estabilização psicotica

May 3, 2018 | Author: Mônica Venâncio | Category: Jacques Lacan, Psychosis, Psychoanalysis, Sigmund Freud, Psychology & Cognitive Science


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1PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ricardo Monteiro Guedes de Almeida A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA E O SINTHOMA JOYCIANO: um nó, uma invenção MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2012 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ricardo Monteiro Guedes de Almeida A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA E O SINTHOMA JOYCIANO: um nó, uma invenção Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, sob orientação do Prof. Doutor Raul Albino Pacheco Filho. SÃO PAULO 2012 3 Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura_________________________________________________ Abril/2012 e-mail. [email protected] A447 Almeida, Ricardo Monteiro Guedes de. A estabilização psicótica e o sinthoma joyciano: um nó, uma invenção / Ricardo Monteiro Guedes de Almeida. - São Paulo: s.n., 2012. 97 p.; il. color; 30 cm. Referências: 95-97 Orientador: Prof. Doutor Raul Albino Pacheco Filho. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós- Graduação Psicologia Social, 2012. 1. Psicose. 2. Psicanálise. 3. Delírio. I. Pacheco Filho, Raul Albino. II. Título CDD 618.92892 4 ALMEIDA, Ricardo Monteiro Guedes de. A estabilização psicótica e o sinthoma joyciano: um nó, uma invenção. 2012. 98 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. Banca examinadora: ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ 5 Dedico este trabalho à minha família e amigos. 6 AGRADECIMENTOS À minha mãe, Drª. Severina Monteiro Guedes de Almeida, pelo apoio e por garantir os meus estudos durante toda a minha vida, herança que ninguém pode tirar. À minha querida amiga, Drª. Maria Dolores Fortes Alves, por suas preciosas orientações, paciência e conversas agradáveis. Ao meu orientador, Prof. Doutor Raul Albino Pacheco Filho, pelas orientações e confiança. Ao meu irmão, Rodrigo Monteiro Guedes de Almeida, que contribuiu como pôde para a realização deste trabalho. À Banca Examinadora pela atenção e disposição. Ao CNPq pelo financiamento da minha pesquisa. 7 “Ninguém presta à sua geração maior serviço do que aquele que, seja pela sua arte, seja pela sua existência, lhe proporciona a dádiva de uma certeza.” James Joyce ALMEIDA, Ricardo Monteiro Guedes de. A estabilização psicótica e o sinthoma joyciano: um nó, uma invenção. 2012. 97 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. RESUMO O objetivo da presente pesquisa é trazer à discussão a contribuição que o sinthoma joyciano representou para a psicanálise, no que diz respeito às estabilizações psicóticas. No contexto da saúde mental, as soluções singulares que os sujeitos psicóticos nos apresentam exigem uma compreensão teórica da clínica das psicoses que vão além de uma clínica da metáfora, sem necessariamente abandoná-la, mas incluindo uma noção de suplência que não esteja restrita à metáfora delirante. Para tal efeito, revisamos as principais estratégias de estabilização abordadas por Lacan, dando ênfase ao sinthoma e ao caso paradigmático de Joyce. Esta pesquisa constituir-se-á em um trabalho teórico que não visa uma reflexão literária da obra do escritor irlandês, James Joyce. Apesar de abordarmos a escrita de Joyce, com seus enigmas e suas inusitadas epifanias, nosso foco continuará sendo o sinthoma joyciano como um exemplo de escritura que faz nó borromeano, sustentando, assim, a união dos três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Em nosso percurso, chegamos à conclusão de que o sinthoma joyciano, representa uma solução de sua falha paterna, uma suplência singular de sua forclusão de fato em um período anterior ao próprio desencadeamento psicótico. O que representava na clínica da psicose, e ainda representa um exemplo de suplência, que apesar de exercer a mesma função do Nome-do-Pai, não diz respeito ao significante do Nome-do-Pai, assim como, uma prova incontestável de que para além da metáfora delirante haveria uma multiplicidade de soluções singulares que o sujeito psicótico poderia apresentar. Palavras-chave: Delírio, Psicose, Psicanálise, Joyce, Sinthoma, Lacan, Nó borromeano. 9 ALMEIDA, Ricardo Monteiro Guedes de. The psichotic stabilization and sinthome joyciano: a node, an inventation. 2012. 97 p. Dissertation (Master in Social Psychology) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. ABSTRACT The goal of this present research is to bring to the discussion what contribution the sinthome joyciano represented to psychoanalysis, as regards psychotic stabilizations. In the context of mental health, the unique solutions that the psychotic subjects present us requires clinic theoretical understanding of psychoses that go beyond a clinic of the metaphor, without necessarily abandon it, but including a notion of substitution that is not restricted to the delusional metaphor. To this end, we review the major stabilisation strategies addressed by Lacan, giving emphasis to the sinthome and the paradigmatic case of Joyce. This research will be a theoretical Job that is not intended to create a literary reflection of the work of the Irish writer, James Joyce. Although we approach the writing of Joyce, with their puzzles and their unusual epiphanies, our focus will continue to be the sinthome joyciano as an example of Scripture that makes, sustaining, so node Borromean knot, the Union of the three registers: the real, the symbolic and the imaginary. On our journey, we came to the conclusion that the sinthome joyciano, represents a solution of his paternal failure, a natural necessity of his foraclusão in fact in an earlier period to trigger psychotic himself. Represented in the clinic of psychosis, and still represents an alternate example, that although exercise the same function of the name-of-the-father, does not concern the significant Parent-name, as well as undeniable evidence of that, beyond the metaphor would be delusional a multiplicity of natural solutions that the psychotic subject could present. Keywords: Delirium, Psychosis, Psychoanalysis, Joyce, Sinthome, Lacan, Borromean knot node. 10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1: Modelo teórico saussuriano ....................................................................... 38 Ilustração 2: O nó borromeano de três anéis .................................................................. 63 Ilustração 3: Nó levógiro, figura planificada do nó borromeano de três anéis ............... 64 Ilustração 4: Nó de trevo ................................................................................................ 67 Ilustração 5: Nó borromeano com quatro nós de trevo .................................................. 68 Ilustração 6: O nó borromeano com quatro anéis ........................................................... 70 Ilustração 7: O nó que rateia ........................................................................................... 89 Ilustração 8: O ego que corrige....................................................................................... 91 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 12 1 AS ESTABILIZAÇÕES PSICÓTICAS ..................................................................................... 18 1.1 O DESENCADEAMENTO E AS ESTABILIZAÇÕES ..................................................... 18 1.1.1 A suplência .................................................................................................................... 23 1.1.2 O objeto a no bolso ....................................................................................................... 25 1.2 SCHREBER E JOYCE NA PERSPECTIVA DO CAMPO DO GOZO ............................. 28 2 A LETRA E A ESCRITA A-NÃO-SE-LER .............................................................................. 34 2.1 A INSTÂNCIA DA LETRA ................................................................................................ 34 2.2 A LETRA LIXO ................................................................................................................... 41 2.2.1 A carta significante........................................................................................................ 42 2.2.2 A carta letra de gozo...................................................................................................... 44 2.3 ESCRITA A-NÃO-SE-LER ................................................................................................. 51 3 A TOPOLOGIA DO NÓ BORROMEANO .............................................................................. 59 3.1 LACAN E A TOPOLOGIA DO NÓ .................................................................................... 59 3.2 O NÓ BORROMEANO DE TRÊS ...................................................................................... 61 3.2.1 O quarto anel ................................................................................................................. 65 4 JOYCE, O SINTHOMA ............................................................................................................. 71 4.1 “MAS ISSO NÃO”: Singularidade do sinthoma.................................................................. 71 4.2 SINTHOMA MASDIAQUINO ............................................................................................. 75 4.3 A ESCRITA DO EGO.......................................................................................................... 78 4.3.1 Um corpo que cai .......................................................................................................... 79 4.3.2 A carência paterna em Joyce e o fazer-se um nome ..................................................... 83 4.3.3 Da epifania ao ego particularíssimo de Joyce ............................................................... 87 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 92 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................... 95 12 INTRODUÇÃO Lacan, em 1966, ao apresentar a tradução das Memórias do Presidente Schreber, prestou homenagens a Freud, já que este havia introduzido o conceito de sujeito na consideração da loucura, em vez de pensar esse tema sob a perspectiva de déficit e de dissociações das funções. Nós aqui também poderíamos prestar nossa homenagem a Freud pelo fato dele, em um período anterior à publicação do texto A Interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1996), ou seja, antes mesmo da própria fundação da psicanálise, já ter demonstrado uma tentativa de dar conta da psicose através dos textos: “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996) e “Observações adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa” (1896/1996). Incluindo, assim, desde cedo, a psicose entre os assuntos relevantes da psicanálise. Relevância esta que ainda persiste, sobretudo, em nossa prática clínica. Principalmente quando levamos em consideração a recomendação lacaniana de que não devemos retroceder diante da psicose e nem diante dos problemas que ela apresenta à clínica. O tema da psicose também esteve presente desde o início do percurso teórico de Lacan na psicanálise. De fato, o que o levou aos confins da psiquiatria tradicional e o que proporcional a sua introdução no estudo das obras de Freud, foi a defesa, realizada em 1932, de uma tese de doutorado intitulada: “A Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade”. Lacan veio a escrever: “como aconteceu conosco quando um primeiro estudo da paranóia, trinta anos atrás levou-nos ao limiar da psicanálise” (LACAN, 1966/1998, p. 543). Grande foi a sua produção teórica, apesar dos constantes e marcantes conflitos na história de sua trajetória na psicanálise, a exemplo de sua “excomunhão maior” (1964/2008, p. 11)1 da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Mas ele pôde inspirar muitos trabalhos e conquistar discípulos. Em seu percurso teórico se destacou por trazer uma nova perspectiva à psicanálise tradicional, com sua proposta de retorno a Freud, ele pôde contribuir para a psicanálise com maior precisão e rigor através de suas interpretações, muitas vezes 1 Termo este utilizado por Lacan no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, com o qual faz menção à censura ao seu ensino por parte de uma Comissão Executiva da IPA. A partir de então, foi imposta a condição de que a sua afiliação naquela organização só seria aceita diante da garantia de que ele não voltaria a exercer a atividade de formação de analistas. 13 singulares, do conhecimento de áreas como o estruturalismo, linguística e antropologia, além da filosofia e das matemáticas. O ensino de Lacan, juntamente com sua clínica da psicose, pode vir a ser pensado com base no campo da linguagem e no campo do gozo, todavia, devemos lembrar que esses dois campos não dizem respeito a dois momentos da teoria lacaniana que se excluem, ou seja, não devemos pensar que o segundo veio para anular o primeiro. Não se trata disso e não é essa a postura que adotamos aqui. Dito isso, naquele que poderia ser denominado como o primeiro campo, o da linguagem, Lacan ao abordar os fenômenos psicóticos tinha como ênfase as anomalias da significação e da identificação imaginária. Enquanto que no campo do gozo, o psicanalista francês passa a enfatizar os fenômenos de gozo diretamente ligados ao significante, num curto circuito sobre o imaginário (QUINET, 2006). Quem mais inspirou Lacan neste campo do gozo não foi o caso de psicose tão conhecido de Schreber, mas o caso de James Joyce que com sua prática de escrita e sua encarnação do sinthoma, que o psicanalista irá abordar principalmente no Seminário 23, O sinthoma2 (LACAN, 1975-1976/2007). Assim, o caso de Joyce é o que melhor exemplifica a teoria do sinthoma, de modo que, se levarmos em consideração que o sintoma passa a ser visto como uma função da letra que fixa o gozo fora da linguagem. Então, Joyce com seu sinthoma se destaca porque sua escrita consegue transformar todo o “gozo-sentido” que a literatura habitualmente veicula num gozo da letra, fora do sentido. É nesse ponto que o meu interesse de estudo converge no tema do sinthoma joyciano. Interesse que teve origem ainda na graduação, mais especificamente quando, ao iniciar o estágio junto ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), fui encaminhado pela coordenadora para realizar um trabalho de escuta de uma jovem com diagnóstico de paranóia. Ao consultar a ficha de prontuário, tomei conhecimento de que a escrita tinha um papel importante na constituição do caso, uma vez que a paciente andava sempre com uma bolsa, contendo vários livros escritos e confeccionados por ela mesma. Eram 13 livros, cujo conteúdo variava entre relatos do seu dia a dia, ou contos sobre o amor perdido. Como concluí, tratava-se de um caso 2 Lacan irá lançar mão de uma forma de grafia antiga da palavra sintoma (symptôme): Referenciem-se pelo Bloch e von Wartburg, dicionário etimológico bem sólido, vocês lerão que o sintoma, de início, foi escrito como sinthoma (LACAN, 2007, Joyce: o sintoma, p. 158). Esta oposição entre o antigo e o atual não ocorre de forma leviana, como Lacan vai deixar claro em uma conferência na Universidade de Yale de 14 de novembro de 1975, não se trata de uma pura paixão etimológica, ou seja, não diz respeito a uma tentativa de resgatar um termo antigo. Trata-se de uma clara separação entre sintoma e sinthoma, o que representa uma nova formação psíquica. Uma inovação psicanalítica que vai ser identificada com o quarto aro do nó borromeano. 14 de psicose cuja estabilização não era resultado de uma elaboração delirante, mas, sim, de um trabalho de criação escrita. Aqui devemos esclarecer desde já, que há uma diferenciação entre aquilo que diz respeito a um texto escrito e aquilo que é da ordem da escritura de um nó. Para compreendermos melhor esse ponto, um salto até o final do Seminário 23 pode se fazer necessário, mais precisamente na última aula deste seminário dedicado a Joyce, na qual Lacan apresentou uma distância entre a escrita e a psicanálise. Como ele afirma, “A psicanálise é outra coisa.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 143), ela passa por certo número de enunciados e não há nada nela que leve necessariamente o sujeito a escrever. Em Joyce, Lacan encontra uma invenção que faz ponto de amarração dos três registros e que passa pela escrita, mas isso não quer dizer que toda a invenção de um Sinthoma deva passar necessariamente por essa via. Pois, o texto strictu sensu, como veremos, não diz respeito aos conceitos psicanalíticos, que Lacan abordou sobre a denominação de letra e escritura. Certamente, não queremos propor em nossa dissertação que o objetivo de uma análise seja transformar o analisante em um escritor. Não almejamos, muito menos, propor a escrita na clínica da psicose de acordo com os moldes de uma ludo terapia. Longe disso, pretendemos abordar o sinthoma em Joyce, que apesar de estar relacionado com uma escrita literária, diz respeito à escritura de um nó, de um enodamento dos três registros. À luz do ensino de Lacan, a estrutura psicótica, mesmo que não se encontre fora da linguagem, se encontra estruturalmente fora-do-discurso. Como veremos no decorrer desta dissertação, a psicose é marcada por uma forclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna. Pela não inscrição do significante paterno, o psicótico se encontra sujeito a uma desestruturação, e à impossibilidade de um laço social fundamentado na metáfora paterna. Com isso, não queremos dizer que o psicótico não pode vir a fazer laço social. Como veremos posteriormente, os casos clássicos de Schreber e James Joyce exemplificam duas possibilidades distintas de estabilização subjetiva em que o sujeito psicótico pode recorrer pela busca de sua solução. A primeira através da metáfora delirante, que é uma formação imaginária; e a segunda, pela via da emergência do sinthoma, onde há uma conjunção do Simbólico com o Real. Dessa forma, já não se trata de um único significante capaz de exercer essa função suplementar do caráter nodal dos elementos simbólicos, reais e imaginários, mas uma variedade de possibilidades que Lacan representou como Nomes-do-Pai. 15 Sendo assim, nesta dissertação nos focaremos em uma clínica da psicose que não se encontra mais restrita ao delírio como uma tentativa de cura do psicótico, pois é o que encontramos em casos como os de Arthur Bispo do Rosário3 e James Joyce. Desta forma, no campo do gozo lacaniano, o sintoma passa a ser visto como uma função não mais da metáfora, que fixa o significado no significante, mas na função da letra que fixa o gozo, sem Outro. Em nossa experiência clínica na saúde mental, podemos presenciar casos em que as soluções singulares dos sujeitos psicóticos não seguiam necessariamente o mesmo perfil que a solução de Schreber. Em outras palavras, quando muito, se apresentava uma elaboração delirante, muitas vezes, ela era acompanhada de um trabalho de criação, seja como uma forma do sujeito psicótico de promover uma separação do objeto a e, assim, localizar o gozo aterrador do Outro em algo fora de seu próprio corpo, seja como forma de estabilização ou, então, até mesmo como forma de suplência. Dito isso, nessa dissertação, nossas indagações podem ser resumidas na seguinte questão: Penso no estudo do sinthoma joyciano como contribuição para a melhor compreensão das diversas soluções que os sujeitos psicóticos podem vir a apresentar. Assim, especificamente nossa pergunta se faz: de que forma a concepção lacaniana do sinthoma, formulada na última parte da sua obra, a partir de suas reflexões sobre a topologia do nó borromeano, e embasada em sua investigação do caso paradigmático de Joyce, pode possibilitar ultrapassar uma concepção da clínica com psicóticos limitada à noção de metáfora delirante? A partir do estudo da obra lacaniana, objetivamos trazer à discussão a contribuição que o sinthoma joyciano representou para a psicanálise, no que diz respeito às estabilizações psicóticas. A partir disto, buscamos oferecer uma possibilidade para que o psicanalista lide com aquilo que possa representar ao sujeito psicótico uma solução singular que visa suportar o gozo aterrador do Outro, ou, até mesmo, a suplência. A relevância científica e social deste trabalho deve-se primeiramente, ao fato de que pretendemos abordar o sinthoma na psicose sob a prerrogativa da singularidade de cada caso. 3 Caso relativamente famoso de psicose, tanto no Brasil quanto fora. Bispo produziu uma obra com mais de 800 peças, principalmente, no período em que passou internado em instituições psiquiátricas por mais de meio século. Apesar de não ter recebido nenhuma formação de artes, sua obra é vista por Marta Dantas como: “de uma contemporaneidade incontestável, está em sintonia com o que há de mais radical e criativo em algumas das vanguardas da segunda metade do século XX.” (DANTAS, 2009, p. 14). Porém, para além de qualquer crítica artística de sua obra, abordamos aqui o caso de Bispo como exemplo de solução psicótica em que o delírio por si só não foi capaz de conter o gozo aterrador do Outro (QUINET, 2003). 16 Para além de uma mera visão standard das classificações, iremos pensar a singularidade do sintoma. Além disso, nosso interesse de estudo surge atrelado à necessidade de uma compreensão teórica da clínica das psicoses que transcenda os limites de uma clínica da metáfora delirante, uma vez que esta não se revelava suficiente para dar conta das exigências que nos eram impostas pelas soluções singulares que os sujeitos psicóticos nos apresentavam. Havendo, assim, a necessidade que nós psicanalistas voltemos nossa atenção, também, para o último ensino lacaniano, abarcando, dessa forma, conceitos como: letra e escrita do nó. Frente a essa perspectiva, o segundo ponto de relevância de nossa investigação é que pretendemos oferecer subsídios para que os psicanalistas possam refletir sobre as soluções singulares que os sujeitos psicóticos possam apresentar. Sendo assim, esta dissertação irá se constituir em um trabalho teórico voltado para os psicanalistas que atuam na área da saúde mental, no qual não iremos discutir um caso específico de nossa clínica, mas ao invés disso, iremos abordar aquilo que Lacan propôs por meio do caso de Joyce. No primeiro capítulo, far-se-á uma breve introdução às principais estratégias de estabilização psicóticas estudadas por Lacan: a metáfora delirante e o sinthoma. Percorremos, inicialmente, a perspectiva estrutural da psicose adotada por ele, tendo como ênfase as consequências da não inscrição do Nome-do-Pai, em seguida, visando o tema da estabilização psicótica, abordaremos a questão da suplência e do objeto a na psicose. Por fim, tendo como base o campo do gozo, promoveremos uma diferenciação entre o caso do Presidente Schreber, como forma de construção de metáfora delirante que proporcionou um restabelecimento do sujeito, e o caso de James Joyce que por meio de sua identificação com o sinthoma veio a apresentar uma espécie de autoprevenção que o livrou de um possível desencadeamento da psicose. Posteriormente, no segundo capítulo, abordar-se-á, primeiramente, o percurso do conceito de letra no ensino de Lacan, dando ênfase à distinção que o psicanalista irá propor entre a letra e o significante. Assim, versaremos sobre a letra, como Lacan propõe em 1957, no texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, no sentido de: “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN, 1966/1998, p. 498) e, em seguida, nos aprofundaremos na distinção entre significante e letra, tendo como foco principal o Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, sobretudo no que diz respeito à aula intitulada de Lição sobre Lituraterra. Por fim, abordaremos a hipótese lacaniana de que o escrito não é para ser lido. Algo que não está restrito aos achados de 17 Lacan, como ele mesmo pontua, porque, muito antes dele, foi Joyce quem introduziu o escrito como não-a-ler. Com base na topologia do nó borromeano, Lacan irá articular de forma inovadora, a imbricação dos três registros da experiência: Real, Simbólico e Imaginário. Sendo assim, no terceiro capítulo, abordaremos o trabalho de Lacan com a topologia do nó borromeano, partindo da perspectiva de que o uso desse instrumento conceitual, pela psicanálise lacaniana, não deve ser compreendido apenas como uma metáfora ou alegoria. Em seguida, versaremos sobre a constituição do nó borromeano de três de acordo com o Seminário 22, R. S. I., para posteriormente entrarmos na questão que tanto nos interessa a compreensão do sinthoma joyciano, ou seja, a aceitação e trabalho de Lacan com o nó borromeano de quatro anéis. Pois, como veremos, o psicanalista vai questionar a capacidade do nó borromeano de três de sustentar aquilo que é da ordem do sujeito, o que representou em seu ensino a necessidade de um quarto elemento que enoda os três registros, sendo que esse último foi denominado por Lacan de sinthoma. Por fim, no último capítulo, abordaremos o sinthoma propriamente dito. Para tanto, primeiramente, a exemplo de Lacan, versaremos sobre a visão do Éden joyciano e o “mais isso não” com o propósito de introduzirmos uma das notas fundamentais sobre o sinthoma, a saber: a singularidade. Em seguida, discutiremos sobre o sinthoma masdiaquino, termo este forjado por Lacan e que mantém uma homofonia com saint homme (sant‟homem) e Saint Thomas d‟Aquin, com o propósito de introduzirmos a importância das epifanias para a estética joyciana e para o caráter enigmático que a sua obra ainda mantém diante daqueles que a lêem. Continuando, no subtópico, A escrita do ego, realizaremos um percurso teórico que vai do sintoma epifania ao sinthoma escritura. Com esse propósito, discutiremos sobre o famoso episódio da surra que Joyce supostamente sofrera, visando assim, abordarmos os efeitos dessa na relação do escritor irlandês com seu corpo e consequentemente com o seu ego narcísico. O que, seguindo o exemplo de Lacan, nos servirá de deixa para entrarmos na questão do ego particularíssimo de Joyce, além da carência paterna do escritor e de sua necessidade de fazer-se um nome. Por fim, versaremos sobre a função desse ego particular de remendar uma suposta falha do enodamento dos três registros em Joyce. 18 1 AS ESTABILIZAÇÕES PSICÓTICAS Freud nos deixou um legado de questionamentos frente aos obstáculos que a psicose oferecia à clínica, sobretudo, no âmbito da transferência. Apesar disso, é no texto deste, que encontramos o aforismo em que, com base nos escritos autobiográficos, “Memórias de um doente de nervos”, de Daniel Paul Schreber (1995), também conhecido como Presidente Schreber, o delírio é apontado como uma tentativa de cura. Tal proposição é de fundamental importância, pois, certamente, representa uma primeira e grande contribuição que nos permite trabalhar hoje, que veremos com base em Lacan, o delírio como uma tentativa de elaboração do psicótico em direção a uma estabilização. Porém, como pretendemos enfatizar em nossa dissertação, a elaboração delirante, tal como em Schreber, não consiste na única tentativa de solução apresentada pelos sujeitos psicóticos na clínica. Neste capítulo, realizaremos uma breve introdução às principais estratégias de estabilização psicóticas estudadas por Lacan: a metáfora delirante e o sinthoma. A perspectiva estrutural da psicose adotada por Lacan e as consequências da não inscrição do Nome-do-Pai serão os primeiros pontos que iremos abordar. Em seguida, versaremos sobre a questão da suplência e do objeto a na psicose, tendo como objetivo o tema da estabilização na psicose. Ao final deste capítulo realizaremos uma diferenciação entre o caso do Presidente Schreber e o caso de James Joyce. 1.1 O DESENCADEAMENTO E AS ESTABILIZAÇÕES A psicanálise lacaniana adota uma perspectiva estrutural da psicose. No texto intitulado “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose” (LACAN, 1966/1998) Lacan constrói a sua primeira doutrina da estrutura da psicose, e a inscreve em sua tese do inconsciente estruturada como linguagem. Nesse mesmo texto, ele afirma: “...que significa que o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A. O que nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro)...” (ibid, p. 555). 19 Pois bem, pensar a psicose a partir de uma perspectiva estrutural implica em uma série de consequências, inclusive na possibilidade de se conceber a psicose em um período anterior às crises e às manifestações tradicionalmente associadas a ela, tais como: os delírios e as alucinações. Estamos, por conseguinte, tocando em uma questão complexa, mas fundamental para o entendimento da estrutura psicótica, a saber: o diagnóstico da psicose em meio à ausência dos fenômenos tradicionais. O que, segundo Calligaris (1989), em uma clínica estrutural torna-se possível. Certamente, não queremos aqui, diminuir a importância que a crise, o desencadeamento da psicose, exerce no diagnóstico da psicose. Principalmente, porque, por meio dela, somos levados a refletir sobre a forclusão como condição essencial da psicose. Sem dúvida, no episódio de desencadeamento é possível identificar um apelo que não foi atendido e que, como veremos a seguir, diz respeito a uma não inscrição. Porém, antes de entrarmos neste ponto, devemos ressaltar que em uma psicose não desencadeada, não apenas fora da crise, mas anterior a qualquer encontro desastroso com a função paterna, uma questão se faz presente: o que sustentaria o sujeito até o momento da crise? De acordo com Soler (2007), em 1956, para Lacan, a resposta se encontraria em uma identificação imaginária, na qual o sujeito assume o desejo da mãe. Sendo que na psicose, quando essa identificação é abalada, uma dissolução imaginária acontece. Dito isso, voltemos agora nossa atenção aos casos de psicoses desencadeadas. Já que representam para nós um campo fértil para se pensar naquilo que falha em se inscrever na psicose e mantém profunda relação com o episódio da crise, o desencadeamento. Neste viés, tomemos o Seminário 3 - As psicoses (LACAN, 1955-56/2008), no qual Lacan afirma, em uma aula intitulada “O fenômeno psicótico e seu mecanismo”: “Na relação do sujeito com o símbolo, há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva, ou seja, que alguma coisa não seja simbolizada, que vai se manifestar no real.” (ibid, p. 100). Para compreendermos esse fato, devemos antes lembrar que em se tratando de realidade para o psicótico, Lacan irá associar uma falha estrutural, um buraco, que diz respeito a uma “verwerfung” da lei paterna. Este termo, que alguns comentadores traduzem como foraclusão, enquanto que outros traduzem como forclusão, foi primeiro tomado por Freud no sentido de recusa, tal como a recusa da diferença entre o eu e o isso ou, então, entre os sexos. Mas, Lacan irá associar a esse termo um sentido que será fundamental para a compreensão da estrutura psicótica, a saber: o sentido de uma falha na inscrição da metáfora paterna. Todavia, devemos lembrar que apesar de Lacan utilizar termos tais como “falha” e “buraco”, isso não quer dizer que ele esteja tomando a psicose com base num déficit em 20 relação à neurose. O psicanalista em nenhum momento vai propor uma hierarquia, na qual a psicose se encontraria abaixo da neurose. Pelo contrário, ele vai pensar a neurose e a psicose como estruturas distintas da personalidade, de modo que, enquanto a psicose vai se submeter a uma “Bejahung” (LACAN, 1955-56/2008), uma “afirmação”, que Lacan também vai associar com a “simbolização primitiva” (ibid), ao submeter-se a esta simbolização o sujeito terá uma série de destinos. Por outro lado, a psicose, não vai submeter-se a esta simbolização e vai cair “sob o golpe da Verwerfung primitiva” (ibid), o que resultará em um destino diferente do primeiro. Estamos entrando na temática do Complexo de Édipo. Assim vejamos uma outra passagem de Lacan do Seminário 3: O complexo de Édipo quer dizer que a relação imaginária, conflituosa, incestuosa nela mesma, está destinada ao conflito e à ruína. Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural, aquela do macho com a fêmea, é preciso que intervenha um terceiro, que seja a imagem de alguma coisa de bem-sucedido, o modelo de uma harmonia. Não é demais dizer – é preciso aí uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da palavra, isto é, do pai. Não o pai natural, mas do que se chama pai. A ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no conjunto está fundada na existência desse nome do Pai. (ibid, p. 118) Aqui vemos Lacan ressaltando a necessidade de que um terceiro venha intervir. No entanto, este terceiro não diz respeito a um pai natural, a um pai real, mas, sim, àquele que exercer a função de pai. Dessa forma, o psicanalista francês irá situar essa função paterna na estrutura do sujeito, através de um significante primordial, o significante do Nome-do-pai. Significante esse que deve ser pensado com base na ordem do mito, pois, quando Lacan questiona: “O que quer dizer o significante primordial?” (ibid, 179), ressalta que esse significante tem todas as características do mito. Para Lacan não havia em parte alguma um momento específico em que o sujeito adquire este significante primordial. De qualquer maneira, o Édipo vai ser compreendido com base numa substituição metafórica em que o significante do Nome-do-Pai vai substituir o significante do desejo da mãe. Segundo Colette Soler, o que dá sentido ao ser do sujeito, ao ser do vivente, vai ser essa significação fálica que a metáfora promove, tal como ela afirma “o Nome-do-Pai que substitui o Desejo da Mãe faz surgir no lugar do significante a significação do falo” (SOLER, 2007, p. 197). Entretanto, isso diz respeito à neurose. Em se tratando da psicose, o sujeito não irá pagar o preço do comprometimento simbólico, o que representa a não travessia do Édipo, e resulta na forclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna (QUINET, 2003). 21 Vemos aqui, por meio do conceito de forclusão, a introdução por parte de Lacan, de uma concepção descontinuista, na qual não se concebe a passagem de uma estrutura para outra; em outras palavras, ou há inscrição do significante paterno ou não há. Pela não inscrição do significante primordial, o psicótico se encontra sujeito a uma desestruturação, ocasionando uma problemática em relação a situar-se na partilha dos sexos, de modo que acarreta aquilo que, para Lacan, é a marca essencial da psicose: os distúrbios da linguagem e a alucinação. Veem-se bem aí os momentos da crise, mas, como afirmamos, existe um momento anterior à desestabilização em que o sujeito psicótico se sustenta. Abordamos essa questão, de acordo com Soler (2007), com base no sentido lacaniano de identificação imaginária com a mãe. Agora, encontramos em Lacan os conceitos que nos permitem explicar melhor esta questão. Porque, no entendimento de que na psicose, em função da forclusão do Nome-do-pai, haveria uma falta de referência simbólica, nos permite compreender melhor o fato de que o psicótico mantém uma relação especial com o registro do imaginário. Com isso queremos dizer que a relação do sujeito psicótico com o outro, não vai se fundamentar em uma mediação simbólica, ao invés disso, o que podemos notar é uma relação dual com o duplo imaginário, na qual o psicótico toma o outro para espelho e modelo. Essa identificação imediata nos permite pensar, justamente, o período anterior às crises, já que o sujeito psicótico pode vir a encontrar uma frágil compensação através de uma identificação imaginária com a mãe. No entanto, devemos deixar claro que essa compensação não ocorre apenas com relação à figura da mãe, podendo, também, acontecer por meio de uma outra figura, com a qual o sujeito possa identificar-se. Por exemplo, no caso de um psicótico masculino a compensação pode acontecer através de uma identificação com o pai. Nas palavras de Lacan: Suponhamos que essa situação comporte precisamente para o sujeito a impossibilidade de assumir a realização do significante pai ao nível simbólico. O que lhe resta? Resta-lhe a imagem a que se reduz a função paterna. É uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular, mas cuja função de modelo, de alienação espetacular, dá ainda assim ao sujeito um ponto de enganchamento, e lhe permite aprender-se no plano imaginário. (LACAN, 1955-56/2008, p. 239) Todavia, como afirmamos, essa compensação é frágil. Por este motivo, Lacan irá comparar o momento anterior ao desencadeamento com um banquinho de três pernas, o escabelo4, cuja instabilidade resultaria da ausência de uma quarta perna, enquanto que a compensação identificatória seria comparada a “muletas imaginárias”, que no momento do desencadeamento se revelam insuficientes. 4 Tradução para o português do termo francês escabeau, cujo significado é banco com suporte para os pés. 22 De acordo com Soler (2007), devemos lembrar que a forclusão não deve ser concebida como causa da psicose e, sim, como condição essencial. A justificativa para tal afirmação se encontra no fato de que é necessária uma “causa adjunta”, termo que foi utilizado por Freud “No relato do caso de doente dos nervos” (FREUD, 1911/1996). Segundo a autora, para Lacan, essa “causa adjunta” consiste em um apelo ao Nome-do-Pai que ocorre quando há um encontro do sujeito com a função paterna, ou seja, no fracasso do ponto de basta, tal como ele cita nos Escritos: “pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamento do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário” (LACAN, 1966/1998, p. 584). Como consequência da não inscrição paterna na psicose, o registro simbólico se constitui como uma totalidade sem furo, sem falta, que se manifesta como Outro absoluto, que faz do sujeito um objeto que é “invadido por um gozo, sob a forma de sofrimento, de angústia, de despedaçamento do corpo, de vozes e outros fenômenos da ordem do insuportável” (QUINET, 2003, p. 220). A estabilização na psicose é um termo e não de um conceito lacaniano. Em um primeiro momento, em 1932, Lacan irá abordar em sua tese de doutorado a passagem ao ato de Aimée. Nesse caso, é interessante notar que esta passagem ao ato configura uma interrupção no movimento de significação. Sendo assim, Aimée não chega a se envolver em um trabalho de significação até uma metáfora delirante. Em “As psicoses” (LACAN, 1955- 1956/2008), podemos articular o termo estabilização psicótica sob a luz da metáfora delirante. No último ensino lacaniano, a estabilização pode ser pensada com base na ênfase dada pela via do Sinthoma, de acordo com o caso paradigmático de James Joyce. Naquela que pode ser considerada a primeira clínica de Lacan, a metáfora delirante se encontra no centro de todo tratamento possível da psicose, uma vez que essa metáfora era considerada o “ponto de chegada” da construção subjetiva delirante, estabilizadora do sujeito. Na releitura de Freud, que encontramos no início do terceiro seminário As psicoses (LACAN, 1955-1956/2008), juntamente com o escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, é que Lacan irá trabalhar a questão da metáfora delirante na psicose. Não há dúvida de que podemos encontrar no caso paradigmático do presidente Schreber, o melhor exemplo para a proposição freudiana de que “A formação delirante, que presumimos ser produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, uma reconstrução” (FREUD, 1911/1996, p. 94-95). Então, no delírio de Schreber, de que ele seria transformado em uma mulher e, que, junto com Deus, iria procriar e povoar a terra com uma 23 nova raça de homens encontra-se uma solução delirante em que o Outro não barrado de Schreber é reinterpretado, de uma maneira em que o delirante pode ocupar o lugar de sujeito. Entretanto, Tenório (2001) afirma que o delírio pode não ser uma tentativa bem- sucedida. Ou, como acrescentamos, ela pode vir a não ser duradoura. Tomemos como exemplo o próprio caso de Schreber, já que por mais que o delírio tenha trazido estabilização ao sujeito, após um curto período de tempo ele voltou a ser internado novamente e assim permaneceu durante os seus últimos dias de vida. 1.1.1 A suplência Inicialmente, quando Lacan aborda a questão da metáfora delirante, ele não o faz com base na perspectiva de um complemento, ou, então, de suplemento. Sua ênfase se encontra inicialmente em um processo metafórico substituto que dá conta de uma falta da metáfora paterna, a forclusão do Nome-do-Pai. Assim, apesar do Seminário 3 já apresentar uma indicação de que esta falta poderia ser compensada, até então, Lacan não havia apresentado ainda a noção de suplência. Lacan vai falar de suplência pela primeira vez no Seminário 4 - A relação de objeto. O que é curioso observar é que ele o fará, não com relação a um caso de psicose, mas sim, no caso de fobia do pequeno Hans. Dessa forma, ele aborda a suplência pela primeira vez para falar de uma compensação de carência paterna em um caso de neurose. Décadas após a realização desse seminário, Lacan, no Seminário R. S. I., volta a abordar a noção de suplência, mais especificamente no momento em que ele passa a questionar se o enodamento dos três registros – Imaginário, Simbólico e Real – necessitaria de uma ação suplementar (GUERRA, 2007). Trata-se, pois, como veremos mais detalhadamente no capítulo 3, em que abordaremos a topologia do nó borromeano, do percurso que Lacan irá atravessar de uma crítica à necessidade de Freud de um quarto termo, que o psicanalista francês, na aula de 14 de janeiro de 1975 do Seminário R. S. I., vai associar com o conceito de realidade psíquica (Realität), até uma aceitação de um quarto termo, de um termo a mais e necessário para manter unidos os três registros. 24 Assim, Lacan vai tomar a realidade psíquica, proposta por Freud, como um quarto termo suplementar aos três registros, e vai mais além ao associar o complexo de Édipo com o nome que a realität receberia. Dessa maneira, vemos Lacan tomando o complexo de Édipo como um quarto termo que sustenta os três registros, pelo menos no que diz respeito à neurose. Mas, o que nos interessa em nossa dissertação é destacar que em um momento anterior ao Seminário R. S. I. Lacan já tinha a noção de que o próprio Nome-do-pai era um elemento suplementar. Tal como afirma Soler (2007), essa ideia já estava presente no caso do Pequeno Hans, no qual o sintoma fóbico é associado, por Lacan, a uma construção que resultou em uma compensação de carência paterna. No caso de Hans, encontramos apenas um exemplo de complemento à metáfora paterna, pois, tratava-se de um caso de neurose, mas o que nos interessa em nossa pesquisa é a possibilidade de que na psicose o buraco da forclusão paterna venha a ser preenchido por algo que apesar de exercer a mesma função do Nome-do-Pai, não vem a ser o significante do Nome-do-Pai propriamente dito. O que estamos abordando aqui é a possibilidade de que outros significantes ocupem a mesma função do Nome-do-Pai, em outras palavras, “a função de basteamento do imaginário e do simbólico” (SOLER, 2007, p. 205). O que levou Lacan a promover uma pluralização deste e passar a falar de Nomes-do-Pai. Lacan vai associar esse plural, tal como fez no Seminário R. S. I., com a suplência do Nome-do-Pai. Na verdade, o próprio significante do Nome-do-Pai vai passar a ser concebido como um elemento suplementar, o que implica na generalização do conceito de suplência, pois, não diz respeito apenas à psicose, mas, também, à própria neurose. Entretanto, devemos esclarecer aqui, que a suplência só será concebida por Lacan, como um quarto termo que enoda os três registros a partir do Seminário 22 e 23, em especial nesse último, já que nele, Lacan vai abordar o caso de Joyce, sobre a perspectiva de que este tenha conseguido suplenciar a falha paterna em um período anterior ao próprio desencadeamento psicótico, como veremos mais detalhadamente no último capítulo. 25 1.1.2 O objeto a no bolso Freud deixa a indicação de que o sujeito deve ser buscado na sua produção psicótica, enquanto a formalização lacaniana, a partir da ideia da forclusão, indica que o sujeito psicótico deve ser localizado e produzido na resposta que ele pode dar ao gozo avassalador do Outro que o invade, cabendo a cada sujeito indicar o caminho de sua solução, sempre singular. Em suma, a forclusão pode ser compensada em seus efeitos por vias diferentes da metáfora delirante (SOLER, 2007). A psicanálise apresenta uma atitude diferenciada com relação ao sintoma, uma atitude que vai contra ao furor sanandi, ao desejo de curar, ou, então, de exigir a qualquer custo a suspensão do sintoma. Lacan, em “Televisão”, definiu a ética da psicanálise em bem dizer o sintoma, uma vez que lá onde está o sintoma, está o sujeito (QUINET, 2008). Entretanto, a definição de sintoma como metáfora não cabe na psicose. Isso não quer dizer que os sintomas da psicose não estejam articulados na estrutura da linguagem, pelo contrário, em nenhum outro lugar o sintoma tem estrutura de linguagem como na psicose (SOLER, 2007). O sintoma na psicose vai se constituir como um significante no real, um significante fora da cadeia. No caso de Schreber, podemos encontrar o Luder como exemplo de significante no real. Da mesma forma, o significante Porca, do caso paradigmático apresentado por Lacan no seminário As psicoses (LACAN, 1955-1956/2008) serve de exemplo de significante externo à cadeia. Como vimos anteriormente, a solução “schreberiana”, que se caracteriza pela construção delirante, não se constitui como a única solução possível para o sujeito psicótico, havendo, assim, vias alternativas para que o sujeito possa civilizar o gozo aterrador do Outro. De acordo com Quinet (2006), nos anos 1970, a ênfase de Lacan deixa de ser a supremacia do simbólico e recai sobre a interdependência entre os três registros: real, simbólico e imaginário, em uma vinculação de nó borromeano, no qual cada registro é representado por um anel, e cada anel se encontra atrelado aos demais, de uma forma que, se houver o rompimento de um, todos os demais serão liberados. Igualmente a esse nó a estrutura do sujeito passa a ser definida, em outras palavras, quando houver sujeito, conclui-se que há amarração borromeana dos três registros. Em 1976, no seminário “O sinthoma” (LACAN, 1975-1976/2007), percebemos que o nó, que até então era apresentado com três termos, passa a ser apresentado 26 com um quarto termo chamado de sinthoma e cuja função é reparadora do nó (BENETI, 2009)5. A arte pode servir de sinthoma e exercer a função reparadora do nó que amarra e organiza a experiência subjetiva. No caso de Arthur Bispo do Rosário, encontramos um exemplo de tal amarração. Ele permaneceu internado durante 40 anos na Colônia Juliano Moreira, e lá construiu uma imensa obra, e por meio dela, representou e reproduziu para Deus tudo o que havia no mundo. Nesse caso, vemos que o delírio não foi suficiente e por isso ele recorreu ao “trabalho concreto de escrever com agulha e linha o nome de coisas, de reuni-las e reproduzi-las” (TENÓRIO, 2001, p. 127), exemplificando também a criação artística como um meio de produzir um objeto de gozo separado do corpo. Tanto o delírio como a arte, na psicose, pertence à ordem da criação. Aqui é adotado o termo criação ao invés de produção porque, segundo Lacan, no seminário “A ética da psicanálise” (1959-1960/2008), toda criação se faz a partir do nada (ex-nihilo), o que implica em uma novidade de objeto com relação ao que existia antes. Entretanto, essa criação na psicose não passa pela ordem estabelecida pela cultura, já que a mesma é estruturada pela ordem do pai simbólico. A arte da cultura, ou seja, do registro da neurose, teve na clínica freudiana uma relação com as fantasias do sujeito neurótico, e seu produto se constituía em uma formação do inconsciente do sujeito que poderia ser lida e interpretada (ALVARENGA, 1999). Assim, vemos em Freud a arte ser articulada com o conceito de sublimação da pulsão sexual. A arte sustentada pelo Nome-do-Pai: se organiza em torno do vazio da Coisa esvaziada de seu gozo, povoando esse vazio com os objetos imaginários que tanto satisfazem nossos devaneios (QUINET, 2003, p. 221). Enquanto na neurose a criação do objeto se fundamenta na operação da metáfora paterna, na psicose, a criação se fundamenta justamente na sua ausência, o que resulta no não esvaziamento da Coisa de seu gozo pela castração. Frente a isso, o sujeito utiliza-se da criação delirante ou da arte como meio de barrar o gozo da Coisa. Por isso, é de se esperar que a arte na psicose não tenha como endereço o Outro da cultura, tal como acontece na neurose, tendo em vista, que segundo Lacan, “O Louco é o homem livre por excelência; ele não precisa do Outro para causar seu desejo, pois leva o objeto a no bolso” (LACAN apud QUINET, 2006, p. 26). Sendo assim, vejamos agora como o psicótico se relaciona com o objeto a e quais são 5 Disponível em: <www.opcaolacaniana.com.br/n3/pdf/artigos/ABDiscurso.pdf>. Acesso em: 22 out. 2009. 27 as implicações disso para as soluções que este possa vir a apresentar diante da forclusão do Nome-do-Pai. O objeto a foi formulado por Lacan a partir do conceito freudiano de das ding, a Coisa ao lado do gozo e do objeto álgama da transferência. Tal conceituação vai se revelar fundamental para a constituição do campo do gozo e a teoria dos discursos como laços sociais (QUINET, 2006). Mas, para que possamos abordar a relação de um sujeito psicótico com o objeto a devemos nos voltar primeiramente para a questão levantada por Freud em “Introdução ao narcisismo” de que na psicose a libido se volta para o eu, ao invés de se voltar para um objeto normal. Essa é uma questão a que Lacan vai retornar ao propor que o objeto a na psicose não se encontra separado, ou, então, perdido e marcado pela falta. Ao contrário disso, ele se encontra ao lado do sujeito louco, em seu bolso. Na neurose os objetos, tais como os objetos da pulsão, vão se constituir perdidos e extraídos do campo da realidade graças à marca da castração. Tendo em vista que o psicótico é marcado pela forclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, inferimos que os objetos não recebem a marca da castração, o que resulta na tendência deles retornarem no campo da realidade. Explicando melhor, de acordo com Quinet (2003), na neurose o Édipo serve de anteparo que impede que objetos como a voz e olhar retornem ao campo da realidade, já que: “A lei do pai marca esses objetos como impossíveis de serem reencontrados.” (ibid, p.66). Enquanto que na psicose, o objeto a, por não estar excluído da linguagem por meio da inscrição da Lei da castração no Outro, emerge no campo da realidade na forma do olhar ou voz, o que se revela fundamental quando se trata do diagnóstico da psicose. Como já afirmamos anteriormente, esse Outro não castrado da psicose se apresenta ao sujeito como que absoluto, fazendo deste seu objeto de gozo, assim as soluções psicóticas como o delírio e as obras de arte podem ser consideradas como tentativas de impor uma separação do objeto a, que se encontra ao lado do sujeito psicótico, para que desta forma o gozo do Outro aterrador passe para um objeto separado de seu corpo (ibid). Com relação a esse fato, podemos pensar nos casos de Schreber e Arthur Bispo do Rosário, já no caso de James Joyce, foco de nossa dissertação, uma pergunta se faz presente: como essa questão é apresentada? Devemos lembrar que Lacan tomava o caso de Joyce no sentido de uma psicose não desencadeada. Além disso, no Seminário 23, Lacan não se remete a questão da voz no campo da realidade de Joyce, ele não afirma que o escritor era atormentado por vozes provenientes de um Outro aterrador. Ao invés disso, ele irá abordar a questão das palavras impostas, ou seja, a experiência singular de Joyce com as palavras, que lhe aparecem como estrangeiras. 28 Como versaremos no último capítulo, por meio de seu sinthoma, Joyce vai encontrar uma forma de lidar com esse aspecto de imposição das palavras. Sendo assim, não podemos concluir que o sinthoma de Joyce possa ser compreendido com base no mesmo sentido que a solução de Bispo, pelo menos no que diz respeito à tentativa de separar o objeto a do corpo. 1.2 SCHREBER E JOYCE NA PERSPECTIVA DO CAMPO DO GOZO Vimos até aqui duas possibilidades de suplência subjetiva que o sujeito psicótico pode recorrer na busca de sua estabilização. A primeira, através da metáfora delirante, que é uma formação imaginária; e a segunda, pela via da emergência do sinthome, em que há uma conjunção do Simbólico com o Real. Mas, é preciso lembrar que, conforme afirma Alvarenga (1999), a clínica tem demonstrado que uma solução não descarta a outra, ou seja, existem casos em que é possível constatar a construção de uma metáfora delirante, por um lado; e uma produção de sinthoma, por outro. Como o exemplo, do caso de Bispo que, em seu trabalho de estabilização, apresentou as duas vertentes: a atividade criativa e atividade delirante. Colette Soler (2007) em sua obra intitulada de “Inconsciente a céu aberto da psicose” questiona a abordagem da psicose, frente à tese da forclusão, tendo em vista que, em determinado momento, Lacan vai abordar a estrutura não mais como sendo exclusivamente da linguagem, mas a partir de uma compreensão da estrutura como sendo do discurso, que inclui um elemento heterogêneo ao significante. Enfim, trata-se de um questionamento que corrobora a proposta de nossa dissertação, já que essa passagem de Lacan, para uma compreensão do sujeito que não está restrita ao simbólico, representa um ponto fundamental para o nosso entender da teoria do sinthoma, além das possibilidades que essa teoria representa para a clínica da psicose. No caso de Schreber, vemos que em sua elaboração delirante, ele faz uso do significante de tal forma que, apesar de lhe fornecer estabilização, não representa uma separação do Outro. Dessa forma ele permanece à mercê de um gozo do Outro ainda mais intensificado. Aqui somos remetidos à abordagem das suplências dos Nomes-do-Pai. O trabalho delirante teve em Schreber uma função metafórica, substituindo assim o significante fálico faltante pela elaboração delirante de “ser a mulher de Deus”. Então, já não 29 se trata de um único significante capaz de exercer essa função suplementar do caráter nodal dos elementos simbólicos, reais e imaginários, mas de uma variedade de possibilidades que Lacan veio a representar como Nomes-do-Pai. Todavia, o que importa é que nesse escrito já havia a ideia de que a falta da metáfora paterna poderia ser compensada e a prova disso estaria no próprio fato de que o sujeito psicótico pode permanecer por um longo período de tempo sem que a psicose se desencadeie. Isso não quer dizer que o sujeito não era anteriormente psicótico, pelo contrário, isso apenas indica que o sujeito apresentava uma identificação que lhe permitia manter seu equilíbrio antes do desencadeamento. A partir de então, a clínica não estará mais restrita ao delírio como uma tentativa de cura do psicótico, pois é o que podemos encontrar nos casos paradigmáticos, tais como os casos de Arthur Bispo do Rosário, e James Joyce. Porém, entre todos esses casos, o que mais vai exemplificar a teoria do sinthoma será o de Joyce que, com sua arte, conseguiu tapar o buraco da forclusão paterna em um período anterior ao próprio desencadeamento. Se Lacan estiver correto, Joyce foi um psicótico não desencadeado (SOLER, 2007). Na teoria lacaniana, é possível diferenciar dois campos: o campo da linguagem e o campo do gozo. No primeiro campo, a ênfase dada aos fenômenos psicóticos se encontra nas anomalias da significação e da identificação imaginária, enquanto que, no segundo campo, a ênfase se encontra nos fenômenos de gozo diretamente ligados ao significante, num curto circuito sobre o imaginário. Entretanto, é importante repudiar toda perspectiva de que um campo surge para anular o outro; de forma alguma, o que vemos é uma tendência de complementação (QUINET, 2006). Assim, se faz necessário esclarecer que ao adotarmos esse critério de divisão, não significa que corroboramos com uma leitura linear da obra do psicanalista francês. Leitura essa que, com base numa perspectiva de avanço teórico, segue uma sequência lógica que culmina no abandono de um antes em favor de um depois, ou, então, de uma primeira clínica em favor de uma segunda. Essa não é a posição que adotamos. Pelo contrário, compreendemos a trajetória de seu ensino não na perspectiva de evoluções, mas, sim, com base em complexificações que nos permitem trabalhar tanto o mais derradeiro ensino, quanto o primeiro. Ao abordarmos o campo do gozo, somos levados a refletir o que vem a ser o gozo. Segundo Quinet (2006), o gozo não possui limites e não pode ser reduzido ao sexo, já que não pode ser aprisionado pelo significante fálico. O gozo pode se manifestar de diferentes formas: na repetição do significante, que constitui o inconsciente como saber; o gozo se presentifica como traço unário (S1), como saber como meio de gozo e, também, pode se fazer presente na 30 entropia, ou seja, na perda produzida pelo funcionamento do aparelho. Tal perda representa uma recuperação de mais-valia de gozo (QUINET, 2006). Sob a forma de gozo, a pulsão de morte não simbolizada pode retornar ao laço social, e traz consigo as impossibilidades nos laços entre os homens. Sendo assim, somos remetidos ao real, no campo do gozo, como aquilo que é impossível de ser escrito e suportado. Os discursos dizem respeito, justamente, a esse âmbito do gozo dos impossíveis e os laços sociais dos quatros discursos se constituem como possibilidades diante da impossibilidade da relação sexual. Voltamo-nos ao texto Radiofonia, dos Outros escritos (LACAN, 2001/2003), em que o psicanalista faz menção ao termo francês pas, que pode ter um duplo sentido: não e passo. Com isso ele apresenta a passagem em giro de um discurso a outro como consequência de uma impossibilidade, como consequência de um não. Na verdade, os laços sociais se estruturam com base nas impossibilidades que Freud já havia designado: governar, educar e psicanalisar, as quais Lacan acrescentou o fazer desejar como uma quarta impossibilidade. Lacan distingue os quatros discursos, a saber: o discurso do mestre, o discurso do universitário, o discurso da histérica e o discurso do analista. Assim, cada discurso, como laço social, irá se sustentar em uma impossibilidade específica de real, ou seja, um não/passo de real (p. 444). Nas palavras de Lacan: Note-se que esse não, ele o estabelece pelo próprio ato com que o propõe; e que é ao real de que esse não exerce a função que ele submete os discursos que põe no passo [pas] da sincronia do dito. Instalando-se pelo não que ele produz, essa sincronia não tem outra origem senão sua emergência. Ela limita o número dos discursos que sujeita, como fiz, da maneira mais sumária, ao estruturá-los em número de quatro, por uma revolução não permutativa de sua posição em quatro termos, sendo o não/passo de real que se sustenta neles, por conseguinte, unívoco em sua progressão e em sua regressão (LACAN, 2001/2003, p. 444) A ausência de limites do gozo não quer dizer que o campo do gozo não seja estruturado, pelo contrário, ele se estrutura pela linguagem por meio de seus aparelhos, ou seja, dos discursos. De fato, de acordo com Quinet (2006), são aparelhos de tratamento de gozo nos laços sociais. O campo do gozo nos permite ver na abordagem da psicose, um outro aspecto das suplências, além do aspecto do significante, no sentido de que passa a ser possível interpretar a suplência como uma forma de restrição do gozo, ou uma localização deste. Sendo assim, a clínica passaria a ter como um de seus objetivos, o de fazer com que o gozo seja inserido dentro de limites. 31 O próprio caso de Schreber exemplifica essa tendência de impor limites ao gozo, porque é possível perceber um percurso, uma mudança na posição do sujeito perante o gozo. No início de sua elaboração delirante, Schreber se encontrava imerso no gozo que o assaltava por todos os lados. Na verdade, tratava-se de um gozo avassalador e nada atraente. Após a elaboração delirante, ele consegue localizar o gozo no âmbito da fantasia de copular com Deus. A partir de então, o gozo que outrora o assaltava, passou a se localizar, concretamente, nos momentos de solidão, nos momentos em que ele não tinha mais nada para fazer e ficava diante do espelho contemplando sua imagem feminina. De acordo com Soler (2007), Schreber passa a contemplar a si mesmo com os olhos de Deus. O caso de Joyce também representa uma localização do gozo, promovida não por meio do delírio, mas por meio de uma arte. Entretanto, não se trata de uma arte qualquer, porque, tal como afirma Doris Rinaldi: “A arte de Joyce substancializa em sua consistência e em sua existência o quarto termo essencial ao nó, aproximando-se dele o mais possível.” (RINALDI, 2006) 6. Em Schreber, é possível encontrar uma limitação do gozo avassalador do Outro, entretanto, por se tratar de uma tentativa de cura delirante, o sujeito, mesmo após a estabilização, ainda se encontra à mercê dos caprichos do grande Outro. Se tomarmos o exemplo de Schreber, é possível perceber que, em seu delírio, ele pode ser situado de duas maneiras. Primeiro, ele se encontra na posição daquilo que dá significação às vozes de Deus, já que ele é quem tem que completar as vozes interrompidas e provenientes da massa das almas incluídas em Deus. Em suma, todas as vozes divinas representam o S1 e convergem para Schreber, que na posição de S2, completa a significação delas. Ele se encontra na posição que é ocupada pelo escravo no discurso do mestre e é forçado ao trabalho do pensamento ininterrupto (SOLER, 2007). A outra posição em que ele é situado, em seu delírio, diz respeito ao gozo do Outro, por conseguinte, Schreber faz com que Deus goze na medida em que se encontra na posição de significante que dá significação a todas as vozes divinas. Por fim, com base na afirmação de Soler: “... poderíamos escrever o fora-do-discurso schreberiano: o significante não representa o sujeito e não há barreira para o gozo, e, entre Deus e Schreber, quase poderíamos evocar uma relação sexual.” (SOLER, 2007, p. 65) Poderíamos afirmar que Schreber também se encontra na posição de objeto (a), já que ele trabalha no gozo de Deus. No momento da aproximação de Deus, ambos gozam, porque o gozo de um é o gozo de outro, no entanto, quando Deus se afasta, produz-se o grito do 6 Disponível em: <www.editoraescuta.com.br/pulsional/188_06.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2012. 32 “milagre do urro” e Schreber torna-se um texto rasgado, decaído como objeto, não de gozo, mas de resto. De qualquer forma, o delírio de Schreber trata-se de um restabelecimento do sujeito. Enquanto que a criação de Joyce vai significar uma autoprevenção da desestabilização, já que antes do desencadeamento ele se identifica com o sintoma7. Conforme Miller (2007) afirma, o que inspirou Lacan em sua derradeira lição não foi Freud, pelo contrário, já que esse último momento representou a fase em que Lacan mais criticou Freud. Dessa forma, quem veio a inspirá-lo nesse derradeiro ensino, foi James Joyce com sua prática de escrita e sua encarnação do sintoma. Assim, o caso de Joyce é o que melhor exemplifica a teoria do sinthoma, de modo que, se levarmos em consideração que o sintoma passa a ser visto como uma função da letra que fixa o gozo fora da linguagem, então o sintoma Joyce se destaca porque sua escrita consegue transformar todo o “gozo-sentido” que a literatura habitualmente veicula num gozo da letra, fora do sentido. Joyce queria que seus leitores se ocupassem dele por um longo período de tempo. Na verdade, ele chega a afirmar de forma deliberada: “Quero que os universitários se ocupem de mim por trezentos anos” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 17). Isso não é difícil de imaginar quando percebemos na escrita de Joyce, especialmente em Ulisses, uma forma, tal como Lacan descreve, de picar as frases. O que na verdade se constituía em um processo de dar um outro uso à língua em que se escreve. A escrita de Joyce destrói a linguagem e, em contrapartida, dá vida à língua. Para tanto, ele lança mão do enigma, que consiste na conversão do vazio de significação em seu contrário, ou seja, de certeza de revelação. As experiências enigmáticas aparecem com clareza nos fenômenos que ele descreveu como epifanias, cujos fragmentos realmente ouvidos em situações quaisquer, eram separados do contexto e cuidadosamente guardados como o mais precioso de sua obra. Curiosamente, veio a acontecer em momentos em que nem mesmo havia uma obra, mas isso não foi empecilho para que posteriormente tais epifanias fossem inseridas de forma oculta em sua obra. Note-se que esses fenômenos, ao serem retirados de seu contexto, representavam uma abolição da significação e, consequentemente, da linguagem. 7 Na transcrição da conferência de Lacan, intitulada Joyce, o sintoma, podemos notar que em determinados momentos é usado o termo “sintoma” (symptôme) com a grafia atual e em outros momentos o termo “sinthoma” com a grafia rebuscada por Lacan. Esses deslizamentos de um para outro também podem ser encontrados no seminário seguinte, O sinthoma. Nesta passagem em questão, utilizamos o termo sintoma da mesma forma que Lacan utiliza quando, na Conferência de Abertura do V Simpósio Internacional James Joyce, afirma que Joyce se encontrava na posição privilegiada de encarnar o próprio “symptôme”. 33 As epifanias representavam um fragmento estritamente análogo ao significante fora- do-sentido que Lacan observou no caso de Schreber. No entanto, não se tratava de uma elaboração delirante, pelo contrário, até porque a tarefa de significação, que normalmente cabe ao delírio, no sintoma de Joyce, é transferida para o público, mais precisamente para os comentadores. No contexto analítico, uma tendência que observamos é que o analisando fala para o Outro, mas, segundo Miller, pode haver um momento raro e mais profundo em que o analisando fala para si, o que promove satisfação. Um circuito de satisfação que também pode ser considerado como pulsão, o que remete à fórmula de Freud na qual a pulsão oral é ilustrada com a imagem de uma boca que beija a si mesma. No capitulo 11 do Seminário 23, Lacan nos apresenta Joyce como um paradoxo, um sujeito sem o Outro, que fala para si. Segundo Miller (2007): Se tentarmos abordar o de que se trata aqui, talvez pudéssemos dizer que esse capítulo nos apresenta – ao longo da vida de Joyce, da análise de decomposição do discurso de Joyce e de sua posição – o paradoxo de um sujeito sem Outro, que fala para si e onde tudo o que decorre do Outro é suspeito de ser apenas – a palavra está em seu capitulo – fabricação. (ibid, p.77) Este falar para si, em Joyce, não impediu a resposta maciça do discurso universitário e do seu saber, para tentar lidar com o traumatismo que a escrita singular deste autor promoveu na língua inglesa. Por outro lado, esta tentativa de transformar o discurso de Joyce em saber acabou por revelar que, no fundo, James Joyce era não interpretável (id, 2007). No lugar exceção, Joyce não delira e goza solitariamente. Para tanto, ele conseguiu promover uma transferência do simbólico para o real, além de restabelecer o seu laço social através de uma literatura estranha e fora do discurso. Aqui nos deparamos com um paradoxo do sintoma de Joyce, uma vez que ele restabelece o vínculo social por meio de uma escrita que abole justamente este vínculo (SOLER, 2007). No próximo capítulo, desenvolveremos os aportes do ensino de Lacan que nos permitem articular melhor a questão do sinthoma joyciano. 34 2 A LETRA E A ESCRITA A-NÃO-SE-LER O que despertou o fascínio de Lacan por Joyce foi a tentativa desse escritor irlandês de ir além da literatura, por meio de um processo de quebra das palavras e dissolução da própria linguagem. Na verdade, apesar de ter dedicado o Seminário 23 a Joyce, seu interesse principal não era a literatura, e sim, a letra. Com isso vemos a necessidade de ressaltar logo de antemão a distinção entre a letra e um texto strictu sensu, pois, esse primeiro trata de uma escrita que está no Real e que não diz respeito necessariamente a uma mera produção literária. Dito isso, neste capítulo promoveremos um breve percurso em torno da letra. Porém, não temos a pretensão de esgotar tal conceito, tarefa impossível para qualquer autor, já que os enunciados de Lacan, tal como ele declara em uma entrevista com A. Riffet-Lemaire: “[meus] enunciados nada têm de comum com um exposto teórico que se justifica por um fechamento” (LACAN apud NANCY, 1991, p. 21, grifo nosso). Assim, chegar a uma definição última de um conceito, mesmo que esta fosse a nossa intenção, estaria fora de cogitação neste momento. Também, abordaremos neste capítulo a escrita a-não-se-ler. Ponto esse que nos servirá de base para a posterior compreensão do sinthoma joyciano. Desse modo, primeiramente versaremos sobre a letra como Lacan propõe em 1957 no texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, no sentido de: “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN, 1966/1998, p. 498). Posteriormente, nos aprofundaremos na distinção entre significante e letra, tendo como foco principal o Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, sobretudo no que diz respeito à aula intitulada de Lição sobre Lituraterra. Por fim, discutiremos a hipótese lacaniana de que o escrito não é para ser lido. 2.1 A INSTÂNCIA DA LETRA O texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (LACAN, 1966/1998) é resultado de uma exposição realizada em 1957 na cidade francesa de Sorbonne, 35 para uma plateia formada pelo grupo de filosofia da Federação dos Estudantes de Letras. Período esse em que o trabalho de Lacan foi profundamente marcado pela ruptura no campo da prática e da instituição psicanalítica, como resultado de exclusões sucessivas das sociedades de psicanálise (NANCY, 1991). Assim, neste período de sua produção, é interessante ressaltar que o psicanalista já não se dirigia mais apenas aos técnicos da análise, sua fala agora era dirigida a um grupo de estudantes universitários marcados por uma “generalidade necessária” (LACAN, 1966/1998, p. 497). Uma generalidade combinada com um caráter extraordinário. Lacan vai encontrar nesses estudantes uma acomodação propícia para a sua exposição, sobretudo, por causa da qualificação que os membros do grupo tinham em comum, a literária. Nessa passagem é possível perceber como ele, a exemplo de Freud, compreende a importância dessa qualificação na formação de analistas. Segundo Lacan, como é possível perceber no próprio título deste escrito, a descoberta da experiência da psicanálise no inconsciente se encontra na estrutura da linguagem, em um lugar para-além da fala. Dessa forma, fica claro o valor que Lacan vai associar nesse texto à letra, sobretudo com o uso do conceito “instância”. O termo instância, de acordo com Nancy (1991), que originalmente era utilizado no sentido de uma insistente solicitação de argumento, ou de processo, posteriormente, fixou-se na língua clássica no sentido de “autoridade judiciária”. No francês moderno o termo instânce é usado como autoridade tendo o poder de decisão. Em suma, esse comentador conclui que a instância é utilizada no título para designar a autoridade da letra. A posição dominante da letra: “o lugar de destaque que ela ocupa, de onde tem poder de decisão e exerce autoridade, de onde, em outras palavras, rege e legisla” (ibid, p. 32). Todavia, este mesmo autor não descarta a possibilidade de o termo ser utilizado também no sentido de insistência da letra, uma vez que, esse termo lhe parece ser um conceito lacaniano importante: [...] é o conceito pelo qual é marcada a especificidade da cadeia significante como, para dizê-lo rapidamente, a iminência, isto é, o reportar indefinido do sentido que está no principio do automatismo de repetição, do Wiederholungszwang de Freud. (ibid, p. 32) Por fim, a segunda parte do título: “ou a razão desde Freud”, enfatiza que após a ruptura operada por Freud, a razão passa a ter um outro sentido no inconsciente, o da instância da letra. Na primeira divisão do texto, “O sentido da letra”, Lacan afirma que a letra deve ser tomada ao pé da letra e designada como “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN, 1966/1998, p. 498). 36 Nancy apresenta uma tentativa de definir o conceito de letra. Para tanto adota como ponto de partida, a proposta de que “a letra designa a estrutura da linguagem na medida em que o sujeito nela está implicado” (NANCY, 1991, p. 35). Tal implicação deve-se à relação do sujeito com a letra, no sentido de que este também deve ser tomado ao pé da letra. Uma literalização do sujeito, já que conforme afirma Lacan, “a linguagem, com sua estrutura, pré- existe à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental” (LACAN, 1966/1998, p.498). Com efeito, ele vai se remeter à análise linguística das afasias realizada por Roman Jakobson, para destacar que, apesar destas serem resultados de lesões anatômicas, a distribuição dos déficits ocorre de acordo com a estrutura da linguagem. Tratar-se-á, pois, de ver o sujeito como semelhante a um servo da linguagem, sobretudo do discurso, cujo lugar “já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio” (idem). Segundo Nancy (1991) esta literalização também está relacionada ao fato de o sujeito encontrar o suporte material do seu discurso na estrutura da linguagem, conforme a citada passagem de Lacan. No parágrafo dos Escritos em que Lacan se refere à letra como “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN, 1966/1998, p. 498), dois conceitos se destacam: discurso concreto e suporte material. O primeiro, para Nancy (1991), diz respeito ao elemento comum resultante da relação simultânea entre a linguagem enquanto estrutura e a fala, que é adotada no sentido saussuriano de execução individual da língua. No que diz respeito ao conceito de suporte material, este comentador observa que no escrito o Seminário sobre “A carta roubada” (LACAN, 1966/1998), o psicanalista destaca, que na novela de Poe, a carta não era encontrada justamente por estar localizada em um lugar evidente. Essa relação do significante com o lugar, Lacan chamou de materialidade do significante: É evidente que (a little tôo self evident) que a carta, de fato, mantém com o lugar relações para as quais nenhuma palavra francesa tem todo o seu alcance do qualificativo em inglês odd. Bizarre, como Baudelaire costuma traduzi-la, é apenas aproximativo. Digamos que essas relações são singulares, pois são justamente essas que o significante mantém com o lugar (ibid, p.26). Certamente, uma materialidade singular, já que não é possível determinar um lugar em que carta/letra se encontra, ou não se encontra. Por outro lado, simultaneamente: “ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá” (ibid, p.27). Trata-se, pois, da natureza do significante como sendo símbolo de uma ausência. Dessa forma, Lacan sustenta que mesmo que a carta/letra venha a ser picotada, ainda assim ela continuará sendo o que é: uma carta/letra. 37 Nancy (1991), também destaca que no escrito, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN, 1966/1998), Lacan aborda a linguagem como não sendo imaterial, mais especificamente na relação da mesma com o corpo é possível encontrar certas formas de somatização, a exemplo, os casos de histeria. Dessa maneira, quando a letra é associada ao suporte material que o discurso concreto, toma emprestado da linguagem, ou seja, significa que é possível inferir que o sujeito durante o ato de elocução, que se constitui pela relação com outrem, toma emprestado do material constituído que lhe é fornecido pela linguagem. A materialidade da letra constitui em si uma dupla recusa no tocante a origem desta, porque por um lado não se trata da idealidade do sentido e por outro não diz respeito a uma materialidade somática. O que leva a consequência de uma outra recusa, a de se pensar o inconsciente como sediado pelos instintos e que possui uma materialidade substancial (NANCY, 1991). Lacan propôs uma hipótese geral do inconsciente, que apresenta uma estrutura semelhante à da linguagem. Dessa maneira, uma introdução ao campo da linguística se faz necessária, apesar de que o interesse de Lacan, posteriormente, veio a se revelar como sendo exclusivo da linguagem, tal como ele afirma anos depois: “porque, para a linguística, devo dizer-lhes, estou pouco me lixando. O que me interessa diretamente é a linguagem, porque 8 penso que é com ela que lido quando tenho que fazer uma psicanálise” (LACAN, 1971/2009, p. 43). Todavia, levando em conta esta analogia de que o inconsciente é estruturado como linguagem e aceitando o conselho de Lacan (1966/1998) de que o analista deve introduzir-se na distinção fundamental entre o significante e o significado, e exercitar-se nas duas redes de relações que lhes pertencem, somos levados a abordar, de forma resumida, alguns dos elementos da teoria saussuriana, sempre com uma perspectiva voltada ao ensino lacaniano. No escrito, A instância da letra no inconsciente (idem), Lacan afirma que o algoritmo S/s deve ser atribuído a Ferdinand de Saussure, apesar de que, como ele mesmo destaca, de que em nenhum momento se observa, nos esquemas saussurianos, a representação do signo, tal como Lacan veio a propor. Portanto, nessa situação, constata-se o rompimento de Lacan com certos aspectos da perspectiva saussuriana. 8 Esta passagem trata-se da resposta apresentado por Lacan, logo no inicio do Seminário, livro 18, às críticas de alguns linguistas de que ele só fazia um uso metafórico da linguística. O que iremos desenvolver melhor no tópico 2.2: A letra lixo. 38 Saussure, em sua reflexão quanto ao algoritmo estrutural da linguagem, adotou uma posição extremamente crítica frente aos velhos pontos de vista, que relacionam a língua ao simples sentido de nomenclatura, em que se cria um vínculo entre o nome e uma coisa, uma associação que, de forma alguma, permite verificar se “a palavra é de natureza vocal ou psíquica” (SAUSSURE, 1970, p. 79). O signo linguístico saussuriano não é visto como uma associação de um nome a uma coisa, mas como um conceito que relaciona uma imagem acústica, de forma essa última apresenta uma característica singular, tendo em vista, que: [...] não é o som material, coisa puramente física, mais a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la „material‟, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato (ibid, p. 80). Partindo do princípio de que o signo é uma associação entre conceito e imagem acústica, poderíamos chegar à conclusão, a exemplo de Saussure, de que esse signo é uma entidade psíquica com duas faces, que estão intimamente unidas, ao ponto de uma reclamar à outra, como é esquematizado no modelo do teórico, exposto abaixo: Ilustração 1 9 No entanto, é importante ressaltar que Lacan irá romper com essa visão de que as duas faces estão intimamente unidas, para adotar uma perspectiva mais autonômica entre as duas. Assim, enquanto Saussure trata de uma dualidade entre essas faces, ao ponto de utilizar uma folha de papel como analogia e usá-la para determinar que “não se pode cortar o anverso sem cortar ao mesmo tempo o reverso” (SAUSSURE, 1970, p. 131). Por outro lado, Lacan aponta uma duplicidade entre as duas faces, como é possível observar em uma passagem do seminário As psicoses: “sem a duplicidade fundamental do significante e do significado, não há determinismo psicanalítico concebível” (LACAN, 1955-1956/2008, p. 136). Essa duplicidade proposta por Lacan não se configura em uma relação plenamente fixa, que foi proposta por Saussure e representada como uma ligação íntima. De fato, para 9 Modelo teórico saussuriano da relação entre o conceito e a imagem acústica (SAUSSURE, 1970, p. 79) 39 Lacan, o traço observado no modelo Saussure, localizado entre o conceito e a imagem acústica, configura-se em uma barra, uma barreira a ser ultrapassada. O que servirá de fundamentação para a sua teoria da metáfora (ARRIVÉ, 2001). Assim, o algoritmo tal como Lacan o concebe, vai se diferenciar do signo saussuriano não só pela inversão da localização do significante e do significado neste. A saber, o significante no signo lacaniano localiza-se no topo e é representado por uma letra maiúscula, enquanto, que o significado é posto abaixo e tem sua representação através de letra minúscula e itálica (S/s). Mas, além disso, este algoritmo também se diferencia por causa da ênfase que Lacan vai associar à barra entre os dois. Pois, ele foi o primeiro a denominá-la como tal. Na verdade, Saussure com a perspectiva de que o significado e o significante estão intimamente unidos, nunca destacou a traço como uma “barra” que, por si só, apresenta um sentido de resistência e separação (ARRIVÉ, 2001). Nesse momento, gostaríamos de destacar o arbitrário do signo que se configura ao nível da própria associação do significante e do significado: “O laço que une o significante com o significado é arbitrário” (SAUSSURE, 1970, p. 81), o que significa dizer que um conceito não é representado por uma única montagem acústica, como é possível observar quando diferentes linguagens representam um mesmo conceito, um mesmo significado. Todavia, esse arbitrário do signo não se remete a uma aleatoriedade, já que o arbitrário só diz respeito a um conjunto de uma determinada comunidade linguística, como Saussure apresenta: “A palavra arbitrário requer também uma observação. Não deve dar a ideia de que o significado depende da livre escolha do que fala” (SAUSSURE, 1970, p. 83). O que significa dizer que, quando o signo estiver estabelecido num grupo linguístico, não é possível que o indivíduo possa fazer qualquer coisa quanto a ele. Essa forma de se pensar o arbitrário do signo esta relacionada, por sua vez, com uma maneira de conceber a linguagem em relação à coisa: Pois essa distinção primordial vai muito além do debate relativo à arbitrariedade do signo, tal como foi elaborado desde a reflexão da Antiguidade, ou até do impasse, experimentado desde a mesma época, que se opõe à correspondência biunívoca entre a palavra e a coisa nem que seja no ato de nomeação (LACAN, 1966/1998, p. 500). Na experiência da clínica, mais especificamente nas situações em que as glossolalias psicopatológicas se fazem presentes, a questão do caráter aleatório do signo linguístico não pode ser negada. No contexto dos distúrbios psicopatológicos da linguagem, que ocorrem com grande frequência na língua dos esquizofrênicos, é possível presenciar esta alteração do signo linguístico. Ao caso que se observa uma tendência do sujeito esquizofrênico por criar e 40 falar línguas novas que, apesar de serem pouco compreensíveis para aqueles que as escutam, apresentam uma estrutura formada com características semelhantes à língua materna daquele que cria essas glossolalias (DOR, 1989). Em suma, o signo não deve ser o ponto de partida para se pensar a linguagem, uma vez que o significante não está restrito a função de representar o significado, não está restrito à lei de representação que não passa de uma ilusão, conforme afirma Lacan: Essas considerações, por mais existentes que sejam para o filósofo, desviam-nos do lugar de onde a linguagem nos interroga sobre sua natureza. E fracassaremos em sustentar sua questão enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado, ou, melhor dizendo: de que o significante tem que responder por sua existência a título de uma significação qualquer (LACAN, 1966/1998, p. 500). Lacan no escrito Instância... irá apresentar uma oposição ao esquema algoritmo saussuriano, uma espécie de duplicação paródica. Trata-se de um desenho de duas portas de banheiro, uma ao lado da outra. Sobre a primeira, encontra-se escrito a palavra homens, e sobre a segunda, mulheres. Vemos que os significantes (Homens e Mulheres) não se remetem, tal como a proposição de Saussure, diretamente aos significados, em outras palavras, aos conceitos de homem e mulher. Mas, “Isso não é apenas para desconcertar com um golpe baixo o debate nominalista, mas para mostrar como o significante de fato entre no significado, ou seja, de uma forma que, embora não seja imaterial, coloca a questão de seu lugar na realidade” (LACAN, 1966/1998, p. 503). A lei da segregação, ou imperativo sexual determina uma separação material inscrita pelo significante como lugares distintos. Sendo assim, o significante se inscreve como a própria lei, pois é a própria possibilidade da localização. A materialidade singular, tal como vimos anteriormente. O significante não se divide em lugares, pelo contrário, ele é quem divide os lugares, permitindo assim que a matéria exista por causa da divisão, e não o contrário, que haja divisão em consequência da matéria (NANCY, 1991). Assim, Lacan vai utilizar o exemplo do míope: [...] porque, ao ter que se aproximar das plaquinhas esmaltadas que lhe servem de suporte, o olhar pestanejante de um míope, talvez tivesse razão em questionar se é realmente ali que convém ver o significante, cujo significado, neste caso, receberia da dupla e solene procissão da nave superior as derradeiras honras (LACAN, 1966/1998, p. 503). A justificativa para tal referência se deve ao fato de que o míope não decifra o significado do significante inscrito, o que ele decifra é a diferença dos lugares. Porém, não se trata apenas disso, uma vez que, este espaçamento simboliza a diferença que a lei articula: 41 Se vê que, sem estender muito o alcance do significante implicado na experiência, ou seja, apenas duplicando a espécie nominal, pelas simples justaposição de dois termos cujo sentido complementar parece ter que ser consolidado por ela, produz-se de duas portas gêmeas que simbolizam, com o reservado oferecido ao homem ocidental para satisfazer suas necessidades naturais fora da casa, o imperativo que ele parece compartilhar com a grande maioria das comunidades primitivas, e que submete sua vida pública às leis da segregação urinária (LACAN, 1966/1998, p. 503). Dessa forma, vemos aqui, o que o significante vai representar para Lacan, já que não se trata mais de uma mera face do signo que se articula em relação ao significado e de onde a sua existência é garantida. Mais do que isso, vai representar, aquilo por meio do qual, a lei como diferença se torna possível. Tratar-se, então, do buraco estrutural em que a lei é marcada. Todas essas distinções implicam em uma só coisa: a visão lacaniana de que o significante apresenta uma supremacia sobre o significado. Isso fica evidente na análise do caso de Schreber, no qual Lacan chegou à conclusão de que: “no delírio, tudo se passa como se houvesse uma invasão progressiva do significante” (LACAN, 1955-1956/2008, p. 247). Enfim, concluímos este tópico com a perspectiva de que a letra é o suporte material do significante, todavia, como veremos mais claramente a seguir, esse vai se distinguir do significante. De semelhante forma em que o Real se distingue do simbólico. 2.2 A LETRA LIXO O foco desse tópico diz respeito à distinção que Lacan irá enfatizar, anos mais tarde, entre a letra e o significante. Para Lacan, isso não se tratava de uma nova perspectiva sobre o assunto, já que essa era sua postura ao escrever A instância da letra no inconsciente, ao invés da instância do significante no inconsciente. Sendo assim, uma reflexão sobre o Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (LACAN, 1971/2009) se faz necessária, principalmente no que condiz à aula intitulada de Lição sobre Lituraterra. Em uma de suas primeiras aulas desse seminário, Lacan apresenta uma resposta às críticas de alguns linguistas de que, ele só fazia um uso metafórico da linguística. Ele volta afirmar que o seu interesse sempre foi à linguagem, uma vez que, é com ela que o psicanalista lida. O que já estava presente em Freud é que o demonstrado no inconsciente é sempre da 42 ordem do material de linguagem, e o acréscimo de Lacan viria no sentido de que o inconsciente tem a estrutura como uma linguagem. Frente a critica de que estaria fazendo um uso metafórico da linguística, Lacan ressalta que o uso da linguagem sempre se dá em um deslocamento de metáfora, já que não haveria uma linguagem que não fosse metafórica. Lacan afirma que é da natureza da linguagem: “que, no que concerne à abordagem do que quer que seja que o signifique, o referente nunca é o certo, e é isso que cria uma linguagem” (LACAN, 1971/2009, p. 43). Quando o significante invoca um referente, esse nunca é o certo, por conseguinte, ele vai associar o referente ao real, já que a designação do mesmo é impossível. A definição do signo como objeto de estudo da lingüística, Lacan irá deixar para os linguistas, mas não sem antes, com base em seu antigo estudo do chinês, promover uma generalização da função do significante. Certamente, essa generalização vai de encontro a uma antiga e insistente questão dos linguistas sobre a articulação dupla, ou seja, que toda linguagem tem como característica a função da articulação entre unidades dotadas de significação e unidades não dotadas de significação. Por isso, vemos aqui, Lacan lançar mão da escrita chinesa como exemplo que põe em xeque esta questão, pois, no chinês, ao contrário da língua ocidental, não só a articulação entre diferentes fonemas produz sentido, já que cada fonema em si vem a ter um sentido próprio. 2.2.1 A carta significante Como foi dito anteriormente, o sujeito é constituído pela ordem simbólica. Lacan, no seu seminário sobre A Carta Roubada, aborda essa visão freudiana por meio do conto de Edgar Allan Poe. Ele utiliza de forma brilhante os personagens e a trama para ilustrar a “determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante” (LACAN, 1966/1998, p. 14). Lacan destaca duas cenas da história. A primeira foi denominada por ele, de cena primitiva, não sem intenção, pois a segunda cena se revela uma repetição da anterior, uma situação que serve de analogia para o automatismo de repetição (Wiederholungzwang) 43 proposto por Freud, que, de acordo com Lacan, extrai o seu princípio da insistência da cadeia de significante (PALMIER, 1977). A cena primitiva ocorre nos aposentos reais. A rainha, a primeira personagem ilustre que se faz presente, recebe uma carta no mínimo comprometedora, tendo em vista que, quando o rei adentra ao recinto, ela se aproveita da distração do cônjuge e deixa a carta sobre a mesa, com a face para baixo, expondo assim apenas o sobrescrito. Essa manobra foge aos olhos de todos, com exceção dos olhos atentos do ministro D. que, tendo havido percebido o desembaraço da rainha, inicia imediatamente uma manobra, retirando do bolso uma carta semelhante. Após encenar a sua leitura, o ministro a deixa sobre a mesa para, em seguida, apoderar-se da carta da rainha. O gabinete do ministro é o local onde se passa a segunda cena. Após 18 meses de procuras meticulosas, por parte da policia, na mansão do ministro, nada foi encontrado. Para a resolução desse enigma, foi necessária a atuação direta do Chefe de Polícia, Dupin. Este marca uma audiência com o ministro em seu gabinete. Com os olhos escondidos pelas lentes verdes dos óculos, ele vasculha o recinto até finalmente perceber sobre o painel da lareira, dentro de um simples porta-cartas de cartolina, a carta da rainha. Dupin, no dia seguinte, sob o falso pretexto de recuperar a sua tabaqueira, retorna ao gabinete, munido de um simulacro da carta, e assim, de semelhante forma ao ministro, substitui as cartas (LACAN, 1966/1998). Podemos observar que, na cena primitiva, a rainha tem consciência de que o ministro está com a carta, enquanto que o ministro tem consciência de que a rainha foi testemunha de seu ato. Por outro lado, na segunda cena, o ministro não tem consciência de que a carta foi levada, em contrapartida, a rainha tem consciência de que a carta não se encontra mais nas mãos do ministro (PALMIER, 1977). Também é importante ressaltar que, tanto a carta deixada pelo ministro, sobre a mesa do rei, como o simulacro deixado pelo Chefe de Polícia, no gabinete do ministro, ambos apresentam um valor significante que não deve ser desprezado por qualquer analista, ao passo que a carta roubada ocupa o lugar do puro significante e, como tal, é símbolo de uma ausência, uma unidade de ser único: Pois o significante é unidade por ser único, não sendo, por natureza, senão símbolo de uma ausência. E é por isso que não podemos dizer carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela deve estar ou não estar em algum lugar, mais sim que, diferentemente deles, ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá. (LACAN, 1966/1998, p.27) O deslocamento que os personagens sofrem de uma cena para a outra se dá em função do lugar ocupado pelo puro significante: a carta. De semelhante forma, na análise de Freud 44 sobre a dívida do Homem dos Ratos, podemos observar, de acordo com Lacan, que esta dívida é um significante que possui um percurso complexo (PALMIER, 1977). Nesse caso, o paciente Lorenz relata que um Capitão, que apresentava um gosto pela crueldade, havia lhe descrito um castigo terrível, em que um vaso com ratos era colocado sobre as nádegas de uma pessoa, para que, deste modo, os ratos cavassem caminho pelo ânus. Na mesma noite em que o Capitão descreveu a tortura, Lorenz recebeu um pacote e, ao lhe entregar, o Capitão lhe disse: “O Tenente A. pagou as despesas para você. Você lhe deve reembolsar” (FREUD, 1909/1996, p. 151). Nesse momento, a mente de Lorenz é tomada pelo pensamento de que ele não deve reembolsar o Tenente A. em dinheiro, caso contrário, o seu pai e sua dama iriam sofrer o castigo descrito pelo Capitão. Então, o paciente de semelhante forma ao próprio pai que, na juventude, adquiriu uma dívida de jogo, recusa-se a pagar a dívida. Como já foi dito, essa dívida é um significante, cujo percurso complexo, determina os movimentos que Lorenz desejou impor àqueles que fazem parte da esfera da dívida e do seu reembolso. É no complexo intersubjetivo, observado no conto da carta roubada, que Lacan faz compreender o automatismo de repetição proposto por Freud e ilustra a determinação que o sujeito sofre em seus atos e em seu destino, que é constatada no caso do Homem dos Ratos: “Mais a carta/letra, tal como o inconsciente do neurótico, não o esquece. Esquece-o tão pouco que o transforma cada vez mais, à surpresa, e agora, a exemplo dela, ele irá cedê-la a uma surpresa semelhante” (LACAN, 1966/1998, p. 38). Como é possível notar, no escrito, O Seminário sobre A carta roubada, a separação entre significante e letra ainda não é clara. Segundo Mandil (2003), neste texto as funções da lettre são determinadas pela dimensão do significante e o conto de Poe representaria para Lacan um meio de estender suas teses sobre o significante. 2.2.2 A carta letra de gozo Na releitura que Lacan irá promover no Seminário 18 (1971/2009) sobre o escrito, O Seminário sobre A carta roubada (1966/1998), ele deixa claro que as articulações 45 apresentadas por ele, já estavam presentes naquele texto, bastando para quem se interessa apenas recorrer ao escrito. Dessa forma, ele inicia a exposição destacando que a tradução que melhor se enquadraria no título (The Purloined Letter) seria a carta retida (LACAN, 1971/2009, p. 92), ao invés de roubada, já que a mesma chega ao seu destino. Não se trata de qualquer destino, porque para Lacan a carta chega aqueles, a exemplo os policiais, que nada podem compreender sobre ela. Justamente por não compreenderem o aspecto material desta carta, cujo aspecto o psicanalista irá se referir com o termo “substrato” (ibid), que os policiais falham em localizá-la no gabinete do ministro, mesmo tendo a certeza de que ali estava: “A carta, evidentemente, está fora do alcance da explicação do espaço, já que é disso que se trata” (ibid). O destino da carta vai se concretizar ao chegar aquele que Lacan denominou de sujeito, quanto a esse ponto ele é particularmente incisivo: Ele (o sujeito), não deve ser eliminado de maneira alguma, nem retirado, a pretexto de avançarmos alguns passos na estrutura. Se o que descobrirmos sob o termo inconsciente tem um sentido, não podemos, nesse nível, deixar de levar em conta o sujeito, repito-lhes, irredutível (ibid, p. 96). [grifo nosso] O sujeito vai se distinguir, segundo Lacan, por uma imbecilidade especialíssima, função esta, que no conto será exercida pelo personagem do Rei que não compreende nada e, mesmo que viesse a ter a carta em suas mãos, ainda assim a única coisa que saberia é que ela possui um sentido. Segundo Lacan, provavelmente somente a Rainha sabia o que a carta queria dizer. Mas não foi por causa disso que ela veio a ser localizada por Dupin, muito menos por causa da descrição que a Rainha apresentou aos policiais. Pelo contrário, segundo Mandil (2003), Lacan explica que foi somente pela capacidade de perceber a dupla essência da carta que o Chefe de Polícia pôde identificá-la no escritório do ministro, já que esse último, por sua vez, havia modificado o aspecto exterior da carta de tal forma, que a descrição fornecida pela Rainha só contribuiu com o fracasso dos policiais. Assim, por reconhecer que a carta não se encontra somente ao lado da mensagem, mas também possui um aspecto material que lhe permite ser manipulada ou até modificada, é que Dupin pôde encontrá-la e substituí-la por um simulacro. De acordo com Mandil: O que se passa com uma carta (...) quando buscada na dimensão da mensagem, ou seja, como elemento de um sistema significante, não é da mesma ordem quando essa carta é tomada como objeto, como pedaço de papel rabiscado, timbrado ou virado pelo avesso (MANDIL, 2003, p. 27) 46 O que se esconde é da ordem do simbólico, no real nada está escondido, tomemos o exemplo do livro perdido, apesar deste continuar na biblioteca, ele continua perdido pelo simples fato de não estar em seu lugar na ordem alfabética. Esta outra dimensão da carta, em que ela pode ser tomada como um objeto, e quem sabe amassada, riscada ou até picotada, nos remete ao segundo momento em que Lacan vai se referir em sua escrita à expressão joyciana: a letter, a litter. Trata-se, na verdade, do um artigo com o título de Lituraterre, que veio a ser publicado na revista Litterature, cuja edição número três era dedicada ao tema Literatura e psicanálise. Na aula intitulada Lição sobre Lituraterre do “Seminário 18”, De um discurso que não fosse do semblante (1971/2009), Lacan vai iniciá-lo comentando que a palavra Lituraterra foi inventada por ele, com base no dicionário de latim de Ernout e Meillet. Porm. Como ele deixa claro, essa palavra não possui nenhuma ligação etimológica com Littera, a letra, o que não o impede de fazê-la. Lacan, com base nos termos lino, litura e liturarius, vai propor a ligação entre litera (a letra) e litura. Segundo Mandil (2003), litura tem como origem a raiz latina lino e tem o sentido de cobertura ou, então, rasura. A partir de litura forma-se a palavra liturarius, que tem o sentido de escrito que possui rasuras. Enfim, a partir dessa palavra, Lacan veio a conceber o seu neologismo: lituraterre. Com efeito, o ponto de partida de Lacan para a criação desse neologismo vai ser a literatura de James Joyce, em que há a expressão a letter, a litter, que Lacan veio a abordar, com base em uma tradução realizada por ele mesmo, como a passagem da carta/letra (a letter) para um lixo (a litter). Com relação a essa expressão, o psicanalista recorda um fato da biografia de Joyce, em que ele havia sido coagido por um, como diz Lacan, “mecenas” a submeter-se a uma psicanálise com Jung, o que por fim, foi recusado. Mas não sem justificativa, já que como afirma Lacan: “No jogo que evocamos, ele não ganharia nada, visto que iria direto, com seu a letter, a litter, direto ao melhor do que se pode esperar da psicanálise em seu término” (LACAN, 1971/2009, p. 106). Aqui somos remetidos à relação que a psicanálise sempre teve com a literatura, não no sentido da contribuição da primeira, ou, então, encontrar uma mera ilustração de seus conceitos e casos clínicos na segunda, pelo contrário o objetivo de Freud sempre foi a contribuição que literatura poderia promover à psicanálise. Destarte, Lacan vai remeter-se ao saber fazer de James Joyce, com sua arte, como exemplo daquilo que melhor se pode almejar de uma psicanálise em seu fim. Tratar-se-á, pois, do deslizamento de a letter para a litter. O que também pode ser pensado em relação à 47 mudança que o ensino de Lacan vai sofrer em favor de uma promoção do escrito, tal como ele afirma: Aqui, porém, meu ensino situa-se numa mudança de configuração que, atualmente, a pretexto da atualidade, é anuncia com um lema de promoção do escrito (LACAN, 1971/2009, p. 107). Segundo Mandil (2003), o artigo Lituraterre, que é do mesmo período do Seminário 18, representa o momento em que a lettre vai ocupar um lugar central no ensino de Lacan. Apesar de que anteriormente não havia uma distinção clara entre significante e letra. Neste artigo a letter vai ser pensada em uma contraposição ao significante, tendo como base uma associação gradativa com noção de gozo. Quanto a esse ponto, não é de surpreender que Lacan irá retornar uma vez mais ao conto de Poe, para relembrar que aquele carta, apesar de seus constantes desvios, sempre chega ao seu destino, mas não sem antes promover um efeito ilusório, o qual Lacan denomina efeito de feminização10 naqueles que a detêm. Todavia, a ênfase de Lacan vai estar no aspecto de que a jornada que a carta/letra percorre acontece sem nenhuma referência ao seu conteúdo. O que corrobora com o fato de que ele está fazendo de forma clara uma separação entre a carta/letra e o significante, no sentido de que a escrita, a materialidade desconecta de qualquer sentido, é que seria realmente a responsável pelas peripécias da carta: Isso, e peço desculpas por voltar ao assunto, equivale a distinguir bem – refiro-me ao que eu faço – a carta/letra do significante-mestre, na medida em que aqui ela o carrega em seu envelope, já que se trata de uma carta/letra no sentido da palavra epístola. Ora, não pretendo fazer nisso um uso metafórico da palavra carta, já que, justamente, o conto consiste em que a mensagem se transmita como num passe de mágica, de modo que é o escrito, e, portanto, propriamente a carta, que faz sozinha peripécias (LACAN, 2009, p. 107-108) O sentido/saber, se é que podemos colocar desta maneira, é o que Lacan vai questionar neste momento, não só por causa do fato de que a carta foi localizada em detrimento do conteúdo, mas também por causa da relação da psicanálise com o furo, ou seja, com o saber em xeque que permite que a mesma revele aquilo que tem de melhor. Assim, Lacan propõe que pelo fato de a psicanálise poder fazer furo é que pode vir a representar uma renovação na crítica literária: “O que significa que a crítica literária viria efetivamente a se renovar pelo fato de a psicanálise estar aí para os textos se medirem por ela, justamente por ficar o enigma do seu lado, por ela se calar” (ibid, p. 108). 10 De acordo com Eric Laurent, citado por Oliveira (2008, p. 23), o efeito de feminização que a carta/letra promove naquele que a esconde, esta relacionado à ideia de enigma, como lugar de gozo que faz furo no sentido. 48 Diante desta nova separação entre significante-mestre e letra, ou seja, entre o aspecto de sentido/saber da lettre e o aspecto de gozo que traz uma materialidade desprovida de sentido, Lacan vai levantar um questionamento: “Quanto a mim, eu lhes digo, será que a letra não é o literal a ser fundado no litoral?” (LACAN, 2009, p. 109). Assim, ele introduz na letra uma relação de litoral que, por ser diferente de uma fronteira, se constitui demarcando uma linha divisória entre heterogêneos. Entre mar e terra, entre gozo e saber, que representam os dois elementos heterogêneos com os quais Lacan veio a exemplificar neste seminário o litoral que a letra constitui, já que a passagem de um para o outro não é possível sem levarmos em consideração, a borda do furo que a letra desenha. Aqui recorremos ao artigo Lituraterra, pois julgamos que esta passagem se revela mais explícita quanto ao assunto: A borda do furo no saber, não é isso que ela desenha? E como é que a psicanálise, se justamente o que a letra diz por sua boca “ao pé da letra” não lhe conveio desconhecer, como poderia a psicanálise negar que ele existe, esse furo, posto que, para preenchê-lo, ela recorre a invocar nele o gozo? (LACAN, 2001/2003, p. 18) No entanto, não deixamos de citar o Seminário 18, tendo em vista, os esclarecimentos que esta aula nos apresenta sobre a letra como litoral entre gozo e saber: O curioso é constatar como a psicanálise se obriga, como que de modo próprio, a reconhecer o sentido daquilo que a letra, no entanto, diz ao pé da letra, seria o caso de dizer, quando todas as suas interpretações se resumem ao gozo. Entre o gozo e saber, a letra constituiria o litoral. (LACAN, 1971/2009, p. 109-110) Ainda com a ideia de fronteira e litoral, Lacan vai se remeter a uma história de sua biografia, que se passa quando estava retornando à França após uma segunda visita ao Japão. Ele explica que a observação que ele fez não aconteceu durante a primeira viagem. Foi por causa das limitações de rotas impostas pelos soviéticos que o avião teve que percorrer uma nova rota pelo círculo ártico, passando pela planície da Sibéria. Entretanto, ele vai destacar que a condição decisiva para aquilo que ele observou durante a viagem não foi a desconfiança soviética de que os aviões poderiam avistar as indústrias e instalações militares da Sibéria. Mas, sim, a condição de litoral, uma vez que, durante sua estadia no oriente ele pôde sentir, tal como veio a descrever, “um pouquinho de cócegas demais” (Lacan, 1971/2009, p. 112) da letra do Japão. Lacan está se referindo àquilo que a arte japonesa veio representar para ele, já que lhe fascinava o casamento com a letra que a pintura japonesa demonstra sob a forma da caligrafia. Por fim, Lacan recorda daquela viagem a visão do escoamento das águas por sobre a planície siberiana, este traço de escoamento, que não sem propósito vai ser descrito por entre as nuvens. Ele irá associar o escoamento com o buquê do esquema óptico apresentado por ele 49 em ensinos anteriores, mas que ali vai ser remetido ao sentido de traço unário, “o significante, não de uma presença, mas de uma ausência apagada” (LACAN, 1961/1962), isto é, uma marca que destaca a diferença por sempre passar por um apagamento (KAUFMANN, 1996). Assim, quando Lacan afirma que o sujeito é designado pelo apagamento do traço unário, ele está se referindo à diferença de si mesmo introduzida pelo traço que serve de suporte à identificação do sujeito. Neste escoamento o que se deve distinguir é “a rasura de traço algum que seja anterior” (LACAN, 1971/2009, p. 113). Assim como a presença das nuvens, que nos remete novamente a ideia de litoral que dividem heterogêneos, já que na visão de Lacan o escoamento se conjuga com a sua fonte: as nuvens. Dessa forma, Lacan identifica as nuvens como que representando o simbólico: “pois é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com significante, ou seja, o semblante por excelência” (ibid, p. 114). Por outro lado, a precipitação da chuva constitui um rompimento deste semblante, o que resulta em riachos que cortam a terra. Aqui vemos o sentido de litoral, já que para Lacan a letra é uma precipitação do significante e esta produz ruptura do simbólico fazendo com que a matéria, que estava em suspensão, se precipite, ao mesmo tempo em que o rompimento terá um efeito no real, pois, o gozo como uma torrente de água vai erodir e aprofundar as depressões da terra. A letra como precipitação do significante, implica numa primazia do significante em relação à letra. Na verdade, na passagem de Lituraterra em que Lacan enfatiza que não se deve confundir a letra com o significante, ele, também, destaca que não se deve atribuir à letra uma primazia em relação ao significante: “O que escrevi com a ajuda de letras sobre as formações do inconsciente não autoriza a fazer da letra um significante, e a lhe atribuir, ainda por cima, uma primazia em relação ao significante.” (ibid, p.110). A erosão, ou, como Lacan se refere no Seminário 18 o “ravinamento das águas” (LACAN, 1971/2009, p. 114), lhe serve para definir a escrita, não só como estando do lado do real, mas como uma erosão do significado. Nas palavras de Lacan: “Isto é para lhes definir por que se pode dizer que a escrita é, no real, o ravinamento do significado, ou seja, o que choveu do semblante como aquilo que constitui o significante” (ibid, p. 114). Ele vai mais além ao abordar a escrita como aquilo que se diferencia do semblante, ou seja, da ordem simbólica, pois o seu vazio escavado consiste em um receptáculo que sempre está pronto a receber o gozo que se desprende de toda ruptura do semblante: “que nada é mais distinto do vazio cavado pela escrita do que o semblante na medida em que, para começar, ela é o 50 primeiro de meus godês a estar sempre pronto a dar acolhida ao gozo, ou, pelo menos, a invocá-lo com seu artifício” (LACAN, 1971/2009, p. 118). Trata-se da dinâmica entre o gozo e a ruptura do simbólico que, segundo Mandil (2003), pode ser recordada em O seminário sobre “A carta roubada” (LACAN, 1966/1998), já que a carta do conto só foi encontrada por causa da habilidade de Dupin de ver além da descrição, em outras palavras, além do “semblante” a ela imposta. Uma vez que, a carta havia sido alvo do gozo do ministro e assim o semblante sofrera rupturas, isto é, um falsear de sua forma primeira de objeto. O que também pretendemos enfatizar neste tópico está relacionado ao efeito que a letra exerce sobre aqueles que a possuem, porque tal como Lacan observa no decorrer do conto, o ministro sofre alterações, “tais como as variações de cor de um peixe a deslizar” (LACAN, 1971/2009, p. 96). A causa para tanto, segundo o psicanalista, é que a letra possui um efeito de feminização. Esse efeito feminilizante da carta/letra nos remete ao Seminário 20. No qual Lacan veio a se dedicar ao tema do gozo, especialmente ao gozo feminino, e apresenta uma perspectiva de que a escrita situa-se como “suplência desse não-todo sobre o qual repousa o gozo da mulher” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 41). Trata-se da impossibilidade da relação sexual que impede o homem de gozar do corpo da mulher. Assim, quando o homem pensa que aborda uma mulher, na verdade, o que ele aborda é aquilo que Lacan denominou de objeto a, objeto causa de desejo. A mulher, por sua vez, não está impedida de gozar falicamente, pelo contrário ela está livre para isso, mas o que acontece com todo ser falante, que segundo Lacan: “se alinha sob a bandeira das mulheres” (ibid, p. 78), é que este vai se fundar por ser não-todo. Com base nesta essência da mulher é que Lacan vai se referir a um gozo suplementar quando se trata do gozo à função fálica. No Seminário 20: mais, ainda, na primeira aula intitulada: Do gozo, Lacan observa que o direito serve de exemplo para a ideia de gozo que irá propor, já que a noção de usufruto lhe permite trazer à tona a diferença entre o útil e o gozo. Pois, por um lado, o termo jurídico, tal como no sentido de usufruto de uma herança, caracteriza a essência do direito de tentar dar uma utilidade a tudo àquilo que pertence à esfera do gozo, ou seja, como Lacan coloca: repartir, distribuir, retribuir (ibid, p. 11). Por outro lado, ele irá trazer uma noção de gozo que se opõe a esta utilidade, assim, o gozo sexual vai ser pensado por Lacan como um resto inútil. Concepção esta, sobre a qual, segundo Mandil (2003), se justifica a evocação de Lacan da expressão joyciana a letter, a litter, tendo em vista, a articulação entre o elemento simbólico, a letter, e o elemento de gozo residual, a litter (lixo). 51 2.3 ESCRITA A-NÃO-SE-LER No Seminário 18 (1971/2009), Lacan apresenta de forma insistente a separação da escrita e do significante, já que ele afirma que a primeira não é cópia da segunda: “Só remonta a ele [ao significante, grifo nosso] ao receber um nome, mas exatamente do mesmo modo que isso acontece com todas as coisas que a bateria significante vem a denominar, depois de as haver enumerado” (LACAN, 1971/2009, p. 114). E para garantir que seu discurso seja entendido, o psicanalista reafirma mais uma vez que o significante está no simbólico e a escrita no real. Ainda com base nessa separação entre a escrita e o significante, no seminário, livro 20: mais, ainda, que foi realizado no ano seguinte à redação do artigo Lituraterre (2001/2003), Lacan afirma: “A escrita não é de modo algum do mesmo registro, da mesma cepa, se vocês me permitem esta expressão, que o significante” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 35). A saber, esta passagem encontra-se na terceira aula do seminário, na qual ele irá se debruçar sobre a maneira como a função da escrita deve ser situada no discurso analítico. Nesta aula, Lacan apresenta logo de início uma distinção entre escrito e a leitura, ou pelo menos ao que normalmente se pode vir a pensar sobre o que seria uma leitura. Isto fica claro com o exemplo da publicação dos seus Escritos, onde confidencia que os tinha como sendo para não serem lidos. Pois, por mais que estejamos inclinados a conceber a leitura de uma letra como sendo semelhante a uma leitura de uma carta, não se trata do mesmo. Uma boa leitura de uma letra se encontra num para além, tal como se faz no discurso analítico em que se lê para além do que o sujeito foi incitado a dizer. Aqui se trata de uma postura clínica que Lacan nos instiga a adotar diante da fala do sujeito, no sentido de promover uma separação entre significante e significado, dando ênfase ao primeiro. Principalmente no que concerne à interpretação do inconsciente, o que corrobora com o fato de que Freud, em Interpretação dos sonhos, sugere que os sonhos devem ser lidos de semelhante forma a uma escrita hieroglífica, ou chinesa, em outras palavras, uma escrita em que o desenho se encontra incorporado em sua expressão. Para Lacan essas imagens de sonhos devem ser tomadas como letras e lidas como tal. Mas a quê este para além se refere, na boa leitura? Antes de abordarmos esta questão, vamos primeiro, junto com o ensino de Lacan, refletir sobre a função do escrito no discurso analítico. Este último foi fundado por ele por uma articulação precisa. Algo que se escreve 52 com letras, barras e traços, mas que serve para lembrar que o discurso analítico foi fundado pelo campo da fala (ELIA apud COSTA; RINALDI, 2007). Curiosamente, para explicar as funções deste discurso analítico que se funda na fala, Lacan irá recorrer às três letras fundamentais de sua escrita algébrica (idem, 2007). Primeiramente o a que apesar de ser nomeado por ele de objeto, no final trata-se de uma letra. Em seguida o A, que ele usa para designar o lugar do Outro, apesar de que ao fazê-lo não se remete ao sentido estrito da letra. Isto só vai acontecer com a duplicação deste lugar com o S, ou seja, com o significante do Outro barrado, S (A barrado). Na realidade, Lacan com essa letra S introduz a dimensão do significante que serve para sustentar o lugar do Outro como barrado, pois “como lugar ele não se aguenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 34). É justamente por causa desta perda que o objeto a vai funcionar. Por fim, o Φ como a terceira letra e que representa a designação do falo em sua função de significante. Então, Lacan irá discernir o que destas letras se introduz na função do significante, tendo sempre em vista a linha do discurso analítico. A linguística como campo que introduziu o significante, encontrou a sua sustentação no discurso científico, o que lhe permitiu introduzir uma distinção na fala entre o significante e o significado. Algo que, para Lacan, já aparecia de forma espontânea, ou seja, quando falamos não só produzimos significações, mas a própria fala só encontra suporte na função de significação. Por meio do discurso científico é possível distinguir a dimensão do significante, porque somente por meio dele é que se institui o ato de colocar o que se ouve como não tendo relação alguma com o que isso significa (ELIA apud COSTA; RINALDI, 2007). Assim, pelo discurso científico apresenta-se uma distinção entre o significante e o significado, o que nas palavras de Lacan: “que o significante só se coloca como não tendo nenhuma relação com o significado” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 35). É com base nesta separação que a distinção, proposta por Lacan, entre escrita e leitura vai se apoiar. Lacan vai trazer uma questão sobre o efeito da escrita em um discurso, mas especificamente o que se produz por este efeito. O psicanalista afirma que o que pode nos introduzir na dimensão da escrita é percebemos o fato de que o que se ouve é o significante e não o significado, ele também apresenta uma distinção no que diz respeito à leitura, porque o que se lê não é o significante. Mas a partir do que se ouve deste é que algo, enfim, poderá ser lido. Se há alguma coisa que possa nos introduzir à dimensão da escrita como tal, é nos apercebermos de que o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O significado 53 não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito do significante. (LACAN, 1972-1973/2008, p. 39) Aqui encontramos a resposta ao questionamento levantado por nós anteriormente, já que uma leitura não ocorre em função de um significante que não se lê, mas naquilo que se ouve deste. Sobre o significado, Lacan comenta que ele é o efeito do significante, efeito este que não possui relação com o que se ouve, mas sim, com a leitura que se realiza a partir do que se ouve do significante. Dito isso, outras questões podem se fazer presentes: A que leitura Lacan está se referindo? Existe mais de uma forma de leitura de um escrito? Um indício dessas respostas pode ser encontrado nesse Seminário 20, pois ele, através de sua antiga noção de barra, apresenta um comentário a respeito do não-compreendido, o que como veremos é caro ao nosso tema sobre o sinthoma joyciano. Tendo isso em vista, nos voltamos para esta passagem em que Lacan aborda a barra, que se encontra entre S e s do seu tão conhecido algoritmo, como algo que não pode ser de maneira alguma compreendido, mesmo que ela venha a receber um significado. Este último ponto nos serve de claro indício da separação entre o significar algo e compreendê-lo. Avançando um pouco mais com Lacan, ele vem a afirmar: “A barra, como tudo que é da escrita, só tem suporte nisto – o escrito, isso não é algo para ser compreendido” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 40). Com base nisso é que Lacan irá abordar a não-compreensão em torno dos seus Escritos, em contrapartida, a oportunidade de explicá-los viria justamente desta ausência de compreensão. Somente sobre esta barra é que, segundo Lacan, todos os efeitos do inconsciente encontram suporte. Mais do que isso, se não fosse a barra nada poderia ser explicado, já que toda explicação encontra seu fundamento na função da barra. Como o exemplo da linguística que sem a barra nada poderia explicar sobre a linguagem. O que não é nenhuma novidade no ensino de Lacan, já que ele havia apresentado anos antes, no escrito A instância da letra, um acento sobre a barra que separava significante do significado: “A temática dessa ciência (a linguística, grifo nosso), por conseguinte, está efetivamente presa à posição primordial do significante e do significado, como ordens distintas e inicialmente separadas por uma barreira resistente à significação” (LACAN, 1966/1998, p. 500). Sendo que esta barreira resistente à significação pode vir a ser transposta pela operação da metáfora. O que vemos de novidade sobre a barra, no Seminário 20, diz respeito à produção do escrito, porque para Lacan a barra seria justamente o ponto no qual se dá a oportunidade de 54 que se produza o escrito, seja qual for o uso da língua (ELIA apud COSTA; RINALDI, 2007). Lacan insiste novamente que a barra só encontra seu suporte na escrita, porém, acrescenta: “no que a relação sexual não se pode escrever” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 40). Aqui ele articula a função do escrito a sua tese de que não há relação sexual entre os sexos, isto é, aquilo que o discurso analítico tem demonstrado no que diz respeito a não relação entre a forma de gozo fálico do homem e a forma de gozo não-todo da mulher. O que vemos aqui é uma articulação fundamentada em um impossível, uma vez que, por jamais se poder escrever a relação sexual é que será possível escrever algo em seu lugar. Para citar as palavras de Lacan: “Tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um certo efeito do discurso que se chama a escrita” (ibid, p. 40). Retornando ao nosso questionamento sobre a leitura, encontramos na última parte da aula sobre a Função de escrito uma possível resposta, já que Lacan irá nos instigar a ler a obra Finnegans Wake de James Joyce. O que de início pode parecer contraditório, porque ele comenta que se trata de uma escrita que: “se lê mal, ou que se lê de tráves, ou que não se lê” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 42). Antes de entrarmos nisso, uma leitura do parágrafo completo se faz necessário: Joyce, acho mesmo que seja legível – não é certamente traduzível em chinês. O que é que se passa em Joyce? O significante vem rechear o significado. É pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem – leiam Finnegans Wake – que se produz algo que, como significado pode parecer enigmático, mas que é mesmo o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, temos de ler – o lapso. É o título de lapso que aquilo significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes. Mas é precisamente por isso que aquilo se lê mal, ou que se lê de tráves, ou que não se lê. Mas esta dimensão do ler-se, não é ela suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? (LACAN, 1972-1973/2008, p. 42) Nessa passagem vemos claramente aquilo que Lacan vinha desenvolvendo, desde a primeira parte de sua aula sobre a função da escrita, a separação do escrito e a leitura. Ao referenciar o escrito de Joyce, ele traz a tona um exemplo de obra na qual se joga com a escrita de tal forma que a linguagem acaba por se aperfeiçoar. Um trabalho com o significante que se aproxima muito do discurso do analista, no que concerne à leitura de um lapso. Esta aproximação se deve ao modo como Joyce em Finnegans Wake toma os significantes, como se estes: “se embutirem, se comporem, se engavetarem” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 42). Resultando, assim, em algo na esfera do significado que se aproxima ao enigma. 55 Como é de se imaginar a leitura de uma obra em que: “o significante vem a rechear o significado” ((ibid, p. 42), se revela uma tarefa, segundo Lacan, impossível. Porque tudo aquilo que poderia representar uma leitura de sentido, ou de compreensão, acaba caindo por terra por causa da multiplicidade de leituras que o significante dá margem. Justamente neste ponto é que Lacan irá fazer uma aproximação com a leitura do lapso, pois: “O de que se trata no discurso analítico é sempre isto – ao que se anuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ela significa” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 43). Sendo assim, chegamos a uma resposta ao questionamento de que se haveria mais de uma forma de ler. Com base nas multiplicidades de leitura de um escrito, que Lacan vai questionar a suposta continuidade entre a leitura e o escrito. Além disso fundamentar a hipótese, que pode ser encontrada de forma direta no Posfácio ao Seminário 11 (2001/2003), de que o escrito não é para ser lido. Algo que não está restrito aos achados de Lacan, como ele mesmo pontua, porque, muito antes dele, foi Joyce quem introduziu o escrito como não-a-ler. Lacan joga com as palavras introduz e intraduz, certamente uma homenagem ao estilo joyciano, mas que serve como referente à impossibilidade de leitura. Pois toda leitura abriga uma tradução. Segundo Mandil (2003), o prefixo negativo in de intraduz também pode ser tomado no sentido de elemento locativo, trazendo assim, uma ideia de “dentro, em”, o que para o comentador diz respeito a uma autotradução que o texto efetua. Esta ideia de autotradução do texto nos é cara para o entendimento da ilegibilidade da obra Finnegans Wake, já que se trata de um texto em que a cada momento uma autoleitura se apresenta, porém sem que se acene a possibilidade de uma interpretação final. Assim, como Mandil (2003) comenta, é como se interpretação passasse a se fundamentar em um ajuste contínuo. Retornando ao Seminário 20 (1972-1973/2008), a referência que Lacan irá trazer da leitura do grande livro do mundo, que também se faz presente no escrito do posfácio ao Seminário 11 (2001/2003), nos serve como ilustração da hipótese de escrita como não-a-ler, assim, como veremos, uma autoleitura do inconsciente representada pelo lapso. Nas palavras de Lacan: Vejam o vôo de uma abelha. Ela vai de flor em flor, ela coleta. O que vocês aprendem é que ela vai transportar, na ponta de suas patas, o pólen de uma flor para o pistilo de outra flor. Isto é o que vocês lêem no voo da abelha. No voo de um pássaro que voa baixo – vocês chamam isto um voo, mas, na realidade, é um grupo, num certo nível – vocês leem que vai haver tempestade. Mas será que eles, leem? Será que a abelha lê que ela serve à reprodução das plantas fanerógamas? Será que o pássaro lê o augúrio da fortuna, como diziam antigamente, quer dizer, da tempestade? (LACAN, 2001/2003, p. 43) 56 O discurso analítico vai ser referenciado nesta analogia, uma vez que, a leitura que se faz em torno do “escrito” do voo das abelhas e dos pássaros, sendo respectivamente no sentido de polinização e pressagio de tempestades, não passam de associações de significantes isolados com significados, o que sempre representa uma outra leitura daquilo que realmente significa. Frente a essa ideia de uma outra leitura, Lacan irá abordar em sua analogia a possibilidade de que a andorinha leia a tempestade. Essa suposição de leitura do passarinho serve de gancho para aquilo que interessa ao discurso analítico, por conseguinte: “No discurso analítico de vocês, o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler. E não é outra coisa, essa história do inconsciente, de vocês. Não só vocês supõem que ele sabe ler, como supõem que ele pode aprender a ler” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 43). Note-se que Lacan esta trazendo a questão da autoleitura para o inconsciente, a exemplo, como abordamos anteriormente, do lapso. Já que no lapso é como se o inconsciente estivesse interpretando, ou seja, promovendo uma autoleitura da intenção de significação (MANDIL, 2003). Porém, Lacan deixa uma ressalva, porque mesmo que haja a suposição de que o sujeito do inconsciente saiba, ou, então, aprenda a ler, apesar disso, aquilo que o analista viria a ensinar como forma de ler, não mantém relação alguma com aquilo que: “vocês possam escrever a respeito” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 43). Tendo em vista a hipótese de separação da escrita e da leitura, Lacan vai realizar no posfácio ao seminário 11 uma crítica ao processo de alfabetização, a qual ele vai se referir utilizando o neologismo: “alfabestificando-se” (LACAN, 2001/2003, p. 504). Para o psicanalista, o processo de aprendizagem de leitura da escrita fonética, em que a criança aprende a associar o som da letra G através de desenhos de girafas e gorilas, não tem relação alguma com a dimensão do escrito. Com efeito, diz Lacan: “Como se a criança, ao saber ler num desenho que se trata da girafa, e em outro, que é gorila que ela deve dizer, não aprendesse apenas que o G com que as duas se escrevem não tem nada a ver com ser lido, já que não responde ali a elas” (ibid). Ainda no posfácio, Lacan irá se remeter ao tão conhecido chiste relatado por Freud em sua obra, Os chistes e sua relação com o inconsciente, em que dois judeus se encontram na estação da Galícia. Então, o primeiro pergunta para qual destino o segundo se dirigia, este responde que estava indo para a Cracóvia. De fato, o primeiro não se contenta e o acusa de mentiroso, justificando que a intenção desse, era fazê-lo acreditar que estava indo para Lemberg. Enquanto que, na verdade, estava realmente indo para a Crácovia. 57 Lacan ao se referir à função do escrito no discurso analítico faz menção a um chiste relatado por Freud em uma de suas obras consagradas aos mecanismos de linguagem. O que é curioso perceber, pois o momento da publicação deste posfácio poderia ser datado como pertencente ao período em que Lacan abordou o campo do gozo. É importante destacar essa passagem, porque nos remete ao fato de que apesar dos campos lacanianos poderem ser delineados em seu ensino, ainda assim, em nenhum momento, eles podem ser considerados como excludentes. Pelo contrário o campo do gozo inclui o campo da linguagem. Retornando à história relatada por Freud, é na dimensão da fala do primeiro judeu para o segundo, que encontramos uma demanda de interpretação e uma pergunta sobre a verdadeira intenção, ou seja, “por que você mente para mim ao me dizer a verdade?” (LACAN, 2001/2003, p. 504). Intenção, no desafio esquiva-se, desafiando defende-se, recalca-se, recalcitra-se, tudo lhe servirá para não entender que o “por que você mente para mim ao me dizer a verdade?” da história – que se diz judaica, por ser o menos burro que fala – diz, igualmente, que é por não ser um livro de leitura que o guia de horários das estradas de ferro é o recurso, ali, mediante o que se lê Lemberg em vez de Cracóvia; ou então, que o que decide a questão, afinal, é o bilhete fornecido pela estação. (ibid, p. 504-505). Todavia, Lacan vai deixar claro que não é na suposta leitura do guia de horário da estrada de ferro que o impasse será resolvido, principalmente porque esta não seria a verdadeira função de um escrito nesta história. Tal como ele escreve: Mas a função do escrito, nesse caso, não constitui o guia, e sim o próprio caminho da estrada de ferro. E o objeto (a), tal como o escrevo, é, por sua vez, o trilho por onde chega ao mais-de-gozar aquilo de que se habita, ou em que se obriga, a demanda de interpretar (LACAN, 2001/2003, p. 505). Diante disso, vemos que para Lacan a função do escrito, neste caso de chiste, seria representada pelo caminho da estrada de ferro, o que se remete a mais de uma possibilidade de destino: Lemberg ou Cracóvia. É com base nisto que Mandil (2003) vai retomar à obra Finnegans Wake, no sentido de um escrito em que cada palavra ou frase vai dar margem a uma multiplicidade de interpretações, mantendo assim em suspenso a demanda a interpretação. A demanda a interpretação, como é possível perceber no questionamento feito pelo judeu ao outro, vai representar um aspecto fundamental, uma presença de mais-de-gozar, que, segundo Lacan, se chega percorrendo os trilhos da estrada de ferro, o objeto a. Assim, ele nos indica na função do escrito a presença do objeto a. Além, de um gozo no escrito, cuja presença serve para fundamentar a multiplicidade de leituras. 58 A partir dos anos 1970 e com base na impossibilidade de escrever formalmente a relação sexual, Lacan vai circunscrever a impossibilidade lançando mão ao escrito (KAUFMANN, 1996). Fazendo um percurso pelos grafos, matemas e, por fim, pela topologia. Sendo que, com base neste último, ele vai introduzir o nó borromeano como uma nova forma de escrita que serve, não para promover uma precipitação do significante, mas para servir de suporte do significante. Este será o sentido pelo qual iremos abordar junto à teoria lacaniana, no último capítulo, a obra escrita de James Joyce. Mas antes, iremos abordar no capítulo seguinte a topologia e, principalmente, a relação da escrita com o nó borromeano. 59 3 A TOPOLOGIA DO NÓ BORROMEANO Uma significativa parte da obra de Lacan é marcada por um intrincado desenvolvimento topológico. O que exige de nós uma compreensão da topologia, ramo da geometria singularizado por suas relações não métricas. Assim, a função da medida é deixada de lado em favor das ligações entre os elementos, tais como: superfícies e nós. Desta forma, este capítulo tem como objetivo a realização de uma breve introdução à topologia dos nós borromeanos de três e quatro anéis. Sendo assim, iremos abordar principalmente os seminários 22 e 23, denominados respectivamente de R. S. I. (1974/1975) e Sinthoma. Uma vez que, no primeiro, Lacan vai começar a trabalhar de forma persistente a problemática do nó borromeano de três anéis, mas, antes do término deste, ele vai começar a propor a necessidade de um quarto anel. O que, como veremos, no seminário seguinte, vai culminar na articulação entre este anel a mais e o sinthoma. 3.1 LACAN E A TOPOLOGIA DO NÓ Esta aproximação de Lacan com a matemática é uma questão complexa que muitas vezes é criticada por aqueles que acusam o psicanalista francês de falta de rigor e fundamento nesta área. Na verdade, em passagens pontuais podemos observar que Lacan irá promover certa subversão dos conceitos matemáticos11, o que não deixa de manter uma semelhança com aquilo que ele fizera com os conceitos da Linguística, tal como vimos anteriormente quando abordamos o sentido dado por Lacan ao significante saussuriano. Seja como for, não pretendemos realizar aqui uma reflexão sobre as razões que justificariam uma apropriação da matemática pela psicanálise, já que este é um ponto que se distancia muito do nosso interesse 11 Por exemplo, no Seminário 23 Lacan vai conceber uma representação plana do nó borromeano através de um desenho de um círculo e duas retas, ao invés de três círculos, o que para um matemático poderia ser considerado inconcebível. 60 nesta dissertação. Contudo, antes de continuarmos na temática da topologia do nó borromeano, julgamos necessário abrir um parêntese para esclarecer que este ramo da geometria, no que diz respeito à psicanálise lacaniana, não deve ser entendido apenas com base em um uso metafórico ou alegórico. Quanto a isso, podemos encontrar um questionamento em uma comentadora muito conhecida pelo seu trabalho sobre a topologia em Lacan Trata-se de Jeanne Granon-Lafont (1996) que, ao discutir sobre a banda de Moebius, em sua obra intitulada “A topologia de Jacques Lacan”, apresentou a seguinte pergunta: “A relação que se expõe deste modo entre a topologia e a psicanálise é ainda metafórica, ou trata-se de um „suporte intuitivo‟?” (ibid, p. 37). A resposta para isso é que, segundo a autora, a utilização da banda de Moebius como metáfora, mesmo didática, seria inaceitável. Assim, ela rejeita a hipótese metafórica e volta-se para o “suporte intuitivo”. Com isso não queremos recriminar o uso da topologia como suporte explicativo, principalmente, porque é inegável o poder que as imagens das figuras espaciais exercem na compreensão do ensino lacaniano. O que queremos ressaltar neste momento, é que as formulações topológicas abordadas por Lacan podem representar, tal como veremos na articulação que ele promove com os registros, com base no nó borromeano de três, um trabalho com a topologia que não representa um mero recurso de metodologia didática. Pois, para além de uma mera formalização, o achado dos nós trata-se de uma descoberta extrametodológica. Dito isso, segundo Harari (2002), no Seminário 9, A identificação (LACAN, 1961/1962), podemos encontrar em Lacan uma primeira referência topológica sustentada. Nesse seminário, ele vai abordar as superfícies em função do problema de base, mas especificamente a noção de dentro e de fora, que o fenômeno psíquico da identificação promove. Na verdade, em uma definição preliminar, a identificação é abordada como uma operação psíquica na qual o externo é transformado em interno. Trata-se de um suposto domínio de uma interioridade e sua consequente exterioridade, domínio este sobre a qual é baseada a divisão entre o eu e não-eu. Lacan vai subverter esta noção de espaço, demonstrando que o dentro e o fora não estão definidos de forma tão clara. Sendo assim, ele vai recorrer às superfícies topológicas, como a fita de Moebius, para elaborar alguns problemas sobre a identificação. O Seminário 23 (LACAN, 1975-1976/2007), que neste capítulo, terá maior relevância em comparação com os outros, representa um outro momento lógico do desenvolvimento topológico de Lacan: o dos nós. Assim, o psicanalista da primeira aproximação à temática das superfícies vai deslizar até a questão dos nós. Não queremos dizer que Lacan vai deixar de 61 trabalhar com a questão das superfícies. Pelo contrário, nos seminários 24, 25 e 26, conhecidos respectivamente por “L‟insu que sait de l‟une-bévue s‟aile à mourre”, “Momento de concluir” e “A topologia e o tempo”, Lacan vai apresentar uma combinação de topologia de superfícies e nós (HARARI, 2002). Continuando na temática dos nós que tanto nos interessa, ainda no seminário “A identificação”, podemos encontrar indicações do trabalho de Lacan com o nó elementar denominado de trevo. Todavia, somente a partir do Seminário 19, ...ou pior, é que Lacan vai começar a trabalhar sobre os nós, de forma cada vez mais intensiva, em especial, o tema relacional do nó borromeano que ele irá introduzir neste mesmo seminário. Georges Th. Guilbaud foi quem apresentou Lacan aos problemas do nó borromeano de três aros. Na verdade, os desenvolvimentos desse matemático serviram de base para que o psicanalista inicie o seu trabalho com este nó. Desta maneira é que Lacan vai receber o suporte para articular, de forma inovadora, o ponto central de seu ensino naquele momento, ou seja, a imbricação dos três registros da experiência: Real, Simbólico e Imaginário. Lacan irá manter contato também com outros matemáticos proeminentes de sua época, tal como Valérie Marchand e Pierre Soury, sendo que este último veio a ser aquele com quem o psicanalista manteve um longo diálogo matemático. Na verdade, Soury inaugurou e dirigiu um seminário formado por vinte pessoas que tinha como objetivo construir o modelo matemático pelo qual seria possível o estudo das preocupações lógicas e topológicas apresentadas por Lacan. Foram muitas as contribuições deste grupo de estudo para o próprio seminário do psicanalista. 3.2 O NÓ BORROMEANO DE TRÊS Lacan vai começar a trabalhar de forma persistente a problemática do nó borromeano a partir do Seminário 22, R. S. I. (1974/1975). Como se pode deduzir facilmente, este título trata-se dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Lacan comenta: Freud não tinha ideia do Simbólico, do Imaginário e do Real, mas tinha todavia uma desconfiança, fato é que pude extrair isso para vocês, com tempo sem dúvida, e com paciência, que eu tenha começado pelo imaginário e, em seguida, precisado um bocado mastigar essa história do Simbólico com toda essa referência linguística sobre a qual efetivamente não encontrei tudo aquilo que me teria facilitado. E 62 depois, esse famoso Real, que acabei por lhes apresentar sob a forma mesmo do nó. (LACAN, 1974/1975, 14 de janeiro de 1975, p. 18) Talvez, o que passe despercebido é que a pronúncia em francês dessas letras, nessa mesma ordem, soa de modo homofônico a palavra hérésia (heresia). Ponto digno de nota, pois, Lacan se considerava possuidor de um caráter herético em meio à cultura e a própria psicanálise (HARARI, 2002). Em um nó borromeano verdadeiro é possível observar a propriedade que permite um enodamento constituído de tal forma, que ao se desatar apenas um dos elementos, seja qual for ele, todos os demais se desatarão automaticamente. Trata-se da definição do nó borromeano já evocada por Lacan no Seminário ...Ou piro. Anos mais tarde, na primeira aula do Seminário R. S. I., ele aborda o nó novamente e destaca que o número mínimo de anéis não pode ser inferior a três. Gostaria de retê-los um instante sobre o nó borromeano. Este nó consiste estritamente no fato de que três é o seu mínimo. Se vocês fizerem uma cadeia, levando em conta o sentido comum que essa palavra tem para vocês... isso... Se vocês desenlaçarem dois anéis da cadeia, os outros anéis permanecem ligados. A definição do nó borromeano parte de três. É, a saber, que se de três vocês rompem um dos anéis, eles ficam livres todos os três, ou seja, os dois outros se soltam. (LACAN, 1974/1975, 10 de dezembro de 1974, p. 5) Antes de continuarmos, uma breve diferenciação entre os três registros do nó borromeano se faz necessária. O Imaginário é da ordem do registro do engodo e da identificação e deve ser compreendido a partir da imagem, o que nos remete a experiência do espelho. É pelo imaginário que se faz corpo e se constitui o eu em uma relação de alienação. Enquanto que o registro do Simbólico diz respeito ao lugar da palavra e da linguagem. Por fim, o registro do Real, que de forma alguma deve ser confundido com a realidade, ao invés disso, deve ser pensado como aquilo que escapa ao Simbólico e ao Imaginário. Aquilo que diz respeito ao impossível e que insiste em não se escrever. Como um nó borromeano vai se constituir? Primeiramente é necessário que o par inicial de aros um se sobreponha ao outro. Evitando assim, que nenhum aro passe por dentro do outro, caso contrário se assemelharia a um nó olímpico. Em seguida, um terceiro aro intervém sobre o par inicial, realizando um percurso alternado entre dentro e fora. Dito de outro modo, já que no par inicial um aro se encontra sobreposto ao outro, o terceiro aro vai passar sucessivamente por baixo do aro de baixo e por cima do aro de cima. O resultado desta lógica rigorosa é um nó homogêneo entre os aros, que não dá margem a uma distinção entre os três. 63 Cada rodela de barbante permanece indistinta das demais, sendo assim, elas só passam a ter identidade depois que nomes lhes são agregados. Trata-se da nomeação, que vai se constituir em uma questão decisiva abordada por Lacan no final do Seminário 22. Enfim, abaixo se encontra uma representação do nó borromeano de três: Ilustração 2 12 As relações entre estes três anéis foram definidas por Lacan no Seminário 22 e retomadas por ele no seminário seguinte, O sinthoma: “O que prevalece é o fato de que as três rodinhas participam do imaginário como consistência, do simbólico como furo, e do real como lhes sendo ex-sistente” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 55). A consistência, o furo e a ex-sistência, são essas as relações que o Imaginário, o Simbólico e o Real mantêm entre si respectivamente. Comecemos pela consistência, pois, ela é necessária para que o nó borromeano de três seja possível, em outras palavras, somente graças ao acréscimo do Imaginário como terceiro ao Simbólico e ao Real é que a tríade pode vir a existir: “O nó borromeano, na medida em que se suporta do número três, é do registro Imaginário. Pois a tríade Real, Simbólico e Imaginário só existe devido à adição do Imaginário como terceiro.” (LACAN, 1974/1975, 10 de dezembro de 1974). No que diz respeito à ex-sistência, que para Lacan, corresponde ao registro do Real, devemos lembrar que um nó borromeano se constitui através de um par inicial de anéis que se sobrepõe um ao outro, sem que entre eles haja uma relação, somente quando um terceiro se interpõe ao par inicial é que se realiza o enodamento. Então, esse terceiro anel é que vai ex-sistir em relação ao par inicial. Granon-Lafont (2006) irá apresentar uma esclarecedora definição de “ex-sistir”: “Ex-sistir quer dizer, mais precisamente, se situar alhures, noutra parte, se bem que a presença seja, no entanto, necessária aos outros dois como ponto de apoio, de escora, de nodulação.” (ibid, p. 140). Para encerrar, a noção de furo será primeiramente apresentada por Lacan, no Seminário 22, como que associada ao 12 O nó borromeano de três anéis (QUINET, 2006, p. 119) 64 Real, mais tarde, ele o associa com o simbólico. Dito isso, o furo consiste no recalque primário, irredutível e inacessível, o que de acordo com Granon-Lafont (ibid): “é o simbólico elevado à potência dois, o furo simbólico no simbólico.” (ibid, p. 143). Segundo Harari (2002), Lacan vai fazer uma referência a Freud no Seminário 22, na aula de 17 de dezembro de 1974, ao situar o Real, o Simbólico e o Imaginário, em relação com os três termos freudianos, Inibição, sintoma e angústia. Termos estes, que como Lacan deixa claro, foram trabalhados exaustivamente no seminário A angústia. De acordo com Harari (2002), cada um dos termos de Freud é tomado como uma invasão de um dos registros sobre outro, mais especificamente sobre aquele que, em um sentido horário, se encontra ao lado na representação do nó borromeano de três. Nessa ordem, a zona da inibição será a do transbordamento do Imaginário sobre o Simbólico, enquanto que o lugar do sintoma vai se situar no avanço do Simbólico sobre o Real e, por fim, o lugar da angústia vai se situar na invasão Real sobre o imaginário. O nó borromeano de três vai servir de ponto de partida, porém, para que o sentido e a perspectiva dessas zonas de invasões sejam incorporados, é necessário que as rodelas de barbante sejam convertidas e congeladas em superfícies planas. Representando assim a passagem de uma versão tridimensional para outra bidimensional. No centro desta nova versão, na intersecção dos três registros, Lacan vai localizar o objeto a, o objeto impossível e inatingível. Além deste último, o psicanalista também vai localizar em zonas cruciais três conceitos: o gozo fálico (J Φ), que avança no sintoma; o gozo do Outro (J A/), que avança na angústia; e o sentido, que avança na inibição. Abaixo apresentamos o nó borromeano plano completo: Ilustração 3 13 13 Nó levógiro, figura planificada do nó borromeano de três anéis (DIAS, 2006). 65 Até o momento, nos referimos apenas ao nó borromeano de três. Mas será que haveria algum imperativo que restringiria o nó apenas a esta quantidade de aros? Certamente que não. Lacan no Seminário 23 vai se referir à possibilidade de um nó borromeano com 4, 5, ou, até 6 aros. Ele argumenta que a dificuldade de se trabalhar com um nó borromeano de quatro, por si só, já representa um grande desafio, todavia, este não será o único motivo pelo qual este nó em particular lhe será tão caro neste seminário. Para compreendermos isso devemos nos voltar para o seminário anterior, R. S. I., no qual é curioso observar a passagem de Lacan de uma crítica ao quarto termo até a sua aceitação. Dito isto, vejamos esse percurso. 3.2.1 O quarto anel No que diz respeito à utilização do nó borromeano em sua clínica, podemos observar que Lacan abordou diferentes formulações ao longo de seu ensino. Primeiramente, promovia uma associação entre a neurose e o nó olímpico, sendo que este não se desfazia quando um dos anéis era cortado, ou seja, não possuía uma propriedade borromeana. Posteriormente, é que ele irá passar a associar a estrutura do sujeito com o nó borromeano, de modo que, onde houvesse um sujeito, também haveria uma amarração borromeana dos registros. Lacan vai trabalhar como nó borromeano de três termos, pelo menos até o Seminário 22, pois, no decorrer deste passou a formalizar um quarto termo, o que lhe permitiu pensar o enodamento dos três registros sobre a perspectiva do nó borromeano de quatro elementos. Assim, neste momento de nossa dissertação, voltar-nos-emos ao quarto anel. Aquele que é capaz de manter unidos os três registros, além de permitir a diferenciação entre eles, e que, inicialmente, será denominado por Lacan de o Nome-do-Pai. Podemos observar que em grande parte do Seminário 22 Lacan se posiciona frente ao quarto anel como se ele fosse prescindível. Desta forma, não é de surpreender que ele tivesse uma posição crítica frente à necessidade de Freud de atar os três registros, através do conceito de realidade psíquica, Realität. Nas palavras de Lacan: “Foram necessários a Freud, não três, o mínimo, mas quatro consistências para que isso se sustentasse, a supô-lo iniciado na consistência do Simbólico, do Imaginário e do Real” (LACAN, 1974/1975, 14 de janeiro de 1975, p. 18). 66 Segundo Harari (2002), Lacan argumentava que esta realidade funcionava à maneira da religião, entretanto, em nenhum momento explicou esta aproximação entre o conceito de realidade psíquica e a religião. Apesar disso, o comentador arrisca uma leitura na qual a Realität freudiana, de semelhante forma a existência de Deus, só encontraria seus fundamentos na crença. Também esclarece que tal discussão não diz respeito à comprovação empírica desta realidade, mas a sua aceitação de forma inquestionável. Seja como for, Lacan compreende a realidade psíquica em Freud como um quarto termo, como um suplemento. No Seminário R.S.I., na aula de 18 de fevereiro de 1975, podemos observar também, que o nó borromeano de quatro é citado brevemente por Lacan e ao contrário do que fizera anteriormente, ele não associa nenhum sentido crítico ao quarto anel. Então, apesar da relutância anterior em aceitar o nó borromeano de quatro, antes do término do seminário, o psicanalista francês começa a dar margem a esse nó que se revelará tão caro ao seu ensino posterior. Ao lançar mão da teoria dos nós nesse seminário, Lacan o faz distinguindo o nó borromeano do modelo. Trata-se de uma ideia em que ele muito insistiu, inclusive a retomou no seminário seguinte dedicado a Joyce. Essa distinção representava em seu ensino a passagem de um modelo imaginário, o que, na verdade, vem a ser uma escritura que supõe o Real, tal como a escritura das superfícies, para uma escritura que suporta um Real. O que implica que o enodamento dos três anéis, aquilo que mantém unidos os registros – Simbólico, Real e Imaginário – passa a ser entendido por Lacan, como o Real em si mesmo: “O nó não é o modelo, é o suporte. Ele não é a realidade, é o Real. O que quer dizer que, se há distinção entre o Real e a realidade, é o nó, não como modelo” (LACAN, 1974/1975, 15 de abril de 1975). Desse modo, apesar de o psicanalista enfatizar neste seminário sobre o nó borromeano de três, o fato de que o nó seria o próprio Real, nos leva a concluir que, mesmo em um nó formado por apenas três anéis, já existe a presença de um quarto elemento. No seminário 23, O sinthoma, Lacan faz o seguinte questionamento: “Mas haveria possibilidade de realizar, com esse nó de três, um nó borromeano com quatro nós de três?” (1975-1976/2007, p. 42). Cada um desses quatro nós, que Lacan pretende atar, diz respeito ao nó de três, conhecido como nó de trevo, aquele que ele em outra ocasião denominou de nó da paranóia. Esse nó se singulariza pela maneira como se ata as três argolas, já que elas não se apresentam como que estando individualizadas, mas, sim, de acordo com uma continuidade. Tal como na imagem seguinte: 67 Ilustração 4 14 Por dois meses o psicanalista se lança nesse desafio de tentar demonstrar que ex-sistia um modo de atar de forma borromeano quatro nós de trevo. Lacan fracassa enormemente nessa tarefa. Porém, ele esclarece de antemão que isso não provava nada. Apesar da inabilidade de Lacan com esse nó, a sua não ex-sistência continuava incomprovada. Sendo assim, ele fracassa não só em demonstrar esse nó, como também, fracassa em encontrar uma razão demonstrativa de que ele não pode ex-sistir. Mas afinal, qual era a intenção inicial de Lacan em querer demonstrar essa impossibilidade, ou seja, em demonstrar que não seria possível produzir um nó borromeano de quatro nós de trevo? Com isso ele pretendia assegurar o Real. Nas suas palavras: “Tratar- se-ia do real constituído por não haver nó borromeano que se constitua com quatro nós de três. Demonstrá-lo, seria tocar um real” (ibid, p. 43). Há, por conseguinte, em Lacan, a intenção de demonstrar o Real, através da impossibilidade da existência desse nó. Entretanto, na aula seguinte, como fruto de uma colaboração entre Thomé e Soury, este nó é apresentado. Diante disso, o psicanalista descreve uma dupla sensação, uma mistura de lamentação, por não ter conseguido esse feito, e de satisfação pelo sucesso daqueles matemáticos. De fato, ele descreve aquela conquista como um grande feito e apresenta para seus ouvintes uma representação planificada deste nó, no qual é possível perceber que caso seja eliminando o nó de três preto, todos os demais ficam livres, atendendo assim ao pré-requisito para a constituição de um nó borromeano. 14 Nó de trevo (LACAN, 1975-1976/2007, p. 42) 68 Ilustração 5 15 Frente a essa solução, que ele buscara de forma tão intensa nos dois meses anteriores, Lacan justifica a importância desta conquista com base no fato de que aquilo permitia a ele sustentar a equivalência entre os três círculos do nó borromeano, tema este que ele já havia abordado no Seminário 22: “Os três círculos do nó borromeano são, como círculos, todos três equivalentes, constituídos de alguma coisa que se repete nos três. Isso não pode deixar de ser considerado.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 49). Lacan nos lembra que esta equivalência não acontece por acaso, já que entre os três anéis haveria uma consistência imaginária, e ele completa: “assim como faço do furo o essencial do que diz respeito ao simbólico e o real sustentando especialmente o que chamo de a ex-sistência.” (ibid). Como já afirmamos anteriormente, este último, a ex-sistência do real, só é possível quando se interpõe ao par formado pelo simbólico e pelo imaginário. Aqui Lacan destaca que no momento em que o real se encontra borromeanamente enodado aos outros dois, esses lhe resistem: “Isso quer dizer que o real só tem ex-sistência ao encontrar, pelo simbólico e pelo imaginário, a retenção.” (ibid). Com isso retornamos novamente a proposição lacaniana de que o Real é o próprio efeito de enodamento, entretanto, o que mais nos interessa neste momento de nossa dissertação é o nó borromeano de quatro anéis com o qual Lacan passa a distinguir os três registros. Desse modo, como vimos anteriormente, Lacan no Seminário 22 já apresentava o nó borromeano de quatro anéis. Vê-se bem neste seminário que este quarto elemento é descrito como suplementar, porquanto, o nó formado por quatro elementos se fundamenta na suposição “de uma disjunção concebida como originária do Simbólico, do Imaginário e do 15 Representação planificada do nó borromeano com quatro nós de trevo (LACAN, 1975-1976/2007, p. 46). 69 Real” (LACAN, 1974/1975, p. 31). Assim, no nó borromeano de quatro haveria a suposição de que os três anéis permanecem enlaçados somente pela presença de um anel a mais, de um anel suplementar. Podemos observar que Lacan mantém este mesmo viés no seminário dedicado a Joyce, onde encontramos na terceira aula, intitulada “Do nó como suporto do sujeito”, uma passagem em que ele questiona se o nó borromeano de três seria capaz de sustentar por si só alguma coisa que é da ordem do sujeito: “Mas para que alguma coisa, que é preciso dizer que seja da ordem do sujeito [...], encontre-se, em suma, sustentada nó de três, será que basta que o nó de três se enode, ele mesmo, borromeanamente a três?” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 49, grifo nosso). Com isso ele assevera sobre a necessidade de um quarto elemento e sobre uma situação mínima em que um, o sinthoma, enodaria três, os registros: “Com efeito, parece que, para atingirmos a cadeia borromeana, o mínimo é essa relação de 1 com 3 outros.” (ibid, p. 50). Em um nó borromeano de três elementos não é possível distinguir os três registros. Cada um deles normalmente é representado por uma “rodinha de barbante” que recebe uma determinada cor ou, então, uma nomeação. Porém, isso não passa de uma tentativa arbitrária de promover uma distinção dos registros no nó borromeano de três, uma tentativa de mascarar o fato de que neste nó há liberdade para que a ordem dos anéis seja mudada, além da impossibilidade de identificar aquele anel que faz nó, ou seja, o anel do Real. Com isso nos deparamos com um outro motivo pelo qual a inclusão de um quarto anel torna-se necessária, já que este impõe uma distinção dos três registros. Anteriormente, abordamos a constituição do nó de três, em que enfatizamos a necessidade de um par inicial de anéis em que nenhum passa por dentro do outro, eles se sobrepõe e um terceiro é que faz o nó. Agora podemos destacar como o nó borromeano de quatro vai se constituir. De acordo com a imagem abaixo, neste nó haveria inicialmente três registros soltos e sobrepostos uns em relação aos outros, ao invés de dois, o que diz respeito à suposta disjunção entre os registros e a necessidade de um quarto elemento para amarrá-los. 70 Ilustração 6 16 Lacan vai denominar inicialmente este quarto elo, que enoda borromeanamente a tríade, de o Nome-do-Pai. Quanto a isso é preciso, contudo, marcar que existe uma diferenciação que não pode ser esquecida entre a função do Nome-do-Pai e o termo que pode vir a exercer essa função. Trata-se da mudança no ensino de Lacan, já abordada em nossa dissertação, em que o Nome-do-Pai passa a ser visto como mais um elemento suplementar, mais um entre outros. O que implica não só a generalização da forclusão do Nome-do-Pai, mas também, o fato de que a falta deste significante na psicose pode vir a ser compensada através de diferentes substitutos, que exercem a mesma função. Em outras palavras, o Nome- do-Pai passa a ser relativizado e deixa de ser pensado como a única alternativa para a amarração da estrutura do sujeito. Pois, diante das falhas do nó haveria maneiras diferentes de suplências. Tal como veremos de forma mais aprofundada no próximo capítulo, Joyce encontrou uma outra forma, fora do Nome-do-Pai, de suplenciar a sua forclusão de fato. 16 O nó borromeano com quatro anéis, sendo o quarto representado pelo Nome-do-Pai (QUINET, 2006, p. 119) 71 4 JOYCE, O SINTHOMA Lacan, partindo da suposição de que houve uma forclusão de fato em Joyce, vai abordar a arte do escritor irlandês como aquilo que viria a suprimir o que a carência do Nome- do-Pai não lhe garantiu, a saber: a sustentação fálica. Com sua arte, Joyce vai inventar uma escrita que faz um nome e que vai ocupar o mesmo lugar do ego que corrige. Sendo assim, afinal, objetivamos neste capítulo abordar o sinthoma joyciano propriamente dito, com base, sobretudo, no Seminário 23. 4.1 “MAS ISSO NÃO”: Singularidade do sinthoma Inicialmente o Seminário 23 (LACAN, 1975-1976/2007) havia sido anunciado sob o título de 4, 5, 6, algo que podemos entender como relacionado não só ao nó borromeano de quatro, mas, também, àqueles com 5 e 6 barbantes. O que nos leva a imaginar a dificuldade que tal empreitada representaria para Lacan. Porém, na primeira aula de seu seminário, ele vai deixar claro que a versão quádrica por si só já representava um grande desafio. Como uma das justificativas que o levou a desviar-se de seu projeto inicial, Lacan vai recordar o convite que o eminente joyciano Jacques Aubert lhe fez para realizar a abertura do simpósio parisiense sobre James Joyce, de julho de 1975. Ocasião esta, que lhe serviu também para incentivar a passagem ao nó borromeano de quatro, tendo como base o trabalho com a obra de Joyce. É a propósito dessa obra que me deixei ser levado a inaugurar Joyce a título de um simpósio, a partir de uma ardorosa solicitação de Jacques Aubert, aqui presente e igualmente ardoroso. Foi também por isso que, por fim, me deixei desviar do projeto, que lhes anunciei o ano passado, de intitular o Seminário deste ano como 4, 5, 6. Contentei-me com o quatro, e me alegro com isso porque, com o 4, 5, 6, eu teria sucumbido (LACAN, 1975-1976/2007, p. 12). Joyce le symptôme, eis o título da participação de Lacan naquele simpósio, que segundo o psicanalista viria a ser o nome próprio pelo qual Joyce “se reconheceria na dimensão da nomeação” (LACAN, 1975/2007, Joyce: o sintoma, p. 158), caso este ainda estivesse vivo. O título diz respeito à importância que a construção de um nome representava 72 para Joyce. O que certamente, conforme Harari (2002) comenta, será um dos fios fundamentais do Seminário 23, mas, por outro lado, ainda na abertura do simpósio, Lacan irá abordar uma forma de grafia antiga da palavra sintoma (symptôme): “Referenciem-se pelo Bloch e von Wartburg, dicionário etimológico bem sólido, vocês lerão que o sintoma, de início, foi escrito como sinthoma” (ibid, p. 158). Esta oposição entre o antigo e o atual não ocorre de forma leviana, como Lacan vai deixar claro em uma conferência na Universidade de Yale de 14 de novembro de 1975, não se trata de uma pura paixão etimológica, ou seja, não diz respeito a uma tentativa de resgatar um termo antigo. Mais do que isto, como Harari comenta: Pelo contrário: procura revitalizar, assim, um trânsito aberto. Em suma: do sintoma, ao sinthoma. Com isso, Lacan nos diz que, se está nomeando diferencialmente, isso se deve à tentativa de levar em conta constelações distintas. Não se deve confundir uma com outra; não são a mesma coisa. É por isso que, se se chamar esse Seminário de “O sintoma”, troca-se seu objeto. Lacan nos fala de uma formação psíquica diferenciada, a cujo respeito Joyce e sua obra servirão para estruturar uma inovação psicanalítica (HARARI, 2002, p. 43). Ao adotar a grafia antiga da palavra sintoma (sinthoma), Lacan evidencia seu interesse em Joyce. Como é possível observar logo nos primeiros parágrafos do seminário, nos quais o psicanalista afirma que o apoio para tal modificação se encontrava no fato de que escritor irlandês, em Ulisses, almejava hellenise, ou seja, injetar a língua helena. Assim, como comenta Harari (2002), Lacan demonstra logo no início de seu seminário que versará tanto sobre o sinthoma, quanto sobre Joyce. De fato, Lacan irá apresentar nesta primeira aula, intitulada de “Do uso lógico do sinthoma”, uma visão do Éden joyciano, na qual o Deus do mito bíblico é apresentado como que bufoneando o homem suposto original. Segundo Harari (2002), isto se deve porque quando Deus propõe ao homem que nomeie cada criatura, esta tarefa já havia sido realizada durante o próprio ato da criação. Restando ao homem nomear aquilo que já havia sido nomeado. Trata-se, como Lacan mesmo descreve, de uma primeira bobagem, sobre a qual Joyce irá apresentar um joke, pois, ao invés de denominar o primeiro homem da maneira esperada no idioma inglês, de Adam, o escritor decide chamá-lo de M‟Adam, senhora. Lacan introduz a outra personagem famosa desta história sob o nome de Evida e comenta: “Tenho direito de chamá-la assim, posto que em hebreu, se é que o hebreu seja mesmo uma língua, seu nome quer dizer a mãe dos vivos” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 12). Com isto ele une o Eve, em inglês, com vie, vida em francês, resultando em Evida (Evie). Evida é quem vai se servir pela primeira vez da língua, ao falar com a serpente. Um falatório todo especial, já que além de reduplicar a criação divina, também permite que Evida 73 faça da serpente de falha: “o que vocês me permitem chamar de tranca-bunda [serre-feses], posteriormente designado como falha, ou, melhor, falo” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 14). Com isso, Lacan introduz o pecado, sin, aquilo que de forma conveniente se encontrava no início de seu sinthoma. Segundo Harari (2002), trata-se de uma noção do pecado, muito presente na obra de Joyce, e que para Lacan consiste em começar pelo lado da falha. Em outras palavras, buscar um início que foge à situação ideal de paraíso, na qual todos os termos se encaixam perfeitamente. Mas a questão que queremos enfatizar neste momento, ainda envolve Evida, a Eva de M‟Adam, mais precisamente o traço pelo qual Lacan irá apresentá-la: o de ser completa. O que nos remete ao ensino de Lacan, no qual teoriza que a mulher por estar dividida, por estar barrada, é não-toda. Sendo assim, ele a escreve como A/ mulher, este A/, que pode ser encontrado na tabela das fórmulas de sexuação, é uma abreviação de sua famosa e polêmica enunciação: “Mulher não existe”. A mulher não existe como toda, ou seja, como totalidade e conjunto de todas as mulheres, isto porque não há um significante que venha ocupar o lugar da definição ou essência da Mulher, ao contrário do homem com o significante falo. Assim, neste seminário, Lacan irá nos apresentar Evida, um outro nome de Deus, como sendo a única A-Mulher: “por jamais ter sido incontestavelmente possuída, uma vez que pôde provar do fruto da árvore proibida, a árvore da Ciência” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 14). Trata-se do mito que faz de Evida singular, característica esta que nos remete a uma das primeiras e mais importantes notas sobre o sinthoma. Tendo em vista que o sinthoma é singular, atributo este que é tão caro à análise como tratamento e que Lacan fez questão de diferenciar do particular. Pois, esse último ilustra nada mais do que um caso do geral, enquanto que o singular foge a esta dialética do geral-particular (HARARI, 2002). Com base nisso Lacan irá se referir ao famoso silogismo de Aristóteles: “Todos os homens são mortais / Sócrates é homem / Sócrates é mortal”. Uma lógica na qual, segundo Lacan, Aristóteles não admite que o singular se faça presente, já que como o psicanalista afirma: “Ora, ao contrário do que ele admitia na sua tal lógica, convém dizer que Sócrates não é homem, posto que aceita morrer para que a cidade viva” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 14). Isto é, Sócrates, em seu célebre julgamento, no qual foi acusado de corromper as normas, costumes e valores, decide salvar sua honra e a da polis aceitando a morte por envenenamento. Sendo assim, para Lacan, Aristóteles havia se equivocado em seu silogismo, pois, quando Sócrates escolhe a morte, ao invés de se arrepender de sua vida, ele se revela como um caso singular, não fazendo parte do conjunto de todos os homens. 74 Entre Sócrates e Evida há um traço em comum que Lacan localiza e introduz sob o seu título como sinthoma: o “mas isso não” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 15). Para compreendermos isto, discutiremos novamente sobre Evie e a Mulher, porque Lacan assinala: A mulher só é toda sob a forma pela qual o equívoco toma de nossa lalíngua o que ela tem de picante, sob a forma do mas isso não, tal como se diz tudo, mas isso não. Essa era efetivamente a posição de Sócrates (ibid). Desta forma, ele apresenta o equívoco como a via pela qual se poderia acreditar em A/ mulher como toda e, assim, insinua uma situação picante em que se diz: tudo, mas isso não (LACAN, 1975-1976/2007, p. 15). Harari afirma que esta situação pode ser exemplificada no encontro sexual em que uma mulher, diante da demanda incomum do homem, diz: Bem, sim, com você faço de tudo, mas isso não (HARARI, 2002, p. 50). Com isso a cresça na totalidade se sustenta, já que se a última parte da resposta tivesse sido “e isso também” (ibid), ao invés de “mas isso não”, cedo ou tarde, outra demanda se faria presente e comprovaria sua incompletude. Tal como na canção de Chico Buarque, Geni e o Zepelim: Acontece que a donzela (E isso era segredo dela), Também tinha seus caprichos E ao deitar com homem tão nobre, Tão cheirando a brilho e a cobre, Preferia amar com os bichos. Porém, não queremos de forma alguma passar a ideia de que o “mas isso não” diz respeito a uma situação específica, pelo contrário, trata-se de um modo de singularidade em que o “isso” não pode ser substituído por algo fixo e identificável, pois, envolve: uma dimensão de segredo, de necessária privacidade, afastada da lógica fálica (HARARI, 2002, p. 50). O “mas isso não”, tal como na negativa feminina em que se diz tudo, mas isso não (LACAN, 1975-1976/2007, p. 15), ocorre em função de uma demanda. Harari (2002) comenta que esta demanda aponta para o ensino lacaniano sobre a estrutura básica das neuroses, no sentido de que o neurótico se posiciona de forma quase acrítica diante da demanda do Outro. Assim sendo, o “mas isso não” indica uma reação diante da dominância do sintoma neurótico, levando a localizar o sinthoma em uma posição independente daquela do sintoma. Para Lacan, a posição de Sócrates não se distanciava disto, já que ao aceitar a morte, ele colocou em ato que havia algo que não podia ser cedido: o “mas isso não”. Caracterizando assim uma dimensão ética. 75 4.2 SINTHOMA MASDIAQUINO Em uma das referências centrais do Seminário 23, Lacan irá jogar com uma homofonia a partir de São Tomás, filósofo citado em uma das obras iniciais de James Joyce: A Portrait of the Artist as a Young Man, traduzido para o português como Um retrato do artista quando Jovem. Escrito este, que foi antecipado por outro menos conhecido, que irá lhe servir de esboço, Stephen Hero, Stephen o Herói. De acordo com a tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro (JOYCE, 2006), Stephen Hero era uma obra em que deveria constar 26 capítulos, mas Joyce em determinado momento decidiu reduzi-la a cinco, transformando-a em Um retrato... Caso isso não tivesse acontecido e em seu lugar Stephen Hero permanecesse como uma obra definitiva, o mundo teria um romance relativamente interessante que pouco contribuiria para o enriquecimento da literatura, isto é, a transformação de Stephen Hero em Um retrato permitiu a passagem de uma obra político-social sem muita relevância para um escrito que a tradutora descreve como: “criação artística perfeita que é, na qual inexistem excessos ou lacunas” (JOYCE, 2006, p. 9). Voltando a Lacan, Saint Thomas d‟Aquin veio a ser convertido em sinthoma masdiaquino (LACAN, 1975-1976/2007, p. 15). Na mesma linha de homofonia com o sinthome, o psicanalista vai postular: saint homme (sant‟homem) (ibid, p. 15). Segundo Harari (2002), esta aproximação de Joyce com São Tomás, ou pelo menos com o sentido de estética que o escritor irá lhe associar, permitiu que Lacan abordasse indicativamente um modo de aproximação joyceana do Real: as epifanias. Mas antes, devemos levar em consideração que o posicionamento de Lacan neste seminário nem sempre foi o mesmo, na verdade, como é possível perceber, o psicanalista em várias ocasiões demonstra que seus enunciados não mantinham aproximação alguma com um exposto teórico que se justifica por um fechamento. Tendo isso em vista, na passagem destacada a seguir, encontramos uma crítica de Lacan com relação ao esplendor do Ser, forma pela qual Joyce se refere à claritas, a claridade. A saber, segundo a leitura joyceana do filósofo Aquino, esta é a terceira de três características que o objeto deve atender para ser belo, sendo as demais: integridade e consonância. Porém, segundo W. T. Noon, citado por Harari (2002, p. 66), São Tomás nunca escreveu sobre a estética, termo este que nem existia na época, desta forma, integritas, 76 consonancia e claritas dizem respeito a operações apropriadas à apreensão cognitiva do objeto exterior, relativo à coisa. Ainda assim, Joyce não tira muito proveito dessa coisa a que ele atribui um alto preço, ou seja, ao que ele chama de Belo. Consultem, sobre isso, o trabalho de Jacques Aubert, e vão ver que há no sinthomasdiaquino um não sei o quê chamado por ele de claritas, substituído por Joyce por alguma coisa como o esplendor do Ser, e é bem esse o ponto fraco do qual se trata. (LACAN, 1975-1976/2007, p. 15). Nesta passagem, Lacan faz uma dura crítica a esse esplendor do ser, ele chega ao ponto de questionar se isso não seria uma fraqueza pessoal. Mas, como Harari (2002) observa, este posicionamento inicial de Lacan vai mudar antes do término do seminário. O que não é de surpreender, já que esta é uma questão importante para o entendimento de Joyce. Vejamos seu contexto, em Um retrato..., Joyce havia escrito que a luminosidade, a claritas, discutida por São Tomás, dizia respeito àquilo que a escolástica reconhece como quidditas, ou seja, a essência do ser. Em Stephen Hero, o escritor já havia valorizado a claritas, apresentando-a como sinônimo da epifania. Com efeito, a epifania é uma noção fundamental na estética joyceana. Ele considerava que na sua atividade literária era necessário primeiramente converter-se em arrecadador de epifanias, em outras palavras, um arrecadador de manifestações do ser, aparições repentinas do essencial, que nada teorizam sobre ele. Para um melhor esclarecimento do tema da epifania e com base em Sydney Bolt, crítico literário perito na produção joyceana, Harari assinala a importância das histórias de Dubliners. Visto como os finais destes contos são abruptos, o que não implica simplesmente em conclusões repentinas, tal como normalmente se espera em um conto. Mais do que isto, eles são marcados por uma quebra na indução do relato. Para além de um simples desvio da compreensão do ocorrido, estes relatos provocam no leitor uma verdadeira estupefação (HARARI, 2002, p. 85). Então, qual é a abrangência desta quebra? Harari faz uso de termos da psicanálise e afirma que nestes finais há um esvaziamento de sentido, ou, conforme as expressões lacanianas, um esvaziamento de significação, em que nem mesmo o contexto é capaz de promover uma compreensão. Algo que produz, como o comentador destaca: “Incômoda perplexidade, diante da qual a reação espontânea reside na tentativa de fuga, porquanto o contexto habilita sempre a totalizar, a integrar” (HARARI, 2002, p. 85). Antes de nos aprofundarmos mais ainda na epifania, significante este, que tem um sentido muito próprio em Joyce, devemos primeiramente abrir um parêntese sobre a significação. É importante lembrar que ela é sempre fálica. Expliquemos o porquê. O Falo na psicanálise, que sempre esteve envolto em equívocos entre os comentadores de Freud, a 77 exemplo de um dos seus primeiros alunos, Ernest Jones, que ao elaborar o conceito de afânise confundiu o pênis com o Falo. Porém, nenhum órgão, pessoa ou objeto pode encarnar concretamente o Falo, já que este pertence à ordem do significante. Por não poder ser achado é que ele irá deslizar continuamente “na tentativa de apreender algo em si mesmo inatingível” (HARARI, 2002, p. 85). Tendo isto em vista, a significação, como possibilidade de entender ou produzir um efeito de sentido, mantém uma relação com uma pregnância de unidade (ibid), quer dizer, sempre que apresentamos uma conclusão a partir do contexto, o que demonstramos é que chegamos a uma “condição unitária, unificante” (ibid). Assim, com esta unificação em torno do contexto, concedemos uma dimensão fálica à conclusão. Porém, caso esta unificação não aconteça, ela permanecerá fora de lugar, ou, de acordo com os termos lacanianos, se demonstrará pertencente ao registro do Real. Neste ponto retornamos as epifanias joyceana, já que nelas não é possível identificar este efeito de sentido decorrente de uma condição unificante. Segundo Harari (2002), nas epifanias há um esvaziamento de significação fálica e por esse motivo aquilo que brota das experiências epifânicas pode ser categorizado como uma indicação do contato com a Coisa, Das Ding. Termo este abordado por Lacan no Seminário 7, A ética da psicanálise (LACAN, 1959-1960/2008), no qual baseado no Projeto para uma psicologia científica, em que Freud apresenta um teoria do aparelho neurônico, Lacan “traduz” a Coisa como aquilo que se encontra isolado da cadeia significante, apesar dessa última circular necessariamente ao seu redor. O que fundamenta a concepção de que a Coisa se faz de uma instância inatingível, seja na alucinação do desejo ou até mesmo na realidade, é o objeto que por sua natureza está para sempre perdido, apesar de nunca ter existido. De acordo com Fink (1998): A relação do sujeito com das Ding é caracterizada por um afeto primário, seja nojo, revolta ou aversão, como na histeria, ou um sentimento de ser dominado ou superado, levado à evitação, como na obsessão (ibid, p. 121). O sujeito vai se constituir como uma defesa contra a Das Ding e irá manter uma distância deste objeto em que não se aproxima muito, mas, também, não se afasta em demasia. No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964/2008) irá asseverar sobre o encontro do real, a tiquê, como sendo traumático. Este mau encontro é exemplificado no acidente citado por Freud, em A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1996), isto é, o sonho em que um pai é indagado pelo então falecido filho: Pai, não vês que estou queimando? Lacan interpreta o despertar do pai, o fracasso da função do sonho de preservar o sono, como sendo em função do encontro com o real traumático. Posteriormente, no ensino de Lacan, a Coisa dará lugar no nó ao registro do Real, registro este 78 que é ab-sens, jogo de palavras em que sens, sentido, é unido por homofonia com absence, ausência. Ressaltando assim a ideia de que este registro é desprovido de sentido (HARARI, 2002). Nessa ordem e com base em Harari (2002), podemos chegar à conclusão de que, pelo fato dos finais em Dubliners não estarem preenchidos de sentido, a metáfora vai ter um papel singular na obra de Joyce. Na verdade, o comentador chega ao ponto de afirmar sobre o fracasso da metáfora nesta escrita, uma vez que a metáfora reside em uma criação de sentido, o que não se observa nos finais dos contos de Dubliners. Dito isso, para ter sucesso, a metáfora em Joyce deveria ser entendida, mas, como o comentador assevera, o que Joyce faz não segue essa linha, pelo contrário, ao invés de metáforas o que o irlandês apresenta parecem mais com: “resíduos metonímicos, restos de uma experiência extática, fragmentos despedaçados transladados para a escrita e que, em sua condição de pedaços, nos aniquilam – precisamente: nos sentimos invadidos por (um) nada” (ibid, p. 86). O pesquisador completa que em Joyce não se sabe para onde ele vai ou, então, não se entende o que ele quis dizer. Os finais abruptos de seus contos demonstram também uma estereotipia, pois, são situações que aparentam serem sempre iguais a si mesmas. Concluindo, Joyce produzia suas epifanias de tal forma que a pronta compreensão não se torna aceitável, pelo contrário, se distinguem por não se ligarem a uma significação precisa, o que resulta em uma produção de enigma constante. É justamente por causa desta produção enigmática que a obra de Joyce continua sendo alvo de debates infindáveis entre os universitários. Tal como ele assim o desejou e Lacan confirmou: Mas foi Joyce quem deliberadamente quis que essa corja se ocupasse dele. O incrível é que ele conseguiu, e de um modo fora de série. Isso dura, e ainda vai durar. Ele o queria, nomeadamente, por trezentos anos. Ele disse – Quero que os universitários se ocupem de mim por trezentos anos -, e os terá, conquanto Deus não nos pulverize (LACAN, 1975-1976/2007, p. 17). 4.3 A ESCRITA DO EGO No tópico anterior introduzimos a epifania como uma noção fundamental da estética joyciana, além de sublinharmos a crítica de Lacan ao sentido de “esplendor do ser” que o escritor irlandês associava a este recurso literário. Como já foi dito, o posicionamento de Lacan frente à epifania irá mudar no decorrer do Seminário 23. Pois, na primeira aula o 79 psicanalista se apresenta como que imune a ela: “O esplender do Ser não me atinge.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 15), enquanto que na última aula, nos parágrafos finais da transcrição do seminário, Lacan aparenta reconhecer a importância da epifania ao qualificá-la de “famosa” (ibid, p. 151) e também ao destacá-la na obra de Joyce como aquilo: “que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem” (ibid). Dito isso, no presente tópico iremos continuar abordando a epifania, mesmo que por um outro viés. Ou seja, um viés que engloba este elemento não apenas como uma noção fundamental na estética joyciana, mas também como um sintoma. Observem que este último não é escrito com th, tal como seria exigido na grafia antiga da palavra sintoma (symptôme). Poderíamos questionar: o por quê desta distinção? Uma vez que, a experiência epifânica também representa um elemento enodante de Simbólico e Real na estrutura joyciano. A resposta para isso é que o enodamento promovido pela epifania equivale em termos topológicos a um falso nó borromeano de três. Já que o terceiro círculo, aquele correspondente ao imaginário, permanece solto. Somente a produção escrita, que se encontra no lugar do ego de Joyce, é que representará uma amarração do Simbólico e do Real que inclui o anel do imaginário, constituindo assim o sinthoma joyciano. Não por acaso, o percurso teórico deste tópico consistirá na passagem do sintoma epifania ao sinthoma escritura. Sendo que, este último, situa-se em Joyce no lugar de seu ego particularíssimo. 4.3.1 Um corpo que cai Lacan, no seminário O sinthoma, vai inscrever a consistência corporal no registro do imaginário. Manter tudo junto é este sentido dado por Lacan à consistência e, também, ao uso que ele faz da lógica de sacos e cordas. Lógica esta que ele introduz com a escrita do nó, partindo do fato de que um saco, cujo mito é associado a uma esfera, para que seja considerado como que fechado, necessita de uma corda que amarra. Assim, o psicanalista irá abordar as recordações de Joyce, sobre uma surra que sofrera durante a infância, com o propósito de nos demonstrar como essa lógica, de sacos e cordas, pode nos ajudar na compreensão de como Joyce funcionava como escritor. 80 Dito isso, voltar-nos-emos à passagem de Um retrato do artista quando jovem, aquela tão frequentemente valorizada pelos comentadores de James Joyce, devido ao seu conteúdo autobiográfico. Trata-se do episódio de violência infligida contra Stephen, que para muitos é considerado como que derivado da infância do próprio escritor. Aqui se faz necessário a abertura de um parêntese. Tendo em vista, que entre os comentadores joycianos não haveria uma unanimidade quanto a esse sentido autobiográfico, que elevaria o personagem Stephen Dedalus a condição de “alter ego” de James Joyce, seja nesta passagem em questão, ou, então, em sua obra como um todo. Trata-se de uma questão complexa, principalmente, porque o escritor assinava os seus primeiros contos com o nome Stephen Dedalus e, além disso, segundo Stanislaus Joyce, irmão de James Joyce: “a discussão sobre Byron e heresia, a briga com três... colegas em Um retrato do artista quando jovem não são nem inventas, nem exageradas” (STANISLAUS apud LAIA, 2001). Contudo, tal como Mandil (2003) nos previne, ao nos aprofundarmos na identificação entre Stephen e Joyce devemos ter extrema prudência. Vejamos, então, os indícios deixados por Lacan no Seminário 23 sobre o seu posicionamento diante deste debate. Em uma aula concernente ao enigma, de 13 de janeiro de 1976, Lacan afirma que “Stephen é o Joyce que Joyce imagina. E como Joyce não é bobo, ele não o adora, longe disso.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 65), e continuando nesta linha, ele adiciona: “Stephen é Joyce na medida em que decifra seu próprio enigma” (ibid, p. 67). Na última aula do seminário, Lacan descreve a famosa surra como uma “confidência”: “Quanto a Joyce, poderia ler para vocês uma confidência que ele nos faz em Portrait of the Artist as a Young Man.” (ibid, p. 145). Vê se bem na transcrição do seminário que o psicanalista, ao apresentar esta cena aos seus ouvintes, não utiliza o nome de Stephen Dedalus, mas, sim, o de James Joyce. Dando-nos a entender, que não havia dúvida de que aquela aventura aconteceu com o escritor irlandês: “A propósito de Tennyson, de Byron, de coisas referentes a poetas, ele encontrou colegas para prendê-lo contra uma cerca de arame farpado e dar nele, James Joyce, uma surra.” (ibid). Neste trajeto, que vai de Stephen Dedalus até James Joyce, é preciso lembrar que Lacan não se encontra entre aqueles que reduzem um a outro. Pois, na dimensão da nomeação17, Joyce não se reconheceria por meio do nome Stephen Dedalus (Mandil, 2003). No entanto, Lacan suprime a distância que haveria entre Joyce e seu personagem, de tal forma que em várias aulas do Seminário 23 os dois nos são apresentados como se fossem apenas 17 Abordaremos esta dimensão de forma mais aprofundada posteriormente, no subtópico: Fazer-se um nome. 81 um. Concluindo, adotaremos em nossa dissertação o posicionamento de que a surra narrada nessa obra fictícia está relacionada a um acontecimento da infância do autor, mas nos recusaremos a reduzir Joyce ao seu personagem, como se este último espelhasse o primeiro. Retornando ao Retrato do artista..., Stephen, por discordar da preferência literária de seus colegas e por questionar as acusações de que Lord Byron, era um herege e um imoral, passa a sofrer estas mesmas injúrias e, em determinado momento, é feito prisioneiro. Sob o comando de Helen, o jovem herói passa a ser objeto de uma cruel surra com uma bengala e com um longo cepo de palmito, que Boland havia retirado da sarjeta. Com os braços presos por Nash, Stephen foi empurrado em direção a cerca de arame farpado. Quando finalmente conseguiu livrar-se de seus algozes, eles partiram rindo e zombando dele: “enquanto ele, rasgado e afogueado e arquejando, tropeçava atrás deles semicego pelas lágrimas, cerrando loucamente os punhos e soluçando.” (JOYCE, 2006, p. 92). A atenção de Lacan irá se voltar para a passagem seguinte. Logo após a surra, quando o jovem herói ainda se encontrava em meio às lagrimas e aos risos de seus colegas: Enquanto ainda repetia o Confiteor em meio ao riso indulgente de seus ouvintes e enquanto as cenas daquele episódio maligno passavam ainda viva e rapidamente diante de sua mente ele se perguntava por que agora não guardava rancor contra aqueles que o haviam atormentado. Não esquecera nem um pouquinho a covardia e a crueldade deles, mas a lembrança daquilo não lhe despertava nenhuma raiva. Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe haviam parecido, por conseguinte, irreais. Mesmo naquela noite enquanto tropeça pela Jone‟s Road em direção a sua casa sentia que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura e macia. (JOYCE, 2006, p. 93). Neste trecho Lacan observa dois efeitos que Stephen irá apresentar em decorrência da surra. O primeiro, diz respeito a um enigma que se formou em torno de suas lembranças do acontecimento, porque apesar de recordar perfeitamente da crueldade e da covardia que sofrera, não conseguia guardar rancor algum. O segundo efeito é aquele que o psicanalista irá prestar um cuidado especial, trata-se da metáfora que Joyce utiliza para enlaçar as recordações de Stephen sobre a surra: sentia que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura e macia. (ibid). Esses efeitos revelam certo distanciamento de Stephen com a agressão. Porém, ao enfatizar a metáfora, Lacan volta a nossa atenção para a relação de Stephen, e consequentemente de Joyce, com o corpo. Vejamos o que o psicanalista comenta sobre o escritor: “Exprime-se, então, de um modo muito pertinente, tal como se pode esperar dele 82 [Joyce], pois quero dizer que ele metaforiza sua relação com seu corpo.” (LACAN, 1975- 1976/2007, p. 145, grifo nosso). Posto isto, Lacan comenta sobre a relação com o corpo: “a relação já tão imperfeita em todos os seres humanos” (ibid). Destacando que ele já havia discordado antes sobre o sentido dado ao inconsciente, e aceito por alguns, de que a natureza do próprio inconsciente teria alguma coisa a ver com o fato de que muito daquilo que acontece no corpo é ignorado. O psicanalista questiona quem realmente saberia o que se passa em seu próprio corpo, mas, em contrapartida, assevera que haveria um saber sobre: “um monte de coisas provenientes do significante” (ibid). Estas “coisas” é que realmente estariam relacionadas com a natureza do inconsciente. Desta forma, Lacan acaba por questionar também a antiga noção de inconsciente freudiano - o Unerkannt -, traduzido como o “não-reconhecível”, que se fundamentava na ignorância daquilo que se passa em nosso corpo. Ele vai mais a fundo ao definir esta noção com base em uma relação entre um corpo, que por ser desconhecido é dito como estranho, e o inconsciente, que, por sua vez, se apresenta como que constituindo círculo, ou, então, fazendo reta infinita. Por fim, Lacan amarra esta definição freudiana afirmando que o corpo estranho e o inconsciente são apresentados como que equivalentes. Lacan faz um pergunta: “Então, qual sentido dar ao que Joyce testemunha?” (ibid). O que Joyce testemunha no episódio da surra, ao contrário daquilo que as outras pessoas testemunhariam como uma relação psíquica que fica afetada, que reage, ou, então, que não se destaca, é que diante da agressão só existia nele aquilo que exige a saída, que vai embora, que é largado e que se esvazia. Uma das consequências, de nos expressarmos quanto ao nosso corpo com base no verbo ter, ao invés do verbo ser, é que a pessoa pode relacionar-se com ele como algo estranho. É justamente isso o que acontece com Joyce após o episódio da surra, já que ele trata o seu corpo como algo estrangeiro. Concernente a curiosa hipótese de que haveria pessoas que não apresentam afeto diante da violência imposta aos seus próprios corpos, Lacan dá a entender, já que isso era algo ambíguo, que talvez em Joyce houvesse estimulação sexual em meio a agressões corporais, lhe proporcionando prazer. Com isso, o psicanalista não exclui a possibilidade da presença de gozo masoquista na obra do escritor irlandês, já que Joyce insistira muito nisso quanto a Blom. Porém, em se tratando da surra que Joyce confidenciou, Lacan insiste que não houve qualquer gozo do tipo masoquista. Pelo contrário, ele apresentou uma reação de repulsa: “Essa repulsa refere-se, em suma, a seu próprio corpo. É como alguém que coloca entre parênteses, que afasta a lembrança desagradável.” (ibid). 83 A repulsa quanto ao próprio corpo, colocando-o entre parênteses e largando-o como uma casca desagradável, nos remete a uma dissolução imaginária em Joyce, já que sua relação com o corpo enquanto imagem não se sustenta. Isso tem sérias implicações para a noção de ego em Joyce. Lacan afirma: “a forma de Joyce deixar cair a relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para um analista”, uma vez que, “a ideia de si como um corpo tem um peso.” (ibid). Esse peso é o ego, que se faz narcísico porque suporta esse corpo como imagem. A ausência de interesse do escritor por essa imagem, por esse ego – como dimensão imaginária do corpo - faz com que Lacan chegue à conclusão de que em Joyce, o ego teria uma função inteiramente particular. 4.3.2 A carência paterna em Joyce e o fazer-se um nome O sentido dado por Lacan ao enigma é de “uma enunciação da qual não se acha o enunciado” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 65) e como já destacamos anteriormente é através de Stephen, que Joyce decifra seu enigma. Agora enfatizamos que, segundo Lacan, Joyce não vai muito longe nessa decifração por causa de sua crença em todos os seus sintomas. Ele questiona o fato de Joyce crer em sua raça, ou seja, a crença na qual irá se forjar “a consciência incriada de minha raça” (JOYCE, 2006, p. 226), o que para o psicanalista não iria muito longe. Mas, Lacan vê como uma compensação o fato de Joyce terminar sua obra, Um retrato do artista..., com a seguinte frase: “Vinte e sete de abril: Velho pai, velho artífice, valha-me agora e sempre.” (ibid). Essa prece é dirigida ao seu pai. Joyce o busca em todo lugar, apesar de considerá-lo como indigno ou carente. Ele o busca e não o encontra, embora este pai exista em algum lugar. Lacan associa Leopold Bloom com aquele que viria a ser um pai que busca por um filho, entretanto, diante de Bloom, Stephen opõe “um muito pouco para mim” (ibid, p. 67). Dessa forma, devido ao pai que teve, Joyce se revela como que farto de pai. Coisa curiosa, pois, ele permanece enraizado em seu pai, mesmo que o renegando. Lacan conclui: “É efetivamente isso que é seu sintoma” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 68). Seguindo o viés da carência paterna em Joyce, Lacan questiona: Por que não conceber o caso de Joyce nos termos seguintes? Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo o mundo, do máximo de gente possível, em todo 84 caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas, à Igreja diplomática? (ibid, p. 86). Esta exceção nos remete a passagem de Um retrato do artista..., em que o jovem Stephen foi enviado por seu pai, aos seis anos de idade, para estudar em um colégio interno de jesuítas em Dublin. Porém, isso não durou muito, porque, no início de sua adolescência a família de Stephen passa a enfrentar grandes dificuldades financeiras. Esta crise familiar não só impede que Stephen continue frequentando o colégio de jesuítas, como também representa a perda de antigos bens de família. Mas, a passagem que nos interessa neste momento é aquela que se desenrola posteriormente, quando Stephen amargurado com o Sr. Dedalus, seu pai, já que este era o responsável por arruinar as finanças da família, é obrigado a viajar na companhia dele para a cidade de Cork, onde eles iriam supervisionar a venda dos últimos imóveis. Durante a viagem, Stephen é tomado por um sentimento de perplexidade e estranheza enquanto era atingindo pela voz de seu pai que recordava de sua juventude na cidade de Cork. Sua história era interrompida somente quando lembrava de algum amigo morto, ou, então, do motivo pelo qual eles viajavam. Contudo, em nenhum momento ele sentia compaixão pelo pai. Já na cidade, enquanto passeavam juntos, Stephen ouvia as antigas histórias do pai e era orientado que, conforme o seu exemplo, ele só deveria andar na companhia de amigos cavalheiros. Conselho este que era ofertado pelo Sr. Dedalus a Stephen, contudo, não, como em uma relação entre pai e filho, como era esperado, mas de um amigo para outro: “Estou falando com você como amigo, Stephen. Não acredito que um filho deva temer seu pai. Não, eu o trato como seu avô me tratava quando eu era mocinho. Éramos mais como irmãos do que como pai e filho.” (JOYCE, 2006, p. 102). Vemos claramente nesta passagem que o pai de Stephen renuncia ao seu lugar, já que ele se considera mais como um irmão. Assim como fizera o avô de Stephen, o Sr. Dedalus rejeita a posição de um pai severo. Isto nos remete a demissão paterna em Joyce, que Lacan associa com uma Verwerfung de fato - forclusão de fato -, e que vai implicar no escritor irlandês em um desejo de fazer-se um nome. Mas não um nome qualquer, um nome próprio que ele valorizaria à custa do pai e a qual as homenagens seriam dirigidas: “Foi a esse nome que ele quis que fosse prestada a homenagem que ele mesmo recusou a quem quer que fosse.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 68). Não há como negar que Joyce tenha conseguido conquistar um nome que é homenageado por muitos, e que ainda é alvo de comentários e debates. Um nome próprio, ou, 85 então, um monte de nomes: “Que Joyce também se chamasse James apenas se sucede ao uso do cognome – James Joyce, designado pelo cognome Dedalus.” (ibid, 86). Não importa se é James, se é Joyce ou se é Dedalus, o que importa é que a possibilidade de colocarmos uma grande variedade de nomes só vem confirmar a entrada do nome próprio de Joyce no âmbito do nome comum. Vemos o contexto abordado até agora: Joyce irá responder ao fato, tão evidente em sua obra, de que seu pai nunca lhe foi um pai, por meio de uma ambição de fazer-se um nome. O que é claramente manifestado em seu desejo de tornar-se um artista reconhecido por muitos. É nesta pretensão de fazer-se um nome que ele realiza sua compensação da carência paterna. Seguindo este viés imposto pela reflexão de Lacan acerca da nomeação de Joyce, voltar-nos-emos, para um período anterior ao próprio Seminário 23, no qual o psicanalista nos conduz para uma diferenciação sutil em Joyce, mas de grandes consequências teóricas, entre ter e ser um sintoma. Trata-se da conferência realizada por Lacan, a convite de Jacques Aubert, no V Simpósio Internacional James Joyce, em 16 de junho de 1975. Diante de um público, formado tanto por joycianos como por psicanalistas, Lacan chama atenção ao fato de que um erro havia sido cometido no cartaz que anunciava a conferência, pois, ao invés de imprimirem “Joyce, o sintoma”, foi impresso “Jacques, o símbolo”. Fato curioso, porque, segundo o próprio conferencista, aquilo significava que eles o não conheciam. Com efeito, Lacan insiste no título que havia escolhido para a sua conferência, uma vez que, naquele momento, assim como no seminário que se seguirá, ele passa a articular o sintoma com a dimensão da nomeação: “mas dizer em que medida dou a Joyce, ao formular esse título Joyce, o sintoma, nada menos que seu nome próprio, aquele no qual acredito que ele se reconheceria na dimensão da nomeação” (LACAN, 1975/2007, p. 158). De fato, é isso que ele promove quando aborda o sintoma de Joyce como algo que seria capaz de referenciá-lo e designá-lo, como algo que se equivaleria a sua obra, sobretudo Finnegans Wake, e que se apresentaria como o seu nome próprio. De acordo com Laia (2001), o fato do seminário consagrado a Joyce não apresentar em seu título nenhuma menção ao nome próprio, com o qual Lacan acreditava que Joyce se reconheceria, só vem a reforçar a dimensão da nomeação que ele proporcionou a Joyce. Pois, o título adotado no seu seminário seguinte, O sinthoma, representaria um nome próprio pelo qual o psicanalista, também, nomearia Joyce e reduziria tudo àquilo que ele antes denominara de “Joyce, o sintoma”. O lapso que resultou na impressão de “Jacques, o símbolo”, aparentemente não agradou a Lacan, mas lhe serviu de pretexto para apresentar uma distinção entre a sua noção 86 de sintoma e a noção de símbolo: “Se digo Joyce, o sintoma, é que o sintoma, o símbolo o abole, se posso continuar nesse viés. Não é somente Joyce, o sintoma, é Joyce como, se assim posso dizer, desabonado do inconsciente.” (LACAN, 1975/2007, p. 160). Nesta passagem Lacan enfatiza a distinção marcante entre o sintoma e o símbolo, já que o símbolo pertence ao campo do que é passível de ser interpretável, enquanto que o sintoma, por não estar restrito apenas ao âmbito do simbólico, já que nele também haveria algo do real, pode ser inscrito não só no campo do sentido, mas, também, no campo do sem- sentido, do não-interpretável. Desta forma, quando o sintoma é tomado como que abolindo o símbolo, podemos concluir que Lacan não só está promovendo uma distinção, mas, também, está trazendo para a discussão uma perspectiva inovadora sobre a noção de sintoma. Porquanto, segundo Mandil (2003), o sintoma é abordado nesta passagem como que não absolutamente recoberto pelo inconsciente, de modo que, quando Lacan refere-se à Joyce como que desabonado do inconsciente, ou, então, como ex-assinante do inconsciente, isso indica que o escritor irlandês poderia ser tomado como aquele que promove uma abolição do simbólico em favor do sintoma. Aqui se faz necessário um adendo, porque apesar de Lacan trazer para a discussão o sintoma como que diverso do símbolo, isso não quer dizer que ele está propondo uma ruptura radical entre estes. A distinção entre o símbolo e o sintoma pode ser considerada, também, como uma resposta à antiga noção de psicanálise como uma prática interpretativa marcada não por uma diferença, mas por uma assimilação entre o símbolo e o sintoma. De fato, o sintoma era abordado pelos psicanalistas como um símbolo de algo oculto no inconsciente que viria a ser revelado pelo tratamento. Mas, como a clínica tem demonstrado desde Freud, nem sempre o sintoma cede diante da interpretação, o que se deve ao fato de que no sintoma haveria algo que excede a dimensão do simbólico. Destarte, nesta perspectiva em que o símbolo é abolido, Lacan irá asseverar sobre o sintoma em Joyce como aquilo que não conduz a uma interpretação, que não pode ser objeto de análise e que, muito menos, comportaria um saber inconsciente. Joyce eleva o seu sintoma “à potência da linguagem sem que, no entanto, nada dele seja analisável” (LACAN, 1975/2007, p. 163), de modo que o seu sintoma, ou se preferirem o sinthoma escrito com a grafia antiga, irá se diferenciar das outras formações do inconsciente, como os sonhos e os chistes, porque ele comportaria, tal como Laia (2001) afirma: “uma satisfação, uma dimensão avessa à representação, um gozo que não deixa de insistir para além de toda análise, de toda decifração.” (ibid, p.161). 87 Dito isso, fica mais fácil compreender que quando Lacan refere-se a Joyce como que desabonado do inconsciente, ele está se referindo a uma noção de inconsciente que estaria atrelada com a dimensão simbólica da linguagem, ou seja, uma noção de inconsciente como símbolo:“seja no sentido freudiano, como linguagem cifrada, seja no lacaniano, de „inconsciente estruturado como uma linguagem‟, no qual a primazia da dimensão simbólica sobre a imaginária leva à determinação do registro do real como a manifestação do impossível no nível do símbolo.” (MANDIL, 2003, p. 267). Sendo assim, Joyce, na condição de desabonado do inconsciente, vem apresentar um sintoma que não seria inteiramente assimilado por esse inconsciente e que não guardaria qualquer sentido para quem quer que fosse: Se alguma coisa dá conta do fato notado por Clive Hart de que, no final, acabamos cansados de seguir os passos de Joyce, é o que prova que os sintomas de vocês são a única coisa que, tanto para vocês como para qualquer um, interessa. O sintoma em Joyce é um sintoma que não lhes concerne em nada, é o sintoma na medida em que não há chance alguma de ele enganchar alguma coisa do inconsciente de vocês. (LACAN, 1975/2007, p. 161). A impossibilidade na leitura de Joyce de que alguma coisa do inconsciente do leitor se enganche no sintoma de Joyce evidencia que neste último, a produção de sentido não era o seu propósito, tal como seria esperado em uma concepção do inconsciente em que o sintoma se encontra apenas atrelado com a dimensão da linguagem. Entretanto, isso não muda o fato de que a leitura de Joyce continua provocando fascinação em seus leitores devotos. A justificativa para isso é que a verdadeira finalidade do sintoma em Joyce estaria atrelada não ao sentido, mas a produção de gozo por meio da palavra escrita. Se o leitor fica fascinado é porque Joyce, em conformidade com o que esse nome ecoa o de Freud -, tem, no final das contas, uma relação com joy, o gozo [jouissance], tal como ele é escrito na lalíngua que é a inglesa -, por ser essa gozação, por ser esse gozo a única coisa que, do seu texto, podemos pegar. Aí está o sintoma. (LACAN, ibid, p. 163). 4.3.3 Da epifania ao ego particularíssimo de Joyce Como afirmamos anteriormente, o ego em Joyce tem uma função particularíssima. De fato, o ego joyciano tem um papel muito diferente daquele que se espera de um ego que é associado a uma dimensão imaginária. Porquanto, ele não equivale à forma como o sujeito se 88 relaciona com o seu próprio corpo, isto é, ele tem uma outra função na qual a relação imaginária não acontece, pelo menos no sentido que é dado a esta relação “em que um corpo é limitado a sua imagem no espelho” (LAIA, 2001, 132), ou, então, “na representação feita por um outro” (ibid). A função deste ego particular consistirá em remendar um erro, um lapso no enodamento dos três registros: real, imaginário e simbólico. Mas não pretendemos entrar nesta questão ainda, antes abordaremos um ponto que julgamos fundamental para compreensão da função do ego em Joyce, a saber: a epifania. Na aula intitulada de “Joyce e as falas impostas”, Lacan assevera, diante de seus ouvintes, que na maioria das vezes não nos lembramos do fato de que as falas, de alguma maneira, nos são impostas. Por mais que o sujeito dito normal não perceba isso, a fala é como “um parasita”, “uma excrescência” e uma “forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (ibid, p.92). Curiosamente, na maioria das vezes a facilidade de perceber a fala como imposta é encontrada naqueles que são ditos como anormais. Não por acaso, nesta aula Lacan vai reportar-se a dois casos de psicose, a filha esquizofrênica de Joyce e um paciente que ele havia apresentado recentemente. Entre estes dois casos a fala imposta se apresentava como um fator em comum, seja pela telepatia que o paciente declarava ter, seja pela telepatia que Joyce atribuía a sua filha Lucia. Entretanto, nosso objetivo neste momento não é, a exemplo de Lacan, o de entrar no campo da narrativa desses casos, mas, sim, destacar que para Joyce alguma coisa, no que diz respeito à fala, lhe era como que imposta. No esforço que faz desde seus primeiros ensaios críticos, logo depois em O retrato do artista, enfim em Ulisses, para terminar em Finnegans Wake, no progresso de certo modo contínuo que sua arte constituiu, é difícil não ver que uma certa relação com a fala lhe é cada vez mais imposta – a saber, essa fala que, ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita –, a ponto de acabar por dissolver a própria linguagem... (ibid, p. 93). Trata-se, então, da experiência singular de Joyce com as palavras, já que ele as experimenta, como algo que lhe é estranho, heterogêneo, imposto. As palavras lhe aparecem como que estrangeiras por causa de seu sintoma, que como já afirmamos anteriormente está associado com a sua carência paterna. Lacan vai compreender o sinthoma em Joyce como algo que promove a compensação paterna, além de permitir que ele possa lidar com esse aspecto de imposição das palavras. Para tanto, o escritor irlandês irá chegar ao extremo de infligir à própria linguagem, por meio de sua escrita, “um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória.” (ibid, p. 93). Deste modo, a arte de escrever em Joyce será marcada por uma decomposição da fala, porém, uma ambiguidade permanece em torno disso, porque não há certeza de que o escritor teria optado pelo caso de livrar-se: “do parasita [...] ou, ao contrário, de se deixar invadir por 89 propriedades de ordem essencialmente fonêmica, pela polifonia da fala.” (ibid). De qualquer maneira, somos levados à hipótese de que a escrita de Joyce poderia ser concebida, na verdade, como um modo de enfrentar o caráter impositivo das falas. Uma forma de defesa frente à dimensão enlouquecedora da fala, naquele que não recebeu um apaziguamento nesta dimensão pela função do Nome-do-pai (MANDIL, 2003). Esta tentativa de defesa vai resultar muitas vezes, na escrita de Joyce, em uma trama marcada por uma ilegibilidade. Na verdade, Lacan questiona seus ouvintes: Por que Joyce é tão ilegível? É preciso fazer de tudo para imaginar por quê. Talvez seja porque não evoca em nós simpatia alguma. Mas, nessa nossa questão, será que alguma coisa não poderia ser sugerida pelo fato, patente, de ele ter um ego de uma natureza bem diferente? (LACAN, 1975-1976/2007, p. 147-148). Para que possamos rastrear uma resposta a essa pergunta, devemos nos voltar para o nó borromeano que Lacan havia apresentado um pouco antes dele realizar estes questionamentos. Nesse nó ele propõe a suposição de que uma falha, um lapso, seja introduzido. Mas não em qualquer lugar, em um lugar específico, que como podemos notar ele destaca no nó: Ilustração 7 18 Esta falha consistirá na passagem do terceiro círculo, aquela correspondente ao simbólico, por cima do círculo do real, ao invés de passar por baixo deste. Como é possível imaginar esse lapso seria responsável pelo fácil desprendimento do círculo do imaginário. O que para Lacan representaria em Joyce, depois da surra sofrida por Stephen, o não acontecimento da relação imaginária. Assim, aquilo que anteriormente abordamos sobre a perspectiva da relação do escritor irlandês com seu corpo, agora também relacionamos com a trama das palavras que compõem a obra de Joyce. O porquê disso se deve ao fato de que com a queda da relação imaginária há um desprendimento entre o real e o inconsciente – sendo que este último também poderia ser tomado como simbólico –, já que como é de se esperar no nó borromeano, se um anel for cortado, todos os demais se separam. 18 O nó que rateia (LACAN, 1975-1976/2007, p. 147). 90 Este desprendimento do imaginário vem nos provar que no momento da surra o ego de Joyce não funciona, pelo menos de acordo com o que se espera de um ego associado à dimensão imaginária: Precisamente no momento da sua revolta [...] esse ego não funciona, não prontamente, mas apenas um tempo depois, no momento em que Joyce testemunha não manter mais nenhum reconhecimento, se assim, posso dizer, por quem quer que seja, devido à surra que recebera. (ibid, p. 148). Desta forma graças a essa falha e ao fato do ego de Joyce não funcionar, surge nele à possibilidade que uma obra seja concebida de tal forma que a leitura dela torna-se inviável, pelo menos segundo os parâmetros tradicionais de uma leitura que “exige a composição imaginária de um encadeamento narrativo, uma determinada captura do sentido do que foi lido, alguma subjetivação ou algum reconhecimento do que foi relatado.” (LAIA, 2001, p. 134). Como afirmamos anteriormente, Lacan, ao término do seminário O sinthoma, irá agregar à epifania uma importante função de amarração, coisa que ele não havia feito durante todas as aulas anteriores: “É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que graças à falha, inconsciente e real se enodem.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 151). Além disso, o psicanalista aproxima a epifania ao real, o que não quer dizer que ela possa ser tomada como tal, como o próprio real ou como parte dele. Para Lacan, o que haveria é uma ligação, graças ao erro no nó, entre as epifanias de Joyce e o real: “todas as suas epifanias são caracterizadas sempre pela mesma coisa, [...], a saber, que o inconsciente está ligado ao real.” (ibid). Esta é uma distinção importante, porque a ordem do real, diz respeito ao não- interpretável ao não-analisável, aquilo que insiste em não se escrever e que abole todo o sentido. A epifania em Joyce vai representar um enodamento entre inconsciente e real, significando que o campo do sentido encontra-se fora desse processo. Pois, como vimos no capítulo anterior, Lacan localiza em sua representação do nó borromeano plano a noção de sentido na articulação entre o Simbólico e o Imaginário. Sendo que este último vai exercer um papel importante ao sentido, já que o imaginário é o seu suporte, nas palavras de Lacan: “O sentido é aquilo pelo que alguma coisa responde que é diferente do simbólico, e essa alguma coisa, não há meio de suportá-la senão pelo imaginário do corpo.” (LACAN, 1974/1975, 10 de dezembro de 1974). Sendo assim, o campo do sentido é resultado do enodamento do simbólico com o imaginário. Porém, de acordo como Laia (2001), mesmo na epifania haveria uma abertura no texto de Joyce para o sentido, para a legibilidade¸ o que se opõe a ilegibilidade que havíamos abordado anteriormente, uma vez que, como o comentador afirma 91 brilhantemente: “A obra joyceana, mesmo inundada de neologismos e de enigmas, mesmo transliterando a letra em lixo, isto é, mesmo marcada por uma certa ilegibilidade, não deixa de comportar uma dimensão narrativa em que algum sentido, mesmo em fuga, não deixa de fluir. (p. 150). Então, diante do fato de que em Joyce haveria uma falha que permite a queda do imaginário, poderíamos questionar: o que impede que a sua obra não se constitua como uma avalanche verbal desprovida de qualquer sentido ou, então, em algo que se igualaria até mesmo com a delirante da psicose? A resposta para isso encontra-se naquilo que o ego particular de Joyce encarna diante desta falha: um artifício de escrita que recompõe o nó borromeano, tal como Lacan desenhou no lugar do lapso. Ilustração 8 19 Tratar-se-á, pois, de um ego particular que pode ser concebido no caso de Joyce como uma alternativa ao desvanecimento do ego como figura imaginária, ou seja, tal como Lacan destacou no relato da surra de Stephen, à ausência de interesse do escritor pelo ego como dimensão imaginária do corpo. Um segundo enodamento, que diferentemente do primeiro, seria responsável por uma amarração do simbólico e do real que inclui o imaginário. Graças a esse enodamento que não permite que o imaginário se solte é que a obra de Joyce ainda mantém um compromisso com a narrativa e a legibilidade. A seguir, apresentaremos algumas considerações finais. 19 O ego que corrige (LACAN, 1975-1976/2007, p. 148). 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS Lacan afirma, na primeira aula do Seminário 23, que o pai é um sintoma, ou melhor, um sinthoma. Isto nos remete père-version, termo francês, que faz homofonia com perversion, permitindo assim uma aproximação, mesmo que fonética, entre versão do pai e perversão do pai, representa um conceito que nos permite abordar uma nova perspectiva no ensino de Lacan, em que ele pluraliza os Nomes-do-Pai, tal como havíamos assinalado no primeiro capítulo. Mas, o que queremos ressaltar neste momento, é que Lacan, nesta passagem, havia enfatizado a necessidade da ex-sistência de um sintoma para que o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real seja possível. Por isso no Seminário R. S. I., anterior a este, fomos introduzidos por Lacan na topologia borromeana dos nós. Com a qual o psicanalista francês passou a enfatizar a necessidade de um quarto elemento que funcionaria como ponto de amarração, proporcionando, assim, em seu ensino, uma nova forma de enodamento dos três registros, a saber: o nó borromeano de quatro anéis. Lacan encontrou em James Joyce, escritor irlandês, que para muitos era um psicótico não desencadeado, uma invenção que diz respeito a esta amarração dos três registros. Uma invenção que no escritor irlandês ocupou o lugar de quarto elemento e que o psicanalista chegou a denominar de Sinthoma. Trata-se da escritura de um nó, que em Joyce mantinha uma profunda ligação com a literatura. Porém, não uma ligação qualquer, mas sim, por meio de uma escrita incomum, recheada de enigmas e de suas famosas epifanias. Com a qual, ele promovia uma experiência singular com as palavras, com o propósito de infligir na própria linguagem uma quebra e uma decomposição. O que, posteriormente, veio a ser compreendido como uma forma de enfrentar aquilo que o afligia, a saber: o caráter impositivo das falas. Sem dúvida a escrita teve um papel fundamental em Joyce, por meio dela ele pôde promover uma amarração entre o simbólico e o real. Todavia, este enodamento não incluía o registro do imaginário que se desprendia do simbólico, resultando assim numa escrita destituída de sentido. Pois, em Joyce havia uma falha no enodamento dos registros e a escrita por si só não era capaz de solucioná-la. Tal solução foi identificada por Lacan naquilo que ele denominou de ego particularíssimo de Joyce. 93 O que nos remete ao fato de que o ego em Joyce, que Lacan também chegou a denominar de sinthoma Joyce, representa uma prova incontestável de que a falha no enodamento dos três anéis pode ser suprimida por uma outra amarração possível, ou seja, uma outra amarração do nó, por meio do acréscimo de um quarto anel, que não consiste no Nome- do-Pai, mas naquilo que vai além dele. Sem dúvida, como vimos anteriormente, em Joyce a forclusão de fato, caracterizada pela demissão paterna, já que seu pai jamais fora um pai para ele, foi compensada pelo desejo de ser um artista reconhecido por muitos e um trabalho de nomeação infligido pelo próprio escritor. De fato, para Lacan, o desejo de Joyce de ser um artista reconhecido e homenageado pelos universitários, por um longo período de tempo, trezentos anos para ser exato, representava uma compensação de uma carência paterna. Já que ele era um filho de um pai bêbado e decadente, que havia se demitido de sua função paterna. Sendo assim, o caso de Joyce representou e ainda representa para a clínica da psicose, uma solução da falha da carência paterna que faz a mesma função do Nome-do-Pai, porém, sem ser o significante deste. Dito isso, partindo do nó apresentado por Lacan, podemos concluir que a falha corresponde a essa carência paterna em Joyce e o ego que corrige, por sua vez, se encontra no escritor atrelado ao desejo de ser artista e à invenção de um nome próprio. Somos convocados pela clínica da psicose para criar condições, nas quais o paciente possa tecer o seu próprio sinthoma. Esse é um fato que sempre nos guiou na elaboração deste trabalho. Agora, ao término deste percurso, em que procuramos avaliar o papel do sinthoma joyciano na clínica da psicose, podemos concluir, mesmo que parcialmente, que esta solução vem representar uma suplência na qual Joyce compensa a sua falha. A sua suposta forclusão de fato que estaria relacionada a uma demissão paterna. Tratar-se-á, pois, de uma compensação que ocorre em função de um ego que corrige. Um ego que não diz respeito ao ego narcísico com o qual estamos familiarizados, mas um ego particularíssimo. A partir de tudo que estudamos, promovemos uma reflexão com o propósito de articular àquilo que a suplência joyciana pode vir a contribuir com a clínica e com a estabilização psicótica. Apresentaremos algumas contribuições à clínica psicanalítica que podem ser elencadas aqui:  A pluralização dos Nomes-do-Pai vem representar no ensino de Lacan uma perspectiva que permite pensar o conceito de suplência com base numa generalização, já que este passa a ser pensado na neurose como um elemento suplementar. Enquanto, na psicose surge a oportunidade de conceber outros 94 significantes que possam vir a exercer a mesma função do Nome-do-Pai, ou seja, uma função de basteamento do imaginário e do simbólico.  As possíveis tentativas de soluções que o sujeito psicótico pode vir a apresentar não seguem necessariamente os padrões de uma metáfora delirante, tal como o exemplo que encontramos no caso paradigmático de Schreber.  Há multiplicidades de soluções, já que Joyce apresentou antes mesmo do desencadeamento psicótico uma suplência singular que fez função do Nome- do-Pai.  Com base no último ensino de Lacan, e o uso que ele irá fazer da teoria dos nós borromeanos, podemos dizer que as suplências psicóticas sempre dizem respeito à escritura de um nó, de um enodamento dos três registros. Entretanto, isso não quer dizer que o psicótico, em sua solução, sempre vai percorrer uma via que leve à produção literária. Certamente, ainda existe muito a ser estudado sobre esse assunto, porque um trabalho de dissertação não é capaz de dar conta de tudo aquilo que a psicose pode vir a contribuir para a psicanálise. Mas encerramos aqui com a esperança de poder continuar trabalhando esta temática em uma outra oportunidade, ou mesmo deixar que nossos colegas tragam outros desvelamentos. 95 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVARENGA, E. A clínica das psicoses: o trabalho criativo e seus efeitos na clínica da psicose. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 13, p. 118-121, 1999. ARRIVÉ, A. Linguística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjeimslev, Lacan e os outros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. BENETI, A. Do discurso do analista ao nó borromeano: contra a metáfora delirante. Disponível em: <www.opcaolacaniana.com.br/n3/pdf/artigos/ABDiscurso.pdf>. Acesso em: 22 out. 2009. CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. 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