FASSBINDER E PETRA VON KANT - Entre Brecht e o melodrama

March 17, 2018 | Author: Breno Baptista | Category: Cinema Of Germany, Germany, Actor, Theatre, Immanuel Kant


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Instituto de Cultura e ArteCurso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual FASSBINDER E PETRA VON KANT1 Entre Brecht e o melodrama Breno Macedo Batista2 Resumo: Uma análise sobre o cinema que o realizador alemão Rainer Werner Fassbibder propõe, a partir do diálogo entre o gênero do melodrama e sua estrutura dramática emocional e a forma épica defendida por Bertolt Brecht desde um contexto de maior amplitude até chegar ao filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Palavras-Chave: Fassbinder. Melodrama. Brecht. Cinema Alemão. 1. Cinema Novo Alemão Cerca de vinte anos depois de um cinema alemão visivelmente estagnado devido ao traumático contexto do pós-guerra, é possível perceber na década de 60 as primeiras manifestações de um dito Cinema Novo Alemão que estava por vir. A partir do breve e objetivo manifesto de Oberhausen, assinado por vários cineastas inquietos por transformações, é possível sentir o frescor de sua proposta: O colapso do cinema convencional alemão há muito tempo impede uma atitude intelectual e o rejeitamos em suas bases econômicas. O novo cinema tem, assim, a chance de vir à vida. Em anos recentes, curtas-metragens alemães, realizados por jovens autores, diretores e produtores, receberam inúmeros prêmios em festivais e atraíram a atenção de críticos de outros países. Esses filmes e o sucesso por eles alcançado demonstram que o futuro do cinema alemão está com aqueles que falam uma nova linguagem cinematográfica. Como em outros países, o curta-metragem na Alemanha tornou-se um espaço de aprendizado e uma área de experimentação para o filme de longa-metragem. Declaramos que nossa ambição é criar o novo filme de longa-metragem alemão. Esse novo filme exige liberdade. Liberdade das convenções da realização cinematográfica. Liberdade das influências comerciais. Liberdade da dominação do interesse de grupos. Nós temos idéias intelectuais, estruturais e econômicas realistas sobre a produção do Cinema Novo alemão. Nós 1 Trabalho apresentado à disciplina Estética e História da Arte II, do curso de Cinema e Audiovisual, UFC, em 15 de junho de 2011. 2 Aluno de graduação do curso de Cinema e Audiovisual da UFC. 1 ”. acaba tornando-se um marco diante da forte necessidade de reinvenção que começava a pairar na atmosfera artística de uma Alemanha frágil pós-guerra. trazendo consigo uma bagagem de referências estéticas. A própria experiência de grandes diretores consagra o que há de comum entre palco e tela. que virá a apresentar um trabalho de conteúdo embebido de reflexão a respeito da atmosfera em que ele surge.) o cinema narrativo quase sempre traz o teatro dentro de si. com certa densidade e comprometidos com a ideologia da potente e sólida unidade entre autor e obra. W.59). O melodrama crítico de Fassbinder Neste contexto histórico está inserida a feroz criatividade do multifacetado cineasta Rainer Werner Fassbinder. p. Ao pensar em cinema e teatro. é necessário perceber a existência não apenas de rupturas. Seu primeiro filme. 2 . A partir daí. roteirista. dramaturgo.. 2. mas também de continuidades.. atraindo diversos jovens cineastas que apostavam no tão necessário renascimento do cinema alemão. que ocorreu durante a oitava edição do Festival Nacional de CurtasMetragens Oberhausen. (Oberhausen. Um visível desejo de buscar novas fronteiras estéticas e ideológicas. seguem diversos conflitos e crises diante da atividade cinematográfica do país.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual estamos prontos a correr os riscos econômicos. com fortes influências da nouvelle vague francesa e de movimentos intelectuais semelhantes. um cinema que carrega em si filmes verdadeiros. O velho cinema está morto. responsáveis por amadurecer o dito jovem cinema alemão no tão almejado Cinema Novo. “(. Nesse contexto. ator e produtor. envolve mise-en-scène. atualiza gêneros dramáticos. O amor é mais frio que a morte (1969). A ideologia presente no manifesto permanecia consistente – mesmo diante de certas contradições presentes nele –. 28 de fevereiro de 1962) O manifesto. Diretor. criando assim uma estética singular em torno de sua obra. destaca-se o realizador-autor R. Como afirmado por Ismail Xavier (2003. Nós acreditamos no novo cinema. Fassbinder. artísticas e cênicas dignas de serem exploradas. a perspicácia de Fassbinder torna-se visível principalmente devido à presença da fusão entre linguagens cênicas e audiovisuais em seus filmes. Fassbinder lança então o seu olhar à pequena burguesia e à história da Alemanha no século XX. sem A partir de 1972 em O mercador das quatro estações. desde o início de sua carreira: história. é necessário atentar para o fato de que a proposta de Fassbinder desde o início foi fazer um cinema que além de uma válvula de escape. O olhar e a cena – Melodrama. valores e cultura são abordados de modo a criticar a sociedade alemã em sua contemporaneidade. torna mais visível o sentido dos fatos e gestos. dialogando claramente também com o cinema de Douglas Sirk. quando se pensa em sua popularidade. (XAVIER.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual carrega em si uma mise-en-scène claramente teatral. influências do “teatro político” de Bertolt Brecht são visíveis e inevitáveis em diversos dos seus trabalhos. a partir da atmosfera existente devido ao desfecho trágico da Segunda Guerra Mundial. Com um discurso baseado em realizar um cinema semelhante ao de Hollywood. p. o espaço filmado. ele passa a incorporar. mas sem a dita 3 . potencializando o que. Ao apresentar filmes imersos em um contexto sócio-econômico fragilizado da Alemanha. Ismail. Para compreender o diálogo – a princípio supostamente improvável – entre o melodrama e Brecht. que guarda em si referências claras a nouvelle vague francesa. assumir e reapropriar-se da estética do melodrama com maior objetividade. só veio ampliar os recursos de expressão. seja uma válvula de consciência. o teor dos dramas vividos. a linguagem cinematográfica é mantida pela decupagem. misturando ao seu melodrama histérico e amargo a estética contida e política de Brecht para que seus filmes passem a exigir do espectador uma posição minimamente crítica em relação ao que é dito por meio da obra e de seus personagens. Cinema Novo.66) Até 1971. São Paulo: Cosac & Naify. Existiu desde sempre no discurso do diretor o desejo de realizar um cinema semelhante ao produzido em Hollywood. Hollywood. amadurecendo o filme para além de um mero “teatro filmado”. tornada possível pela câmera cinematográfica. Contudo. O amplo plano fixo inicial. a simplicidade dos elementos de cena e a própria movimentação dos atores remetem imediatamente a um palco. A mobilidade dos pontos de vista. Fassbinder retrata com maior freqüência em seu cinema o cotidiano de pessoas marginalizadas. Nelson Rodrigues. nos termos do postulado melodramático de legibilidade moral do mundo. 2003. o espetáculo não pode mais ser recebido como uma reprodução mimética (ilusionista. Torna-se necessário então. indo para além de ironias elegantemente ácidas. Roubine define: Em Brecht. (. Sobre o aspecto reflexivo do método de Brecht. inversamente. não pode tampouco ser reduzido a uma ficção que não representa nada além da sua própria fabulação. ainda que não alheio. Cinema Novo. ao espetáculo.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual hipocrisia utilizada ao lidar com a ingenuidade do espectador. Eis aí o motivo pelo qual Fassbinder acaba por beber da fonte de Douglas Sirk: os melodramas dos anos 50.. A respeito da definição do melodrama como um meio de identificação e de “fazer ser visto”. buscando deliberadamente adquirir uma sintonia com o grande público. compreender também que o gênero do melodrama mostra-se moderno por excelência. (XAVIER. Nelson Rodrigues. A linguagem da encenação teatral. mas sim o drama sério que exacerba as polaridades desse gênero. p. Ismail Xavier coloca: É preciso afetar o espectador..67) 4 . onde a identificação coexiste com a crítica e a autocrítica do espectador.94) Apesar de haver uma forte tendência no modelo melodramático de parodiar convenções e codificações julgadas como ultrapassadas. Hollywood. um sutil nível de ironia e crítica social por traz de sua estética artificial e codificada.) Portanto. Jean-Jacques. Mas. Ismail. A relação de cumplicidade que Fassbinder constrói entre seu espectador e seu personagem surge a partir de um gênero particular de ironia construído pela dramaturgia de suas obras. o texto a ser lido reintroduz o mundo real como um dado exterior. “ganha-lo” para que ele entre num regime de credulidade maior diante do inverossímil. São Paulo: Cosac & Naify. O olhar e a cena – Melodrama. (ROUBINE. 1880-1980. Eis aí a tomada de consciência tão defendida por Brecht. mostram em si além de uma atmosfera pessimista diante do enredo dos personagens. 1998. mistificadora) de uma realidade da qual ele pretenderia oferecer a totalidade. ao serem analisados posteriormente nos anos 60 e 70. 2003. p. o campo de Fassbinder não é a paródia como forma de revisão do melodrama. legitimando um estado de fé consentida na “voz muda do coração” e na plena espontaneidade do gesto embora este seja produto de convenções teatrais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.. identificando nessa cumplicidade o caminho para uma maior projeção e aceitação. O espetáculo “enche os olhos” e ganha a sua cumplicidade. melodramáticas e amargas lágrimas de Petra von Kant Em As lágrimas amargas de Petra von Kant (1972). Estruturalmente. descendente das esferas menos favorecidas da classe média. mesmo que os ditos homens não estejam presentes de fato.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual No teatro de Brecht e no cinema de Fassbinder. polido. Ao mesclar a idéia de Brecht relatada acima com dramas familiares e cultura popular. arrogante e egocêntrica estilista bem sucedida. O filme gira em torno de sua dramática relação de amor com Karin – interpretada por Hanna Schygulla. temos o homem como objeto de análise. A partir daí. estampada na parede. e seus sentimentos são impelidos para a conscientização. a partir do sofisticado jogo de excessos estéticos. É 5 . Quando se pensa na estética proposta pelo filme. mas também simbólica. 3. amargurada. quando se pensa em linguagem cinematográfica. A opressão masculina diante das personagens. enquanto os atores contidos e artimanhas narrativas despertam inquietações ao espectador. Toda a construção do filme. há a construção de uma nova ingenuidade do espectador: é uma identificação que surge para abrir portas a uma oportunidade de reflexão e distanciamento. As brechtianas. Os homens retratados na pintura são os únicos presentes em todo o filme. em todo o seu requinte e cores vivas que se destacam nas roupas das personagens diante do amarelo e marrom do espaço que as rodeia. Possui um texto prolixo. acaba por dialogar até mesmo com Nicolas Poussin (1594 – 1665). Ao compor uma parede inteira no espaço retratado no filme. mesmo em torno de toda a sua simplicidade. leva a uma atmosfera dramática. há uma direção de arte que. contido em formalidade e visivelmente teatral. musa da obra de Fassbinder –. As temáticas e estereótipos herdados do melodrama de Douglas Sirk dão ao filme acessibilidade. escandalosa. o que dá à pintura uma característica não só ornamental. artificial. Margit Carstensen protagoniza Petra. o oportunismo e negligência de Karin tornam-se um tormento aos intensos sentimentos de uma Petra von Kant incrivelmente histérica e. como o título denuncia. a obra “Midas e Baco” serve como plano de fundo para as mais diversas ações que costuram a trama – e o drama – de Petra. narrativos e gestuais que expõe ao espectador. que anseia por uma carreira de modelo. é inegável o fato de que o enredo do filme está totalmente entregue ao melodrama. Complementando o efeito Verfremdung. ousando muito além do sutil nível de ironia presente na obra de Sirk. regado a álcool e insatisfação. O efeito Verfremdung. Porém. mas sim como o próprio catalisador do dito efeito de distanciamento. incitando-os a descobrir por si mesmos uma verdade mais complexa do que aquela que aderiam ao entrar no teatro. De repente. presente na forma épica apresentada por Brecht. Dessa maneira. o ator é colocado mais diante da ação ainda. que vai crescendo e ganhando valor subjetivo em conjunto com as ações dramáticas de uma protagonista totalmente atormentada diante de sua vida pessoal.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual revelado ao espectador um universo totalmente degenerado da alta sociedade. de esfacelar as aparências. é um dos fatores que faz de Petra von Kant um filme que transcende a estrutura melodramática. por exemplo. enfatizando um enfoque que vai além da crítica pessoal a suas personagens. não é vista aqui como um defeito. A forma épica preconizada por Brecht será em primeiro lugar outra maneira de mostrar o real.. p. em As lágrimas amargas de Petra von Kant é possível notar não só a instauração de uma distância entre personagem e espectador. mas que alcança principalmente um enfoque social. no entanto.152) Existe aí uma maior potência e intensidade no caráter crítico que compõe o seu cinema. (ROUBINE. A sua ausência. uma derrotada Petra von Kant estilhaçando 6 . Rio de Janeiro: Jorge Zahas Ed. A influência da fórmula brechtiana é explicitada na produção de Fassbinder quando se percebe que a identificação entre personagem e espectador é limitada: os surtos histéricos de Petra von Kant geram emoção. Sua filmografia carrega em si ambigüidade e camadas mais complexas que as vistas em melodramas usuais. A representação por demais estilizada e artificial das atrizes configura uma separação. falta a tão valiosa sensação de catarse. mas também entre ator e personagem. A própria composição fotográfica de As lágrimas amargas de Petra von Kant dá à casa uma angustiante ambiência de claustrofobia e aprisionamento. é ao abrir espaço para o melodrama e para a teatralidade em seu cinema que Fassbinder entrega a si mesmo a oportunidade de reconstruí-los e apropriar-se deles a sua maneira. Ela mobiliza o senso crítico dos espectadores. Introdução às grandes teorias do teatro. 2003. Jean-Jacques. Contudo. mas ainda assim não geram a sensação de empatia. são perceptivas e eficientes. Todo o acervo de elementos melodramáticos está sim presente. Se a forma brechtiana define que o ator narra enquanto o personagem vive. que facilmente poderia ser vista como uma vítima fatal. ouvimos Marlene fora do plano pressionando as teclas de sua máquina de escrever agressivamente. não pertencesse a atmosfera melodramática que é instaurada ao seu redor. é possível dizer que. além de sua função narrativa primária. Finalizando uma análise mais aprofundada de Petra von Kant. um canal estabelecido entre o espectador e as ações que compõem a obra. dentre todos os elementos brechtianos que permeiam esta melodramática obra de Fassbinder. Ela comporta-se como um perfeito mecanismo brechtiano de distanciamento. social e crítico diante do desenrolar da trama ao seu redor. que se entregam ao mesmo tempo em que permanecem contidos em si mesmos. Contudo. Marlene permeia o filme justamente para propor essa quebra entre o emocional e o crítico e relacionar-se com o espectador. durante todo o longa-metragem. preenchendo sempre os espaços do filme como uma discreta manequim. enquanto seu comportamento constrói uma significação que a insere em um contexto narrativo. o realizador alemão Fassbinder acaba por quebrar essa convenção em nome da tomada de consciência proposta por Brecht. torna-se uma megera mimada e injusta no corpo de Margit e no enredo de Fassbinder. de alguma forma. Os movimentos lentos e exagerados presentes nos corpos dos personagens. Ela impede a catarse e as sensações do espectador: o nãoenvolvimento que se dá entre as outras personagens é frequentemente filtrado e mediado por Marlene. As lágrimas amargas de Petra von Kant é apenas um exemplo de como Fassbinder pode tornar o escândalo da natureza feminina um excelente e imperceptível pano de fundo para proporcionar ao espectador uma oportunidade de reflexão crítica nos mais diversos aspectos.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual louças na parede e no chão. É como se subalterna de Petra von Kant. configurando uma reprovação que contamina facilmente aquele que assiste ao filme. enquanto no melodrama convencional é notável uma busca pelo que é crível. Marlene narra o mundo kitsch que a cerca. possui a opacidade necessária à forma épica defendida por Bertolt Brecht. em silêncio. Enquanto Petra tenta seduzir Karin. A personagem. prejudica o realismo de forma proposital. A masoquista subordinada de Petra von Kant destaca-se no filme justamente por seu silêncio e onipresença diante da histeria de nervos e cores que paira constantemente sobre o apartamento da protagonista. o mais interessante e concreto consiste na personagem Marlene. 7 . 18801980. 2006. Rio de Janeiro: Jorge Zahas Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.(Coleção Campo Imagético) 8 . . São Paulo: Cosac & Naify. 1998. O olhar e a cena – Melodrama. 384p. ROUBINE. Melodrama: O gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial. . 1998. A linguagem da encenação teatral. HUPPES. SP: Papirus.. História do cinema mundial/Fernando Mascarello (org.Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual Instituto de Cultura e Arte Curso de Cinema e Audiovisual REFERÊNCIAS XAVIER..). Jean-Jacques. 2003. Hollywood. ROUBINE.Campinas. Cinema Novo. Nelson Rodrigues. Ismail. Introdução às grandes teorias do teatro. 2003. Jean-Jacques. Ivete.
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