Direitos humanos e espaços concretos: paralelos e reflexões acerca da experiência memorial em antigos centros clandestinos no Brasil e no Chile

June 9, 2018 | Author: Priscila C Almeida | Category: Documents


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Dir eit os Humanos Direit eitos na América Latina

Ozanan Vicente Carrara (Organizador)

Dir eit os Humanos Direit eitos na América Latina

Nova Petrópolis / São Leopoldo

2015

© Ozanan Vicente Carrara © Editora Nova Harmonia LTDA – 2015 Caixa Postal, 60. Nova Petrópolis/RS CEP 95150-000 www.editoranovaharmonia.com.br Conselho Editorial Alejandro Serrano Caldera – Nicarágua Amarildo Luiz Trevisan – UFSM Alejandro Rosillo Martinez – México Álvaro Márquez-Fernández – Venezuela Antonio Carlos Wolkmer – UFSC Antonio Rufino Vieira – UFPB Antonio Salamanca Serrano – Equador Antonio Sidekum – UFF – Presidente Antonio Vidal Nunes – UFES Avelino da Rosa Oliveira – UFPEL

Elisabeth Steffens – Aachen, Alemanha Enrique Dussel – Mexico Hector Samour – El Salvador Johannes Schelkshorn – Uni. Viena Jorge Miranda de Almeida – UESB Lindomal dos Santos Ferreira – UFPA Luiz Carlos Bombassaro – UFRGS Nadja Hermann – PUCRS Ozanan Vicente Carrara – UFF Raúl Fornet-Betancourt – Aachen, Alemanha

Revisão do português: Lúcia Maria de Assis Revisão do espanhol: Nivia Ivette Núñez de la Paz Diagramação e capa: Rogério Sávio Link Imagem da capa: Detalhe do Memorial da América Latina Parte da publicação deste livro foi patrocinado pela FAPERJ Impressão: Rotermund

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Direitos humanos na América Latina. / Org. Ozanan Vicente Carrara. Nova Petrópolis: Nova Harmonia / São Leopoldo: Karywa, 2015. 14x21 cm ; 222p. ISBN: 1. Direitos humanos; 2. Ditadura; 3. Tortura; 4. Ética; I. Título CDD 100; 320

Sumário 7 ............................................................................ Apresentação 11 ..................... A articulação empresarial-militar na cidade de Volta Redonda: violações aos direitos humanos da classe trabalhadora Alejandra M. Estevez Raphael J. da C. Lima

33 ................ Cidadania, interculturalidade e direitos humanos Aloisio Krohling Dirce Nazaré de A. Ferreira

45 ................. Direitos humanos: um desafio para a Filosofia da Libertação Antonio Sidekum Matheus S. Pedrosa

63 ...................... Direitos de cidadania e autodeterminação das comunidades indígenas no Brasil e especialmente na Reserva Indígena do Uaçá Paulo da Veiga Moreira

89 ................ Derechos humanos de los pueblos indígenas y los acuerdos de San Andrés Alejandro Rosillo Martínez

119 ............. El desafío de los niños migrantes no-acompañados (“Non Accompanied Migrant Children”) a los derechos humanos Mauricio Urrea Carrillo

131 ................... De los derechos humanos, la ciudadanía y una nueva cultura política: desafíos para una radicalización de la democracia Pablo Salvat B.

147 ............................ Valores morales – corrupción y derechos humanos en el Perú Luis E. Solís Acosta

163 ...................... El trabajo de asistencia y acompañamiento a víctimas de delitos de lesa humanidad en el marco de los juicios: la experiencia argentina Fabiana Rousseaux

171 ................................... Testemunho da Verdade e efeitos de reparação psíquica Vera Vital Brasil

191 ............. Direitos humanos e espaços concretos: paralelos e reflexões acerca da experiência memorial em antigos centros clandestinos no Brasil e no Chile Priscila Cabral Almeida

211 ................... Memória social e esquecimentos, de centro de tortura à “parque da cidade” Ana Paula Poll

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Direitos humanos e espaços concretos: paralelos e reflexões acerca da experiência memorial em antigos centros clandestinos no Brasil e no Chile Priscila Cabral Almeida* “están en algún sitio / nube o tumba están en algún sítio / estoy seguro allá en el sur del alma” (Mario Benedetti)

Em junho de 2014, estive em Santiago do Chile para fazer uma pesquisa de campo sobre os memoriais da ditadura militar chilena (1973-1990). Meu objetivo era compreender como estes espaços haviam sido reivindicados por atores sociais, de forma a criar uma demanda por políticas públicas de memória legitimadas pelo Estado chileno, no contexto de seu processo de transição democrática. Conhecer a trajetória, formulação e manutenção destes espaços foi uma tentativa de elucidar questões e traçar paralelos com a demanda atual por preservação e ocupação de espaços concretos1 da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), onde só recentemente pesquisadores têm iniciado uma reflexão mais sistemática acerca de suas possibilidades e limitações2. No Brasil, desde o golpe civil-militar até os dias atuais, os espaços onde ocorreram prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores ao regime foram identificados por sobreviventes por meio de variadas e fragmentadas iniciativas: processos civis levados a cabo por familiares de mortos e desaparecidos políticos, ainda durante o regime; denúncias, comemorações e homenagens de militantes e organizações de direitos humanos, que se avolumaram a partir da Lei da Anistia de 1979. No âmbito cultural, exposições e uma diversificada filmografia também repercutiram para dar visibilidade às práticas associadas a estes locais3. Apesar de incorporado recentemente no discurso dos direitos humanos, ainda não podemos falar em uma política pública consolidada de preservação destes locais no Brasil, mas sim de um esforço estatal para identificá-los. Com a publicação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em dezembro de 2014, reitera-se este esforço de identificação de

espaços utilizados pelo regime militar como tônica de um discurso pautado no esclarecimento sobre o paradeiro de desaparecidos políticos e de reafirmação da postura do Estado de superar a inacessibilidade a estes locais, muitos deles ainda utilizados e vigiados pelas instituições militares. Os processos de desapropriação e tombamento de edifícios para a construção de memoriais proporcionam a materialidade da memória, “unindo memórias soltas em referentes concretos” e, acima de tudo, reverberando a incorporação dos relatos do passado em espaços antes identificados por uma memória oficial opressora (LÓPEZ: 2011). No Chile, ao conhecer a experiência de conversão do antigo centro clandestino Villa Grimaldi em um espaço memorial para a promoção da paz, foi possível compreender como a construção de um arquivo oral das vítimas da ditadura que passaram pelo local foi fundamental para ancorar suas memórias e dar publicidade às suas experiências dolorosas. O projeto levado a cabo em Villa Grimaldi, a partir da importância dada aos testemunhos de suas vítimas, parece-me iluminador para refletir sobre a atual disputa em torno da ocupação da Casa da Morte de Petrópolis. A propriedade particular, e acima de qualquer suspeita, localizada na serra de Itaipava, no Rio de Janeiro, foi um dos poucos centros clandestinos utilizado pelos militares fora de suas instalações oficiais e identificados até hoje. A denúncia sobre a existência do espaço foi feita em 1979, através da entrega do testemunho de Inês Etienne Romeu4, sua única sobrevivente, à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ). Neste artigo não pretendo esgotar as particularidades do processo transicional brasileiro e chileno. O que proponho é iniciar um movimento reflexivo, a partir de um ensaio etnográfico, sobre estes dois espaços concretos: a Casa da Morte de Petrópolis e Villa Grimaldi. Ambos foram geridos pelo alto comando do exército nos anos de repressão, funcionando em instalações particulares e afastados dos grandes centros – Rio de Janeiro e Santiago, respectivamente. Reivindicados em conjunturas e temporalidades distintas, nos dois casos a disputa pela memória e desapropriação do espaço ganhou repercussão com os testemunhos daqueles que passaram por seus porões. Fazer o percurso de Villa Grimaldi permite-nos levantar questões sobre a trajetória de legitimação da Casa da Morte, os desafios na construção de um memorial às vítimas da ditadura civil-militar e os potenciais pedagógicos para a promoção dos direitos humanos. Além de nos indagar de que maneira é possí-

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vel dar ressonância a este espaço na atual fase de nossa justiça de transição, quando a figura da vítima e do testemunho carregam ambiguidades e não estão inscritas na memória oficial. Na primeira parte do texto, convido os leitores a fazer um percurso etnográfico por Villa Grimaldi, a partir de sua inscrição na trajetória de lutas e construção de uma política de memória no Chile. Villa Grimaldi – um ensaio etnográfico Um dos locais que elegi para compor meu itinerário em Santiago foi o Parque por la Paz Villa Grimaldi. Uma antiga estância rural do início do século XX, localizada no sopé da Cordilheira dos Andes, que, após o golpe de 1973, foi expropriada e transformada no centro secreto de sequestro, tortura e desaparecimento Cuartel Terranova5 pela Direción de Inteligencia Nacional (DINA6). Durante o período de 1973 a 1978, estima-se que em torno de 4.500 prisioneiros políticos passaram por suas instalações, dentre os quais 211 figuram como desaparecidos e, pelo menos, outros 18 foram executados7. Com mais de 200 espaços convertidos e/ou construídos para abrigar memoriais no Chile, a trajetória de Villa Grimaldi chamou-me atenção pelo seu pioneirismo e pela potência de seu projeto museográfico. O processo de disputa pela preservação e conservação deste espaço concreto teve início no final dos anos 80. Com o enfraquecimento do regime ditatorial chileno, o então diretor da inteligência militar vendeu o terreno para uma empresa de fachada, com intuito de demolir a antiga estrutura e erguer um novo e lucrativo empreendimento imobiliário. Atentos à manobra do militar para levar a cabo o apagamento e a destruição do local, associações de vítimas e de direitos humanos mobilizaram os moradores do entorno da comuna de Peñalolén para se opor à transformação do local e exigir que o bem fosse preservado (COLLINS; HITE: 2013, p.172). Acatado pelo prefeito, o bem foi desapropriado e tombado como patrimônio histórico. Restando apenas ruínas; em 1993, o Ministerio de Vivienda lança um edital para levantar propostas para a recuperação da memória do local, mesmo ano em que ativistas conseguem a aprovação do espaço como monumento nacional. Em 1997, a entrega da remodelação pelo projeto vencedor transforma o ex-centro clandestino em um “parque para a paz”. A partir dos relatos de ex-prisioneiros foi formulado uma interessante solução para a ressignificação do local. Dos azulejos remanescentes da demolição, familiares de mortos e desaparecidos e vítimas que passaram por Villa Grimaldi construí-

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ram mosaicos em forma de rios e de raízes para simbolizar a vida (ver Fotografia 1 e 2). Restando apenas as ruínas das antigas instalações utilizadas pelo exército, foram traçados, com tijolos remanescentes da demolição, o contorno de onde ficavam as celas, as salas de interrogatório, as salas de tortura, os espaços de confinamento e os locais de execução dos prisioneiros (ver Fotografia3). O percurso feito com o auxílio do audioguia remonta toda a dinâmica do lugar à época da ditadura. Logo de início, somos avisados pelo narrador que a maioria dos prisioneiros políticos eram levados até o local de olhos vendados e apenas conseguiam enxergar o chão; por isso todo o trajeto de Villa Grimaldi fora realizado a partir da perspectiva das vítimas: no solo foram mapeados e gravados cada espaço do centro de tortura e extermínio. Onde havia as celas, uma árvore tipicamente chilena foi plantada em cada uma delas, simbolizando a resistência e a vida. No portão em que os caminhões do exército entravam carregados de prisioneiros, foi inaugurado o memorial que, após a entrada de todos os seus visitantes, foi encerrado para sempre, simbolizando que ali nunca mais aconteceriam as violações perpetradas no passado. Fotografia 1 – Mosaico de Villa Grimaldi em formato de rio e raízes

Fonte: produção do próprio autor.

A parte mais desconcertante do trajeto é o monumento final, chamado de Monumento Rieles (ver Fotografia 4). Seu formato é de um cubo feito com chapas de aço, porém disposto no solo a partir de seu vértice, como forma de questionar o pragmatismo levado a cabo naquele antigo centro. No monumento, há uma porta preta, grande e pesada. Quando visitamos o seu

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interior, apenas algumas luzes indiretas são acesas perto de uma vitrine, onde estão dispostos os rieles, que são barras de ferro. Esses instrumentos eram utilizados para amarrar os corpos das vítimas, que eram encaminhados ao aeródromo do outro lado da rua, enfileirados em helicópteros e jogados no mar do Pacífico. A descoberta da prática realizada pelos militares foi desvendada quando o corpo de uma jovem militante se desprendeu de seu riel e foi descoberto na praia de Valparaíso. A seguir, vários rieles foram encontrados por barcos de pescadores e, posteriormente, expostos em Villa Grimaldi, para figurar neste impactante monumento. Ao vermos as barras de ferro, um som ensurdecedor das ondas do Pacífico completa toda a experiência sensível e sensorial. Fotografia 2 – Mural indicando instalações do ex-centro clandestino

Fonte: produção do próprio autor.

Saí do local bastante abalada e logo tomei um ônibus para retornar ao meu albergue. Sentada no banco do ônibus, de costas para o motorista, indaguei-me se aquela experiência tão devastadora tinha valido a pena. Naquele mesmo momento, olhei para a paisagem que se distanciava e avistei a Cordilheira dos Andes. Na minha ida, em momento algum tinha percebido a sua presença. De uma forma bastante metafórica, pensei que tinha sido doloroso demais passar por aquele espaço, mas que, ao final da experiência, tendo a representação materializada da experiência dolorosa de suas vítimas, era possível enxergar com mais clareza o que estava ao meu redor. O papel do memorial chileno havia surtido efeito em mim.

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Fotografia 3 – Tijolos indicando espaço das celas e árvores plantadas simbolizando a vida

Fonte: produção do próprio autor. Fotografia 4 – Monumento Rieles

Fonte: produção do próprio autor.

Não há dúvida que a elaboração da museografia de Villa Grimaldi, aliada a uma ressignificação poética do espaço, aproxima o espectador da dor dos outros. Entretanto, o que potencializa essa experiência é uma narrativa bem alicerçada na figura da vítima e do desaparecido político, a partir de uma compreensão consciente das prerrogativas dos direitos humanos. A experiência da transição chilena, neste sentido, mesmo com “percal-

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ços, injunções e conflitos” que caracterizaram seu processo, foi efetiva no sentido de incorporar em sua agenda política um processo efetivo de justiça de transição logo após o regime ditatorial (SARTI: 2014, p.78-9). Brito (2004) afirma que, de todas as transições ocorridas no Cone Sul, o caso chileno foi o mais limitado posto que os militares conservaram maior poder e legitimidade, mantendo a autonomia do exército e o conhecido fator Pinochet. Apesar das reformas institucionais e da procura por justiça não terem sido bem sucedidas, Os sucessos, que apesar de tudo, se alcançaram foram fruto da unidade da oposição, conseguida através da formação de sucessivas alianças, desde meados dos anos 80, e que culminou com a criação da Concertação de Partidos para a Democracia (CPPD8). (BRITO: 2004, p.170)

Em 1990, mesmo ano em que a CPPD foi criada, o presidente Patricio Aylwin criou a Comissão Nacional para a Verdade e Reconciliação (CNVR) para esclarecer as violações aos direitos humanos que resultaram em mortes e desaparecimentos entre 1973 e 1990. O relatório final teve enorme êxito de vendas, a partir de sua publicação como livro e suplemento de um jornal nacional. Apesar da direita e dos militares não pedirem perdão por seus crimes, a narrativa do relatório foi adotada como verdade oficial, culminando na aprovação de uma Lei de Reparações, em 1992, beneficiando mais de 7.000 pessoas. Brito acrescenta que, no mesmo ano, também foi criada “a Corporação Nacional para Reparação e Reconciliação (CNRR), que estabelecia legalmente o “direito inalienável” dos familiares de encontrar os desaparecidos” (BRITO: 2004, p.167). Limitada aos desaparecidos políticos durante o regime de Pinochet, apenas em 2004, a partir da publicação do informe da Comissão sobre Prisão Política e Tortura, foi possível identificar oficialmente 40.018 vítimas que sofreram privação de liberdade e tortura por razões políticas. Foi a partir do mesmo informe que foram identificados 1.156 recintos destinados à detenção e tortura, em sua maioria, localizados em instalações militares, onde também foi revelada a existência de diversos centros clandestinos que funcionavam deliberadamente em sítios e imóveis adquiridos, e mesmo apropriados a força, para fins repressivos (LÓPEZ: 2011, p.133). Ao identificar esses espaços, o governo chileno reiterou uma via para a reivindicação política de familiares de desaparecidos e ex-prisioneiros políticos por políticas de memória voltadas para a preservação, ocupação e manutenção desses locais. Com mais de 200 memoriais em funcionamento no país, hoje o Chile possui, dentro do Programa de Di-

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reitos Humanos do Ministério do Interior, um departamento destinado a “obras simbólicas”. Entretanto, uma análise crítica do funcionamento deste organismo evidencia problemas na gestão de recursos para manter os espaços. Segundo Collins e Hite, A pesar de ser el principal organismo estatal dedicado a este assunto, su pantilla es mínima y su capacidade presupuestaria no alcanza a cobrir la demanda. En 2012, las modestas ambiciones de la oficina se vieron reducidas a un puñado de subvenciones monetárias destinadas a finalización de obras e o a arreglos de daños ocasionados por el terremoto en las ya existentes. Según señalo el organismo, aparte de essas labores, el financiamento de obras nuevas y el mantenimiento de las existentes debiera correr a cargo de las autoridades locales. (COLLINS; HITE: 2013, p.167-8)

Ainda segundo os autores, ao convidar o conjunto da população chilena a adentrar no passado recente através de monumentos e espaços comemorativos, os resultados produzidos no Chile são inapreensíveis e problemáticos. Além da alternância do poder entre a direita e a esquerda, muitas vezes, tornarem contraproducentes as políticas públicas em torno dos memoriais, o próprio fato de alguns centros clandestinos não fazerem parte do cotidiano cidadão ou político cria uma geografia periférica da comemoração, transformando, em alguns casos, estes espaços concretos em grandes mausoléus de pouca ressonância cultural, pedagógica e política (COLLINS; HITE: 2013, p.166). Para os autores, no caso chileno, o único museu de impacto é o Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, um edifício idealizado e projetado durante o primeiro mandato da presidente Michelle Bachelet (2006-2010). Localizado em frente à estação de metrô Quinta Normal, no coração de Santiago, o museu recuperou diversos acervos particulares, assim como documentos impressos e audiovisuais, compondo uma narrativa focada nas vítimas de graves violações aos direitos humanos praticadas pelo Estado chileno durante a ditadura de Pinochet. Figurando como museu mais visitado no país, hoje difunde a memória chilena através do lugar de fala das vítimas, além de fomentar iniciativas e uma reflexão sistemática acerca dos processos memoriais no Chile. Neste sentido, apesar do potencial museográfico de Villa Grimaldi, este espaço concreto ainda é marginal para o imaginário político chileno, quando comparado ao Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos. Apesar de seu pioneirismo, sua iniciativa ainda é mais reconhecida por visitantes estrangeiros e por organismos internacionais. No Chile, o seu circuito isolado – e pouco comentado na mídia – acaba por ser mais reco-

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nhecido pelo seu círculo imediato de participantes: familiares de mortos e desaparecidos e sobreviventes (COLLINS; HITE: 2013). Villa Grimaldi ainda se mantém com recursos inseguros, provenientes de projetos financiados pelo Estado e iniciativas privadas. Esses projetos abarcam a coleta de testemunhos para seu arquivo oral, assim como atividades educativas e lúdicas em seu interior que, com o decorrer do tempo, vem se adaptando e aperfeiçoando para manter ativo o memorial. Tendo em mente a experiência levada a cabo em Villa Grimaldi no contexto da transição democrática chilena, convido-os, a seguir, a conhecer a trajetória de identificação e disputa pela memória do ex-centro clandestino brasileiro, conhecido como a Casa da Morte de Petrópolis. Casa da Morte de Petrópolis – trajetória de um testemunho A Casa da Morte de Petrópolis foi uma casa alugada pelos militares no município de Petrópolis, por cujo nome ficou conhecido um dos poucos centros clandestinos de que se tem conhecimento até hoje. Em 1979, com a entrega do testumenho de Inês Etienne Romeu à Ordem dos Advogados (OAB-RJ), foi denunciada a utilização desse local pelos militares, durante os anos 70 (ver Fotografia 5), como centro de tortura e extermínio. Fotografia 5 – Fachada da Casa da Morte de Petrópolis

Fonte: Jornal A Verdade10

Redigido em 1971, enquanto ainda estava em recuperação na Casa de Saúde Santa Maria, o testemunho de Inês Etienne denunciava os maus tratos sofridos, as características físicas e

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comportamentais de seus algozes e a vinculação do espaço com a alta hierarquia do Centro de Informações do Exército (CIE9). A repercussão do testemunho foi veiculada por diversos órgãos de imprensa em fevereiro de 1981, quando a vítima e uma caravana organizada pela OAB-RJ foram ao local e tiveram um encontro com o proprietário da casa, Mario Lodders, que, durante toda a sabatina feita pelos advogados, negou ter conhecimento do que se passava na casa, mas que apenas a havia emprestado a um amigo. Naquele mesmo ano, Inês Etienne Romeu denunciou publicamente o médico-assistente de torturas, Amílcar Lobo, atuante na Casa da Morte. Em 1986, o médico lançou seu livro de memórias e concedeu entrevistas a jornais impressos, afirmando sua atuação na casa e a ligação direta do espaço aos oficiais do CIE. Em acontecimentos mais recentes, podemos destacar o vídeo-depoimento prestado por Ubirajara Ribeiro de Souza ao procurador da Justiça Militar Otávio Bravo (2011), o livro de memórias do ex-agente da polícia civil Cláudio Guerra (2012) e os depoimentos oficiais de Marival Chaves (2013) e do ex-tenente-coronel Paulo Malhães (2014), prestados à Comissão Nacional da Verdade, que confirmam a existência do centro de extermínio, ou “casa de conveniência”, alcunha utilizada pelos militares. A força que ganha o testemunho de sua única sobrevivente faz com que a Casa da Morte de Petrópolis seja o foco de uma campanha iniciada em 2010 pelo Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, com o apoio de grupos de movimentos civis, para a desapropriação do imóvel e sua posterior ocupação por um memorial pela Liberdade, Verdade e Justiça. A desapropriação do imóvel, em 2012, pela Prefeitura de Petrópolis foi uma primeira conquista em direção à legitimação e ressignificação do espaço. No âmbito estatal, a incorporação da Casa da Morte como caso especial de investigação sobre o paradeiro de desaparecidos políticos e identificação das estruturas utilizadas pela repressão para prisão, tortura e extermínio dão um peso inconteste em relação à preservação histórica do local como medida de reparação simbólica. Durante todo seu período na Casa da Morte, Inês imprimiu em sua memória todos os detalhes que seus sentidos foram capazes de absorver: o som dos latidos de um furioso cão dinamarquês de codinome Kill, conversas trocadas ao telefone com um homem de nome Mário, os quatro últimos números de um telefone mencionados por um de seus algozes, a inscrição espacial de cada cômodo da casa, as iniciais do CIE bordadas nas roupas de cama, assim como a marca do trauma das sevícias sofridas e da tortura psicológica de cada um de seus carcereiros, posteriormente des-

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critos com detalhes minuciosos em seu testemunho. Através de diálogos com seus torturadores, Inês escutou histórias de nove prisioneiros que tinham passado pela casa e que saíram desta sem vida. O objetivo da chamada “casa de conveniência” era prender as principais lideranças de esquerda, executando-as ou transformando-as em informantes infiltrados do Exército. Esta última possibilidade foi a que permitiu que Inês saísse do cárcere com vida. Em seu testemunho, Inês afirma ter assinado documentos em branco e gravado uma fita de vídeo em que afirmava ser colaboradora da repressão – algo que nunca se subjugou a fazer após sua soltura – como forma de ser liberada do cativeiro e iniciar uma articulação para legalizar sua prisão. Entregue à sua família em fins de agosto de 1971, Inês foi transferida para a Clínica Pinel, em Minas Gerais, para receber tratamento psicológico e cuidar das feridas físicas sofridas pela tortura. A legalização de sua prisão foi realizada em 1973, quando foi transferida para o Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, resultado do julgamento de inquéritos policiais militares (IPM) relativos à sua atuação em ações da luta armada. Foi exatamente durante sua recuperação na clínica mineira que Inês redigiu seu testemunho. Sendo constantemente vigiada e visitada na clínica pela polícia política – que a ameaçava de morte ou de prejudicar a vida de seus familiares por saber demais –, Inês enviou seu testemunho para sua rede familiar e de amizade, assim como uma cópia e uma carta-testemunho para seu então advogado, Augusto Sussekind de Moraes Rego11. O testemunho de Inês é escrito em tom de denúncia. Nele, tudo que ouviu, viu e sentiu na pele foram pormenorizados. A preocupação era de denunciar todos aqueles que atuavam dentro da Casa da Morte, assim como delatar de que forma a estrutura da casa estava vinculada à inteligência do exército e, acima de tudo, revelar o que poderia ter sido o destino final de alguns presos políticos até hoje desaparecidos. Mas o testemunho só irromperia o espaço público em 1979, uma semana após a libertação de Inês da prisão por conta da promulgação da Lei da Anistia. Redigido ainda durante o período mais violento do regime militar, o relatório não tinha o objetivo de vir a público. O testemunho, enquanto uma memória subterrânea12 (POLLAK, 1989), parte integrante de uma cultura minoritária e dominada que se opunha ao discurso de uma memória oficial, no caso a memória nacional legitimada pelos militares, foi trabalhado em silêncio e cuidadosamente preservado por pessoas de sua confiança para aguardar o momento político favorável para sua irrupção. Em pleno regime militar, Inês sabia que não era possível denunciar seus carcereiros, mas via em seu depoimento uma

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forma de esclarecimento caso viesse a falecer pelas mãos da polícia política. No trecho que extraímos de sua carta-testemunho notamos como a narrativa de uma única sobrevivente ganha uma dimensão coletiva, por seu imperativo moral e um dever de memória (TODOROV, 1995) para com todas as vítimas, familiares e a sociedade brasileira pela busca da verdade. Querem que eu morra “naturalmente”, sem que sejam responsabilizados pela morte que me impingirem. (...) Encaminhei a diversas pessoas um longo e circunstanciado depoimento sobre os dias de meu cativeiro, narrando fatos ocorridos na casa onde fiquei presa (torturas e mortes de diversas pessoas) e casos que me contaram e onde identifico alguns de meus carcereiros. Se eu morrer, essas pessoas divulgarão o documento no País (se a censura deixar) e no exterior, para que um dia se esclareçam fatos obscuros e se registre na história do Brasil os nomes e as patentes dos torturadores que se escondem sob a proteção do Governo. Se eu morrer, peço-lhe que requeira nova autópsia, pois podem falsear a “causa mortis” e a data de meu falecimento. Se eu morrer, quero que todas as circunstâncias de minha morte sejam esclarecidas, ainda que demande tempo, trabalho e sacrifício, menos em minha memória, mais em nome da honra do País em que nasci, muito pela decência de minha Pátria e de meus compatriotas. Quero manifestar, ainda, a minha vontade de ser sepultada em Belo Horizonte e que seja assegurada à minha família o direito de me proporcionar o recebimento dos sacramentos religiosos.13

O testemunho de Inês Etienne Romeu, assim como tantas outras memórias subterrâneas, foram fundamentais durante o período da transição para criar laços de coesão social entre as vítimas e familiares atingidos pelo estado castrense. Porém, não podemos afirmar que o trabalho de enquadramento da memória das vítimas do período esteja impressa no imaginário nacional, constituindo uma nova narrativa oficial. Este trabalho, que prescinde de credibilidade, aceitação e organização, vem sendo lentamente construído a partir de vitórias e retrocessos na construção de políticas públicas de memória, pautadas no discurso transnacional dos direitos humanos. Em 2010, a partir de um abaixo assinado online instaurado pelo Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, iniciou-se o movimento pela desapropriação da antiga Casa da Morte e a criação do “Centro de Memória, Verdade e Justiça” de Petrópolis. A campanha, apoiada pelo Grupo Tortura Nunca Mais e pelo

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Comitê Petrópolis em Luta, contou com a organização de atos públicos em frente ao local, como forma de criar adesão da sociedade civil, dar visibilidade à reivindicação na mídia e pressionar a Prefeitura de Petrópolis pela desapropriação (ver Fotografia 6). A primeira vitória veio com a confirmação da desapropriação do imóvel no do decreto assinado por Paulo Mustrangi, prefeito de Petrópolis, em 20 de agosto de 2012. Com o decreto, o Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis e a Ordem dos Advogados do Brasil iniciaram uma articulação com a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e a Comissão Nacional da Verdade para que adotassem providências junto ao Executivo federal para destinar recursos para a criação do memorial. Fotografia 6 – Coletivos em campanha pela desapropriação da Casa da Morte de Petrópolis (s/d)

Fonte: Divulgação Comitê Petrópolis em Luta

O ofício encaminhado à CNV, em dezembro de 2012, é acatado pela então presidente Rosa Cardoso, que entende ser a Casa da Morte de Petrópolis de utilidade pública para as investigações da comissão, assim como um espaço importante na busca pelo direito à memória e à verdade sobre os desaparecimentos forçados do período da ditadura. Neste ponto em que a Casa da Morte encontra-se em pleno processo de legitimação, parece-nos relevante compreender duas dinâmicas que compõem a sua representação enquanto lugar de memória da ditadura: um espaço concreto que se inscreve enquanto documento e monumento. Estes conceitos, cunhados por Le Goff (1990), a partir da noção de alargamento das fontes para a disciplina histórica, revelam que se, por um lado, a edificação perpetua a recordação por sua re-

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presentação monumental, também se torna objeto do conhecimento histórico e documento para compor a narrativa da justiça de transição brasileira, inicialmente a partir da CNV. Enquanto documento, a casa permite a articulação de diversas linhas investigativas sobre o paradeiro de mortos e desaparecidos e das estruturas criadas pela CIE para perseguir e exterminar opositores de esquerda. O cruzamento de fontes – atestados de óbito da região, testemunhos de agentes da repressão, plantas baixas, registros patrimoniais – permite o alargamento deste novo documento e a análise da condição de sua produção, para lançar novas perspectivas de seu uso enquanto instrumento de poder dos militares. Como monumento, a Casa da Morte de Petrópolis é resultado do esforço de grupos organizados para “impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias” (LE GOFF: 1990, p.548). Portanto, é no campo das representações que o testemunho de Inês Etienne Romeu, a partir de toda a trajetória de ressignificação durante o processo transicional brasileiro, pode ter o seu enquadramento mais bem acabado. Na incessante busca de familiares de desaparecidos políticos e pelo enfoque dado pela Comissão Nacional da Verdade à Casa da Morte como ponto de partida para esclarecimento das mortes de ex-militantes de esquerda que ali tiveram seu destino final, a patrimonialização do espaço possui um simbolismo “monumental” para rememorar os mortos que compuseram a resistência contra a ditadura civilmilitar brasileira. Considerações finais O ponto de contato entre a trajetória de Villa Grimaldi e a Casa da Morte de Petrópolis situa-se em duas questões de fundo: primeiro, seu funcionamento clandestino pelo aparato militar durante o período ditatorial; segundo, pela possibilidade de ressignificação e ocupação do espaço a partir de testemunhos de sobreviventes. No caso chileno, apesar das diversas fraturas políticas que circundam seu processo de transição, o papel que ganhou um bem desenhado Programa de Direitos Humanos logo após o final da ditadura foi fundamental para iniciar processos de reparação e criar demandas sociais por políticas de memória. A ampla divulgação de seus informes – cuja prioridade foi dar visibilidade aos testemunhos de familiares de mortos e desparecidos, exprisioneiros políticos e opositores torturados – permitiu a oficialização de uma narrativa a partir da figura da vítima da ditadura chilena, alicerçada em sua experiência subjetiva e, principal-

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mente, no seu reconhecimento a partir de uma noção de direitos (SARTI: 2014, p.82). Esta narrativa oficial construída no Chile, hoje, vê-se bem materializada a partir da experiência de sucesso do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos (2010). Em seus muros, encontram-se todos os parágrafos da carta de direitos do homem, e no seu interior, as memórias são contadas a partir do olhar da vítima. Sem a mesma ressonância, projetos de espaços concretos como Villa Grimaldi não deixam de enfrentar desafios no presente. Um deles é a própria “fragmentação e atomização das organizações de base que reivindicam a memória coletiva” (COLLINS; HITE: 2013). Entretanto, o constante esforço de mudanças na concepção de Villa Grimaldi e uma constante vigilância comemorativa, assim como sua divulgação na comunidade científica e de organizações de direitos humanos no plano internacional permitem que esta expressiva experiência esteja ancorada neste espaço concreto desde 1997. No Brasil, as iniciativas em busca da memória e da verdade partem de diferentes atores, posicionados em lugares de enunciação distintos e muitas vezes conflituosos, resultando na construção de diferentes versões sobre a ditadura e sobre o que deve ser a nossa justiça de transição. Marcado por longas temporalidades para rever o seu passado, somente a partir dos anos 90, teve início um plano mais abrangente de reparação econômica de familiares de mortos e desaparecidos e de ex-perseguidos políticos. O alto grau de continuidade política também gera entraves no que tange à busca pela verdade e pela inscrição de uma nova versão oficial do passado, como a recusa dos comandos militares de abrirem publicamente seus arquivos do período e a reiteração da interpretação bilateral da Lei da Anistia14, impedindo avanços na luta por justiça. O desafio da transição no país está justamente em internalizar os direitos humanos no seio da sociedade, através de processos de conscientização que garantam a recuperação das memórias vinculadas aos crimes cometidos durante a ditadura (LÓPEZ: 2011). Nesta verdadeira batalha pela memória, o processo de transformação de espaços concretos em memoriais pode ganhar força enquanto política de memória adotada pelo Estado, a partir das recentes recomendações publicadas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2014). No entanto, algumas questões apresentam-se como obstáculos daqui em diante: a falta de uma política pública bem estruturada para preservar e manter estes espaços e a ausência de um enquadramento da figura da vítima.

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Koselleck (1997), em seus estudos sobre os monumentos públicos aos mortos pela segunda guerra mundial, sinalizou a importância de compreender as identificações que esses monumentos comemorativos pretendem instaurar. Enquanto monumento, a Casa da Morte é o resultado de tensões, que demonstra um esforço coletivo dos vivos de dar sentido às mortes das vítimas que passaram por esse espaço concreto. Como monumento em homenagem aos desaparecidos políticos, reverbera a luta de sujeitos que, em vida, elegem os mortos que são dignos de suas homenagens. Pelo conteúdo simbólico de exemplaridade de sua morte, mas principalmente pelas marcas dolorosas que a ausência dessas pessoas causou para estes indivíduos/famílias, a Casa da Morte carrega este peso simbólico de um espaço da morte que, ressignificado no presente, se traduz na narrativa da resistência e luta pelo retorno da democracia – visto que a figura da vítima ainda não é consensual e bem desenhada. Os desafios que se colocam à manutenção da Casa da Morte de Petrópolis enquanto espaço concreto da ditadura reside na própria ressonância que terá no imaginário social após a implantação do memorial. Além de preocupações estratégicas em relação à narrativa museográfica e às ações pedagógicas que serão realizadas, a casa, localizada na Rua Arthur Barbosa, no bairro de Caxambu, por estar afastada da região central de Petrópolis, em uma rua sem saída e pela ausência de marcadores que façam sua distinção, ainda permanece como moradia comum do município de Petrópolis. O atual esforço em mapear os espaços concretos utilizados pelo aparato militar, portanto, necessita fundamentalmente de uma política pública estruturada e organizada, que permita que esses locais sejam materialmente mantidos por iniciativas privadas ou estatais, e que os inscrevam na narrativa patrimonial de caráter nacional e no mapa das cidades, na chave de exemplaridade15 cunhada por Todorov (1995). En el campo de las mediaciones simbólico-discursivas, basadas muchas veces en relatos míticos, fundantes y recorrentes sobre la Nación, el patrimonio cumple un rol estratégico: presenta las pruebas materiales que servirán de referente a través del tiempo, de la idea de Nación que convoca a los ciudadanos. (LÓPEZ, 2011: p.134)

Inscritos na noção de “bem comum”, a Casa da Morte de Petrópolis e demais lugares de memória da ditadura civil-militar brasileira podem ser um locus fundamental para a construção de um novo entendimento sobre o passado recente, se trilhado e conquistado um espaço institucionalizado para suas reivindicações e desenvolvimento. Dessa maneira, para além de lugar de celebração dos vivos, para ancorar e rememorar a memória de seus entes queridos mortos pela ditadura, podem contribuir para a constru-

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ção de uma consciência cidadã e internalização dos direitos humanos, que tenham ressonância mais abrangente no imaginário social e nas dinâmicas de construção das identidades. Referências bibliográficas ALMEIDA, Priscila Cabral. Lugar de memória da Resistência: verdade e negociação no processo de tombamento do prédio do DEOPS-SP. In: Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na Ditadura de 1964. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p. 269288. ANTONINI, A.V. Marcas da memória: o DOPS nas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural no centro de São Paulo. 2012. 68f. Trabalho de Graduação Individual (TGI) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. COLLINS, Cath; HITE, Katherine. Fragmentos de memoriales, silencios monumentales y despertares en el Chile del siglo XX. In: COLLINS, Cath; HITE, Katherine; JOIGNANT, Alfredo (org.). Las políticas de la memoria en Chile desde Pinochet a Bachelet. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2013. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014. HEYMANN, Luciana. O “devoir de mémoire” na França contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006. 27f KOSELLECK, Reinhart. Les monuments aux morts comme fondateurs de l’identité des survivants. In: _____. L’expérience de l’histoire. Paris, Seuil; Gallimard, 1997. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1990. LEME, Carolina Gomes. Ditadura em imagem e som: trinta anos de produções cinematográficas sobre o regime militar brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2013. LISSOVSKY, Mauricio; AGUIAR, Ana Lígia Leite e. The Brazilian dictatorship and the battle of images. In: Memory Studies, published online, 8 October 2014. LÓPEZ, Loreto. Derechos Humanos, patrimonio y memoria. Museos de la memoria y sitios de conciencia. In: ERAZO, Ximena; RAMÍREZ, Gloria; SCANTLEBURY, Marcia (Editores). Derechos Humanos: Pedagogía de la Memoria y Políticas Culturales. Santiago: LOM Ediciones, 2011.

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NEVES, Deborah Regina Leal. O desafio da preservação da memória da ditadura: o patrimônio histórico em questão. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. ANPUH, São Paulo, julho 2011. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, n.10, p.7-28, dez.1993. PISTORI, Edson Claudio, SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Memorial de Anistia Política sai do papel. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça, Brasília, n.1, p.114-132, jan./jun. 2009. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3, p.3-15, 1989. SARTI, Cynthia. A construção de figuras da violência: a vítima e a testemunha. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 77-105, jul./dez 2014, p. 77-105. SOARES, Inês Virgínia Prado; QUINALHA, Renan Honório. Lugares de memória no cenário da justiça de transição. In: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n.10, p.75-86, junho/ 2011. TODOROV, Tzevtan. Les abus de mémoire. Paris, Arléa, 1995.

Notas Historiadora, Mestre em Memória Social pelo PPGMS-UNIRIO e Doutoranda em História Política e Bens Culturais pelo PPHPBC-FGV. *

No Brasil, o conceito “lugares de memória” cunhado por Pierre Nora (1993) vem sendo utilizado recorrentemente para designar os espaços de memorialização da ditadura civil-militar. Neste texto, optei por utilizar a ideia de “espaço concreto” apenas para diferenciar os locais onde a repressão atuou concretamente (in loco), em oposição aos espaços memoriais construídos a posteriori. 1

Para compreender o crescimento da demanda por lugares de memória da resistência no Brasil, consultar SOARES; QUINALHA (2011). Para ilustrar a iniciativa de construção de monumentos e memoriais no Brasil a partir da abertura política, consultar LISSOVSKY; AGUIAR (2014). Sobre o Memorial da Resistência em São Paulo, primeiro e único memorial desenvolvido em antigas instalações da polícia política (DEOPS-SP), consultar ALMEIDA (2014), ANTONINI (2012) e NEVES (2011). Sobre o projeto do futuro Memorial da Anistia, desenvolvido pela Comissão da Anistia e financiado pelo governo federal, via Ministério da Justiça, consultar PISTORI; SILVA FILHO (2009). 2

A historiadora Andrea Forti (2014) mostra como a exposição Pequenas Insurreições – Memórias, realizada em 1984, na sede da Associação Brasileira de Imprensa de São Paulo (ABI-SP), foi realizada com o intui3

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to de comemorar os cinco anos da Anistia de agosto de 1979 e de inaugurar a campanha pelo tombamento do arco de pedra que restou do antigo Presídio Tiradentes, espaço de encarceramento de diversos prisioneiros políticos. Com pesquisa voltada para a análise da filmografia sobre o período ditatorial nos últimos 30 anos, a socióloga Carolina Gomes Leme (2013) destaca o filme Lamarca (1996), no qual o diretor Sérgio Rezende teve o cuidado de identificar, por meios de legendas e referencias verbais, as instituições onde os frades dominicanos foram torturados (Ministério da Marinha, Dops e DOI-CODI) e presos (Presídio Tiradentes). Em Zuzu Angel (2006), também dirigido por Sérgio Rezende, Leme aponta que o filme deixa claro que a estrutura da repressão era um sistema organizado e que abarcava as mais altas patentes das Forças Armadas, destacando a Base Aérea do Galeão como local de tortura e morte do militante de esquerda Stuart Angel Jones. Inês Etienne Romeu nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, em 1942. Em Belo Horizonte concluiu seus estudos em História e trabalhou como bancária no Banco de Minas Gerais, onde já participava do movimento sindical e estudantil. Integrou a luta armada durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) como militante e dirigente das organizações de esquerda Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop). 4

De acordo com o website oficial de Villa Grimaldi, outros centros secretos funcionaram nos mesmos moldes do Cuartel Terranonova. Considerando apenas aqueles localizados em Santiago, destacam-se Londres 38 (“Cuartel Yucatán”), José Domingo Cañas (“Cuartel Ollagüe”), Irán 3037 (“Venda Sexy” ou “la Discoteque”). Para mais informações acessar . 5

"A Direção de Inteligência Nacional foi criada em 1974, mediante o Decreto-Lei N° 521, ditado em 14 de junho. (...) A DINA era um serviço de segurança autônomo dedicado exclusivamente à repressão dos partidos políticos de esquerda e das organizações sociais. Estava integrada por pessoas de ramos distintos das Forças Armadas, Carabineros e Investigações, ao que se agregaram na qualidade de agentes pessoais provenientes de grupos ultradireitistas”. Para mais informações acessar ou consultar o Informe de la Comisión Verdad y Reconciliación (1990). 6

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Para mais informações acessar .

Em 1990, esta coligação de partidos de oposição que integrava socialistas e democratas cristãos ganhou as eleições no Chile. O presidente eleito foi Patricio Aylwin, que instaurou imediatamente uma multipartidária Comissão para a Verdade e Reconciliação (CNVR). (BRITO: 2004, p.166) 8

“O Centro de Informações do Exército (CIE) foi criado em 2 de maio de 1967, pelo Decreto n. 60.664, no governo do presidente Costa e Silva, subordinado diretamente ao gabinete do ministro do Exército. Ao CIE cabia orientar, coordenar e supervisionar todas as atividades de segurança interna e contrainformações, concorrendo com a 2a seção do Estado-Maior, também encarregada dessas atividades”. De 9

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acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o CIE também se especializou em infiltrar militares nas organizações estudantis e sindicais, comandou algumas das principais operações de repressão política e manteve centros clandestinos de tortura e execução de presos políticos, como a Casa da Morte de Petrópolis. O relatório acrescenta que “nesse centro, o CIE atuava em coordenação com os DOI-CODI (Destacamentos de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), retirando presos de suas dependências, alguns de outros estados, e levando para Petrópolis”. (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: 2014, p.157-158) 10

Disponível em: . Acesso em abril de 2014.

Depoimento de Inês Etienne Romeu à OAB em 5 de setembro de 1979. Data de Acesso: 5/jun/2014. 11

No trecho a seguir, Pollak explicita o que caracteriza as memórias subterrâneas: “O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição de cartas políticas e ideológicas.” (POLLAK, 1989: p.5). 12

Depoimento de Inês Etienne Romeu à OAB em 5 de setembro de 1979. Data de Acesso: 5/jun/2014. Grifo meu. 13

No plano simbólico, a Lei da Anistia promoveu o que a pesquisadora Luciana Heymann (2006) caracteriza como uma predominância do léxico da conciliação e da cordialidade que, com os anos, promoveu um “excesso de esquecimento” sobre o período, esvaziando o debate público em relação ao passivo da ditadura. O lugar político da memória no Brasil, portanto, perpassa pela luta constante de “resgatar” e “ressignificar” a memória do período, mais por iniciativas e combates individuais do que por imperativos morais. 14

O conceito de “memória exemplar” foi cunhado por Todorov (1995) a partir da oposição com o conceito de “memória literal”. Analisando o possível perigo dos usos da memória, em um período, em que existe um excesso da mesma, criam-se essas duas categorias para destacar a importância de elaborar critérios para seus usos políticos. “El uso literal, que convierte en insuperable el viejo acontecimento, desemboca a fin de cuentas en el sometimiento del presente al pasado. El uso ejemplar, por el contrario, permite utilizar el pasado con vistas al presente, aprovechar las lecciones de las injusticias sufridas para luchar contra las que se producen hoy día, y separarse del yo para ir hacia el otro” (TODOROV, 1995: p.32). 15

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