ESPINHELA CAÍDA – Um estudo de caso Anselmo Neiva* Espinhela portas para o caída,/ mar;/ Arcas, espinhelas,/ em teu lugar.// Assim como Cristo/ andou/ arcas,/ levantou. benzeção por Sílvio (1851-1914). Senhor pelo Diz Nosso mundo uma Romero espinhelas registrada RESUMO. O presente artigo visa, a partir de um estudo de caso, tecer algumas considerações sobre o envolvimento de posturas corporais, aliados a rezas e benzeduras, na cura da espinhela caída, síndrome relacionada a anomalias do apêndice xifóide, com o comprometimento da região epigástrica. A partir de comparações com procedimentos adotados por outros curadores, segundo a literatura consultada, levantou-se a hipótese de estarem os procedimentos mecânicos empregados, promovendo melhor acomodação do apêndice xifóide e, consequentemente, o alívio dos sintomas indesejáveis. Visa, ainda, sugerir estudos mais aprofundados, de forma a dar sentido a tais procedimentos ABSTRACT The aim of this article is to make a few considerations on a case study about the involvement of body postures combined with prayers and blessings for the cure of lumbago, a syndrome related to some abnormalties of the xiphoid appendix causing the impairment of the epigastric region. Comparing the procedures adopted by some healers, according to the literature consulted, there is the hypothesis that some of the mechanical procedures, used were helping the accommodation of the xiphoide appendix and consequently the relief of undesirable symptoms. The article also suggests deeper studies to reach better understanding of such procedures. 1 tais como: Câmara Cascudo. História Natural do Brasil Ilustrada. De sintomatologia complexa. popularmente chamada “boca do estômago”. Eduardo Campos em Medicina Popular (1955). Certamente. pulicada em Amsterdan em 1648 (1948:356). geralmente. em sua Antologia do Folclore Brasileiro (1971). que.144). membro da comitiva cultural que acompanhou Maurício de Nassau ao Brasil. além do mal estar geral de que é acometido o indivíduo. Pedro. caracteriza-se por forte dor na região epigástrica. deixando. após intenso esforço físico. Tecnicamente. Esta síndrome foi mencionada no século XVII por Guilherme Piso. Regina Lacerda em História e Folclore. médico. APRESENTAÇÃO O presente artigo tem por objetivo apresentar algumas considerações sobre os papeis desempenhados pelos procedimentos terapêuticos empregados pela benzedeira. cartilaginosa. entre outros. 1943:141. tendo deixado a importante obra. Getúlio Cezar. uma pequena extensão alongada. em Goiania (1977). assim como Karl Friederich Philip von Martius (1979). com Crendices do Nordeste (1941). que veio ao Brasil na comitiva da Princesa Leopoldina. dona Francisca. também médico. da Baviera. Téo Azevedo. outros autores trataram do assunto “espinhela caída”. por volta dos quarenta anos (São Paulo. para a cura de “espinhela caída” – síndrome relacionada com anormalidade do apêndice xifóide ou espinhela – (São Paulo. apresentando.Professor de Sociologia da Faculdade Eça de Queiroz e Doutorando em Antropologia pela PUC-SP. Raymundo Heral Maués (1990). dor nas costas e pernas. entre outras. para seu casamento com D. situada na extremidade inferior do esterno. 2 . doenças. no indivíduo adulto. em Plantas medicinais e benzeduras (1981). medicina e remédios dos índios brasileiros (1844). 1943:145). a obra da qual mencionaremos neste artigo: Natureza. adquire consistência óssea. a espinhela corresponde ao apêndice xifóide. durante o domínio holandês.SP. do Município de Cotia . . tanto nos grandes centros urbanos. como aquelas que “só reza cura”. baseados em profundo conhecimento das ervas medicinais. complementando o processo de benzedura. gesticulações com braços e mãos. como em suas periferias. chás. como terapêutica para doenças. emplastros. entre elas. a espinhela caída. 3 . como: banhos. etc. xaropes. utilizadas de várias formas. para vários fins.É notório presenciarmos a infinidade de curadores disseminando seus saberes. além das rezas acompanhadas de manobras corporais. as pessoas que a procuram. muitas plantas por ela cultivadas. mastruz. rosa-brana. Na sala de sua casa. no Município de Cotia SP. pata-de-vaca. de 65 anos de idade. guaco. fizemos as seguintes perguintas: 4 . deu-se por consulta junto aos demais moradores. campim-santo. entre elas a “espinhela caída”. por exemplo. Observando detalhes do entorno de sua casa. Jandira e Itapevi. Dona Francisca. segundo ela. Osasco. capim-gordura. tais como: arruda. moradora do bairro Recanto Suave. Sobre este último. geralmente. louro. Segundo suas informações. onde atende as pessoas que a procuram. ela segue uma religião sincrética. onde se juntam: catolicismo. como diz dona Francisca. tanto na frente da casa como no quintal. kardecismo e umbanda. manjericão. local onde atende aos doentes das imediações e de outras localidades. qual a terapêutica indicada e quais os procedimentos quanto ao ato de benzer.MATERIAL E MÉTODO O critério de seleção da benzedeira dona Francisca. Taboão da Serra. podem ser: laranjeira. Os dados recolhidos de interesse da pesquisa foram obtidos através de conversa informal. Caso necessite de plantas que não possue em sua casa. de cor negra. visando deixá-la mais a vontade e com mais liberdade para contar e demonstrar como são os procedimentos para a cura de espinhela caída. como é determinado o diagnóstico. e com muitas carências. muito “carregadas” de forças negativas. usadas para “harmonizar o ambiente”. não sendo analfabeta. Estas. Reside em um sobrado mal conservado. malva-branca. além de doenças de toda natureza. Carapicuíba. Segundo ela. vem benzendo desde jovem. estão. medicinais e outras. dona Francisca as procura em casas de ervas ou em terrenos baldios das imediações. sabugueiro. em sua maioria. pau-tenente. se veem várias imagens de santos. quanto ao seu prestígio como benzedeira. motivadas ou por conflitos conjugais ou por questões de trabalho. erva-de-santa-maria. encontramos. Indagamos sobre qual o sistema de crença ao qual está ligada. .Se exige algum tipo de postura da parte do doente. tal como.Se indica remedios para tomar e.Se reza durante abenzedura. quais são. no caso positivo. .Se a reza é audível ou silenciosa..Se porta algum objeto ou planta durante o ato de benzer. 5 . . sentada ou pé. . nos disse ser. etiologia. (1979:85) [1844]. descendentes dos Tupi (Martius. “peito aberto” e “arca caída”. Respeito aos procedimentos para o diagnóstico da “doença”. com preparados à base de plantas balsâmicas.RESULTADOS E DISCUSSÃO. também. incorporando-os. Sobre a denominação “espinhela caída”. chamou a espinhela caída de “prolapso do apêndice xifoide”. no século XIX. o diagnóstico. era doença crônica da digestão. ela está ligada a um sistema de crença sincrético. entre os indígenas. todavia. no século XVII. Com relação ao depoimento de dona Francisca. Diz como procede: 6 . tais como: “peito caído”. Segundo ele. a benzedeira argumentou com bastante ponderação. Indagada sobre como é identificada a espinhela caída e qual a terapêutica utilizada para propiciar a cura. diz dona Francisca ser necessário verificar a simetria entre os braços e partes do corpo. observada nas populações das imediações da Bahia. o kardecismo e a umbanda. em termos de religiosidade. tal como a conhecemos hoje com sua sintomatologia – dores na região epigátricas. no Brasil. constatamos que. e procedimentos terapêuticos da espinhela caída. com com sérias perturbações na saúde . visto receber orientação de “mentores espirituais”. Martius. envolvendo o catolicismo. Pernambuco e Maranhão. variam de uma região para outra do país. quadros sintomatológicos semelhantes aos apresentados pela espinhela caída. inclusive entre índios. Em tempos atuais.cuja terapia consistia em chupar naquela região. Guilherme Piso (1948:358). conhecida por outros nomes. seguida de aplicação tópica no mesmo local. onde percebiam uma reentrância no apêndice xifoide. conforme registrado por vários estudiosos. sem dispensarem. já registrava. benzimento acompanhado de reza. Além da variedade de práticas utilizadas para se chegar ao diagnóstico da espinhela caída.. depois. to cozendo o que? Ai 7 . apresenta nova técnica de medição para espinhela-caída: Toma de um cordão e com ele mede da ponta do nariz até a raiz do cabelo. significa que ela está com espinhela caída. espinhela caída. no Ceará (1955:91. A preocupação com a simentria mencionada por dona Francisca se faz perceber entre outros benzedores de espinhela caída. Depois disso. provocando intensas dores no peito. Primeiro. tratando das crendices do Nordeste. A causa do surgimento da síndrome da espinhela caída. Se isso não acontecer. principiando da articulação da mesma com o esterno. inseparável dos recursos que são utilizados pelos curandeiros. tomado essa medida. eu to cozendo oque? Ai a pessoa responde. havendo uma grande variedade delas que veem. segundo a benzedeira. Aí você fala com a pessoa que está com a espinhela caída. ao tratar da espinhela caída. na verdade. Se a medida não coincide. menciona a seguinte técnica: A pessoa sentada estica os braços para cima. você tendo o carretel de linha. Dona Francisca apresenta qual o procedimento por ela adotado. as palmas precisam se encontrar. deve-se à pessoa ter carregado muito peso. depois: A pessoa pega um carretel de linha virge. como registrado por Eduardo Campos. A terapêutica indicada para a cura dessa síndrome é compreendida. essencialmente. quando diz: (. leva a medida achada para medir uma clavícula.Com um pedaço de linha de algodão é medida a distância do dedo anular até a ponta do cotovelo. se caso passar ou faltar. sacralizar o processo de cura. um elemento primordial se faz presente no ritual de cura – a reza –. ai eu falo de novo. No entanto. de ombro a ombro. no fim da testa. Getúlio Cezar (1941:159). se a medida ficar menor. não pode ser linha usada e enfia em uma agulha virge. passa duas vezes pela cintura da pessoa. Ai. o peito está aberto.) medir com um barbante a distância que vai do dedo mindinho (braço estendido) ao cotovelo. eu costuro no paninho com a agulha. não se pode negar: é espinhela caída. além de incômodos no estômago e muito cansaço. costas e pernas.. é sinal de que ela está com espinhela caída. de benzeduras acompanhadas de reza. faz o sinal da cruz e. que você nunca uso. Também. Os casos mais graves tem que voltar e benzer três vezes. pela benzedeira. ai. em pé! 8 . depois do exame de apalpação na região epigástrica. eu pego o paninho todo enroladinho e jogo em lugar que corre água. ela leva a dor. Terminando com um sinal da cruz. Espírito Santo. no Rio de Janeiro. Mas. levantando três vezes. to cozendo o que? Espinhela caída. em Goiânia GO. Lacerda (1977:174). enquanto vai dizendo: Barquinha de Nossa Senhora Que navega pelo mar Arca e espinhela caída Que caia em seu lugar Luís Edmundo (2000:474). aí ela não precisa voltar. Azevedo (1981:22). acompnhado de manobras corporais. Tem gente que benze uma vez só. espinhela. curo e saro Fica-te. usa amarrar uma toalha na altura do tórax da pessoa. deixando evidenciada a posição do apêndice xifoide voltado para o estômado. menciona a seguinte reza: Na casa em que Deus nasceu Todo mundo resplandeceu Na hora em que Deus foi dado Todo mundo iluminado Seja em nome do Senhor Este teu mal curado Espinhela caída e ventre derrubado Eu te ergo. Dai eu costuro no paninho e. doi muito. Santa Maria. entre outras entidades divinizadas. possivelmente. Percebe-se o elemento católico presente em outras rezas. a gente tem que benzer três dias seguidos. à base de alimentos de fácil digestão. com referências a Deus. registra a recomendação de uma dieta para depois da reza. por que joga em lugar que corre água. quando é muito grave. conta que uma benzedeira em Pitangui MG.pergundo de novo. Deus. nos leva a considerar a possibilidade de uma análise que nos permita explicar e dar sentido aos procedimentos adotados e à suposta cura desta síndrome. subjetivamente admitida. as dores. A terapêutica aplicada pela benzedeira em questão. estar promovendo melhor acomodação do apêndice xifoíde na região epigástrica. mais aprofundos. Em tal cura.Santana. Eduardo Campo (1955:157) registrou a seguinte oração: Deus quando andou pelo mundo Arca e espinhela levantou Levantai. pois consistem de um refinado sistema de conhecimentos que são operados pelos curadores. Santa maria. a minha Pelo vosso amor CONSIDERAÇÕES GERAIS A partir das entrevisas com dona Francisca. 9 . poderíamos extrair subsídos para análises mais aprofundadas. As práticas de benzimento adotadas por dona Francisca podem ser apresentadas como práticas. em nome do padre. que venham explicar e dar sentido aos procedimentos adotados na cura da espinhela caída. fundamentada na crença nos poderes sobrenaturais da benzedeira. aliviando. como hipótese. nos foi possível apreendemos dados. do Filho e do Espírito Santo. senhor. poderiam. somada aos procedimentos mecânicos envolvendo posturas corporais durante as medições e as benzeduras. Deste raciocínio. técnicas e culturas do corpo. para a cura da espinhela caída. os quais nos permite traçar considerações que julgamos importantes e passíveis de estudos posteriores. assim. São Paulo: Ed. do tempo que gasta. . alho. Marcel. camaraneiva@gmail.) São Paulo. 1977. do tom da voz. Téo. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis..P. Regina. Apud: Cascudo. Anselmo de Souza Neiva. Getúlio. Nacional/INL/MEC.) as práticas desenvolvidas pelas benzedeiras são saberes que precisam ser compreendidos por nós cientistas sociais. 1981. Antologia do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Ponguetti Editores. os aconselhamentos”. Plantas medicinais e benzeduras. Cezar. sal. quanto a utilização das suas ferramentas de trabalho. pp.. funda-se sobre certas sinergias nervosas e musculares que constituem verdadeiros sistemas solidários de todo um contexto sociológico”. “(. 10 . São Paulo: Top-Livros. São Paulo 2003. Livraria Martins Ed. Professor de Metodologia de Pesquisa e Sociologia da Faculdade Faceq. Crendices do Nordeste. Mestre em Antropologia pela PUC-SP. das palavras. “(. da cinza.. 1971. Referências bibliográficas: Azevedo. medicina e remédios dos índios brasileiros. doenças.. (3a. Editora Cosac & Naify. Em Mauss (2003:15). Lacerda.) o que se evidência nas diversas práticas da benzedeira é a sua criatividade. Luís da Câmara. Goiânia GO: Oriente. que são baseadas em uma longa tradição e que está muito presente em nossa cultura. Martius. 1941. 287-288.Ed. 1979 [1844] Mauss.von.O presente trabalho vem a sugerir uma reflexão a respeito de tais práticas. Natureza. das plantas que utiliza.com. Sociologia e Antropologia. Edmundo. Em Oliveira (1985:420). Vila Boa – História e Folclore. 2003. água. “cada técnica cada conduta tradicionalmente aprendida e transmitida. Rio de Janeiro: Editora do Senado Federal do Brasil. os gestos com as mãos. Luís. 2º ed.. Carl F. História natural do Brasil ilustrada. São Paulo: Ed. São Paulo. Doença. 1948 [1648]. Linguagem médica popular no Brasil.Oliveira. São Paulo: Revista dos Tribunais. Guilherme. 1983. Elda Rizzo de. Piso. Fernando. Cura e Benzedeira: Um estudo sobre o ofício da benzedeira em Campinas. Nacional. 11 . 2 vols. Tese de Mestrado pela UNICAMP. 1970.