Direito subsidiario

March 17, 2018 | Author: Maria José Camarão | Category: Roman Law, Canon Law, Statutory Law, Portugal, Case Law


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Como direito subsidiário deve entender-se aquele que é utilizado nos casos que o direito comum não contempla. Ou seja, naquilo que podemos designar de lacunas do ordenamento jurídico. O carácter incompleto do ordenamento jurídico obrigava constantemente a recorrer às fontes subsidiarias, que assim obtinham, muitas vezes, um lugar de maior relevo e de mais larga aplicação do que o próprio direito pátrio. O direito subsidiário assume então um papel de excepcional relevo como elemento de aproximação cultural entre os povos, fazendo que os respectivos ordenamentos jurídicos mantenham entre si uma unidade muito mais acentuada do que pode suspeitar-se através da diversidade das suas normas legais ou consuetudinárias. As grandes fontes de direito subsidiário começaram por ser, em Portugal, logo no século XIII, o direito romano e o direito canónico, inaugurando a esse titulo um longo reinado de quase seis séculos, que só seria abalado na segunda metade do século XVIII com a vitoria das ideias iluministas e jusnaturalistas. Da mesma forma que se tinham tornado a grande fonte inspiradora da actividade legislativa dos monarcas, as compilações de direito romano e canónico passavam a constituir a fonte inesgotável de soluções concretas dos problemas jurídicos a que os tribunais podiam recorrer para suprir as lacunas de uma legislação ainda extremamente incompleta, e dum direito consuetudinário cada vez 1 mais ultrapassado, adquirindo, assim, um domínio de aplicação cada vez mais amplo do que os das próprias fontes jurídicas nacionais. No entanto, as compilações romano-canónicas, nesta primeira fase da sua vigência subsidiária, só eram acessíveis a um escasso numero de eruditos que tinham formado através deles o seu espírito jurídico nas universidade estrangeiras ou, a partir de D. Dinis, na Universidade Portuguesa.1 A sua utilização directa pouco podia ultrapassar os limites do Tribunal da Corte e de alguns Tribunais Canónicos, já providos por juízes com formação universitária. Mas, aah época, abundavam ainda os juízes conselheiros de eleição popular, os tribunais municipais, que mesmo ávidos da novidade que significavam para eles os textos romano-canónicos, eram incapazes de manusearem as suas disposições ou mesmo de compreenderem a língua latina em que encontravam redigidos.2 1 A data da fundação da Universidade portuguesa pelo rei D. Dinis, na cidade de Lisboa, foi durante muito tempo considerada incerta, podendo apenas apontar-se como “termo a quo” o dia 12 de Novembro de 1288 e como “termo ad quem” o dia 9 de Agosto de 1290: o primeiro, por ser a data da expedição da carta em que vários prelados de ordens religiosas e de igrejas seculares comunicavam ao Papa Nicolau IV terem acordado com D. Dinis em que as rendas das varias igrejas que lhes estavam confiadas e de que o rei era padroeiro fossem aplicadas aah fundação dum Estudo Geral na cidade de Lisboa, solicitando do pontífice a necessária aprovação e confirmação; e a segunda, por ser a data da bula De statu regni Portugaliae, do mesmo papa, dirigida “aah Universidade dos mestres e escolares de Lisboa”, - que pressupõe, portanto, já juridicamente instituída e entrada em funcionamento - . a aprovar a sua fundação e a outorgar-lhe diversos privilégios. Nela, o papa, alem de confirmar a fundação do Estudo e de aprovar a sua dotação com as rendas eclesiásticas que lhe haviam sido afectadas, outorga aos mestres e estudantes privilégios e determina que nela possam os escolares obter o grau de licenciados em Artes, em Direito Canónico e Civil e em Medicina. 2 Pode afirmar-se que, durante todo o século XIII, a justiça comarcah, em Portugal, continuou a ser exercida, fundamentalmente, pelos juízes municipais, de eleição popular (os alcaldes, juízes ou alvazis, de que falam os forais 2 antes de aparecerem traduções para português do Código de Justiniano ou das Decretais de Gregório IX. que nos primórdios do Reino de Portugal se recorrem como direito subsidiário. Não eram mais do que certas obras doutrinais de origem castelhana. com vista à sua mais fácil utilização pelos nossos tribunais municipais. Estas versões portuguesas eram utilizadas como direito subsidiário – em razão da inspiração romanística que possuíam – demonstra-o sobejamente o facto de se apresentarem copiadas num código organizado expressamente para uso dos juízes municipais da Cidade da Guarda. Estes “textos de segunda mão”. em cujas disposições o direito romano e o direito canónico tinham deixado a sua influência.Foram estas razoes. como lhes chama o Professor Braga da Cruz. a “textos de segunda mão”. Todas estas obras. particularmente. Falamos de obras do Mestre Jacome das Leis. marca indelével das reminiscências do Reino de Portugal. ora criado. bem assim como das duas famosas colectâneas jurídicas devidas aah iniciativa de Afonso X. quer na versão portuguesa quer na sua versão original castelhana. e os “Nueve Tiempos de los Pleitos”. então. em conjunto com o Foral (fuero breve) e os foros e costumes do mesmo concelho e com as principais leis 3 . foram. o SABIO: “O Fuero Real” e as “Siete Partidas”. alcançou entre nos a mais ampla divulgação. e a ultima. como as “Flores del Derecho”. fundamentalmente. traduzidas para português. tal como cita o Professor Doutor Paulo Mereha. em meados do século XIV (1361). são extremamente significativos. de certos protestos feitos. pode dizer-se que a sua divulgação entre nós foi ainda muito mais vasta que a dos textos acabados de referir. mas ainda a noticia. Pelo que toca às “Siete Partidas”. em detrimento dos textos de direito romano ou em detrimento dos textos de direito canónico. Ao espírito do tempo repugnava cada vez mais aceitar que os tribunais remetessem. ao tempo promulgadas. a ponto de ter vindo a constituir uma importante fonte da primeira grande codificação portuguesa.gerais do Reino. no campo dom direito subsidiário. Estes protestos dirigidos ao Rei contra a primazia dada às “Siete Partidas”. a sua abusiva aplicação. a título subsidiário. As noticias que temos a esse respeito. que possuímos. sobre os textos de direito romano e canónico. que foram as Ordenações Afonsinas. em vez de recorrerem directamente aos textos romano-canónicos. pois vem confirmar a ampla aceitação que essa famosa colectânea castelhana alcançou em Portugal. as “Siete Partidas”. Que esta obra foi fonte subsidiaria de direito em Portugal mostra-o não só a existência de numerosas copias e traduções. são suficientes para podermos afirmar que as Decretais de Gregório IX já em 1359 se achavam traduzidas para português e que. João I 4 . no reinado de D. (1383 a 1433) – em data incerta. E no all todo que este o proemyo em sua força afora naquello de que ell ffez de craraçomper hua carta que sobrello enuyou a p. tendo o monarca mandado que esses textos fossem acatados nos tribunais como direito subsidiário. annes Lobato a qual uos podera mostrar…” Mais conclusivo é a carta regia de 18 de Abril de 1426. por explicar as medidas tomadas para obter a unificação jurisprudencial e as que entendia dever tomar no mesmo sentido e porque. Duarte. A partir do reinado de D. já ao tempo co-regente do reino por associação de D. cujo teor se conhece pelo denominado Livro dos Pregos. Começa o rei. João I. bem como da respectiva Glosa de Acursio e dos respectivos Comentários de Bartolo. antes de 1426 – foi feita por ordem do próprio monarca uma tradução portuguesa do Código de Justiniano. de qualquer modo. entendidas elas conforme a interpretação conferida 5 . com efeito. o infante D. o sistema das fontes subsidiárias ai sofrer um processo de redefinição. Havia já determinado que as causas fossem julgadas (desembargadas) por uma tradução ou translado das leis do Código de Justiniano. dirigindo-se ao “Corregedor e juízes e Justiças da cidade de lixboa. E a el praz que aquella pena dos beens sse tire aos juízes e procuradores. Num alvará de 19 de Maio de 1425. mas. Temos ai o que hoje se denominaria uma exposição de motivos. E quaesquer que esto ouverem de veer” refere ter falado a el-rei seu senhor “sobre a pena que he scripta no proemio do bartallo per que percam os beens os juízes e procuradores se julgarem e precurarem fora daquello que ell ordena. João I. que começa pela valorização da opinião de Bartolo. cada preceito (a lei. Pelo disposto no texto traduzido e segundo o sentido que lhe houvesse sido fixado em esclarecimento.pelas glosas de Acursio e pelas conclusões de Bartolo. não deixam de suscitar dúvidas. deveriam futuramente ser decididos os feitos. a fim de evitar as dúvidas resultantes da tradução e sempre no sentido de tornar unívoca a jurisprudência entendia fazer acompanhar em princípio. pelos desembargadores do Paço e pelo 6 . Como há outras doutrinas que sustentam de a carta de 1426 conferia força vinculativa à Glosa. pelo corregedor da corte e por três ouvidores. isto é. Estes dois documentos. estes pontos. segundo as Ordenações Afonsinas. e têm sido efectivamente discutidos. 3 Tribunal superior – também designado por Tribunal da Corte ou por Casa da Justiça da Corte – que. qual a posição relativa da autoridade de Acursio e Bartolo? É discutível. mas quanto a Bartolo apenas erigira uma tradução do comentário como autentico proibindo o uso de outro qualquer texto desse comentário que não o referido traslado. pelo chanceler-mor. pelos desembargadores do Paço. a Glosa de Acursio e os Comentários de Bartolo seriam meras fontes subsidiárias. era presidido por um regedor ou governador (o primeiro magistrado da justiça depois do Rei) e constituído pelos doutores (vocábulo cujo significado rigoroso nesta circunstancia se ignora). pelos doutores. mesmo sendo a carta de 18 de Abril mais explícita. Agora. havendo quem entenda que nestes dois diplomas o Código de Justiniano. Funcionava este tribunal supremo em duas secções ou mesas: uma. Estas interpretações vão-se chocar com o valor atribuído à opinião de Bartolo no Regimento Quatrocentista da Casa da Suplicação3. exceptuados os casos mais claros. Os comentários de Bartolo constituíam fonte principal e directa ou mera fonte subsidiária? Isto é. a principal. o comentário bartoliano) de um esclarecimento ou decretação. pelo juiz dos feitos de elrei. formada pelo regedor. nas hipóteses em que tal se verificasse. a glosa. ou mercê. mesmo que a Corte se deslocasse. a resolução das petições dirigidas ao soberano. de facto. a outra. que se elevasse para três o numero de mesas. com o nome de Casa da Relação. como perdão e comutação de penas e. juntavam-se ambas para decidir. pelo corregedor da corte. Se se verificasse empate de votos numa secção. o que. os casos cuja última resolução dependia da intervenção do monarca. Filipe I de Portugal que extinguiu a Casa do Cível de Lisboa e criou outra no Porto. tinham a seu cargo os de graça. a ela subiriam Os agravos das demandas cujo valor excedesse 8 marcos de prata. com a lição dos juristas intermédios – com a primazia a Bartolo. a conclusão a que podemos chegar é que no mais alto tribunal do pais o que entendia prevalentemente de aplicar era o direito romano. no entanto. Acentue-se. manifestamente. inclusive no próprio reinado de D. em 27 de Julho de 1582. cumpria aos ouvidores. E a ela subiriam todas as apelações e agravos dos corregedores do crime e juízes da cidade (ou de quaisquer outros). nas Cortes de Coimbra de 1472. A posição de Acursio é secundária em relação a Bartolo. Esta a regra geral. no entanto. pelos ouvidores e por alguma pessoa autorizada que o monarca lhes agregasse. E se aquele subsistisse. exceptuados. na segunda. entre outros negócios de justiça. por vezes cometia o rei aos ouvidores da corte o julgamento de causas cuja jurisdição pertencia aah Casa do Cível. deu novo regimento aah casa da Suplicação. conhecerem de todas as apelações cíveis e crimes para cujo julgamento a Casa do Cível não tinha competência específica. 7 . no caso do rei ou a Casa da Suplicação se encontrarem em lugar diferente do da Casa do Cível. igualmente. com algumas excepções. tal como anteriormente subiam aah Casa do Cível. desembargaria aquela as apelações do lugar (e de cinco léguas em redor) e que. na primeira mesa. algumas vezes se verificou. assim. prevalecia o voto a que se acostasse o regedor. E. nos casos graves ou difíceis.Nele distingue-se o dito de Bartolo da declaração ou determinação e antepõe-se. Os desembargadores. o direito romano e o direito pátrio. determinaram que. reestruturando os tribunais superiores. Com base na demora que se verificava no despacho dos feitos. propuseram os povos. podia o regedor reunir alguns ou mesmo todos os vogais das duas secções. alem dos negócios de justiça. estatuindo a sua fixação em Lisboa. que dependia da vontade do monarca determinar as excepções. As Ordenações Manuelinas. Afonso V (1438-81). Mesmo podendo colocar-se a questão de saber se neste Regimento foi desvirtuado o pensamento de D. Todavia. João I. ORDENAÇOES AFONSINAS O legislador tem a preocupação de acentuar no seu proémio a prioridade do direito nacional sobre o direito romano e a autoridade juiz e procurador dos feitos de el-rei. que parece demonstrar que a revisão já estava concluída – pelo menos ate ao livro II. em 1447. ou. talvez nenhuma definição quadre melhor ao verdadeiro sentido aqui dado à expressão do que a de Correia Telles «Chamava-se estilo o uso acerca do modo de praticar o 8 . fundamentalmente. Afonso V (1438 a 1421).dos seus cultores. Sabe-se que Rui Fernandes terminou a obra na Vila de Arruda em 28 de Julho de 1446. nos começos de 1448). como um problema de conflito de jurisdições entre o direito romano e o direito canónico. inclusive – em 27 de Agosto de 1447. em meados do século. para dignificar o reinado de D. Foi o que veio a ser feito. como um problema de conflito entre o poder temporal e o poder religioso. cuja noção e requisitos variavam bastante segundo os autores. E a primeira nota é a da questão de ser ai apresentada. O primeiro problema de que ai se trata começa logo por ser uma questão que nada tem que ver com o conflito de jurisdições entre a Igreja e o Estado: o da prioridade absoluta que deve ser dada. como em ordenar o valor das opiniões de Acursio e Bartolo. ainda que muitos outros sucessos não tivessem vindo imortalizar o nome desse monarca – para estabelecer pela primeira vez entre nos uma regulamentação cuidada e minuciosa do problema do direito subsidiário. portanto. em certo sentido – e mais profundamente ainda -. e que a compilação foi seguidamente revista e emendada por uma comissão constituída pelo próprio Rui Fernandes e mais três jurisconsultos. estilos da corte 5ou costumes 4 O problema da data das Ordenações Afonsinas não esta ainda inteiramente esclarecido. Mas há um documento. mais provavelmente. Afonso V (o mais tardar. nos pleitos a julgar. para que já chamaram a atenção José Anastasio de Figueiredo e João Pedro Ribeiro. Pode assim dizer-se que as Ordenações Afonsinas adquiriram vis legislativa ainda em 1446 ou. só por si. ao disposto nas leis. em nome de D. 5 Conquanto os estilos da corte sejam um conceito de contornos mal definidos. com a promulgação das Ordenações Afonsinas (1446 ou 1447)4 Aproveitou-se efectivamente o ensejo da elaboração da primeira grande codificação nacional – monumento legislativo que honra acultura jurídica portuguesa de quatrocentos e que seria bastante. tendo sido por fim publicada ainda durante a regência de Infante D. Pedro. então. e acrescentando a que as Leis mandão». deve dar-se a preferência ao direito canónico. se porventura preconizarem soluções diversas para o caso sub Júdice: . e – nesse momento. guardando-as. um rigoroso critério de prioridades entre os dois sistemas normativos. os estilos da Corte e o costume). O problema do direito subsidiário surge só deste ponto em diante. excepto se da sua aplicação resultar pecado. ainda que. e nos problemas jurídicos de ordem espiritual ou nos problemas de ordem Temporal em que a aplicação do direito romano possa implicar pecado. E. quando o caso de que se trata não for regulado pelas fontes imediatas acabadas de apontar (as leis do Reino. ai designado simplesmente pela expressão leis imperiais. em princípio. isto é. Os estilos da corte serão. a propósito da aplicação deste critério do pecado. para onde o legislador remete directamente o preenchimento das lacunas do ordenamento jurídico pátrio. entre as leis imperiais. Estabelece-se. 9 . porventura. o que nom devemos a consentir». seja diversa a solução perfilhada a esse respeito pelo direito romano. ao direito romano. sim – surge em toda a sua acuidade a questão do conflito entre o direito romano e o direito canónico. a jurisprudência uniforme e constante dos tribunais superiores quanto à praxe de julgar (embora não quanto ao conteúdo das decisões). necessariamente trazeria pecado ao possuidor. «se em tal aso se guardasse as Leis Imperiais. e os santos cânones. a prioridade pertence.Nos problemas jurídicos de ordem temporal. assim. dizendo que. que o direito romano admite e o direito canónico repudia. exemplifica o legislador com o caso da prescrição aquisitiva em favor do possuidor de ma fé.do Reino. finalmente. Para o Professor Duarte Nogueira. A lei romana teria o 10 . Se o caso omisso não puder ser resolvido directamente pelos textos do direito romano ou do direito canónico nos termos que ficam indicados. se nem assim for possível encontrar solução para o caso a julgar. e à santa Igreja. na insuficiência desta. cuja decisão ficara a valer como lei para todos os casos similares. mandam então as Ordenações Afonsinas recorrer à Glosa de Acursio e. como a conveniência de evitar confusões e disparidades no domínio jurisprudencial. do mesmo modo devendo proceder-se na hipótese de o caso não envolver matéria de pecado e ser omisso nos textos de direito romano. do que os Cânones procedem». alegando-se como motivo desta preferência absoluta de Bartolo não só a pratica seguida nesse sentido desde o reinado de D. a favor da Glosa de Acursio e da autoridade de Bartolo: “…a remissão genérica feita no início (…) para as Leyx Imperiaaes e Santos Cânones poderia interpretar-se pelo que imediatamente se refere no artigo (…) seguinte do mesmo título. mas encontrar solução diversa no direito canónico e nas «grosas. à opinião de Bartolo. Joao I e a generalizada crença numa maior razoabilidade da opinião desse jurisconsulto. há que proceder a uma restrição ao âmbito de aplicação do direito canónico. E. contraria. deve o assunto ser levado á apreciação pessoal do monarca. porem.isso uma curiosa justificação complementar. e Doutores das Leyx». qual seja a da obediência que em tal caso é devida «ao Padre Santo. inclusivamente na hipótese de os demais doutores serem de opinião. Este tradicional modo de ver tem sofrido ultimamente. contestação. na interpretação proposta pelo Professor Duarte Nogueira utilizar-se-ia a “Glosa e a ‘opinio’ imediatamente na falta de ‘Corpus Juris’”. Em oposição à tese expendida. em acordo com o Direito Romano. o Direito Romano constituía 11 . Dizem os Professores Rui e Martim de Albuquerque que temos que concluir que o Direito Canónico era fonte subsidiaria. quando estatuísse nos casos nele omissos e. que se baseia na ideia de concorrência ou rivalidade entre as duas grandes ordens jurídicas medievais – a romana e a canónica – pode sustentar-se ser necessário não esquecer que se houve rivalidade houve também simbiose. Na falta de lei romana não seria de aplicar o cânone. pois. passando-se imediatamente à Glosa de Acursio e à Baroli opinio”. Basicamente. mesmo que este contemplasse a questão. como diria sugestivamente Pierre Legandre no seu estudo sobre o significado do Utrumque Ius.carácter de direito comum. Por seu turno. reconhece o mesmo autor. sempre que se tratasse de matéria espiritual ou temporal quo agebatur de pecato. sendo preterido pelo canónico em matérias espirituais e nas temporais de pecado. o problema esta em saber se nos casos em que a lei romana nada dispusesse em matéria temporal fora de pecado haveria lugar à aplicação plena do Direito Canónico fosse direito subsidiário para alem dos casos de matéria espiritual e temporal que agebatur de pecato. representa também uma síntese. Assim. Esta expressão. se evoca uma dialéctica. dentro do âmbito subsidiário. apenas. nas hipóteses de desacordo. antes de Acursio e Bartolo. Que o direito prudencial continua sendo fonte jurídica revela-se a cada momento neste período – em cartas régias. Só uma vez esgotadas todas estas possibilidades se recorreria a Acursio e. ao ordenar que em certas hipóteses se guarda a opinião de Bartolo. maxime. As próprias Ordenações Afonsinas invocam frequentemente o parecer dos Doutores (fala-se também muitas vezes dos letrados) para fundamento das suas disposições. por outro lado. isto é. por ultimo sublinhar que nas Ordenações Afonsinas não se encontra um quadro completo das fontes de direito – basta dizer que não há qualquer alusão ao direito foraleiro e que o direito prudencial. a Bartolo. quando não fosse contrariada pela opinião geral ou comum dos mesmos. dispõe a compilação afonsina eu isso se fará não embargante “que os outros doutores diguam o contrairo” ou “que alguns outros Doutores diguam o contrairo” (as duas formulas aparecem nas redacções manuscritas que chegaram ate nos e vem assinaladas na edição impressa) e no § 3 estatui-se para o caso de conflito das grosas. Importa. depois. leis. 12 . Destes passos se poderá deduzir que a opinião de Bartolo valeria mesmo que contra ela tivesse a dos demais doutores ou que vincularia se tivesse contra ela apenas alguns doutores. bem como no caso de matéria temporal que não fosse pecado.direito subsidiário quando em conformidade como canónico e para alem deste. que a opinião dos Doutores constituía fonte jurídica susceptível de ser atendida pelo rei em desfavor do direito canónico. enfim nos mais diversos documentos e actos. e Doutres das Leyx com o texto dos cânones. sentenças. No § 2. a opinião comum dos doutores apenas ai aflora de forma indirecta e implícita (§§2 e 3). e mandou prosseguir os trabalhos de revisão. Era crença generalizada que sim. 13 .6 que a breve trecho foi substituída por outra. coadjuvado provavelmente por João de Faria e Pedro Jorge. Tiveram as Ordenações Manuelinas. e 6 Todos os autores que desde o século XVIII se interessaram pelos problemas da nossa história jurídica mostram ter pleno conhecimento da existência duma edição das Ordenações Manuelinas com data de 1514 (saída da oficina de João Pedro Bonhomini). que se nos afiguram da maior importância. incumbindo disso o jurisconsulto Cristovão Esteves. pelo que traduzem duma nova mentalidade na evolução da ciência jurídica e duma maior preocupação de rigor na apresentação dos textos legislativos. revele perfeita consciência de que as Ordenações de 1521 não são simplesmente uma nova edição daquela obra – ainda que correcta e aumentada -. Manuel em 1505 a Rui Boto. e há entre eles quem. que havia sido cometida em 1505 ao Chanceler-mor Rui Botto ao licenciado Ruy da Grã e ao Corregedor dos feitos cíveis da Corte bacharel João Cotrim – talvez pela excessiva fidelidade das respectivas disposições ao texto das anteriores Ordenações Afonsinas -. na passagem das Ordenações Afonsinas para as Manuelinas. Rui da Grã e João Cotrim. nenhum exemplar dela. mas uma nova versão. mas alguns autores mostravam-se um pouco cépticos. ao tempo. uma primeira redacção. como é sabido. algumas alterações de forma ou de fundo no texto da lei. ou se o trabalho já teria sido impresso antes dessa data.ORDENAÇOES MANUELINAS Há no entanto a assinalar. pelo facto de não ser então conhecida qualquer outra referência concreta coeva a uma tal impressão e também não ser conhecido. como Joze Anastasio de Figueiredo. impressa de 1512 a 1514. porque o monarca não ficou satisfeito com essa reforma. em muitos pontos substancialmente diversa da anterior. Objecto de controvérsia era apenas o problema de saber se as Ordenações de 1514 seriam a primeira impressão da reforma cometida por D. porque todos os cinco livros da edição de 1514 contem no «incipit» a indicação de «nouamete corregido na seguda epressam». conservando em seu poder algum exemplar dessas primeiras Ordenações. como já dissemos. que assim obtinha consagração definitiva na legislação portuguesa – e que é. e por singular contraste. cominando-se uma severa pena de multa e de degredo contra quem ousasse desrespeitar a ordem regia. Quando o caso não puder ser resolvido pelo direito romano nem pelo direito canónico. ou seja. para a Magna Glosa de Acursio e para a opinião de Bartolo. reproduzindo. a restrição já introduzida pela versão primitiva das Ordenações Manuelinas. um golpe duro vibrado na primazia indiscutida que Bartolo gozara entre nós durante um século. a alteração de maior vulto introduzida neste domínio pela reforma manuelina -. 14 . pois tem uma redacção muito diversa na versão primitiva e na versão definitiva das Ordenações de D. Ora o titulo referente ao direito subsidiário é justamente um dos exemplos mais flagrantes destes dois escalões da reforma manuelina.razão da sua extrema raridade nos nossos dias -. finalmente impresso e divulgado em 1521 como lei geral do pais.foram esses trabalhos de revisão que deram lugar a um texto bastante mais refundido. a um tempo. a exigência de não serem contrariadas pela opinião comum dos doutores. como as Ordenações anteriores. Esta preferência dada à opinio communis sobre a exegese da Glosa e sobre o pensamento de Bartolo. porem. a propósito duma e doutra destas fontes subsidiarias. remetem as Ordenações de 1521. ao mesmo tempo que se mandavam destruir todos os exemplares da «impresam velha» . por ordem de precedências. Manuel I. representa. e Doutores das Les. remete o texto manuelino de 1521. no começo do século XVII. após a restauração da independência. com meros retoques formais de modernização da linguagem. mas tinha ficado ainda preso a ela pelo respectivo enquadramento 15 . João IV em 1643. (III de Espanha). como o texto das Ordenações anteriores.Por ultimo. simbolizado pelo direito romano. para o arbítrio do monarca. se rompeu a ultima amarra que prendia o problema do direito subsidiário à ideia inicial – que dominara por completo o texto afonsino e o texto manuelino de 1513-1514 – dum conflito de jurisdições entre o poder temporal. e confirmadas por D. no reinado de Filipe II de Portugal. mas de maneira diversa. quer na hipótese de o problema não ter solução através de nenhuma das fontes ate ai enumeradas. para as Ordenações Filipinas. através de uma nova epígrafe e duma nova redacção. simbolizado pelo direito canónico. por os textos dos Cânones e por as Glosas. Só agora. e o poder eclesiástico. ORDENAÇOES FILIPINAS A redacção dada pelas Ordenações Manuelinas de 1521 ao titulo que regulamenta o problema do direito subsidiário transitou na integra. quer nos caso especial de o caso não envolver pecado e ser tratado somente. O texto manuelino de 1521 já conseguira superar substancialmente essa ideia. promulgadas em 1603. Vários dos nossos praxistas exprimiam essa ideia dizendo que. ligado ao julgamento das causas judiciais – teria sido o mais indicado e o mais feliz.formal. Importa ver qual foi. que nada já justificava na mentalidade jurídica da época. mantendo-se em vigor entre nós durante quase 250 anos. aplicando por vezes o direito romano com menosprezo do direito nacional. o legislador tomou consciência da necessidade de cortar esse “cordão umbilical”. no texto das Ordenações. ate à Lei da Boa Razão. na pratica. pode dizer-se que. costumes do Reino e estilos da Corte nunca foi posta em causa. e dar-lhe uma colocação. Apesar dos abusos que os tribunais frequentemente cometiam. de 18 de Agosto de 1769. entre os títulos referentes às relações do Estado com a Igreja. Só agora com a reforma filipina. o comportamento dos nossos jurisconsultos perante esta hierarquização das fontes subsidiarias a que as Ordenações Manuelinas de 1521 deram forma definitiva e que. tendo transitado incólume para as Filipinas. É discutível se o enquadramento dado pelo legislador filipino ao problema do direito subsidiário – ao fazer dele um puro problema de direito processual. e alguns acrescentavam expressamente que o direito romano não era 16 . a prioridade dada pelas Ordenações às leis pátrias. o direito comum não era o direito romano mas o direito nacional. em Portugal. que exteriorizasse suficientemente a sua natureza de problema independente de qualquer conflito de jurisdições. pelo menos em principio. mas o que importa registar é a preocupação que houve de romper com o seu enquadramento tradicional. para concluir que a razão natural ou boa razão é ela mesmo também. quer em substituição do direito romano que se mostra em desacordo com ela. mas apenas «subsidiário» e que as leis pátrias não eram «correctivas».«coactivo». os pontos susceptíveis de levantar duvidas mais serias eram o dos limites da aplicação do direito romano e do critério de fixação da «opinio communis». nem tão pouco «odiosas». como as Ordenações. em que são fundadas”. uma fonte subsidiaria de direito. há mesmo quem tenha ido mais longe. ao referir-se às leis imperiais. sob a forma duma regra de hermenêutica – de que as lacunas das leis do Reino devem. antes de mais nada. No que respeita propriamente à aplicação das fontes subsidiárias indicadas pelas Ordenações. defendendo o ponto de vista – que mais tarde a Lei da Boa Razão indirectamente consagraria. entre nos. as mandavam “somente guardar pela boa razão. preencher-se com o que estiver disposto noutras leis nacionais. 17 . só sendo licito lançar mão do direito romano depois de esgotado esse recurso. e há mesmo quem tenha procurado estabelecer ligação entre frase das Ordenações e certos tópicos muito divulgados da escolástica medieval e moderna sobre o primado da razão natural. não faltou quem tirasse a ilação de que os tribunais se deviam recusar a aplicar aqueles preceitos do direito romano que porventura se verificasse não serem fundados na boa razão. quer como elemento integrador das lacunas do próprio direito romano. Nesta defesa da prioridade do direito nacional. Quanto ao primeiro ponto. porem. mesmo quando cita rotineiramente aqueles tópico sobre o primado da razão natural – quase só no sentido de que o bom senso tem primazia sobre a própria lei -. Mas essas reacções foram sempre impotentes para vencer a rotina. o que domina amplamente é o uso e abuso do direito romano e o uso e abuso da communis opinio – sintetizada particularmente na praxe dos altos tribunais – como critério da respectiva interpretação. com a difusão das ideias do jusnaturalismo racionalista 18 . que só seria finalmente quebrada no terceiro quartel do século XVIII. é pelo menos opinião generalizada de que as normas do direito pátrio devem ser interpretadas restritivamente. implicitamente. se lhes forem conformes. no caso de serem contrarias ao disposto nas «leis imperais». contra a letra expressa das ordenações. a aplicação dos preceitos do direito romano. Quando não se chega ao extremo de preferir o direito romano ao direito nacional. Alguns juristas de personalidade cientifica mais vincada reagiram energicamente contra esta regra de hermenêutica e bem assim contra o abuso – na pratica muito generalizado e expressamente apoiado por vários dos nossos praxistas – de recorrer subsidiariamente às fontes do vizinho Reino espanhol. quando o direito romano fosse insuficiente. sem quaisquer reservas. e que devem ser ampliadas. nos dois séculos e meio de vigência do esquema manuelino e filipino das fontes subsidiarias. não toca neste problema. só por si. para solucionar o caso omisso. a titulo subsidiário.A generalidade dos autores. Quando se contempla a panorâmica geral da nossa jurisprudência. admitindo assim. a uma questão de correcto entendimento e observância do disposto nas Ordenações. que ficou conhecida na historia do nosso direito por Lei da Boa Razão. A reforma dos critérios de interpretação e integração de lacunas do direito nacional fez-se em 1769. depois de ter regulamentado minuciosamente. o problema da interpretação autentica das leis. fixando os casos em que a Casa da Suplicação – tribunal supremo do Reino – pode e deve proferir assentos normativos e aproveitando o ensejo para por cobro aos abusos a esse respeito cometidos até pela Relação do Porto e pelas Relações Ultramarinos. A Lei da Boa Razão. A Lei da Boa Razão integra-se no quadro da abundante actividade legislativa do Ministro de D. reduz tudo. É um dos documentos de maior projecção e de mais transcendente significado. em virtude do repetido uso que dessa expressão se faz no respectivo texto. só teriam valor normativo se fossem confirmados pela Casa da Suplicação. O problema do direito subsidiário é tratado pela lei da Boa Razão no seu § 9º. nos primeiros 8 parágrafos. Marques de Pombal. na profunda viragem ideológica verificada na linha evolutiva da história do direito português durante o consulado pombalino.e do usus modernus pandectarum e com a sua consagração pela Lei de 18 de Agosto de 1769.. fundamentalmente. assim era mais conhecido mas de seu nome Sebastião José de Carvalho e Mello. em matéria de direito subsidiário. dentro do espírito do século das luzes. dai em diante. José I. pela Lei da Boa Razão. cujos assentos. Outra das alterações 19 . quando remeterem a regulamentação dos casos omissos para as leis ai denominadas “imperiais”. e. mesmo antes de entrar na parte dispositiva do texto: As Ordenações. esquecerem as leis pátrias. umas vezes. limita-se o legislador a promulgar duas medidas fundamentais: uma. e o de. por isso. a proibir terminantemente a utilização de quaisquer outros “textos” ou de “authoridades de alguns Escriptores». sem averiguar se «são fundadas naquella boa razão. aplicarem indiscriminadamente as leis romanas. em que são fundadas». Alias. estabeleceram a esse respeito uma limitação importante. e sucedeu que os doutrinadores e os tribunais nunca ligaram a devida importância a essa limitação. outras vezes. são bem elucidativas as considerações do legislador.profundas observada nesta Lei é o afastamento da aplicação da Glosa de Acursio e das Opiniões de Bartolo bem como da aplicação do direito canónico nos tribunais civis. cometendo permanentemente dois abusos inqualificáveis: o de. ao dizerem expressamente «as quaes Leis Imperiaes mandamos somente guardar pola boa razão. que a sobredita Ordenação do Reino determina por único fundamento para as mandar seguir». nas palavras finais da respectiva disposição. ao passar das considerações preliminares para a parte dispositiva da lei. enquanto houver Ordenações. Para este legislador tudo se resume em acabar com este duplo abuso e em restituir ao seu verdadeiro sentido aquele texto das Ordenações referente ao direito subsidiário. para fazerem uso exclusivo das leis romanas. Leis pátrias ou usos do Reino – usos que noutro lugar indicará a que requisitos devem obedecer para possuírem valor 20 . que o direito português se moldou ao pensamento jurídico europeu de Novecentos – mais por via doutrinaria e jurisprudencial. E foi por essa via. não representam senão a confirmação de soluções que já eram familiares aos nossos juristas e aos nossos tribunais. e outra a arvorar em supremo critério de integração das lacunas do direito nacional aquela boa razão que o texto das Ordenações já tinha determinado “que fosse na praxe de julgar subsidiária”. abrindo caminho às grandes reformas que os Códigos do século XIX. Tanto a Lei da Boa Razão como os Estatutos da Universidade puderam julgar. sem que para tanto aquela lei e aqueles estatutos tivessem sofrido qualquer alteração na sua redacção ou perdido uma palavra só do seu valor normativo. à época.vinculativo. em boa parte. 21 . portanto. e entre eles o Código Civil de 1867. por esse caminho de um novo direito subsidiário que não era rigorosamente o previsto na lei. ter construído definitivamente os instrumentos do nosso direito subsidiário tendo acabado por ceder quase totalmente o seu lugar às codificações modernas. do que por via legislativa -. vieram depois consagrar e que.
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