4.SUPORTES: Visual e Sonoro Primeiramente, cabe uma definição. A quantidade de maneiras de abordar estas instâncias, ou seja, pontos-de-vista e teorias sobre a imagem e o som, nos deixa com um universo muito abrangente para tratar. Assim, é absolutamente necessário que se restrinja o sentido que se quer dar à sons e imagens. Portanto, que fique claro: Aqui estou tratando de sons intencionais, ou seja, sons que tenham sido produzidos por alguém com a intenção primeira de fazê-lo, que se traduzem em todas as manifestações a que chamamos música. E, quanto à imagens, a mesma coisa. Não chamo imagens às formas naturais encontradas na terceira dimensão, mas sim formas produzidas com finalidade primeira a representação estética. Entra aí todo o universo pictórico da pintura, fotografia, escultura e artes plásticas em geral, mas não uma mesa ou escrivaninha feita primordialmente para servir de apoio. E, ainda no campo das imagens, há que se dividir em duas facções: a imagem estática e a imagem dinâmica, sendo a primeira representada pelos suportes supracitados e a segunda pelo cinema, vídeo ou ainda teatro e hipermídias. É preciso mencionar, também, que apesar de ser possível estabelecer diversas correspondências diretas entre naturezas sonora e visual, há outros pontos que se mantém como lacunas. Isso se deve ao fato de que as representações híbridas possuem um vasto campo de atuação, não podendo estabelecer um parâmetro universal que sirva a todos os exemplos; antes, eles variam enormemente, e as possibilidades combinatórias são igualmente incalculáveis. Assim, temos que pensar em outras instâncias além da razão física ou analítica da união som/imagem, e que veremos mais adiante. 4.1. A natureza da Imagem A imagem é produto de um estímulo luminoso aos nossos órgãos visuais, os olhos. Aquilo que ‘vemos’ é, na realidade, uma imagem formada no cérebro a partir deste estímulo, sendo o órgão cerebral, portanto, responsável pela Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 61 interpretação do estímulo que nos chega. Assim, não podemos deixar de mencionar que, ao se tratar a instância imagem, quer seja ela representação estética, quer seja qualquer objeto tridimensional, partindo do objeto em si, é tratar de uma maneira invariavelmente parcial e incompleta, mesmo que se determine com exatidão o limite da observação. Isso porque não conhecemos os objetos em sua totalidade, e sim segundo o ‘filtro’ visual que é nosso próprio olho, que consegue detectar apenas uma ínfima gama de vibrações do espectro eletromagnético. Começamos então gerando um grande problema: como tratar cientificamente a instância imagem levando-se em conta que sabemos ser nossa observação a respeito delas absolutamente parcial? Por enquanto, não temos outra saída senão admitir a relatividade extrema de nossas observações e agirmos com prudência ao realizar colocações. Por este motivo, muitas das conclusões aqui alcançadas terão um alto grau de teor especulativo, natural quando se trata de questões tão subjetivas e com tantas variáveis. Podemos partir, entretanto, de determinados pressupostos: a imagem estética que se nos apresenta sem dúvida possui instâncias sensíveis muito mais abrangentes que o simples estímulo visual. Com isso quero dizer que quando observamos uma obra de arte, o estímulo visual é na verdade uma pequena parte de um processo, uma fonte de conhecimento que sem dúvida pertence a uma grande e intrincada ‘teia’ de informações, cujas relações se estabelecem mentalmente no espectador. Em segundo lugar, embora limitada, a percepção visual é uma percepção vibratória, tal qual o som, e faz parte do mesmo paradigma, não obstante sua natureza eletromagnética mais ampla. Assim, a percepção de formas e cores (imagens) está intimamente associada à luz. A própria fotografia demonstra isso em sua nomenclatura, sendo literalmente foto+grafia, ‘escrita da luz’. Não apenas porque através da luz que os objetos se fazem visíveis, mas também porque a luz que incide sobre um objeto influi diretamente na maneira como percebemos este objeto. Temos por costume considerar a luz solar como padrão de todo o mundo visual, pois ela nos permite ver as coisas de maneira mais distinta e clara. Porém, se vivêssemos num Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 62 ambiente cuja luz solar fosse extremamente avermelhada, nosso padrão seria muito diferente, pois consideraríamos neutros os tons vermelhos, e uma série de freqüências visuais não poderiam ser por nós captada. Isso é importante para sempre nos lembrarmos da relatividade da percepção. Em termos físicos, a maneira mais simples de definir esta instância é considerar a unidade de freqüência, o Hertz (ciclos por segundo). A luz também é medida por essa unidade, e o número de vibrações da onda luminosa por segundo (a freqüência em Hertz) determina a tonalidade da luz, ou seja, sua cor. Já a amplitude da onda se traduz na intensidade dessa luz. É particularmente interessante notar alguns aspectos referentes à cor segundo sua natureza eletromagnética: primeiramente, a diferença de intensidade de uma cor, por mais que seja a mesma freqüência é interpretada como uma nuance diferente da cor, e não como a mesma cor. Além disso, a combinação de duas ou mais cores tendem a misturar-se sem que se possa definir exatamente as cores componentes a partir de seu resultado final. Isso é verificável quando analisamos os ‘harmônicos’ luminosos. Eles são formados da sobreposição irregular de freqüências distintas de luz, somando-se a uma resultante. Quase a totalidade das fontes de luz existentes são formadas por sobreposição de freqüências, com exceção do raio laser, luz coerente, ordenada e monocromática. Foi justamente a partir destas constatações que alguns cientistas, ainda no séc. XIX, desenvolveram as primeiras teorias sobre a percepção cromática. Primeiramente, Thomas Young, que, em 1801, propôs a primeira versão de uma teoria tricromática da visão, ou seja, percepção cerebral a partir de 3 cores fundamentais, Vermelho, Verde e Azul. Mais tarde, Hermann von Helmholtz aperfeiçoou esta teoria, mantendo a posição de que o olho possuía 3 fotorreceptores, um para cada cor, que se sobrepunham e eram então interpretadas pelo cérebro. Concomitantemente às proposições de Helmholtz, Ewald Hering propôs uma teoria mais complexa, baseada em 3 combinações cromáticas (Azul/Amarelo, Verde/Vermelho, Preto/Branco), mas inovando em dois aspectos: primeiro, considerando que os fotorreceptores dos olhos são monocromáticos, e que a Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 63 De qualquer maneira. temos que a intensidade é tratada pelo som de maneira bastante diversa: enquanto que para a luz intensidades diferentes de uma mesma freqüência podem Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 64 . 4. ambos os sistemas são. bem como a sobreposição deles. ou seja.percepção das cores é uma interpretação cerebral. É também o princípio do Technicolor. desempenha papel fundamental na composição do timbre. Apesar de parecerem contraditórias. No som. pois a primeira se baseia na síntese aditiva e a segunda na síntese subtrativa. blue. Assim. com pouco treino somos capazes de ouvir harmônicos. Segundo. a nota. resultante destes 3 elementos anteriores. a origem da fonte sonora. do vídeo composto. que utiliza o princípio de complementariedade enunciado por Hering. não conseguimos perceber seus harmônicos e sim apenas sua resultante. ao contrário. o som também gera harmônicos. Em se tratando das diferenças formais entre a luz e o som. segundo Helmholtz. mas com uma diferença marcante: por causa da freqüência muito mais alta da luz. chegou à conclusão que a percepção das cores possuía uma dimensão psicológica muito maior do que se imaginava. temos que a freqüência em Hertz determina a altura do som. que. que permite a televisão colorida. e também apresenta semelhança do ponto de vista da freqüência.2. as teorias cromáticas de YoungHelmholtz e Hering se complementam. Utilizando a mesma medida (Hertz). é fundamental na indústria gráfica e na filtragem e fabricação de filmes coloridos para fotografia. na prática. ao estudar diversos casos de cegueira cromática. a Duração e o Timbre. Já o sistema subtrativo. extremamente importantes: o RGB (red. Intensidade. o primeiro sistema comercial de cinema em cores. temos que o som é particularmente definido a partir de 4 características fundamentais: Altura. Assim como na luz. da teoria tricromática) serve como base. e a amplitude da onda sua intensidade. desde o princípio até hoje. A natureza do som e a música O som também se caracteriza por sua natureza vibratória. green. tal qual a luz. e o som produto de vibrações mecânicas que se propagam num meio material. pois não podemos reconhecer. pode ser captado dentro de seu limite de percepção e será transmitido ao cérebro. Na onde mecânica sonora. elas podem estar mais Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 65 . muito semelhantes quanto à manifestação. até seu limite auditivo. é possível reconhecer a simultaneidade de freqüências sobrepostas e. sabemos que a imagem é produto de um estímulo luminoso (freqüência eletromagnética). O cinema se vale desta propriedade confeccionando luzes artificiais com qualidade semelhante à luz solar. A natureza de ambas. visto que. o ouvido. é reconhecida sem problemas como a mesma. em música não. a freqüência eletromagnética da luz é muito menor e mais sutil que a mecânica do som. dependendo do ângulo e ponto-de-vista de análise. O mesmo se aplica à sobreposição de cores e de sons. determinar com precisão as notas que compõe determinado acorde. a luz não tem ‘timbre’. assim como a luz. O som. a freqüência da luz (cor) não pode ser precisada senão por aparelhagem complexa de laboratório. Qualquer estímulo vibratório que se propague em meio material. está em constante instabilidade. imitando diversas instâncias de luz natural em estúdio. que então o interpretará. apesar disso.ser consideradas cores diferentes. Da mesma forma. muito diferentes em essência. não é possível determinar com precisão as cores em suas intensidades e freqüências precisas que compõe uma resultante cromática. também nos chega ao cérebro através de um canal transmissor. E. Já no âmbito da altura. Isso se dá por razões físicas. quando colocadas em comparação. e depois porque não vemos a sobreposição delas. pela emissão da luz. sendo. que nada mais faz além de estabelecer uma conexão entre a vibração externa e o cérebro. Temos então que tanto o fenômeno luminoso quanto o fenômeno sonoro são reconhecíveis segundo uma interpretação cerebral. primeiro porque diversas combinações de cores podem resultar numa mesma cor predominante. a nota. sua fonte. No caso da luz. portanto. Assim. temos que as freqüências sonoras são reconhecíveis de uma maneira mais precisa: enquanto a altura de uma note pode ser detectada com precisão de comas pelo ouvido. qualquer que seja sua dinâmica. com treino. e sim apenas o resultado final. entre dois "dós". última vista. nos propomos a estudar a união destas duas instâncias. 1999) Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 66 . em seu artigo ‘Vibrações de Luz e Som’ (1999) nos fornece explicações detalhadas sobre este aspecto: Além de serem fenômenos de natureza distinta.3. aproximadamente de 32 Hz a 4200 Hz. Considerações híbridas (correspondências) Quando. e não de uma dimensão física. A frequência da cor violeta. 4. uma vez que não há (ou não se conhece) uma razão unificadora consensual entre as naturezas físicas e eletromagnéticas neste caso. dando uma extensão de cerca de 10 oitavas. É nesse intervalo que se encontram todas as cores que vemos. a primeira cor vista. é o dobro da do vermelho. estabelecer critérios para avaliar as concordâncias entre as comparações efetuadas. É nessa faixa que distinguimos bem a harmonia entre os sons musicais. É preciso.distantes ou mais próximas em termos de associação de paradigmas. devemos ter em conta que tais correspondências são primordialmente conseguidas em função de uma dimensão estética. portanto. a última frequência percebida é cerca de 1000 vezes o valor da primeira. Na luz é percebida apenas o que em música denominamos "oitava" (Oitava é o intervalo entre duas notas sucessivas com o mesmo nome. Os instrumentos musicais abrangem uma faixa de 7 oitavas. som e luz diferem bastante pela extensão e valores das frequências abrangidas. No som. mais puros e onde se desenvolve todas as obras musicais conhecidas. A quociente entre as frequências de tais notas é sempre 2). (Castro. por exemplo. após as considerações acima. O engenheiro Paulo de Castro. 10 oitavas. ou seja. apenas uma oitava. segundo a razão 2:1. Este é o motivo pela qual não podemos estabelecer um ponto de apoio nas considerações frequenciais. 1999) uma vez que existem diversas maneiras de combinar freqüências entre som e imagem. Figura 9: Gráfico comparativo entre as frequências sonoras e luminosas. razão pela qual qualquer comparação entre o som e a imagem deste ponto de vista é arbitrária. transmissão. Tais características são apenas observáveis em movimento. mesmo no limite da audicão. (Fonte: Castro. refração. são muito mai s baixas que as luminosas. em plena manifestação sonora ou luminosa. enquanto que a cor visível abrange. seguindo apenas o critério numérico. na mesma razão. difração. (ver figura 9) mas em valores escalares diferentes e de naturezas distintas. e isso é muito importante para considerar a Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 67 . estão sujeitas a leis similares. há diversas outra instâncias em que o som e a imagem se casam com perfeição: ambas tendo naturezas vibratórias. As frequências sonoras. como por exemplo: reflexão. Entretanto. o som audível abrange. absorção.Assim. Tendo justamente ele descoberto a composição da luz solar branca através de suas experiências com o prisma. tendo freqüência e comprimento Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 68 . imaginou que a luz era constituída por uma torrente de partículas e que sua transmissão se dava por ondas.1. Portanto. mesmo sem que soubessem de suas distintas naturezas. além de mantras e incenso. Uma vez que as cores são freqüências do espectro eletromagnético e o som freqüências mecânicas. 4. timbre. contraste. ou seja. cores. dinâmica. ritmo) comum entre ambas. tais ondas deviam seguir a periodicidade de qualquer movimento vibratório. Isaac Newton. agrupamentos paradigmáticos comuns segundo a organização física manifestada.1997)] A primeira relação pesquisada cientificamente entre o som e a imagem foi a instância cromática. a inter-relação entre ambos pela questão vibratória foi amplamente discutida. foi. forma. E a nós são percebidas segundo instâncias convencionais.questão temporal (duração. naturalmente. Mas há outras características que nos são observáveis e que nos fornecem sensações semelhantes.3. ritmo e harmonia. Muito pode ser atribuído a um conhecimento antigo que associava essas instâncias vibratórias em rituais de sacerdócio em diversas religiões. Cores (tons) [Figura 10: Disco publicado em Optiks (1704) de Isaac Newton (Fonte: Hutchison . seu precursor científico. sempre acompanhados de determinada indumentária com cores específicas. em 1743. através de sua geometria. e outro.D. que baseia-se nas premissas de Newton e acrescenta o tratado de Harmonia de Rameau para criar um ‘órgão de cores’ (Cotte. contém as 7 cores do espectro visível. para calcular combinações cromáticas por analogia. como o padre Kircher (1602-1680) e o padre Mersenne (1588-1648). Essa obra. foi o primeiro a colocar comparativamente o som e a cor lado a lado. Segundo Niels Hutchison (1997). Entretanto. explicava a Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 69 . Neste caso. na freqüência mais alta ainda visível. Este disco parte de uma relação aparentemente arbitrária. 1995:29-30). uma das mais completas sobre a natureza do som. famoso nas experiências escolares. também estabelecem uma lista comparativa. esta determinação em começar em Ré era importante para que o disco pudesse servir. a de colocar a menor freqüência cromática. Pouco antes (séc. diversos outros autores. utilizando luz filtrada através de líquidos coloridos refletidos em placas de metal. no início em Ré. presumindo que cada cor corresponderia a uma nota. On The Sensations Of Tone (1954). conhecido como cravo ocular. em que as cores são associadas às notas. ele incluiu cores intermediárias como os acidentes cromáticos da música. tem como resultante o branco. XVI e XVII). conforme a figura 10. passando por todas as notas diatônicas até chegar novamente em Ré. e em 1893 por Alexander Wallace Rimington. já em 1910 havia publicado um estudo sobre a propagação de ondas sonoras descrevendo suas equações segundo a teoria dos harmônicos. Desta maneira. produziu dois discos: um. Mas o jesuíta Louis-Bertrand Castel (1688-1757). tendo observado 7 cores na decomposição da luz (em referência direta com as 7 notas da escala diatônica). Este tipo de instrumento que combinava cores e sons foi produzido também em 1844 por D. Isso caracteriza uma escala no modo Dórico renascentista. que patenteou seu próprio órgão de cores. ao ser girado. e Newton. A similaridade com as ondas mecânicas do som neste aspecto é imediata. que. o vermelho. um pouco mais sofisticado. Jameson. o cientista alemão Hermann von Helmholtz. o violeta. descrevendo-o no livro Color Music: The Art of Mobile Colour (1911).de onda. cria um instrumento próprio. para orquestra e órgão de luzes. teríamos o seguinte resumo das correspondências entre cor e som: Figura 12: Tabela de correspondência entre freqüências luminosas (cores) e sonoras (notas). 1911. Mas. adiante) escreveu seu Prometeu – Poema do fogo. Fascinado pela idéia da correspondência entre cor e som. estudou a teoria tricromática de Thomas Young e estabeleceu a primeira escala de correspondência baseado nas freqüências numéricas de cada suporte. segundo os diversos autores citados (Fonte: http://www.131) Na mesma época.com/index. sabendo das diferenças entre a posição do sentido visual e do sentido auditivo numa escala contínua de freqüências.html Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 70 . Alexander Scriabin (v. bem como o comportamento dos timbres.consonância e dissonância. Figura 11: ilustração para as correspondências entre as notas e cores segundo Helmholtz (Fonte: Mae e Rudolph. baseando-se nos textos místicos de Helena Blavatski para compor sua própria escala de cores. p. Assim.rythmiclight. estabeleceu alguns parâmetros arbitrários. pelos eventos harmônicos de cada som. muitas vezes argumentos puramente poéticos. escritor e poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) é um exemplo bastante contundente. é um grande estudo científico. É possível encontrar ainda outras comparações para as modificações desses dois efeitos principais (Goethe.vide a própria V Sinfonia de Beethoven.seria na sua relativa menor). nos capítulos Coloração Harmônica e Tonalidade Autêtica: Se a palavra tom ou tonalidade continuar no futuro a ser tomada de empréstimo à música e aplicada às cores. especialmente a newtoniana. mas a partir do romantismo.o movimento lento . uma pintura de efeito suave a uma peça em tom menor. que abre com uma imagem ‘de forte efeito’ em dó menor. Goethe volta a adotar o termo harmonia para o perfeito equilíbrio de uma obra artística: Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 71 . em seu tratado Doutrina das Cores. mais adiante. Entretanto. Embora sua intenção fosse desvendar os fenômenos cromáticos na intenção estética que deles decorrem. ao estabelecer tal comparação entre os modos maior e menor com imagens pictóricas. O dramaturgo. a erudição e o profundo conhecimento do poeta das ciências físicas. o segundo . deverá ser empregada melhor do que atualmente. 1993:149). Goethe devia ter em mente.Por este motivo. uma série de outros autores procuraram outros parâmetros que não a relação de freqüência para comparar harmonias musicais e cromáticas. Não seria ilegítimo comparar uma imagem de forte efeito a uma peça musical em tom maior. tratando especificamente de pintura. a prática comum vigente no classicismo de tratar tonalidades menores de maneira mais sombria e sutil (normalmente. a tonalidade menor foi tratada com maior ênfase . se o primeiro movimento de uma sonata ou sinfonia fosse escrito em modo maior. e que não deixa de comentar tal natureza simbiótica. fez deste estudo algo muito mais importante que um tratado cromático para a arte. alaranjada e amarela. embora sua correspondência entre sons e cores seja considerada arbitrária (cf. sombra. até chegar ao violeta. somente através da harmonia entre luz. para piano. segundo o “equilíbrio dos elementos mais ativos da escala de tons”.Pois sem uma visão do todo. modulação e verdadeira coloração característica é que a pintura pode se mostrar perfeita (Goethe. enquanto base harmônica. todas as tonalidades cromáticas de baixa freqüência (amarelo. enquanto que freqüências mais altas. De nosso atual ponto de vista. nosso fim último não será atingido. mais distante. os acordes musicais são acompanhados por acordes correspondentes em luzes de diversas cores. há uma interpretação bastante pessoal que pode ser analisada sob o seguinte prisma: cada cor corresponde a uma freqüência do espectro. independente dos exemplos temporais citados. em Prometeu. 1993:129) O mesmo conceito de acorde luminoso é evocado por Israel Pedrosa (1999). Tomás. que o emprego do termo harmonia para as cores não é em vão. o dó maior. de freqüência maior e mais sutil. (Tomás. é associado ao vermelho intenso. (azul e violeta em várias gradações) associadas às vontades divinas. laranja e verde) são associadas às vontades humanas. e temos ainda o exemplo concreto das experiências cromáticas na perfomance musical com a obra Prometeu de Alexander Scriabin. dividindo as tonalidades cromáticas em escalas de modo maior e escalas de modo menor. Da mesma maneira. Muitos outros autores recentes a tomam na mesma medida. orquestra e órgão de luzes. última cor percebida por nós. Mas Pedrosa é mais cuidadoso (como sugeriu Goethe) no uso destes Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 72 . passando pelo verde (intermediário) e chegando aos tons de azul. 1993:69). e o si maior. que no sistema tonal é a mais simples das tonalidades. 1993:51) O que aqui nos importa é justamente. fechando um ciclo cromático nos sons e nas cores. Assim. O artista deve se aprofundar em tudo o que já foi exposto. é associado ao azul. sendo as menores de tonalidade vermelha. Analogamente. por exemplo. Newton afirmara que as complementares não são o princípio da harmonia. dividindo com muita propriedade os conceitos harmonia e acorde para cores: Comumente a harmonia é confundida com a combinação ou acorde de cores (.2.. elas funcionam e não cessam de vir à tona. apesar das inúmeras tentativas de estabelecer uma analogia de escalas entre sons e imagens por freqüência. mais adiante.. fundando-se esta numa maneira qualquer de identidade das partes. expresso pela ação das complementares. elas sempre obedecem a razões específicas para cada autor. e não na simples oposição das mesmas.) Para que surja harmonia é necessária a superação do conflito das forças contrárias. (Pedrosa. (. Mesmo assim. 1999:160) E. numa associação muito comum de “colorido” orquestral..termos. 4.) Mas a harmonia. ou seja. Por isso. Isso se dá por diferentes motivos: primeiramente. Pedrosa cita exemplos de acordes cromáticos consonantes e dissonantes. É importante notar que. a verificação da fonte de luz pela sua emissão não é precisa. XX. bem como preto-e-branco do piano.3. Timbre O timbre é tido normalmente como um desdobramento da associação cromática. conforme a figura 13. não há uma correspondência direta de timbre na luz.. principalmente nas artes híbridas do séc. Outro motivo decorre do espectrograma de cada timbre poder ser associado também ao espectrograma Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 73 . pressupondo o equilíbrio de um conjunto de partes ou de unidades para formar uma totalidade de novo tipo em relação aos elementos que a integram exige algo que ultrapasse o simples acorde. 1999) Outra maneira de abordar a questão do timbre é a que é usada em Fantasia: diretamente ligado ao desenho melódico. mais grosso. arredondado. segundo Pedrosa (fonte: Pedrosa. o som ‘desenhado’ na película.). e que é Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 74 . que possui um caráter segundo sua forma (mais suave. etc. Cada som é representado por um desenho diferente.das cores. Figura 13: Quadro de acordes cromáticos maiores e menores. com ângulos agudos. Isso advém da possibilidade de visualizar. conforme Pierre Schaeffer menciona no seu Tratado dos Objetos Musicais (1993). regular ou irregular. através do sistema movietone. ou a tradução vibratória do som em escala visual. Um termo utilizado na pintura. uma fusão do ritmo com o andamento. um ruído é produzido. [Figura 14: Trecho de Fantasia que tem como personagem a ‘banda sonora’] 4. É usada para designar sons fortes e fracos na música. a partir da composição de forças Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 75 .” (Harnoncourt 1993:104106). quando fala de Mozart: “O chiaro-oscuro. divididos segundo o timbre: violino. Uma linha entra em cena e o narrador lhe pede que mostre um som. e uma faixa de ângulos irregulares e caóticos toma parte na imagem. muito característico e a propósito de seu timbre: é estabelecido um paradigma de correspondência entre os timbres e os contornos visuais. Arnheim nos fala de dinâmica do movimento da imagem. sons específicos. harpa. e que é exatamente esta a acepção que usa Harnoncourt. fagote. que é justamente a faixa movietone. de um suporte para outro. há um interlúdio em que o narrador nos apresenta a ‘Banda Sonora’. o contraste de luz e sombra. uma harmonia tranquilizadora e perfeita. é aqui evocado para tratar as dinâmicas da música. em seu Diálogo Musical (1993). ou seja. que seria na verdade.3. de movimento. Contraste / Dinâmica (forte-fraco) Outra instância comum à ambos os suportes é a dinâmica. Outros autores vão utilizar a mesma terminologia mas com outra interpretação. A sugestão de movimento. trompete e instrumentos de percussão. da mesma maneira que a harmonia desta é usada para a combinação de cores naquela. Exatamente no meio de Fantasia.muito próximo do desenho obtido pelo espectrograma do som em laboratório. Ao invés de significar diferenças de contraste entre luz e sombra. entre as seções da Sagração da Primavera e da Sinfonia Pastoral. Primeiramente. ou ainda quando faz uma comparação como “É a música reduzida a um doce sorriso. por analogia. é indiscutivelmente uma das qualidades mais fortes em Mozart”. A dinâmica sugere leituras diferentes quando passada. Cada um apresenta um desenho diferente.3. em música. é usada no sentido cinético. Depois. flauta. que na música se refere em geral à dinâmica. criando uma polifonia visual que mescla a linha melódica. num movimento das imagens do qual partilham igualmente o movimento dos personagens. a harmonia e o ritmo numa dinâmica própria. sons fortes são associados a movimentos bem marcados. Mas no que diz respeito ao chiarooscuro. os planos de enquadramento. mais abertos e mais fechados. Na dinâmica destes exemplos os elementos freqüentemente se cruzam.3.4. se considerarmos elementos simples do desenho. a associação da luz com a harmonia de Bach é. as cores e as luzes. o andamento. Desenho (linha melódica) Contudo. uma outra forma de relacionar a dinâmica musical com a visual é considerar a espessura da linha. proeminente). Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 76 . nos fornecem a sensação de andamentos rápidos ou lentos. fazendo também referência à linha melódica e aos contornos mensuráveis de intensidade chiaro-oscuro conforme Harnoncourt. embora em algumas ocasiões haja inversão desta regra. sons fortes e fracos alternados representam planos. Em Fantasia. e prontamente os metais entoam harmonias fortes como que levando luz a um quarto escuro. e estes dariam a dinâmica de uma imagem (Arnheim.específicas dos elementos que constituem a imagem. 4. Em outras palavras. também. já na Sagração da Primavera. respectivamente. Seja qual for a interpretação. 1986:405). há mudança do plano cinematográfico. Em vários momentos. sendo a comparação de Arnheim mais comum de se verificar. como na Noite no Monte Calvo. existem certas analogias possíveis na música com a imagem que se aproximam de ambas as instâncias. na Dança das Horas e no Aprendiz de Feiticeiro. sendo que a questão da dinâmica musical forte-fraco varia imensamente na analogia visual de acordo com elementos que são proeminentes na coerência do discurso. o uso da dinâmica musical forte-fraco é utilizado em várias direções: Na Toccata e Fuga de Bach um acorde grave e sombrio está associado às trevas. por exemplo. e assim feixes de luz se sobrepõe conforme a progressão harmônica (aqui. ou de um ponto. a associação de forte e fraco é nitidamente mais rara. como por exemplo nas artes plásticas. em seu Ponto e Linha sobre Plano (1997). estão presentes. etc. Talvez seja sugerido que na música. Além da largura. alcança-se linhas mais e mais largas.Obviamente. Tais correspondências abrangiam. a linha melódica oferece o maior estoque de recursos expressivos. a duas possibilidades de construção na pintura: construcões simples são melódicas. construções complexas são sinfônicas. uma resultante de caráter. para além das notas mais graves do contrabaixo e da tuba. bem como mais os que virão. A maioria dos instrumentos musicais tem um caráter linear. viola e clarinete já produzem uma mais grossa. segundo a organização destes parâmetros. os elementos anteriormente citados. timbres. a linha opera exatamente na mesma Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 77 . flauta e piccolo produzem uma linha muito fina. Mas. Aqui. Ele próprio se refere. várias cores são produzidas pelas múltiplas cores de outros instrumentos. que pode ser comparada a outras instâncias similares.. sendo a melodia um elemento análogo à frase de um texto. Kandinsky usa a analogia com a música para descrever características de traço. contraste. O órgão é tanto um típico instrumento-linha quanto o piano é um instrumento-ponto. em O Espiritual na Arte (1996:133). todos os elementos constituintes mencionados. Há nela. de certa forma. O timbre dos diferentes instrumentos corresponde à abertura de uma linha: violino. O grande pintor russo Wassily Kandinsky (1866-1944) tinha uma grande afinidade com a música e frequentemente recorria a ela para estabelecer comparações entre esta e a pintura. e pelo meio de outros instrumentos mais graves. cores. bem como outras artes. linha e ponto: É bem sabido o que é uma melodia musical. em variados graus. para compor a estrutura da melodia. mas aqui chamo a atenção para sua análise no que diz respeito à melodia. ritmo. O Ouvido Pensante (1991). ou pelo grau de luminosidade. 1991) exemplos graficamente. A pressão da mão à aplicada pressão ao arco corresponde ao lápis. Mas. tornando o paradigma mais claro. A diferença entre as duas talvez tenha dado origem a uma inquietação exagerada. perfeitamente aplicada (Kandinsky. temos exemplos bastante elucidativos no livro de R. sonoros tanto os são que descritos os alunos Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 78 . nos salta o caráter eminentemente visual que pode adquirir a música nestes termos. Como utilização didática da expressão gráfica de um som. apesar de falar sobre diversos itens da teoria musical. que juntas nos ajudam a formar uma imagem com uma precisão maior de sentidos. Como o tempo e o espaço relacionam estas duas arte já é outra questão. tendo como resultado que os conceitos de tempo-espaço e espaçotempo ficaram muito distanciados um do outro. Murray Schafer. Schafer faz diversas experiências com o potencial criativo dos jovens alunos incitando-os a abrir novos horizontes sobre a escuta do som e da música. onde um complexo gráfico indica ao intérprete a natureza daquele som. Quase todos os seus Figura 15: Desenho de uma notação musical convencionada: A forma representa o som que seve ser obtido (Fonte: Schafer. e este tipo de representação do desenho melódico foi levada às últimas conseqüências na notação musical contemporânea.forma temporal e espacial à vista na pintura. Baseado em aulas de música ministradas nas escolas secundárias canadenses.1997: 86-87) Kandinsky aqui nos fornece uma variada gama de comparações. Os valores escalares do pianíssimo ao fortíssimo podem ser expressos pelo aumento ou decréscimo da intensidade da linha. para fins comparativos ou mesmo didáticos. Uma melodia musical pode ser expressa em termos gráficos. Para facilitar o entendimento do percurso melódico. traduzi-lo em termos sonoros. O exemplo da figura 14. cf. ou neblina. em Musicando a Semiótica (1997). ou seja. Schoenberg transcreve a melodia para um gráfico. Algumas dessas notações têm legendas. Ainda outra maneira de Figura 16: Linhas que reproduzem os contornos dos ‘desenhos’ que as notas percorrem na partitura (Fonte: Schoenberg. ao passo que outras são gráficos icônicos e indiciais. (Fonte. como no exemplo ao lado. 1997) Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 79 . por Luiz Tatit. figura 16. Figura 17: Análise da canção “Felicidade”. já em nível simbólico. (figura 15) tratando especificamente de comparar diversas linhas melódicas. Há representação gráfica também no Fundamentos da Composição Musical (1993) de Schoenberg. diz respeito à notação gráfica de um som que se assemelhava a um feixe de luz saído de uma cortina de fumaça. 1993) tratar esta relação no plano didático é na análise da canção feita pelo semiólogo Luiz Tatit. como a partir de um gráfico. Tatit. Os alunos de Schafer fazem os dois caminhos: tanto a partir de uma sonoridade. e dizem respeito a maneiras específicas de produzir sons. Sua análise é voltada basicamente para as confluências entre a intenção verbal das palavras cantadas e o percurso melódico da canção. possuem código próprio.escreveram para serem tocados quanto a anotação de um resultado sonoro duma improvisação qualquer. e para isso também se utiliza de recursos gráficos. representá-la graficamente. ‘Kontakte’. verificou que os recursos gráficos convencionais de notação musical já eram signos estabelecidos que tendiam à padronização interpretativa. onde encontramos sinais Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 80 . Assim. As diferentes tendências e resultados que a música contemporânea atingiu com estas experiências não são parte de nosso foco. O mesmo ocorre no exemplo da figura 19. do compositor alemão Karlheinz Stockhausen. Algo como interpretar musicalmente um quadro. mas que na verdade são capazes de dar diretrizes específicas na interpretação musical. sinais novos. Com isso em mente. a partir da Segunda Guerra tornou-se insuficiente para realizar experiências musicais levando em conta diferentes graus de interpretação aleatória. sem contudo padronizar a execução. indicações verbais e até o puro desenho de traço. por sua vez. 'Artikulation' (1958 figura 17) é um bom exemplo do potencial gráfico que a música sugere e viceversa. Artikulation (1958) (Fonte: Griffiths. ainda que com um potencial criativo por parte do intérprete substancialmente maior. se na história da música serviu muito bem aos compositores até o início do século XX. que.A música contemporânea. surgiram partituras que misturavam sinais convencionais. e sim o quanto a representação gráfica é capaz de possibilitar uma livre mas uniforme correspondência entre o som e a imagem: Esta visual da representação partitura do compositor húngaro György Ligeti. Normalmente há um glossário esclarecendo sobre a interpretação dos sinais gráficos. que o compositor nessas escreve deve condições considerar algumas relações naturais entre o desenho e o som para que a partitura seja efetivamente “lida”. para piano (1959-1960). Figura 18: Ligeti. 1994:150) Obviamente. buscaram novos sinais gráficos aparentemente aleatórios. certamente apenas os pontos em comum. criados para atuar em conjunto na partitura. ou seja. A linha melódica é freqüentemente associada ao traço do desenho. Assim. como no caso do cinema. os guias de referência legendados ou indicados. Entretanto. mas com uma abertura interpretativa Figura 19: Stockhausen: Kontakte (1959-60) (Fonte: Griffiths. a partir de uma determinada obra musical ou sonoridade indicada. e que pode ser estático ou contínuo. serão lidos da mesma forma e nos darão o índice de que se trata da mesma obra. comparando diferentes linhas melódicas com gráficos de seus percursos. o que certamente vai ao encontro das intenções da música moderna em libertar-se ao máximo das regras de composição esquemáticas tradicionais. o compositor tem em mente este potencial interpretativo aberto. e não está – como seria intuitivo pensar – somente ligada à música descritiva. O oposto também é verificado. e os Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 81 . há indicações convencionadas pelo pela compositor tanto como gramática musical vigente. Este procedimento é muito mais comum do que se imagina na elaboração crítica. agudos. ele anota apenas alguns pontos fixos de referência para o intérprete. poética ou ensaística da análise musical. se compararmos duas ou mais leituras de uma mesma partitura deste tipo.híbridos de escrita convencional e outros novos. é possível pensar em imagens gráficas ou pictóricas e assim verbalizar a sensação que o som nos causa. situam-se no patamar mais elevado de um plano qualquer. O exemplo mais óbvio desta relação é o citado por Schoenberg. Constitui-se na premissa de que os sons mais altos. Em ambos os casos. e sendo esta sua intenção. não há um código padronizado para leitura da escrita. 1994:151) substancialmente maior. Johann Sebastian Bach faz uso desta técnica com muita propriedade em sua música religiosa. e escalas descendentes. sendo as notas graves a sustentação dos ápices melódicos. com intervenções dos tímpanos graves. de grande poder sonoro. que situam com precisão a nota. 82 Dissertação de Mestrado – Filipe Salles . a sinfonia descritiva baseada na Divina Comédia de Dante Alighieri abre com os trombones baixos e tuba entoando notas seqüenciais primeiro ascendentes e depois descendentes. como no caso do Magnificat BWV 243. de maior freqüência.sons baixos. os trompetes agudos à glória de Deus em fortíssimo enquanto os graves movimentam a harmonia para as localidades desejadas. e portanto. Outro exemplo contundente é o início da Sinfonia Dante de Franz Liszt. elevando. como se descendo ao inferno (música tipicamente representativa). de comprimento maior. A música barroca desenvolveu o chamado baixo-contínuo8. a movimentos para baixo. escalas ascendentes são semelhantes a movimentos para o alto. Sempre uma linha de baixo acompanha em contraponto a melodia aguda. onde a sustentação harmônica é dada pelas notas graves. A linha melódica tendia a se manifestar nos registros agudos para a clareza de sua compreensão. já incorporada a nível arquetípico. para dar a sensação sufocante do inferno. A razão própria desta natural associação. graves. Da mesma maneira. mais propícia para a sustentação harmônica). Embora situada num universo bastante distinto daquele de Bach. enquanto que os sons graves. mas as notas graves não necessariamente remetem a uma simbologia telúrica ou infernal. Liszt. utilizou os metais graves. precisam de mais tempo para situar a mesma nota. por ser de identificação mais rápida pelo ouvido (comprimentos de ondas menores. talvez esteja na própria constituição física do som. acompanhamento melódico grave que tinha a função de situar a harmonia enquanto a melodia era desenvolvida nos timbres mais agudos. Assemelham-se às antigas catedrais góticas. marcada com números na linha do baixo. que tinham uma enorme base e subiam em formas cônicas e piramidais até o ápice. sendo que a música se porta da mesma maneira. em fortíssimo. neste caso. no patamar mais baixo. as cantatas. paixões e missas. 8 O baixo-contínuo foi um sistema de abreviação da harmonia. Primeiro. Conclui-se desta desigualdade de espaço que diferentes localizações são dinamicamente desiguais. As idéias musicais do recitativo da Nona nas cordas graves nos dão uma imagem semelhante de ascenção. Liszt e Beethoven. experimenta-se submissão passiva. mas a sensação ascendente não é prejudicada pelo fortíssimo do clímax do tema. Arnheim descreve assim a comparação das sensações advindas da observação de um elemento num espaço: “Levantar significa sobrepujar a resistência – é sempre uma vitória. as sensações obtidas são da mesma natureza. Descer ou cair é render-se à atração de baixo. elevação espiritual. e que justamente se aplica a diferentes instâncias.” (Arnheim. como que procedendo a identificação do caráter platônico em cada obra. Muito diferente de Bach. uma vez que a base das catedrais são pesadas e progressivamente mais leves. 1986:21). por exemplo. depois os graves fazem apenas o acompanhamento. o tema aparece pianíssimo. Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 83 . utilizou as cordas graves (violoncelos e contrabaixos) para anunciar o tema da Ode à Alegria. auxiliada por elementos timbrísticos. um ícone musical de esperança e fraternidade. temos. Beethoven inicia sua subida em pianíssimo. Temos nesse exemplo comparativo. com outros exemplos. uma constatação do paradigma representado pela sensação de subida e descida. sendo a dinâmica percorrida em contínuo crescimento nas cordas agudas até a explosão do tema fortíssimo nos metais médios e agudos (trompetes e trompas) acompanhados pela orquestra inteira. e também nos quesitos dinâmicos. elementos muito diversos atuando na Nona Sinfonia de Beethoven. em Bach. como os citados.Mas podemos observar. de subida. dinâmicos e harmônicos. um discurso musical inteligível. ainda que de maneira subconsciente. ou a imagens similares: considerando novamente a comparação entre as catedrais e a música de Bach. Apesar de utilizarem elementos formais muito diferentes. A linha melódica percorre. em termos formais. No Quarto movimento. cuja harmonia se move nos baixos (no classicismo e romantismo os registros médios tomam esta função). e por isso. portanto. o quanto elementos formais diferentes podem ser remetidos às mesmas sensações. descreve sentidos de movimentos em formas geométricas a partir de sensações naturais que o cérebro tem em seu arquivo de memória quanto ao peso. sendo uma seqüência de eventos temporais justapostos que criam uma unidade métrica qualquer. Ele próprio diz: ‘O pai do traço é o pensamento. não somente pela própria afinidade temporal que compartilham música e cinema. Essas sensações nos informam sobre as relações de tensão e relaxamento dos elementos do quadro. reconhece tais particularidades representadas e lhes dá valores que juntos hão de formar um jogo de forças tendo uma resultante que descreve sensações estáticas e dinâmicas num plano qualquer. dado pelo conjunto linha/peso. ritmo e rio estavam mais o etimologicamente relacionados. que pode ou não ser repetida. o ritmo está numa relação íntima da música com o cinema. Originalmente. Ritmo Diretamente associado ao movimento. ambas ligadas diretamente à questão do movimento. Murray Schafer descreve desta maneira o ritmo: Ritmo é direção. sugerindo movimento de um trecho que sua divisão em articulações (Schafer. em que vemos novamente a Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 84 . Como ampliar meus domínios? Acima deste rio? Deste lago? Desta montanha?’. Mas uma conseqüência direta desta relação é justamente a noção de ritmo.5. 1991:87) ou ainda “Ritmo é forma moldada no tempo como o desenho é espaço determinado” (Ezra Pound apud Schafer 1991:87). que em música se traduz pelas relações harmônicas. O cérebro. É como o traço numa pintura de Paul Klee. através da visão propriamente dita. ele também é elemento presente nas imagens estáticas. Embora o ritmo tenha natural afinidade com o cinema. volume e perspectiva de um objeto qualquer (1986:12-28).4. Arnheim (1986).3. Ritmo diz: ‘Eu estou aqui e quero ir para lá’. uma vez que a montagem do cinema é sua divisão temporal. São os tempos psicológicos que se alternam. ao usar ritmos longos em andamento rápido ou ritmos rápidos em andamento lento. 1991:87-88). em ponto ou contraponto. Obras de ritmo curto e rápido parecem-nos maiores do que realmente são. Mas isso também é verificado na regularidade rítmica aliada ao andamento (ou velocidade de execução). 1990b: 97) Este é um aspecto fundamental na união entre a música e a imagem. Eisenstein trabalhou sistematicamente sobre a questão do ritmo. como por exemplo. Tanto no cinema quanto na música a disposição rítmica é um fator de relevância ímpar. Eisenstein ainda nos dá uma idéia desta relação segundo a percepção de caráter que resultará de uma união consciente entre música e imagem: “não podemos negar o fato de que a impressão mais surpreendente e imediata será obtida. A solução deste problema de composição reside em encontrar a chave para a igualdade rítmica de uma faixa de música e uma faixa de imagem. Murray Schafer escreve: “Um ritmo irregular espicha ou comprime o tempo real.questão do espaço-tempo ser diluído numa resultante final (o ritmo não poderia deixar de fazer parte desta confluência uma vez que ele é uma das instâncias mais importantes para marcar a percepção do tempo de uma obra). pois justaposição ou sobreposição de ritmo e de movimento de imagem. causando efeitos curiosos nos ouvintes.” (Eisenstein. dando-nos o que podemos chamar de tempo virtual ou psicológico”. conforme o que já havia sido constatado por Arlindo Machado (1997) e Pierre Schaeffer (1993). ao passo que ritmos lentos nos parecem bem menores. (Schafer. é claro. nos darão sensações específicas segundo os objetivos pretendidos. e constatou o quanto os elementos rítmicos influenciam diretamente na maneira como é percebida a estrutura narrativa. a partir de uma coincidência do movimento da música com o Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 85 . O ritmo. Disse ele a este propósito: “No capítulo II discutimos a nova questão colocada pelas combinações áudio-visuais – a de solucionar um problema de composição totalmente novo. também é responsável pela dimensão temporal de uma obra. sua inversão. que acrescenta ou diminui a sensação de tempo do espectador/ouvinte. Por exemplo. aqui mais a propósito do cinema. considerando ritmos irregulares. notamos uma nítida necessidade de Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 86 . a intenção do compositor em descrever algo musicalmente ou utilizar um discurso musical por si mesmo será determinante na escolha da forma. está diretamente ligada à maneira como os elementos que constituem uma estrutura qualquer se engendram. e esta seria basicamente a diferença entre as obras chamadas ‘absolutas’ e as chamadas ‘descritivas’. 4. Tal arquitetura organiza sentidos de discurso musical da mesma maneira que a arquitetura convencional solidifica e organiza estruturas de construção.). e enfatiza o potencial ´rítmico´ destas linhas melódicas na arte do passado (Kandinsky. tal qual podemos constatar em Fantasia. Por isso podemos falar de uma ‘arquitetura musical’ como referência análoga à forma. com suas implicações matemáticas. veremos como o ritmo mescla-se ao movimento da imagem promovendo uma pontuação mútua de velocidade e intenção narrativa. análise da seção Sinfonia Pastoral. o ritmo aqui nos interessa pela correspondência direta que exerce sobre os movimentos visuais. Forma As formas musicais. De qualquer forma.6. 1996:134). A escolha da forma. em sua série de concertos intitulada Quatro Estações. com sua infinidade de estilos e diversidades próprias. desde a organização do movimento. até as sensações advindas das ‘Anamorfoses temporais’ (Schaeffer. 1993). há uma sonoridade interior. Kandinsky também irá referir-se ao ritmo na pintura de uma maneira bastante original.. ligadas à distorção do tempo que é percebido. e permite seu desenvolvimento para o fim desejado. Por exemplo.3. quando Vivaldi se aventurou a procurar representações da natureza na música. constituem estruturas por sobre as quais todas as funções da música são revestidas. ademais.”(Eisenstein. uma linha melódica. portanto. Em outras palavras. ‘enfatizador’ da própria idéia de movimento. propondo que em cada forma construtiva (visual). A idéia de ritmo é muito abrangente e pode ser esmiuçada de maneiras muito diversas..movimento do contorno visual – com a composição gráfica do quadro (. 1990b:106) E. que sintetizam o uso destes vários parâmetros supracitados. No capítulo 4. em especial nos concertos Outono e Verão. O mesmo se pode dizer de Beethoven em sua Pastoral. ela em si não tem a intenção de se remeter a nenhuma imagem extra-musical. Zarathustra e Alpensinfonie (ainda que diluídos). A forma. é índice da intenção do compositor. e o discurso visual tem um encaixe absolutamente perfeito com o discurso musical. Justamente algumas maneiras de estruturar a arquitetura para determinadas funções é que determinam a incidência ou não de imagens concretas predominantes na obra. não deixou de lado alguns esquemas formais padronizados para expressar certas imagens. valendo uma interpretação termo-a-termo que muito provavelmente se traduzirá em imagens abstratas (Como a Tocata e Fuga no Fantasia de 1939 e a V Sinfonia de Beethoven no Fantasia 2000). a forma-sonata em Don Juan. precisando de 5 movimentos ao invés dos 4 tradicionais. Utilizou a forma do rondó em seu Till Eulenspiegel. e já situa o ouvinte para diferentes universos visuais se houver pré disposição para tal. ao passo que obras menos descritivas abrem espaço para interpretações visuais paralelas ao sentido primeiro do compositor (como a Sagração.expandir ou diluir a forma tradicional do concerto grosso. o Quebra-Nozes. no Fantasia 2000. bem como o prelúdio e fuga na Sinfonia Doméstica. já constituem elementos descritivos extra-musicais que nos fornecem diretrizes de interpretação fora da estrutura própria da música. a Pastoral. Os Pinheiros de Roma de Respighi e o Concerto para Piano no.2 de Shostakovich – obra sem intenção descritiva nenhuma e que também tem um encaixe perfeito com o discurso visual proposto por Disney). Se o compositor se vale da pureza da forma-sonata. ao passo que intenções visuais na música engendram estruturas que no conjunto têm a intenção de gerar um discurso híbrido. Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 87 . A música mais ‘descritiva’ utilizada é o Aprendiz de Feiticeiro. Isso ocorre em Fantasia de forma proeminente. Modernamente. sendo que por vezes o próprio programa da obra (ou o conhecimento do discurso sobre o qual a obra foi baseada). e. portanto. até Richard Strauss. mestre da música descritiva. o tema-e-variações em seu Don Quixote. é preciso que o mesmo ocorra em nível macroscópico. mas quanta diferença há entre um dó maior da Sinfonia Júpiter. Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 88 . ou da Sinfonia Fantástica. São músicas de caráteres e climas muito diversos. Destarte. e sua correspondência é normalmente associada desta maneira.7. Harmonia (música) Harmonia aqui é tratada de duas maneiras distintas mas inter-relacionadas. em que uma harmonia qualquer toma determinado contexto em função de uma estrutura harmônica proposta. há diferentes caráteres que expressam a representação pretendida pelo compositor. estamos no conceito pitagórico de harmonia Na primeira distinção do termo. uma vez que não basta apenas combinar isoladamente os elementos intrínsecos do suporte e da linguagem utilizada. Um acorde de dó maior é sempre dó maior. dependendo do grau e função da harmonia utilizada. A segunda é a Harmonia no sentido pitagórico. porém.4. como vimos nos estudos de Goethe e Pedrosa. que se utilizam de funções harmônicas diferentes. Há uma clara analogia com a funcionalidade harmônica. por exemplo. Nessa dimensão. assim como mencionado por Newton. para designar a combinação dos elementos que compõe uma arte e determinam suas razões. se bem que por vezes seja comparada ao timbre. ou seja. da Sinfonia A Grande. a harmonia da sobreposição de freqüências sonoras entra em concordância direta com a harmonia de combinação cromática. A primeira é a ciência harmonia. que combina freqüências sonoras (notas) e que também atua nas cores do espectro pela mesma razão. que haja algum equilíbrio no conjunto da obra.3. Entretanto. tão utilizada pelos teóricos e filósofos da arte. conteúdos. a ciência harmonia é associada diretamente à cor e à luz da imagem. equilíbrio e perfeição formal. o acorde fundamental é o mesmo. Ambos estes aspectos parecem co-existir em todas as obras. em última análise. em todas está presente o componente ‘tempestade’. Como pudemos observar até aqui. possuem. enunciado por escalas ascendentes e descendentes curtas e Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 89 . como trovões e relâmpagos nos bumbos. de acordo com a necessidade de construção de cada suporte e/ou objetivo estético. Já Beethoven. uma abrangência muito grande. o que significa. ou escolher escalas ascendentes em instrumentos graves para simbolizar descidas. só precisou de uma orquestração clássica. gênero e suporte ser coerente e equilibrada em diversos graus. a Harmonia é abrangente e soberana. tornando a intenção original clara e passível de um vasto leque de interpretações simbólicas. Entretanto. Estes sistemas. esta harmonia tem a capacidade de fazer uma obra de qualquer tipo. Este é um conceito essencial para este estudo: há diversas maneiras de entender como se engendram as combinações entre a música e a imagem. só usou uma orquestra de cordas. e que talvez gere um número infinito de resultados diferentes para cada caso. que há diversos sistemas de representação capazes de reger a correspondência som/imagem. com reforço de trombones e piccolo. conforme dito no início do capítulo. dado o grande número de possibilidades combinatórias entre ambos. Por exemplo.3. as combinações variam em diversos graus. através dos vários exemplos citados. bem como a disposição e engendramento de suas partes em relação à intenção de uma obra. Harmonia (arte) Nesta segunda interpretação do termo. na Pastoral. pratos e tam-tans. Richard Strauss utilizou-se exatamente destes elementos. adotados em cada caso (como por exemplo situar a dinâmica segundo o movimento rítmico e não segundo o forte/fraco.4. E Vivaldi. em conjunto com outros (e até mesmo uma máquina de vento. representação direta) para descrever sua tempestade na Sinfonia Alpina. Como tal. entre diversos outros). sob diversos aspectos e pontos de vista.8. pois diz respeito ao conjunto de um todo qualquer. desde elementos bastante subjetivos até elementos puramente imitativos. de tal forma que respeita algumas regras arquetípicas. é possível descrever musicalmente uma tempestade de diversas maneiras. procuro um sistema cuja razão seja unificadora. nem óbvio. Para Pitágoras. Notemos que. é bastante claro que há sistemas de correspondência. mas por vezes alternando-se com longas linhas melódicas. Há outras situações em que a diferença de timbres será mais importante que o fato da escala ser curta. ópera. em que analiso a seção da Sinfonia Pastoral em Fantasia. desde pequenos minérios e gases até planetas e sóis. que enunciam diferentes situações em cada tempestade. do sentido pitagórico. estudos sinestésicos. podemos concluir que não é um fator objetivo. deixa em evidência o uso extremamente abrangente e inusitado de várias destas funções paradigmáticas. música visual. independente da Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 90 . O capítulo seguinte. E então. Aqui. mas é impossível enumerá-los todos. O que existe. é certo que existem sistemas. toda a matéria vibra em freqüências específicas. ou outro autor. Assim como a união de determinados sons (que também são de natureza vibratória) caracteriza a consonância ou dissonância de acordo com a interpolação das freqüências utilizadas. se quiséssemos tecer uma análise enunciando cada elemento correspondente do som e da imagem de uma obra. existiria um sistema que pudesse ser tomado como parâmetro para todos os casos? Se existe. sempre dentro de um universo precisamente delineado. estaríamos apenas estabelecendo o sistema de representação adotado por um autor em uma obra. música descritiva. Em suma. mas. de fato. ou até num conjunto de obras. que justamente caracteriza o tipo e estado de matéria (Hoje sabemos que isso é verdade. Mas. longa. são diversos estudos específicos sobre sistemas de correspondência determinados – Trilha sonora no cinema. Ora.rápidas. teríamos que apontar todas as exceções. rápida ou lenta. etc. assim também com a matéria. invariavelmente. sendo a matéria constituída por átomos e tais átomos vibram em certas freqüências). semelhanças e diferenças caso utilizássemos o mesmo sistema para estudar outra obra. cuja concordância tenha sido sistematicamente abordada e referenciada no decorrer da história por diversos autores – e me deparo exatamente com a Harmonia. pois senão todo este trabalho não teria sentido. os elementos de um todo também determinam a resultante deste todo.concepção estética de cada lugar ou época. Temos claramente a idéia do uno todo e coeso de uma obra de arte. que Platão utiliza para descrever as harmonias musicais mais propícias à educação dos jovens de sua República. assim como Schiller. Entra aí a concepção de ‘caráter’. Aristóteles evoca o mesmo sentido ao descrever o conceito de ‘todo’ e de ‘parte’ na sua Poética: “Pois não faz parte de um todo o que. se refere à harmonia neste sentido. pois todos os elementos que o constituem devem estar alinhados com seu objetivo. a imitação do caráter nobre. não altera esse todo” (Aristóteles. seu contemporâneo. que refaz no homem tenso a harmonia. Leonardo). e a isto ele chamou “Música das Esferas”. Este conceito foi desdobrado em múltiplas interpretações no decorrer da história. suas intenções estéticas (no caso da tragédia.. ele escolhe um tipo de harmonia compatível com o caráter que quer imprimir ao ouvinte. Ampliando este espectro. Em outras palavras. decorrente das vibrações de cada planeta. o fenômeno em si não deixa de existir. a harmonia (consonante ou não) é gerada pela choque de freqüências. a harmonia resultante. Schiller faz uso do termo harmonia exatamente neste sentido. O próprio Goethe. quer seja quer não seja. já citado. evocando a perfeita união das partes para determinados propósitos: “Estas (. a harmonia específica deste todo. pela beleza. ‘elevado’). como será demonstrado agora. A renascença foi prolífica no estudo e aprofundamento destes ideais. Pitágoras afirmava que o Universo todo produzia um grande acorde. já bastante mencionado. sendo compartilhado igualmente por cientistas (Copérnico. ou seja.. 1973:450). reconduzindo por essa maneira. segundo sua Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 91 . este que escreveu uma obra intitulada A Harmonia do Mundo) e artistas (Shakespeare.) limitações são superadas. recorrendo à arte para reunir o instrumental necessário. mas seu princípio é o mesmo: Assim como as notas escolhidas compõe o acorde. e a energia no homem distendido. Galileu e Kepler. ou “Harmonia das Esferas”. adota a mesma postura platônica em determinar que homens melhores farão uma sociedade melhor. em determinar o que é consonância ou dissonância. a harmonia entre as partes. temos diversas citações mesma natureza. direção e localização determinam-se mutuamente. e o todo assume o caráter de ‘necessidade’ de todas as partes. e. que.” (Kandinsky. portanto. na linguagem específica do cinema. todos os fatores como configuração. ou ‘consonante’) permeia todos os teóricos das artes desde Platão. modernamente. o estado limitado ao absoluto. teorizando sobre ela através de diversos termos comparativos à linguagem musical. de tal modo que nenhuma alteração parece possível. a unidade fundamental da arte. e para isso menciona. não é sinônimo de ‘simétrico’. e mais adiante. “Cada obra de arte se origina da mesma maneira como se originou o Cosmos: através de catástrofes que a partir do caótico fragor dos instrumentos formam enfim uma sinfonia chamada harmonia das esferas. independentes do processo. a precisão em administrar todos os elementos permitidos pelo suporte da linguagem escolhida para manifestar a idéia da maneira mais clara possível. a harmonia das partes em função da harmonia do todo. inválida.natureza. utiliza a montagem como instrumento. (Schiller. Essa forma final depende em igual medida do caráter da seqüência do filme (ou filme completo) como um complexo” (Eisenstein. ou mesmo de Eisenstein. “Muitas horas foram gastas para fundir estes elementos num todo orgânico” (idem. Uma composição desequilibrada parece acidental. E. como a de Kandinsky.” (Arnheim. visam ao mesmo objetivo. 1990b:53). que “Numa composição equilibrada. 1991:98). É notória a mesma busca. Eisenstein faz uso de determinados elementos para sistematizar o seu método de engendrar as partes do todo. Para isso. tornando o homem um todo perfeito em si mesmo”. 1986:13) Essa idéia de busca pelo belo e perfeito harmônico (que deve ser bem entendido. como ‘montagem polifônica’: “ devemos ter em mente que esta estrutura polifônica feita de muitas linhas independentes adquire sua forma final não apenas a partir do plano para o qual foi determinada previamente. e cuja manifestação artística é seu instrumento Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 92 . em seu capítulo sobre ‘equilíbrio’. transitória. ). o mesmo ideal de todo coeso que rege a natureza de qualquer arte. que busca. Rudolf Arnheim também deixa muito claro a necessidade última de todo artista buscar a unidade e a harmonia entre os elementos que constituem a obra de arte. 54). que é possível determinar algumas instâncias entre a correspondência som/imagem de maneira genérica.mais óbvio. um aspecto triste. etc. Em outras palavras. Podemos determinar. está no conteúdo. tais harmonias equilibram-se entre si. na análise da Sinfonia Pastoral. Veremos. Observemos. Tomemos novamente o exemplo da tempestade. staccato ou em pizzicato. Este é o elemento subjetivo. dentro do equilíbrio proposto. coordenando um todo orgânico que é a obra Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 93 . as diferenças formais entre a tempestade do Verão e a chuva do Inverno. mas que. Tão óbvio que. e. melancólico. não é possível quantificá-la racionalmente. que vai determinar o sentido exato da qualidade de associação. e é ele. melodia. portanto. de tal maneira que não é considerado como elemento fundamental segundo os quais os elementos irão unir-se para formar o todo orgânico que é a obra de arte. contemplativo. sensível. etc. os elementos devem estar dispostos segundo a harmonia deste equilíbrio. considera-se este ideal intrínseco à própria idéia de arte. invariavelmente. estes elementos subjetivos presentes e atuantes. efetivamente. não está na forma. para que ela efetivamente funcione. nas Quatro Estações de Vivaldi. Se compositores como Beethoven ou Schubert tivessem seguido rigidamente as cartilhas de harmonia. se o artista busca sempre um equilíbrio dinâmico para sua obra. pois o número de variáveis é infinito. que possui suas regras e sua gramática. através dos elementos formais precisar porque uma se assemelha à tempestade e a outra à chuva (andamento. existe a ciência da harmonia musical.. uma vez que. que não pode ser calculado ou quantificado.. sendo resultante do engendramento de seus elementos em uma determinada harmonia. uma chuva ou uma tempestade podem assumir caráteres muito diferentes. a título comparativo. não teriam escrito nem metade de suas obras tal como hoje conhecemos. portanto.). uso de escalas em legatto. Entretanto. há por trás um ‘caráter’. Mas não há como apontar ‘erros’ de harmonia em suas obras. Esse caráter. Se quisermos nos referir a um exemplo simples. e essa disposição estética não é mensurável. fundamental para a escolha de uma imagem que acompanhe a música. exaltante. a não ser segundo a necessidade da harmonia de um conjunto do qual faça parte. em geral. poderemos constatar o quanto os elementos que associam paradigmas semelhantes entre som e imagem são importantes. exaltando suas qualidades e acentuando a concepção estética da música. Dissertação de Mestrado – Filipe Salles 94 .cinematográfica. Aqui. pois são utilizados dentro de um concordância de caráter extrema.