas abertas rente ao mar. E a pura mãe folheia-te? Falemos mais dos gregos. seguida marca a marca. Calo-me. ou se algum poeta loquaz se calou desde a idade clássica. os arcos. avolumas. e os banhos teus. são jogos de palavras. os clássicos chamaram-te. levantam a barbacã de areia. apagas-lhes as marcas. temente não queres sair jamais fora da minha boca. tu tens o teu princípio. e com os barcos. Ouves palavras-eco que vêm para mim de novo. nos telhados do mar. Elas levam o balde cheio de água para encher a maré. ó meu coveiro. estiveram mudos. e toda a praia está entre tempo e lugar. Juncaste a praia do a das palavras portuguesas. Mas tu erras. e eu li que antes da voz dos clássicos. e se aceitas a dos clássicos. se eu disser a minha língua solitária. Canto o coral do a. Eu. outrora. por mim. Mas não me oiças negar-te. 176 Dela recebe a fala com a voz. colhe as pequenas algas. digo-te. seguidora de todos. da praia que contorna Portugal. a do número. tu não no-los deste. tu és pelos tempos traída. em ti. mãe tripla. e a palavra de poeta seguida pelos poetas. sei. o falado pela ordem das sílabas. realidade. a da fala. Manhã. Sabes o que é canto. a do leite. que recupero a perda da nascente da tua água. depois desses poetas. Calada mãe. sou eu o artífice deste mar espraiado. eu leio as epopeias para ti. e eu. 177 . pelas línguas. a tua mão de areia construiu a praia. ouvir. palavra minha. tu? A medida contada? A harmonia flui do meu ouvido. infância em que a mãe de luz embala as palavras no canto. O mar global é como o ar. que medeei da fala para a leitura. dá-se a ver na amplidão. Os teus dedos sonoros chamam-me agora. a mina da voz. cantar. a primeira após a fala. as palavras. Criança. altas. Aceita a água que vem para os teus pés. Se foste tu. recebe a luz. Chamei-te. eu.Ó realidade homérica. tu não. Este falar. no transe do som a pousar no meu mar. geraste tudo o que é ambíguo. São-te dadas pelo passado tempo. palavra dada. vogais entoadas. as pausas. Afinal. soterrada. o som ritual. do abstracto ao tacto do meu ouvido. irreais. Som. ler. realidade do mar. quero louvar-te a ti. ainda recordado. onde nós antes estávamos. afinal. de com a testa estar na vidraça a murmurá-las. com rio e mar. piloto cego. na eufonia de fumos e de bruma. Último golfinho. ó marca preta em vidro tão fosco de impreciso. um poema houve das doces salinas águas. sei e de cor vejo. imagens. depois cadáver. quando o dorso de prata e o gume passavam nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas. Estava no longínquo fundo o mar redito. sóis. cisco no vidro. Recordo-me. tudo é o cisco de agora para a unha num vidro. começo devagar a reescrever o mundo quedo que é o único que conheço e vivo. pela lei da perspectiva. em outras vidas que antes narravam que eu era já nascida. muralhas. É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos. Ninguém me deu outras formas que não minhas mas deram-me todos juntos o cerne das palavras. minutos indivisos. Estou no estuário. menos amplo do que o teu. farol. torreões. Passa tu. reúno vogais. fosco de haver nevoeiro e esquecimento e fumos. a última. olhos de cada olhar de imagens próprias de cada um. diminuto ou imenso que lacerou com o triângulo da cauda as brumas. e vos guardei.SUMÁRIO LÍRICO do farol extinto. emprestai vosso vidro e revérbero à luz 178 . E recordo-me dos outros de fora da vidraça. generosos quando me reconheciam em muitos anos de vida. Mas. mesmo dos idos. tão similares em eco. E não avanço enquanto estiver presa à grua hodierna que arranca as palavras do seu molde de coisas. Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa. manchas com a noite embebida. tantas vezes co-substancial. mudos mas autores cada um do seu frasear. de exangues vozes caladas para sempre nos livros em que as lera. consoantes. menos vasto do que o mar. quando vos vi. Imagens que sempre ficais nestas vidraças. Avança pelo estuário. Devedora sou. o que passou pelo interior de meu corpo. entre falar e ver. ponto. golfinho. que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra. balbuciantes. A cor de prata dos vultos é hoje negra. diariamente somando anos. Depois. que também em vidros estavam. Mas o farol assente no rochedo. golfinho entre golfinhos. Em tantas vidraças que espelharam caras. os barcos na Barra. 179 Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças. de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal. um. o sol. jorrava já em versos meus concitados por esta janela velha. numa praceta inócua para a minha vida lírica. guindastes. quando o som sai desta boca. E o tempo não existe quando tudo se reúne. como em ardósia coloca a sua letra. Imóveis ficámos todavia noutro poema. desde que soletrei no vidro o mar. armas de dor. onde o ouvido houve no canto a sua homófona. a perdê-lo. como golfinhos mortos que voltassem. Pois nada equivale ao vidro da vidraça do mundo. página a página. ouve a melancolia dos silvos de eu chorar os barcos dos pilotos. E morrerei sem lançar um som vivo para África. Estás a ter sido. A faixa solar vermelha é um profundo fundo. morte poeirenta. em cortejo. Barcos para África. pois passavam golfinhos antes de ter havido sol assim. Tenho de compilar cidade. Mas o anterior a filhos. únicos que navegaram no sal deste choro antes. olhos desses filhos discípulos do meu olhar. Constelação que no quadrante do céu. a recuperá-lo. onde somente posso retroceder. Mas as frases de todos estão no lugar. como todos fatal porque me destina. quando te vi estar. pomba. e toca em sons e seres. meus poetas. Cassiopeia. sendo o olhar sempre o puro tacto. só sonoro e tangível na boca.quando com os filhos ou amei ou vi a construção civil. que ainda estás aqui no vão da noite. Tenho cada vez mais modos de dizer das fileiras de golfinhos ou o primeiro assombro. Satisfaz-me o meu sol vermelho em mês de pouco ver. 180 meu pensamento só. Tergiverso do campo para a cidade. levarem vi vil guerra. tu. Mas hoje é a doença a singrar nessa rota pobre que na vidraça perpassa. Meu sonho apenas poema. a serem vistos perdidos sob ti. Qualquer vidro ressuma por dentro o seu frio exterior. sopro. Maio de 1998 181 . o eco do mar. ao longo do meu tempo. redito. e mudamente vistos: imagem tão íntegra lírica que vai descer à boca em última palavra minha. entre torre e farol. neste sumário lírico. E entretanto por detrás da vidraça passam na janela. como diamantes sem preço. Todavia tornam-se únicas e são vistas no seu próprio tempo. e chora. quando a aranha ofende o Sol roubando-lhe alguns raios. A pequeníssima aranha assusta a criança que eu estava a olhar. A menos que.» 182 183 . rosácea de lágrimas. tão frágil que a podes romper com o menor dedo. Ela estende uma rede. ou a beleza da água que ela retém. Essas recebem apenas o eco. antes do gesto.DOS NOMES DAS LÁGRIMAS Nomeamos os nomes e nunca as criaturas ou as coisas. «Meu duplo filho. não temas a intensa labuta da caçadora de insectos. encontres a beleza do tecido luminoso. a cada momento. a outra. o coração e o dia rejubilam. Agosto de 2000 184 185 . verdes folhas da tília. E. Noutra. aqui. no entanto. Na pele sinto o percurso das ondas. este vai-se gerando a si mesmo. Hoje. contínuas. São feitos de horas. eternas. vencendo a negra luz que avança para os meus olhos. mais amplo e tenso do que o périplo do sol. E no fulgor nocturno entram nos quartos. os dias. ferem-se em tudo o que cintila. na ria. meu dia. até à placidez do meio-dia. Numa hora lutam com varas de penumbra.MADRESSILVAS E TÍLIAS MEIO-DIA / MEU DIA A uma janela assoma a clara madressilva. as leves. Disputam o meu olhar. ÍNDICE MORFISMOS (1961) Grafia 1. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Grafia 2. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tema 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tema 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . BARCAS NOVAS (1967) 7 8 9 10 Barcas Novas Barcas novas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Inês de manto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nome Lírico O nome lírico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Também da chuva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pedra em expansão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (ESTE) ROSTO (1970) 11 13 15 16 17 O Ar dos Tectos Sítios de campo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O ar os tectos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As obras nas fornalhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . No chão dos olhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A voz, crescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Vez das Vilas O miradouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pungente o Verde Pungente o verde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Germinações 1.ª (Agricultura) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Dizer Avis (Ave) Dizer avis (ave) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Rosas, rosas e lírios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Este) rosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 19 20 21 22 23 24 26 27 28 29 187 ERA (1974) A Era Modo histórico da cidra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Índice Próximo do camponês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Hora Obscura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Autor fragmento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O texto de Joan Zorro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . NOVAS VISÕES DO PASSADO (1975) 30 31 32 33 34 35 36 37 39 40 42 43 47 50 53 55 56 58 35 37 39 55 [Quando rebenta a flor nova no] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Embrenho-me na área branca da noite]. . . . . . . . . . . . . . . [Quando eu vir vaguear por dentro da casa] . . . . . . . . . . . [Penso a minha vida]. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 71 72 74 76 77 78 79 81 82 83 84 86 87 88 89 90 91 92 93 95 96 97 98 14 POLISSÍLABOS SOBRE ANJOS (1978-1980) O gnomo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Inscrição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Hipótese da morte de um irmão de António Ferreira . . . . . . . A minha vida, a mais hermética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . HOMENAGEMÀLITERATURA (1976) Anjo enlouquecido pelo tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O anjo marinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anjo de papel ou de água? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anjo de olhar fixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ÂMAGO I (NOVA ARTE) (1982) Asas malignas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tábua das comparações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Homenagem à literatura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nova ocidental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MELÓMANA (1978) O cedro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Junto das correntes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . NATUREZA PARALELA (1978) Colina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cigarra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Casas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ÁREA BRANCA (1978) Gota de água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lince. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As cartas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Estuário de um Tejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Graficolíquido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Albufeira I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parque infantil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Er . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Albufeira II. Serpentomaquia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Súbita e clara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Vem noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arte-vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Poética postúltima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Programática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ENTRE OS ÂMAGOS (1983-1987) Leitor, vês um peixe? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Meus ecos de Luiza N.J. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . TRÊS ROSTOS (1989) Rosas 1 [Considero à vista o poema] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 [O tema das rosas não é ainda estéril] . . . . . . . . . . . . . . . . 10 [Admiro a tecedora porque tem consentido]. . . . . . . . . . . 17 [Escrevo como um animal, mas com menor] . . . . . . . . . . Sinais de Vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 [Roço a minha testa pela luz poente] . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 62 64 66 68 Âmago II (Nova Natureza) O podador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sítio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um raio de sol está a cair na abside da Sé de Lisboa . . . . . . . Quod nihil scitur . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 101 102 103 188 189 Poemas Revistos A casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Imagem minha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Auto-retrato quando banhista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Natureza morta com louvadeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Analogia silenciosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Moinho-mar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As galinhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Meio-dia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arómatas & Ecos Arómatas A rola. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os coentros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quarto interior. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ecos Mnemónica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Verso vão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . TRÊS LIVROS EPÍSTOLAS E MEMORANDOS (1996) 104 105 106 107 108 109 110 111 Epístola para os meus medos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Epístola para um caramanchão coberto por madressilva . . . . Memorando, estando no delta do Danúbio . . . . . . . . . . . . . . CENAS VIVAS (2000) 135 136 137 112 113 114 115 116 Poemas Galaicos (Galiza 50) Beira da estrada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Poesia nítida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eremitério Tâmara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Setembros O sopro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CANTOS DO CANTO (1995) 117 118 119 120 121 Elegíacos [Ao raiar do sol, ainda dormia,] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Amor é o olhar total, que nunca pode] . . . . . . . . . . . . . . . . [Fui criança, indo por um carreiro,] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Na casa antiga, cada um de nós levava] . . . . . . . . . . . . . . . . [Nada tão silencioso como o tempo] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Como se explica, Hípias, que os antigos sábios] . . . . . . . . . . [O anjo de Luini é terrestre,] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [A alegria das coisas não é a posse] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Uma vez mais as andorinhas] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Como a história geológica da Terra,] . . . . . . . . . . . . . . . . . [Tantos poetas morreram, em minha vida,] . . . . . . . . . . . . . . No laranjal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sed in Arcadia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os Louvores A voz da rã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Na minha quinta / À romãzeira que está a secar . . . . . . . . . . A roupa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As Poéticas Catálogo botânico da primavera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Teoria da realidade, tratando-a por tu . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sumário lírico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . AS FÁBULAS (2002) 138 140 141 142 143 145 146 147 148 149 150 151 152 153 157 158 161 168 178 Canto das imagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Canto do canto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Canto dos meus pés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Canto da chávena de chá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Canto da arte breve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eu canto a chuva, a terra, o verme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Canto de Orfeu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 124 126 128 130 132 133 Dos nomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Das lágrimas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Madressilvas e tílias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A MATÉRIA SIMPLES 182 183 184 Meio-dia / meu dia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 190 191 SA ESTRADA NACIONAL 10 SAMORA CORREIA. OUTUBRO 2010 ISBN 978-972-37-1554-5 REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA DEPÓSITO LEGAL 317704/10 TIRAGEM: 1000 EXEMPLARES IMPRESSÃO E ACABAMENTO: PERES-SOCTIP. PORTUGAL . 1150-258 LISBOA E HERDEIROS DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (2010) EDIÇÃO 1443. INDÚSTRIAS GRÁFICAS.© ASSÍRIO & ALVIM RUA PASSOS MANUEL. 67 B.
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