Estudos de Lit. Comparada

March 27, 2018 | Author: Rai N S Marques | Category: Poetry, Latin America, Time, Europe, Literary Theory


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Os Percursos da Literatura Comparada Paula Alvim Gattás Bara 1.Introdução Definir a Literatura Comparada é uma tarefa árdua que, na verdade, não leva ao surgimento de conclusões que facilitem compreendê-la. Fundamentar sua metodologia, seus objetivos e seu objeto de estudo, enfim, o campo da disciplina Literatura Comparada cria inúmeras divergências uma vez que não há uma unanimidade entre os estudiosos do comparativismo. A dificuldade de definir seus fundamentos dá-se, também, pelo fato de que esta disciplina não seja imutável; ela muda, constantemente, tanto no tempo quanto no espaço, o que corrobora sua tendência de ajustar-se aos métodos críticos literários que entram em cena no século XX. O surgimento da Literatura Comparada coincide com o da própria literatura1. Como seu objetivo primário é confrontar duas ou mais literaturas, bastou que elas emergissem para o comparativismo manifestar-se. Portanto, o nascimento das literaturas grega e romana é também o marco do nascimento da Literatura Comparada. Apesar de ter despontado há milhares de anos, a Literatura Comparada surge como disciplina e de uma maneira sistematizada no século XIX e num contexto europeu. Ela visa a estabelecer a influência entre autores, servindo de instrumento para mostrar a força de um país sobre outro. Do século XIX até meados do século XX, o vocábulo que melhor define a Literatura Comparada, isto é, sua palavra-chave, é influência, pois ela representa uma ferramenta de afirmação de um país e de culturas nacionais. A partir dos anos 50 e 60 do século passado, René Wellek ajuda a estruturar a Teoria da Literatura como disciplina e introduz uma ruptura com o comparativismo tradicional. Esse estudioso propõe que a Literatura Comparada represente uma leitura profunda de um texto sem levar em conta somente fatores que lhe são extrínsecos, ou seja, ele atribui ao contextualismo, que é tão importante para os comparatistas que o precedem, menos importância. Nos dias atuais, a Literatura Comparada vem ampliando o âmbito de sua pesquisa, fazendo com que o lugar do texto literário na sociedade possa ser revisto. Sem o viés tradicional, passa-se a estudar a relação entre literatura e vida cultural, outras artes e seu público. Enquanto que em seus primórdios a Literatura Comparada encontra-se muito ligada ao nacionalismo, criando relações de submissão cultural, atualmente baniu-se o vocábulo “influência” de seu léxico, deslocando sua atenção para um campo de estudo muito mais abrangente, o qual rompe com fronteiras culturais e busca firmar, ao invés de um confronto entre obras e autores, referências que o texto literário cria a partir de um ponto de vista internacional. Este trabalho tem como objetivo traçar um perfil sucinto da disciplina Literatura Comparada desde o século XIX até os dias de hoje. Procurar-se-á estabelecer as características peculiares a certas correntes comparatistas, buscando um confronto entre elas em cima de seus aspectos, de seus discursos críticos e dos questionamentos que propõem. Sabendo-se da dificuldade de definir a Literatura Comparada, o presente estudo não busca defini-la e sim estabelecer sua evolução através do tempo, do espaço e das novas teorias literárias que surgem a partir do século XX. 2. A Literatura Comparada no continente europeu O século XIX, diante de uma visão cosmopolita, incitou o encontro de vários intelectuais europeus, os quais sentiam uma necessidade de estar em contato com literaturas estrangeiras. A Literatura Comparada foi inserida nas universidades francesas, a partir desse contexto, por Abel 1 NITRINI, 1998, p. 19 como se desenvolveu seu talento. sua história? Este escritor que lhe agrada. uma vez que o método objetivo de pesquisa de filiações e de causalidade por ele é abandonado. Van Tieghem revela a pertinência que tem o contexto. revelando sua tradição historicista nos estudos comparados e estabelecendo a Literatura Comparada tanto como ramo da Literatura Geral quanto da historiografia literária. o que as ocasionou. 90 4 NITRINI. 90 5 VALÉRY apud NITRINI. p. Literatura Comparada. breve ou longa. 1998. estabelecendo. Valer-se-á diretamente de sua formulação sobre a influência para melhor compreendêla: “ocorre que a obra de um recebe no ser do outro um valor totalmente singular. p. em resumo. impossíveis de serem previstas e. Paul Van Tieghem foi o precursor da “escola francesa”. como se ligam umas às outras na forma. examinou e julgou. Com o alvo no estudo de fontes e influências. como foi sua carreira. qual foi a sua origem. renovando as definições do comparativismo. abundante em publicações ou marcada por um único livro que é uma obra-prima? Sob que influências se formou. Este último define em sua aula inaugural o que seria o comparativismo naquela época. ou desviando um pouco o foco de atenção para vinculação dos estudos comparados com uma perspectiva histórica. sendo uma “intrusão do novo na criação”4. filiações. 20 3 VAN TIEGHEM in CARVALHAL e COUTINHO. Essa tendência mostrou-se muito contextualista uma vez que sua preocupação primordial não é a estrutura interna do texto. que relações manteve com alguns de seus contemporâneos dos quais você leu certas produções? 3 No início do século XX. com freqüência. atribuindo ao conceito em questão um caráter emocional. ou “caso de estômago”. no conteúdo. e sim o contexto que o envolve. a maneira pela qual povos transformam-se mutuamente. Jean-Jacques Ampère e Philarète Chasles. p. Criando uma tríade. 1994. o que cada um deles deu e o que cada um deles recebeu. em uma análise comparativista: Aquela obra. Valéry explica a influência recorrendo à psicologia. Em 1931. 1998. deixenos avaliar também o efeito deste perpétuo intercâmbio entre nacionalidades individuais (…)2 Pode-se perceber que a palavra que traduz a concepção comparativista do século XIX é “influência”. cuja metodologia baseia-se em três elementos: o emissor (ponto de partida da passagem de influência). 1998. a Literatura Comparada seguiu através de inúmeras vozes como de Gustave Lanson e de Emile Fauguet até a década de 1930.Villemain. portanto. impossíveis de serem desvendadas”5. aquele conjunto de obras que você leu com interesse. a dependência entre autores se dá como fonte de originalidade e não como imitação. o poeta francês Paul Valéry deu cara nova ao conceito de influência literária. brilhante ou obscura. História Literária. p. Paul Van Tieghem tem como objeto o estudo das diversas literaturas em suas relações entre si. A fronteira entre originalidade e plágio pode ser estabelecia através de como se digeriu a influência exercida por 2 CHASLES apud NITRINI. uma vez que foi justamente nesse período que muitos países europeus se firmaram como nações e buscavam identificar suas raízes culturais. Deixe-nos avaliar a influência de pensamento sobre pensamento. Suas idéias sobre originalidade também são muito interessantes. uma relação de paternidade entre obras literárias. no estilo. 132 . havendo uma forte razão para sê-lo. engendrando conseqüências atuantes. qual o seu destino. Em Crítica Literária. Para ele. no caso o emissor. Literatura Comparada e Literatura Geral. pois isso se trata de assimilação. ele estabeleceu diferenças entre Literatura Nacional. isto é. o receptor (ponto de chegada) e o transmissor (intermediário entre o emissor e o receptor). quando entrou em cena Paul Van Tieghem. segundo suas próprias palavras. ele publicou La littérature comparée. A pertinência desses estudiosos se dá pelo fato de que. Eliot também refletiu sobre os conceitos de influência e originalidade. Também indo contra a concepção de influência e a superioridade da literatura de países da Europa Ocidental que esse vocábulo denotava. que passou a considerar fatos literários independentemente de sua gênese e de seu contexto histórico. como a asiática. nenhum artista. Na Inglaterra. garantindo igual importância às “pequenas literaturas”. ou importações culturais. todo texto é um “mosaico de citações”. 1989. “o texto literário é uma rede de conexões” 7. Resumindo. tem sua significação completa sozinho. É necessário que ele seja harmônico. dos alemães Iser e Jauss. pois. Sua grande contribuição está na crítica que faz da hegemonia de países como França e Inglaterra. p. a palavra-chave passa de influência para referência. A partir da década de 1960. Seu significado e a apreciação que deles fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. a influência é um dos princípios fundamentais para a gênese de uma obra literária. Etimble defende uma tendência anti-historicista e propõe que dois métodos tradicionalmente incompatíveis _ a investigação histórica e a reflexão crítica _ sejam combinados a fim de desenvolver uma poética comparada. mas no sentido crítico. inclinando-se para as idéias de René Wellek. tradição não é reprodução. para esse estudioso francês. Entendo isso como um princípio de estética. 162 . não apenas histórica. Na verdade. Segundo Eliot. os conceitos de fonte. influência e originalidade se renovaram. isto é. Originalidade seria. é preciso situá-lo. Aqui. S. coeso. para este poeta. 39 7 NITRINI. o texto é atravessado por diversas vozes. o que gera pontos de vista diferentes. René Etimble critica a postura chauvinista e nacionalista da Literatura Comparada estabelecida pela “escola francesa”. entre os mortos. algo capaz de modificar a ordem existente. que tem outra concepção de comparativismo como ver-se-á no próximo item. A importância da intertextualiade para a Literatura Comparada encontra-se na questão que o intertexto é inerente à obra e não um processo genético. Julia Kristeva cunha o termo intertextualidade. renovando a tradição. Zhirmunsky. Este item se encerra com uma breve alusão à teoria da intertextualidade formulada por Julia Kristeva em cima da teoria do dialogismo concebida pelo formalista russo Bakhtin e à Estética da Recepção. encarando a literatura a partir de um sistema de analogias tipológicas. qualquer literatura pode influenciar ou ser influenciada. sendo definida a partir da ação de uma obra sobre o escritor que a ela está exposto. 6 ELIOT.outros. e não unilateral6. a partir de suas concepções. uma vez que todo texto faz referências literárias e tem uma matriz que o precede. 1998. Surge então Victor M. p. pois uma obra inovadora possibilitaria uma visão distinta até mesmo das outras obras que a precederam. Bakhtin se preocupa com a idéia de que o texto literário não possui apenas uma voz. estudiosos do Leste Europeu ganharam voz e passaram a propagar suas idéias acerca da Literatura Comparada. tanto direta quanto indiretamente. Portanto. usando as palavras de Kristeva. A partir dessa idéia. Não se pode estimá-lo em si. que seria o dialogismo aplicado em relação a textos diferentes. gerando seu ensaio “Tradição e talento individual” e introduzindo conceitos que repercutiram nos estudos de Literatura Comparada. Nenhum poeta. e sim uma representacão dialética que envolve um senso histórico que permeia pelo passado e presente. T. que nada mais eram que outra forma de designar influência. para contraste e comparação. 1994. realizado em Chapel Hill. Wolfgang Iser e Robert Jauss restituíram ao leitor individuale coletivo. de autor a autor. por uma historiografia voltada para o leitor. p. René Wellek. colocou em xeque a hegemonia francesa nos estudos comparatistas e foi um marco da ascensão dos Estados Unidos nesse campo. 109 . (…) Por que deveríamos distinguir um estudo sobre a influência de Byron em Heine de um estudo do byronismo na Alemanha? A tentativa de restringir a “literatura comparada” a um estudo de “comércio exterior” entre literaturas é certamente infeliz. Portanto. compreendê-la e estruturá-la. Contribuindo para a renovação dos estudos de influência com seu objetivo de substituir a historiografia literária substancialista. O continente europeu foi o berço da Literatura Comparada. de nação a nação. No entanto. foi a do tcheco radicado nos EUA. assim como na América Latina. frisando uma variedade de abordagem e interdiscilpinaridade. Nos anos 60. sem dúvida. não ajudou a estabelecer uma metodologia. Esta distinção. ampliando a definição de Literatura Comparada feita pela tradição francesa e frontalmente opondo-se a ela. definindo o que seria a “escola americana”. até mesmo. por exemplo.A estética da recepção também é uma teoria literária absorvida pelos comparatistas. Remak passou a considerar. o que a ele está intrínseco. p. fundada no estudo da obra e do autor. ele soube definir o objeto de trabalho. O comparatista qua comparatista. 3. pois a literatura “comparada” restringe-se ao estudo das inter-relações entre duas literaturas. além do estudo comparado entre obras literárias. um conjunto incoerente de fragmentos não relacionados: uma rede de relações constantemente interrompidas e separadas dos conjuntos significativos. A Literatura Comparada nos Estados Unidos O 2º Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada. a filosofia e a história. causas e efeitos. O conceito que propôs. Pode-se perceber que Wellek censura o estudo de fonte e influência. nota-se que ele não se apóia somente na postura imanentista dessas correntes. Uma das pronunciações mais importantes. buscando um equilíbrio entre a análise crítica do texto. o qual. de investigar uma única obra de arte em sua totalidade. feita contra a chamada “escola francesa”. 8 Ibidem. propondo uma análise centrada no texto. H. segundo ele um complemento fundamental. a estética da recepção abre perspectivas para que a influência já não se explique mais causal e geneticamente de obra a obra. observar-se-á a repercussão e os desdobramentos da Literatura Comparada nos Estados Unidos. verificaram-se tentativas de defini-la. só poderia estudar fontes e influências. neste sentido limitado. A literatura comparada seria. 181 9 WELLEK in CARVALHAL e COUTINHO. a um cientificismo e a um relativismo histórico do século XIX. sem deixar de lado a relação entre texto e contexto. enquanto a literatura “geral” se preocupa com os movimentos e estilos que abrangem várias literaturas. uma vez que nenhuma obra pode ser inteiramente reduzida a influências externas ou considerada um ponto irradiador de influência sobre países estrangeiros apenas9. nos próximos itens. pela Fenomenologia e pelo New Cristicism. pode prescindir aquele. o estudo das relações entre literatura e outras artes. em 1958. Influenciado pelo Formalismo Russo. Wellek também critica a tentativa de Van Tieghem de distinguir a Literatura Comparada da Literatura Geral. Remak também contribuiu muito para a Literatura Comparada. Por toda sua extensão. e o elemento histórico. segundo o qual os antigos mestres como Van Tighem falharam por não estabelecer um objeto de estudo e uma metodologia específicos e por ficar preso a um factualismo. sendo também cenário para sua evolução. a pintura. mas como resultado complexo da recepção8. seu papel ativo em um texto literário. é insustentável e impraticável. e seria impedido. O continente americano também foi sede para importantes lutas para a definição de uma crítica comparatista. em seu objeto de estudo. de maneira alguma. como. Henry H. demonization. o processo através do qual o poeta completa o poema que o antecede. apophrades. kenosis. A metodologia que o estudioso espanhol propõe critica a idéia de “transmissão” e mostra uma necessidade de comprovação de influência. partindo do pressuposto de que tal relação seja fruto somente de influências poéticas.que são inúmeros. 167 11 CARVALHAL. Bloom caracteriza o processo de desleitura. O crítico literário Harold Bloom exerceu e ainda exerce um papel importante nos estudos de Literatura Comparada. criando relações psíquicas entre escritores. de maneira a criar espaço imaginativo para si próprios”11.estará ordenando-os10. Hoje. é importante frisar que a Literatura Comparada atual nada se assemelha às mais antigas propostas de comparativismo. tessera. mas alterando seu significado. Deslocando o significado de influência para uma perspectiva estética. A proposta de Harold Bloom se estabelece apenas na relação entre grandes poetas. estendendo seu foco de atenção a obras de diferentes procedências. correspondente a um retorno ao ponto inicial. Bloom peca do mesmo modo que os comparatistas tradicionais ao cair em um biografismo que psicologiza a intertextualidade.O que também cria um confronto entre os americanos e os franceses é a abolição de métodos rigorosamente históricos no novo continente e a admissão de estudos comparativos entre autores de uma mesma literatura nacional. contrapondo-se à teoria da intertextualidade proposta por Kristeva. p. comum tanto ao comparativismo quanto ao multiculturalismo. porque não estará fazendo uma lista da soma total desses efeitos. Nos últimos anos. principalmente pelo que postulou em seu livro The Anxiety of Influence. Guillén conectou esse vocábulo ao processo criativo de composição. pois “os grandes poetas fizeram história deslendo outros. não é medir um fato. Há duas palavraschave para seu postulado: “poeta forte” e “desleitura”. fazendo uso de seis termos clássicos: clinamen. em confronto direto com Harold Bloom. O defensor do cânone universal procurou desmistificar o processo pelo qual um poeta ajuda a formar outro poeta e delineou uma teoria para uma crítica literária. banindo sua concepção tradicional. tornando o campo de estudo em questão interdisciplinar. uma mutilação do “poema-pai” através do poeta que o esvazia. A questão de possível influência de A sobre B não pode ser resolvida por uma simples comparação entre A e B. até certo ponto um entusiasta da teoria de Kristeva. Cada estudo de influência é inicialmente um estudo da gênese de uma obra de arte e deve ser baseado no conhecimento e na interpretação dos componentes desta gênese. mas voltam com as cores e as vozes dos poetas posteriores”12. 1998. pois “os poetas mortos voltam. ou seja. gerando seu esvaziamento. o qual envolve várias modalidades de apropriação. sendo uma forma de purgação. p. O método comparativo é insuficiente. Estabelecer uma influência é fazer um juízo de valor. 155 . 1998. Em busca do poeta no poeta. 58 12 NITRINI. seu objeto de estudo foi ampliado. Claudio Guillén pode ser inserido no contexto norteamericano por ter atuado por muito tempo em universidades dos Estados Unidos. os estudos culturais foram adicionados à Literatura Comparada. que significa uma abertura a algo que subjaz no poema antecedente. askesis. 1998. Apesar da origem espanhola. Bloom não considera os aspectos formais em uma obra para fazer um estudo comparativo. O crítico é obrigado a avaliar a função ou abrangência do efeito de A na formação de B. No entanto. que enfatiza o texto. conservando seus termos. marca de ruptura com o “poema-pai”. a partir da qual o poeta desvia-se de seu precursor. Para Cláudio Guillén. Através de uma interpretação psicologizante. que corresponde à desleitura. Ele contribuiu para a ampliação universal nos estudos comparatistas. não sendo mais o mero confronto de 10 GUILLÉN in CARVALHAL e COUTINHO. isto é. p. O que se procura é uma comparação feita em diversos níveis: entre literatura e literatura. No Brasil. ao invés de ser somente literário. o qual se fundava na “identidade entre o país e o Estado-Nação integrado havia séculos em torno de um povo. que vinculou a idéia de autonomia absoluta de qualquer literatura. houve muitos estudiosos que seguiram os modelos mais clássicos de comparativismo. apoiando-se em um comparativismo cultural. características básicas para traçar o perfil comparatista das grandes literaturas. o que se observa na América Latina a partir da década de 1960. No entanto. Tasso da Silveira absorveu integralmente o modelo francês de comparativismo e não apresentou nenhum inovação ou renovação. definir “famílias literárias” através de um conhecimento erudito e enciclopédico. 71 . questões essas que. onde ainda mantém seu “governo”. Tasso buscou. entre literatura e ciências sociais e aí por diante. referindo-se a casos de imitação.dois autores de nacionalidades diferentes. para seus seguidores mais radicais. além de também considerar as culturas que não pertenciam a uma tradição românica. entre literatura e arte. 1998. uma história e uma língua comum”13. do subalterno (do negro. Pizarro elaborou uma tríplice dinâmica que direciona o comparativismo através do estudo da relação entre a América Latina e a Europa. filiação e importação (terminologia própria dos comparatistas da “escola francesa”). Para ela. pois. Buscou-se desvincular-se do domínio europeu propondo um discurso que mostra uma necessidade de descolonização. desbancando o modelo eurocêntrico de Literatura Comparada. antes de conhecer esse processo de descolonização. No entanto. O uruguaio Ángel Rama também propõe uma visão única e global de literatura através de um aparato crítico que unifique todas as literaturas latino-americanas a fim de substituir o método historiográfico europeu. a portuguesa e a francesa. Com os estudos culturais. que são caracterizados pelo diálogo com diversas áreas das ciências humanas e pelo discurso das minorias políticas. como as indígenas. é uma reflexão sobre os modelos de literatura comparada vigentes na época. dessa maneira. empréstimo. à crítica tradicional. p. do homossexual). Parar-se-á por aqui. não se deve trabalhar com qualquer concepção positivista de comparação. Uma das primeiras manifestações que buscou essa libertação foi a do argentino Guillermo Torre. A Literatura Comparada no contexto latino-americano O comparativismo na América Latina trouxe à tona questões relativas à identidade cultural e à criação de uma literatura nacional. o cânone foi desafiado. colocando a literatura hispano-americana em plano de igualdade com as demais. entre as literaturas nacionais no interior da América Latina e entre as 13 RAMA apud NITRINI. Rama procurou compor uma história unificadora. realidade à qual a América Latina não pertencia. procurando uma independência cultural sem abolir o princípio de interdependência. até mesmo paralelamente a estudos de cunho tão tradicional como o de Tasso da Silveira. promovendo a voz recalcada do outro. pois. que compreendesse as três raízes da América Latina: a espanhola. ele procurou definir fontes e influências. pois passou-se também a valorizar a produção marginal. todo discurso é uma manifestação literária e pode ser analisado por um viés político. Os Estudos Culturais tiveram sua origem em um ambiente americano. nada interessavam. Ainda geram muita polêmica. Quem também se pronunciou a favor da instauração de uma “nova” crítica literária comparatista na América Latina foi Ana Pizarro. Seguindo as propostas de Van Tieghem. 4. mas com uma estrutura literária inserida em um contexto histórico e dinâmico. como este estudo não tem a ambição de definir o que é Literatura Comparada. Devido à pluralidade cultural latino-americana. da mulher. imitação e cópia da literatura de um país política. 14 NITRINI. os problemas de influência. p. No contexto brasileiro. Roberto Schwars e Leyla Perrone-Moisés. Apesar de tantos nomes importantes que ajudaram a definir uma crítica comparatista na América Latina. “A Literatura Comparada no contexto latino-americano” se encerra com uma citação de Leyla Perrone-Moisés. 1998. que contribui “para formar a continuidade no tempo e para definir a fisionomia própria de cada momento”15. No entanto. Pizarro consubstancia suas idéias nas propostas de Réne Etimble. pelas idéias de T. p.literaturas nacionais que geram tamanha heterogeneidade. muitos outros estudiosos contribuíram para a implantação de uma Literatura Comparada independente e renovada. 225 . todos trabalham com as idéias de fonte. Haroldo de Campos. econômica e culturalmente dependente de outros. Sua formulação dialética. 1998. a fim de que elas caibam no novo contexto latino-americano. como Silviano Santiago. O sentido de influência é visto sob vários espectros. nessa sua afirmação. Alguns tentam provar que o pensamento latino é autóctone. 204 16 SCHWARS apud NITRINI. segundo a qual entre o “localismo e o cosmopolitismo constitui uma lei de evolução da vida espiritual do Brasil”14. Isto posto. de onde sai a água pura e influência”. As contribuições de Antonio Candido para a Literatura Comparada na América Latina são inúmeras. como Silviano Santiago. S. seu propósito de inserir o estudo crítico literário tanto num sentido diacrônico quanto numa visão sincrônica. da “escola francesa”. Antonio Candido desenvolveu a questão de influência como um sistema integrado e dinâmico de autores. outros negam “a mitológica exigência da criação a partir do nada”16. mostrando a necessidade de se opor à crítica comparada tradicional e de reformular e inovar as idéias comparatistas. que seria a recepção passiva desse fluxo. como Roberto Schwars. a origem. o brasileiro Antonio Candido é a personalidade de mais relevância que será tratada neste item. não ignorando. Ele prega a prática de análise de um texto. a literatura dos “colonizados” passou a se mostrar original. da estética da recepção e da intertextualidade. Antonio Candido reconhece que as literaturas latino-americanas são ramificações das literaturas metropolitanas. descartando-as ou redefinindo-as. Suas formulações e idéias são muito distintas em vários aspectos. 1998. seu conceito de influência não carrega o sentido determinista. Há um crítico francês que chamou a atenção para o aspecto aquático e fluido desses termos: a “fonte”. principalmente. um movimento dialético entre o localismo e o cosmopolitismo e uma concepção de literatura como sistema que a relaciona com a sociedade. que mostra a repercussão da terminologia da Literatura Comparada em um contexto de uma literatura que já foi colonial. 196 15 CANDIDO apud NITRINI. isto é. ao decorrer do tempo. positivista ou colonialista. tornando-se algo que é assimilado reciprocamente. p. colocando-se de forma igualitária ao lado da européia e contribuindo ao universo cultural. portanto. cópia e originalidade. Eliot e pelo New Criticism. Nota-se. As propostas de Antonio Candido tornaram-se uma ferramenta de estudos comparatistas totalmente independentes de qualquer escola ou tendência de Literatura Comparada. influência. uma vez que ele representa a realização do antigo projeto de busca da identidade nacional através da criação de um projeto de literatura nacional. Contudo. não sendo somente sofrida. distanciando. Impregnado pela antropologia social inglesa. obras e público. Primeiramente. representando sua dependência cultural. não o deixa cair em um nacionalismo ingênuo. para mim o maior poeta da humanidade: das indescritíveis descobertas operadas no texto dos sonetos (…). pôde-se traçar um perfil de uma análise multifacetada. experimentando as mesmas angústias da fragmentação do século XX. o rancor do povo devedor. H. 1998. após um estudo sobre as mais valiosas vozes que se pronunciaram desde o século XIX. p. Shelley. Vinícius diz: E que não dizer de minha grande dívida à poesia inglesa. uma vez que há muito tempo vê-se uma relação entre eles. H. não tem o cunho tradicionalista da “escola francesa” por estar abolindo a idéia de superioridade de textos europeus ao colocar os dois poetas em pés de igualdade.Ora.18 17 PERRONE-MOISÉS apud NITRINI. p. e que tanto me deram nos duros caminhos da poesia. Wordsworth. A princípio. de que já falei atrás. mas sobre o que quero voltar. Figurarão nestas páginas o brasileiro Vinícius de Moraes e o inglês W. Em gramática. dois poemas foram escolhidos para estabelecer uma breve pesquisa comparada. excursionando também pelo Brasil. na comparação de nossas literaturas com as literaturas metropolitanas. É certo que o que será dito a seguir parece possuir marcas de uma hierarquia literária. percebe-se características que também são peculiares à poética de Auden e procurar as raízes dessas similaridades é uma busca interessante. apesar de se basear na relação entre dois poetas de nacionalidades diferentes. mas se pretende provar o contrário. O que não dizer das noites do terrível inverno de 1938. morou nos Estados Unidos e morreu na Áustria. Ambos são seres expatriados. Em um artigo intitulado “Por que amo a Inglaterra”. viveu na Inglaterra (como estudante). E de acordo com os pressupostos historicistas da literatura comparada. comecei a ler e a amar. Primeiramente. E como de fato já fomos colônias. Não foi possível escolher uma metodologia específica para este trabalho de Literatura Comparada. Para isso. Auden e Vinícius de Moraes tête-à-tête A escolha de dois poetas que poderiam representar um exemplo de uma crítica literária comparatista não foi difícil. “de igualdade” ou “de inferioridade”. Contudo. nós vamos sempre levar desvantagem17. junto com ela. o espaço e a importância de uma análise literária. Dreyden. assim. Ambos são homens que viveram numa mesma época. as literaturas americanas já nasceram em línguas que não lhe são próprias. que está no nome da literatura comparada. construindo uma vida na Bahia e morrendo no Rio de Janeiro. em companhia de Milton. nos Estados Unidos. 1998. Lear. Auden e Eliot. H. o contraditório termo “influência” será tomado para dar início à análise dentro da perspectiva dos estudiosos atuais da Literatura Comparada. que leva em conta uma análise textual intrínseca e uma perspectiva histórica contextual. W. 271 18 MORAES. que circularam por vários países do mundo sem conseguir realmente estabelecer suas origens. Que não dizer do que devo a todos esses poetas todos que. Auden viveu em sua terra natal. mas marcam um “encontro” entre os dois poetas. já carrega a idéia de valor. Na poesia de Vinícius de Moraes. Portanto. McNeice. Auden têm uma obra muito extensa. línguas que já têm uma tradição. 872 . Como neste estudo a prioridade não é estabelecer um comparativismo entre estes dois escritores. 5. desde Chaucer. esta comparação. desde os anônimos elizabetanos. O que não dizer da imensa dívida a Shakespeare. passadas no meu estúdio de High Street. sua terra natal. na França e no Uruguai (como funcionário do Itamaraty). esses dados contextuais e factuais podem parecer insignificantes. Blake. Vinícius correu o mundo. a presente análise é construída em cima de “Funeral Blues” e de “Soneto de Separação”. Depois a palavra “comparar”. Keats. Tanto Vinícius de Moraes quanto W. Auden. Coleridge. um “comparativo” é “de superioridade”. restringindo. permanece a sensação de dívida e. que pode ser caratcterizada por períodos distintos por apresentarem diferenças nas suas diversas fases. e Fuchik. Auden e sobretudo a literatura inglesa não são “pais” da poética de Vinícius. Do mesmo modo. desde o esquema rítmico até as aliterações. e Éluard. Em carta a Lauro Escorel. é Rilke. usando a linguagem em busca sua. p. isto é. Os tempos mudaram_ que é que se vai fazer? Fazer poesia como fazem Eliot. é Mallarmé. p. voltar a cara. p. Pound_ dentro dos “caminhos da poesia”? Ahn. ahn… Me parece fugir. não se dará uma relação de filiação. 2003. pois ele presta atenção em si próprio. 1998. poeta da pesada. McClatchy escreveu: “Quem poderia imaginar Pound ou Eliot falando de cereais em um poema? Auden o fez”21. Auden. uma vez que o poema repousa na repetição do verbo “fazer” e na utilização de um advérbio tão comum: “de repente”. São poemas que dessonelizam o que há de mais solene no amor. como será discutido mais adiante. Vinícius de Moraes também reconhece que há outros poetas que o ajudaram a construir sua poética. o poema de Vinícius carrega uma forte musicalidade.Se Van Tieghem lesse esse texto escrito por Vinícius. há um requinte imenso. No entanto. há uma relação de intimidade e distância. segundo Eliot. nas suas convicções e fraquezas. Mas acho absurdo quando dizes que não acreditas ser este o caminho da poesia. em vez de vir do tom proferido. mas ambos se apegaram a algo corriqueiro para lhe dar uma gravidade que. O brasileiro os leu exaustivamente. poetinha vagabundo. Esse tom anacrônico também se mistura a algo moderno em Vinícius de Moraes. não querer se amolar. D. como nota-se com a leitura de “Soneto de Separação” e “Funeral Blues”. ou a morte como alguns preferem ver. É possível que a poesia que eu esteja fazendo seja ruim_ o que é diferente. mas que foi escrito por um poeta que estava democraticamente ligado a sua audiência. renovando a tradição. 19 CASTRO. Alguns dos poemas de temática amorosa mais belos foram escritos por Auden e Vinícius. . mostrando que ela não possui pais. O que os torna tão sublimes é o fato de que eles não se atêm à pieguice e ao sentimentalismo românticos do século XIX. Ele se voltou para os mais diferentes poetas que foram surgindo com o início do fim da supremacia européia. Vinícius é definido por Chico Buarque e Toquinho na canção “Samba pra Vinícius” como “poeta. mas reconstrói uma obra modificando a ordem existente. utilizando o que ele chamou de light verse. por ela representar a tradição literária dos países europeus ocidentais. A perda. poesia escrita em uma linguagem direta e similar ao discurso coloquial. ele o usaria para corroborar sua definição de influência. com uma temática amorosa. contudo. como de resto qualquer caminho vivido com sinceridade. do pagode. Por detrás. subjaz no paradoxo que é formado pela estrutura poética. ocorre de maneira sofrida. 113 21 AUDEN. ele “realiza seus versos correndo o dedo pelo violão”20. pode-se perceber que o poeta brasileiro não teve sua base somente na literatura inglesa. x. O resultado disso pode ser notado em “Funeral Blues”. possibilitando uma visão diferente daquilo que o precedeu. Ele faz uso de um soneto (forma clássica de composição). No entanto. Isso é um fato que os une: conseguir aproximar o poema da oralidade sem que se perca ou diminua suas qualidades líricas. J. revelando certa profundidade e complexidade na sua escrita aparentemente simples.19 Apesar de serem claras as semelhanças entre Vinícius e Auden. mas é também Neruda. É interessante notar que enquanto o poema de Auden se assemelha à fala coloquial. Vinícius escreveu: Poesia é Rimbaud. há algo escondido em sua poesia. 1995. mas o que impera em “Soneto de Separação” é uma extrema simplicidade. 156 20 CANDIDO in MORAES. Em Auden. ele inovou. um poema sentimental. mas múltiplas vozes que a atravessam. As I walked out one evening.do perdão”. 1989. Rio de Janeiro: Imago. por terem tido as mesmas fontes e por terem se identificado de maneira que os convergiu para um mesmo fazer poético. São Paulo: Companhia das Letras. uma essência poética que faz com que eles se assemelhem tanto na forma. 6. os estudos chegaram a tal ponto que se pode estabelece uma relação entre literatura e outras artes. Literatura comparada. Bibliografia AUDEN. São Paulo: EDUSP. Teoria e Crítica. Tania Franco. Literatura Comparada: História. Os dois se parecem por abordaram temas de formas similares. Tania Franco e COUTINHO. a fim de sustentar a tese de que ela muda de acordo com as correntes de crítica literária que vão surgindo. 1998. a Literatura Comparada atual reviu toda sua terminologia a fim de adequar esse campo de estudo às transformações de um mundo que deu voz às mais diferentes culturas que ficaram caladas por muito tempo assistindo à hegemonia dos países europeus ocidentais. 7. Ensaios. 1995. o que os aproxima é. Ruy (org. CARVALHAL. NITRINI. . Um Mapa da Desleitura. CARVALHAL. procurou-se discutir o comparativismo no tocante de algumas questões que são básicas para a Literatura Comparada. 1994. H.S. 1995. Rio de Janeiro: Rocco. Eduardo de Faria. Sandra. quanto no conteúdo e na maneira de pensá-lo. Pôde-se perceber que os estudos literários comparados não estão mais somente a serviço de uma afirmação de literaturas nacionais. BLOOM. W. T. além de uma vida cheia de coincidências. Conclusão Em todo este estudo. Procurou-se mostrar uma linha evolutiva que ela seguiu. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Querido poeta: correspondência de Vinícius de Moraes.). Harold. 2003. Portanto. Não se atendo a um comparativismo positivista e factualista. São Paulo: Art Editora. ELIOT. Não é Vinícius que se parece com Auden porque ele o leu. Literatura comparada: textos fundadores. 1999. Hoje. Vinícius de Moraes: poesia completa e prosa. Nova York: Vintage. MORAES. Vinícius de. não só realizando um paralelo entre dois textos literários. CASTRO. 1998. São Paulo: Editora Ática.
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