Didi-huberman - Quando as Imagens Tocam o Real

April 2, 2018 | Author: Joana Corona | Category: Experience, Image, Reality, Thought, Dialectic


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Quando as imagens * tocam o realGeorges Didi-Huberman * Traduzido do espanhol, do endereço eletrônico: http://www.macba.es/uploads/20080408/ Georges_Didi_Huberman_Cuando_las_imagenes_tocan_lo_real.pdf Tradução de Patrícia Carmello e Vera Casa Nova Georges Didi-Huberman Georges Didi-Huberman, filósofo e historiador da arte, leciona na Ecole des hautes études en sciences sociales. Publicou vários livros sobre a história e a teoria das imagens, num amplo campo de estudos que vai da renascença até a arte contemporânea, e que compreende os problemas de iconografia científica do século XIX e seus usos pelas correntes artísticas do século XX. Didi-Huberman. mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos. de seu caráter não específico e não fechado. não pode entender-se. Georges. levanta-se a questão: a que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem? Pra dar resposta a essa pergunta seria necessário retornar e reorganizar uma enorme quantidade de material histórico e teórico. com todos seus livros de história. um rastro. crucial. sem o uso cruzado. de “encruzilhada dos caminhos” — recordar que a seção imaginar da Biblioteca de Warburg. entre outros. como arte da memória. este texto argumenta que a imagem não é um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. para dar uma idéia do caráter crucial de tal conhecimento — quer dizer.Resumo Partindo da hipótese de que a imagem arde em seu contato com o real. nem sequer pode utilizar-se. Talvez baste. um traço visual do tempo que quis tocar. “Quando as imagens tocam o real” 205 . É uma impressão. de outras duas seções intituladas Falar e Atuar. devido à sua natureza mesma de cruz. de ilustração científica ou de imaginário político. heterogêneos entre eles – que. não pode aglutinar. Atravessando os postulados de Aby Warburg e Walter Benjamin. de arte. 4. um incêndio da obra.. sentia pelo dia um desejo de água e de ar. por exemplo. sua intrínseca potência de realismo que a distingue. de dia. Assim. o que ocorre nesse contato? A imagem em contato com o real — uma fotografia. onde a forma alcança seu grau maior de luz4 (eine Verbrennung des Werkes.. É o que fazia Baudelaire dizer que a imaginação é essa faculdade “que primeiro percebe (. Desde Goethe e Baudelaire. Em que sentidos — evidentemente no plural — deve-se entender isto? Aristóteles abriu sua Poética com a constatação fundamental de que imitar deve ser entendido em vários sentidos distintos: poder-se-ia dizer que a estética ocidental nasceu inteiramente destas distinções6. por que dizer que as imagens poderiam “tocar o real”? Porque é um enorme equívoco querer fazer da imaginação uma pura e simples faculdade de desrealização. v. entendemos o sentido constitutivo da imaginação. exigia a plenitude do fogo. p.] não aparece no desvelo. as correspondências e as analogias. não há imagem sem imaginação. 2. [de maneira] que um sábio sem imaginação é apenas um falso sábio. desejava ardentemente essa loucura5”. Ocorre. Mas a imitação. Tempos depois. in welcher seine Form zum Höhepunkt ihrer Leuchtkraft kommt)”. podemos propor esta hipótese de que a imagem arde em seu contato com o real. da fantasia ou da frivolidade. nov. que as imagens toquem o real. ou pelo menos um sábio incompleto2”. 204 .. e nos consome por sua vez. Então.. .) as relações íntimas e secretas das coisas. Inflama-se. Mas. sua capacidade de realização. mas sim em um processo que poderíamos designar analogicamente como o incêndio do véu [.219. é que é verdadeira3 (wenn es aufbrennt ist es eschf) “. É o que fazia Goethe dizer: “A Arte é o meio mais seguro tanto de alienar-se do mundo como de penetrar nele1”. é bem sabido. E se ver era o fogo. por seu turno: “A verdade [.. Maurice Blanchot escreveu em sua novela La Folie Du Jour: “Queria ver algo a pleno sol. já 206 Pós: Belo Horizonte. estava farto do encanto e do conforto da penumbra..]. Walter Benjamin escrevia. n. Rainer Maria Rilke escrevia sobre a imagem poética: “Se arde.Assim como não há forma sem formação. por exemplo — nos revela ou nos oferece unívocamente a verdade dessa realidade? Claro que não. e se ver era o contágio da loucura. 2012. portanto. uma prática de montagem. — esta impressão se deve sem dúvida ao próprio caráter da situação atual. melhor dizendo uma disfunção. ou em forma de um “trabalho das passagens” (Passagenwerk). Nunca mostrou tantas verdades tão cruas. sem dúvida. seu caráter ardente —. a uma poética capaz de incluir sua própria sintomatologia. como em Eisenstein. Mas. esta ques- tão sempre nos retarda a esperança de uma resposta. sua via para o juízo. questão complexa. como em Freud. Georges. aparentemente. antes de nós e em contextos históricos absolutamente ardentes. nos mentiu tanto solicitando nossa credulidade. Questão ardente. manipulações imorais e execrações moralizantes. uma Kulturwissenschaft. a questão persiste e piora: arde. uma enfermidade crônica ou recorrente. para a imagem e a imitação. porque complexa. seja em forma de um Traumdeutung. * Kant perguntou-se em outros tempos: “Que é orientar-se no pensamento8?” Não só não nos orientamos melhor no pensamento desde que Kant escreveu seu opúsculo. uma “função” paradoxal. um pensamento do qual Kant mesmo havia forjado a condição de possibilidade em termos bastante obscuros — como são. como em Bataille em sua revista Documents. cotidiano. Portanto. Jean-Luc Nancy escreveu. histórico. Porque arde. portanto. político. como em Aby Warburg. tentaram produzir um saber crítico sobre as imagens. um mal-estar na cultura visual: algo que apela. nunca proliferou tanto e nunca sofreu tanta censura e destruição. nunca. Nunca. que hoje é difícil pensar sem ter que “orientar-se na imagem”. as grandes palavras filosóficas — de “esquematismo transcendental9”. como em Walter Benjamin? Não vem nossa dificuldade a nos orientar de que uma Didi-Huberman. em todas estas armadilhas potenciais? Não deveríamos — hoje mais do que nunca — voltarmo-nos novamente até os que. Nunca. por muito pouco que seja. mais recentemente. que o pensamento filosófico viverá a viragem mais decisiva quando “a imagem enquanto mentira” da tradição platônica sofrer uma alteração capaz de promover “a verdade como imagem”.não avança senão de crise em crise (o que não quer dizer que tenha desaparecido. entender sua multiplicidade — nunca a imagem se impôs com tanta força em nosso universo estético. esta questão quisera encontrar sem demora sua resposta. seria preciso saber em que sentidos diferentes arder constitui hoje. técnico. por conseguinte. tantas reivindicações contraditórias e tantas rejeições cruzadas. o discernimento. como a imagem estendeu tanto seu território. a imagem — e o arquivo que conforma desde o momento em que se multiplica. e que se deseja agrupá-la. a imagem sofreu tantos dilaceramentos. Enquanto isso. um alegre saber à altura de seu próprio não saber. “Quando as imagens tocam o real” 207 . frequentemente. senão para a ação. a questão permanece. Como orientar-se em todas estas bifurcações. que tenha caducado ou que já não nos concerne). justamente. n. sem o uso cruzado. históricos e antropológicos onde. Em resumo. Portanto.. p. poderíamos acabar de “reconstituir o laço de co-naturalidade (ou de coalescência natural) entre palavra e imagem” (die natürliche Zusammengehörigkeit von Wort und Bild 11). 2012. como obra e objeto de passagem. a imagem ou a palavra. como monumento e objeto de montagem. dever-se-ia seguir-lhe uma síntese que poder-se-ia intitular As imagens. crucial.. esteja esta: a que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem? Que tipo de contribuição ao conhecimento histórico é capaz de aportar este «conhecimento pela imagem»? Para responder corretamente. de “encruzilhada dos caminhos” — recordar que a seção imaginar da Biblioteca de Warburg. de início. 208 Não se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de incêndio. de seu caráter não específico e não fechado. 2. ter-se-ia que reescrever toda uma Arqueologia do saber das imagens. de arte. talvez. nem sequer pode utilizar-se. as palavras e as coisas. de outras duas seções intituladas Falar e Atuar10. não pode entender-se. Enquanto a própria”iconologia dos intervalos” . não se pode falar . v. 4.só imagem é capaz. * Pós: Belo Horizonte. de ilustração científica ou de imaginário político. para dar uma idéia do caráter crucial de tal conhecimento — quer dizer. devido à sua natureza mesma de cruz. ninguém tivesse que fazer a sempiterna pergunta — que Bergson chamara um “falso problema” por excelência — de saber quem surgiu primeiro. com todos seus livros de história. Durante toda sua vida. se fosse possível. nov. 204 . como não saber e objeto de ciência? * No centro de todas estas questões. Talvez baste. Warburg tentou fundar uma disciplina na qual. de reunir tudo isso e de dever ser entendida ao mesmo tempo como documento e como objeto de sonho. em particular. retornar e reorganizar uma enorme quantidade de material histórico e teórico.219. e. segundo ele. a disciplina inventada por Warburg oferecia-se como a exploração de problemas formais. Mas. Queimaram-se tantos livros e tantas bibliotecas12. cada tesouro ameaçado pela pilhagem. cada vez que abrimos um livro — pouco importa que seja o Gênesis ou Os Cento e Vinte Dias de Sodoma —. que tenha chegado até nós. cada vez que depomos nosso olhar sobre uma imagem. “A barbárie está escondida no conceito mesmo de cultura”. cujo texto mais querido. Portanto é absurdo. Sabemos que cada memória está sempre ameaçada pelo esquecimento. O próprio do arquivo é a lacuna. talvez devêssemos nos reservar uns minutos para pensar nas condições que tenham tornado possível o simples milagre de que esse texto esteja aqui. por muito proliferante que seja. diante de nós.de imagens sem falar de cinzas. devemos ter cuidado de não identificar o arquivo do qual dispomos. a partir de um ponto de vista antropológico. de autos de fé. as lacunas são resultado de censuras deliberadas ou inconscientes. os livros de imagens e os livros a seco. “Quando as imagens tocam o real” 209 . não só pelo tempo que passa. um tesouro ou uma tumba da memória. com os feitos e gestos de um mundo do qual não nos entrega mais que alguns vestígios. seja esse tesouro um simples floco de neve ou essa memória esteja traçada sobre a areia antes que uma onda a dissolva. Todos juntos formam. de agressões. É ao descobrir a memória do fogo em cada folha que não ardeu. têm sido sempre tão habitual 13. de destruições. frequentemente. Georges. sem dúvida foi queimado por alguns fascistas — de uma barbárie documentada em cada documento da cultura. cada tumba ameaçada pela profanação. o que estava escrevendo quando se suicidou. Isto é tão certo que inclusive a recíproca é certa: não deveríamos reconhecer em cada documento da Didi-Huberman. sua desaparição. para cada um. E mesmo assim. sua natureza lacunar. O arquivo é cinza. Destruir imagens é tão fácil. As imagens tomam parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de desejo e de temor) e suas próprias consumações. opor as imagens e as palavras. Cada vez que tentamos construir uma interpretação histórica — ou uma “arqueologia” no sentido de Michel Foucault —. como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu. escreveu14. onde temos a experiência — tão bem descrita por Walter Benjamin. deveríamos pensar nas condições que impediram sua destruição. Assim. Há tantos obstáculos. p. coabitam entre outras coisas uma obra de arte da pintura renascentista (A Missa em Bolsena pintada por Rafael no Vaticano). Frequentemente. fotografias do acordo estabelecido em julho de 1929 por Mussolini com o Papa Pio XI. * 210 Pós: Belo Horizonte. por força imaginativa. queimadas no claustro da Santíssima Anunciata.barbárie. pouco mais tarde. de toda a produção florentina das estátuas votivas de cera.219. em tensão também entre o vértice do demasiado e o do nada. traços de coisas sobreviventes. que não podemos entender nada dessa arte maior se não temos em conta o nada deixado pela destruição em massa. Tentar fazer uma arqueologia sempre é arriscar-se a por. necessariamente heterogêneas e anacrônicas. em tensão entre temporalidades contraditórias. n. essa extensão da Galerie des Offices que conta com nada menos que setecentos retratos). mas também entre um documento da cultura ( Rafael ilustrando no Vaticano o dogma em questão) e um documento da barbárie (o Vaticano entrando complacentemente . posto que vêm de lugares separados e de tempos desunidos por lacunas. bem como xilogravuras antissemitas (das Profanações da hóstia) contemporâneas dos grandes pogrons europeus de finais do século XV17. simétrico. na época da Contra-Reforma. 2012. nov. em seguida sofremos o demasiado das obras que proliferam nas paredes de todos os museus do mundo (começando pelo “Corredor Vasari”. executados por seus carcereiros melômanos. uns junto a outros. mas uma possibilidade de arqueologia crítica e dialética? Não se pode fazer uma história “simples” da partitura de Beethoven encontrada em Auschwitz perto de uma lista de músicos destinados a executar a Sinfonia no 5 antes de serem eles mesmos. 2. precisamente porque seu labirinto é feito de intervalos e lacunas tanto como de coisas observáveis. na última lâmina do atlas Mnemosine. Esse risco tem por nome imaginação e montagem. algo assim como um documento da cultura que mostra não a história propriamente dita. queremos construir a história do retrato no Renascimento. depois de Freud e outros — é uma experiência paradoxal. v. por exemplo. 204 . de organizar e de entender. Se. quase surrealista ao estilo das audácias contemporâneas da revista Documents dirigida por Georges Bataille – produz a anamnese figurativa do laço entre um acontecimento político-religioso da modernidade (o acordo) e um dogma teológico-político de longa duração (a eucaristia). O caso desta reunião de imagens é tão emblemático como transtornante: uma simples montagem – à primeira vista gratuita. e do que não podemos fazer idéia senão a partir de imagens aproximativas — as esculturas de argila policromada. Tentar fazer uma arqueologia da cultura — depois de Warburg e Benjamin. nos encontramos portanto diante de um imenso e rizomático arquivo de imagens heterogêneas difícil de dominar. em seu artigo magistral de 1902. por exemplo — ou de sobreviventes posteriores16. mas Warburg mostrou. 4. Recordemos que. não quer dizer que bastaria recorrer a um álbum de fotografias “de época” para entender a história que eventualmente documentam. Georges. sistemática. com sua encarnação vertiginosa. esta disciplina desde há tempos alienada por suas próprias normas de composição literária e memorativa20. o historiador renuncia a contar “uma história” mas. das sociedades – “a contrapelo” ou “na contramão do pelo demasiado brilhoso” da história-narração. indo adiante – mais de quinze anos antes do descobrimento dos campos nazis pelo “mundo civilizado” – o teor terrorífico do pacto que unia um ditador fascista com o inofensivo “pastor” dos católicos19. esse atlas de mil fotografias. mais tarde. “Quando as imagens tocam o real” 211 . cada pessoa. como o milagre de Bolsena assinalou praticamente a data de nascimento da perseguição elaborada. Ao fazer isto. Porque não está orientada simplesmente. todos os pontilhados do destino. todos os estratos da arqueologia. que Benjamin expressará. montagem e dialética estão aí para indicar que as imagens não são Que é. portanto. A montagem foi o método literário tanto como a assunção epistemológica de Benjamin em seu livro das Passagens21. que seria um pouco para o historiador da arte o que o projeto do Livro havia sido para o poeta Mallarmé22. orientar-se no pensamento histórico? Aqui. a montagem de Warburg produz o clarão magistral de uma interpretação cultural e histórica. ao fazê-lo. a dialética das imagens em Warburg. como também corresponde ao historiador em geral a abordagem de seu objeto – a história como devir das coisas. os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto. com duas fórmulas admiráveis: não só “a história da arte é uma história das profecias”. essa dialética é visível em grande parte através da noção de imagem dialética que Benjamin colocaria no centro de sua própria noção de historicidade. aos judeus nos séculos XIV e XV18. A analogia entre esta eleição de escritura e as lâminas de Mnemosine demonstra uma atenção comum à memória – não a coleção de nossas recordações que une o cronista. desvela. Então. mas sim a memória inconsciente. cada acontecimento. quer dizer. A montagem será precisamente uma das respostas fundamentais a esse problema de construção da historicidade. Mais ainda. Warburg não duvida em por em prática uma paradoxal “regra para a direção do espírito”. torna visíveis as sobrevivências. dos seres. As noções de memória. a montagem escapa às te- Didi-Huberman. Tudo isto. voltando atrás. é claro.em relação com uma ditadura fascista). os anacronismos. a que se deixa menos contar que interpretar seus sintomas – a que somente uma montagem poderia evocar a profundidade. a sobredeterminação. retrospectiva e prospectiva – essencialmente imaginativa – de todo o antissemitismo europeu: nos recorda. consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades do tempo. * leologias. entre elas políticas. cada gesto. uma obra concebida pelos cuidados de Ernst Jünger. diz Benjamin. ou como o mínimo divisor. * Um exemplo: Walter Benjamin em seu presente – já obscuro – de 1930. “uma transposição desenfreada”. p. Benjamin observa imediatamente que o componente fascista desta antologia vai de par com uma espécie de estetização recorrente. Esta guerra. também. nov.. interrogadas nas imagens. enquanto criadora. visíveis. a nossa se parece tanto – recordes incluídos – que devemos entender 212 Pós: Belo Horizonte. Jünger e seus coroinhas.219. por que. é a partir de tal montagem de ordens de realidade diferentes que Benjamin se encontra em condição de dar uma legibilidade filosófica e histórica nova da guerra a partir da “disparidade flagrante entre os meios gigantescos da técnica e o ínfimo trabalho de elucidação moral de que são objeto27”. segue atormentando a todos. diz. Por outro lado. Seria inexato afirmar que a situação não mudou desde então. . E sem dúvida. nem fáceis de entender. “a base principal [do] direito internacional26”. acaba de de ser publicada25. para que história e memória sejam entendidas. as relações de tempo irredutíveis ao presente”24. tanto na Alemanha como na França: a das máscaras anti-gás. por outro lado. quer dizer a dos ataques químicos onde bruscamente aboliram-se “as distinções entre civis e combatentes” e. Gilles Deleuze o diria mais tarde. ainda que ardente. 2012. E. foi ao mesmo tempo química (por seus meios). “manifestam uma surpreendente falta de interesse” pela imagem angustiante por excelência que. E é justamente por que as imagens não estão “no presente” que são capazes de tornar visíveis as relações de tempo mais complexas que incumbem a memória na história. com isso. Torna sensíveis. Guerra e Guerreiros. Trata da Grande Guerra. apenas como um múltiplo comum. em 1930.. 204 .nem imediatas.] A própria imagem é um conjunto de relações de tempo de que o presente só deriva. imperialista (por suas participações) e inclusive desportiva (por sua “lógica de recordes de destruição” levada “até o absurdo”). Eis aqui. As relações de tempo nunca se veem na percepção ordinária. n. interrogadas em nosso presente. Sem dúvida. mas sim na imagem. nem sequer estão “no presente”. sem dúvida – ou por isso mesmo – não deixará a arte e a imagem nas mãos de seus inimigos políticos. v. a questão necessita toda uma paciência – por força dolorosa – para que umas imagens sejam olhadas. como em geral se crê de forma espontânea. “das teses da arte pela arte no terreno da guerra”. 2. à sua maneira: “Parece-me evidente que a imagem não está no presente [. 4. Passa de boca em boca uma palavra de Schuler28 segundo a qual todo conhecimento deve conter um grão de sem-sentido. a partir de sua “imagem dialética”.” Man Ray. e sua simples identificação por parte do espectador a uma experiência pessoal semelhante exclui toda possibilidade de classificação […] ou assimilação a um sistema31”. mas sim a brecha dentro de cada um. Paul Valéry consigna esta frase em sua antologia de Mauvaises Pensées: “Assim como a mão não pode soltar o objeto ardente sobre ela. Tomando a Jünger a contrapelo. Uma das grandes forças da imagem é criar ao mesmo tempo sintoma (interrupção no saber) e conhecimento (interrupção no caos). que tão bem fotografou o povo e a cinza. que sua pele se funde e se cola. e todos os esforços e os rodeios da mente para desfazer-se delas a atraem até elas30. É surpreendente que Walter Benjamin tenha exigido do artista o mesmo exatamente que exigia de si mesmo como historiador: “A arte é escovar a realidade Didi-Huberman. como as cinzas intactas de um objeto consumido pelas chamas”. não pode arrancar-se da alma. “Quando as imagens tocam o real” 213 . Mas. * “Sinal secreto. a imagem. como os tapetes e afrescos ornamentais da Antiguidade sempre apresentaram em algum lugar uma ligeira irregularidade em seu desenho. fala da necessidade de reconhecer. acrescenta: “o reconhecimento desse objeto tão pouco visível e tão frágil . tornou legível algo da guerra imperialista de 1914-1918 que esclarece – para nós – algo das guerras imperialistas de hoje. estruturas inconscientes. longas durações a partir do minúsculo fenômeno cultural que representava a publicação desse livro em 1930. Uma imperceptível marca de autenticidade que a distingue de toda mercadoria fabricada em série29. Poderíamos chamar sintoma a brecha entre os sinais. a ideia que nos torna loucos de dor.isto: Benjamin. “o que tragicamente sobreviveu a uma experiência. Georges. Dito de outra maneira. na imagem. liberou imaginativamente harmônicos temporais. recordando esse acontecimento mais ou menos evidente. o decisivo não é a progressão de conhecimento em conhecimento. o grão de sem-sentido e de não saber de onde um conhecimento pode tomar seu momento decisivo? * Pouco depois. o lugar onde sua eventual beleza reserva um espaço a um “sinal secreto”. 2. 204 . a da fotografia: não a fotografia como aquilo que foi caritativamente admitido no território das belas artes (“a fotografia como arte”). portanto. com efeito. identificaram seu ofício com uma prática policial)34. é preciso recordar que. é preciso arrancar de novo a tradição ao conformismo que está a ponto de subjugá-la” – e fazer desse arrancar uma forma de aviso de incêndios por vir35. Isto implica em que “em cada época. além disso. para Benjamin. ainda que realista. Contra a fotografia de arte e seu lema: “O mundo é belo38” a arte fotográfica trabalha. nov. antes de tudo. de certo modo. o lugar de onde se expressam os sintomas (o que buscava. aqui. Aby Warburg) e não quem é culpável (o que buscam os historiadores que. portanto. mas também a cultura na tragédia (para não apartá-la de sua memória). um sintoma.” * . 214 Saber olhar uma imagem seria. para o historiador. olhar “a arte” a partir de sua função vital: urgente. O artista e o historiador teriam. a idade da imagem nos anos 30 é.a contrapelo32”. mas sim oferecer uma experiência e um ensinamento41. É. não revela quase nada sobre estas instituições39. p. Uma foto das fábricas Krupp ou a de A. tornar-se capaz de discernir o lugar onde arde. v. ardente tanto como paciente. a ordem celeste (Vênus deusa) e a ordem visceral (Vênus aberta).E. * Pós: Belo Horizonte. que Benjamin encontra suas palavras mais duras a respeito da “fotografia criativa”. n. o “elemento criativo” – como hoje se costuma dizer em todos os lugares – que se converteu nesse “fetiche cujos dilaceramentos não lhe devem a vida mais do que os jogos de luz da moda37”. É tão antigo como a Ilíada – inclusive como a própria imitação 33 – e converteu-se em algo muito moderno desde os Desastres de Goya. Isto supõe. Mas.” A isto a obra de Atget – que é preciso tomar em seu conjunto. no momento preciso em que enuncia esta tese. Isto supõe primeiro. ver nas imagens o lugar de onde sofre. para romper esse limite de toda representação. uma responsabilidade comum. 2012.219. puramente documental por um lado. 4. se a entendemos bem. mas sim a fotografia como aquilo que modifica de cabo a rabo essa mesma arte (“a arte como fotografia36”). O lugar onde a cinza não esfriou. a ordem das belezas de cima e dos horrores de baixo. é aquela onde: “ a fotografia não busca gostar e sugerir. o simples fato de ‘devolver a realidade’ não diz nada sobre esta realidade. e cuja formulação Benjamin toma emprestada aqui a Bertold Brecht: “Menos que nunca. A idade da imagem de que fala Benjamin. quer dizer em sua sistemática de duas caras. uma crise não apaziguada. e proto-surrealista por outro – responderá com uma nova capacidade para “desmascarar o real40”. como Morelli. tornar visível a tragédia na cultura (para não apartá-la de sua história). Warburg dissera que o artista é o que faz com que se entendam mutuamente os astra e os monstrua.G. mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos. “Quando as imagens tocam o real” 215 . * Porque a imagem é outra coisa que um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. ao contrário. uma ferramenta teórica muito simples e muito precisa para desenredar esta maneira de “oferecer uma experiência e um ensinamento” como disse. de seus costumes: primeiro suporá suspense.Assim. mais ou menos ardentes.. depreender uma forma visual. manter-se. posto que privada de seus clichês. se está ante uma experiência deste tipo. mais: parar. naquele que os vê. clichês linguísticos43”. um traço visual do tempo que quis tocar.. logo. um rastro. então . É cinza mesclada de vários braseiros. uma imagem que soube desconcertar. na realidade. e portanto nosso pensamento. mais que uma visita passageira. portanto. fundir-se nas coisas42? Estar no lugar. cujos clichês visuais não têm outro efeito que o de suscitar. de simples “reportagem” que não é. se está diante de um clichê visual. ao final de seu artigo. não pode aglutinar. Mas. Ver sabendo-se olhado. E logo. concernido. Georges. indubitavelmente. Fazer durar esta experiência. Uma imagem bem olhada seria. implicado. que roça a realidade. Benjamin propõe. como arte da memória. inclusive para descrevê-lo. Benjamin chama a isto um analfabetismo da imagem: se o que se está olhando só o faz pensar em clichês linguísticos. o que Benjamin admira no trabalho fotográfico de Atget não é outra coisa que sua capacidade fenomenológica de “oferecer uma experiência e um ensinamento” na medida em que “desmascara o real”: uma marca fundamental de “autenticidade” devida a uma “extraordinária faculdade para fundir-se nas coisas”. fazer dessa experiência uma forma. contudo. heterogêneos entre eles – que não pode. E. despossuído de sua capacidade de lhe dar sentido. imporá a construção desse silêncio em um trabalho de linguagem capaz de operar uma crítica de seus próprios clichês.] nem sempre conseguiremos elucidá-las com a prática de reportagem. Didi-Huberman. a legibilidade das imagens não está dada de antemão. nessa implicação. por associação. habitar durante um tempo nesse olhar. por muito espetacular que seja esse roçar: “As cominações que encobrem a autenticidade da fotografia[. e não diante de uma experiência fotográfica. a mudez provisória ante um objeto visual que o deixa desconcertado. depois renovar nossa linguagem. É uma impressão. que significa isto. Se. despedir-se à francesa). se acercou (como se costuma dizer. nos jogos de adivinhações. Mas. “quente” quando “alguém se acerca do objeto escondido). seu perigo. quando faz com que todo retrocesso. 2012. quando já não é mais que cinza: uma forma de dizer sua essencial vocação para a sobrevivência. por conseguinte. • 216 Pós: Belo Horizonte. . toda retirada sejam impossíveis (como se costuma dizer “queimar os navios”). elevara-se uma voz: “Não vês que ardo?”. p. para senti-lo. nov. E soprar suavemente para que a brasa. é preciso acercar o rosto à cinza. é preciso atrever-se. v. Finalmente. sob as cinzas. n. Arde pelo resplendor. pois. Arde pelo desejo que a anima. 204 . Arde com o real do que. pela enunciação. volte a emitir seu calor. 4. isto é. do qual escapou e cujo arquivo e possível imaginação é. da imagem cinza. pelo incêndio que quase a pulveriza. capaz como é de bifurcar sempre. Arde por sua audácia. incapaz como é de deter-se no caminho (como se costuma dizer “queimar etapas”). em um dado momento. pela possibilidade visual aberta por sua própria consumação: verdade valiosa mas passageira. 2. Arde por seu intempestivo movimento. Arde pela destruição. Arde pela dor da qual provém e que procura todo aquele que dedica tempo para que se importe. posto que está destinada a apagar-se (como uma vela que nos ilumina mas que ao arder destrói a si mesma). quer dizer que de todo modo arde . de ir bruscamente a outra parte (como se costuma dizer “queimar a cortesia”. inclusive a urgência que manifesta (como se costuma dizer “ardo de amor por você” ou “me consome a impaciência”).219. a imagem arde.Nisto. seu resplendor. apesar de tudo. a imagem arde pela memória. para sabê-lo. capaz de oferecer hoje. Como se. pela intencionalidade que a estrutura. 59-86. e Hayes. Description d’une bibliothèque (1985. 1976. e Welbel (dir. trad. Iconoclasm and vandalism since the French Revolution..67. trad. Michalski S. Ouvres complètes II. 11 Warburg A. 3 4 Benjamin W.21. Paris : Fayard. 10 Mais exatamente as seções fundamentais da Kulturwissenschafttiche Bibliothek Warburg estavam ordenadas segundo a tripartição Bild-Wort-Handlung. 1985.L.A. Ver S. Latour B.M. Georges. 1990. capitale du XIX siècle. à qual se sobrepunha a questão. París: Gallimard. L’image Interdite. fonction. p.C.” (1915) (esboço). représentation. J.. Société Alsacienne pour le Développement de histoire de l’art. Bensançon A.E.) Bilder und Bildersturm im Spätmttelater und in der frühen Neuzeit. Karlsruhe-Cambridge: ZKM-MIT Press. p. P. Ouvres oétiques et théatrales.). “Imitation. Les portraits de Laurent de Médicis et de son entourage” (1902). p. Rilke. Settis. 6 7 Ver Didi-Huberman G.).150-156. Remarques sur un mythe épistémologique” (1992).E. 1997. p. Lacoste. S.. C. Qu’est-ce que s’orienter dans la pensée (1786). onipresente. (tradução modificada). 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La realité figurative.271-318. question de pan” (1985). p. Cf. (1933). 204 . Ouevres II. 32 33 218 Sobre esta oposição metodológica. Ouevres II.. J.. Francastel P. “Ressemblance mythifiée et ressemblance oubliée chez Vasari. “Sur le pouvoir d’imitation” (1933). 1965. 25 Jünger. Akademie Verlag. “Théories du fascisme allemand. 1994-2.349. Minotaure. Benjamin. trad. W. Le “livre” de Mallarmé. op. Il Miracolo di Bolsena . nov..199-201. Testimonianze e documenti nel secoli XIII e XIV. Ibid. 34 . 2012. Paris: Minuit. 30 31 Man Ray “L’âge de la lumière”. G. “Brèves ombres [III]”. Lapoujade. p. Gesammelte Schritten. J.140-187. À propos de l’ouvrage collectif Guerre et guerriers. G.1. op. Didi-Huberman. p. Historie de L’antisémitisme.101-135. 2. 2004. Berlin. Id.. 27 Ibid.. v. trad. (dir. n.Brink. 2003. Paris: Gallimard.. 22 23 Cf.DidiHuberman. p. p. Monnoyer. trad. p. p. 18 Cf.85-155. cf. W. p. “Un mystère parisian ilustré par Uccelo: le miracle d’hostie à Urbin” (1952).cit.145-163. Du Christ aux juifs de cour. 24 Deleuze. Id. ed.M. Rusch. CVI. Rochlitz.219. 1960. 26 Benjamin W. Francfort. 1996. p. Petite Histoire de la photographie” (1931).”. Ibid. Ouevres II. p. XXI. B. p. 431 (cf. p. p. p. Die Welt ist schön.318-319. Rusch. Werke. 36 Id. M.315 (assinalamos aqui a tradução comentada deste texto. p.. p. Ibid. 2001). trad.469)... “Der Dreigroschenprazess. Paris: Gallimard. M.. A Études Photographiques. 38 Ibid.318 (citando a Brecht. 1992. 37 Ibid.. Walter Benjamin: avertissement d’incendie.Hecht.. Einhundert photographische Aufnahmen.318 (alusão à obra de Renger-Patzch. 39 Ibid.35 Benjamin. Löwy. Ein soziologisches Experiment” (1930). nº1. de Gandillac revisada por P. Georges. Rusch. de Gandillac revisada por P. op. Ouevres III. Cit. Munich Wolf. “Quando as imagens tocam o real” 219 . p. W.309. “Sur le concept d’histoire”(1940). p.6-39). 41 42 43 Didi-Huberman. Ibid. Paris: PUF.. A.309. 1928).317-318.320..W. 40 Ibid. p. M. Suhrkamp. ed. trad. devida à Gunthert. 2000.
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