Diferentes, Desiguais e Desconectados - Canclini

March 31, 2018 | Author: Ana Carolina Marçal | Category: Anthropology, Sociology, State (Polity), Mexico, The United States


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TEORIAS DA INTERCULTURALIDADE E FRACASSOS POLÍTICOSPerguntamo-nos como encaixar em algo que pareça real, tão real como um mapa, este feixe de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia como globalização. Setenta canais de televisão acessados por cabo, acordos de livre comércio que nossos presidentes assinam aqui e acolá, migrantes e turistas cada vez mais interculturais que chegam a esta cidade, milhões de argentinos, colombianos, equatorianos e mexicanos que agora vivem nos Estados Unidos ou na Europa, programas de informação, vírus multilingues e publicidade não pedida que aparecem no computador: onde encontrar a teoria que organize as novas diversidades? Estudar as diferenças e preocupar-se com o que nos homogeneíza tem sido uma tendência distintiva dos antropólogos. Os sociólogos costumam deter-se na observação dos movimentos que nos igualam e dos que aumentam a disparidade. Os especialistas em comunicação costumam pensar diferenças e desigualdades em termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada disciplina, os processos culturais são lidos em chaves distintas. Para_as^mrop^lo^jaLda diferença, cultura é pertejicimento comunitário e contraste com os outros. Para algumas teorias sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire fazendo parte das elites ou aderindo aos seus pensamentos e gostos; as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual-dos 6 I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S O A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . 1 recursos económicos e educativos. Os estudos comunicacionais consideram, quase sempre, que ter cultura é estar conectado. Não há um processo evolucionista de substituição de algumas teorias por outras: o problema é averiguar como coexistem, chocam ou se ignoram a cultura comunitária, a cultura como distinção e a cultura.com. É uma questão teórica e é um dilema-chave nas políticas sociais e culturais. Não só como reconhecer as diferenças, como corrigir as desigualdades e como conectar as maiorias às redes globalizadas. Para definir cada um destes três termos, é necessário pensar os modos pelos quais se complementam e desencontram. Nenhuma destas questões tem o formato de há trinta anos. Mudaram desde que a globalização tecnológica passou a interconectar simultaneamente quase todo o planeta e a criar novas diferenças e desigualdades. 1 se a distribuição estrita de etnias e migrantes em regiões geográficas, a distribuição de bairros prósperos e carentes, que nunca foi inteiramente pacífica mas era mais fácil governar, uma vez que os diferentes estavam distanciados. Todos - patrões e trabalhadores, nacionalistas e recém-chegados, proprietários, investidores e turistas - confrontamo-nos, diariamente, com uma interculturalidade de poucos limites, frequentemente agressiva, que supera as instituições materiais e mentais destinadas a contê-la. De um mundo multicultural— justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou nação - passamos a outro, intercultural e globalizado. Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua diferença e propondo políticas relativistas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogéneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos. Aos encontros episódicos de migrantes que há pouco chegaram e devem adaptar-se, às reuniões de empresários, académicos ou artistas que se vêem durante uma semana, para férias, congressos ou festivais, somam-se milhares de fusões precárias, armadas, sobretudo, em cenários midiáticos. A televisão a cabo e as redes de internet falam línguas múltiplas dentro da nossa casa. Nas lojas de comida, discos e roupa, "convivemos" com bens de vários países num mesmo dia. Encontramos os melhores jogadores argentinos, brasileiros, franceses e ingleses em equipes de outros países. E as decisões sobre o que vamos ver, ou quem vai jogar onde, implicam não só misturas interculturais: tal como na televisão e na música, no esporte não jogam só Beckham, Figo, Ronaldo, Veron e Zidane, mas também as marcas de roupas e de carros que os patrocinam, os canais que entram em disputa para transmitir as partidas ou já compraram os As transformações recentes fazem tremer a arquitetura da multiculturalidade. Os Estados e as legislações nacionais, as políticas educacionais e de comunicação que ordenavam a coexistência de grupos em territórios delimitados são insuficientes ante a expansão das misturas interculturais. As trocas económicas e midiáticas globais, assim como os deslocamentos de multidões aproximam zonas do mundo pouco ou mal preparadas para se encontrarem. Resultados: cidades onde se falam mais de cinquenta línguas, tráfico ilegal entre países, circuitos de comércios travados porque o Norte se entrincheira em barreiras agrícolas e culturais, enquanto se despoja o Sul. As consequências mais trágicas: guerras "preventivas" entre países, dentro de cada nação e também no interior das megacidades. Militarizam-se as fronteiras e os aeroportos, os meios de comunicação e os bairros. Parecem esgotar-se os modelos de uma época na qual acreditávamos que cada nação podia combinar suas muitas culturas, e mais as que iam chegando, num só "cadinho", ser um "crisol de raças", como declaram constituições e discursos. Está por acabar- A atenção a estas ambivalentes negociações tem caracterizado os estudos socioantropológicos. como Pierre Bourdieu e Clifford Geertz. Guatemala e El Salvador. incompatibilidade e intradutibilidade das culturas. havia uma divisão do planeta na qual Oriente e Ocidente pareciam hemisférios antagónicos e pouco conectados. Uma primeira consequência desta delimitação do campo de análise é que. entre indivíduos e também dentro dos indivíduos mesmos. a discordância e o conflito" (Benhabib. com eixos ideológicos definidos e duradouros. 31). portanto. como Paul Ricoeur. Observa acertadamente Seyla Benhabib que a ênfase teoricista na "incomensurabilidade nos desvia das negociações epis- . na sua maior parte. mas no horizonte atual se entrecruzam outras conexões nacionais e internacionais: de níveis educativos e idades. naturalmente. O que mantém a credibilidade das identidades no futebol. à Espanha ou a outras sociedades que ainda aceitavam pessoas sem documentos com o objetivo de baratear os custos internos de produção e de competir na exportação. Os livros sobre estes temas. Aqueles que não conseguiam emprego ou que aspiravam a ganhar mais enviavam alguns membros das suas famílias aos Estados Unidos. dentro das culturas. televisores e. interesso-me por elaborá-las em relação com as atuais condições sociais e midiáticas nas quais se verificam os desacertos políticos. políticos e comunicacionais postos à interculturalidade pela efetiva desestabilização atual dos ordenamentos nacionais.por exemplo. das referências nacionais e locais. Rorty ou Lyotard) ou como opção ética (Rorty ou Rawls) .têm o valor de situar as condições teóricas modernas e pós-modernas da incomensurabilidade. concentram-se em relações interétnicas ou de género. russo ou mexicano. a maioria escritos em inglês e pensando nos formatos de multiculturalidade existentes nos Estados Unidos. Acreditava-se saber o que significava ser francês. Fábricas estadunidenses. de género e geracionais. Penso que as polémicas entre sistemas de ideias . 2002. que acreditavam aliviar assim o desemprego insolúvel com recursos internos. as economias dos países grandes. que regiam a maior parte da organização económica e dos costumes cotidianos. Em poucos anos. Mas.para tomar como data de condensação a queda do Muro de Berlim . a ambiguidade. Os países abriam seu comércio e.8 I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . empiricamente. sobre universalismo e relativismo. ao lidar com a discrepância. étnicos. quando sua composição é tão heterogénea. p. projetada como co-produção internacional e com fins mercantis? Será que a aceitação de estrangeiros no esporte dá pistas sobre certas condições que facilitam a aceitação e a integração dos diferentes? É difícil estudar esta vertigem de confusões com os instrumentos que usávamos para conhecer um mundo sem satélites nem tantas rotas interculturais. Este é um livro sobre teorias socioculturais e fracassos sociopolíticos. ou sobre as vantagens do universalismo como justificação estratégica (Gadamer. japonesas e coreanas instalaram maquiladoras em nações como México.. médios e pequenos passaram a depender de um sistema transnacional no qual as fronteiras culturais e ideológicas se desvanecem. a reestruturação culturalào mundo como chave do final de uma época política. ou filósofos. midiáticas e urbanas. recebiam fábricas. embora os leitores aqui encontrem discussões filosóficas. culturas (Reygadas. 2 têmicas e morais muito sutis que ocorrem entre culturas. operada pela nova interdependência globalizada. 2002). objetos de consumo diário e mensagens audiovisuais cada vez mais variadas. Até há quinze anos . 1 clubes. As nações tinham culturas mais ou menos autocontidas. Grã-Bretanha ou suas ex-colônias. atentos aos obstáculos socioeconómicos. Aqui preferi trabalhar à maneira de cientistas sociais. estes provinham da região oriental ou ocidental a que se pertencia e eram processados numa matriz nacional de significados. A inserção de estilos de trabalho e formas exógenas de organização do trabalho incrementou o estoque de automóveis. Talvez por isso a antropologia possa registrar melhor. que privam de direitos à saúde e à educação as pessoas sem documentos. os aparelhos eletrodomésticos e até os adornos de Natal têm em comum etiquetas que anunciam sua fabricação no Sudeste asiático. consumo e terri- tório. nos países latino-americanos. em números redondos. ou seja. Uns e outros seguem interconectados não só pelo dinheiro mas também por mensagens afetivas. gera desemprego e enfraquece economias ocidentais não mediante desafios ideológicos. o nacional e o transnacional. que regressavam ao México para participar. A rigor. línguas e hábitos de consumo. b) na Califórnia. a etnografia das festas indígenas e mestiças em Michoacán. dos Estados Unidos para a América Latina. aproximando-os e facilitando sua compreensão. vivem nesse estado mexicano 4 milhões de michoacanos. atenuarão o nacionalismo destes povos. Estes processos não são facilmente agrupáveis numa mesma série socioeconómica nem cultural. Quando as ciências sociais lidavam com um mundo mais ordenado. eficácia produtiva ou poderio militar. às vezes contraditórias. porque implicam tendências diversas de desenvolvimento. Podem-se avaliar as diferenças recentes em muitas sociedades latino-americanas e também nos Estados Unidos. leis como a 187. com 14 bilhões de dólares em 2003. d) as roupas.todas vividas como signos identificadores de tradição local . ao fazer. Vimos bandeiras nacionais agitadas em celebrações da independência da Argentina e do México com a etiqueta made in Taiwan. frustrações e projetos mais ou menos comuns. Repentinamente. os migrantes para os Estados Unidos. Não esqueço que. Nestas remessas asiáticas chegam milhares de objetos sem os quais é difícil imaginar o que distingue os estadunidenses: os troféus com que se premiam as crianças em competições esportivas. como se não tivessem se inteirado das redes que reúnem economia. aparelhos de televisão e móveis early american. aumentam de ano para ano. visto até uma década atrás como o maior inimigo ideológico do capitalismo. política e cultura em escala transnacional. aproveitando os salários mais baixos desse país. o regime chinês. em artigos de consumo estadunidense ou em bandeiras argentinas e mexicanas. agora. mas graças à maior exploração do trabalho. considerar-se-ia como ecletismo apressado reunir num mesmo parágrafo estes fatos: a) muitas maquiladoras saem dos países latino-americanos para a China. 2 Os antropólogos estudávamos a continuidade das tradições de trabalho. sobre as relações entre trabalho. alteram a articulação dos cenários que davam sentido aos bens e mensagens. Os sociólogos políticos discutiam se. As^rela^fes_en tre aproximações de mercado. e a eleição de Arnold Schwarzenegger como governador efetivaram-se com boa parte do voto chicano. trata-se de um processo que tem mais de 15 anos. ou seja.. as bolas de beisebol e de basquete. em fins da década de 1970.o I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . de modo que a sociedade estadunidense se converteu em destino de 25% do que os chineses vendem ao exterior. informação nas duas direções. devia-se permitir que votassem os migrantes residentes no exterior. não mais do que 10% da população emigravam naquela época. e imaginavam os efeitos da influência latina no futuro de zonas estadunidenses onde começavam a representar um quarto da população. Mais do que generalizar conclusões. os esquis. numa fonte de receitas semelhante à exportação de petróleo e mais elevada do que o turismo. os celulares. Esta nova situação das relações s . enquanto 2. que mantinham identidades territoriais mesmo no desterro. c) as remessas de dinheiro dos migrantes.5 milhões residem nos Estados Unidos. nas danças de origem purépecha ou espanhola . mudam as perguntas sobre o local. As exportações chinesas para este país aumentaram em 40% nos últimos três anos. A diferença é de escala e intensidade: em Michoacán. nacionalismos políticos e inércias cotidianas de gostos e afetos seguem dinâmicas divergentes. Seria ingénuo pensar que tantas etiquetas com identificações asiáticas. exibiam roupas com frases em inglês e colocavam sua contribuição em dólares no arranjo ritual da cabeça dos dançarinos. muitas mudanças desfiguram esta paisagem. a ponto de se converterem no México. Por outro lado. ao mesmo tempo. se há tempos é impossível instalar-se no marxismo. debatendo suas interseções. Weber e Durkheim — para realizar investigações sobre campos intelectuais. em entender por que Bourdieu reproduziu até as últimas investigações sua máquina reprodutivista e. Ajudam-me. que rechaçam o Ocidente. Não encontro. Analiso os textos de Bourdieu e também seu modo de atuar na televisão. facilitadas pelos . Por isso. não superou a repetição mais ou menos sofisticada do anticapitalismo da primeira metade do século XX. no estruturalismo ou outra teoria como se fosse a única. Nas situações de enunciação e interação. como os leitores logo verão. me leva a valorizar criticamente as contribuições daqueles que vêem a modernidade a partir do pré ou do não-moderno. sobre estes últimos anos. quando quis acompanhar protestos contra o neoliberalismo e reencontrar um papel para sujeitos críticos. mas também como frustrações teóricas. nem Talvez estas páginas iniciais já tenham sugerido as razões da mudança de foco que prometem em relação a outros textos sobre interculturalidade. o livro pretende focar seus fracassos culturais não só como resultado de erros ou corrupção. os estudos anglo-saxões neste campo se concentraram na comunicação intercultural. as opções apresentadas pelo pós-modernismo na antropologia e nos estudos culturais tampouco nos permitem ignorar as incertezas da modernidade. avalio melhor os limites dos seus enfoques. consumos culturais e o vínculo sociedade-cultura-política. depois. Depois de utilizar durante anos a concepção bourdieana . as críticas de GrignonPasseron e os raciocínios de Boltanski-Chiapello. Quanto aos políticos. sociológicos e comunicacionais das décadas recentes. ao lado daquilo que os autores declaram nos textos teóricos. o trabalho conceituai precisa aproveitar diferentes contribuições teóricas. nesta linha. De modo que. 4 A indagação sobre as possibilidades de convivência multicultural tem certa analogia com a construção de projetos interdisciplinares. escutamos o que nos textos aparece como pressuposto ou silêncio. perguntas sobre os atuais desentendimentos entre culturas e posições de poder. meios de comunicação e movimentos sociais. Faltam interpretações sobre o modo errático e não representativo em que deambula a política. 2 interculturais é o que me estimula às revisões teóricas dos trabalhos antropológicos. da asfixia que a economia neoliberal impõe ao jogo democrático. primeiro. Nem as concepções diferencialistas. Interessei-me. do etnicismo até a posição de Clifford Geertz. nos anos finais. ao lado de simpósios nos quais cientistas sociais e líderes indígenas discutem sobre as diferenças étnicas e os Estados. abrangendo também as comunicações entre sociedades distintas. ocupo-me de vários livros-chave. por meio das quais constroem sua argumentação. as teorias socioculturais e os fracassos políticos exige analisar. os fracassos de que os jornais falam rotineiramente aparecerão aqui como cenografia. ruído de fundo.ela mesma uma teoria que articula e discute Marx. como relações interpessoais entre membros de uma mesma sociedade ou de culturas diferentes. A atenção que dou às posições que sublinham as diferenças. textos equivalentes àqueles que se escreveram sobre as grandes catástrofes do século XX: o nazismo. as polémicas e as relações com instituições. entendida. ao nos perguntarmos pela política e pelos políticos. 3 as pós-modernas oferecem alternativas teóricas ou modelos socioculturais que substituam os dilemas modernos. o autoritarismo soviético e suas sombras. e. O interesse em entender. que oferecem uma visão mais complexa das contradições atuais do capitalismo. Vejo a chave destes limites na dificuldade da sua obra para incluir as formas de industrialização-massificação da cultura e o papel não simplesmente reprodutivista dos setores populares.2 I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . Se estamos numa época pose multi. Como se sabe. Ortiz). Para entender cada grupo. O crescimento de tensões em todas as áreas da vida social. limitação de que vêm escapando autores que circulam fluidamente entre antropologia. leva a conceber as políticas da diferença não só como necessidade de resistir. predomina a consideração do intercultural como relações interétnicas. O multiculturalismo estadunidense e o que. A intensificação dos cruzamentos entre culturas induz a ampliar o campo destas contribuições. Hamelink). como tenta o capítulo 2. a perseguição ocidental a indígenas ou muçulmanos. sociológicos e comunicacionais. na sua maioria restritas à dinâmica interpessoal ou condicionadas pelos objetivos pragmáticos e pedagógicos da integração de minorias. 2 meios de comunicação de massas (Hall. em interações massivas entre sociedades. nas palavras de Geertz. continua a ser uma contribuição maior da antropologia e um requisito ético e epistemológico indispensável para entender uma dimensão chave do social. Adoto aqui uma perspectiva interdisciplinar. estão renovando a disciplina ao redefinir a noção de cultura: não mais como entidade ou pacote de características que diferenciam uma sociedade de outra. não podemos reduzir esta disciplina. trata-se de tornar complexo o espectro. está incorporando as perguntas sobre a interculturalidade a disciplinas que não usavam a expressão e reclamam novos horizontes teóricos. Esta reconceituação muda o método.às misturas e aos mal-entendidos que vinculam os grupos. A rigor. junto com diferenças e hibridismos. além daquilo que cada um toma ou rechaça dos outros. Tampouco se trata de passar da diferença às fusões. Mas. contrastes e comparações" (Appadurai. Concebem o cultural como sistema de relações de sentido que identifica "diferenças. Na França e em outros países preocupados com a integração de migrantes de outros continentes.24 I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . entre outros. p. numa época em que a investigação antropológica demonstra capacidade para captar. Gudykunst. como se as diferenças deixassem de importar. com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica admira por causa da sua resistência. 5 Adotar uma perspectiva intercultural proporciona vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo. o que sucede nestas atrações e repulsões em ambos os lados. Mare Abélès. 104). e penso que grandes avanços desta ciência decorrem de ter sabido situar-se na interação entre culturas. sociologia e comunicação (Grimson. inclusão/exclusão. "veículo ou meio pelo qual a relação entre os grupos é levada a cabo" (Jameson. deve-se descrever como se apropria dos produtos materiais e simbólicos alheios e os reinterpreta: as fusões musicais ou futebolísticas. Arjun Appadurai e James ClifFord. prevalece a orientação educativa que formula os problemas da interculturalidade como adaptação à língua e à cultura hegemónicas (Boukons). 1996. os arranjos natalinos e os móveis early american fabricados no Sudeste asiático. conexão/desconexão. Não se trata de "aplicar" os conhecimentos gerados por estas investigações. os programas televisivos que circulam por estilos culturais heterogéneos. Vamos considerar. p. A perspectiva emic. mesmo em trocas globais. 12-13). os modos pelos quais as teorias das diferenças precisam articular-se com outras concepções das relações interculturais: aquelas que entendem a interação como desigualdade. Mais ainda: como explico no primeiro capítulo. trata-se de prestar atenção. na América Latina. Não só os intentos de conjurar as diferenças mas também os dilaceramentos que nos habitam. o sentido intrínseco que os atores dão às suas condutas. 1993. nas expansões do mercado e nos fracassos da política. com ênfase nos trabalhos antropológicos. Martin Barbero. a um saber sobre verdades domésticas. chama-se mais propriamente de pluralismo deram contribuições . a processos de mediação tecnológica e de escala transnacional. Divirjo daqueles antropólogos para os quais a particularidade da sua disciplina consiste em assumir inteiramente o ponto de vista interno da cultura escolhida. Em_^ez_-de--CQmparar culturas que operariam como sistemas^regxistentes e compactos. ou seja. Na América Latina. Naturalmente. não só as misturas: também as barreiras em que se entrincheiram. ou seja. Mercados livres? Em vez do livre jogo estético e económico entre produtores culturais.que a desregulamentação também acarreta desamparo trabalhista. Por isso. Nem avaliar seus significados múltiplos. Por estas razões. universidades e parlamentos. Os novos riscos são a abundância dispersa e a concentração asfixiante. masculina) passa-se a absolutizar acriticamente as virtudes. seja a cidade. Conhecemos repertórios e inovações de mais culturas.costuma gerar mais preocupação com a resistência do que com as transformações estruturais. Permanecer numa versão fragmentada do mundo afasta as perspectivas macrossociais necessárias para compreender e intervir nas contradições de um capitalismo que se transnacionaliza de modo cada vez mais concentrado. Quanto ao nomadismo das décadas de 1980 e 1990. uma única cultura homogénea. simultaneamente. Objeta-se que a auto-estima particularista conduz a novas versões de etnocentrismo: da obrigação de conhecer uma única cultura (nacional. a nação ou o bloco económico a que o livre comércio nos associa. dispersos. não podemos esquecer que corresponde ao momento em que o livre comércio e a abertura de fronteiras apareciam como recursos para recolocar-se na competição económica. propicia enriquecimentos e fusões. agora vemos por toda parte . as megacorpora- . a abundância de opções simbólicas. 108). de afro-americanos. . mas perdemos a proteção sobre a propriedade intelectual.a ação afirmativa . pelo menos. para tornar visíveis os grupos discriminados. O multiculturalismo chegou a funcionar em alguns países como interpretação ampliada da democracia. Mas seu estilo relativista bloqueou os problemas de interlocução e convivência. branca. sobretudo na sua versão segregacionista. descuido da saúde e do meio ambiente e migrações em massa. 2002. É útil. Não é fácil fazer um mapa com usos tão díspares do multiculturalismo. A multiculturalidade.de mulheres. . Fez-nos ver que esta significa algo mais do que a rotina de votar a cada dois ou quatro anos: participar de uma sociedade democrática implica ter direito a ser educado na própria língua. nas sociedades. Concordo com Jean-Pierre Warnier: o problema que as sociedades contemporâneas enfrentam é mais "de explosão e dispersão das referências culturais do que de homogeneização" (Warnier. estabelecer a diferença entre multiculturalidade e multiculturalismo.6 I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . da minoria a que se pertence. Cumprir as cotas . ter revistas e rádios próprias que nos distingam. hospitalares ou artísticas. Não se impõe. O multiculturalismo. especialmente no campo musical e digital. associar-se com os que se parecem conosco para consumir ou protestar. como há anos se temia. Mas. inovações estilísticas mediante empréstimes-temados de muitas partes. de indígenas — na ocupação de postos pode tornar insignificantes os requisitos específicos que fazem funcionar as instituições académicas. p. se filma ou pode abrigar-se em museus. O relativismo exacerbado da "ação afirmativa" obscurece os dilemas compartilhados com conjuntos mais amplos. ou os direitos de difusão se concentram em poucas corporações. ocidental.sobretudo no Sul . dedico os dois capítulos finais a propor uma visão intercultural crítica do mercado cinematográfico e deste outro mercado absolvido das suas posições injustas sob o nome de "sociedade do conhecimento". A vigilância do politicamente correto às vezes asfixia a criatividade linguística e a inovação estética. como exaltação indiferenciada das realizações e misérias daqueles que compartilham a mesma etnia ou o mesmo género. assim como sua política de representação . entrincheira-se no local sem problematizar sua inserção em unidades sociais complexas de ampla escala. só as virtudes. os interesses de empresas dedicadas ao entretenimento ou às comunicações é que influem naquilo que se edita. entendido como programa que prescre- ve cotas de representatividade em museus. No entanto. este livro trata de escapar dos traços do pensamento teórico pós-moderno: a exaltação indiscriminada da fragmentação e do nomadismo. deve-se também considerar as críticas dirigidas ao multiculturalismo e ao pluralismo. Quando recuperamos esta função básica do pensamento. reduzindo-as a "tribalismos". p. agora diz que nos uniria a todos . reconhecida no catálogo de muitos museus. mas não encaram as questões culturais e comunicacionais. triunfos militares e fracassos político-culturais. de Seattle e Génova até Cancún e Porto Alegre. também encontramos frustrações que se combinam com resistências e conquistas: Pinochet e dezenas de torturadores argentinos foram absolvidos nos seus países. É possível citar alguns migrantes populares que chegam a enriquecer. judeus da diáspora. difusão mundial e projetos criativos? O fascínio de estar em toda parte e o desassossego de não estar em nenhuma com segurança. esquecendo seu sentido social. Um dos seus representantes mais traduzidos. espanhóis e mexicanos filmam em Hollywood. exilados e buscadores de viagens de iniciação . dumpinge acordos regionais desiguais. 2002). nos Estados e nas ONGs? Poucos autores e movimentos sociais percebem as consequências desta nova paisagem. aos programas de austeridade do Banco Mundial e do F M I . aos efeitos do neoliberalismo sobre a agricultura e o meio ambiente. É preciso esquecer o que as ciências sociais e tantos testemunhos dramáticos dizem sobre a interculturalidade para escrever. índios metropolitanos". o gozo do momento. Como reinventar a crítica num mundo em que a diversidade cultural é algo que se administra nas corporações. freaks. cineastas argentinos.8 I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E . mas não os roteiros que trouxeram. 6 Mas não ajuda a distinguir as lógicas diversas da interculturalidade amontoar desterros. alguns foram processados nos lugares onde cometeram seus crimes. As novas estratégias de divisão do trabalho artístico e intelectual. que já banalizara as formas contemporâneas de desintegração. George Yúdice observa que as manifestações fóbicas em relação à globalização. em alguns países europeus e no Japão os lucros de quase todo o planeta e a capacidade de captar e redistribuir a diversidade. O que é um lugar na mundialização? Quem fala e a partir de onde? O que significam estes desacordos entre jogos e atores. tal como ocorre em certos livrinhos franceses e latino-americanos. migrações. às privatizações. tribalismos urbanos e navegações pela internet. que é discernir no amálgama o que é distinto. ou.uma despreocupação dionisíaca "pelo amanhã. enfrentamos ásperas frustrações: a maioria dos migrantes são desvalorizados nas sociedades que escolheram com admiração. Michel Maffesoli. 2004. finalmente. 142). em 1997. mas é administrada seletivamente segundo a lógica da transnacionalização económica (Yúdice. a acomodação ao mundo tal como é".a da migração em busca de trabalho ou de l i berdade" (Maffesoli. julgados na Espanha. Por outro lado. de acumulação de capital simbólico e económico através da cultura e da comunicação concentram nos Estados Unidos. detidos na Inglaterra ou no México e. Carecem de propostas para a circulação democrática ou mais equitativa dos bens simbólicos num tempo em que a multiculturalidade não desaparece. .a Ao jet set — e a vida característica dos pobres . A multiculturalidade. de ser muitos e não ser ninguém mudam o debate sobre a possibilidade de ser sujeito: já aprendemos nos estudos sobre a configuração imaginária do social Pode-se entender que os deslizamentos interculturais exitosos tenham fomentado os elogios pós-modernos do nomadismo e da fragmentação: alguns poucos atores e diretores de cinema asiáticos. músicas do Terceiro Mundo são aplaudidas no Primeiro. continuam prisioneiras do rústico "modelo" de macdonaldização do mundo. vagabundagens. discográficas e televisivas. é administrada com um sistema afunilado que se completa em alguns poucos centros do Norte. oferecem críticas severas à desregulamentação. que "deixa de ser válida a contraposição entre a errante vida elitista . quando o fazem. 2 ções tentam controlar amplas zonas desta proliferação mediante tarifas preferenciais."hippies. subsídios. europeus e latino-americanos conseguem atuar em Hollywood. guaranis e Rolling Stones. de empresas editoriais. Portanto.) . chineses e estadunidenses. Imaginar que se podia prescindir deste problema foi. ao recolher os estilhaços da noção de sujeito. de recursos ou de lOnexões) ainda não é saber quem somos.A. Parece urgente discernir aqueles que podem ser sujeitos nesta época de mercados canibais e aqueles que ."gerir a própria vida como se fosse uma carteira de títulos" . As identidades pessoais ressuscitam como marcas para reativar os mercados ou há algo mais neste desejo de ser sujeito ou tê-lo como referência? O que pretende. o ponto cego de muitos campesinistas. há tempos Davos é "a Olimpíada do narcisismo". quase sempre se deixa que outros . de interpretações musicais grandiosas.o I N T R O D U Ç Ã O T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E .construam as pontes. em 2004. As teorias comunicacionais nos lembram que a conexão e a desconexão com os outros são parte da nossa constituição como sujeitos individuais e coletivos.somos intimados. A metáfora de Jacques Atali . estejam aparecendo ocasiões para atuarmos como atores verossímeis. de filmes europeus. Mas colocarse na posição dos despossuídos (de integração. etnicistas ou indianistas.indivíduos e coletivos (partidos. capazes de fazer pactos sociais confiáveis. Diferentes. de feministas que suprimiam a questão da alteridade. ao longo do século XX. desiguais e desconectados? Formular os modos da interculturalidade em chave negativa é adotar o que sempre foi a . uma vez que conhecemos a instabilidade dos títulos e astúcias inconfiáveis com que se manipulam os movimentos financeiros. O moderador do debate disse que. Os editores registram o aumento de vendas de biografias e autobiografias.é pelo menos inquietante. 7 perspectiva do pensamento crítico: o lugar da carência. quando os mostrou dispersos ou simulados. o espaço inter é decisivo. na realidade. ao chamar um seminário de "Eu S. ONGs etc. a ser flexíveis e a ser alguém na selva das siglas.deste lado e daquele . Ao ficar deste lado do precipício."? A novidade não é a sugestão de que "cada qual deve levar sua vida como uma empresa". estas páginas buscam compreender as razões dos fracassos políticos e participar da mobilização de recursos interculturais para construir alternativas. vão muito mais longe do que o pós-modernismo. Estes empresários e intelectuais. Ao postulá-lo como centro da investigação e da reflexão. o Fórum Económico de Davos. ao mesmo tempo. de subalternistas e quase todos aqueles que acreditavam resolver o enigma da identidade afirmando com fervor o lugar da diferença e da desigualdade. Por que a arte recente está redescobrindo o sujeito ou busca recriá-lo? Muitos artistas do passado e da atualidade convertemse em ícones das principais exposições. proletaristas. o quanto de construídos ou simulados os processos sociais e os sujeitos podem ter^Talvez esteja começando um tempo de reconstruções menos ingénuas de lugares e sujeitos. em interseções compartilhadas. mas o paradoxo de re-consagrar o eu como sociedade anónima. sob os escombros da noção de sujeito. o encontro ritual mais importante dos empresários do mundo. com alguma duração.
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