dicionários de cinema luis soares jr

March 20, 2018 | Author: William Salgado | Category: Odyssey, Death, Love, Screenplay, Reality


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Fritz Movie, Por Sylvie PierreFritz Lang, em O desprezo, interpreta seu próprio papel.Foi o próprio Godard quem disse: “O tema de O desprezo são as pessoas que se olham e se julgam, depois são por sua vez olhadas e julgadas pelo cinema, que é representado por Fritz Lang, interpretando seu próprio papel”.( 1 ) O dinossauro e o bebê. Neste mesmo texto, Godard diz também de seu filme que “ele é simples e sem mistério”, que se trata de “um filme aristotélico”. Acho que é necessário levar a sério este esquema lógico. Ou seja: Fritiz Lang em O desprezo é em primeiro lugar Fritz Lang, e não não-Fritz Lang. É Lang em virtude de vários atributos de identidade que o caracterizam absolutamente. Alguns são essenciais: seu nome, nacionalidade, sua profissão de metteur en scène de cinema,e certos títulos de sua filmografia real, M, o vampiro de Dusseldorf e o “western com Marlene Dietrich” ( Rancho Notorious, é claro). Os outros são existenciais ( sem Aristóteles, não teríamos Jean-Paul Sartre): seu corpo, sua voz, seu figurino, sua gravata e s eu chapéu, sua presença no plano enquanto Fritz Lang, o que o diferencia notavelmente dos outros atores (2 ) e não desempenha um papel de peso menor na balança desta ficção. Godard o quis e o compreendeu expressamente, ele que, de acordo com sua própria confissão, quis confiar a Lang o papel exorbitante de representar nada menos que o olhar e o julgamento do cinema sobre o cinema. E mesmo se a idéia de “personalidade”, com as pompas midiáticas que a circundam, não é exatamente simpática a Godard, isto não impede que ele utilize o peso do nome de Fritz Lagn para emprestar aos créditos um brilho suplementar. É preciso assinalar, no entanto, que a natureza da ficção cinematográfica é tão particular que lhe é geralmente difícil dominar ( maîtriser) a longo prazo em se mecanismo esta inserção de um elemento heterogêneo, elemento ao qual esta se vê obrigada a conferir uma espécie de status particular, uma zona especial no conjunto de seus procedimentos. O que pode fazer com efeito a ficção com uma criatura à qual ela não conferiu o seu papel? Criatura- sim,a palavra é esta- de um outro mundo, pois possui a qualidade específica de uma espécie de identidade suplementar a si mesma. E diante de tal criatura, a ficção se encontra rapidamente em um impasse. Pois: ou ela lhe reconhece um coeficiente de realidade que a ultrapassa e transborda, o que a leva então a cessar de “engendrar ficção” ( cesser de fictionner), e passar assim para o lado do documentário. Ou então a ficção pode convencionar que um personagem “em seu próprio papel” ( quem diz ‘papel’ já não diz ficção, teatro em todo caso?) se acorde a seu gênero de beleza, e assim ela o pode integrar facilmente em seu trabalho, seu roteiro, seu casting. Mas como ir muito longe com isso? O efeito de surpresa é rapidamente esgotado pela tautologia: “Mas olha, é ele! O que ele tá fazendo aí? Ele mesmo”. Temos, portanto, esta alternativa ( não há outras) entre cessar de gerar ficção e “ficcionar” no esquadro de uma mitologia posta em questão pelo próprio Godard com o (seu) Lang. Com gênio, Godard não escolhe entre as duas opções. Um gênio justamente utiliza estas qualidades que Lang atribui a Homero no Desprezo, ou seja, a simplicidade, a astúcia, a ousadia. O ponto de vista que, em todo caso, é o nosso é que o personagem de Fritz Lang em seu próprio papel é construído de tal maneira que ele produz no filme ao mesmo tempo uma espécie de dimensão documentária e uma certa espécie de dimensão mitológica, ambas bem específicas da démarche godardiana, que não se interessa nem pela realidade nem pela ficção, mas pela verdade do cinema, o que não é pouca coisa. E é isso o que faz a meu ver com que o personagem vá tão longe, pois não apenas é o mais belo personagem de cineasta jamais inventado por um filme de ficção, como também é auto-interpretado. O todo resultante de um enorme e magnífico trabalho de Lang e de Godard. O papel de si mesmo não é certamente a mais fácil dentre as performances de ator. Fritz Lang se empenhou neste trabalho com um maravilhoso talento, tomando-o verossímelmente com imensa seriedade. Em O dinossauro e o bebê, este profissionalismo de Lang diante de uma câmera provavelmente impressionou os realizadores do programa (3), a tal ponto que uma espécie de post-scriptum foi acrescentado, onde o ator Howard Vernon, amigo fiel de Lang, declarava: “Esta entrevista foi tão importante para Lang quanto fazer um filme, rodar uma cena de um filme”. O que o programa confirmava em seguida, mostrando ao final várias tomadas, uma melhor que a outra em relação à clareza expressiva e do tom de Lang, ou dizendo logo tudo, de sua interpretação ( jeu). Em um curioso livro publicado em 1966 pela Grasset, sob o título Esperando Godard, Michel Vianey, hoje diretor, nos conta algumas cenas de que foi testemunha, ele que visitava sempre Godard nos anos 60. Estranhamente, o nome que ele dava para Godard era “Edmond”, o que explica o diálogo que se segue com Lang, durante a filmagem de O desprezo: - A que horas começamos amanhã, Edmond? Edmond ergue para ele seus olhos inquietos, azuis, embora deixem na memória uma recordação negra. - Não sei. - Você vai precisar de mim? - Não sei. Inimigo da improvisação, Lang não devia apreciar nada este “Não sei o que fazer”. Daí talvez estes pequenos acessos de rabugice que, segundo Vianey, ele deixava sempre irromper na filmagem: “Este Godard não sabe o que quer, diz Fritz Lang, quebrando a casca de um ovo duro contra o pé de sua cadeira. Ele é incapaz de dizer o que quer, se é que ele quer alguma coisa. Por que eu estou aqui? O mar tá feio, etc” Fritz Lang, no entanto, interpretou muito bem Fritz Lang. Seu “obrigado, você é muito amável!” murmurado para Brigitte Bardot como um gentleman francófono da velha Europa é com efeito devastador, digno de Stroheim. Como ele sabe jogar com seu monóculo, sua bela cabeça, jogá-la para trás, intenso de lucidez e metafísica, citando Hölderlin, como cabe a um artista. Como maneja com brio o tom exasperado com que redargüe ao produtor, que insinua que o que ele rodara não estava no script: “IT IS!”. Como se serve bem também, em seus momentos de cólera e de desprezo, do rugido sonoro de seu sotaque germânico em inglês: “Natchrely, bi-kôze in zé skript it is vrrrrittten!”. É irresistível. E sobretudo é impressionante como um homem de 73 anos sabe, com o natural e a facilidade de um John Wayne, caminhar por um plano, ocupá-lo com seu corpo, ressentir com graça intensificada o próprio peso, o que é provavelmente a coisa mais difícil de se fazer para um ator não profissional. Como Godard pôde dirigi-lo? Não saberemos jamais. Provavelmente deixando-o utilizar deste savoir-faire com o qual, desde 40 anos, ele dirigia seus atores: “Eu penso... que o bom metteur en scène não é aquele que diz aos atores como eles devem interpretar, ou mesmo que lhes mostra, como muitos o fazem. Se faço um filme com 20 atores, não quero ter 20 pequenos Fritz Lang que se agitam na tela”.( 4) Um único Fritz Lang também deveria ser suficiente para Godard. E justamente, ele o tinha à mão. Seria decente que pretendesse mostrar a Lang como ser Lang? Mas é claro que poderíamos apostar que o próprio Fritz Lang, um arquiteto de tal monta, não aceitaria jamais se prestar a este jogo se não tivesse, previamente à filmagem, tomado algumas precauções para que este “papel de si mesmo” que lhe fariam interpretar lhe conviesse. Um belo texto de Lotte Eisner, guardiã do templo languiano, nos esclarece a este respeito.( 5) A Cinemateque Francesa, por mediação do “dragão” Mary Meerson, se envolveu pessoalmente para convencer Lang, que aliás pediu a Godard para que este lhe apresentasse o roteiro. Godard o fez. O que provavelmente lhe custou mais trabalho em sua vida de autor do que a obrigação de submeter o roteiro aos produtores: um produtor pode ser, digamos, “levado na conversa”, sobretudo por Godard. Mas não se engana Deus nem Fritz Lang. E Godard, protestante, sabe-o bem. As “medidas” do personagem deviam portanto ser tomadas cuidadosamente. Valeria a pena em relação a isso consagrar um estudo aprofundado ao verdadeiro coup de force ( tarefa difícil, que demanda esforço) de roteiro em virtude do qual Godard construiu o personagem de Lang “a partir” do romance de Alberto Moravia. ( 6 ) A respeito de Il Disprezzo, o próprio Godard se refere com desprezo, e categoricamente: “Eu fiquei com a matéria principal, e simplesmente transformei alguns detalhes, partindo do princípio que o que é filmado é automaticamente diferente do que é escrito, portanto original”. ( 7) Se observarmos mais atentamente, veremos que a matéria principal do romance conservada por Godard é a história de uma grave crise conjugal vivida por um casal no qual o marido, escritor, por amor à sua mulher ( em todo caso, vontade de lhe oferecer um belo apartamento), é levado a aceitar trabalhos um tanto mercenários como roteirista de cinema. Ainda no romance, estão implicados num projeto ( um projeto apenas: nada de filmagem) de filmar a Odisséia: um produtor, um metteur en scène alemão e o roteirista em questão. Mas o produtor ( italiano) de Moravia é um simples comerciante de cinema, profissional apenas competente que deseja, a partir da Odisséia “tal qual ela é” ( poética, diz ele), realizar algo como um bom peplum, com sereias, ciclopes, e um Ulisses bem heróico. Ele encomenda um roteiro neste sentido, e o roteirista se submete, sabendo bem o risco que a poesia de Homero corre de adquirir uma pátina de vulgaridade à la Cinecittá. É então que ( no romance) o metteur en scéne alemão- a respeito do qual Moravia faz questão de precisar que “não se trata de um diretor da classe de um Pabst ou de um Lang”- põe na cabeça filmar uma Odisséia freudiana ( é seu sagrado lado germânico que insiste nisso), e nada joyceana, apesar de suas pretensões modernistas; o herói de sua Odisséia edipiana, petrificado no “complexo”, cometeria todos os atos falhos do mundo para não conseguir merecer o amor de sua mulher Penélope; Penélope que, justamente por culpa do marido, é aliás muito complacente para com seus pretendentes. A partir deste material, Godard essencialmente apenas operou uma redistribuição de papéis. Mas esta, no fundo, é tão radical quanto sutil, em relação às transformações que implica no jogo moral dos conflitos. O produtor e o diretor ainda se opõem em Godard, mas não da mesma forma, já que agora cabe ao primeiro- americano, no filme- a estúpida intenção pseudo-moderna, a idéia estapafúrdia de interpretar a Odisséia à luz de Freud. Quanto ao roteirista,- que não pode em Godard se opor a ninguém-, simplesmente o filme lhe retirou o papel de consciência da obra para dá-lo ao metteur en scène. Todas as belas coisas que ele dizia no romance foram postas por Godard na boca de Fritz Lang, inclusive esta magnífica idéia de que “O mundo de Homero é um mundo real”, e que “a beleza da Odisséia reside justamente nesta crença na realidade tal como ela é, tal como esta se apresenta objetivamente, em uma forma que não se deixa nem analisar nem decompor, e que é o que ela é: a tomar ou a largar”. O grande ganho moral destas transformações é portanto o personagem do metteur em scène, a quem Godard deu precisamente “a classe de um Lang”, toda a envergadura de um velho sábio ( um chefe indígena, escrevia Lotte Eisner), petrificado pela verdadeira cultura européia, e que sabe que não se brinca nem com a presença dos deuses em Homero nem com sua ausência em Hölderlin. Naturalmente, o personagem adquire um estofo considerável. E o “romance verdadeiro” da vida de Lang- em particular sua ruptura com a Alemanha nazista em 1933- é evocado neste filme de forma bastante explícita para contribuir a exaltar a figura, a tornar densa sua “persona”, até transformálo no ator privilegiado de uma evolução da consciência ocidental. E, claro, neste momento, Moravia está bem distante, mesmo se o diabólico Doutor Godard tenha sabido tomar emprestado trechos inteiros de seu texto, que ele, por assim dizer, “recontextualizou”, redistribuindo-os e filmando-os. Toda a lucidez própria à consciência infeliz do roteirista se tornou consciência infeliz no metteur em scène, que assume com a maior dignidade. As mãos puras que não possuem mãos tornaram-se mãos que devem se sujar bem ao trabalho. Toda a obra americana de Lang não foi colocada sob o signo desta experiência? “É preciso sofrer”, diz Lang a Piccoli. Em uma palavra: em Godard, é o diretor quem dá as lições de moral. E é pelo travelling que este terá a última palavra, no silêncio de trabalho do plano. O esforço de adaptação pelo qual o roteiro foi elaborado é portanto aqui mais um efeito que uma causa. E certamente Godard não teria empreendido este coup de force se não tivesse sido conduzido a ele pelo conjunto de verdades críticas a que se aferrava no ano de 1963. Ao menos doze anos de reflexão o levaram à maturidade. O trabalho de Rivette, Chabrol, Rohmer, Truffaut, de Moullet e, dialeticamente, o de Bazin, a quem o filme é dedicado ( por uma citação talvez inventada) não deixaram de contribuir a esta elaboração. Pois o Fritz Lang de O desprezo é uma criatura política: sua Odisséia é a Odisséia do autor. Já podemos pensar- mesmo se é um pouco forçar a cronologia do percurso ideológico de Godard-, que estas “idéias justas” a partir das quais Lang foi concebido em O desprezo vem de uma certa “prática social” e “reflexão sobre as relações de produção”, no campo do cinema é claro. Prática e reflexão que, no começo da Nouvelle vague, todos os seus membros haviam assumido em conjunto, quando se interrogavam sobre o verdadeiro lugar da instância criativa decisiva no cinema. Este lugar para eles era a mise en scène, razão pela qual batizaram de autores- ou seja: responsáveis de jure pela criação- aqueles que a praticavam enquanto homens livres, na contracorrente de todas as limitações do tempo, do dinheiro e do box-office, contra todas as ditaduras da produção. Concepção altamente romântica, sem dúvida, esta figura soberana do autor, e que com freqüência confunde seu desejo com as realidades, mas que teve ao menos a vantagem, sob o ponto de vista crítico, de ajudar a discernir algumas destas realidades, no campo exemplar ( por ser ao mesmo tempo limitado pelo esquema de produção e muito criador) do cinema hollywoodiano. É aqui que o aspecto documentário de O desprezo aparece. Esta ficção de um Lang rodando na Itália com um produtor americano possui algum grau de verossimilhança, em termos da história do cinema. Não podemos deixar de pensar ( o próprio Moravia deve ter pensado) nesta produção ítalo-americana de Ulysses, que foi um projeto de Pabst e que foi finalmente dirigido por Mario Camerini em 1954, com Kirk Douglas e Silvana Mangano. Mas sobretudo o roteiro de Desprezo delineia metaforicamente a situação do metteur em scène em sua relação com o produtor clássico hollywoodiano como uma configuração geral, estrutural. Este roteirista imposto por um produtor que aterroriza a todos com a perspectiva de falência ( perdre sa chemise) com um diretor incontrolável poderia ter sido aquele que foi imposto a Nicholas Ray durante a filmagem de Amargo triunfo ( 8). A intervenção do rewriter mercenário é um caso de figura real e típico da prática hollywoodiana, e Lang mesmo deve ter passado por isso. Não excluamos ainda que Godard deve ter guardado na memória certa discreta mas dura polêmica que, em 1957, opôs Rivette a Bazin a propósito de uma reavaliação crítica de Beyond a reasonable doubt. Ali onde Rivette via “uma depuração” e “menos a mise en scène de um roteiro que a simples leitura deste roteiro” ( 9), Bazin acusava “ um tal desprezo por seu roteiro que ele ( Lang) só podia salvaguardar sua dignidade operando em torno desta história o vazio barométrico da mise en scène”, o que, segundo ele, conduzia o valor desta obra não muito distante do “zero absoluto”. ( 10) A bela questão que coloca a presença real e simbólica de Fritz Lang em O desprezo é bem esta, que é justamente o ponto crítico de uma política do autor: o cinema constitui um único corpo com as imagens e os sons. E é no domínio destes que se mensura o poder de um autor, portanto da mise en scène. Na escolha das rushes, tudo já está consumado. O ato de criação já ocorreu, é tomar ou largar. E enfim não constitui uma das menores audácias de Godard ter filmado planos de uma Odisséia que Fritz Lang deveria ter filmado. Estes planos, pouco numerosos aliás, Godard previa com sutileza que um exegeta embusteiro poderia ter rejeitado a paternidade de Lang ao filmá-los, colocando sua E o belo espaço vertical desta casa de Malaparte. é claro. mas do artista): o legatário pode tornar-se o herdeiro de seu próprio herdeiro. Piccoli e Jack Palance chegam em O desprezo ( e talvez todos os atores em Godard) a uma estranhíssima consistência de seu "ser aí" no filme. suspensa entre o céu e o mar pela escala de sua escadaria asteca começa a se assemelhar. o vampiro de Dusseldorf. É preciso notar também como Godard. como Hitchcock” ( 11)integrou alguns destes planos à ação global de seu filme. concernente aos direitos de sucessão em matéria de arte ( pois . geneticamente sob a influência de um mesmo programa. Notas: 1. uma história que trataria de analisar a qualidade do ar onde os dois pintores. seus espectadores. planos de detalhe ( os closes da imagem dos verdadeiros deuses. Entre As Meninas de Velásquez e as de Picasso. onde Michel-Ange encontrava Rembrandt. ou seja. articula-a e a constrói em virtude destes poderes de abstração que constituem a força maior que Godard e seus companheiros reconheceram na lição de Lang. E que esta liberdade só pode se assemelhar à sua. ou mesmo o filho de seu próprio filho. vai cometer a gaffe de sua vida ( um infeliz atraso no encontro com o produtor e Bardot) que vai lhe custar o desencadeamento do desprezo de sua mulher. mal inspirado. Crer que neles se inscreveu a única marca possível de seu respeito à liberdade criativa soberana de seu mestre. riquíssimo em diversidade de níveis. O estranho caso da espécie do encontro de Lang e Godard em O desprezo constitui talvez jurisprudência na aplicação de uma nova lei. um puritanismo de Godard devem aqui ser levados em conta: com que direito ele se permitiria de imitar o estilo de Lang? É preciso acreditarmos que estes planos filmados por Godard foram antes de tudo um presente ofertado a Lang. Assim. filialmente suscitar a semelhança. o plano “languiano” de Netuno. aos andares arquiteturais nórdicos dos porões de M. Que pensar com efeito destes planos. os olhos pintados das estátuas ( detalhe realista) e a maquiagem exagerada de Penélope. o (pequeno) soldado saúda um ( grande) artista. sob a responsabilidade de seu assistente. senão que eles são realmente muito pouco languianos? E que eles são eminentemente godardianos. e do primeiro olhar de Ulysses quando reencontra sua pátria). um dos continentes a se explorar de uma história do cinema que não temeria bisbilhotar um pouco sob a perspectiva do que se passa entre os cineastas.se encontram conjunta. a filiação permanece uma grande questão aberta.e nós. É certo que Bardot. Entrevemos aí em todo caso que a herança.autoria a cargo de uma segunda equipe de Lang. reaparece como um signo premonitório de seu próprio destino. como em Tempos de guerra. Bardot é talvez mais ela mesma que Camille Javal. evocando já o sex/violence/action/painting de Pierrot le fou? Uma radical honestidade. O diferencia? Sim e não. ou do palácio hindu do Túmulo indiano. Aqui. em sua versão solar e mediterrânea. quando Piccoli. inimigo mortal de Ulisses. O Desprezo em: Godard por Godard 2. Talvez não se deva . O todo do filme de Godard só pode portanto funcionar pela integração de uma parte que lhe dá sua força clássica.já que ele havia muito bem assinalado como crítico que “Fritz Lang se interessa mais por uma cena que por um plano de detalhe. o próprio Godard. com eles. Talvez Godard tenha visto os olhos pintados de Marlene Dietrich em Rancho Notorious como os da estátua de uma deusa viva. não se trata mais aqui de direitos do autor. e de sua abertura (imagem que autoriza o retorno luminoso do recalcado em De Palma). O mundo-olhar de Brian de Palma. Jack se inquieta. o corpo ensangüentado de uma jovem. 7. A imagem. 6.a jovem. Recorrer naturalmente sobre este tema à obra publicada este ano por Christian Bourgois por Bernard Eisenschitz.jamais propriamente falar em personagens em Godard. A câmera de vídeo faz uma panorâmica para enquadrar Claire ( Emmanuelle Béart) . o olho tornou-se câmera em um mundo regido pelo olhar. Mas é com esse gênero de romance que se faz com frequência os mais belos filmes". Iannis Katsahnias No princípio.1 No cinema de De Palma. no Fritz Lang publicado pelo Cahiers du cinéma em 1984. 3. depois torna- . O Desprezo em Godard por Godard 8. citado por Moullet em sua obra sobre Lang. saído de sua órbita em Phantom of the paradise). Não me lembro do que aconteceu. escreve Bataille. com efeito. já que nele os mistérios da encarnação estão longe de serem elucidados. número 437. Ficha redigida por Godard para UFOLEIS sobre O retorno de Frank James. e que ocupa um status extremamente elevado no horror: o “olho da consciência”: “Parece. Um outro homem o pressiona: “Me diz o que eu quero saber e eu te tiro daí”. 11. 10. É este livro que Bardot lê na banheira. a mulher morrerá. dotados de poderes extra-lúcidos e maléficos de Gillian/Amy Irving. em close.” Ao seu lado. Opiniões de Lang citadas por Luc Moullet em seu belo livro sobre Fritz Lang. 9. Em Missão: impossível. nada sendo mais atraente nos corpos dos animais e dos homens. Mas a sedução extrema coincide provavelmente com os limites do horror”. produzida por Janine Bazin e André Labarthe em 1965. Televisão. ele vê as pulsações do coração da jovem diminuírem perigosamente. Godard escrevia no texto sobre o livro já citado: "O romance de Moravia é um bonitinho e vulgar romance de estação rodoviária. cheio de sentimentos clássicos e ultrapassados. tateia. Imagem atraente tornada inquietante. Lang e O desprezo. Cahiers du Cinéma. em A Fúria). impossível com relação ao olho falar de outra coisa senão de sedução. apesar da modernidade das situações. A silhueta de um homem ( Jack Emilio/Estevez) que observa a cena transmitida no vídeo em preto e branco: um homem geme em russo: “Eu não me lembro disso. Trata-se de um programa da série Cineastas do nosso tempo. A vacilação das aparências. Se esta cena durar alguns segundos a mais. é o olho. Cahiers du Cinéma. Rádio Cinéma. nebulosa a princípio. O olho de peixe morto de Marion Crane ( Janet Leigh) sob a ducha de Psicose: imagem guardiã de um túmulo ( guardiã do recalque em Hitchcock). Romance americano: as vidas de Nicholas Ray. Il Disprezzo. Tradução: Luiz Soares Júnior. outubro 1957. telepático ( os olhos azuis fosforescentes. novembro 1990. 4. Sobre a tela de seu computador. Um monitor no fundo de um cenário sombrio. 1954. sobre base de uma entrevista de Lang filmada por Godard em 1964. o olho aberto da morte torna-se sucessivamente “ guloseima canibal” ( o olho do Fantasma/William Finley. fevereiro 1957. hesita. 5. Philip se aproxima dela e fixa-lhe o olhar. e que ela se sabia olhada. de oscilar entre a vida e a morte. Móvel. ao olhá-lo. pousa sua bengala e começa a tirar a roupa. ela arrisca-se a se perder a cada momento. um objeto interdito. Danielle Breton ( Margot Kidder). Close em contra-plongé. Seu interrogador tira sua máscara e descobre seu verdadeiro rosto: é Etahn Hunt ( Tom Cruise). um Negro.se nítida. o mentor. sonho e realidade. uma relação mortal estruturada por estes dois abismos. ondulante. O duplo olhar. o implica definitivamente. Então. que se debruça sobre Claire quase morta. sua forma de encontrar seu lugar em uma super-produção hollywoodiana. A partir deste momento e até o fim do filme. torna-se ainda mais complexa pela existência de um terceiro olhar: a câmera de televisão que registrava a cena. o pai espiritual de Ethan. de Otto Preminger. Tudo se dá neste instante onde o rosto de Claire chancela entre o flou e o nítido. A câmera dá um zoom para trás. Uma situação que poderia não passar de uma simples história de voyeurismo ( como se o voyeurismo pudesse ser simples!) . para reencontrarmos uma tal representação do fantasma encarnado num espectro ( phantasme devenu fantôme). um desejo frustrado. Claire arrisca-se a cada instante a se perder. recoloca sua calça num vestiário. Compreendemos que Danielle não era cega. estaca no meio. para reencontrar-se mais adiante . já morta. uma relação intersubjetiva entre um sujeito que olhasse e um sujeito olhado sabendo-se olhado. A abertura de Sisters: seguido por uma panorâmica de alto a baixo. No plano seguinte.um quadro no quadro. onde ela navega entre a vida e a morte. a frustração é ressentida no outro. A câmera faz um zoom dianteiro sobre seu rosto. ela não cessará de inquietar o olhar de Ethan. um agente da IMF ( Força da Missão Impossível). diz Lacan. Talvez precisássemos retornar a Laura. próxima e distante ao mesmo tempo. 2 A morte icônica de Claire a transforma em ícone. contempla Ethan e. O homem interrogado acaba por falar. Close de uma injeção intravenosa que mergulha no braço de Claire para reanimá-la. uma cega com óculos escuros e uma bengala branca. ora o objeto desaparece ( sublinhado meu)”. No primeiro plano. Trata-se de um programa de televisão. incapturável.ora o desejo se extingue. Philip Wood ( Lisle Wilson). A interpretação de Béart.Esta cena instaura uma dialética do olhar. o patrão. Sua inquietude revela um desejo que ele tenta ignorar. e Etahn com ela. intocável. in extremis. de Ethan. em um mesmo movimento. o sujeito ressente o mau objeto como uma frustração. de aparecer. Por mais prematuro que seja o seu envolvimento. torna este jogo da dupla distância comovente. perder-se nas engrenagens deste gigantesco mecanismo. O que é importante aqui não é o que . Claire abre os olhos. E. Claire. e é morto em seguida. focal curta. entra no quadro pela esquerda. imagem aurática. à imagem de seu personagem. a mulher de Jim Phelps ( Jon Voight). Pois. Há uma relação recíproca de aniquilação. Não se trata de uma aversão animal. é um mau objeto de desejo. A imagem se congela. tudo se redimensiona. reencontramos a imagem congelada de Philip Wood numa tela de televisão.sobre o qual vêm se desenhar um buraco de fechadura e a inscrição “Peeping Toms” ( Voyeurs). “A frustração não é um fenômeno que possamos objetivar no sujeito sob a forma do desvio de um ato que o une a este objeto. perseguido. Mas o que importa aqui não é o fato de que Jim Phelps vê o que Ethan Hunt vê. manipulado. o caçador profissional. já que um oráculo predira que ele mataria seu pai e dormiria com sua mãe. Tal como Édipo. assim como do espectador.a câmera de televisão. exilado. por ter matado seu pai e dormido com sua mãe? Não. A noite de Ethan Hunt. dirigido. os óculos Visco não são apenas um simples truque. Seu nome próprio deve ser tomado ao pé da letra ( hunt: caça. filmada em exterior em Praga. transformada em personagem fora de campo. alguns minutos depois que este copiou em um disquete a lista secreta dos agentes americanos na Europa Central. e Jim Phelps também. Durante todo o início da cena.Philip Woods olha. traído. o culpado não é ele. impedido por Jim Phelps de ver o que realmente se passa: o grupo Phelps é vigiado por uma segunda equipe que tem por objetivo desmascarar o espião que se infiltrou há algum tempo na IMF. O que a estrutura é o que não é visto. o pai espiritual de Ethan que joga Claire. com a capacidade de transmitir aquilo que o personagem que o carrega vê e ouve a um monitor que se encontra a mais de um quilômetro de distância. Nesta relação. sua jovem esposa. seu rosto permanece oculto. Magnífica cena de errância e de perda. O olhar subjetivo de Ethan Hunt é objetivado. onde o nevoeiro oculta um novo assassinato. controla e coordena a operação. impulsiona-o até os seus limites e acaba por manipular o olhar do personagem. Em Missão: impossível. Soberbo trabalho de Steven H.o olha olhar. O olhar objeto. A equipe de Jim Phelps deve penetrar no interior de uma festa na embaixada americana de Praga. busca). Esta relação entre aquele que olha-aquele que é olhado se torna mais complexa em Missão: impossível. Apenas vemos o que aquele personagem (transformado em câmera) vê. enganado. O ponto nodal desta cena. um câmera ao qual devemos a imagem memorável de filmes como . Burum. pois a câmera adota seu ponto de vista. quem é o culpado? Édipo. Em um apartamento próximo da embaixada. mas se tornam um instrumento que estabelece uma dialética do olhar. o virtuose da manipulação e do bluff. Os culpados são seus pais. para que ele se extravie nos meandros da noite negra de Praga. ele. Ethan Hunt parte em busca do culpado. burlado. e todos os membros da equipe são mortos um a um. são os óculos Visco: os óculos dotados de um microfone e de uma câmera miniaturizados. A operação fracassa. o que a estrutura e forma. É o fato de que outro alguém. Ethan Hunt penetra na embaixada sob a aparência do senador Waltzer. Em Édipo Rei. com o objetivo de prender o espião Alexandre Golitsyn ( Marce Iuris). transformada em um labirinto onde a luz oscila entre a latência do azul-noite e a violência do laranja. aquele que montou esta maquinação para acusá-lo de ser um espião. caçado. que o abandonaram na montanha para salvar a própria pele. Como Édipo. o essencial não consiste no que é visto. em seus braços para melhor desorientá-lo. Nas mãos de De Palma. o culpado é Jim Phelps. Jim Phelps vê e ouve tudo. Um único sobrevivente: Ethan. desacreditado. dizer o quanto o desnorteamento de seu personagem se imprime em cada gesto. meu pai.. posto. diz a jovem Asiática a Erikson/Michael J. seu olhar tomba sobre um exemplar da Bíblia.. Entre duas Mortes.que no entanto ele persiste a reconhecer e adorar. Elohîm permite que Jó perca seus filhos e seus bens. eu repousaria. Em vão. Assim como Jó. e que seja duramente atingido em seu corpo por um mal aparentemente incurável. no final de Casualties of War). Ele estende suas mãos ensangüentadas para Ethan: “Eu precisava de você. segundo Kittridge. saído do ventre para agonizar? (. ele tenta variações. A porta do apartamento se abre e Jim Phelps aparece resfolegante. The untouchables. O que conta o Livro de Jó? “ Incitado por Satã. ou Body double. sobre um móvel diante dele. Trata-se do Livro de Jó. A vida seria então a longa agonia que dura o lapso de tempo que separa duas mortes: a primeira é o nascimento. Ethan espera a resposta à mensagem enviada. acusado pelo agente da CIA Kittridge ( Henry Czerny) de ter liquidado seus amigos para se apropriar do disquete contendo a lista dos agentes secretos americanos atuantes na Europa e vendê-la ao traficante de armas Max. O sofrimento do justo permite assim evocar o problema ontológico do mal. como que por acaso. acaba num pesadelo ( O que está te acontecendo? Você parece que teve um pesadelo?”. Uma questão central domina a obra: como apreciar o destino de Jó em relação às regras geralmente admitidas da retribuição? O sofrimento do justo deve nos fazer duvidar da ordem moral universal? O drama atinge as dimensões da tragédia: Jó é dilacerado na profundidade de seu ser. No momento em que seu desespero atinge o pico. então. por que me . Raising Cain. que se constroem mausoléus”. Não dá em nada.“Meu pai. Jó abre a boca e maldiz o dia em que nasceu: “Por que não morri eu na matriz. e você não estava lá”. conselheiros da terra. o Sábio é levado a se revoltar contra Jó. Ele tecla no computador “job 314”. com os reis e os conselheiros da terra. escreve André Chouraqui. E Ethan vê a luz: “job” ( Jó. uma ferida no peito. perdido. 3 No capítulo 3. É preciso falar aqui de Tom Cruise. Sua única esperança para se livrar das acusações: lançar pela Internet uma mensagem a Max. que constroem mausoléus”).)Sim. agora eu estaria deitado e em paz. eu dormiria. Ethan é um herói trágico traído por seu pai. O Livro de Jó. o código que. ele não compreende a justiça deste Elohîm . mais precisamente do capítulo 3 ( Pereça o dia) e do versículo 14( “com reis. A iluminação e um zoom dianteiro destacam a Santa Escritura dentre os outros livros. trabalho. Desacreditado. emprego) tem de ser tomado no sentido bíblico. cada movimento de seu corpo. desvia as últimas palavras do Cristo. como por acaso.The outsiders e Rumble fish ( Rusty James) de Coppola. Presença fantasmagórica que cobre Ethan de recriminações. Fox. Max utiliza para esta operação. Casualties of war. Jó. o quanto o luto antecipado ou diferido do órfão parricida é visível sobre o seu rosto emagrecido. Eu precisava de você na ponte. o Justo”. Carlito’s Way de Brian de Palma. Todo o personagem de De Palma é um sonhador que. coberto de lama. Ethan entra no esconderijo do grupo. igualmente falso.Não gosto de cinema. O olhar está definitivamente desestabilizado. em um mundo onde os gestos não possuem mais nenhum alcance. A única coisa que De Palma retém da série é justamente esta idéia de auto-destruição. Aquilo que vemos não é aquilo no qual cremos. Phelps.o orifício de ventilação situado no telhado. O breve lapso de tempo que separa estas duas aparições acaba por jogar Ethan no isolamento absoluto. deixando-o cego. como seu nome indica. que acreditávamos mortos. com a inevitável fórmula final: “Esta fita vai se auto-destruir em cinco segundos”. Parece esgotado. meu filho. responde ele secamente. Cada nova etapa conduz a um impasse e acaba por construir um palácio de espelhos de cristal. apesar de seu inegável humor. Tudo o que ele vê ou que aparece só pode ser um sonho dentro de um sonho. Ele se volta e encontra Claire face a face. Esta coloca Ethan no limiar entre dois sonhos.é evidente-. Cada nova cena anula a precedente.abandonastes? “. Ethan Hunt afundado na poltrona de um avião que o conduz não sabemos paraonde. Max não é. Seguro unicamente por uma corda. Jim Phelps volta à cena para contar a história sob um outro ponto de vista. acendendo um cigarro. insiste ela. A única piscadela ( clin d’oeil) do filme que anuncia a série.Mas um filme ucraniano não lhe diz nada?”. Mr. A narrativa de Missão: impossível se auto-anula à medida em que progride. Jim e Claire Phelps. A barreira que os separa é porosa. Plongé e contra-plongé se confundem. permeável. No fim do filme. mitiga a fumaça exalada pela fita que se auto-destrói.para transformá-las em “Meu filho. um olho no qual Ethan penetra passando pela pupila. A segunda visão não anula a primeira. cassete que. Não sabemos mais se a câmera está em cima ou embaixo. mas o anúncio de uma nova “missão impossível”. Uma aeromoça se aproxima dele: “O senhor quer ver um filme. antes de passarmos aos assuntos sérios ( pois . Jim Phelps acaba por aceitar a fita de vídeo que a aeromoça lhe oferece. Do gozo ( jouissance). como velho habitué deste ritual tornado clichê. aniquila a própria idéia de ficção. o filme é espantosamente grave. um homem mas uma mulher ( Vanessa Redgrave). estão vivos. O caráter labiríntico da narração e a impossibilidade de fixar a percepção sobre qualquer imagem atingem seu ponto culminante no momento onde Ethan viola o caixa forte da CIA. sublinhando a palavra “ucraniano”. por que me abandonastes?” Close de uma mão feminina que toca o ombro de Ethan. no limite do trágico): Jim Phelps está em um avião. O pesadelo continua. Auto-destruição. não contém nenhum filme ucraniano. Esta peça protegida pelo sistema de vigilância mais sofisticado do mundo torna-se o interior do globo ocular. Ethan vem ocupar o lugar do . ele flutua neste espaço branco asséptico. A cena da embaixada é revista e corrigida por Kittridge. prefiro teatro. Phelps?. Neste momento. situado numa dimensão muito distante daquela que o toca e daquele que tenta tocá-lo. Nenhuma destas experiências pode ser banalizada. As sensações contraditórias que dispõem do personagem neste instante são neutralizadas. e o espectador também. obtida a partir da decomposição dos mais variados elementos da existência. já que acossada. A Bíblia. Georges Bataille. Isto equivale a preceder o inelutável com o propósito de aboli-lo ( em vão). extenuante e.ou dando a ilusão de se deslocar-. 3. ou antes: só nos propicia de seu pensamento elementos aparentemente incoerentes. Mostrar apenas movimentos inúteis. em Os pássaros. traduzida e apresentada por André Chouraqui. O que equivale a dizer: mostrar o que . onde os fins perseguidos jamais se situam no momento exato em que são buscados. mas mostrá-lo quando o espectador estivesse desprevenido.ou abortados tão logo iniciados-. A explicação é simples. 2. que se eleva e aterrisa ao se deslocar. inofensivos ao final das contas). Livro I: Os escritos técnicos de Freud. de momentos orgásticos. vida petrificada que surpreende pela forma com que é destilada. a morte é uma coisa breve. Em Tourneur. Jacques Lacan. ou então a mostrá-lo como se não acreditássemos mais nele. no entanto. totalmente decorativa. Obras completas I. rapidamente recomposto. de espera. Mas há aí um partis pris constante em Tourneur: jamais mostrar um evento dramático quando o exigisse a situação. com freqüência inesperados. poder-se-ia pensar. O menino baleado fatalmente à janela. sua maneira de contar uma história consiste em dar uma imagem abreviada( raccourcie) da vida. feita de fluxos e refluxos. Appointement in Honduras é isto e muito mais. Missão: impossível esposa o movimento ondulatório da jouissance. duas imagens de morte brutal são propostas ao espectador com a mais perfeita precaução. mascarada. Cahiers du Cinéma. da maneira mais inesperada que pudéramos conceber.espectador. a visão mais brutal e mais elaborada possíveis. a evitar as abordagens supérfluas. ou antes com a emoção que se retrai ( le coeur oté). ao mesmo tempo. de picos e de quedas vertiginosas. que vivera duas horas de jouissance cadenciada. pelo contrário. Três Tourneur Cineasta maldito. ou antes: uma vontade de precipitar a morte. depois de termos acompanhado a causa desta explosão. É um cinema da “pegada” ( empreinte). Interstícios entre a aparência e a realidade. mas de um desejo de não mostrar nada. comédia e drama. Tradução: Luiz Soares Júnior. o carro que explode. Tourneur dá de sua obra. recusada. crueldade inútil ( crocodilos e serpentes ameaçadores ao se lançarem. simular o rigor quando trágica é a desordem. irremediável. em Wichita. dizer a verdade quando esta tivesse desaparecido. do qual pouco a pouco nos aproximamos. sem causa aparente. quando ele não esperasse ou não esperasse mais. de breves instantes de relaxamento. são características que me parecem desvelar uma impotência em captar a vida. o velho com os olhos perfurados. Notas: 1. pois o filme começa sem que a emoção nele se instale. Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque sistematicamente recusa-se a oferecer ao espectador qualquer ponto de apoio a partir do qual este poderia ter acesso a seus filmes. O Seminário. de jorros descontínuos. uma visão alucinada. é uma cena exemplar desta estética: enquanto que Hitchcock organiza ( encena) até mesmo as reações dos seus espectadores. depois recompondo-os de forma a acelerar certos movimentos. novembro de 1996. não de uma impotência a mostrar o Todo. número 507. Basta comparar a estrutura de suas cenas com as de um Hitchcock. vida e morte que constituem provas. visando este fim que ela jamais atingirá. A partir destes impulsos. que apaga tudo o que está a seu redor). Compreende-se a dificuldade em sermos afetados por eles ( de forma plena. à idéia inicial do autor. Este é um cinema novo. às custas das ações importantes. Não nos espantaremos de verificar que. talvez. são até mesmo inimagináveis. Sem nada cultivar. O anódino torna-se capital e ( como o artista) vacilamos diante destas coisas que se desvanecem: anima-se o Nada. ou seja. e que consiste em nos apresentar. aproximarmo-nos dela ( por meio de nossa própria sensibilidade). a aproximação indecente de pessoas estranhas umas às outras). ao mesmo tempo em que somos deslumbrados. Mas ele nos permite descobrir um outro valor: o de uma consciência opressa pelo desespero. nada pode colher. subsistem apenas impulsos fracassados em direção a uma obra jamais realizada. sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. O sentido desapareceu. em Jerry Lewis. o de uma tensão que não se distende jamais. que o mesmo tentou subtrair a nosso olhar. Se. desejando mudar a vida. cintilantes de um brilho único. os elementos reunidos em proporções diferentes. É um cinema do instante. o movimento impossível. em Anne of the Indies. Estas são ao mesmo tempo símbolos ( o sangue vermelho sobre os lábios de Jordan) e estruturas. conduzi-lo à realização que ele poderia ter tido. os personagens mais significativos sejam animados por movimentos cujo preciosismo Tourneur se empenha em sublinhar. assinalar o irreal sem razão nenhuma. Esta vem. com freqüência. na medida em que não serve de forma alguma ao seu autor ( tão desesperado ao final do processo quanto antes). impossíveis serão as relações entre uma mulher que recusa seu sexo e um homem que mascara sua virilidade. Como não pensar em Nicholas Ray. Os finais de Anne of the Indies. que não sabe como preencher a tela. Pois se o cinema de Tourneur é a princípio pensado e sentido. aqui. A imagem que ele nos propõe é. Eis em que o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que possamos imaginar: se notamos a ausência em seu cinema desta tensão que animaria as imagens petrificadas ( mesmo em movimento) de seus filmes. portanto.não é mais ou não será jamais. é porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos do nonsens. o que não somos. a ausência. do fato de que os atos são de chofre situados em seu estágio último. estas imagens desmentidas tão logo formuladas. invertida. o signo permanece. invertendo com este propósito o indispensável e o dispensável. explorar o vazio e dele mostrar apenas o vazio. ambos obcecados por estas inversões. é preciso sublinhar o papel dinâmico destas cores ( um exemplo marcante é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Appointement. Appointement in Honduras não são realistas. ao menos). Assim. sempre imensa para ele. em seguida este é destruído e recomposto: trata-se para nós de retornar ao pensamento.. e no entanto este . é porque cabe ao espectador animar com um novo movimento esta obra de onde a vida foi subtraída.. o equilíbrio natural perturbado. Eles não passam de instantes dispersos. e que poderia ter sido outra. Cabe a nós completar este filme. oferecidos à nossa visão como pedras preciosas. Este verdadeiro silêncio é a expressão de um vazio desesperado que não se aparenta ao desespero de Daves. modificando o curso das coisas. Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador? Pois o que ele busca é não dizer nada a respeito daquilo que é. sem que nos seja mostrada a evolução que os conduzira até lá ( à diferença desta estética do insustentável cara a McCarey. por exemplo. no entanto. em toda a sua extensão. e isto consiste um pouco em dizer tudo o que não é. desaparece a existência. Os limites e a ambição de Tourneur estão em outro lugar: ver ( e dar a ver) o que não é. devemos perseguir a obra. acontece frequentemente também que uma cor adquira uma importância capital numa cena. mas de tal forma que seria necessário analisar esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos. Não foi com má intenção. a face “embonecada” da jovem noiva se animará por um segundo: quando o ex-amante empunhar contra ela o revólver e fazer fogo. apaixona-se pela moça que servira de modelo à figura de cera.Eu acabei de empregar o termo “ingênuo”. 1964 Tradução: Luiz Soares Júnior. Devemos entender simplesmente. como o autor nos sugere numa breve cláusula. e assim mandar ao diabo escrúpulos e casuística? Ou. caro aos surrealistas de todos os matizes? Na dúvida. A morte ( lembrem-se da fusão da boneca no forno) parece restituir a vida ao rosto morto: o olho brilha. vamos nos ater às aparências. esta razão não deve impedir-nos de ir a seu encontro: cabe a nós preencher o papel que este não pode assumir. Deplorei muito a ausência destes momentos escolhidos em seus dois últimos filmes ( e sobretudo em Cela s’apelle l’aurore). Como todo conto bem construído. o erotismo concebido de maneira indireta ( distância) e fugitiva.. Clero e polícia figuram em bom lugar na ação. é exatamente sobre um brinquedo.que esta crueldade vai se exercer. ou seja. A crueldade de nosso herói é a mesma das crianças que torturam um animal ou maltratam um brinquedo: e. Louis Skorecki Cahiers du Cinéma. Sadismo? Estamos a léguas disso.um manequim. relaxa. Da mesma forma. e percebemos bem que. embora sejam isentas do cinismo que um Hitchcock ou um Stroheim pudessem ter-lhes imprimido. Se insisto sobre esses detalhes. através de uma porta).. morta por uma bala. é porque busco sempre em Buñuel. Mas deixemos a Buñuel seu universo próprio. Ensaio de um crime. este deixa à interpretação uma margem considerável. devemos considerar os objetos femininos destes assassinatos como os diferentes símbolos dos tabus burgueses ou religiosos que todo homem que se dá ao respeito deve se apressar a abandonar? Devemos enfim ver neste apólogo uma adição buñueliana à famosa obra de Thomas De Quincey: Do assassinato considerado como uma das Belas Artes. As relações corporais são raras.o momento onde o traço ultrapassa a intenção da mão que o delineia. Pois se existe uma distância entre todas as coisas. por Eric Rohmer Archibald de la Cruz teve a feliz sorte de ver uma outra mão perpetrar crimes que uma não menos feliz sorte lhe impediu de levar a termo. movimenta-se. amplamente fascinantes. e em particular entre nós e o metteur em scène. que possui o coração mais puro do que acreditara. de ser o metteur en scène. a carne palpita. à medida em que se decompõe. às imagens. Archibald. por não ter sido satisfeito para além de meus desejos. forçando um pouco a interpretação.cujos “dadas” sociais ou filosóficos me incomodam frequentemente por seu caráter primário. E isto na medida em que a visão anterior e privada de Archibaldo havia dado justamente fundamento às minhas exigências. ao mesmo tempo brutais e inacessíveis ( próximas nisto do gozo erótico). o golpe lançado contra estes é adolescente. sobretudo quando temos a chance de encontrá-lo melhor “calçado” ( charpenté) do que de hábito.que é conveniente não tentarmos complicar a vida. Não há sátira melhor do que a que se nutre da sobriedade de elementos ordinários.instante é sempre repartido. mas .cuja ingenuidade só é disputada pelo esplendor de sua ilustração. há três anos. neste momento. de fato. Tal é em duas palavras o argumento do filme que Luis Buñuel realizou no México. as cenas de morte também ( só dou por exemplo esta mulher em Wichita. ao cair do bolso do professor. se não de intenção ao menos de fato. de todos os filmes. E no entanto. É por este motivo que passarei rapidamente pelos méritos mais evidentes do filme. e a continua à sua maneira. sem precauções oratórias. que suscita um prazer lúdico e uma fruição infantil do cinema: isto se dá por meio do jogo de pistas orquestrado pelo autor entre documentário e ficção. outubro 1957 Tradução: Luiz Soares únior. a cada etapa de sua trajetória. entre imagem e som. cada narrador amador é informado do estado em que ficara a narrativa . solicita a anônimos para que improvisem uma história. que é o de conceber a beleza segundo as normas de Baudelaire. este décor moderno com seus brancos e negros untuosos. escolhamos duas. luxuosos e cintilantes como uma vitrine de joalheria. O ponto de partida da narrativa é dado pela primeira pessoa encontrada. e um regime de “ficção”. Ele pode designar o misterioso objeto que uma narradora introduz no conto: uma bala que. estes bibelots barrocos. Os efeitos mais preciosos. os gestos mais plasticamente concertantes só participam discretamente deste estatismo. Misterioso objeto ao meio-dia é um filme alegre. entre o filme e sua fabricação. e assim reproduzir a estrutura clivada do filme. com personagens. do teatro amador e do cinema moderno. E sabemos bem que. uma vendedora ambulante de peixes. este magnífico parque do final do filme. de Buñuel. Como Eternamente sua e Mal tropical. no cinema. que não é em geral o menor pecado de Buñuel. monstro estético produzido pelo encontro sobre a mesa de montagem da narrativa oral tradicional. os pictóricos. penso. são em grande parte responsáveis pela fascinação exercida sobre nós por estes crimes imaginários ou reais . Aí reside. Assim como liberara o herói. o manequim libertou Buñuel de seu complexo de imobilidade. o mais prazeroso e bem acabado. cadáver requintado ( cadavre exquis) 2 de cinema. o entomologista mascarava o poeta. e uma espécie de coda 1 . vítima expiatória do crime de lesa-Majestade ao cinema. estas roupas sofisticadas. Muito bem-vinda igualmente a caricatura dos turistas americanos: nenhum ou quase nenhum exagero. e teria duas significações. Que importa. Dois regimes de imagens se alternam no filme. Eric Rohmer Arts. Sobre Misterioso objeto ao meio-dia Misterioso objeto ao meio-dia segue o percurso de uma equipe de cinema na Tailândia que. Prossigamos nos elogios. Eu o prefiro até mesmo a El. elegante. de apêndice sem intrigas. Buñuel é o cúmplice amável de seu amável herói. da narrativa que está sendo improvisada. cujo fim é indicado por um título em forma de créditos. ele é dividido em duas partes bem desiguais: o conto e sua elaboração pelos habitantes das vilas. O objeto misterioso é também o próprio conto. Ali. Já devem ter adivinhado que.vivo. Dentre as inumeráveis leituras possíveis do filme. Aqui. a verdadeira moral da fábula. delimitado e intitulado pelo sibilino carton “Ao meio-dia”. o regime “documentário” dos habitantes das vilas em sua vida cotidiana e filmados na iminência de improvisar seu segmento do conto. antigos ou modernos. onde o ar que circulava não possuía esta limpidez cristalina. “Ao meio-dia” seria o título de um curto documentário sobre jogos infantis ao . “Misterioso objeto” seria o título da primeira parte. em seguida. a significação do símbolo? O que nos é dado a ver contenta suficientemente um apetite de essência muito delicada para ser insalubre. Uma brincadeira de crianças. tradução imediata. não são as intenções que importam. Podemos marcar uma cisão entre “Misterioso objeto” e “ao meio-dia”. se transforma em um rapaz. percebia-se um certo desprezo pelo personagem. A arrogância um tanto risível dos personagens se acorda com sua classe e meio social. Archibald de la Cruz é aquele que mais estimo. afinal. de frente para a câmera. etc Colocar um carrinho de plástico no pescoço de um cachorro é também fazer uma montagem áudio-visual.A invenção consiste em montar um som e uma imagem que a priori não “vão bem” juntas. o interlocutor fora de campo. consiste em fazer raccord entre fragmentos de vida que não se encadeiam. A coda documentária expõe a arte poética do filme ou. A fuga amedrontada do animal. o filme começa com um longo travelling tomado do interior de um carro em movimento. figura um autoretrato do cineasta enquanto criança que brinca. Weerasethakul utiliza a disjunção entre imagem e som para organizar a confusão entre estes dois registros. é causada menos pelo brinquedo do que pelo ruído que ele emite ao se arrastar e perambular pelo chão. Várias vezes. as aventuras do conto oral e o princípio de disjunção áudio-visual. a vendedora de peixes. Ele surpreende nosso hábitos de cinéfilos adultos restituindo ao cinema a juventude despreocupada de uma arte capaz de todas as hibridações: a iniciação amorosa toma emprestado as rotas dos contos ancestrais ( Mal dos trópicos). Um outro homem toma a dianteira – adivinhamos. se preferirem. Apenas o som pode guiá-lo. situado numa clareira da floresta. Depois do carton “Era uma vez”. mas uma caixa de brinquedos da qual podíamos dispor livremente para ousar inventar colagens. outras se divertem com um cachorro no quintal de casa. sem procurar preencher os vazios. e seu cinema no-lo oferece. ou seja. num tempo onde a vida era apenas tempos mortos. Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. depois recita uma mensagem publicitária. enquanto uma mulher s instiga a ir lavar as mãos antes de almoçar. Weerasethakul não perdeu o fio deste tempo. Primeiro ponto: as ficções afloram nos terrenos baldios dos tempos mortos da vida cotidiana. onde o mundo não era ainda o teatro saturado de nossas preocupações . começa a falar de sua infância. O cinema de Weerarasethakul encontra sua fonte na memória da infância. ou perdê-lo. Ao invés de simplesmente justapor o documentário e a ficção. O desfile contínuo da paisagem urbana é acompanhado pelo som fora de campo do rádio do carro: sobre um fundo de canção pop sentimental. Pouco sensível à comoção da narradora.pede-lhe para . ligando-os.. desenhos desajeitados são impressos na superfície narrativa de uma escapada amorosa ( Eternamente sua). Segundo ponto: fazer aflorar uma ficção. Segunda leitura: o misterioso objeto ao meio-dia é o carrinho de plástico que as crianças amarram no pescoço do cachorro. Esta abertura possui o valor de um programa estético e dramático: ela coloca. o espectador não sabe dizer se o que assiste é de caráter documental ou ficcional. É uma lembrança dolorosa. fonte do prazer infantil.meio-dia: algumas crianças jogam futebol da escola. Depois de alguns planos de diálogos entre os vendedores e os camponeses. A montagem do som e da imagem é o gesto motor de um filme cujo fim consiste em encadear o registro documentário de uma seqüência de improvisações orais e os fragmentos “encenados” ( mis en scène) da ficção improvisada. de fazê-los alternar numa lógica de ilustração ou de revezamentos. inventar relações.. e ver o que produz a sua junção. que se trata do condutor do carro falando num auto-falante: “A cavala tá chegando! Direto de Mae Khong! Cavala ao vapor e cavala salgada!” Nos fundos do furgão está sentada uma mulher. pela mudança no registro da voz.compreenderemos mais tarde que se trata da equipe de cinema encarregada de coletar os fragmentos do conto coletivo. Colocar um brinquedo no pescoço de um cachorro é fazer uma versão infantil do “cadavre exquis”: ligar dois elementos heterogêneos e ver o que produz o seu encadeamento. Terceiro ponto: inventar semelhantes histórias é um jogo de crianças. legendas permitem a macacos falarem. uma voz masculina narra uma história de amor fracassado. É preciso saber “tomar/ dar um tempo”. ele faz persistir. depois o vizinho se engaja no processo. indeterminada. o universo documentário sobre as imagens mudas da ficção. ligeiramente abafada pela distância: “A cavala tá chegando! A cavala de Mae Klong!” Enquanto a mulher deixa a janela para ficar próxima ao rapaz sentado à mesa. com um retardo mais ou menos longo. suspender as ocupações para nos tornarmos disponíveis à potência ficcional que cada um carrega em si. segundo o mesmo ponto de vista. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo poder do som sobre a imagem. sua encenação cinematográfica. ficção e making of da ficção se enlaçam em uma mesma duração. A única condição a esta cristalização espontânea reside na disponibilidade oferecida pelo tempo morto. filmado por um outro realizador. eu vou te contar esta história mais tarde”. A ficção do conto eclode espontaneamente à sua passagem. entre os dois regimes. Esta qualidade de presença no mundo não é dada a qualquer um: os tailandeses anônimos que desfilam diante da câmera impressionam pelo jogo que sabem introduzir nas engrenagens de suas vidas. diante da qual se mantinha a mulher. cuja voz entra pela janela. O som não era sincrônico. a continuidade sonora incita a interpretar a montagem-imagem no sentido da continuidade: simplesmente passamos para o interior da casa perto da qual estacara o vendedor de peixes. à espreita de sua realização. As palavras da vendedora. no corte. Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do conto. O percurso da equipe de cinema pela Tailândia age como um revelateur. Até que ouvimos novamente a voz da vendedora: “Digamos que havia uma casa. O professor. termina um monólogo com estas palavras: “Mas bem. Aparentemente constrangida. um rapaz parcialmente sentado se levanta. As ficções não são concebidas ex nihilo em um espaço separado do mundo. mas são tomadas pelas malhas da realidade cotidiana. “não importa qual história. depois reaparecer o extra-terrestre. O nível desta voz surpreende: ela é mixada muito intensamente para estar vindo do exterior. ouvimos novamente a voz do vendedor de peixes . Improvisar um conto parece então o gesto mais natural do mundo: lançamo-nos nesta tarefa enquanto preparamos o jantar. reúne algumas folhas grampeadas. A criança extra-terrestre saída do carro está sentado em uma cadeira. a mudança de plano transporta-nos para o interior de uma casa: um rapazinho está sentado diante de uma mesa. Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança: aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral. As convenções de uso querem que o making of seja um objeto em separado. da imagem sobre a palavra. de qualificar a imagem. O ponto de escuta é o mesmo que o do plano precedente: o interior do furgão. sem dúvida atraída pelo ruído do furgão. Som e imagem parecem sincrônicos. Um estratagema invisível de montagem faz desaparecer. Em várias ocasiões. Então. Depois de alguns segundos. a vendedora demora a continuar. a um outro regime de imagem. sobre o fundo do mesmo som ambiente. a imagem é colocada em suspensão. distinguido do filme por uma espécie de imagem mais “docu”. uma mulher olha pela janela no plano de fundo. de fazê-la se colocar de um lado ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário. no fora de campo. Depois de alguns segundos. A disjunção áudio-visual abre assim um espaço comum aos dois regimes do filme. sob um outro ângulo. Sem ruptura sonora. de pé. modificam a posteriori a compreensão da montagem e revelam a passagem. um romance ou outra coisa”. simultaneamente. sai do recinto por uma abertura à direita do campo. O extra-terrestre subitamente se . é o som que é encarregado . do fora de campo. Em um plano de Misterioso objeto. distanciar a trama da vida cotidiana. e entra novamente. E nela um rapaz doente e uma professora”. o vendedor prossegue com seu discurso. outras pessoas no chão.contar uma outra história. A passagem sem descontinuidade do documentário à ficção aparece explicitamente no filme. ao redobrar o visível. A impressão de continuidade era falsa: aqui começa a narrativa improvisada do conto e. ele se transmite oralmente. Em todos eles vive uma Scheherazade. quando ele entra no campo. dela se deslindando em direção ao maravilhoso para sem cessar retomá-la. terminou?” Uma discussão começa entre os atores e um homem fora do campo. nenhum dos autores conhecia a continuação da história. A continuidade se apóia na retomada. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na composição de um texto ou desenho por várias pessoas. sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se experiência naqueles que escutam sua história”. revue de cinéma Tradução: Luiz Soares Júnior. Pois estas se ligam todas entre si. Misterioso objeto prova que o cinema. Neste plano. tal como descrito por Walter Benjamin: “é a memória que tece o fio que em definitivo forja todas as histórias. É a imagem que produz a continuidade. Assim. até o último encadeamento. uma escutada no rádio.e assim sucessivamente. o contador conta histórias entre os outros homens. longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências. O filme de Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece. do “efeito especial” utilizado alguns segundos antes na ficção. a complicar o máximo possível o presente capítulo. cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton. por seu turno. no romance coletivo “L’amiral flottant”. constituída pelo conto. Ao contrário do romancista. para quem cada episódio de uma história evoca imediata e irreversivelmente outra”. pelo contrário. segundo Michel Lebrun. como os grandes contadores de histórias. Mas é sempre o som que vem suscitar a ambigüidade. recolhido em sua solidão para escrever. prolongá-la. o do carrinho no pescoço do cão. a outra dita pela vendedora de peixes. 2. O conto não é tecnologicamente reprodutível. reconhecemos Weerasethakul.uma história com outra. enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora. Notas: 1. suspensa entre a ficção e sua fabricação. Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch . depois da passagem ao making of . a oralidade e as imagens. O conto principal é precedido de duas narrativas. embrião de Mal dos trópicos. Nenhum “cut!” fora pronunciado para assinalar o fim da tomada. mas um simples ator. tomar por sua própria conta a tarefa de encadear. a interrupção da ficção.fôra seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes entre a ficção e o documentário.. Emaranhado na trama da vida cotidiana. o cinema de Weerasethakul assemelha-se ao conto. pode. sempre se empenharam em sublinhar. sem que nenhuma seja informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Vertigo número 27 . particularmente as Orientais. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro.filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este filme se liga. qualificar uma imagem desdobrada..dirige à câmera e pergunta: “você filmou mesmo? Foi bom. a ficção e a vida. ponto de partida possível para um outro conto. e deve. o jogo entre o som e a imagem é invertido em relação à primeira passagem à ficção. Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução. Cyril Neyrat. Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música. pela passagem dos atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. se empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o capítulo precedente e. sem esquecer todas as intervenções de Trent Raznor ( que já concebera a trilha sonora de Natural born killers de Oliver Stone). funciona ao mesmo tempo como um comentário da seqüência correspondente e como . ou de artista. esta. Há.seu puritanismo. e encobriria a vida com um leve véu paranóico. o metteur en scéne é uma espécie de xamã. Podemos assim presumir que Lynch projetou. o filme distribui uma multiplicidade de signos. seus complots. Revela-nos que a versão final do filme de David Lynch é o resultado de um refinado trabalho de cortes. a distribuição de signos enigmáticos e a ausência de uma ligação aparente entre eles tornou-se uma verdadeira figura de estilo. se manifestaria permanentemente de forma descontínua. de enigmas. é claro. com o objetivo de manter despertas regiões anestesiadas de seu cérebro. de índices. de lapsos que. Todas as junções narrativas foram cuidadosamente eliminadas. Por outro lado. e que fazem assomar não apenas os fluxos eróticos mas cósmicos. dobra) secreta da realidade. que procede de uma série de golpes de força rítmicos absolutamente envolventes. cada trecho musical. É a função musical ou cerimonial da mise en scéne. deste ponto de vista. remete a um complot inexprimível. A ausência de raccord no nível espacial encontra enfim sua correspondência no nível mental. a do sentido suspenso ( ver a recente programação da Cinemateca Francesa em torno do tema da conspiração). que acaba de ser lançado. Lost highway é certamente um dos filmes contemporâneos que mais suscitou interrogações da parte de um espectador desorientado. Por um lado. o inimigo está no interior do país ou do cérebro. suas soap-operas. com este filme profundamente inovador. fazendo-o simultaneamente se desorientar ( perdre pied) e encontrar uma nova relação com fluxos de percepção excessivamente sutis. é muito instrutiva. O filme . feito de premonições e de percepções extra-sensoriais. ele trabalha no sentido de colocá-lo em um certo estado de receptividade. passando por Die Hard 3 ( McTiernan ainda) ou L’Effaceur ( Charles Russel). criar uma relação totalmente inédita com o espectador. tal qual um inconsciente muito ativo. e as significações deliram. Notemos que esta forma de abstração lírica não é absolutamente o apanágio de um cinema de autor. verdadeiras cerimônias inquietantes . Em Lost Highway. que atinge seu auge em Lost Highway. Os signos flutuam e não mais se ligam uns aos outros. suas perversões ocultas. e que busca se situar. por meio de um jogo de pistas. de médium que busca suscitar o transe no espectador.é claro. e cuja estética deve muito à série Twin Peaks. do genial I’m deranged de Bowie a This magic moment de Lou Reed. Isto é particularmente verdadeiro no caso das cenas de amor em Lost Highway.A leitura do roteiro de Lost highway. Esta “poda” narrativa lhe permitiu sobretudo atingir uma perturbadora opacidade. Deste ponto de vista. É a função conspiradora e esotérica do roteiro. de que a série X Files ( exibida no M6) é um avatar absolutamente apaixonante. o que os aparenta tanto a uma certa tendência do cinema moderno. um evidente parentesco entre o cinema de Kenneth Anger e o de David Lynch. o complot é sem fim.ou seja. fazê-la sair de seus esconderijos. Tudo em Lost highway. mas tem essencialmente uma função rítmica ou climática. aos que nos é possível atingir através do uso de uma droga. espelham uma dimensão ( doublure. A música. que se aparentam. tanto em Anger quanto em Lynch. consiste em fazer a América delirar. A narrativa não está mais em primeiro plano. De The last action hero ( John McTiernan) ao recente e curioso Au revoir à jamais ( Renny Harlin). desempenha também um papel fundamental. Em ambos. passando pela sublime Insensatez de Antonio Carlos Jobim. sem fundo. mas encontra insuspeitáveis ressonâncias no cinema de ação. quanto à lógica do romancefolhetim. Lynch busca um contato hiper-sensorial com seu espectador. Pois toda a arte de Lynch. Anger aliás usou a canção Blue velvet vários anos antes de Lynch. Em Lost highway. aliás como também em Twin Peaks. Todas as seqüências com caráter explicativo foram excluídas. ganhou em potência elíptica. o filme e a série. Dir-se-ia assim que se Twin Peaks era para Lynch um equivalente possível da Hora do lobo. de assombrá-lo e ser assombrado por ele. a tal ponto que o rosto do Homem-Mistério em Lost Highway assemelha-se à máscara da Morte em Sétimo selo. uma estrutura unívoca. que cria uma realidade musical fascinante por seu ultrapassamento das contradições entre tecnologia e instrumentação tradicional. quer esta seja analítica. Lynch. o cineasta mais próximo de Lynch seria talvez o Bergman que. Lost highway talvez seja este puzzle. A figura do anel de Moebius. O circuito temporal de Lost highwayw é muito estranho. a estirá-las. Mais precisamente. em meados dos anos 60. há o filme. em Lost highway. Lost highway é um pouco o seu Persona. invocado por Chris Marker. com suas duas faces que se voltam para si mesmas. o tempo da narrativa. Embora a idéia da narrativa seja finalmente muito linear e suponha uma sucessão temporal cronológica. as situações. Neste sentido. de habitá-lo e ser por ele habitado. com a cumplicidade de Badalamenti. O espectador é tomado em um circuito integrado. A substituição de identidade entre Fred Madison e Pete Dayton é o pivot do filme. o tempo possui de alguma forma o dom da ubiqüidade. No ponto de encontro de todas estas funções.os personagens. tudo se passa como se as relações entre o passado. . cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens. A aproximação não é fortuita. Mas ele é fechado sobre si mesmo apenas em aparência. Como o Homem-Mistério. mas apenas para eletrizá-las e fazê-las girar. de ressonâncias. Em Lost highway. com seus cuts brutais e suas revoadas líricas.que do cinema. esta dimensão hipnótica e musical da mise en scéne é de tal forma interna ao filme que dir-se-ia que a arte de Lynch está às vezes mais próxima de certos músicos conceituais. Ainda mais que em Level 5. Lynch torna impossível a identificação do momento. Tricky ou Bjork. O jogo de dualidades. é absolutamente necessário entrar no filme de Lynch como no interior de um organismo vivo. forjou filmes-cérebro. Sem revolucionar de maneira explícita a cronologia. Para compreender Lost highway. Não que este filme-máquina não possa acolher toda a espécie de significações . de ecos que constituem o próprio fundo do filme não nos diz outra coisa. jamais foi tão adequada do que quando aplicada a Lost Highway. a infundir-lhes uma metástase e a considerá-las como entidades autônomas que são tratadas musicalmente. os objetos-. a mise em scéne torna-se musical. É um tempo espacializado. por seu jogo sobre a dualidade e a dissolução do tempo e da identidade que este jogo pressupõe. mas sempre exterior a este filmboîte1. realidade em si que não possui outro referente senão ele mesmo. já que Lynch é um grande admirador de Bergman. que desejaria a todo preço decifrar ou interpretar o filme através de um discurso.como Brian Eno. cria assim uma verdadeira narrativa musical paralela. mas unicamente a si. cinefílica. mas sem seguida nada nos garante que o que é situado cronologicamente depois não tenha se passado antes. o presente e o futuro não obedecessem mais a regras de subordinação. cujo desenho não remete mais a nenhum modelo. pois o fim do filme remete à sequência da abertura. pois pode permanentemente integrar informações que o fazem mudar de direção. Desde Blue velvet. um círculo involutivo no interior do qual ele deve criar suas próprias referências. No mundo anglosaxônico. policial. evocada por Michel Chion em sua excelente monografia sobre Lynch. o pior lugar seria o ocupado pelo espectador-detetive ( lugar de que os policiais no filme. mística ou simplesmente filosófica. Lynch tem a tendência a fazer durar cada vez mais as sequências. nele se abrigar. são os substitutos ideais). Tudo é duplo em Lost highway. apenas Kubrick e Cronenber souberam criar cristais de tempo tão fascinantes.uma intensificação da ação que decorre. cujo desenrolar obedece a regras que não tem nada em comum com as do tempo da crônica. sempre pasmos. Assim como a música é absolutamente visual. um saber. e cada elemento só pode ser percebido em função de uma rede de correspondências próprias ao filme. constitui ainda um tempo perfeitamente interno a si mesmo. nos tempos do vídeo e da eletrônica. na qual a morena é frígida e a loira explosiva). entrarmos em contato com não importa qualquer outro instante do filme. ou mesmo seus próprios filmes. . Assim. um pouco à maneira das instalações de Gary Hill. dir-se-ia que Lynch integrou todas estas imagens em um fundo indiferenciado que faz coexistirem múltiplas espessuras. aberto a todas as virtualidades. A figuração. 1. O precursor desta estruturação do tempo é. Enquanto que Lost Highway. pode-se. o trabalho de Lynch é tão próximo de Hitchcock quanto de artistas contemporâneos como Bill Viola ou Gary Hill. Carregado de todas as imagens americanas. Delon e seu duplo em busca de sua identidade. mas é uma fita que teria integrado. já fundada sobre a repetição e a dualidade. o dinheiro.Quoi?L’éternité. com Vertigo. No entanto. ainda ligado a uma cronologia muito tradicional. Em Cannes e em qualquer outro lugar. ainda e sempre.2001 e Shining produziram em sua época o mesmo efeito de sideração e desorientação.. o amor. a fim de melhor fazer assomarem suas próprias figuras. Hitchcock que. Eraserhead e Blue Velvet. Lost Highway pode desta maneira flutuar no éter. passando pela fotografia. filme que tira sua força de uma arte estritamente figurativa). leva à iconoclastia ( a desfiguração ou o esfacelamento). como tantos outros. a todo momento do filme. tinha criado uma linha temporal perfeitamente autônoma. Ou mais exatamente: ele é uma releitura de Hitchcock no tempo das instalações especulativas. toma em Lynch uma dimensão particularmente saturada. fechado em si mesmo. Videodrome e Crash igualmente. a natureza.. e se aparenta muito nitidamente ao processo cibernético de compressão de dados. sem esquecer todos os outros que foram citados). poderia ser visto como um filme-instalação. máquina de pensamento que marca a espantosa irrupção de um grande cinema figurativo-abstrato. Sobre Nouvelle Vague Nouvelle vague ou o retorno de Godard sobre os espaços de uma história. Elle est retrouvée. número 511 Tradução: Luiz Soares Júnior. Dom de ubiqüidade. Lost highway é uma fita de sonhos. Lost highway é o contrário de um filme-citação. sondas de imagens que criam um horizonte virtual. tendo a si mesmo como referente. assim como Shining antes dele.a publicidade e. é à força de ser figurativo. que nos persegue tanto quanto nós o encaramos. que é o grande assunto do cinema americano ( ver Mars attacks! De Tim Burton.a pornografia-. a utilização da multi-projeção e da superimpressão evoca diretamente a arte de Bill Viola. o poder. apesar de sua extraordinária potência poética. das mais artísticas. que claramente é a matriz do filme de Lynch ( que nos propõe uma versão invertida. as séries televisivas. o encontro. ou ainda algumas obras fulgurantes ( A morte num beijo ou A marca da maldade. como a estrada perdida que vemos desfilar a toda velocidade nos créditos. claro. Tendo assim realizado sua própria revolução. Mas Vertigo. Neste sentido. Film boîte: Filme caixa. Eu sou um Outro. As câmeras-cassetes de vigilância em Lost highway são como naves exploradoras. que igualmente é ultrapassada em direção a uma abstração que passa pela “descarga” de todas as figuras. Longe do maneirismo ou da referência. ou Crash bem recentemente. . os avanços e retrocessos rápidos. Thierry Jousse Cahiers du Cinéma. permanecia. cujo emblema mais intenso será o personagem de Patrícia Arquette. evidentemente. Se o cinema de Lynch é abstrato.às mais triviais. O esplendor na relva. que nos contempla tanto quanto é contemplado.o fascínio de Lynch por Edward Hopper não é desmentido aqui. Este excesso de figuração. Em outros momentos. Ao termo de uma dupla prova. 431-432). Mas estes breves instantes de suspensão criam um verdadeiro corte na narrativa. um modo de narração. abundantemente citados. às harmonias que ele contém e sugere.bastam-lhe amplamente. No entanto. Chandler nos chama a atenção. de uma imagem enterrada sob uma outra. um filme que Godard confessa . que não hesita a se referir diretamente ao mundo de sua infância. por sua presença virtual. o dinheiro reinava sem divisões. de ressurreição. e sobretudo “Todos eles perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do verão. reina em Nouvelle vague uma espécie de fatalidade trágica que não havíamos sentido desde. o tempo da narrativa. Diz-se repetidamente que Godard era incapaz de contar uma história. como em Je vous salue Marie. de amor. Alguns planos da Natureza. Em suma. que é indivisível em passado. em uma única vez. a pura e simples passagem do tempo. trata-se de um tempo expresso “compreensivamente” ( en compréhenson). a primeira cisão da narrativa. são espécies de arquétipos ou modelos. um tempo puramente espacial. límpido como a água do lago que Godard sente prazer em filmar. mas também de um passado mais indefinível. de uma imagem que volta.o sol. um homem e uma mulher se reconhecem. não diretamente da literatura. e que ela contém um mistério em si mesma. Pra usar uma metáfora matemática. como a de Prénom Carmen.Nouvelle vague. ou seja. De onde vem esta história de um homem que retorna? Difícil de dizer. uma trajetória. ele consegue ganhar a aposta da história. e não em extensão. que não remete à “curva” ( courbe) . É uma espécie de presente perpétuo que não acumula uma energia cronológica. o tempo de um filme de Godard é de natureza intensiva. Godard pode retomar a segunda onda ( vague) em curso ( Delon/Lennox já retornou. É sem dúvida inspirado por esta referência que depois do primeiro afogamento.e o abrasamento real do outono e a ruína do inverno. Pierrot le fou. ou seja. confessada desde a primeira frase de Nouvelle vague ( ou Vague Nouvelle) pela voz-off de Alain Delon. Nouvelle vague nos dá a sensação de ser o primeiro filme de Godard escrito. não podemos deixar de pensar no garagista atordoado de Notre histoire ( Bertrand Blier). A verdadeira novidade de Nouvelle vague está no tempo. dois dias depois). É a história de uma repetição. de manter a distância da narrativa para se dar ao luxo de maravilhar-se. Godard filma o desenrolar das estações. para o fato de que toda história é policial. Sem dúvida. jamais está ligado ao desenrolar da fita da película durante a duração da projeção. presente e futuro. com freqüência fazem alusões ao ritmo das estações: “o versão estava desgovernado”. digamos. antes que a primavera florisse novamente” ( frase já citada em Grandeza e decadência de um pequeno comércio de cinema). a chuva. Do passado do próprio Godard. de dinheiro. Quanto às frases de Faulkner. e entrar por refração no segundo tempo da narrativa para melhor acompanhar a sua história. Tradicionalmente. portanto. mundo onde. à parábola de uma história preexistente ao filme. E. atravessado por memórias do cinema. mesmo se pensarmos nas grande narrativas mitológicas de retorno à pátria. consiste hoje em escrever uma narrativa. O que pressupõe uma história. como a de Ulisses. ainda à maneira de Faulkner. A inverso disto ou quase. Ela remonta lentamente à superfície para chegar até nós. como aqui. da Bíblia tampouco. É este mesmo o tema do filme. é O sol por testemunha que ressurge e. A imagem se encontra no passado. o vento. A ambição de Godard. mesmo se evidentemente trata-se aqui de ressurreição e que não possamos nos impedir de entrever no personagem de Delon/Lennox uma figura crística. narrado no passado simples. creio que esta história vem do passado. os últimos grandes escritores do esplendor romanesco. Basta reportarmo-nos ao texto de apresentação que Godard se deu ao trabalho de escrever ( Cahiers. face ao personagem de Roger Lennox ( o do primeiro tempo). A escolha de Delon é aliás intimamente ligada às reminiscências. Faulkner e Chandler. Não é por nada. O enunciado é aliás bastante simples. talvez pela primeira vez. É uma história de duplos. como o exigem as leis da narrativa. de um único jorro. Mais simplesmente. Durante o afogamento. Godard. da ressurreição da imagem. a natureza. aqui. o renascimento. de ir do concreto para o abstrato. puras essências. sem dúvida.as coisas. O amor. A árvore. Não há mais valor de uso. através da imagem de existências. A imagem não diz nada”. nos diz um intertítulo latino do filme. o encontro. estão lá ontologicamente. A neve sobre a água produz o silêncio sobre o silêncio. Não se trata da viagem do abstrato em direção ao concreto. A imagem é forçosamente virtual e alojada em uma outra imagem. Pois a imagem em Nouvelle vague luta para existir mineral ou vegetativamente. ou mais exatamente da alegoria. trata-se do contrário. Foi dito aqui e ali que Nouvelle vague era um filme que exalava a tristeza e a melancolia. O segundo nível é aquele da metáfora. é a que detém o papel mais explícito. sobre novos trilhos. para a encarnação. mas apenas valor de troca em um movimento de pura circulação não figurativa. que assombram a tela. O dinheiro tornou-se invisível. Primeiro enquanto definição da imagem e de sua manifestação. Os dados são relançados. uma vez mais. O tempo sai de sua garagem para partir novamente. Estas palavras do psiquiatrafilósofo. Alain Delon/Lennox busca fazer reviver uma imagem atualizando-a. . o que quer escapar à palavra. Um pouco à maneira de Scottie/Stewart. reconquistada pelo cinema hoje. o que advém em um movimento de suspensão que precede ao nome ( era já este o sentido de Prénom Carmen).amar bastante. pelo contrágio. é o segredo da própria essência. tentando modificar-lhe o fim e a destinação. a figuração literal do dinheiro que foi usado para fazer o filme. pedagógico. A lembrança é o único inferno ao qual estamos condenados”. da “onda” ( vague) que retorna e que seleciona não nos deixa de lembrar do roteiro de Vertigo. Mas Godard opera uma inversão da alegoria. torna-se imediatamente a árvore do conhecimento (aquele diante do qual adquirimos conhecimento. não as palavras. este concentrado da grande burguesia européia desempenha provavelmente aí um papel duplo. Se há um poeta elegíaco em Godard. como em um movimento de retorno às origens. “A lembrança é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos. nos propõe um exemplo. Este mundo das altas finanças. assim como os de Delon ou Domiziana Giordano. Não significam. Quanto à esfera do dinheiro. Os planos de árvores ou cavalos. Não podemos nos impedir de ver. diz uma voz um tanto fúnebre. A imagem. ele atinge. Res non verba. em Nouvelle vague. o que se situa para aquém do ato de nomeação. Godard poderia fazer suas. O sentimento ambivalente do já-vivido domina Nouvelle vague. Uma imagem: A neve sobre a água= o silêncio sobre o silêncio. Todos estes personagens que gravitam em volutas e arabescos em torno do núcleo central do casal e da natureza não exprimem nada além da natureza abstrata do poder econômico. Contraditoriamente. diante da qual se encontram a condessa Torlato-Favrini e Roger Lennox. dizia Fernand Deligny ( Cahiers. o dinheiro. Como todo filme de Godard. o poder. Mas em Hitchcock. em particular no simples sentimento da fuga do tempo. eles se impõem. número 428). podese dizer que o filme existe ao mesmo tempo graças ao dinheiro e contra o dinheiro. em um movimento simultâneo de corrupção e de construção. Este instantâneo joga ao menos sobre dois níveis. Eu quero dizer que ela não fala. enquanto figura literária. eu creio no entanto que Nouvelle vague é o filme do renascimento. A força de Nouvelle vague consiste em exprimir. dixit Godard em um raccourci cujo segredo ele detém). a idéia de uma segunda chance. A imagem é. o eterno retorno conduzia à morte. mas no depois. seu segredo. Qual o seu status? Sua natureza? Qual o seu lugar? Em uma curta seqüência. “A imagem é autista. enquanto que em Godard. o sentido tradicional da imagem de que restavam. Tudo é duplo como Delon e seu fantasma. traços nos equivalentes corpos-natureza de Je vous salue Marie. Aliás. Salvo que a origem aqui não se situa no antes. não é nada além de um signo. e a economia nada além de linguagem. Mas a economia que preside à história tornou-se puramente abstrata. Nouvelle vague propõe uma interrogação sobre a imagem. de reconciliação.mas presente. como as atualidades reconstituídas do mágico Méliès julgavam e fundavam os marcos da autenticidade. constituíam ao mesmo tempo homenagem. Hotel. Para parafrasear a frase de Rivarol. pois nos encontramos justamente nos antípodas da fraude e da facilidade. face a uma avant-garde que deve sua sobrevivência unicamente à História. “Le Grand Feuillade”. junho 1990. filme em crise que expõe sobre a tela a profunda derrisão da imagem e sua incapacidade a existir ainda nos dias de hoje. de filme em filme. Em comum. irrealizado). Mas seria divertido . Nesta ordem de idéias. mas uma corresponde a um impulso de insurreição. o passado ao presente. Judex parece uma variação nova do fundador da Cinemateca Francesa sobre o nascimento do cinema. ou ainda esta criatura mediúnica assumida por Edith Scob desde La téte contre les murs. por intermédio assumido da arte ou de uma reflexão sobre a arte. Thierry Jousse Cahiers du Cinéma. o lirismo da criação ao próprio movimento desta criação. Feuillade e seu duplo Vemos imediatamente o que liga Judex. ao fim das contas. em ambos os criadores. Positivo e negativo. A atividade desacreditada do “remake” encontra portanto aqui uma justificação pouco comum. citada no filme. Tradução: Luiz Soares Júnior. a outra a um movimento de nostalgia e de apaziguamento ( Le Grand Méliès). sempre razoável. O cinema como Noite Transfigurada. La tête. É provavelmente o que dá a Nouvelle vague seu caráter apaziguado. número 433. em todos os casos profundamente decantado. a outra procedendo antes de um olhar menos crispado que tenta unificar . a primeira veia ligando-se à representação de um trágico-documentário ou transposto. Godard nos dá novamente uma definição instantânea do cinema. repete Jean Renoir. uma atenção segura no sentido de preservar e enriquecer uma eficácia didática de observação pela contribuição de uma poética pessoal que refere.que se inscreve naturalmente no mundo excessivamente reservado de Franju. é a figura-mãe de Nouvelle vague. não que esta arte possa ser reduzida aos parâmetros da cópia e da imitação. denunciador( Le Sang. análise e crítica que são apenas três formas de amor: a exaltação do realismo onírico do primeiro “prova” o cinema contra o onirismo realista do segundo ( e vice-versa). Parece-me que Nouvelle vague inaugura um período de verdadeira maturidade. É fácil constatar que toda sua obra gravita e se organiza a partir de duas linhas de força essenciais. em um duplo travelling invertido. “É preciso recompensar os plagiadores”. seja porque. mas a sintaxe de Godard ( e do cinema) é incorruptível”. ao mesmo tempo em que assinala um novo começo na obra de Godard. igualmente líricas. se conciliavam as aspirações da arte popular e os germes do cinema moderno. Estabeleçamos antes que se trata em Judex do primeiro Franju “em repouso”( passado este Pleins feux. depois de “Le Grand Méliès”. ao contrário de Soigne ta droite.à continuidade de uma obra de que começamos a conhecer as referências e os pontos de apoio. como a ficção persegue a realidade. a que estrutura o filme à maneira de um leitmotiv ou de um refrão. E é ainda o travelling que transmite o sentimento aquático da fluidez. Eis aí a segunda chance. E o deslocamento. uma meditação “romanceada” sobre Feuillade. Luzes que se apagam e que se acendem. completando a meditação documentária sobre Méliès. da onda que vai e retorna. o movimento do fluxo e do refluxo.A alegoria invertida é um deslocamento. quase clássico. como este bestiário favorito de pombas e cães. estes malefícios noturnos e calmarias diurnas ( depois. O que nos garante este instante de pura felicidade onde. Thérèse). sob a forma de um travelling lateral ou horizontal recorrentes. digamos. o contrário). “Pois as paixões nos dilaceram. espionadas. ressuscitadas. Mas entre A cadela e Scarlet Street. e que a Judex seja apenas reservado o anedótico. e que Franju tenha sonhado com o Fantômas. Judex. da irredutível do outro. À simples cópia do estilo. da apropriação. mais apagada: o reencontro de uma infância que pressentimos ligada aos sortilégios deste cinema. de um sub-reptício “a partir de”) que temos de lidar. Retorno às fontes. um jogo de “quem perde ganha” invertido sem cessar que confirma uma certeza: os grandes pintores foram ( são ainda) os primeiros depositários de suas construções teóricas. Pois o que separa o Judex de 1916 do Judex de 1963 é. ele reserva o destino de um “como se” cúmplice mas um pouco distante. Unicamente neste estágio encontra seu sentido esta reconciliação de que falamos mais acima. ou seja. no entanto. e em primeiro lugar nas inevitáveis modificações do roteiro inicial. Em Giotto. A fusão contemporânea entre o saber e a inocência que assombra o artista se oculta em algum lugar no secreto território das origens. Eles são raramente inocentes. é com o decalque impossível. como que por surpresa. em oposição a tantos filmes com referências ancoradas na vida ou na literatura. de qualquer forma legítima. a seus segredos ( nós o vimos). Compreende-se que um único espírito está em julgamento aqui ( un esprit seul est en cause). as entidades morais sendo abolidas sob um olhar poético. da contradição.ou o são em demasia. foi preciso que o homem-Franju se desse conta com precisão de emoções distantes no tempo para oferecer-lhes uma outra espécie de metamorfoses. com o confronto entre dois universos inassimiláveis ( e que. mas origens e segredos que podem ser redescobertos menos através de hipotéticos mistérios de fabricação que pela superposição. segundo o caso. mas a própria estrutura do . mas também através daquilo pelo qual as fontes permanecem vivas: presentes. em Monteverdi. já que a démarche de Franju não conseguiria ter evitado as armadilhas da retórica se este não tivesse imposto à busca pelo cinema perdido a uma outra. de folclore. em uma celebração plástica das aparências. em um Parecer que não é mais da ordem do embelezamento. Que um Logan “desvie” Pagnol em proveito próprio só depende de uma substituição. à sua maneira. ao mesmo tempo o último dos primitivos e o primeiro dos modernos.imaginar o elogio sistemático da retomada ( reprise) . Mas Franju-Feuillade é ainda outra coisa. se roçam pela graça de um tema em comum. negadas. a distância de uma mitologia “atual” e de seu reflexo historicizado. Franju vai se sobrepor ao espetáculo . Retomando o velho mestre à sua conta e risco. ou A besta humana e Human desire ( ou ainda entre The diary of a chambermaid e Le journal d’une femme de chambre). e o que intensifica a dimensão da “peregrinação” em direção às origens é a posição privilegiada de Feuillade. Com Feuillade também. mas também luta singular entre dois saberes totalitários. unitário. que François Lacassin chama “o terceiro homem” ( depois de Lumière e Méliès). o jogo da restrição e da liberdade exposto à pureza mais imediatamente visível. do elogio ou. e se abandonar a uma ironia de bom grado solene. Seríamos tentados a dizer: como Picasso impondo a Courbet ou a Velásquez um imperioso renascimento. soberbo ( mesmo que às custas de uma violação). mais reconhecível de seu próprio mecanismo. O essencial. opõe um cinema referenciado a si mesmo: às suas origens. procurando esta inocência tão dificilmente capturável. Violação e renascimento. renascimento que os destina a uma modernidade conquistada pela segunda vez. ou aquilo pelo qual a segunda se esforça de reproduzir a primeira em seu duplo movimento de convenção e de convicção: aqui emerge uma forma ( nostálgica) de crítica. menos espetacular. evidentemente. desnudado de suas motivações psicológicas e de um grande número de meandros explicativos. cada um dando a mais justa medida . mas então se distanciam da pintura para reencontrá-la em seu além ( Van Gogh) ou em seu aquém ( Rousseau). E da mesma forma com que Breton pode afirmar que é preciso abandonar sua “infância” para saborear a de Rimbaud. pois sempre comprometida pelos desvios impostos pela astúcia ou pelo saber. da traição. além de Lang: vejamos Judex. o acolhimento de todos os ancestrais. evidentemente. Tão necessária quanto o fora Marlene para Sternberg ( embora mais discretamente). prometida aos ultrajes dos próximos malefícios.primeira referência. mas fora de todo simbolismo. Tradução: Luiz Soares Júnior. criar unicamente por sua presença um frisson que não tem nada de cênico. de toda metafísica. é porque o tema assim o exigia. ainda mais Les vampires que Judex.sobre a inquietude do banqueiro Favraux. Desde a abertura da íris. Que importa então ( ou antes: tanto melhor!) que Chaning Pollock seja um ator “inexpressivo”?. mas totalmente. É paradoxalmente por este estratagema ( ruse) que Franju. Primeiro nível: a constatação. vivente incerta. reconduzida de ressurreição em ressurreição. vez ou outra. este olho mágico que prefigura outros olhos. de Gasnier. à sua destreza ou imobilidade no cadre que são confiadas a função de exprimir o que sua máscara impassível recusa. recupera sua criação e restitui a Judex. aflora às vezes a vulnerabilidade dos sorrisos constrangidos de Lillian Gish. Vampires. à estima revolucionária”). Com Feuillade na cabeça. A nudez final do plano da praia absorve o barroquismo dos décors anteriores em uma nova expectativa: a última pomba se desgarra da mão do mágico. Também temos Fantômes. já sabemos. realizado por questões de comodidade. Jean-André Fieschi. que tem aqui todas as suas virtudes restabelecidas. para Franju. o plano. seus homens de negro e seus mil olhos que nos perseguem. cujo papel consiste justamente em relacionar a sucessão casual das partes a uma coerência lateral. ela tem por missão. onde ela encontrará sua confidente favorita. serial altamente estimulante. desde sua entrada furtiva na igreja em La téte contre les murs. enquanto que. morta improvável. sua organização diabólica. e estabelecer uma continuidade irreal que nenhuma anedota conseguiria perturbar: a própria essência da poética de Franju ( seu emblema).filme. a um totalmente outro.de onde este veio-. para nós”veristas”. móvel ideal a diferir os enigmas sempre até a próxima vez. para irritar os fantasmas de Monsieur Gaumont. depois de tê-lo reconciliado com o cinema de seus pares. . evocado por blusas negras ou pelo ritmo de uma certa java. a redução da narrativa se efetua ao nível do signo ( o plano como aquilo que o habita). e de outros seriais esquecidos. as motivações convencionais dos personagens se prolongam numa espécie de “profundidade de campo”sugerida que é a matéria de seus próprios sonhos: seria injusto que o imaginário permanecesse unicamente reservado ao autor e não fosse. corromper a docilidade de suas criaturas. “como precursor de uma moral autêntica. de Griffith: em filigrana da candura de Edith Scob. é um vidro que se deve preencher. Ou mesmo. a partir de Mabuse ( ele tinha direito. o signo existe unicamente em razão de si. o apelo ao resgate. Temos ainda. sem dúvida em direção a uma outra noite. sempre ofertada à violência.herança expressionista.por que não?-. um lugar no horizonte de suas obras. Eu quero falar aqui de Edith Scob. em um segundo estágio. já que é à sua capa negra de justiceiro. embora as razões sejam diferentes. segundo Franju. que nos é engenhosamente transferido aqui na figura de vizinhos cúmplices ( Diana Monti-Francine Bergé). No entanto. O plano que. Mas se as silhuetas que assombram o filme participam de um mundo de sentimentos imediatamente inteligíveis. este olhar indiscreto e tenaz que vai encadear a narrativa na mais ínfima de suas articulações estabelece seu poder sobre a célula dramática originária. ele se preenche muito bem sozinho: se este aparente anacronismo confessa desde logo um pertencimento a um cinema dos tempos fortes e da exuberância imagética. para além de Feuillade. de uma desarticulação temática ( como o cinema cruza o caminho da guerra. o extermínio. que todo este terror visual intitulado História (s) do Cinema é a biografia intelectual de um único homem? Ou ainda: a definição abstrata do cinema constitui o cruzamento entre uma imagemmovimento e um real. UMA ONDA NOVA. Ao mesmo tempo o conglomerado da potência ( ou poder) incorpora os livros. contra l’Espoir. o “filme”. ou metamorfoseados por motivos musicais. as nações. os inscreve em sua polifonia. com o clicar das teclas de sua máquina de escrever. do intervalo brusco entre o audível e o visível. . Alguns enunciados maiores. visaria a identificar. ao mesmo tempo. É por meio deste cruzamento que o “filme” edifica sua matéria. que reúne em um único ponto todas as interpretações disponíveis. assinala . Uma “restituição integral do passado”.. VOCÊS NÃO VIRAM NADA. do homem com cigarro na boca e iluminado por uma fluorescente ( grande artista-sábio. escoltados por um rumor quase inaudível. diria Deleuze) que só teria por objetivo ruminar a inalcançável justiça das imagens. De maneira que este imenso palimpsesto. que sua visibilidade é apenas aparente. o sexo. cortes. combinados. retrocedimento de imagens ( marche en arrière). e que nomeamos como o “filme”. pelos artifícios maiores da montagem virtuose. superposições de imagens. o ponto de impotência que é. Daí também o status ambíguo dos livros. ou fragmentos. ao fim e ao cabo. a beleza das mulheres. ou em torno. FATAL BELEZA. homem este cujo retorno. vemos surgir a cesura entre um artista exageradamente solitário e este enorme buraco negro do século que teve por nome “Segunda Guerra Mundial”. não cessa de se fazer ouvir.. Ou ainda: se disse que o tema de Godard era a genealogia da potência do cinema. do amor. etc). no “filme”. da superposição de imagens. uma guarda mais segura do que a garantida pelas imagens. ele sugere que os livros permanecem “em reserva”. tudo isto é um obstáculo a esta idéia de um constante descruzamento e recruzamento ( dobrar e redobrar. enquanto que as citações fílmicas são tratadas como suportes de variações infinitas. cujos títulos ele cita.?) e de uma contração local. ou sua notória injustiça. e a razão última de sua dissipação. como se toda verdade tivesse de ser laboriosamente extirpada de um ruído de fundo compósito? Mas grandes conglomerados maciços textuais.tanto por sua amplidão de recepção ( no cinema. Mas esta não é uma intenção derivada. e que esta disponibilidade em retração do escrito talvez monte. as mitologias. Daí um procedimento de composição que se poderia com justiça comparar ao de Mallarmé em Un coup de dés. por coloração. as revoluções. câmera lenta. deste conglomerado de imagens e de sons. que se poderia integrar a tudo o que se profere a partir. incisões disparatadas. a fábrica. e por aqui e ali subordina sua força à força de que o cinema é capaz. Ao invés disso. situa seu empreendimento entre História e Idéia. para além das máximas. através dos recursos acumulados da super-potência ( podemos fazer. evoca Foucault. Ou ainda: uma totalização sinfônica. todo o real do cinema. o livro 1). uma espécie de estrato suplementar. com freqüência apresentados na tela em letras maiúsculas ( HISTÓRIAS DO CINEMA. a imagem que pára sobre o rosto angelical de uma cartomante. induzem a subtextos. não pelos meios de sua citação ou narração. que ele chama de emissões. que no “filme” Godard tira de sua biblioteca. em relação ao real. conta-se por milhões. o filme. no livro por milhares) quanto pela gravidade real da montagem das ficções ( l’Espoir. o que quisermos). Mas da mesma forma não é a sua “impotência” que está em questão? O impossível a se filmar assombra Godard desde sempre. sob o ícone de Groucho Marx). os manobra.Le plus-de-voir História(s) do cinema por Alain Badiou De que se trata? Falando de seu afresco. do murmúrio que. mas por aqueles. Godard monta a ficção de um arquivista. os massacres. O "filme" diz também: "Podemos fazer tudo. como o oceano faz com o barco. de uma paz superior. ou da mesa de ferro branco. as bodas conflituosas entre a selvageria da história e a evidência corporal do amor? Uma outra técnica mostra-se mais incerta. ou o escalonamento simultâneo do múltiplo visível e audível conduzido à superfície. obrigando-os à confissão de suas doentias incertezas. No "filme". é um dos sintagmas cruciais do “filme”. seria necessária a poeira acumulada por todos os rostos amantes de toda a breve história do cinema. sem dúvida. cuja feiúra brutal se distingue como uma mancha sobre a seda. ao invés do herdeiro. ou exibindo. que deixam repousar sobre o rio noturno sem alteração nem corte. ou atesta que aquilo de que é testemunha. ou é impossível. esta melancolia é complexa. no próprio nível dos enunciados fundamentais. Ou ainda: a melancolia. é de hoje em diante forclos . aquele que apenas em aparência é a arte de seu tempo. ou detrás de um fotograma em preto e branco. o "fazer" do cinema. Sabemos em demasia que o estilo de Godard. captando o fluxo mortal dos atos. e vários outros anagramas). arte do século 19. e que simbolizam. “a Moeda do Absoluto”. Ou mesmo a inserção fugaz de uma cena pornográfica. E nos dizemos então que a extrema percuciência da montagem. que faz do “filme” o equivalente de uma conversação multiforme agenciada por um Deus. que um pensamento a todo instante móbil e vigilante descobre na menor afirmação. como quando buscamos no mundo devastado os signos esparsos. São incontáveis os momentos no “filme” em que um rosto da Renascença vem espraiar sua cor nas margens de uma seqüência. as tentativas combinatórias sobre as letras ou as palavras ( assim. Ou o retorno calculado da seqüência da metralhadora em Esperança. a lista nominal. está morto. até porque o cinema. a das crianças na barca. ao encurralar os outros e a si mesmo contra o muro. O cinema é seu suporte privilegiado. não é um termo tão mais importante que “Absoluto”. círculos. Aliás. não apenas a organização semântica do “filme”. carregou o século 20" ( a porté le 20e). quase doloroso. Melancolia advinda da constatação de que sempre seja tarde demais. o pouco de fé que ele se pode reservar a seus próprios impulsos. Ou determinada insistência musical. à parte de todo o resto. Isto se dá particularmente no caso dos títulos dos filmes. como o sugere a inscrição. a que organiza o entrechoque extremamente rápido. Ela seria o verdadeiro tema de todo o “filme”.Um enunciado do "filme" é: " O cinema. do que permanece. E aqui tratase da mesma ambigüidade relacionada ao livro. mas ao lado. só está lá para que sejamos levados a desejar sua suspensão. Ou ainda: sustentar o desafio desta outra arte do visível. Poderse-ia quase ver que o cinema. impávida. construções secundárias funcionam não “abaixo”dos enunciados cruciais. como se este lhe fosse subjacente-. entre uma imagem de cinema e um fragmento de pintura. para termos um equivalente em película a qualquer Adão e Eva de Michelangelo. mutilações visíveis. inalterável. como fortificações nuas. e quase imperceptíveis. De maneira que esta "história(s) do cinema" . espécie de graça de uma lentidão advinda ao tohu-bohu do visível.no contraste entre sentenças definitivas ( seu lado moralista francês.recorrências.o que é sempre designado pela abertura da imagem cinematográfica em direção ao esplendor pictórico. Exceção: o doce terror de uma seqüência de O mensageiro do diabo 2. que tecem pouco a pouco. a ponto de que. La Rochefoucauld) e a pobreza tocada pela graça da paisagem plana. A expressão de Malraux. ou a injunção subjetiva TOI tirada da palavra HIS( TOI) RE. É preciso compreender. Ou determinado momento de palavra nua carregado por um rosto. delimitações. em se tratando do cinema. a pintura.é materialmente melancólico. virtualmente infinitas. Chamfort. a passagem de NOUVELLE VAGUE a UNE VAGUE NOUVELLE. mas o conjunto das associações. que o cinema continua a refletir. nisso fiel à pintura. seria antes o suplício da pintura. Mas às vezes nos perguntamos se “moeda”. Mas podemos também rever o “filme” a partir do que constitui exceção a este tratamento emaranhado. sem contar as brincadeiras do tipo SI JE NE MABUSE. quase terminal: " ERA O CINEMA". com exceção da história do que fazemos". O cinema tem por vocação. o obscuro comunismo. no zelo empregado em complicar até o infinito ( estilo barroco. O cinema é convocado diante do tribunal de sua responsabilidade histórica e de sua fatalidade artística.. De maneira que a melancolia se volta contra nós. dos gatos que se aninham sobre os muros. compõem os meios de uma retomada da essência. guiados por Langlois ( ou seja. pelo próprio meio de uma separação ( écart). os jovens arrancavam uma arte à sua lenda acadêmica mortífera para expô-la às intempéries do "lado de Fora" ( ressources du Dehors). precisamente pois ao cinema é dado aproximar. Pois no poder de exprimir o que foi abolido.. é o rosto de um arqueólogo virtuose e triste? Ou aquele de um homem que habita. Hitler e Stalin. as mônadas do cinema) as “dobras e rebordos” da imagem e do real. Objeções? Sim. igualmente marcada por um inimitável tom melancólico. Assim. Ao mesmo tempo o palhaço e o “homem mais forte do mundo”.) destilam o símbolo. cujo terno emblema é a imagem de Truffaut. A imagem jamais se refere a um referente. a coragem de vencer a melancolia com suas próprias armas. A imagem é antes a rachadura entre ela mesma e todo o povo que habita no visível e no dizer. das “ilusões perdidas”. sua esmagadora sutileza no detalhe. Um certo peso. Não seria necessário lhe dar o . sem hierarquia estabelecida. e finalmente o misto irrepresentável ( ao qual Godard faz. O “filme” é o movimento destas “rachaduras” ( écarts) superpostas. da família que sai pra se divertir. Mas então. ou os resumos que um Sócrates convertido à essencialidade da imagem forneceria a seus jovens auditores. intitula “o filme”). engendrar consonâncias. sua mobilidade tática. Isto significa render-lhe justiça? Esta arte impura é a arte do sábado à noite. no sentido artesanal do termo: realizada e completa. a quem tanta aparente sofística confundem. É marcante que “no filme” toda imagem seja o índex possível de uma outra imagem. e cujos constantes recursos às inscrições abstratas são como os sinais indicativos. investindo-a com o tom e o estilo de uma promessa criptografada? Ou ainda: o platonismo anárquico de Godard. mesmo que ele não saiba de que época se trata. interdito). com toda a sisudez puritana da Suíça. separada de si mesma: dois jovens soldados alemães carregam o cadáver de um deportado. à la Leibniz. o que usualmente não mantém relação. Obra-prima. solitária. tramar polifonicamente. mas se distancia sinteticamente de todas as outras.( barrado. sim. os Judeus e os Árabes ( ISRAEL E ISMAEL. O rosto fechado de Godard sob a lâmpada. pois pleno. a ser visado segundo o monumento real da História. tramando diversas perspectivas. Godard. a questão se torna: qual é a essência da imagem. a organização serial do “filme”. já guiados pelas histórias do cinema). em proveito de uma invisível justiça do visível? No fundo. ligar. o artista desvela uma outra época. pôr em relação. das sinfonias de Mahler. em meu ponto de vista. um rosto de mulher lentamente deslocado. a respeito da qual alguns planos suspensos ( uma mancha azul no negro. estava envenenado. opera sem o saber a redefinição de Schoenberg. nova moda). claro. ou Judeus e Alemães em uma única imagem. demasiadas concessões à la mode) dos tiranos simétricos. até o limite de suas bordas. dos adolescentes. todo o mimetismo é excluído. que não é sem relação à máscara de Mahler. uma casa cujas janelas se fecham. nas bordas da ênfase. na abertura polifônica do dossier completo do que se manteve interdito. Mas também este paraíso. entrelaçadas. uma seriedade excessiva. vagamente maníaca. Um pouco como na caso da saturação retrospectiva. na desmistificação do que toda impostura carrega consigo de verdade. pronunciar-se. da dor das revoluções. a mais essencial coragem. diz-nos Godard. bem assinalada no “filme” pela voz claudeliana de Alain Cuny. O cinema oscila desde sempre entre o burlesco de cabaret e o titânico da feira. e ao mesmo tempo o estofo de vários textos simultâneos. testemunha melancólica de uma certa abolição de seu próprio "fazer artístico"? Contribuiria para isto que a "vague nouvelle" ( nova onda. se ela não reproduz nada. seja designada como uma espécie de "paraíso perdido" onde. 3. novembro 1998 Tradução: Luiz Soares Júnior.muito pelo contrário. Apenas depois da Libertação o filme. Em primeiro lugar. ele foi propagandista. no gosto compartilhado por todas as classes. ele se enraíza sempre. sobre suas condições. Trata-se de um filme sobre uma obra. o texto duro contra a imagem deliqüescente. e do drama sentimental.crédito de que ele é. a fim de lutar pelo regime republicano. O século de Jean-Luc Godard. de um imenso navio que flutua. Tão grande quanto seja. de um monstro horroroso surgido das entranhas da terra. 2. etc. dos estranhos costumes dos estrangeiros. E fugidiamente incapaz. que evoca as primeiras lutas da guerra civil espanhola. romance de André Malraux. sobretudo. pelo espetáculo de um homem poderoso que um vagabundo asperge de estrume. as .e publicitário e estúpido. de Artaud a Rodez. de todas as idades e de todas as ações. do Bom que. visitação casual da idéia.uma contra-história rarefeita. relever: assinalar. é no sentido em que o velho Parmênides. onde se veria que não é preciso fazer. ou a da Lama. aparecido em 1937. Antonio Reis consagra um filme à obra de desenhista de um camponês. No original. foi lançado na França. da pedra. Esperança foi filmado por Malraux. irresponsáveis e desastrosos elogios. inocente? Como tudo o que fascina e reúne. sua incompreensível solidão? Sobre um mundo distante. do Justo. depois de tantos desapontamentos. foi interrompida pelo avanço das tropas franquistas do General Yague. Alain Badiou. a filmagem.o amor contra o Estado. a alma exilada que ronda em torno de um hospital construído como uma arena de touros. das idéias absolutamente ideais. Por Jean Louis Schefer Em 1973. Antonio Reis. nos estúdios de Joinville em Paris. do Verdadeiro. Malraux só terminou o filme meses mais tarde. ou Murnau. sou atraído pela sutileza do propos. sobre o cinema. e de guerreiros fraternais. e tão imbricado em nossa época. chamado finalmente A esperança.. enfim mata o Mau. começada em Barcelona em 1938. L’Espoir ( A esperança). em relação ao “filme”. rodado nos locais de seu isolamento psiquiátrico. Chaplin. em plena luz do Sol. Notas: 1. por uma espécie de depuração interna de seus materiais indignos. ( Le plus-de-voir) Art press. da mais elevada destinação. em Platão. Talvez consista nisto toda a dureza poética do filme: é um poema do sofrimento. Seria preciso. algumas outras menos convencionais: a idéia do Cabelo. ao lado do Bem. e da mulher nua estilhaçada pelo Amor. Jaime. ou fazer jus a. Primeiro e último filme realizado por Charles Laughton em 1957. da nitidez ( netteté) da solidão.. enfim distanciado desta odiosa apologia da loucura como fonte ou causa do talento. onde como sempre em Godard se impõe a questão deletéria da Salvação. intitulado então Sierra de Teruel. esta arte da “comunhão” geral ( rassemblement general). o detalhe da água. apenas corresponderam 3 a esta origem vulgar. tantas história(s). da vegetação. e de cavalos na planície. sem jamais. é claro.tentar aboli-la. exige do jovem Sócrates que ele admita. enfatizar. Se o cinema é idéia. a responsabilidade do visível contra os cães exaustos da “comunicação”. do policial-detetive que agarra o ladrão-mafioso. Os maiores artistas desta arte. onde Malraux foi chefe de esquadrilha da aviação estrangeira que foi para a Espanha. cujo modelo tem conhecido. Jaime Fernandes. com o apoio do governo republicano. É o que Paracelsus nomeava a prima matéria: “Ela é visível e invisível. isoladas como objetos encontrados ao acaso. Aprisionada em seu espelho redondo. como se todas as coisas fossem postas à distância deste espelho de água e do balbucio desta fonte. mas é como a haste líquida postada no centro desta arena trágica. frágil. as coisas que se sucedem como imagens ( o plano vazio. deslocamentos efetuados sobre o que resta. pobre. recortada. Um filme de Antonio Reis? Admirável poema. arredondados. transforma na metáfora de seu sofrimento e de seu desespero por não ser adorável? O que significa então este mundo percorrido em compasso. interior. a fonte. a ausência de linguagem. e porque chamar isto de um filme? Como se desde o jato de água animado da fonte arredondada. que maneja como nenhum outro pintor hoje ao próximo e ao distante. Se refletirmos bem. catálogo. ao longo dos muros-? Por que Antonio Reis. onde todas as coisas forjam uma fortaleza de solidão? Documento extremamente singular. nem uma explicação ou denunciação do sistema carcerário do hospital. feito de deslocamentos de imagens e de coisas. por que ele nos mostra a água? Trata-se de uma coisa que. como paisagem. Extraordinária inteligência do desespero e do quimérico que presidem aos jogos das crianças. enclausurada numa espécie de tricot feito da lã de seus pêlos. se os filme as encadeia ou . privado de todo uso de si mesmo e dos outros dos homens ancorados.linhas das colinas que fecham este circo. O que constitui este filme é coisa muito distinta de uma memória ou progressão de imagens. O que este filme mostra com força ( a força das coisas conjuntas. semeados de seu abandono. ou seja. e as crianças jogam com ela na rua”. a taça e sua colher. as palavras e até mesmo a possibilidade de sugestão das imagens. tal como este coração gélido e este centro líquido através do qual o Sigismundo de Calderón. Trágica? Por que este rigor. esta inteligência sensível e implacável do que é uma coisa e do que é um homem feito coisa. aprisionado em sua torre. ou mesmo este perpétuo desenvolvimento de encadeamentos fatais de ações humanas que conduzem ao túmulo. de intimidade. intocável. a vegetação espessa. o encontro casual de um guarda-chuva e de uma máquina de costura). Todas constituem coisas sem ação. Mas do que exatamente se trata. pêlos serrados como bolotas de lã. comentário da obra de desenho de Jaime. O que resta não é a causa do que parece concluir a obra desenhada de Jaime. perpétua e dura. E até mesmo o olho vívido.a pobreza do hospital e da paisagem) são encadeadas sem causa. dorsos musculosos. não está ao alcance da mão. não os marcos de seu caminho de retorno mas os signos traçados. a água do riacho que corre sobre as pedras. este passeio dos olhos sobre a linha das colinas. o refeitório camponês. o guarda-chuva. o dormitório silencioso e que se retrai sobre uma série de desenhos de Jaime? Cabeças vagamente aparentadas a perfis de Brauner. por exemplo. às bordas de um abismo ou aos limites de uma terra habitada onde cessam ( em todo filme) as ações. ela fala. retomando desesperadamente sua coluna de influxo é aqui a única imagem da vida. a sombra e a luz ( e até mesmo num quarto de hospital. móvel. esta que jorra. gatos ou animais. úmido da cabra. décor) não é nem um processo. centro extraordinariamente deslocado. Todas as coisas mostradas são como pedras semeadas por uma criança perdida. cuja silhueta faz aparecer sobre suas cabeças a imobilidade e a fixidez de um olho egípcio. expondo brutalmente a falta de dinheiro. como galinhas sobre um poleiro de madeira. por que e em nome de que signo de desesperança e de vaidade do movimento e das aparências. a máquina de costura. os homens e suas sombras. de comunidade. e a única palavra que jorra de um corpo. como um signo de luxo ou de piedade neste hospital rude. se imprimiam apenas por um instante como um afresco provisório sobre a superfície côncava do árido branco do muro do hospital. aquele dos patinadores sombrios sobre a superfície branca do gelo: uma . é isto o que ele olha. um dos mais belos planos de toda a obra é. de um filme a outro. número 13. compactos. elas se adicionam em uma soma misteriosa da qual não resultam estes corpos negros. mas nunca absolutamente nomear ( daí o fato de que a linguagem.eram também estes dois ou três homens em pé. No primeiro plano do primeiro filme: o nome de um vilarejo sobre um mapa: Le Blanc. É isto o que a jovem contempla pela janela. os estranhos animais de Jaime. no entanto. e há muitas em seus filmes. ele ilumina um pouco mais. as distâncias que os separam não são feitos para nós. dançando num pé apoiado sobre o outro. Jean Louis Schefer. o cineasta solitário detrás de sua câmera ( primeiro super 8. o roçar das ervas). como as sombras dos homens arqueados ou suas figuras imóveis. da duração. as coisas que retém a luz. é um mundo do qual cada parte perdeu seu corpo. para além do plano. insignificantes). a espécie de planalto desértico. uma orientação a manter. mas que todas as partes deste mundo estão ao mesmo tempo isoladas e solidárias: que estes extraordinários portraits de gatos foram também passagens de silhuetas estendidas sobre os lençóis do hospital lançados ao vento. como o único relógio no coração deste mundo feito de círculos acumulados e sobre os muros sobre os quais estes se aninham. o imóvel branco diante dela. Também não faço idéia de como esta pura obra-prima perpassa pelos objetos como um sopro desenfreado de viração. alinhados sobre um banco de madeira como galinhas sobre um poleiro. É uma direção a seguir para cada filme que virá. cujas fronteiras eles parecem guardar. se estira para o céu e vacila indefinidamente. Pois é preciso velar por. Todas as janelas da obra de Jean-Claude Rousseau. o branco. ele o faz melhor que ninguém). Tradução: Luiz Soares Júnior Luz branca. excede todo cadre: um para além da janela. ou gatos advindos de um outro mundo. integrado ao jato de água tremulante da fonte como à ponta de um compasso. Primavera de 1998. que podemos apenas indicar. se reduza a conversações de tropeço. Capto rapidamente que esta câmera que estreita o real possui. duros. guardiões de um mundo desconhecido. Estes corpos abandonados são metáforas vagabundas: foram o corpo de nossa solidão. todas nos orientam para o evento que chega. no próprio movimento de seu cadre. Assim. neste círculo insensível que limita este mundo a um curto horizonte. um mundo de metáforas errantes. por uma extraordinária contenção de seu tema ( algo assim como um deserto) a magia e ambigüidade do cinema. na mobilidade flutuante de seus travellings em diagonal ( os corpos das pedras. cerrados. os objetos. páginas 4-7. se chegar. que estes animais ou estes homens. Revista Cinémathèque. balouçavam. o fluxo da água. os magníficos guardiões do Desconhecido a céu aberto. que acaba talvez por vir às custas do tempo.e desconhecido deles mesmos. delineando-se sinuoso sobre o dorso das colinas. em Keep in touch. a única galeria desta arena no centro da qual apenas um jorro de água se eleva perpetuamente. quando chega. O que faz aqui Antonio Reis? Ele não explica uma obra. Não concordo que Antonio Reis filme ou fotografe naturezas-mortas (e. o acontecimento sem limites e que. de que estes corpos constituem a paisagem e a população. compreendo que esta câmera se apossa dos corpos das coisas em seu abandono de objetos. o que sabemos desde a infância: as coisas. e no entanto de uma armação tecida sem falhas. O poleiro das sombras.enumera. Sobre o cinema de Jean-Claude Rousseau. depois digital). e cujas sombras dançavam. contém esta tensão que se encaminha a este além. Outros ( Vénise n’existe pas. que eles não compartilham o mesmo olhar: um ( Rousseau). do lado de fora. indiferente. Esta irrupção de um rosto preciso muda portanto o caráter do dom. a conservar sua coragem de permanecer. ou antes. é uma forma cômoda de traçar as linhas de tensão dos filmes. É uma dicotomia um pouco especiosa. a possuir. este caderno vazio de Contretemps. Desejo vem do latim desiderare. carnal. sempre postado em sua invariável janela. tão próximo. por exemplo. O mundo real também designa uma direção: daquilo que se ausenta. em um plano magnífico. desta presença ainda a conquistar. e Faibles amusements é o primeiro filme onde . E também estes planos inumeráveis e repetidos que filmam a passagem do tempo como uma pura aventura da luz. Desejo ou Eros são os nomes desta ausência. pois evidentemente existe tempo no espaço e inversamente. ou Juste avant l’orage) buscam antes a resposta no lento recolhimento da contemplação: barcos que passam sobre a laguna. O mundo real possui um sentido. real. por um milagre. o rosto e o corpo do desejo. mas trata-se de qualquer um 1 também: um homem médio. Depois chega Clément. pela primeira vez. o mundo presente.longa agitação do negro sobre “ O Branco”. com freqüência de costas. ou seja. o outro ( Clément). Este é o caminho único e sempre recomeçado deste cineasta essencial. mas enfim. lentidão de uma refeição. que La valée close não nos deixa ouvir)? Onde. estas extensões de neve em Keep in touch. Um caminho aliás paradoxal. ocupando este lugar ( ele mesmo) como uma profissão que se exerce. Clément é o herói de um dos últimos filmes ( uma outra maravilha) de Rousseau: Faibles amusements. às vezes. uns após os outros. e agora esperamos. infatigavelmente à janela. Cada filme põe uma questão polimorfa: onde está o astro? Onde. “Onde?” Sem dúvida. o mesmo leito?). claro. uma mulher que os homens voltem. Ele encarna. justamente. Embora o filme conserve uma certa ambigüidade voluntária ( o cineasta e o herói compartilham o mesmo quarto. no entanto. um dever. que se filma à vontade. constroem uma localidade de linhas para a chegada do acontecimento ( eis o porque do mapa geográfico que abre a obra). há um mundo que. valem como indicações de deslocamento. estes pedaços de bobinas super 8 que constituem refrações claras no negro. não possui interesse ou sentido? Claro que não. um certo estado da presença e nada mais. tão longe. teu corpo? Teu rosto? Onde está o teu rosto? Pois Rousseau não possui fascínio distinto do que entretinha Simone Weil. no balcão. e portanto eu escrevo ( eu filmo) que existe um mundo às vezes branco: esta é a razão de tantas folhas virgem que assombram seus filmes. Este “esperamos” é. de classificá-los segundo certas lógicas de construção. uma imobilidade de trajetória em geral. fica claro. um funcionário de si mesmo. Cada filme de Rousseau é distendido em direção à janela como um empregado espera que as horas passem. certos filmes ( Jeune femme à la fenêtre lisant une lettre ou Les Antiquittés de Rome) propõem antes uma resposta espacial: são homenagens à geometria e às formas abstratas. que olha pela janela. como uma folha que folheamos indiferentemente num magazine. Keep in touch. ele faz de seus filmes a experiência de uma vida radical. e assim vai: fora. o nome. a experiência radical de viver assombrado pelo interesse constante pela “graça”. patas de pássaros pousadas sobre a neve: a questão “onde?” se experimenta agora no desafio de permanecer ali. literalmente “cessar de ver o astro”. Isto quer dizer que o mundo para Rousseau. variações da luz. Jean-Claude Rousseau continua uma certa linhagem de herói da “desaparição” 2. onde os quartos de hotel. Os filmes dizem todos a mesma coisa. como um sentinela espreita as estrelas. à espera do que ele se priva de ver. um passo para. Deslocamo-nos. de Venise n’existe pas a Lettre à Roberto. que buscamos invariável. temos um avanço. rondam sempre em torno desta mesma questão do lugar inencontrável. tua voz ( a do destinatário epistolar. do dom incompreensível daquilo que nos falta. o bem nomeado. mas não cura a ausência. o próprio cineasta. sem qualidades. Certo. é branco ou luminoso. captada de forma bem concentrada. 1. a narrativa se concentra sobre uma única noite ( o tempo de um velório). De fato. O funeral é antes uma sonata. podemos distinguir hoje dois Ferrara: o cineasta americano saído do cinema de gênero. muito próximos aos corpos. a forma é de uma grande concisão ( planos médios. logo cai por terra). como em um dripping). anjo da vingança). On é um pronome de indeterminação em francês que se refere ( ou refere) a qualquer ( um?). Coppola e De Palma tinham optado por uma forma bem mais ampla e sinfônica.. menos seu conteúdo explícito. curtas focais e muito pouca profundidade). barco. o mais próximo possível de seu centro energético. mas o filma como alguém que pertence ao horizonte indeterminado. cuja tendência autorista apareceu de forma cada vez mais clara deste O rei de Nova York.o esboço de uma reflexão sobre o bem e o mal. culminou com Olhos de serpente e parece bem precisamente ligada ao autor ( de seus roteiros): Nicholas St. onde longas digressões filosóficas não valem por seu sentido. mas antes o movimento de uma ação. ali onde Leone. uma energia de cineasta que filma tudo como se pertencesse à matéria viva. que trata sua matéria de forma sempre frontal e incisiva. Stéphane Bouquet. Rousseau filma Rousseau. e um Ferrara-autor. único território onde seus filmes são realmente vistos e levados em consideração.carro. caminho. movediço e nebuloso do on: como um qualquer.) mais c’est “on” aussi bien.Rousseau filma seu próprio corpo em deslocamento ( no caso. effacement: apagamento ( de traço). o retrato de uma América tomada entre o poder subterrâneo da América e o contra-poder em expansão do comunismo ( paralelo que. John. inclusive a palavra. incendiária. este não é menos solidamente ligado ao cinema americano. No texto original: On. como se os últimos filmes do cineasta explicassem mais claramente o conteúdo mais informal e iconoclasta dos primeiros ( rever o incrível Mrs. Pois mesmo se se . a nenhuma pessoa ( pronominal) em específico. foi dado: a graça tornou-se palpável: e daí? é preciso ainda saltar através da janela. ao invés de filmar de costas os signos do deslocamento. desaparição Vigília fúnebre: O funeral. sua brevidade ( 1h39). Este movimento é o que conduzirá ao apocalipse de uma família. A grande força de Ferra como cineasta consiste em saber controlar as “pequenas formas” e de manter uma vivacidade própria ao filme B. 45. etc. durante os anos 30. O que interessa em O funeral é. portanto. 2. da primeira morte ao genocídio coletivo. uma sorte de primado no interior do qual ele parece ter encontrado hoje uma liberdade e uma flexibilidade absolutas. Tradução: Luiz Soares Júnior. desaparecimento. Com The funeral. O filme não restitui um mundo. Este Ferrara. portanto. Abel Ferrara acabou por traçar um território quase autônomo. Leone ( Era uma vez na América) e De Palma ( Os intocáveis). de Abel Ferrara Ao longo de filmes que se sucedem em uma cadência cada vez mais desenfreada. hotel. é preciso dizer. metafísico de uma religiosidade atormentada.que a forma pela qual tudo isto se encarna na tela. Se este caminho aponta para a Europa. é cada vez mais identificável. no meio da Máfia. junho 2005. num barco). de um grande rigor formal. cujas narrativas se aparentam a alegorias. sobre a responsabilidade ( o personagem de Christopher Walken é confrontado a uma série de “casos de consciência”). Mas esta inflação do significado é sempre suportada por uma mise en scéne concreta. c’est le cinéaste certes (. cujas peças chaves já nos foram dadas por obras maiores como as de Coppola ( O poderoso chefão). O que de saída singulariza The funeral em relação a seus ilustres predecessores é sua secura. em seus transbordamentos “logorréicos” ( The addiction. é preciso ainda saltar. Um passo.. Ferra assina um grande filme crepuscular em torno da Máfia. mas por sua capacidade em se propagar. Ferrara não é um grande contador de histórias. mas finalmente explode em soluços e se desalinha em palavras de expiação. absolutamente formidável). Os personagens aparecem.. um animal. avançando sobre os outros convivas para os sangrar. quando descobre o cadáver de seu irmão e urra de dor. irredutível a todo discurso.). que organiza tudo como um metteur en scéne. Aqui. O melhor do filme está na forma em produzir clímax. e cujas chamas de glosa religioso-metafísica que vicejam aqui e ali não conseguem esgotar. único verdadeiro centro palpitante de seus filmes. quando o homem torna-se novamente. postas em cena como um coro de carpideiras). ele lança um grito amplamente mais violento do que estamos acostumados a ouvir nas cenas de sexo no cinema ( inclusive o cinema pornô. e reproduz um mesmo tema: o do crescendo. seu cinema no fundo permanece muito pouco discursivo. ter dificuldade em manter uma narrativa. em uma fulminação. Toda a seqüência é filmada sobre o rosto de Isabela Rossellini. e os clímax coincidem sempre com a emergência de uma força primitiva que ultrapassa os personagens. Já era o caso em The addiction.a duração do velório) nos faz lamentar certas fraquezas da narrativa ( Christopher Walken desmascarando o assassino de seu irmão é certamente algo “feito nas coxas”. O funeral consegue “contar” de forma freqüentemente a não se apoiar nas muletas da narração clássica. pelo minimalismo de sua filmagem. as lágrimas bem teatrais das mulheres. ordena a sua mulher ( sempre la Rossellini. depois a interlocução se degenera e chega a um confronto quase físico. tocamos no nervo central do cinema de Ferrara. tu não passas de um porco”. todos os flash-backs se articulam em torno de uma unidade de tempo. No momento do orgasmo. no qual o árbitro também levaria socos. quando Ghouly dorme com uma prostituta. quando os convidados de um encontro universitário se metamorfoseavam em uma horda de bichos ululantes. primeiro captada em sua expressão de terror. Este “relaxamento” narrativo já produziu formas fortes ( a indolência errática de Bad lieutenant). Chez ( Chris Penn) entra em casa. a fazê-los entrar e sair do campo. ou quase o mesmo grito. ou em Body snatchers. Este grito. evidentemente. uma outra cena de conflito impressiona. As articulações de suas narrativas são sempre frágeis. O filme é verdadeiramente fundado sobre o princípio da cena. que entra em discórdia com a ordenação cuidadosamente ritualizada do funeral ( as flores dispostas. A briga entre os dois irmãos ( Chris Penn e Vincent Gallo) em plena noite. certas pistas narrativas são deixadas no meio do caminho. As cenas . face contrita de vítima sacrificial que pouco a pouco se torna o rosto de uma mãe consoladora. ao contrário.o quarto do morto. o irmão mais velho. que dispensa apaziguamento ( uma espécie de Virgem com a criança). Nestes momentos. começam a se falar de forma bem civilizada. Repetindo este princípio ao longo de todo o filme. De fato. que se mistura ao bate-boca ( Isabela Rossellini). sua referência esmagadora ao teatro trágico ( todas as ações se voltam para um único lugar. As demonstrações são sempre incoerentes. nós ouviremos de novo mais tarde. Cada cena é quase tratada como uma totalidade. uma força quase animal. bem maltratada pelo filme) que ela tire a roupa para transar com ele. espasmódica. Mas em seus momentos mais inspirados. parasitada pela intervenção da esposa. transbordadas por uma energia insensata.fala cada vez mais nos filmes de Ferrara. impressiona pela virtuosidade de que faz prova Ferrara ao fazer circular seus atores em um plano-sequência. inacabadas. Aí também o filme lança a descarga de uma energia bruta. Este grito é aquele lançado pelo irmão mais bruto (sempre Chris Penn. O perigo de um cinema fundado sobre a fulguração e o clímax é. Mais adiante. a dos fluxos de violência e dos processos de destruição. o classicismo formal do filme. onde o orgasmo é com freqüência sussurrado). o que leva sua amiga a comentar “Realmente. Ferrara demonstra muita invenção.. quando a aparência humana dos extra-terrestres era destruída sob o impulso de um grito monstruoso que lhes deformava o rosto. um grito inumano. que evoca a filmagem de um match de boxe filmado ao vivo. O mundo se deixa apreender antes de tudo pelo olhar. na justa medida da distância que nos separa do mundo. Sobreviver. um plano suscitando outro segundo uma lógica puramente poética. Le rebelle ( 1980). de lhe penetrar). Um enfant dans la foule ( 1976). e ao qual todos os seus filmes se curvam: Les amis ( 1971).1 Jean-Marc Lalanne. KO: Em artes marciais. A fotografia de Ken Kelsch ( a quem se deve o belo preto e branco de The addiction) nos dá admiravelmente esta sensação de um mundo encoberto pela noite e pelas sombras. Se a cena de violência final é tão impressionante. Jusqu’au bout de la nuit ( 1995). trata-se sempre para o herói ( a palavra é mal colocada. proprietário/possuído.advindo com o fito de atravessar e explorar esta profundidade). o recurso a uma focal única) exclui absolutamente toda profundidade. lançando-lhe upercuts que o deixam KO. ao contrário. Aberto em uma sala obscura ( de cinema) onde se projeta um filme noir ( com Humphrey Bogart). Pierre et Djemila ( 1986). tente se deixar passar desapercebido ( Pierre et Djemila. um limiar a não ser ultrapassado. Le Pélican ( 1973). o filme trama uma tessitura de trevas que conduz à tela negra final. passamos da terra onde é enterrada sumariamente a vítima de Ray ao céu. é justamente por advir como uma erupção. de ataque e de retração face ao mundo. de que o mundo é um monolito postado contra o indivíduo e que lhe é impossível abrir a menor brecha. Nenhuma profundidade de campo ( e. depois do céu à casa da família. como se tomasse o filme de assalto. seria o nocaute. mesmo que sua temática pessoal se torne quase identificável em demasia. Por um lado a vontade. nenhuma profundidade dos seres no cinema de Blain: tudo se dá tal como é. sem ter sido preparada de antemão. . onde o espectador compartilha o ponto de vista do cadáver sobre o qual se fecha o túmulo. É preciso falarmos antes de tudo do signo distintivo fundamental deste cinema. aquele que olha/aquele que é olhado. É preciso escutarmos a confissão. A frontalidade exprime simultaneamente um duplo movimento. Um enfant dans la foule). sem nenhuma ligação. e particularmente a O funeral. pois a frontalidade ( e. é preciso partir do que. ou que. marginalidade/norma. se impõem à primeira vista em seu cinema as grandes oposições que estruturam uma obra de uma coerência extrema de estilo e tema: amigo/inimigo. ou seja. Então. Quer seja um revoltado ( Le rebelle. O coração é um caçador solitário: O cinema de Gérard Blain. toda possibilidade de penetrar o mundo e de nele se fundir.sempre mantendo a instável esperança de um repouso por-vir. consequentemente. raramente dita mas claramente mostrada. e por outro o cuidado prudente de impor a si mesmo uma distância de segurança. Em duas panorâmicas. Cahiers 508 Tradução: Luiz Soares Júnior 1. É esta tendência ao happening que dá todo o valor ao cinema de Ferrara. Um second souffle ( 1977). imperativo estilístico herdado por Blain de seu mestre Robert Bresson. Tiros circulam de um flashback a outro. como se o filme inteiro portasse luto. Para analisar o cinema de Blain. passamos de forma abrupta da execução do criminoso por Ray ao seu enterro por Chez. Nesta evocação das forças invisíveis que circulam de forma subterrânea. a frontalidade. simultaneamente. de atacar ( de olhar face a face. nenhum travelling. em sua opacidade nativa e acompanhado de uma espécie de “tomar ou largar” que interdita de pronto toda réplica.finais. por exemplo. deixando sempre o espectador em seu lugar. a energia do cinema de Ferrara encontra seu regime de expressão ideal. Ferra consegue sempre surpreender seu espectador. Jusqu’au bout). este às vezes fazendo-se contemplativo. se encadeiam como que ao apelo da inspiração. mas é a única a nossa disposição) de Blain de sobreviver. informulada e fundadora de toda obra. deve ser posta em relação com o cadre mais amplo no qual esta encontra um lugar. este tornando-se a ameaça absoluta. Nós somos contemporâneos de uma derrota essencial. observa cada dia. Um enfant dans la foule). digamos que encontramos três objetos prioritários de ódio. Um enfant dans la foule). em Blain. o ódio ao espetáculo. salvo em ocasiões bem raras. Michel Subor em Le Rebelle. aliás. Neste sentido. é aliás construído sobre este mesmo princípio de não-reciprocidade e sobre esta impossibilidade de criar um espaço ( um plano) onde os olhares possam coabitar. do contracampo e do fora de campo. aquele que um pai dirige a um filho por exemplo. a elipse outro) e de recusas. daí.possuidores contra possuídos. em particular nos últimos filmes. Robert Stack em Um second souffle. Um olhar. teríamos todas as razões para nos desinteressarmos.a partida do pai-. um mundo onde os papéis estão definitivamente distribuídos.Pode-se dizer isso de uma outra maneira: o indivíduo está engajado em uma relação de não-reciprocidade absoluta com tudo o que o circunda. ora. Podemos mensurar evidentemente o quanto esta concepção de um cinema bidimensional. Não se trata aqui de julgar ou extrapolar o sentido de sua obra a partir da biografia de Blain. Os olhos sempre colocados no mesmo objetivo. é um dos principais motores da obra de Blain. contempla através da janela do apartamento de sua mãe e só vê um muro cinzento e opaco. este olhar só atinge seu fito para além dos “remendos” que separam dois planos. tratar-se-ia de complacência ou pessimismo convencional da parte de Blain se alguma coisa. que serve de matéria primeira a seus quatro primeiros filmes. três faces diferentes da obscenidade do sistema capitalista: o corpo burguês. em seus filmes. procedem. é uma solicitação. Blain esposa de forma tão total o olhar de seus heróis. Um pai ( sempre Blain). é com freqüência paralisada por sua obstinação em aplicar de forma estrita os ensinamentos de Bresson e que. Todo O pelicano. sob todas as suas formas. por exemplo. Apenas indiretamente este obtém a resposta solicitada. que finalmente ele acaba por estabelecer a seguinte equação: o inimigo é tudo aquilo que está no fora de campo. Por este motivo. o início de Jusqu’au bout de la nuit é exemplar: François ( o próprio Blain). mas a sociedade permanece surda. eis o porque dos personagens procurarem um pai substituto ( Les amis. tal como ela nos é mostrada em Un enfant. e sempre em uma relação direta ao cinema de Bresson. não tivesse a função de indicar a existência de uma cena primitiva que vai estabelecer esta ordem de coisas. o patrão de Jusqu’au bout de la nuit: Blain adora os anjos mas contempla o . este brincar no jardim de uma luxuosa casa suíça. Posto isto. onde os campos estão fixados. a interpretação dos atores ( mais desajeitada que bressoniana) possa ressentir-se dolorosamente disto. uma política inflexível do campo. Ele exige ( Le Pélican: viver com seu filho.pode ser esquemática: é verdade que a obra de Blain. eis o porque das mulheres serem tão maltratadas ( Um second souffle. pouco ricos em matéria de explicações. o discurso. há pouco saído da prisão. dissimulado atrás de um muro. podemos pensar que esta não-reciprocidade da relação ao mundo encontra sua origem na relação de Blain com sua mãe. nós a encontramos em Um enfant dans la foule. qual o seu ponto de partida. Para irmos direto ao ponto.bloco contra bloco. Nesta perspectiva. O pai ausente. o dinheiro. É um fato que um tal cinema obedece a uma lógica paranóica e que é demasiado limitado ( em todos os sentidos do termo) para possuir uma verdadeira amplidão. ao qual foi recusada a guarda de um filho. estes são os grandes pilares deste cinema. a mãe que vira as costas. norma contra margem. organizada em torno de imperativos ( a frontalidade é um destes. Uma expressão. Neste caso. sem dúvida o mais belo filme de Blain. Esta cena. onde é frequentemente filmada de costas. e se lixa tão majestosamente para o ponto de vista adverso. volta com freqüência na boca de um personagem: é tarde demais. A história pessoal de Blain. mas simplesmente de ver a partir de que seus filmes. Le Rebelle: manter junto a si sua irmã pequenina). parece possível. sobretudo através dos ritornellos 1 lançados incansavelmente pela mãe.passos. por alguns instantes. O que constitui um grande problema é a condenação prévia de toda forma de discurso. o dinheiro é obrigatoriamente espetáculo: está em sua natureza determinar àqueles que não o possuem um único lugar. e em primeiro lugar a tendência natural do capitalismo a dar. uma cena onde se exibe. instituída em uma norma”. declara que será assassinado se seu filho não pagar. Apenas os deslocamentos laterais e horizontais. bela. anjo e ator fetiche de Blain. filmado por um camescope empunhado por Paul Blain. O som vale antes de tudo como pegada carnal do presente. Seu cinema não aceita nem a negociação nem o “concerto” dos discursos ou vozes. Blain. observar em Jusqu’au bout este rosto que dir-se-ia pintado por Bacon para compreender o quanto ele tem horror a esta ilusão do corpo-máquina. ao longo do dia. e se define inteiramente contra. ondas. o que é falso. onde de agora em diante vive a criança. Basta vermos o próprio cineasta. que figuram fluxos ( estes abundam na obra de Blain) permitem ao homem deslizar contra o mundo e deixam entrever a eventualidade de um futuro reconciliado. Quando entra no riquíssimo apartamento do novo marido de sua esposa.a vulgaridade auto-satisfeita do mundo do dinheiro. Bernard Boland (Cahiers número 294) notava justamente em Blain esta “aderência do social e do sexual. cujo sorriso chega a esgarçar o “envelope” bressoniano que lhe é imposto) é um teatro. sinos. mas o pai. um grande industrial de Lyon. ou mesmo para aquém de toda consciência( como a criança na multidão). Temos aí um dos momentos mais miraculosos do cinema de Blain. através da consciência. Escutar o inimigo seria torná-lo mais próximo. O jardim onde se diverte o rapazinho de Le pélican ( o magnífico César Chauveau. ao corpo que se contempla envelhecer e antecipando o luto de sua boa saúde. o lugar do espectador impotente. trata-se de fazer sua a respiração do mundoda natureza. e isto. cavalos. é simplesmente impossível. Então. O que é notável é que esta possibilidade passa antes de tudo pelo som e pela seleção dos ruídos. não tem outra possibilidade além de querer destruir tudo. orgulhosamente adestrado e oposto como uma fortaleza contra o tempo. de se deixar carregar pelo apaziguado rio da existência. com um sentido reconfortante. tanto para os personagens quanto para os espectadores. restam. mesmo que pouco articulado. Emmanuel Burdeau Cahiers du cinéma 508 Tradução: Luiz Soares Júnior . de se esgotar . alguns instantes de consolação. a possibilidade efêmera de tornar palpável sua presença no mundo. no interior do sistema formal monolítico de Blain. polida.. que viveria para aquém de toda tomada de palavra. tudo é dito. de que um indestrutível inimigo o acossa. o que explica o grande número de ruídos com um caráter rítmico.a idéia de um destino trágico é bem presente aqui-. Jusqu’au bout de la nuit: preso como refém. Na rota deste caminho que conduz irresistivelmente ao fracasso. Nestes momentos. apesar de tudo. sempre mais do que lhe é pedido. friamente alimentada.corpo burguês como uma máquina gélida. bela. em grandes frases elegantemente torneadas.A vida é bela. acariciada e oferecida aos olhares que a consomem. um filme inteiramente consagrado ao corpo ( o corpo de um médico de 60 anos. em matéria de espetáculo. em Le pélicain. Da mesma forma. ao querer fazer cessar o eterno e insuportável espetáculo da riqueza. Há em Blain a idéia de um homem originário.. não da sociedade. que estão em ligação direta com o fluxo do tempo. com uma sutil tremedeira na voz. Sobre Le second souffle. interpretado por Stack). deve tentar convencer seu filho a pagar o resgate: nenhuma indicação lhe foi dada. Com uma inultrapassável simplicidade. na silenciosa harmonia de uma relação aos outros jamais explicitada. fazê-lo penetrar em nós. 1. Ritornello: um mantra ou jingle, melodia repetida interminavelmente. A filosofia na alcova: nota de intenção. Por João César Monteiro. ‘”Vocês me fazem morrer de volúpia! Conversemos e dissertemos”. Sade 1. Sobre os textos. Utilizamos para o texto da Filosofia na alcova a edição da Plêiade, conforme a edição publicada como obra póstuma, em 1795. “Segundo os Princípios da Biblioteca da Pléiade, as grafias foram modernizadas. Mas só transformamos a pontuação com a maior discrição possível, e mantivemos todas as formas lexicais antigas que pertenciam à língua de Sade como homem do fim do século XVII e como escritor, amante de neologismos e de criações verbais”. É conveniente mostrar que a Filosofia na alcova se destinava provavelmente à representação teatral. Para nos convencermos, basta ler a rubrica inserida entre o sétimo e o último diálogos: “Os seguintes pronunciamentos se fazem sempre quando os atores estão em ação”. É agradável constatar que nada impede a conversão do texto em matéria cinematográfica. Cortamos, embora eu não jurasse isso pela alma de minha mãezinha, no quinto panfleto o “Franceses, ainda esperamos de vós um esforço, se quiserem ser”..., menos por causa de seu anacronismo ( sabemos que é um que programa de proposições republicanas posterior ao fim do Terror) que por sua extensão, o que lamentamos. Devo dizer que este corpus do Filosofia na alcova não tem nada de “estranho” para mim. Pensei muito em Proust ( ou Stern?), mas provavelmente isto não passa de um deliriozinho. Passemos. Em seu lugar, introduzimos um texto de Leopardi intitulado “Diálogo de Torquato Tasso e de seu gênio 1 familiar” ( Pequenas obras morais). (...)Enfim, igualmente tomamos a decisão de terminar o filme com um enigmático “Fim da lição”. Para além da pequena ironia desta inscrição, espero que me façam a bondade de não ver nisto nenhuma pretensão didática de minha parte. Reservamo-nos ainda a eventualidade de mudar a famosa epígrafe “A mãe vai prescrever a leitura à sua filha”, inspirada, como bem se sabe, por um folhetim, anônimo e difamador, contra Marie-Antoinette ( A mãe vai proscrever a leitura à filha) 2, por uma outra: “O pai vai prescrever a leitura a seu filho”,e também, por razões compreensíveis, as descrições físicas dos personagens. Fora isso, nos mantivemos no integral respeito à palavra sadiana, em toda a sua abrupta magnificência. Como se sabe, o propósito da obra de Sade é a educação, no sentido pedagógico, de uma jovem virgem, educação que se desenrola num período histórico onde se operaram grandes transformações políticas, econômicas, sociais, etc,. que tiveram conseqüências em todos os domínios do pensamento e das atividades humanas, dentre as quais algumas perduraram ( e perduram) até os nossos dias, e constituem o que chamamos o mundo moderno. Se a educação de Eugénie só sem sentido à luz de uma revolução libertina que não se deu ( e, neste sentido, Sade se enganou, mas pagou caro por seu erro), também é verdade que seu caráter inatual e a-histórico a deixa ao sabor do vento e do saber premonitório de qualquer um. Não nos remetemos aqui ao anúncio da morte de Deus, da morte do homem e da defesa indignada da abolição da pena de morte. 2. Sobre os cenários Jamais cheguei a ver um cenógrafo. Encontrei um, chamado Max Schoenlorff, e fiquei encantado com ele. Me pareceu ter as qualidades requeridas, ou seja, o saber de projeção no espaço. O problema é que a criatura é desconcertante: embora se consagre à pintura, o que lhe interessa não é a cenografia, mas a filosofia. Onde já se viu acordo entre um filósofo e um célebre filófobo? O salão ( diálogos 1 e 2). Completamente nu. 12 metros sobre 4. Em um dos muros, uma série de quatro janelas, em arco, por onde penetra a luz. O muro que lhe faz face não contém nada, talvez mesmo não exista. Duas portas opostas e semelhantes, de 2 metros de largura, a cada extremidade: uma aberta, a outra fechada, uma de luz e sombra, outra de sombra e luz. Pela luz sai o cavalheiro e entra Éugenie, pela sombra sai Mademoiselle de Saint-Ange e sai Eugénie. O banheiro ( diálogos 3, 4, 5, 6 e 7). Um cilindro de 9 metros de diâmetro e 4 de altura, com um círculo de espelhos em volta. Uma clarabóia no alto, por onde entra um fio de luz que se desloca no sentido do movimento aparente do sol. Uma chaminé, situada no segmento oposto ao muro. A espessa porta é a igual distância da janela e da chaminé, ou seja, 90 graus de uma e da outra. Diante da porta, a 180 graus, um cubo de 2 metros, cujo interior, mobiliado com um leito e possuindo uma iluminação autônoma de gás, pode estar protegido por uma cortina branca. O solo é formado de 37 polígonos de um metro cada. O polígono 27 é uma passagem escondida sob um tapete que dá acesso a um subterrâneo. Os móveis são poucos e funcionais: uma poltrona otomana, bancos atapetados,biombos... Uma mesa em forma de cruz, magicamente tirada para o banquete final, dominada por um prato que contém um peixe imenso, debruçado em seu leito de sal grosso e alguns patês de atum, que o marquês amava tanto, para tornar agradável o palácio aos quatro personagens que permanecem até o fim: Saint-Ange, Augustin, Dolmancé, Éugenie, ou, se preferirem,: S ( anjo), A, D, E. Carnes vermelhas? Não posso sequer sentir-lhes o cheiro, quanto mais vê-las! EXTERIOR NATURAL. DIA MUITO ENSOLARADO. SERRA DE MONTESINHO. Inicialmente, escolhemos situar o Diálogo de Leopardi, que “viaja” num interior noturno, em uma floresta com um lago. Isto nos permite sair do espaço fechado e colocar o personagem do jardineiro em uma serena natureza, aberta à plena expressão de “seu” pensamento ( finalmente ele possui um, se aceitarmos o paradoxo), fora de um espaço onde ele não passa do objeto de servidão, às ordens dos apetites eróticos de seus senhores. Pouco a pouco, fomos eliminando a floresta, para chegarmos a uma montanha dura “seca e estéril”, e, na inversão do reflexo do duplo, destruindo assim toda ambigüidade narcisista, e de uma certa forma o transformando, sob as súplicas das “ondinas” românticas, em um eterno habitante das águas lacustres, negras e primordiais. 3. Sobre os figurinos. As roupas devem ter um caráter intemporal, apenas retendo uma sugestão ou reminiscência de época. Logo abriremos mão delas, quando seu uso não for mais aconselhado. E isto por que? Pela simples razão de que o que se chama a ars erotica em Sade não passa pela forma de se vestir nem pelo uso perverso ( moral). Sade não é Versace, e ainda menos o “venusiano” SS Hugo Boss. Também não vai bem com as roupas de V... e de seus semelhantes. O valor das roupas em Sade é implacavelmente funcional. Neste sentido, pode-se consultar o livro de Barthes, Sade, Fourier, Loyola, na coleção Tel quel. A cada personagem sua cor: Mme de Saint-Ange: azul safira; negro. Chevalier de Mirvel: creme. Eugénie de Mistral: rosa envelhecido; negro. Dolmancé: violeta. Agostino/Duplo: azul ( cenas, 5, 7, 8 e 9); negro/branco ( cena 6). Mme de Mistival: branco perolado. Lapierre: verde. 4. Sobre a imagem A iluminação. No salão, a luminosidade terá uma tonalidade clara, proveniente das janelas, queimando do exterior. Na alcova, a luz de base será mais ou menos a penumbra, com exceção da luz que vem da janela, onde será instalado um vitral multicolorido. A iluminação do cubo é autônoma, bem contrastada, podendo mesmo criar um efeito de noite em pleno dia. No sétimo diálogo, a luz rasante e crepuscular provém da porta aberta, de maneira a favorecer a invasão de uma sombra propícia à entrada de Lapierre no círculo, e de uma contra-luz bem violenta na saída deste, ou mais dócil à saída da mãe ou do cavalheiro que a segue. No contracampo com a mesa, a noite cai. Que se poderia fazer além disso? Acendem-se as velas...No exterior, é preciso para o lago um artifício que o torne espelhante e um refletor que funcione como uma nuvem passageira, capaz de ocultar o sol. Nos daremos conta assim do sonho criminoso e não consumado do marquês: assassinar o astro-rei. Monarquista e royalista, sem nenhuma dúvida, apesar dos malentendidos republicanos. A representação imagética. A representação de práticas sexuais foi mais ou menos mostrada em todas as épocas e todas as civilizações, segundo critérios mais ou menos permissivos. Nós a encontramos, por exemplo, sacralizada nos templos hindus ou miseravelmente vulgarizada pela teleglobalização de nossa sociedade. Em nossa opinião, o que pode ser chocante nisso é a regressão contemporânea em direção a uma baixeza de que crapulosamente ( se quisermos nos divertir um pouco e continuar a embaralhar as cartas, encontramos no Robert o termo “crápula” associado por Proust ao prazer sádico) se aproveitam os produtores. Em Sade, a composição dos tableaux ( quadros) advém de um imaginário fantasmagórico, provocado pela solidão de sua condição de prisioneiro. Se admitirmos que o classicismo é o apogeu da forma, o maneirismo um formalismo, portanto uma crise da forma, encontramos aqui uma organização especificamente barroca, ou seja, a liberdade soberana da imagem e seus múltiplos e intermináveis jogos de espelhos. Para pensar em cinefilia au vent 3 ( quel vent?), não estamos longe de uma coreografia à la Busby Berkeley . Infelizmente, não pensamos como um cinéfilo “dans le vent”. Que mal há nisso? 5. Sobre o som. A “sonorização" agora, se faz favor. Partis pris 4 feroz do som direto.Corpo acústico realista ( voz mais ambiências campestres), nas cenas do salão e da floresta. Tomada de certas precauções na cena da alcova: isolação do espaço sonoro de maneira a privilegiar a clareza e modulação das vozes, através de uma pureza acústica próxima daquela que se pode encontrar numa boa sala de concerto. Basta-nos visitar o quarto de dormir do duque Frederico de Montefeltro , no palácio de Urbino, para nos darmos conta dos cuidados concedidos à organização acústica. Trata-se de criar as condições que permitam a um ouvido bem treinado fruir de todas as fontes auditivas, inclusive as da amplificação, como elemento fundamental de erotização do espaço. A voz será então o elemento primordial de sedução em um jogo de entrecruzamento das linhas melódicas. Kierkegaard, que não se engana jamais, já o disse a propósito de Mozart.Dito isto, adoraria igualmente chamar a atenção sobre a construção rítmica de Sade. Pode-se ver que ela se dá em dois tempos: o tempo do logos e o tempo do eros. Ora, nossa economia cinematográfica não exclui, tirando desvios seriais, esta cisão: ela será rigorosamente binária, um pouco como nos filmes de Hawks, mas sem quebrar o que chamamos o movimento perpétuo. Digamos: indo sempre adiante. 6. Sobre a caracterização dos personagens. Dolmancé. Ele é o mâitre a penser 5 e o que conduz o jogo, subentendamos isso no sentido teatral de mise en scéne. É um libertino com muitas convicções. É preciso explicar o sentido do termo nos séculos XVII e XVIII? É suficiente talvez mencionar seu ateísmo materialista e uma vida privilegiada, votada aos prazeres. Mas para complicar um pouco nossa tarefa, ele é bem mais que isso: ele possui uma dupla personalidade, que sobretudo não podemos confundir com o sentido moderno de desdobramento, dado pela psicanálise. Seria um equívoco bem perigoso, e um tanto quanto doentio! Em Dolmancé, este comportamento não provoca nenhuma perturbação. Ele é lúcido o suficiente para separar as esferas. Portanto, por um lado, temos um personagem que se move numa pequena sociedade, fechada e secreta, a dos libertinos, e por outro, um personagem socialmente respeitável e respeitado pelo poder político ou judiciário, onde provavelmente ele desempenha um papel importante. Já aí há muito do que rir, mas, para ficarmos sérios, precisamos acrescentar que este comportamento resulta de uma enorme decepção do personagem, fundada sobre sua experiência da natureza humana e da hipocrisia social. Mme de Saint-Ange. No início, somos tentados a acreditar que a personagem possui um apetite feroz e irrefreável por uma jovem virgem. Ela não pôde satisfazê-lo, dadas as circunstâncias ( um convento).Tendo refletido sobre o objeto de seu desejo, a personagem concebe e prepara um plano mais sofisticado, onde a educação será o tema principal. Sublinhemos que no diálogo com o padre, cúmplice incestuoso, a personagem confessa seus furores uterinos e a fraqueza em não resistir a seu temperamento. Moderada pela idade, a Saint-Ange não exclui a hipótese de tornar-se devota. A seqüência dos eventos nos demonstra que, apesar de sua cumplicidade e devoção, raramente ela estará à altura de Dolmancé. Eugénie de Mistival. Se julgarmos bom o ensinamento dos Gregos, que pregam a superioridade do discípulo sobre o Mestre, então estamos largamente satisfeitos aqui. Com efeito, a personagem ultrapassa todas as expectativas; partindo do grau zero de uma inocência que beira a inverossimilhança ( lembremo-nos de que Eugénie, com quinze anos, não conhecia nem o nome nem a função dos órgãos genitais, apesar de sua educação em um convento e de pertencer a uma família cujo pai, reputado libertino, é o mestre e senhor, em oposição a uma mãe devota e submissa), ao termo de cerca de quatro horas sua nova educação está perfeitamente realizada. Seu devotamento a Dolmancé é total. Sua riquíssima e preciosa aquisição? O nascimento de uma mulher livre. Encontraremos facilmente ecos disto em outras personagens femininas do marquês. Em Juliette muito certamente, mas também, por que não?, em uma nova Justine, uma über-Justine 6, no sentido nietzscheano da expressão. Em nossa opinião, e contrariamente à opinião corrente, Eugnénie forma com Dolmancé o verdadeiro casal ( se casal há) da obra no sentido de uma afinidade eletiva, mesmo se esta união se mostra impossível: a liberdade absoluta é votada à absoluta solidão. Nos desertos do amor, nenhuma religião é tolerada, nenhuma re-ligação. Estamos no pleno domínio do inominável, para além de toda e qualquer ataraxia.7 A esfinge reina. O chevalier de Mirvel. Noblesse oblige, claro, mas o personagem não está lá, segundo sua irmã, para “fazer sermões”. Sejamos claros, o cavalheiro convenceu o sodomita Dolmancé a fazer uma visita a sua irmã a fim de que, num caso excepcional, este a sodomizasse. Felizmente: o gênio consiste no erro no sistema. Em recompensa, Saint-Ange lhe promete o “descabaçamento” da buceta de Eugénie, colocando-lhe a par de seus projetos libertinos. Nos vemos diante de um híbrido dividido entre a herança libertina de seu meio social e suas convicções rousseaunianas. Para além da satisfação de seu apetite sexual ( prazer simples), é evidente que este rapaz de coração aceita a contragosto as crueldades dos outros personagens. O cavaleiro possui uma função mais próxima da dos criados, mesmo possuindo o privilégio do uso da palavra, e que se lhe conceda o privilégio da leitura de um panfleto, menos pela virtude de seu órgão vocal que pela beleza de seu órgão genital. Agostino. Em Sade, o personagem do jardineiro é reduzido, segundo os hábitos da casa, à sua condição de puro objeto erótico. Seu quase-dialeto provençal vem talvez de Moliére, mas também é talvez pelo conhecimento direto que Sade tinha do dialeto. Por sua condição de criado, Agostino executa tudo o que lhe é ordenado. Antes da leitura do panfleto, ele recebe a ordem de sair: “Isto aqui não foi feito pra ti”. Nós o seguimos, dando-lhe uma palavra, portanto um pensamento, o de Leopardi. Podemos nos perguntar porque o texto de um poeta romântico, embora este romantismo tenha saído do iluminismo, seja posto na boca de um criado. A resposta é inequívoca: tenho horror à servidão, e a clemência do caçador não me é totalmente estranha. Provavelmente também porque há em Leopardi um desespero ao mesmo tempo negro e feliz. Se é verdade que este diálogo está mais próximo de Plotino que de Lucrécio ou Sêneca ( ou, se assim o quiserem, mais próximo de Petrarca que de Laure), não é também pelo fato de que as prisões da servidão e da solidão estão mais próximas umas das outras? Dizendo de outra forma, sem esquecer a singularidade destas duas vias, pensamos que com Sade e Leopardi estamos face à mesma busca ontológica da felicidade. Impossível? Sim, talvez. A título de curiosidade, queria chamar a atenção sobre uma das passagens mais misteriosas e mais sutis de toda a história da literatura: a do famoso segredo que Dolmancé confia a Agostino, no final do quinto diálogo. Leiamos: Dolmancé (...). veja o pouco caso que faço. ( referindo-se ao cu de Agostino, que beija). Vou lhes suplicar, madames, a permissão de ir um instante na cabine vizinha com este jovem. Saint-Ange. (...) Não pode fazer aqui tudo o que deseja fazer com ele? Dolmancé ( baixo e misteriosamente): Não, há certas coisas que necessitam absolutamente de véus. (...) Saint-Ange. É portanto uma tal infâmia que não sejamos dignas de ouvir e ver? Le chevalier. Calma, minha irmã, vou lhe dizer. ( Fala baixo com as duas mulheres). Eugénie, com ar de repugnância. Ele tem razão, é horrível. Deseja que vá convosco? Quer que eu o masturbe. Não será por acaso um jovem jardineiro. ela não poderá mais ser mãe. céus! Que monstro! E isso goza? Monteiro. ou em nosso campo. e pra fechar a coisa: a filha prescreverá a leitura à sua mãe.deve tudo dizer. A punição será cruel: condenada a viver. como uma cachoeira! Vou buscá-lo. Sai. que periodicamente peida na boca de seu marido como se esta fosse a coisa mais natural do mundo? Então. havia um belo jardineiro cultivando suas flores. Isto se trata de um assunto de honra. e que se deve passar entre homens: uma mulher nos incomodaria. encontra-a já instruída. e os freqüentadores do McDonald’s? e Mme de Saint-Ange. Agostino? Sim. Ah. um rapazinho bem robusto. e para quem pudéssemos dar lições. Oh. e concebam neste exato momento que é preciso estar só e nas sombras para executar tamanha torpeza. Primeiro sinal inquietante: a desobediência da filha. Sob os olhos dos presentes e por obra do acaso. festeja o casamento da alegoria dantesca com a parábola sadiana com charmosos toletes de cocô bem retorcidos? Como não é crível que o segredo seja desta natureza.atividade de não censura. Agora entendem porque eu tive de vos calar esta fantasia.. pois todos os caminhos não levam mais a Roma: eles lhe foram cuidadosamente interditos. Sua virtude está assegurada até o fim de seus dias. Em seguida.Meme de Saint-Ange. Resta a dizer que o realizador.. face ao Ser supremo e à bela e forte caridosa sociedade é bem conhecida por todos. Não. sendo de natureza política. assim como não é crível que seja de ordem filosófica. em nossa casa.. o desencadeamento da fúria desta. Tenho precisamente o que necessita. Romper o único tabu de Dolmancé vale a pena? Eu acho que vou manter o segredo. É verdade que seu marido a ultraja e sua filha a detesta. volto num instante.. A razão de sua chegada é inequívoca: ela vem buscar Eugénie e. e as humilhações e torturas de que é vítima.. levando Agostino). toma claramente o partido da vítima. mais ou menos dezoito ou vinte anos. e as crianças.. ou mesmo sua beatitude. sendo de ordem evidente que em Sade a filosofia. que espécie de coisa tão íntima poderia ser compartilhada com um jardineiro. cujo membro possui treze de largura sobre 8 e meio de circunferência. tomando o lugar de Mademoiselle de Saint Ange. e os animais.. senhoras (. não. Em uma palavra. Madame de Mistival. Dolmancé.. mas não revelada a estranhos? Uma outra pista. no final do quarto diálogo: Dolmancé (. ela não terá nenhuma outra atividade sexual. . como Sade: o que o interessa é mostrar a dor de uma mãe diante da perda de sua filha. céus! Então. Sua devoção.. Agostino. enquanto o senhor goza com Agostino? Dolmancé. Dolmancé. eu estava duvidando. O quadro possui um ar idílico. Saint-Ange. Dolmancé. Pior que isso. que nos servisse de modelo. Oh. Eugénie. de uma deliciosa figura. que vi há pouco trabalhando em seu jardim? Saint-Ange. e o pudico judeo-marxistacristão Pasolini que. no círculo da merda de Saló. para sua infelicidade. Não é necessário insistir nisso. Certos exegetas fazem alusões a prováveis práticas coprófagas como o horror dos horrores. Oh.) eu desejaria que pudéssemos ter. pois não possuem nada em comum com o uso que se lhes atribuímos hoje em dia. São impenitentes “enroladores”. aprende a dançar. e de Diderot. Léonore só encontra maldade por todos os lados. há. Por exemplo: paixão.(. as entonações..) é por meio de uma brusca aceleração de tom que ele nos faz sentir a ativa canalhice de um indivíduo. seu métier de atriz. no interior da Filosofia na alcova. etc. mas me parece que há em Sade um número infinito de vocábulos que mereceriam uma reflexão bem maior. natureza.. mas que por isso mesmo se protege. triunfo ostensivo do artifício. ocupa apenas um lugar secundário. mas sou obrigado a algumas considerações sob o ponto de vista cinematográfico Como na ostra de Ponge. crime.. Mas a subversão que mais nos interessa aqui está na “despsicologização” dos personagens. o teatro é também uma escola de sentimento: “Poucos sabem o que encontramos de delicadeza nas pessoas que possuem este talento. Com os atores. Com duas exceções: um bando de ladrões e um de atores. Confundindo em uma mesma paixão seu gosto do teatro como arte do falso.. M. e sua vontade em representar o vício. que vê no teatro uma escola de mentiras e um antro de corrupção. Léonore e Sainville percorrem o mundo inteiro para se encontrar. pensados em uma grandiosa escala. que escreveu a maioria de seus livros em Vincennes e na Bastilha. Os atores formam uma sociedade à parte. ao momento. “todo um mundo a beber e a comer”: da improvisação mais espontânea ao rigor geométrico mais spinozista. um discurso e uma voz sem origem senão a fictícia. ou até mesmo uma certa estima pelos atores. quimera. crise.ele faz no teatro os papéis dos pais nobres. para descrever uma emoção. “é uma máquina. no Paradoxos sobre o ator. Mas teme se entregar a esta profissão por causa da péssima reputação dos atores ( na época excomungados.) Atitude rara à sua época. No romance Alline e Valcour. as dicções. Não sei se podemos falar de emoções num estado impuro. energia. ele continua sendo uma vigilante presença no que concerne à direção de atores. representa-se com extrema precisão as vozes. são lábios sem rosto.. que. O ator.e nisto consiste. Sade sabe que não se trata de dar voz na cena a personagens tão criminosos quanto os que imagina em seus romances. como não deveriam ser honestos e sensíveis. Com os primeiros. sua beleza.Sendo uma escola de talento. quje não se constroem mas se esgotam na representação”. escapa à solidão do fora-dalei. ou à cena que representamos unicamente para nós mesmos”.. Eh!. interditos de possuírem uma sepultura cristã). Ela possui qualidades para isso. distingue a emoção verdadeira da representada e preconiza um trabalho de distanciamento interior como condição indispensável do verdadeiro talento do ator. sua maneira de se movimentar. . sem dúvida. o que nos interessa aqui é mostrar a embriaguês e a incontrolável ferocidade dos instintos dos carrascos. a paixão de Sade pelo teatro vai até o ponto de incluir a simpatia. (. “Sade. como o bandoleiro.Não sendo nós juízes. O personagem sadiano. sem adotar a lei comum. com uma metáfora banal. É por isso que Sade pode se contentar. em meados de suas vidas!” Ao contrário de Rousseau. Como Justine e Juliette. Eu bem que queria ficar aí. à auto-sugestão. espaciais. que gozam com sua falsidade. e mesmo quando frequentemente ele dá a impressão de se ausentar do texto escrito. Sade. é por sua falsidade que em primeiro lugar se caracterizam seus personagens perversos. em relação a um conjunto de elementos luminosos.faz da emoção representada o germe da emoção verdadeira. uma maquinação. ligada ao acaso. por sua elegância. Seu interlocutor. uma das razões do caráter enigmático ou ambíguo de certos comportamentos seus. como nota Pierre Frantz. que. de Brissac. musicais.a tranqüiliza. da teatralidade a origem de uma verdade. há sempre. o que depende de nós e o que não nos concerne. É um pouco injusto. etc. recebo cada vez mais visitas assíduas deste íncubo miserável. Nada de espantoso. inverno de 2002. . contidas ou desenfreadas. nas jovens e vigorosas democracias. e tem por fim último uma metafísica do prazer. assim como nas velhas e obsoletas ditaduras.. o resto me é indiferente. No que me concerne. Verde e doce. às belas-artes. guardo intacta a esperança de arranjar deliciosamente as posturas. mas é assim. com que olho o senhor olha o objeto que serve a vossos prazeres. como diria o senhor ministro de posse do dossier) não faz mal a ninguém. Eu sei de cor e salteado que a época do cinema físico passou.). eu vos suplico. Dolmancé se opõe”). ao menos assim o espero. Eu mesmo. a fim de transmitir uma verdade física que suporta muito mal o engodo dramático. A encarnação integral de um personagem sadiano não sendo possível. assim como no inspetor de polícia.. por condicionamentos de ordem social. Reproduzido na revista Dérives. implicando a negação de si. cidadão acima de qualquer suspeita e acima de toda e qualquer vigilância. pela bondade da sociedade da qual é parte integrante. antes de desmaiar ( “Mme de Saint-ange quer socorrê-la. não estamos mais na idade de ouro do velho cinema americano ou soviético. sem dúvida. um status antes orgânico. Dolmancé . meu velho Epíteto. política. Resta a dizer que o fantasma do marquês está um pouco em todos os lugares: nas humanidades críticas e clínicas. me parece no entanto que nos é preciso conferir às emoções.a negação do Outro. apatia ou mesmo dor. que a espectral figura tenha chegado à literatura.. Corremos talvez o risco de confundi-los com as sensações.. a emoção experimentada por qualquer um jamais toca a qualquer outro. Como quer que seja. número 44. mas vejo como poucas as possibilidades de sucesso deste projeto se os atores não se derem de corpo e alma. em acordo com seu produtor. Paulo Branco. 8 Este projeto de filme concebido por João César Monteiro em 1999 foi abandonado. quer ele compartilhe ou não os meus gozos. Mme de Mistival implora por piedade. Diga-me. quer ele experimente ou não contentamento. minha querida. no bravo merceeiro de esquina. contanto que eu esteja feliz.Se é fácil estar de acordo quanto ao fato de que não há em Sade nenhum vestígio de sentimentalismo ou sentimentos. e um pouco de pragmatismo ( ou de neo. então. ao teatro. Eugénie (. será pedido aos atores para que acumulem o máximo de energia e que sublimem as pulsões vitais que daí emanam. psíquica. Texto inicialmente publicado na revista Trafic. Com um olho absolutamente nulo. Como poderia o cinema escapar a esta gigantesca contaminatio? Salvo erro ou omissão. Em não importa qual filme. moral. ele até mesmo nos permitiu ver uma obra-prima: Monsieur Verdoux. mas um pobre cineasta será sempre inocentado. mais segundo meus gostos que segundo as práticas comuns. mais ligado às energias do corpo que aos élans da alma. como se esta curiosa forma de autismo portasse em si o estigma de uma irremediável prisão. 5. E o vento levou). É o ponto final de uma língua comum colocada por Hollywood no início dos anos 30. Em meados dos anos 40. O dom das línguas. é o tumular monumento de toda uma época do cinema.depois dos anos do cinema militante para o engajamento dos EUA na Guerra. a comédia. Mais de trinta anos depois. Übermensch. Peter Ibbetson. começam a fornecer estas informações. o filme histórico. Nesta época da língua comum hollywoodiana. e esta ganha em concisão rítmica o que perde em acumulação dos materiais. não é o super homem no sentido da realização absoluta do homem ( metafísico. 8. durante uma dezena de anos. proscrever). tornou-se hoje uma lei estética. Uma língua que. em favor de. 6. au vent. nos anos 30. Constata-se uma súbita economia de insformaões na narrativa ( os jornais. Justine ( Justine ou os infortúnios da virtude). Filmes como Monkey business ou The big sky de Hawks ou Clash by night de Lang. 3. seria uma nova mulher. de um novo homem. que prefere. à semelhança de Juliette. teve de trilhar por si mesmo para chegar na essência de seus temas. Vert ( Verde) et doux ( doce) =Verdoux. no sentido conotado por Monteiro aqui. 2. Que acaso? 4. O super-homem nietzscheano. com o começo do cinema falado. o western. que se situam em torno de 1951. vai se permitir os meios de desenvolver. no caso). seja os grandes romances ilustrados ( David Copperfield. Esta redução quantitativa dos elementos. que apenas capta de um tema traços grosseiros.Traduzido por Luiz Soares Júnior. Biette O tigre de Bengala de Fritz Lang . e subitamente descobre uma “mise en sourdine” 1 da teatralidade dos atores que. mas a que preço! 7. fazendo associações. o emprego menos grandiloqüente e mais flexível da música. num jogo de palavras. são hoje em dia maravilhosos arquétipos desta abstração. imprimiram ao conjunto do cinema hollywoodiano uma transformação estilística. revisto em versão original alemã no “Cinema da meia-noite”. O que comanda intelectualmente o jogo. a comédia musical. de que os filmes podem agora abrir mão). e mais. esta redução do ponto de vista sobre a vida e sobre o cinema. Ao acaso. Notas do tradutor 1.). em grandes cenários. sua irmã perversa. mas justamente o contrário: de seu ultrapassamento. livre dos preconceitos e limitações da condição “devota”. hipertrofiando o ator em detrimento da polifonia do plano. deste “apertão” ( tour de vis) dado não apenas à narrativa mas a todos os componentes do filme. deveriam sempre portar seus diálogos como engenhosas tiradas. seja modelos constitutivos de gêneros cinematográficos ( o policial. e sobretudo a televisão. ataraxia: o ideal epicurista da serenidade absoluta da alma. imagens unívocas. ou antes: um consenso . gênio no sentido de demônio interior: o daimon grego. na FR3. que divide o mundo em chefes predestinados e em multidões infantilóides ( com exceção do belíssimo American romance). seja grandes ficções sociais. hoje. o ideal de pureza. com a ajuda desta língua comum. este esgotamento do espaço visual e sonoro em relação aos grandes cenários dos anos 30. cada filme aprende da melhor maneira a encadear cenário e a luz ao découpage. o ponto de vista restritivo sobre a vida de um King Vidor. à ambigüidade das condutas humanas. jogo aqui entre prescrire ( prescrever) e proscrir ( interditar. A vitalidade da narrativa é concentrada. votada unicamente à contemplação. podemos hoje reconstituir o caminho que um cineasta. ou ainda o golpe de força simplificador de um Elia Kazan.esta língua comum é com freqüência empregada a refinar a si mesma e tende a uma escritura mais abstrata. Tomada de partido. espécie de compromisso entre a modernidade dos hollywoodianos e dos europeus das recentes gerações. Uma língua que toma emprestado. ao postar. a comunicação potencial tão préviamente “trucada”. As cenas finais de A mulher do aviador. que a situação à qual os personagens se resignam resulta de sua livre escolha. uma trajetória resolvida. a massa de informações disponíveis tão absurdamente extensa. A maioria das narrativas dos Contos morais deixavam entrever as fraquezas dos personagens. demonstra uma disponibilidade da parte de François que nega suas afirmações ( "Eu disse para mim mesma que. Ao fim da quase totalidade das intrigas dos Contos e provérbios e de alguns filmes isolados. sempre disposta a capitalizar não importa qual outra nova técnica. mas se redimiam. Cahiers du Cinéma. ao mesmo tempo. Quando François descobre que Lucie tem um amante. lenta mas seguramente. o que o leva ele a deter a última palavra. fosse sua irmã ( e não sua mulher. mise en sourdine: posto de lado.ao menos para eles. julho/agosto 1985. Ao menos o espectador aceita ( ou finge aceitar) crer nesta resolução. Eric Rohmer De todos os filmes de Éric Rohmer. A mulher do aviador. este agia bem sinceramente ao romper com Anne. a fim de se constituir em um pretenso instrumento de comunicação universal. e sobretudo a discutir sobre "o amor em geral" com sua "amantezinha". A mulher do aviador é aquele que melhor resiste à famosa "transparência". que no entanto é livre para viver com ele. que figura ao lado da verdadeira mulher do aviador na foto que lhe mostra sua amiga Anne. Se a mulher do aviador é de fato sua irmã. até porque a conclusão de sua enquête destruíra todas as hipóteses construídas ao longo do filme. quando na verdade esta língua comum não passa de uma retórica oportunista. só você me interessava"). assim como a cegueira que sofriam em relação a si mesmos. pelo contrário. que este é seu colega de trabalho ( visto no início do filme) e que o interesse que ela demonstrava por sua investigação poderia estar ligado ao acaso que o havia levado a encontrar o mesmo rapaz trabalhando na agência postal. e que a loura desconhecida. François tenta igualmente algo parecido. secundarizado em relação a. ao propor uma solução mais ou mesnos aleatória.convencional. se constituiu: a língua do cinema internacional. no entanto. mas o conhecimento que podemos ter de conteúdos autênticos é tão frágil. Para que a loura que acompanhava Christian. como François pensava). se convencendo. Tradução: Luiz Soares Júnior 1. a carta destinada a Lucie. um ciclo parece fechado. ao preço da pior má-fé. do pragmatismo preguiçoso do áudio-visual europeu ( de que Rossellini foi o infeliz precursor) e das novas linguagens restritas e referenciais do comércio ( pubs) e do espetáculo ( clips).fosse realmente sua irmã. As paisagens e os meios sociais do planeta inteiro são registros ilustrativos de um imenso reservatório. um conjunto de induções sem fundamento. da eficácia do telefilme americano. ao colocar como real a "história" ( scénario. ele se encontra mais perplexo que desapontado. apesar de tudo. e a mise en scéne é organizada com vistas a este fim. penetram muito mais profundamente na noite ( literalmente) que na clareza da evidência. e tentando convencer ao espectador. roteiro) que ele arranja. um mistério resolvido. Jean-Claude Biette. Le don des langues. foi preciso que o casal se encaminhasse a um advogado. o tempo de assimilação dos conhecimentos e experiências tão derrisóriamente inferior à sua quantidade que em relação à língua comum que havia sofrido uma decadência nos anos 50 ( em parte por um enfraquecimento de sua necessidade). Mas Anne também vem explicar a François que ela não saberia viver com um homem e tentar ( em vão) fazer-lhe compreender que a tarde passada a seguir Christian e a mulher loura. agora é uma nova língua comum que.no último minuto. o aviador. .ex-amante de Christian. mas também sempre subjetiva. ele pinta fielmente a perplexidade da fauna hollywoodiana. que persegue com François o casal no parque. As sonolências de François.e o título do livro de Aragon que o evoca. espaço do qual os seus personagens não terão nada além de uma vista parcial. É sem ironia que o cineasta nomeou aquela que interpreta um pouco o papel da Tentadora dos Contos Morais de Lucie. isto quando ele francamente não lhes dá as costas-. tão centrípeto quanto centrífugo. Lucie. o tema do equívoco ( la méprise: erro de julgamento. Referência ao título em francês do filme de Hitchcock. ela parece esclarecer um mistério na exata medida em que o obscurece ( ela também é "Lucifer"). assim como de conceber e realizar estes filmes. tal como o espaço labiríntico de Buttes-Chaumont. com o fito de nos permitir aprender tudo sobre os personagens. escrevia Éric Rohmer. que deve se dobrar às duras leis da evolução econômica e manter . O essencial permanece sempre fora do alcance. ele entendia que uma obra só haure sua força na verdade da descrição dos personagens e do meio: que esta deve nos informar perfeitamente sobre o funcionamento do meio. Mas a mulher exclui o casal da foto. descreve com precisão François. em um cenário ( décor) totalmente distinto ( "in another town") uma forma de viver. o que nos confirma a canção final: "Paris ma englouti dans la fièvre de ses tourbillons.dão à obra de Rohmer uma dimensão com frequência oculta sob a aparente lucidez do olhar: a do sonho. 2. para sua infelicidade e sua alienação. Joël Magny Tradução: Luiz Soares Júnior. como de uma grande parte da Nouvelle vague. 3. Ao dizer isso. O espírito humano. comenta Lucie. a luz. Em francês no original: fauxs coupables. de Chabrol a Godard. Jean Douchet Já que se trata do assunto profundo de Two weeks in another town. Le paysan de Paris . que se furta. dos quais esta não pode. "Ela deve ter achado que eles não ficariam bem na foto 3". A beleza de Mulher do aviador reside ainda na distância máxima que o cineasta estabelece entre o maior domínio possível da mise en scéne e a perda total de domínio ( maîtrise. falemos de cinema. centrada em seus pobres seres. não cessa de preencher os buracos. "Todo grande filme é um documentário". de sonhar. domínio) dos personagens sobre um espaço que lhes escapa. Two weeks é ao mesmo . arrancada a seu meio natural. depois da Marquesa de O. "que não saberia não pensar em nada". Os quatro reinos. fuyant: que nos escapa sempre. 1. assim como a utilização do parque Buttes-Chaumont. Tornando. The wrong man: Le faux-coupable. Por seu senso crítico. se deixa fotografar próxima a eles por uma turista para conseguir uma evidência do casal "adúltero". dans la frénésie de ses agitations".Se o tema do desprezo é característico dos Contos morais. sua constante atenção. controle. Pois sua visão é não apenas necessariamente parcial. Rohmer se permite a flexibilidade necessária para identificar um espaço fugidio 2 ( o que há de mais fugidio que a geometria artificial dos Buttes-Chaumont?). caro aos surrealistas . Nesta intriga policial enredada por um fio contínuo e com falsos culpados 1. se desligar. os pobre Sherlock Holmes que são François e Lucie apelam mais para a imaginação que para o raciocínio. Última lição de moral cinematográfica que constitui este retorno aos princípios estéticos originários da Nouvelle vague. como o casal fotografado pela turista asiática. a uma filmagem com meios mais simples. seu espírito de dedução. onde os personagens se equivocam tanto em relação a eles quanto ao mundo.é ela quem reencontra constantemente o casal que François não cessa de perder de vista. de sentir. como diz o provérbio com sentido desviado que abre o filme. quiproquó) atravessa as situações das Comédias e provérbios. O último filme de Minnelli responde a esta exigência. pelo trabalho. que deve descrever o real. e força o artista a inventar a metáfora ( vide O celulóide e o mármore. pintado justamente em suas particularidades). gestos. seu funcionamento.a dança. e sobre a vida da máquina social. remete ao animal. e também esta "vida"mecânica das máquinas. Two weeks o prova. em nosso conhecimento. Cyd Charisse. portanto. transpõe para melhor restituir. este movimento interior que conduziu a coisa à sua aparência. Digo inerente. isso faz parte da dimensão superior do homem: é seu drama. de reações animais. lutam para conservar intacta sua parcela de poder.. nos impulsos e nos ardis dos personagens. portanto de sua verdade. Ela condena todas as especulações da "coisa que olha". nada específica. que nega o Outro para melhor se afirmar às suas custas. orgânica dos vegetais. tal é a única e nobre missão do documentário. O que importa aqui é a idéia de transformação da passagem de um estado A a um estado B. não pode prescindir deste aspecto documentário inerente à arte cinematográfica. O homem. de território. e opõe uma tela à tela. de tal forma é verdadeiro que tudo. por intermédio aqui do herói. Vejamos Two weeks: desde o velho leão decaído que é Edward G. a produzir. Captá-la em sua fonte. deve . de qualquer forma que visemos a este. ( E isto de tal maneira que não há grande filme. Mas há ainda mais. Antes de tudo. Pois. O termo documentário evoca imediatamente estes filmes que registram objetivamente o processo da vida: vida inorgânica dos minerais. todos os documentários possíveis. Esta exige o respeito. Mas. sua mecânica. a Bíblia. sua mulher. que não possa ser totalmente transposto para o reino animal). Mas também um documentário animal. fabricações humanas. O cinema registra o real que lhe é oferecido a olhar. e sua crítica. Que a noção de território se revele. ou a leoa furiosa. mas então ele obriga o artista a se submeter inteiramente à própria coisa ( la chose elle-même) e a seu devir: dele. com efeito. em uma palavra: de evolução. seguir seu curso. os romances da Távola Redonda. animais. a sua casca. Consequência: filmar o homem objetivamente implica que o cineasta capte simultaneamente todas as etapas da evolução que conduziram até o homem. captá-la no momento de sua expiração. passando pela flexível beleza da pantera que tem prazer em "despedaçar" ( déchirer).e é intencional que eu só cite obras com heróis e ações míticas. muito vaga.é a mais segura garantia de sua repercussão universal. ela simplesmente exige que o artista reencontre. Trata-se. todos. exprimir seus frêmitos. que documentário e cinema são uma única coisa. Robinson. A noção de evolução ( bem mais adequada que a de movimento. Ao mesmo tempo sobre a vida de uma sociedade ( que se reflete na vida de um grupo particular.Onde chegamos com isso? A esta constatação: um grande filme.o homem que manipula a câmera e a película. se a universalidade pode ser considerada como o melhor critério do valor estético. Resta-nos concluir. homens. e sobre a obra que. ao mesmo tempo em que esta casca parecia constituir um limite intransponível à investigação. pois a solidez documentária ( verificada de forma diversa pelas ciências) de obras como A Odisséia. ao final das contas. cinemamontagem) me parece responder à questão da natureza fundamental do cinema. quem não vê a diferença? A literatura. vemos neste um único objeto: a vida. de uma forma imediata e intuitiva. no comportamento físico do homem. no entanto. quimérica e ilusória. Todo grande filme é igualmente um documentário na medida em que ele constitui. O milagre do cinema é que a câmera filma esta corrente misteriosa. em luta com ela.e causa de inúmeras aberrações: cinema "puro".tempo um testemunho sobre um fenômeno bem atual do cinema americano ( vide nosso recente número). a seiva que lhe forjou a casca. ou mesmo As Mil e uma noites e Don Quixote. atitudes. em conjunto. a humildade. a compreensão íntima e quase amorosa da coisa olhada. nesta selva. esta máquina constrange o homem . um documentário sobre o homem. de Rohmer). este animal superior ( e esta espécie de documentário só pode ser concernida por este comportamento físico). nos olhares. seja ele do domínio da mais pura ficção. De sua luta.aprender a aceitar sua evolução ( e a evolução). assumindo enfim esta superioridade que lhe é tão difícil demonstrar no início. para resolver seu próprio problema. um presente que se impõe ao passado ( é o caso de Two weeks). Assim. a animal. de se desligar de etapas anteriores. aparentemente mascarada por sua crueldade: eles só se apóiam de forma tão desesperada sobre um mundo imaginário. o elogio da loucura. Ele atinge este limite quando sua mulher. fluxo de vida através do qual o sonho pernicioso será conduzido e destruído. O rio sagrado). como o documentário também incidirá sobre o lado mineral do homem. engaja o destino da humanidade. por seu "sacrifício". ele completa seu itinerário de Hollywood a Hollywood e funde seu devir. Isto constitui apenas um paliativo. chumbo ou ouro. Uma afetividade que. à pedra suntuosamente barroca da Cidade Eterna ( este barroco mostrado por Minnelli como o último estágio de evolução desta pedra: seu estilhaçamento. para o herói. a fim de afrontar um futuro . para dispô-las no espaço. Não basta que Kirk Douglas reintroduza o movimento ( um movimento barroco acordado a Roma. portanto se libertar de todas as etapas anteriores. de tal forma o cenário como projeção dos personagens tem importância aqui. denuncia uma sociedade ( tanto aquela que fabrica o produto cinematográfico quanto aquela que o consome) ligada a uma concepção apodrecida do homem e da arte. e assim oferece uma espécie. Assim. Kirk Douglas. que ele retoma no meio da filmagem. atingido o topo de sua evolução. depende um futuro que seja ou não liberto de entraves. a mais próxima em particular. no nível de um roteiro. o homem evoluindo ( Tabu. que ele é o único que soube penetrar) na mise-en-scéne do filme. Hatari!. Este é o destino do homem hoje: se libertar das aquisições do indivíduo. ou aprendendo a evoluir ( O tigre de Bengala. depende do meio e se nutre deste: vejamos simplesmente todos estes seres desenraizados de Hollywood buscando permanecer enraizados no meio do cinema. Se se trata. que vá aos confins desta fixidez que o obceca ( e da qual sua esposa é menos o objeto que o pretexto. ferro ou madeira apodrecida. é necessária uma solução espacial a este problema temporal da evolução. Este conflito. permite que o processo de transformação dos seres e das coisas "evolua" diante de nossos olhos. se encontra abordado o problema temporal da evolução: um passado surgido em um presente. Disso advém necessariamente que. o abandona. trata-se em paralelo para a sociedade de denunciar uma mentalidade rígida que entrava o seu progresso. Intendente Sansho.por intermédio do trajeto e do itinerário. movimento excessivo. das quais ela emergiu.com o devir dos outros ( o jovem ator). para além de seus tormentos. Transposição também no domínio vegetal: os fenômenos da vida das plantas encontram sua correspondência no homem ( fora do que chamamos vida "vegetativa"): no domínio da afetividade. e. da própria espécie. ao mesmo tempo em que exorciza seu passado. estaca sempre na fixidez. a fixação). Evidentemente. e que permita ao homem desabrochar. a própria imagem do violento movimento interior que agita os personagens). de abertura à humanidade. se deixando "levar" para melhor "levar". De agora em diante mestre do movimento. É preciso ainda que ele "reflua" ( remonte) completamente para dentro de si mesmo. Os quatro reinos se avizinham então. é-lhe necessário redescobrir sua verdadeira aspiração: a recusa em viver. Enfim. O movimento que.em sua trilha própria. no decurso da reunião de drogados. em Minnelli. Nada pode liberá-lo agora de seu passado e da tentação da imobilidade que sua louca corrida de carro. de um indivíduo. caracterizada pela vontade de conquista e de possessão. o artista cessa de condensar temporalmente estas diversas etapas da evolução. no cinema. A ninguém mais surpreenderá que este cinema documentário ( o único que amamos) entoe. telas pintadas e cartolina. Herança da carne) harmoniosamente. que é o nosso. de se libertar de tudo aquilo que bloqueia a sua plena realização. parece-me até inútil mostrar. Que os personagens de Two weeks prefiram a "inconsistência" de seu décor "de cinema". sem arrimos. da sociedade. para a espécie. manifesta em demasia a fraqueza destes personagens. a morte. coordenar seus esforços ( face aos espiões) para que um reencontre o seu formato originário e o outro o seu conteúdo originário. ao Outro como potencial de descobertas. a alma e o corpo. O desafio do filme de Dante é burlesco. pornográfico e poético. sobre sua orelha. Hino de amor ao cinema e às suas múltiplas representações. Mas ninguém até hoje. É preciso então aprender a se conhecer. metafísico. Todo grande filme é este documentário sobre a coragem e a grandeza da loucura. Dennis Quaid se comunica oralmente com Short se colocando diretamente. O "continente" é um pobre caixa de supermercado. O "miniaturizado" e a "grandeza natural" estão no mesmo barco. Uma breve passagem no corpo de sua amada ( em seguida a um beijo) lhe dá a oportunidade de descobrir um espetáculo único e grandioso: o feto de seu próprio filho. travessia sob as cataratas da faringe. Jean Douchet. Ele trabalha o corpo e suas secreções . da sabedoria humana. Cahiers du Cinéma 154. logo humano. e descobre em sua tela de controle o que o corpo habitado vê do mundo exterior ( fixação dolorosamente cômica sobre o nervo ótico). um herói interespacial ( Dennis Quaid). Ele acaba de ver a invisível verdade humana ao vivo. Enquanto que o herói. totalmente neurótico. refugiado numa nave microscópica.salvo Richard Fleischer com seu Viagem fantásticahavia imaginado que uma das aventuras mais fabulosas poderia estar ao alcance da mão do homem (ou de uma seringa). Antes de chegar ao parto final por meio de um espirro. ao invés do corpo de um coelho. é preciso que haja ainda um desafio.que só nos parece de tal maneira angustiante por conter ( talvez) as mais espantosas promessas quanto à evolução do homem. a viagem é repleta de peripécias que mudarão estes homens: o complexado se transforma em superherói ( capaz de demolir não importa qual colosso) digno de James Bond. e não por intermédio de telas e imagens parcialmente "desrealizantes" ( ecografia). em estabelecer uma ligação entre o dentro e o fora. conquistas e odisséias cuja ambição consistia em fazer recuar cada vez mais os limites do visível. até por ser bem curta. O pai chora de felicidade. a exterioridade e a interioridade. se encontra ejetado no interior do corpo de um homem. como ocorre sempre com o cineasta americano ( ver Gremlins). um instrumento de viagem. simplesmente. como uma pulga. absolutamente hilário): o melhor cliente de um médico que lhe recomenda justamente evitar as "emoções fortes". Como um espectador de cinema. abril 1964. Desde Méliès. já tornado minísculo como punição por sua arrogância ( início do filme). Joe Dante Se Viagem insólita fosse um vinho ( e este possui as propriedades de euforia da bebida) seria um vinho particularmente encorpado. Viagem insólita é um filme clínico. cooperar. Viagem insólita. O filme de Joe Dante amadureceu sob o sol da História do cinema e de predecessores visionários que sempre pensaram que seu instrumento favorito era. grande número de diretores empreenderam toda espécie de expedições. portanto. Cavalgada fantástica nas cavidades dos órgãos humanos. recusando-se assim em visar a viagem sob um ponto de vista unicamente feérico. Encontro entre a matéria e o espírito. devem. pois se abre para o desconhecido. antes de tudo. mas desta vez num bom sentido: ele acede à humildade. Tradução: Luiz Soares Júnior. mergulho submarino nos riachos impetuosos do sangue. A força do filme está em pôr em relação estes dois homens em um único. Este Outro que vai me permitir espreitar de sopetão o corpo que eu mesmo sou capaz de criar. como se diz. O corpo humano como um território de geografia variável. A cena é de uma cativante beleza. Viagem insólita se apóia sobre o rompimento com um roteiro original. inibido e hipocondríaco ( Martin Short. Mas isto não é suficiente. Depois de uma operação de miniaturização. e é através desta interdependência que Viagem insólita torna-se profundamente humano. ele "é todo olhos e orelhas". se sente a um certo momento ainda menor. Até então nos acreditávamos dentro da Noiva de Frankenstein. A aura desaparece. portanto. urina. sobretudo na sequência final. Johnny Depp) adquire toda a sua grandeza. e mesmo rara: a infância. demasiado humano. Tashlin e Tati. O minúsculo mundo de Joe Dante lhe ( nos) permite ver as coisas "de forma grande". o subúrbio toma. Tim Burton Em se tratando de um filme ainda recente. como a tendência à intolerância. o caráter de um espaço mítico e encantado. O que seduz particularmente aqui é a irrupção do gótico na América doméstica e contemporânea. e permanece um objeto absolutamente único. quase documentário se quiserem.( saliva. vai "desinflar". meio social sobre os subúrbios pequeno-burgueses. rosa. acaba. Dois momentos dentre os mais belos do filme: Edward "barbeando" literalmente os muros com este ruído de "guincho" que irrita os nervos ou estilhaça a alma. o desejo. sob sua aparência de conto filosófico que põe em cena um personagem tradicional de homem-máquina. perseguem o monstro humano. visto através do prisma da atualidade galopante. Não quero dizer que o filme de Tim Burton se dirige antes de tudo ao público infantil. É assim que Burton radiografa certos traços americanos. Mas há também em Edward uma característica precisosa. se mostra uma experiência implacável 1. graças ao casal impossível formado por Kim e Edward e ao sentimento insólito e inelutável que se insinua entre eles. que resiste perfeitamente quando visto numa tela restrita. e somos subitamente projetados ao final de They live by night ou de Juventude transviada. Adoro em Edward mãos de tesoura as esculturas de arbustos. um escritor como Nerval exprime com uma extrema sutileza.. em proveito de um olhar mais espectral e analítico. todas as sequências que encenam as "mãos de tesoura" tem ao mesmo tempo algo de perturbador e fascinante. portanto. A questão logo se torna crucial: o filme resistirá? Ou antes. interpretado por Winonna Ryder ( seu melhor papel) que Edward ( aliás. laranja. É graças ao personagem de Kim. por ser tomado uma "febre" digna de Nicholas Ray. Jacques Morice Tradução: Luiz Soares Júnior Edward mãos de tesoura. Edward mãos de tesoura. . e como um conto fantástico e mitológico que nos remete diretamente à série dos filmes sobre Frankeinstein e aos filmes da Hammer. É este deslizamento absolutamente inesperado que dá em definitivo o valor do filme. a primeira revisão.. ele nos fornece informações. repintado com as cores de Tim Burton. Ao invés de se contradizer ou se anularem. antes de tudo. O filme se apresenta. em vídeo cassete ou na televisão. sangue). Aliás. ou ainda estes momentos onde os dedos ferem sem querer a criança ou a mulher amada. o medo da perda). algo entre John Waters. Assim. pelo contrário. ao mesmo tempo como um ensaio meio pictórico. De fato. transformados em justiceiros. o filme também é um estudo fino e preciso. à primeira vista. quando os vizinhos. Do filme vemos apenas o esqueleto e alguns traços mais salientes. as refeições na casa com a deliciosa Dianne West. como um balão informe? Eu lhes asseguro: Edward mãos de tesoura é o melhor Tim Burton feito até hoje.com a exceção de um gentil policial-. violeta. mas simplesmente que ele toca diretamente nesta parte da infância reencontrada que. as sessões no cabelereiro. ao matriarcado. pelo intermédio de Vincent Price. quando ele deságua na história de amor louco ( amour fou) e de conto de fadas de pesadelo.Mas adoro ainda mais a última parte do filme. por exemplo.. Thierry Jousse Tradução: Luiz Soares Júnior. estas duas características opostas se reforçam mutuamente. O vídeo afina a lógica e o sentido do rigor. o somático e o psíquico ( a angústia. da vida americana. circulação de fofocas.. Peggy Cummings. fosse obrigado a retomar o projeto. nunca teria me esforçado tanto para subir no trono se soubesse que exigiam tanto de um rei). a arte dos movimentos de câmera aqui se mostra no auge.Podemos ver isto na tela. elegantes crápulas e monstros jamais reunida em um filme. porque ao cabo de algumas semanas de filmagem o metteur en scéne John Stahl e a vedete principal. Otto Preminger Adaptado do best-seller.O filme torna-se assim um devaneio sobre a impossível secura do coração. o projeto não era de Preminger (ao contrário: ele se opunha a este). mas de imaginar que apenas sua ambição pode servir a sua afetividade.1. pintando uma heroína colocada na situação. É a irmã de numerosas outras heroínas premingerianas. Preminger estudou o conflito da ambição e da afetividade. sua tristeza. e na curta cena do parto de Darnell. fizesse reescrever o roteiro e se tornasse totalmente o senhor do projeto. situado no seio de uma reconstituição histórica com um fascinante esplendor plástico. Para este adepto da técnica invisível que é Preminger. e a intérprete que ele desejava para o papel ( Lana Turner) teve de finalmente ceder o lugar para Linda Darnell. Amber foi em sua época um dos mais caros produtos da Cidade do Cinema. é sem dúvida a mais bem realizada das superproduções americanas. por exemplo. de Kathleen Winsor. a riqueza dos figurinos e dos cenários. haviam sido demitidos por Zanuck antes que Preminger. nas vésperas de rodar Laura. Situação um pouco semelhante àquela na qual ele estivera. Por seu gênio plástico. Sua frustração. Sua breve e tumultuosa trajetória vai se efetuar por entre a mais extraordinária coleção de cínicos. diz Charles II à sua amante. Este texto foi retirado de uma edição da Cahiers de 1993. enquanto que para o espectador a frieza da heroína a torna ainda mais empolgante do que se derramasse torrentes de lágrimas. com duas essenciais diferenças: aqui. as coisas tinham começado mal. transformada em loira para a ocasião. o diretor nos dá o que talvez seja o mais belo plano sequência da história do cinema. seu estado de decepção quase permanente se estiram diante dela como abismos. não de preferir sua ambição aos sentimentos. Um americano tranquilo. e dos quais espera. Amber está tão distanciado de nós e do que vemos hoje em dia no cinema quanto podem estar . Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. mas que Preminger preferiu colocar no mais glacial dos estudos de costumes. Tendo escolhido um parceiro apático e indeciso. audacioso para a época. a suntuosidade do Technicolor manejado com gênio por Leon Shamroy ( sobretudo nos closes de Linda Darnnel). Não se poderia. Todo este fausto serve de espelho à acidez impertinente dos diálogos e à desilusão dos personagens ( ” Lutei toda tarde contra o fogo nas docas. imaginar uma Amber mais perfeita. de forma vã. um quadro de Velásquez ou de Rembrandt. então sob contrato na Fox. por exemplo a Cécile de Bom dia tristeza. apenas para citar um de seus gênios. Forever Amber. No entanto. sequioso de respeitabilidade. a libertação. Mankiewicz . no entanto. portanto. e não teríamos palavras para descrever o gosto. onde a equipe analisa os filmes em relação à sua transmissão em vídeo e. ela vai passar a vida a se aguerrir e a esperar que deste endurecimento lhe venha por fim a felicidade. Através de seu personagem. sobre o fiasco de uma heroína que não cessa de se perder nos cálculos e complots que arma. Ela vai viver uma série de decepções que encontrariam bom lugar num melodrama. todas as implicações em matéria de linguagem desta transposição de mídias. Tradução: Luiz Soares Júnior. ou a torna derrisoriamente inoperante. em 1958). em suas mentiras pueris. do porte-à-faux 1. Alfred Hitchock Uma das cinco ou seis obras mais importantes mais importantes para o conhecimento de Hitchcock. obscurecer. e não apenas como tema mas como motor principal da . inseridas em um flashback. Mankiewicz explicou que seu interesse pelo romance de Graham Greene vinha sobretudo do personagem de Fowler: “Eu sempre quis fazer um filme sobre esses intelectuais glaciais cujo intelectualismo é apenas uma máscara que recobre reações totalmente irracionais” ( citado no livro de Kenneth Geist sobre Mankiewicz. Jacques Lourcelles. sua perplexidade. instável. É o filme onde o tema hitchcockiano de base. o triunfo desconcertante do irracional e do emocional sobre a razão e a lucidez. Um americano bem tranqüilo permanece. a atriz Rosa Stradner. Quanto mais os grandes personagens falam. sempre rapidamente desmascaradas. sempre com ironia. um dos períodos mais tormentosos de sua vida. Aqui. mesclar querendo dizer aqui misturar. em relação a si mesmo. ( O estado mental de sua mulher. Um destino vacilante priva os personagens ( e sobretudo o narrador) de sua lucidez. Mankiewicz joga habilmente com as diferentes línguas faladas pelos personagens. em perspectivas) é segmentada em longas cenas teatrais com diálogo abundante. Triunfo feito na medida para justificar esta cólera. desequilibrada. um enigma: ele próprio é integralmente um enigma. confundir. A mensagem do filme consistiria assim em mostrar . A intriga mescla um aspecto sentimental e psicológico a um aspecto político. na época da filmagem. esta amargura misantrópica que Mankiewicz ressente. uma substância romanesca extremamente rica ( em espessura. 1986) e se encaminha inelutavelmente para um desenlace trágico que nada nem ninguém poderia impedir. Quanto ao resto. uma obra extremamente pessoal e até mesmo íntima. Um americano tranqüilo é o filme do mal-estar. sua confusão. Como na Condessa dos pés descalços. se degradava cada vez mais. estes aspectos se aniquilam. a história e a eles mesmos.a troca das culpabilidadesaparece mais abertamente. Em uma situação ou posição perigosa. em relação à humanidade. que nos conduz com ele em seus devaneios impotentes perante a realidade. Sua narrativa possui a textura de um “pesadelo desperto” ( segundo a expressão de N. Este vivia. Pois. de forma intermitente. em seu primeiro livro publicado em francês sobre Mankiewicz. em um ser aparentemente evoluído e senhor de si.T. sua confusão. e ela iria se suicidar no ano seguinte. “People Will talk”). da incerteza. afim de intensificar. 1. à diferença da Condessa. e sem dúvida. falando propriamente. menos compreendem o mundo. apaixonante como um romance de enigmas. e este filme sem mensagem política coerente apresenta uma das heroínas femininas mais ternas da obra de Mankiewicz.O filme mais estranho e mais desconcertante de Mankiewicz. Pacto sinistro. há apenas um flash-back e um único narrador. em sua culpabilidade e hipocrisia. Mas este romance não contém. Binh. Mesmo o importante papel atribuído aos diálogos acaba por ser negativo. Rivages. em suas trevas e sua ambigüidade. O domínio da construção não surpreende os espectadores familiares ao estilo de Mankiewicz. em primeiro lugar. Longe de mutuamente se valorizarem. no interior da carreira de Mankiewicz. Este movimento para a tragédia é o único elemento claro no filme. sua má consciência. e não com um happy end. A filmagem começa em 1 de fevereiro de 1943 no estúdio de Alma. que desejou matar. Para Hitchcock. A Mosfilm aceita o projeto um pouco antes da URSS entrar em guerra contra a Alemanha. depois do Alexander Névski. e enfm a sequência final do carrossel).Esta ação. metálica e glacial forjada pelo diretor de fotografia Robert Burks. Esta no fim triunfará. ele expia uma culpa metafísica ligada ao pecado original. que pensou em matar. aliado à Inglaterra. A doença e as críticas oficiais suscitadas por esta segunda parte o impedirão de rodar a terceira parte. tomado aos alemães no fim da guerra. de efeitos óticos e fotográficos que permanecem a maior parte do tempo um enigma à primeira visão. para cinzelar imagens infernais e apocalípticas que exorcizam suas obsessões. a fim de evitar que este caísse nas mãos do inimigo. Tradução: Luiz Soares Júnior Ivã. quase austero.ação.Ata. da qual é mestre absoluto. depois de ter cortejado o abismo. moralmente falando. Mas Hitchcock sempre espera que o espectador esteja sob seu domínio para enfim se dar o prazer de satisfazer sua verdadeira natureza: a de um formalista genial que utiliza a duração. E o face a face central de Strangers on a train é aquele entre o Diabo ( admiravelmente interpretado por Robert Walker) e sua criatura. rigoroso. ou pelo menos tenta nos dar esta impressão. Enquanto falso culpado. Kourbsky morreria em um castelo cuja explosão teria sido voluntariamente provocada por um dos seus homens. constituída em sua linha principal pela armadilha na qual se debate um dos personagens ( Guy. Maliouta morreria também nesta explosão. esta terceira parte beneficiava Ivan com as . O filme deveria ter terminado com uma proclamação de Ivan. ele sempre recusou-se a fazê-lo. mas com acessos febris que correspondem aos momentos de extrema tensão e de mais intenso suspense ( a sequência do assassinato de Miriam. deveria enfrentar vitoriosamente as tropas livonianas. já entrou no infernal círculo da culpabilidade.Como Balestrero. ela compreende partes em cor realizadas a partir de um estoque de película Agfa.encerrar seus filmes com a vitória do Mal. Nestes instantes. É aí. Absolutamente falsa historicamente. se alinha entre os otimistas. e às vezes nas seguintes. Seu estilo aqui é clássico. para exaltar o sentimento nacional. afirmando que de agora em diante a Rússia permaneceria no Báltico. cujo roteiro ele termina na primavera de 1941. Guy se encontra tão privado de iniciativa e de liberdade quanto seu homólogo Henry Fonda em O homem errado. interpretado por Farley Granger). o terrível Em 1940.e obtém o Prêmio Stalin. quando o cineasta melhor tem seu público na mão. Eisenstein pensa em fazer um filme sobre o tsar Ivan IV. Eisenstein termina a montagem da segunda parte em fevereiro de 1946. ele com freqüência encontra a ocasião de inventar e utilizar com maestria tornada lendária todo um arsenal de truques. pois Hitchcock. a guerra impedindo que se filmasse em Moscou. A primeira parte é lançada em janeiro de 1945 com um grande sucesso. aqui em seu primeiro trabalho para Hitchcock. A segunda parte será filmada no estúdio Mosfilm entre setembro e dezembro de 1945. Em seus últimos filmes. parece que não há “falso culpado” integral: Guy. Lembremos que nesta terceira parte ( intitulada Os combates de Ivan) Ivan. apesar de esta ter sido minuciosamente escrita e preparada. é refletida na luz cintilante. quando ele poderia ter escolhido. que ele se distancia da intriga propriamente dita para se entregar a arabescos visuais que compõem uma sinfonia de imagens e de sons onde o prazer de narrar cede o passo a um puro deleite plástico e dinâmico. que podem durar até longos minutos. a do paralelismo entre o match de Guy e a ida de Bruno ao parque de diversões. Jacques Lourcelles.numa época mais liberal. A empresa vê aí um novo pretexto. seria completamente errôneo dizer que Ivan constitui o triunfo do indivíduo no cinema de Eisenstein. o povo. importância primordial dada às intrigas da corte. um pouco à maneira de Hamlet". Viram neste Ivan. constantemente impedido por seus próximos de se comunicar com o povo e de associálo às suas lutas. os laudatores e detratores do cineasta.vitórias conquistadas mais tarde por Pedro o Grande. e se evidentemente temos de condenar a condenação. de Beria e dos homens da KGB. Todavia. o Terrível representa também o termo da evolução de Eisenstein em direção ao formalismo. do gênero Ku Klux Klan. As críticas concretas endereçadas ao filme foram as seguintes: ausência do povo na condução da narrativa. até mesmo confinado. mas a refaz. e portanto a epopéia estão ausentes das duas partes do filme. mas a realização desta ambição se encontra limitada pelo caráter essencialmente teatral da intriga e do personagem central. devemos assinalar que esta não é baseada – uma vez que isto não costuma acontecer. que possuía vontade e caráter. formalismo. como adversários irreconciliáveis. um poeta elizabetano. testemunham da ambição de Eisenstein de utilizar o cinema como arte total. por não ter nascido em uma boa época e meio. O caráter trágico e quase claustrofóbico do destino de Ivan torna-se mais e mais evidente. No essencial. o Comitê central do PC Soviético condenou Eisenstein nestes termos: " O metteur em scéne Sergei Eisenstein. mas no cinema . mais do que seres de carne e osso. é impossível negar que estas críticas concernem ao corpo essencial do filme. Isto equivaleria e esquecer a total inaptidão do cineasta em representar o indivíduo em sua intimidade e verdade concreta. o destino de Eisenstein foi também o de não ter podido ser. Eisenstein deliberadamente sacrificou o histórico ao poético e ao trágico. os boyards1. o Conselho artístico do ministério da cinematografia apreciou o filme. os detratores constituindo uma minoria é verdade. as massas. ou máscaras. É em relação a este nível do filme que se oporão sempre. na segunda parte do filme Ivan o terrível. Os personagens dos dois filmes são. Vistos por Eisenstein. Seu Ivan é um personagem shakespeariano. e mais especialmente a segunda. os personagens e sobretudo os atores do filme não sendo nada além de peças manipuladas de cima pelo cineasta-demiurgo. Seus adversários privilegiados são a nobreza. ao se retirar provisoriamente em Alexandrov. Nas duas partes da obra. exatamente como este havia previsto. marionetes alucinadas. à maneira de King Vidor por exemplo). A segunda parte só saiu na Rússia e no mundo em 1958. solitário. muito mais em luta consigo mesmo e contra seus próximos do que contra o inimigo estrangeiro. Ivan. Em um outro nível. No plano visual. a repete enriquecendo-a e lhe conferindo maior densidade. a metáfora do xadrez nos vem imediatamente ao espírito. como frágil e indeciso. sua própria família e seus amigos. ou um grande cineasta hollywoodiano dos belos tempos ( uma espécie de poeta épico.num mal –entendido.que se pode julgar ultrajosamente artificial. seu combate permanecerá individual. e a contribuição da cor dá uma dimensão extraordinária à concepção cara a Eisenstein do cinema como arte total. No entanto. As duas partes de Ivan. que tiram o essencial de sua força. e o próprio Ivan o Terrível. a tragédia e o destino de Ivan são aqueles de um homem que não pôde se tornar o herói épico que desejava ser. mesmo se os temas em jogo são nacionais e imensos. invadido pela dúvida e incerteza. Em setembro de 1946. ao mesmo tempo que seu máximo distanciamento das massas como o tema ideal de uma obra de ficção. em seu amigo Maliouta e nos Opritchnicks uma metáfora mal velada de Stalin.de sua posição no interior de uma geometria plástica dos planos e do découpage. às vezes mesmo roído pelo remorso. Nennhuma dúvida de que a segunda parte é superior à primeira: podemos até mesmo dizer que ela não prolonga realmente a primeira. mas a última e definitiva condenação veio do Kremlin. Tirando a sequência do cerco de Kazan. revelou sua ignorância dos fatos históricos ao mostrar a progressista guarda de Ivan o Terrível como um bando de degenerados. O povo só intervém concretamente na procissão que encerra a primeira parte: sua única iniciativa consistirá em uma súplica com o objetivo de fazer com que Ivan volte para Moscou. de qualquer maneira. outros por excesso de verdade arqueológica. Em primeiro lugar. Uma direção de atores hierática na exacerbação orna o espaço de letras maiúsculas. Mas sobretudo o excesso de verdade arqueológica. nada por detrás destas lentidões dispersas senão uma tentativa frustrada de grandeza. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Em aparência. em Barry Lyndon. que esta deve ser . sentimental. é um filme que se subtrai de todas as maneiras possíveis. que se desdobra em um vasto afresco histórico. Aí vem o crédito de Kubrick de ser um grande autor crepuscular. e seu filme um testamento. do russo Боярин. e da decadência crispada de um esteta que alia a ingenuidade das metáforas à vacuidade chinesa das formas. Portanto. Um dentre eles.a ascenção e a queda de um arrivista. Estas distorções não são decorativas. a maquiagem. sobre os grandes valores do mundo. uns por excesso de pictórico. as maneiras da época). refere-se a uma classe de aristocratas de certos países ortodoxos da Europa do leste. para com ideais coletivos cuja ficção deve ( é esta a sua regra.Não há nada por detrás da agitação das superfícies. Michel Mourlet. Mas oras. Jean Pierre Oudart Há sempre uma profunda moralidade.Boyard. moral. de códigos cujo sentido estaria perdido. 1. Apercebemonos disso hoje. o gozo ( jouissance) dos senhores no passado. se compararmos com o poder do imagismo rétro em evocar o prazer. escrevia na NRF ( Nouvelle Revue Française)quando do lançamento do filme em duas partes: "Ivan o terrível se coloca na encruzilhada de uma arte pueril. Barry Lyndon. Sua ficção. na obscuridade do desejo dos espectadores. pode passar. distante e altiva. onde o gasto de dinheiro. com o filme catástrofe. Barry Lyndon é fiel a esta grande norma hollywoodiana. uma coletânea de reflexões sobre o mundo: um belo presente para os espectadores e para os críticos. Visivelmente. ou mesmo sua mensagem: na medida em .como suporte de uma meditação pessimista. com o fito de destilar uma moralidade. Unanimismo do espetáculo hollywoodiano. segundo a qual a ficção não deve jamais incorrer em perda ( travailler à perte 1). sua lei) assegurar ao espectador a felicidade do reconhecimento. não tem nada a ver com o decorativismo hollywoodiano. mas esperamos em vão pelo resto da palavra. de valor nulo para o espectador. que é sempre utilizado ora no sentido de magnificar cenicamente os personagens. ao mesmo tempo mercantil e humanista. os planos. em todo caso. para vantagem desta figura feudal gloriosa que é o star. visivelmente. inestimável: face ao apocalipse desencadeado na tela. cenários e talentos é compensado por um ganho inaudito.a verdade está com frequência do lado da minoria. por um excesso de heterogeneidade em sua forma. dos ritos. longe de lhes conferir a marca da caduquice e o charme do “imagismo” rétro ( o prazer dos senhores de outro tempo). não se enquadram uns com os outros. A riqueza aparente tende antes a acentuar o pouco(ou o mínimo) de glória que esta história contém. e constituir no presente o signo de sua glória. contrária ao realismo hollywoodiano: os quadros ( tableaux). ora de enriquecer os panos de fundo de notações históricas. um sapo que incha e nem chega a explodir". afeta-as com um coeficiente de estranheza ( etnográfica): a das seqüências sociais. ainda petrificada em seu primitivo mutismo. de personagens secundários. o hiper-realismo das cenas de gênero ( o falar. afinal de contas. a marcar com um selo de derrisão os personagens e suas ações. do cinema hollywoodiano. pensa-se: “Somos todos um só”. edificante. exigência de um assentimento profundo. não os enquadra em uma postura gloriosa. o luxo dos planos não serve aos personagens. Tradução: Luiz Soares Júnior. 5. Notas: 1. 2. do comentário em off. déroutent 4 pela indecibilidade de sentido do ríctus do oficial. pois já está dado/decidido de antemão. e que sua escritura. 4. a assinatura do dote. com uma jurisdição de seu sentido. desviar do caminho da narrativa. marcado simbolicamente por uma ressacralização dos valores de luxo da burguesia. embora a analogia metafórica repouse na “economia”: trata-se de economia pulsional.que o imagismo rétro . a inflexão da narrativa fazem surgir das situações uma carga suplementar de horror. un plus de jouir: um mais. como Psicanálise e marxismo. que ao fato de que todo o filme se desenrola sob o signo do “trucagem”. o personagem tomado num circuito de máquinas sociais infernais e de procedimentos onde ele se perde sem saber. vantajoso. possui hoje o sentido de ser uma promessa. a subtraem de nós. de recuo crítico em relação aos personagens. fazem-se também como operações de escritura “a fundo perdido”. de usufruir ( Psicanálise de novo!) 3. Quando estruturalistas ( e depois pós-estruturalistas) como Oudarte Daney falam em gain ( ganho). distrair. da morte. 271. no caso. Tornarmo-nos nós mesmos aristocratas. de um secreto catastrofismo: a parada militar. o encontro com o cavaleiro. Cahiers du Cinéma. o achatamento ( platitude) das imagens. Páginas 62-63. o ângulo de ataque e a linha de fuga de cada seqüência.a promessa da perpetuação de um plus-de-jouir 2. o rosto marcial. A estranheza da história reside menos nesta temática da carta truquée 3. são específicos de disciplinas e doutrinas específicas. e por fim através de um ato jurídico eivado de loucura. as máscaras se impõem como figuras da falta de sentido ( non-sens). mas de sobressaltos de ironia que o tocam no cerne de sua convicção: que na falta de uma moralidade de situações ( comprometida pela vacuidade psicológica dos personagens). cada vez que a narrativa está a ponto de proferir sua moralidade. jogo falseado. novembro 1976. Jean-Pierre Oudart. muito menos na linguagem corrente cinematográfica. perte (perda). do estranho. a morte da criança. incorrendo em pura perda ( pure perte). No sentido de carta marcada. travailler à perte: Fala-se da privação ( do privar-se) de algo inestimável. apenas para acabar sob a forma do não-reconhecimento. do semelhante. da violência. Não se tratam de operações registradas pelo espectador nos termos de um ganho de conotação. Casamento com alguém julgado de condição inferior. Dérouter: No sentido de decepcionar. Cada vez que ocorrem reconhecimentos 5( du tuchè!). ou de derrisão para com o melodrama e à cena hollywoodiana. da mutilação. A irrupção das máscaras assustadoras e grotescas. da loucura. na verdade usam referências psicanalíticas. uma plenificação na potência de gozar. A dificuldade da tradição literal reside justamente em que são termos que “não tem muito sentido” na linguagem corrente. Adolfo Arrieta. enquanto valor social. a máscara empoada. frustrar nossas espectativas em relação a estas. da aliança espúria (mésalliance) 4 e da má sorte. ele pode contar com uma moralidade da narrativa. que também se encontra ausente aqui. Por Jean Claude Biette . mas ganho no espaço material do filme. mas pelos componentes tangíveis de uma concepção enigmática do cinema de que Arrieta busca há anos. aqui e não em outro lugar. por exemplo. que uma câmera que se diria “chargée à blanc” 4 interrompe alguns segundos. a partir de uma cultura. Ele flertam com um número incalculável de sombras que nos encantam. de indivíduos atores ou não. e os personagens as peças. de um grande jogo misterioso que não é conduzido pelo destino. por economia e exigência de mobilidade. da forma técnica e da tonalidade de conjunto ( o resultado estético) de cada um de seus filmes. com seus sons um pouco sufocados de conversações ou de julgamentos sem respostas. Estes. pois Arrieta não hesita. que se burila. submetem um pouco à sua lei os planos de ação que poderíamos. de comunicar um sentimento tão forte quanto possível ( não”mimado” por efeitos formais nem imposto pela vontade ou aprisionado pelo roteiro. da luminosa continuidade. por Deus ou por uma ideologia. contraditória. “fazer ruído”. os diálogos simples lances de paciência ( carpette) 2. da percepção auditiva mediana. Tam-Tam. Este jogo do cinema. Errado: ele os utiliza apenas como encantamentos que joga ao acaso. Notas: 1. que só conseguirá ser retomada nas últimas decisões da montagem ( Le Crime de la toupie. ou seja. de um ponto de saber. ocorre a busca obstinada ( e pouco prestigiosa) por exprimir em estado de filme a grande desordem. Tradução: Luiz Soares Júnior. para derivar no sentido das duas direções indicadas na repartição feita acima. Le jouet criminel. no que se diz e no que se troca. julho-agosto 1978. emitir novas provas. Estes filmes dão a impressão de uma maior hierarquia entre seus componentes que os segundos. propõem uma narração fantasma que não inspira medo mas.aparece na percepção simultânea da cor dramática. Os significados são piões. da vida . Arrieta não está muito distante de Jean Rouch ou de Jacques Rivette”. traduz uma poética dividida. quer ele persiga com uma intuição segura esta percurso em caracol de uma filmagem às cegas. com frequência vestidas de anjos. tornar mudos e acrescentar o ruído em seguida. Nesta aptidão a combinar dispositivo obstinado e desordens. em emprestar sua voz à imagem de um cão que late). As Intrigas de Sylvia Kousky). o que se esfiapa entre os diálogos. a arte cinematográfica de Arrieta exprime antes de tudo nas questões humanas aquilo que desliza entre as malhas do real. pernas de pau. não sem dificuldade. de forma muito mais sutil.3 De que se trata então este jogo e em que ele é cinematográfico? Que são estes “trotes” ( pièges) vãos que no máximo nos enervam ( mas já se trata disso?) Neste dispositivo que imita a negligência (dos raccords. que adquire às vezes em seus filmes a aparência do milagre. em seus componentes os mais prosaicamente técnicos) de liberdade.Esta divisão em duas tendências da obra. claramente dialogados com seus textos gravados ao mesmo tempo que a ação filmada ( em som direto).Quer ele avance sobre as “échasses” 1 de uma narrativa simulada. Jean Claude Biette. eles estão aí para estarem aí e afirmarem imediatamente a existência. . regida por roteiros com caráter feérico ( o Castelo de Pointilly.raramente explorada. número 290-291. que Arrieta se empenha nos diálogos. de uma biografia que diferem. a cada filme. este extraordinário Imitação do anjo.e esta negligência exaspera-. Poder-se-ia crer. Os filmes de Arrieta abrigam tesouros de olhares. mas que escapam a quaisquer que tentam convertê-las em objetos. pouco dialogados. Flammes). . do jogo coerentee composto dos intérpretes). de gestos e de frases sem sentido ( insensés): estes não exprimem nada. Cahiers du Cinéma.cinco longas-metragens e dois curtas são suficientes neste caso preciso para falar em obra. no meio de uma conversação ou no decorrer de um passeio. busca tranqüilizar. Os primeiros. vendo apenas um ou dois desses filmes. “por cima” ( sim. do carnaval (talvez junto com Ivan o Terrível. Histeria. o que não seria consistente com o ponto de vista único). sem balas 2. Depardon). Melancolia é instantânea como uma sombra. . Nós teríamos que analisar televisão não com metáforas visuais mas táteis (“ponto de toque”. de dançar. Joue à rassurer. 23 Julho 1988 – DEMY (tv). caçador/caça. Não há mundo perdido. de circular ao redor delas. tanto de jogar ( ou interpretar. etc. Coisas se tornam melancólicas imediatamente. Já nesse filme a beleza do “último minuto” porque todo final feliz é puro voluntarismo. Quem é o personagem adicional? Por exemplo. mas não necessariamente. a lei. E voluntarismo é precisamente o assunto de Une chambre en ville. Tiebreak (set de desempate): o cinema sem nenhum ponto de vista é possível? Não. torturador/vítima. O fim de Duas Garotas Românticas. Obsessivo. nenhum ideal que se foi. 3. não completamente sentimental. graças à música e à música do diálogo. O cinema do ponto de vista duplo é o cinema popular por excelência. Ponto de vista. no caso. acolchoamento tátil) e proxêmica1. Pela simples razão (perversion oblige 2) que não queremos saber nada desse mundo “do qual viemos” (mais aliança do que parentesco. Isto deixa o cinema com n pontos de vista. o ponto de vista é precisamente o que vem no lugar de um corpo que é elidido na imagem. Estúpido. Um não falha nas coisas porque não as vê mas porque ele descobriu muito rapidamente um jeito de esvaziá-las do seu conteúdo. Porém.Espécie de jogo de cartas ( paciência) que se joga entre dois jogadores. etc) este se atrita mais e mais. É a boa disposição ( good mood) com a qual os personagens falham em tudo (exceto talvez no essencial) que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Uma emoção tão forte que tudo que eu sempre pensei – e escrevi – sobre Demy continua verdadeiro. de brincar. 4. outro guarda. dirigir. emoção definitiva. Ele tem que brincar/fazer malabarismo com a paranóia. pictória) relação com o “real”. Não consigo imaginar um filme melhor que The Night of the Hunter nessa categoria. Para mim. devastado. Um cineasta difícil. o guarda “que saberia”. É popular porque cria uma identificação vertiginosa entre dois pólos: ativo/passivo. no filme de Depardon. nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos. Algumas vezes é popular. Diz-se de uma arma carregada com um cartucho em branco. Jouer tem o sentido. Por Serge Daney 2 de Dezembro 1989 – Velho princípio da “nossa” cinefilia: o ponto de vista. O ponto de vista refere-se ao que pode ser visto por um personagem que estaria sempre no lugar da câmera. suponho) é melancolia instantânea. a categoria da polifonia. visto que este acampa firmemente entre o plano e o contraplano (leia o livro de Warren). Persistir com esse ponto de vista diretamente significa confrontar problemas de mise en scène (desde que haja imagens proibidas. no fim. A questão do “ponto de vista” vem para perguntar quem está olhando. O cinema do ponto de vista único está desaparecendo/ausentando-se (em ambos sentidos do termo) em sua (mística. é isso o mais importante. visto que confisca para si mesmo o imaginário (e priva a audiência disto: Antonioni. a loucura. bancando o “pequeno objeto a” ( petit objet a) entre dois objetos capturados numa luta de forças (veja minha velha idéia sobre Tubarão: o tubarão e a perna da criança). encenar) quanto de divertir. O mundo de Demy (o meu também. Ele abole a si mesmo. etc). Melancolia não é nostalgia. mórbido e alegre. 2001. o que pode ser visto do ponto cego. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: “E ele comandava tudo enquanto cortava o bolo!” O essencial era o amor mas este seguiu perdendo suas cores. Ele nunca teve muito sucesso. alguns filmes de Ford). Só uma “idéia”. mais tarde (Pele de Asno. Hall em 1966. mas porque nós fomos colocados no lugar dela (pela mise en scène) e ela no nosso. 26 Março 1988 – Ontem. 2. que cai de seu bolso. monsieur. Revisão e notas: Luiz Soares Júnior. este autor parece-nos hoje em dia “sem perigo”. de perversão. Consiste no estudo de distâncias mensuráveis entre as pessoas à medida em que interagem. mesmo que nunca o tenha visto. mal tudo: O Veredicto de Sidney Lumet. Traduzido do livro L'exercise a eté profitable. Ela tem uma bela face de santa de sindicato. a influência recíproca entre dois corpos é inversamente proporcional. animados tanto pela admiração quanto pelo ódio. referindo-se a regras fundamentais e imprescindíveis de etiqueta. Esquizofrenia da televisão: nós não só assistimos o que não é bom (não é bem feito). Tradução original do francês para o inglês por Laurent Kretzschmar.A força absoluta de Demy é relacionar tudo de um ponto de vista perfeito: o da mãe. O festim da aranha. mas me exaspera e me pego assistindo até o fim um filme que objetivamente acho mal feito. onde tudo é interessante. entre a tarde e a noite. O mundo é organizado a partir desse ofício cego. que é frívola. Ela cuida de crianças em Chelsea. não porque o roteiro exige isso. Se a urgência e necessidade de uma obra . Ele acelera quando não há razão pra isso. e mesmo assim nós preferimos ver um filme mal feito do que um bem feito. por exemplo).Paráfrase da expressão clássica em francês Noblesse oblige ( Nobreza exige. Traduzido do inglês para o português por Luan Gonsales. e então fazê-lo funcionar). É impuro ( ou pouco refinado) mas suficiente. Newman. pelo amor de Deus! O exemplo do filme de Lumet. e porque o desejo de que ela o ajude foi inscrito no filme. em frente à TV. uns dias atrás (“Você vai me ajudar?”) soma tudo isso. A dançar: Gene Kelly. Coisas velhas mas existentes. Ontem eu preferi assistir Mason e especialmente Newman compondo com idade. A mãe que nunca cresceu. Isso depende do clima do momento. está abordando-a desajeitadamente. com tudo. mal contado. que chegou de Boston. não apenas ao quadrado de sua distância mas até possivelmente ao cubo da mesma”.O termo proxêmico foi cunhado pelo antropologista Edward T. um pouco da verdadeira velocidade: contracampo em Newman que não está mais aparecendo: "Você vai me ajudar?" Ela vai ajudá-lo. Ela está no playground. Newman finalmente encontrou a enfermeira que “sabe” o que aconteceu. eu aceito seguir com o filme. Close-up no bilhete Boston-Nova Iorque. Jean Narboni É impossível falar de Bergman sem um mal-estar cuja causa essencial é esta: objeto de falatórios inumeráveis. “Como a gravidade. Ou o filme tem uma força tamanha que se impõe ou nós estamos na relatividade de um mundo de imagens. No caso. Lumet é o arquetípico cineasta que filma do ponto de vista de ninguém. numa banheira do imaginário. Ou ainda: os conceitos de “bem feito” e “mal feito” não são relevantes na televisão. Um belo momento. tão abstrata que é reduzida ao nonsense de roteiro. portanto com uma eficiência abstrata. O plano de Newman – de um Newman que pede ajuda e pede duas vezes: para o outro personagem (off) e a mim que – por um instante – fui capaz de me colocar no filme no lugar desse personagem ausente da imagem. mas nós vemos até melhor do que no cinema (edição. E lá. ou obriga). que esqueceu de parar de ser uma garotinha. um pequeno truque do velho Lumet. E ele será ajudado duas vezes: no roteiro e por mim (neste momento. Notas: 1. Abandono rapidamente 8 ½. o devolvemos de uma outra forma. A pele da serpente) de outra. quando ultrapassam a fronteira. convenhamos que a obra de Bergman esteve submetida por um bom tempo a um movimento de neutralização: ou se contentaram de repercutir suas interrogações com um eco respeitoso. de um espaço de retração.. de adormecidos”. os filmes de Bergman. ou mesmo esta.a figura reconfortante de uma resposta. tudo isso tem de ser vivo. falsamente ausente. ou tentaram nelas infiltrar – mal tinham sido formuladas. Se desde este filme o autor introduz o cinema no cinema.não de mortos. um estômago ingerindo tudo. 188.. além das questões que suscitam as questões desta obra. e depois digerimos.). mas “se fazendo” de morto. que não se pode igualmente descartar: “quem escuta?” No final de Prisão. ou mesmo em silêncio. experimento a imperiosa necessidade de buscar a razão de minha atividade artística. reduzidas a não serem nada além da etapa última e central de sua construção. se vê precisada a opinião do primeiro: “é preciso nos fazermos de mortos. e aqui ainda. é preciso “nos fazermos de mortos”. escamoteamento do outro. eles se comportam em relação às suas opiniões sobre a criação como “ato de devorar”. e que deste silêncio Bergman iria fazer seu tema essencial. uma das interrogações mais radicais às quais um autor de filmes se submeteu e submeteu sua arte. em relação a elas. O artista não é mostrado perseguindo suas presas. em que ela tendeu a se apaziguar e a se transformar em outra coisa. não é?. Mas esta avidez não demanda nenhum esforço para ser satisfeita. mesmo que de desespero. Um único personagem deve ser passivo e sofrer tudo. de adormecidos: abre-se largamente a boca. pela qual se explica a démarche dos últimos filmes de Bergman. “A criação artística sempre se manifestou para mim como uma fome(. Proposição capital. mas não ainda sobre seu ser.na inutilidade do projeto: ignorante de que toda questão encontra sua respostamesmo que esta consista num devorador silêncio-.concernem aos novos sentidos que libera ou desnuda. com efeito. Bergman vai se referir a isso: dois personagens projetam num sótão um slapstick 1 de solavancos. Agora.não são mais assombrados pela questão: “do que se fala?” mas por esta: “quem fala?”. não nos enganemos: é para se interrogar sobre a Arte em suas interferências para com a vida. que é a via na qual Bergman se coloca hoje. e muito menos de constituir numa oposição no modo através do qual. nestes últimos tempos. “ Deveríamos aproximar esta declaração de Bergman ( Cahiers du Cinema.Ora. ou seja. para que suas criaturas venham até ele. segundo vimos. o parentesco entre Bergman e Godard aparece-nos de forma marcante.nisto. muito próxima desta. A má consciência do artista se exprime em agir por “desapropriação”. Trata-se apenas de indicar que. é o autor do filme. uma zona de atração ou imantação. e absorvemos tudo. seus efeitos ou suas figuras.. que constitui para ele Prisão. invisível ou desapercebido. um metteur-en-scéne se recusava a fazer um filme sobre o Inferno. como em outros pontos que não nos cabe evocar agora. A teia da aranha figura bem adequadamente o jogo e a configuração de semelhante armadilha. estão aprisionadas. sua função. suas criaturas. enquanto autores. de adormecido. são de uma absoluta modernidade. de Jean Renoir: “ Acho que num filme não deve haver nada de passivo. como fará mais tarde com a música e o teatro. A trilogia. Toutes ses femmes e Persona constituem. numa frase na declaração do segundo. não de mortos. Não se trata de estabelecer aqui uma comparação entre Bergman e Renoir. camuflado.” ( Cahiers 186). deve ser uma boca engolindo tudo. onde vemos um esqueleto que pula de um cofre e um homem despertado . submetidas ao mecanismo e insensivelmente conduzidas até ele.não. pois o silêncio daquele a quem deveríamos colocar as questões implicariam. roubo de sua substância e assimilação da mesma à do artista. Mas todos os elementos que ele absorve devem ser ativos: o cenário. Ele dispõe. Desde esta etapa decisiva. os personagens.segundo ele.. eles não participassem intimamente da matéria da narrativa. este ressecamente e gosto por agenciamentos matemáticos através dos quais uma convenção deseja que se reconheça . conjuga os dois grandes temas mortais de sua obra. Ainda mais que na alusão ao Deus-aranha de Através de um espelho. Em Bergman.A reação de Karen. ao descobrir no diário de seu pai que ele não pode se impedir de observar com interesse a deterioração de seu psiquismo é um esboço en mineur do movimento de ruptura que afeta Persona no momento em que Alma se apercebe de que a atriz. aquele que disseminou seu sangue. Slapstick que vai ressurgir no início e no fim de Persona ( os planos não são exatamente os mesmos. inscreve-se abertamente na linha deste pequeno filme: aparentam-se com efeito seus movimentos dissonantes e sua coreografia cadenciada . quando se faz sentir a ausência e a privação que conduzem os fiéis à busca de seu mestre e senhor. Ora. É preciso retomarmos sempre uma mise en garde2 . mas sobretudo que espalhou sua palavra pelo mundo. estes jorros de palavras duras. a perda e a dissipação fossem os únicos temas a serem evocados a propósito de seus filmes. este é o propósito de Bergman a partir daí ( Persona é o filme que propriamente destila a impressão da queda final no abismo). longe de ser um filme aberrante ou marginal na obra de Bergman.e se mesmo se. indispensáveis à sobrevivência do Outro ligam ( raccordent) os filmes de Bergman ao tema do vampirismo. Não nos espantemos enfim ao ver se operarem estranhas interferências entre o vampirismo e o cristianismo. tanto quanto da própria. Se fosse apenas assim. O verdadeiro horror acontece quando a divindade silencia.se a vertigem da queda. estes transbordamentos do ser. mas semelhantes os personagens. distribuiu seus germes nocivos em um movimento de ilusória generosidade. de uma ou várias vítimas na iminência de serem tragadas pela danação. como se tratasse de um “remake”. assim sendo considerados. a fulgurância do plano da crucificação da mão. e as vítimas contaminadas não reencontram mais seu sabor. Quanto a Todas estas mulheres. e que precipitam os sobressaltos falsamente libertadores das vítimas que participam da armadilha do professor. Mesmo assim. a se perderem em sua cripta de proteção e de recuo.por um ladrão. ou de rushes ulteriores. este estado de possessão do crente ( ou tomada de posse: prise de possession) não é o mais pernicioso. Demarcar esta gravitação esbaforida em torno de um silêncio. sua substância. protegida por seu silêncio. Deus é o vampiro supremo. ou no abandono desolador de Os comungantes. com o qual Karen se assusta ( vemos aí se sucederem uma cadeia de substituições. com este Deus aranha vampiresco. a vigia e se deleita com seu tormento. a segui-lo em sua retração. Os conjuntos e os tableaux que as criaturas que evoluem retomam periodicamente em torno do caixão do professor evocam estes movimentos de auto-expiação aos quais finalmente consentem em obedecer. no começo de Persona. o excesso e a estilização de suas figuras. quando os fiéis absorvem seu corpo e seu sangue. Estes casamentos perigosos. Bergman se coloca contra este clichê exatamente na medida em que as forças da “desapropriação autoral” afetam estruturalmente seus últimos filmes. o artista e o nome da divindade). o pai. onde figuram alternadamente . A etapa intermediária desta metáfora aracnídea é constituída por Através de um espelho. além de uma imensa aranha suspensa por um fio. certa jovialidade pessimista. no sentido de que se não tomemos o que ficou aqui descrito por um catálogo ou inventário de temas e obsessões no aprofundamento dos quais Bergman se empenharia hoje.. cujo poder se reativa durante a comunhão. Um silêncio absorve e reabsorve uma palavra através da qual o Outro se esvazia e se rompe. utilizadas do primeiro). a ausência.e às vezes ao mesmo tempo. correríamos o risco de fazer Bergman recair sob a reputação desagradável de “cineasta de idéias”. Não que se manifeste neles uma abstração cada vez mais marcada. ao entregar-se. confessava ele ao fim do filme. as forças silenciosas e o poder de gerar o vazio foram insidiosamente deslizando na própria textura da obra. revelando este silêncio como aquele que não se pode guardar( deter a guarda).A força de apelo e de retirada ( retrait) 3 submete à sua lei tanto aquele que padece da mudez quanto aquele que fala diante dele. fusiona por todas as partes. denso e saturado. acontecido. disposto em uma espécie de concavidade voltada para nós. neutro. impessoal. depois reduzir a nada esta interpretação. palavra bloqueada-.um autor que chegou à maturidade. O silêncio. sobre a qual as criaturas se disporiam como fantasmas. nenhum desperdício importante de conteúdo. o mutismo. nem animais. tornando menos nítidos os seus relevos e menos precisas suas fronteiras. agora. Era sobre a superfície que as coisas se encontravam: nem homens bons. ele excede a decisão e a escolha. dissipando os seus volumes. nem cabeças. E esta não é a armadilha menor deste filme. Não percebemos.como o tema e o próprio perigo da obraesta zona branca onde os personagens não mais existem. de Deus e do artista não admite mais nenhum destes três termos como autoridade superior ( durante um longo tempo. nem rostos. silêncio anterior à toda palavra. penetrado por um poder de dissolução. p. ou sua ausência. Fantasmas agitando-se no precipício da obra e designando como obra.. era. silêncio decidido e guardado. que escapa e submerge. o silêncio em Bergman não é mais designado como um poder. nenhuma “desencarnação” em proveito de uma ordem estritamente relacional das figuras ou de uma acuidade gráfica: pensemos. por não estar seguro de seus poderes de mágico. .quanto de Alma.que evita se identificar com as opiniões de um meio medíocre. A cadeia metafórica onde se alternam as figuras do pai.. fossem a instância suprema da obra bergmaniana e sua transcendência). o ilusionista Vogler ( nome que é o mesmo de Elizabeth em Persona) cultivava o silêncio. ou na acumulação de incômodos e de entraves físicos que atormentam os personagens de Os comungantes ( Luz de inverno). torna-se este poder através do qual aquele que é por ele afetado sofreria o mesmo grau de soterramento espiritual e regressão que o silêncio provocara no Outro. tanto do médico. uma cortina que balançava. esvaziado. na presença plena e opressora dos corpos.simular o silêncio de Elizabeth como algo advindo por vontade própria dela. cada termo aparecendo como um acidente passageiro ou a figuração momentânea de um poder mais profundo. do primeiro ao último filme. Parece-me apenas que o espaço e a luz onde se dispõem os corpos sofreu uma mudança. eriçado de lacunas. ditada pelo orgulho. são do domínio da psicologismo. que eu via no meu quarto de criança. na aurora ou ao crepúsculo. tomado em um movimento de arruinamento que teria conservado intacta uma única plataforma. . um atributo do qual qualquer um disporia a seu bom grado. borrando seus contornos. A atitude da atriz em Persona não se motiva. indiferenciado. quando tudo adquire vida e se torna um pouco assustador. Como se um universo esférico. estreitado sobre sua plenitude e seu peso tivesse pouco a pouco sido submetido à forças de disjunção. silêncio em direção ao qual remontamos como à fonte culminante de toda linguagem. dessas mais comuns mesmo. acreditou-se que a figura divina. no calor e na umidade de O silêncio. neste sentido. As explicações . Desde então.16): “ Era uma cortina preta. quando era vítima de uma doença infantil. Cahiers du cinéma. não são mais acordados a algum personagem em particular. Refiramo-nos aqui a um texto de Bergman onde ele conta o terror que lhe causava. Se em O Rosto. Nenhuma precedência é mais acordada a um dos termos sobre outro. Concebemos então que os filmes cuja proposta está em jogar com o risco destas ameaças escapam à certeza psicológica. e que os próprios filmes sofrem esta “regressão” que ocupa em sua totalidade a obra de Bergman. ( O que é fazer filmes?. Por longo tempo mantidos no limiar dos filmes. número 61. zona de a-simbolização primária... setembro 1967 Tradução: Luiz Soares Júnior Notas do tradutor: 1.. Pôr-se em guarda contra. Intrigado. restaria apenas. envolvendo ações tresloucadas e intensa violência física. Mack Senett.onde tudo viria a se resolver e se apascentar. fui à biblioteca municipal mais próxima. os grandes mestres do tempo. Invagnation: Em português: intussuscepção. onde ao mesmo tempo o dia cai e a noite ascende. mas cineasta onde a obra se destinaria a tornar-se o próprio horror.. O sem-figura. No caso. irrepresentável. sobre Ophuls. Jean Narboni. sem-certeza. falando propriamente o inqualificável. para a compleição do processo.” invagination” 4 da narrativa em si mesma ( o campocontracampo já célebre onde o mesmo texto se encontra escutado por aquela que fala e dito por aquela a quem este se dirige). Ao fim. e sobretudo silenciosa. muito comum no cinema mudo. Mizoguchi.. são. a narrativa incorpora ( ou deglute) a si mesma. de “retirada de cena” que a força superior exerce sobre o personagem. A imagem-movimento e a imagem-tempo. Slapstick: Tipo de comédia. esta indistinção originária onde se reabsorvem todos as figuras que o autor se esforça hoje. Leone. impassíveis e assustadoras. as horas onde ainda não se efetuou a divisão das luzes. Termo médico que designa a incorporação de um segmento do intestino numa região mais profunda do mesmo. nas provas de meus alunos na Universidade de Paris III. Por Luc Moullet Com frequência. defender-se de.” É na tentativa de reencontrar estas formas inomináveis. Retrait: a palavra é usada aqui no sentido de uma metáfora que indica o poder movediço. núcleo onde se desfazem as significações. Bem. como se este tivesse sido “sugado” para o interior da cripta do vampiro. em Persona. mas o sem-coerência.. Trabalho côncavo que se efetua em muitas regiões em Persona: inscrição do filme em uma projeção de filme. Lugar aterrorizante. aurora e crepúsculo. As lixeiras verdes de Gilles Deleuze. Pagnol. Fatty Arbuckle e The Keystone Cops foram alguns de seus representantes mais famosos ( e mais esquecidos hoje). Ford. Cahiers du Cinéma. Rozier. na plenitude do Único-. Le festin de l’araignée.além das propícias à formação e à dissolução dos vampiros-.mas coisas para as quais não existia nome!. o sem-rosto. tender à própria dissolução. 193. 2. ameaça de interrupção marcada pela “queimadura” da película no exato momento de seu desenrolar.Elas eram implacáveis. Fuller ou Téchiné.por uma força misteriosa. nada . As horas que afetam Bergman. e no segundo uma análise da arte de Stroheim. Momentos onde se confirma a relação direta de Bergman a Murnau como cineasta do horror. Duras. Qualquer analogia igualmente com a pulsão de morte freudiana também não me parece mera coincidência.Eu pensava que leria no primeiro volume estudos sobre Renoir ( o balé dos personagens na Regra do jogo ou em Carruagem de ouro). a obra esboçando nesta inscrição o movimento de se abismar em sua própria fissura. 4. para fora do campo – o caráter sinistro da expressão e a analogia com filmes de terror não me parecem casuais. 3. Indiferenciação primitiva que não constitui o retorno à unidade. onde tomei emprestadas as duas obras deste autor consagradas ao cinema. encontrei referências a um certo Gilles Deleuze. que se situa aliás quase sempre no início do plano. já que Deleuze define a imagem-movimento como um conjunto descentrado. igualmente de pé. É verdade que. geralmente mais amplo. mas esta constitui uma técnica vulgar. Neste último caso. mas que foi super explorada por todos os cineastas tarefeiros). Eis um enquadramento que parece totalmente gratuito. já que ele próprio é a reação. Esta definição talvez ficasse mais clara se Deleuze tivesse falado de movimento dialético. não se pode escrever que o close constitui um intervalo entre uma ação e uma reação. E aqui a ação não é de forma alguma exterior.de forma menos agressiva. o exato inverso do que afirma Deleuze. ou constitui-se em uma série de closes. Sob esta perspectiva. não é imagem-movimento. Primeiro exemplo: o close de um rosto. o close mostra uma reação do rosto ao que se passara no plano precedente. Tampouco quando uma personagem em close come. E limitar o close a este valor de resposta para uma ação ( o que é estudado por Deleuze ao longo e ao largo de vinte e cinco páginas) leva a mascarar de forma muito redutora os outros usos. mais inovadores e criativos. como no húngaro Princesa ou na Jonana D’arc do Dreyer. . mas imagem-tempo ( voltarei mais tarde nisso aí). não se trata forçosamente de uma “seqüência” à ação. É que. Mas o plano seguinte revela que se trata do ponto de vista de um cul-de-jatte 1. um perpétuo travelling vertical.disso. ou a sequência lírica de closes breves.não é exatamente o tempo. Ocorreu até mesmo o contrário do que eu esperava. É no mínimo curioso que estas variedades da imagem-movimento se refiram a um centro. mais ou menos idênticos. Leone são totalmente esquecidos. no entanto. notadamente a imagem-percepção ( “conjunto de elementos que agem sobre um centro”) e a imagem-ação ( “reação do centro ao conjunto”). Na página 291. feito de um único plano seqüência. a câmera colocada “sob a perna que falta de um inválido”.291). “é o que ocupa o intervalo entre uma ação e uma reação. ou mesmo o plano de um homem que recebe uma bofetada no campo: neste caso. A imagem-movimento seria “um conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros ( p.. de pé. Portanto.. o movimento não é o movimento. é inclusive a ação que provoca a reação. ou da absorção de uma ação exterior. contém em si mesmo a reação. Deleuze nos propõe um exemplo preciso de imagem-percepção: no Broken lullaby. Tenho dificuldade em entender isso. primária mesmo ( que pode dar resultados magníficos. e o tempo. e Stroheim apenas na Imagem-movimento. para Deleuze. Lubitsch mostra um grupo de homens. vistos à altura do chão. morde seu vizinho ou faz um gesto zombeteiro pra platéia. aqui omitidos: se um filme começa pelo close. Há aí um movimento na narração e na consciência do espectador que nos permite chegar a esta conclusão. o jogo que conduz uns aos outros. Pagnol. Mais de cem fotogramas de Gérard Courant ( únicos closes-sequências de rostos) são sem referência a uma ação prévia ou exterior. O que tomáramos por um simples maneirismo era na verdade a visão subjetiva de um indivíduo. segunda variedade da imagem-movimento. poderíamos sustentar que Apotheosis. com frequência. o intervalo entre a ação e a reação é imperceptível. Deleuze enumera várias categorias de imagem-movimento. da ordem de vigésimos de segundos. contradito também pelo close pillow-shot ou plano de corte. A imagem-afecção. . reflexivo ( em que você está pensando?) ou intensivo ( o que você está sentindo?). Ok. de Yoko Ono. Ophuls só é citado na Imagem-tempo. o que absorve uma ação exterior e reage internamente”. do close. escova os dentes. Rozier. close. e não é portanto o resultado de um movimento visível. Teoricamente. 1919) começa por planos bem gerais ( o céu. Um homem anda pela cidade de Pagliero ou Manéges. não tem nada a ver com a definição popular de ação no cinema. sobretudo pelo fato de que o “animal” ( no naturalismo) é com frequência colocado desde o começo do filme ( Foolish wives... o detalhe e a totalidade. e que se livra delas quando bem quer. É justamente por isso que Deleuze inclui uma terceira forma de imagem-movimento. que cai aí como um cabelo na sopa. iluminação).Estes dois modos de dialética presumida. a Rua sem alegria. a propósito do naturalismo. é verdade. ultrapassam estas especificidades. o canyon do Colorado. à sua técnica ( découpage. Quando o cineasta parte do indivíduo para atingir a sociedade. Mas . A história toda é um pouco dura de engolir. As idas e vindas do particular ao geral se emaranham. uma citação da Gênese).no meio. Ray. a fuga pro México ou a prisão) que atravancam a maior parte das telas. salvo. quer sejam as dialéticas fundadas sobre técnicas do trabalho. ligada à sua gramática. a Noite de São Silvestre. espremida entre a imagem-afecção e a imagem-ação. Fuller. Manèges de Allégret). Poderíamos crer que Deleuze. ao que me parece. ou sobre valores ideológicos. sobre noções mais vastas. ou os Renoir como On purge bébé. ao balaio e ao balde d’água. trata-se da grande forma. gênero e não-gênero ( Monte Hellman). A pulsão. A distinção é às vezes meio ociosa: se Male and female ( DeMille. nacionalidades e classes sociais ( A grande ilusão). risos e lágrimas ( Chaplin). aliás). onde o movimento se criaria na passagem do homem ao animal ( o que nos prova bem que Deleuze não dispensa sistematicamente as dialéticas com fundamento extra-fílmico. Trata-se de uma dialética entre o indivíduo e a sociedade. Algumas destas categorias ao menos poderiam ter sido objeto de menção neste díptico de vastidão enciclopédia. vamos constatar um número de notáveis esquecimentos. que começam por apresentar de forma breve uma cidade ( Beyond the forest. chegamos em trinta segundos à vassoura. Pride of the marines.quando do episódio babilônico. segundo Deleuze. The seven year itch) antes de se ligarem definitivamente a um itinerário individual. Os exemplos dados por Deleuze deixam o leitor estupefato. está muito distante do princípio do naturalismo ( a realidade deve ser descrita sem alguma interpretação. é bem evidente que as linhas dialéticas. como natureza e cultura ( Boudu). seria ligada ao naturalismo. pulsão e naturalismo seriam antes dois pólos antagônicos. Ford). as superproduções de Cecil B. trivialidade e sublime ( Godard). A cadela ou Boudu. Buñuel). racismo e tolerância ( La derniére chasse). amor e ação ( o cinema hollywoodiano). a ação particular e a situação geral. a Última gargalhada. Losey. Ora. Umberto D. Todos. devida ao espírito do autor). e desemaranhar a pequena da grande forma muitas vezes equivale a recair na velha questão da prioridade do ovo sobre a galinha. flou. mas este começo fanfarrão é tão breve. citaria os filmes do Kammerspiel. dita imagem-ação que. Neste catálogo de movimentos dialéticos.e permanecemos mais ou menos nesse nível durante o resto do filme. muito dependentes de suas pulsões. Honeymoon killers de Kastle. nada disso. se fundam sobre uma certa especificidade do cinema. Ao invés disso.. Bem. frequentemente pulsão de um personagem que reflete a do realizador. overplay e underplay ( Kazan). frieza do naturalismo. O naturalismo seriam Vidor. lentidão e velocidade ( Rising of the moon. De fato. que Deleuze completa pelo estudo do par sombra-luz. e quando dá-se o contrário. o mar. pois a pulsão. eficácia e justiça ( Marca da maldade). se invertem freqüentemente. no cinema. DeMille. cidade e campo ( Vidor).é o mesmo problema no caso de vários filmes americanos. Calor da pulsão. visível-invisível ( Tourneur). o Rail. Deleuze introduz uma nova categoria. a imagem-pulsão. isso sem falar das dialéticas medíocres ( os bons e os maus. lógica e absurdo( Hawks. chama-se “pequena forma” ( Lubitsch seria o mestre nisso). a “grande forma”: assim. Los olvidados. vestígios do naturalismo. pois este intervalo parece-se muito .. mesmo os mais feios e repulsivos. Mas o mundo de Ruby Gentry. algo que julgávamos inadmissível de sua parte. não tem nada de realmente realistas. ora possuem um status incerto e indefinível. e realizou o filme mais louco de todos. The damned.que precisa que a diferença entre Stroheim e Buñuel seria concebida não tanto como entropia acelerada. Outros supostos nomes do naturalismo. surrealista mesmo. melhor dotados financeiramente ( O anjo exterminador. Ele define o tempo ( páginas 49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” . sou gordo e roliço”... Em revanche. Poderíamos. mas os dois jamais estão ligados: o naturalismo pertence à primeira parte da obra ( Las Hurdes. delirante. chama os urubus: “Vinde a mim. que vai dominar em sua obra nos anos finais.que autor se distancia mais do naturalismo que Vidor? Apenas The crowd e. uma terra de ninguém que permanece também totalmente alheia ao naturalismo. onde a arte deve reproduzir a natureza em todos os seus aspectos. em Buñuel. Ray testemunha um lirismo que exprime conivência até mesmo com seus personagens mais negativos. Cenas da rua poderiam ser classificados como filmes. Rabelais ou Céline. a paisagem tem uma grande importância ( assim como no Duelo ao sol). e poderia dificilmente filmar algo que não fosse a realidade. claro. em uma época em que Buñuel não possuía muitos meios. evocações breves de perversões sexuais. em certa medida. Há. mas que ora são tratados como elementos oníricos ou irônicos.. O problema é que. mesmo Suzana e o Diário de uma camareira). the lawless ou Imbarco a mezzanotte( realistas no mesmo sentido que centena de filmes americanos ou italianos um pouco “medíocres”). quando se trata do sumo do artifício hollywoodiano . não vou me demorar mais tempo nesta imagem-pulsão. Podemos dizer de Vidor que ele é romântico.. realistas. No Jornada tétrica de Ray. da loucura romântica wagner-nietzscheana.mas Deleuze não se demora nesse intervalo no cadre da imagem-tempo. Este naturalismo recusa frontalmente a repetição. Ele confundiu o naturalismo à la Zola. aceitar o epíteto realista no caso de filmes como The big night. que Deleuze descreve como uma “obra-prima do naturalismo”. então nos damos ao direito de achar que Deleuze cometeu um erro crasso. Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos. assim como Gance e Dovjenko. se junta ao hénaurme 2 de Jarry. The servant. Huysmans e Buffon: era de se esperar. de Fountainhead. “Não há poucas diferenças entre o naturalismo de Stroheim e de Buñuel”. Portanto. e que expulsará de sua órbita todo naturalismo. lírico. O cúmulo é que Deleuze qualifica seu Duelo ao sol de “western naturalista”. e os outros se ligam ( assim como seus personagens) a um frenesi neurótico totalmente irrealista. digno de um colegial. há naturalismo e repetição. Antes assim!. a truculência de Gueule-de-Cotton que. Belle de jour. Mr. Klein. eterno retorno”. digamos. El bruto. Secret ceremony. avança Deleuze ( página 183). expressivo. aqui e ali. agonizante.-C. O discreto charme da burguesia. Devido à pobreza da língua francesa. os exemplos que evoca. Este obscuro objeto de desejo). de longe o pior capítulo do díptico deleuziano. Shock corridor.. Fuller ( que não recua diante de nenhuma inverossimilhança.Não há outra explicação: o barroco do bordel no Jornada tétrica. um convite a isso. ele pôs no mesmo saco Emile Zola e Bernardin de Saint-Pierre. mas ele não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Os dois últimos são fábulas. da Grande parada é totalmente irrealista. em um certo limite. com um negro que milita pela Ku Klux Kan) e Joseph Losey. a presença dos W. ainda menos naturalistas. a quem o comparam sempre. que estuda plantas. partirei para a imagem-tempo. com o trabalho do naturalista. Hugo. minerais e animais. idealista. mas sim como repetição precipitante. Eva. de Hallelujah. filmes que Deleuze não cita. ok. Time without pity. e não tem nada a ver com o escalpelo de Zola. o todo é mais o découpage que a montagem. Resnais e talvez Welles). é um cara genial. mas não seria forçosamente “tudo” para os outros. e constituiria também o tempo. Ivã. como é seu hábito. enquanto a imagem-movimento é um princípio sem centro. mal decupado e. flashback ou flash-forward. Ok. Godard. ou seja. Ou então define o tempo “como tudo”. Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo. Ganância. para seus detratores. .. Soberba. mas que não era um montador muito bom). Eisenstein: seu último filme. nem mesmo para ele. o que constitui um centro. pois tanto um quanto o outro. Em certos cineastas minuciosos ( tipo René Clair).. Mas é Eisenstein quem o diz. quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do plano seqüência ou do fluxo do plano curto).). compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas. Deleuze se vira por meio de astúcias. que pressupõe a existência de extremos. mas em que isto implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez fosse “tudo” para ele ( como também para Godard. de duração. como separar – a não ser em relação ao documentário e ao filme improvisado. que pressupõe a inexistência de elementos exteriores. o Terrível. e não a deleuziana) à noção de espaço-.A relação presente-passado... ele só dispusesse de pequenos pedaços de película. passa-se à noção de conjunto. e este é terminado antes mesmo da filmagem. mas este tempo criado é o tempo no sentido de tempo. mesmo que seus autores não tenham podido controlar a montagem e tenham renegado a versão montada. o dia e a noite. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma idéia de juventude de Eisenstein. quase sempre prevista no roteiro ( DeMille. Quanto aos outros. embora seja mal estruturado. aliás. portanto ( quase forçosamente) mal montado ( nesse sentido. E o todo estaria em relação direta com o tempo.ao contrário do movimento. Aos nossos amores de Pialat permanece um imenso filme. A imagem tempo me lembra essas lixeiras verdes onde.. O todo e o tempo. de ritmo. As três luzes de Lang. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do filme. mas quase nunca – ao contrário do que pretende Deleuze. de respiração. Sabemos quase tudo do movimento.o que pertence à montagem e ao découpage? Os Oscars e Césars de montagem sempre me deram vontade de rir. Jogando 5 com as palavras..o tempo no sentido de uma oposição presente-passado. e sobretudo da imagem-afecção. tipo Jancso? Ok. enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Ray ou Renoir. e que teria nascido do fato fortuito de que. A mulher na praia ( e também Que viva o México!) atingem os mais altos níveis de cinema. Intolerância.que nos matará. Para uma série de grandes cineastas. combinam muito bem entre si. Podemos dar da imagem-tempo uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento.tendem a nos escapar. sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4. que ele teria abandonado ao fim da vida. ou mais exatamente tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da Imagem-tempo). o tempo – é certo!. E que dizer da montagem no filme com plano único ou em plano seqüência. sua Idéia”. o caso de certos filmes de Doillon. é uma obra-prima onde há um mínimo trabalho de montagem. Da noção de centro ( intervalo). Deleuze coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.com o intervalo da imagem-movimento. e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo futuro. no meio dos compartimentos azuis para os jornais velhos. com os racionamentos na Rússia da época. no começo de sua carreira. e permanecem indecomponíveis e misteriosos. o todo está antes nos atores do que na montagem ( assim. E o todo seria o resultado da montagem. Cukor. que era provavelmente o maior de todos. os dois extremos.se ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica. de todo. pois é também a montagem que cria o tempo do filme. enquanto que o tempo passado é cheio de obscuridades. e com freqüência não onde ele a situa. Ora. pela intrusão de personagens principais. Da mesma forma. sem jamais dele sair. pela composição de uma luminosa atmosfera. Com exceção do raro caso em que não haja um personagem principal. Ok. mas se sai dessa enrascada por meio de uma pirueta: com os Bergman-Rossellinis. o Umberto D. e não mais de ação. Filmes como La choette aveugle ( Ruiz. Exagerando um pouco. que luta contra ele.François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagemmovimento( com exceção de certos filmes de Resnais). eu diria que a existência da imagem-tempo não passa de um atestado das insuficiências do espectador. Mas Mr. Talvez haja exceções. Mas o hic é que. e portanto movimento. oferece certas características do documentário. o neo-realismo seria a “irrupção de imagens puramente óticas e sonoras ( tomo 2. que vai coincidir plenamente com as reaparições “aliviantes” da palavra em seu sentido banal. como para um documentário bruto. seríamos tentados a incluir os Dez mandamentos de 1956 na grande forma do cinema-ação. É o caso quando o diretor é genial. Alemanha ano zero. 1987) Puissance de la parole ( Godard. no calor do discurso. Roma. Se seguirmos a lógica deleuziana. cidade aberta. Mas a grande forma. Às vezes. Apercebemo-nos que a imagem-tempo.. tal como concebida por Deleuze. Não há imagem-tempo na equação espaço-tempo ( com a exceção de Resnais) ou no neo-realismo. Nova categoria a inserir na imagem-tempo.. trata-se de um “cinema de clarividente”.). do homem com a sociedade. poderíamos sustentar que não se trata de imagem-ação. Stromboli ( Deleuze tinha previsto esta objeção. Deeds são também clarividentes. magma fundado sobre a pulsão e aparentemente desprovido de dialética. O neo-realismo descrito por Deleuze é um neo-realismo idealizado. Mas como há pouca ação nestes fIlmes. 9). E o mesmo Ladrão. 1988) parecem à primeira vista magmas ( termo mais conveniente que o de imagem-tempo). Como o filme se lambuza no geral. é que ele se mostra de forma muito sutil. isto é. que Deleuze descreve erradamente como o preâmbulo da imagem-tempo. a única verdadeira exceção se situa em 1968. tal como jamais existiu. com Fuoco de Baldi. é portanto a imagem-ação no sentido deleuziano. só existe muito raramente. Hegel nos dizia que tudo era dialética. pois Moisés não possui um comportamento que o individualize e permanece o perfeito autômato a serviço do Deus cristão. a identificação é soberana ( nos identificamos com o ladrão de bicicleta e com a criança). O indivíduo ( ou o casal) que se sente estrangeiro ao mundo mostrado. assim como o filme americano clássico. tal como deveria ser. pela música. ele re-introduz estas palavras com seu sentido corrente e assim conforta suas teses. muito sub-repticiamente dissimulada. mas um esforço de análise acaba por precisamente esclarecer as linhas desta dialética. Deleuze.. podemos aceitar mais facilmente a exclusão dos mesmos desta categoria..Europa 51. seríamos levados a reconhecer que Ladrão de bicicleta e Viagem a Itália permanecem perfeitos exemplos de imagem-ação.o delusivo 6 Deleuze. se o neo-realismo. esquema típico do cinema-ação. evocando o magma bruto da realidade. Ladrão de bicicletas. quando não percebemos o movimento dialético. em minha opinião. o cinema do clarividente. com este magma típico das altas esferas do . Segundo ele. nós o reencontramos em Viagem a Itália. na verdade. pelo sentido social. assegurado da aprovação do leitor. Smith e Mr. O primeiro tema do neorealismo é a relação do indivíduo com o mundo. por ser um filme caríssimo e espetacular. pg. não está tão longe assim do expressionismo estudado na imagem-afecção. a passagem do geral ao individual. que reflete o mood dos personagens. pelo pathos. e eles estão no meio do cinema da imagem-ação. mas de imagem-tempo. ele as perverte pela existência de um roteiro. da minha portanto. no período posterior ao neo-realismo.. inexiste neste filme..dá às palavras significações que não tem nada a ver com as significações correntes. pág. e portanto de deduzir que a pulsão seria. pois eu o sinto como um magma puro. Ou ainda. ao naturalismo. não da imagem-movimento. apenas os “re-copia” de forma servil. mas a embriaguês. Me sinto no direito de aproximar a noção de pulsão daquela de embriaguês e pathos.e ainda menos trata-se de um filme da grande forma.o pathos que as banha e se espalha por elas”. refere-se unicamente ao cinema americano.as veleidades dialéticas do roteiro ( Wild river).O todo definido pela montagem. poderíamos definir cinco sub-grupos: . por ser um cinema fundado sobre a ação. trata-se de um filme da imagem-tempo. O termo cristal designa aqui portanto a pureza. por exemplo.caso raríssimo. Leone. que deveria ser a de Deleuze. seria melhor falarmos. fala de “descrições óticas e sonoras.o todo definido pela montagem. Ao fim das contas. Outra vez Deleuze troca as bolas com suas definições contraditórias. estilo Ophuls. também elas avalizadas pela montagem. mas uma forma do todo. .E finalmente. se fizéssemos um inventário das situações da imagem-tempo. feliz e inconscientemente. mas um filme relativamente pobre. e o duo naturalismonaturalista. que Deleuze estuda de forma muito apressada. esquecidos por Deleuze. isto teria lhe poupado muitas contradições. . cristalinas”. sem estudar seu trabalho sobre a respiração do filme). puras.dogma religioso convencional e da estilística sulpiciana 7. Ele retoma aí os jogos de palavras godardianos ( sem o humor). e enfim de Stroheim ( que ele limita. Mas eu sustento vigorosamente que um filme recheado de ação como A guerra do fogo. com quinze minutos de guerra violentíssima em seu começo. e que. 176). abusivamente transferidos da esfera artística para a filosófica. Rozier. 207): “ O Todo não é mais o Logos que unifica as partes. Multifaces e limpidez: dois sentidos muito diferentes.o todo definido pela montagem. antes de se contradizer. Paul. não uma superprodução.. entre voz off e voz on. . e em seguida o itinerário íntimo de duas crianças. mas sobretudo para assinalar seus movimentos dialéticos entre som e imagem. Da mesma forma. classificada de forma abusiva na imagem-tempo ( quando esta dialética é frequentemente da ordem do movimento). Vimos isto com a dialética passado-presente. quando ele fala da crise da imagem-ação. em geral. Ele dedica um capítulo à imagem-cristal. a limpidez. e imagem-tempo. um dos melhores exemplos do cinema-ação da grande forma é. ele coloca a pulsão na imagem-movimento. O cristal. que se exprime pela criação de um tempo resultante de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro). que se exprime pela criação de um tempo sem dialética. não pertence à imagemação ( pela falta de uma dialética entre a ação particular e a situação geral). afirmando no cadre do estudo da imagem-tempo ( tomo 2. Mas pouco depois ( tomo 2. . por um contra-senso flagrante. pág. Dama de Shangai. que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre movimentos dialéticos prévios. Emile ( Zola) e Virginie..a montagem totalizante que destrói. Jeux interdits. de nelbugoz e de dagmalouak. a polivalência barroca. Não vou aliás tão longe. de Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo. pois este querido filme se funda sobre uma linha dialética muito pobre: o Deus cristão contra o Deus egípcio. é o aspecto multifaces. sem analisar o status da duração em sua obra). precisamente por não ser nada além de ação. para Deleuze. Ao invés de falar em imagem-movimento e imagem-tempo. trata-se talvez do caso de Pagnol. Deleuze pode ser apaixonante. De fato. componentes).). corpo e cérebro.. vivificante.. se evacuarmos suas histórias de movimento e de tempo. que oferecem uma superfície muito escorregadia. com centro ou sem centro. são os melhores ( ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial.. mas tem uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do naturalismo. que é difícil escrever sobre esses filmes. em cada um: Mizoguchi pequena forma. o magma da dialética.. Michael Snow. tentando inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais. sem que o filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto. filmes ambiciosos e de qualidade. as vacas gorduchas fellinianas). Carmelo Bene. a Vingança de Kriemhilde ( Lang). mas é que seu verniz filosófico mascara suas qualidades. forçosamente equivocada. mas que constituem apenas uma parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do conjunto da produção. referindo-o a seus conceitos bergsonianos. Deleuze é um Skorecki que se toma por Spinoza. o 2D e o 3D. Encher lingüiça. portanto. e que exclui a dialética. isso não vai nos levar muito longe. para ajudar Deleuze a vender seu peixe. então se cola uma única etiqueta. Ford grande forma. Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias. em sua defesa.um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin. e são apenas parcialmente analisados por Deleuze. É preciso dizer.vc tem de encher. a Cicatriz interior de Garrel. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito curto.. Em primeiro lugar. entraria aqui o cinema experimental.Quanto mais o sistema é nulo.que merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-. ao que parece. Serge Bard. a Femme du Ganges ( Duras). mas frequentemente). em ordem aleatória. Quer se trate do tempo ou do movimento. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento. porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage. se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-. me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”. mais as percepções pontuais são excitantes. Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense. o pote de barro e o de ferro. estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo deleuziana.o todo definido pela montagem. recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali. Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a Imagem-movimento. Ainda a mania patológica da classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um prestígio de que este não tem a mínima necessidade. pouco propícia à glosa. Vocês podem me achar muito severo em relação a Deleuze. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento. um pouco como o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard.. o plano no nível tatami de Ozu. Honeymoon killers ( Kastle). é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia . filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os valoriza: há pouco tempo. a Idade da terra ( Rocha). Deleuze não desperdiça tinta.. com classificações arbitrárias: Doillon unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui. um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que Virgílio era pré-cinema. o naturalismo no interior da pulsão.. é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se encontram no mesmo filme). que se contenta com observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. A imagem-tempo compreende. Seria antes Bergson. Na verdade. Jeanne au bûcher ( Rossellini) e também alguns nabos espetaculares do tipo Guerra do fogo ou superproduções americanas ( o espantoso Evil dead) que são apenas seqüências de atos violentos. que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si. tonificantes ( não sempre. Acreditaram que poderia haver uma para o cinema por este.. “o cinema é a arte de fazer belas coisas a belas mulheres”. Quase sempre são opiniões jogadas às cegas. (. mal colocadas. Por outro lado. “ as ligações deliberadamente frágeis”. Deformação irônica da ortografia com sentido hiperbólico. Tradução: Luiz Soares Júnior. em família. o desenvolvimento internacional e a popularização do exercício fílmico destruíram esta ilusão totalizadora. que abrem horizontes.337). . a dialética Ageliana do cinema como oferta( oblatif) 9 ou como captura ( capitatif). em impromptus 8. Apenas existe o local. quando de seu nascimento. mas a aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg. ele sabe degustar. cu de bacia: Homem que teve ambas as pernas amputadas. Straub.” ( p. A bem dizer.. a câmera-caneta de Astruc. em geral bem oblíquas. E sobretudo. uma chave: a montagem interdita baziniana. Jacquot. Deleuze é cinéfilo. Luc Moullet. Com Deleuze. o cinema-emoção fulleriano. ainda mais limitado pelas contingências econômicas. sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a Cinématographe e Études Cinematographiques. p. Eustache.. estamos sempre em boa companhia... sobre a crise da imagem-ação na América. tende a ultrapassar seus valores estratigráficos ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o Eterno”. o cinema de prosa e o cinema de poesia pasoliniano. Enquanto que Metz. no presente imediato ( Syberberg.exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos.( tomo 2. A segunda diferença consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. o olhar à altura do olho hawksiano.ou como dizia Auriol. para Duras.. há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese. da comparação ( bem godardiana) .). automne 2000). fazer uma síntese das melhores citações. o pontual. “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do complot”( p. ligada a cinco fatores: a “situação dispersiva” (multiplicação dos personagens). As grande teorias do cinema se limitam a ser um “Abre-te Sésamo”. ou translúcido ou o branco. Difícil imaginar uma teoria global da literatura. não da teoria totalizante. à diferença dos Straub.283). o ato da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. Garrel) e no passado. mal expressas e mal desenvolvidas em poucos parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o próprio texto. Por exemplo. 2. A imagem visual. La Lettre du cinéma número 15. o travelling como questão de moral ( Godard).). Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades.. com exceção da fabricada pelos cineastas em sua obra pessoal. Cohen-Séat. vindas de fontes bem variadas. as mais interessantes fórmulas concernentes a um filme.. uma fórmula para tudo e para nada. 133) Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que. O geral é um engodo. Notas do tradutor: 1. mas que importa. e ama o bom cinema. Portanto. a “forma-balada”. Deleuze é homem da observação pontual. (. sobre um autor. enorme. Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas.). e seus flous do chiaroescuro deste. os cortinados e os véus de Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo. esta nunca deu grande coisa no domínio do cinema. o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista originais sobre obras. Não mais a luta das luzes contra as trevas. Os anos. existir em um espaço muito restrito. mas com a transparência. Sonda espacial francesa. ou seja. Se falamos hoje em dia em ícone. de um lado. de uma certa constância de teorização do cinema que vem de André Bazin e de toda um pensamento fenomenológico da presença. rastro ( empreinte). a valorização de uma presença sensível impondo-se por si mesma. Altruísta. a insistência sobre a imagem como presença imediata se alimenta. De delusão: iludido. no sentido de jogos semânticos. constitutivo de uma linguagem. o protótipo. sempre presas entre o status da presença bruta e do elemento linguajar. en jouant avec les mots. que é uma das maneiras canônicas de interpretar este privilégio da presença sensível não mediatizada. uma presença in-significante que se impõe por si mesma. da presença pura a-significativa oferecendo-se por si mesma. Mas há também um desespero em relação ao que fora o estatuto dialético da imagem. devotado. foi o primeiro homem a pousar na Lua. valorizando noções como as de presença e de traço. Magellan. 4. lançada em 1985. 9. onde a . que se pôde exprimir nas teorias da arte. ambigüidades. oblatif: palavra derivada do latim oblativus ( que se oferece por si mesmo. O que se opõe ao universo da representação é. Mas há também este fato que o estatuto da imagem no regime estético das artes sempre foi ambíguo. Este “retorno ao ícone” antes radicaliza as contradições deste regime estético. e de outro a construção linguajar ad infinitum. enganado. ocorre uma tensão entre estes dois pólos. em primeiro lugar. de maneira que com freqüência a idéia de imagem pode se identificar à idéia de ausência de sentido. de outro DidiHuberman. piloto de testes e aviador americano. e de outro. Astronauta. como a de Georges Didi-Huberman por exemplo. século que conheceu uma renovação da fé católica no país. A agitação intelectual de hoje em torno da imagem e do ícone conduzem a alguma coisa que é constitutiva do regime estético das artes. brincando com as palavras. Jogando.3. cujo nome é uma homenagem ao navegador português Fernão de Magalhães. 5. Em Godard há a princípio esta referência fenomenológica. Entrevista Jacques Rancière B. Em Godard. Podemos retomar os exemplos que vc citou. Iconografia católica típica de igrejas francesas construídas no século 19. que se doa. etc 6. A tentação do ícone e da metáfora insistente do Véu da Verônica no Histoire (s) du cinema de Godard fazem eco a um certo retorno ao ícone. A tensão entre estes dois pólos da “antirepresentação” nunca deixou de trabalhar todo o regime estético das artes e suas imagens. não se trata nem de um retorno a uma problemática representativa da cópia nem de uma preocupação ético-religiosa para a origem da imagem. a auto-afirmação de uma presença sensível. logrado. metáforas. de um lado Godard. Como explicar este fenômeno? R. Improvisos. entre a relação do cifrado à decifração ou a relação de uma imagem a outra imagem. No próprio centro da idéia da imagem. voluntário). a imagem sendo ao mesmo tempo duas coisas contraditórias: de um lado. e ao contrário disto a idéia da não-relação. ou iludido. um elemento de um discurso ou uma manifestação cifrada que clama por uma decifração. 7. 8. Jogo de palavras entre Deleuze e delusive. Há toda uma relação com a pintura que afirma que tudo só pode ser visto se for interpretado. da tela simplesmente coberta de formas coloridas. Este regime quis ser o da presença sensível contra a representação . ou interpretação das imagens. justamente com o fito de definir o momento decisivo. Mas apesar de tudo o que acompanhou historicamente o desenvolvimento da arte abstrata. Mas esta outra História se pensa nas categorias maiores do regime estético das artes: o que se opõe à leitura iconográfica é a leitura da tela como registro de seu próprio processo. e ao mesmo tempo a supervalorização da presença sensível. Mas ele repousa também sobre as contradições constitutivas do regime estético das artes. No começo do século 20. do livro. e o que está embaixo. o informe. A interpretação institui uma espécie de fronteira freudiana entre o que está “acima”. Eles reivindicam uma espécie de acesso direto à tela ou à experiência da tela. que permanece inteiramente na ordem das imagens colocadas em discurso. de uma outra maneira. o de Panofski. imagens “para ler”. A pura presença é aqui afirmada sob o modo da presença “em forma de sintoma”( simptômale). temos um outro discurso. Há aí qualquer coisa que me recorda a posição de Barthes na Câmara clara. a representação dos santos em torno da Virgem. e igualmente pelas promessas da iconoclastia. da historicização. e aí vem Godard . em Barthes. constitui o inverso de um amor desiludido pelas promessas dialéticas da leitura “sob” a imagem. contrária à de Panofski. É esta tradição que hoje continuam Ginzburg e Baxandall. O discurso teológicoontológico de liquidação da interpretação dialética e de retorno a uma presença mais ou menos sacralizada está em consonância com todos os “fins de utopia” e todos os “retornos à moda”. à contradição interna ao regime estético das artes. Mas ao mesmo tempo ele foi o regime do museu. Esta polêmica de inspiração lacaniana é diferente da travada por Barthes e Godard. A encarnação religiosa e fenomenológica se revelam então como a verdade da pintura sob a representação. de uma decifração do mundo. O discurso de Didi-Huberman remete. Esta contradição entre o desenvolvimento nãofigurativo da pintura e o privilégio iconográfico na história da arte foi denunciada por teóricos como Louis Marin e Didi-Huberman. contra todo e qualquer tema. em uma combinação . a chuva de manchas coloridas que ao mesmo tempo simbolizam o gesto pictórico de projeção das cores e o gesto sacramental da unção. ocorreu uma conjunção ideal entre o desenvolvimento da arte abstrata e um certo discurso sobre a história autônoma das formas plásticas. dos regimes da representação. no regime estético da arte. o momento da ação. o discurso “iconográfico”. porque esta declaração sobre o ícone se acompanha de uma prática onde todas as imagens são obrigadas a ser postas em discursos. Isto em Godard é completamente contraditório.imagem era encarregada de portar um discurso oculto ou revelar um mundo. suscitando uma outra história da arte. E o que propõem Marin e Haberman é ler o pictórico como processo inscrito no quadro/sob o quadro. que busca a significação nos quadros e diz que não se pode nem ao menos interpretar a relação entre as formas se não soubermos de que história se trata. contra a iconologia representativa. Foi esta conjunção que Deleuze procurou reanimar setenta anos mais tarde. quer seja o gesto pictórico ou a dimensão litúrgica. na presença de não importa qual. a história do quadro inscrita à superfície do quadro. mesmo se ela passa por uma mesma referência freudiana. um certo desespero em relação à própria idéia de uma leitura das imagens. a emitir discurso se a colocamos diante de qualquer outra. A história das artes se fez essencialmente como uma continuação. pelo contrário. Estas lógicas contraditórias vem se emaranhar no presente e produzir uma valorização da imagem como ícone. o discurso de Wörringer. O que faz com que o discurso dominante sobre a arte que acompanhou historicamente o desenvolvimento da arte abstrata tenha sido. Dizem que não querem mais a imagem como elemento de um discurso. Penso na análise que DidiHuberman fez deste falso mármore pintado em “trompe-l’oeil” por Fra Angélico sob a Madona das sombras. Creio que esta construção é muito artificial. Gance. o corte da era representativa para a era estética não nos arrisca a nos reconduzir à cisão deleuziana entre imagem-movimento e imagem-tempo? R. as imagens em Hitchcock parecem essencialmente funcionais. De um ( Hitchcock) a outro ( Godard). impulsionando a imagem pura contra a ficção. Isto se torna uma espécie de standard da história da arte: assim. inversamente. uma arte da narrativa em imagens. e faz esta teoria corresponder a uma espécie de grande drama histórico. que em minha opinião constitui uma dicotomia espúria. fazendo coincidir a super problemática ruptura das “ligações sensório-motoras” com o traumatismo da Segunda Guerra Mundial. a segunda era do cinema aparece então como a de um cinema novamente tornado narrativo. através do découpage e da montagem. mas dois pontos de vista diferentes. a era das imagens consideradas como linguagem. parece-nos. Ao distinguir regime estético e regime representativo. Epstein. B. Hitchcock diz que nunca olha pela câmera. de ordenamento. A oposição entre imagem-tempo e imagem-movimento é propriamente uma oposição filosófica: o que Deleuze opõe não são duas eras distintas do cinema. segundo penso. Mas de fato é muito difícil fazer esse esquema funcionar. torna toda divisão ilusória: a de Bazin. eu quis me opor à visão tradicional. que separa uma era representativa e uma era não representativa. do ponto de vista de sua idealidade. do textual e do sonoro que não possuem nada a ver com uma suposta pureza da imagem ou irredutibilidade do afeto. Deleuze tenta fazê-la coincidir com uma dimensão histórica que retoma a teoria baziniana . Podemos datar ou analisar mais amplamente esta passagem para um regime estético na história do cinema? Se este for o caso. Esta dupla lógica. Esta oposição é em si mesma perfeitamente a-histórica. onde o que vem primeiro é a anti-representação. A isto se opõe o mundo da profundidade de campo e do plano seqüência. a era da montagem. assim como a de Deleuze. Para voltarmos a Godard “transformando” as imagens de Hitchcock. que funciona segundo uma dupla lógica: ele pertence à era estética. Godard interpreta a obra de Hitchcock como se esta pertencesse ao regime estético. e oposta à velha tradição narrativa e psicológica. E ao mesmo tempo. em termos spinozistas. ou da sensação.do visual. ou ainda o ponto de vista da arte posterior ao dos materiais. no entanto. nasce da racionalização otimizada da lógica aristotélica do encadeamento das ações. o ponto de vista do pensamento. o cinema legitimaria a si mesmo. Mas podemos colocar o modelo inverso. temos a proposição de uma língua das imagens. nasce do olho duplo da máquina e do operador. Bazin constrói um modelo onde esta primeira era seria aristotélica. ao legitimar sua passagem de uma arte representativa para uma arte não representativa. sob o modelo da passagem da figuração à abstração na pintura. vemos que ele coloca uma oposição um pouco tortuosa: haveria antes uma primeira era do cinema. Poderíamos dizer. Podemos pegar qualquer filme e lê-lo em termos de imagemtempo ou imagem-movimento. assim como em Vertov e Eisenstein. Se tomarmos por exemplo o argumento de Bazin. acreditando em uma certa linguagem das imagens. que oporia uma era naïf a uma crítica. que passamos do regime representativo ao regime estético. A imagem-movimento é a imagem considerada do ponto de vista de sua materialidade. E. A imagem pode ser assimilada ora a uma palavra ora a uma espécie de estímulo que deve fazer um efeito sobre o . Em primeiro lugar. de uma história coerente. posterior ao da extensão ( étendue). típica da era estética. Em Delluc. podemos dizer duas coisas. como uma certa modalidade do “aparecer”. A imagemtempo é a imagem considerada como coisa do pensamento. A complexidade em fazer este esquema funcionar consiste no fato de que o cinema é uma arte ambígua. da idéia de uma linguagem do sensível. B. Mas precisamente as imagens conduzem a narrativa na medida em que são habitadas por diferenças de potencial. a chave. Portanto.. há um terceiro modo. o contrário do iconismo. atraindo nossa atenção para eles. Mas precisamente a ficção romanesca e. O fato de que a angústia seja simbolizada pelo copo de leite e que o copo de leite seja acompanhado por esta espécie de pantomima da impassibilidade que é típica de Cary Grant. O que caracteriza o tipo de narrativa típico do que chamo regime estético das artes. Não penso que a imagem apenas intervenha como ruptura com a narrativa. Eu estudei isso mais pela tradição romanesca. o fato de que a angústia passe por aí. o que a torna vã. onde a imagem se impõe como um elemento significante forte: foi o que se elaborou na tradição realista romanesca e foi transmitido ao cinema. De uma lado. Mas ao mesmo tempo. Enfim. Há um segundo modo. no cinema não temos que visualizá-los. nem uma certa posição dos corpos. mas objetos mudos. A primeira forma é a da imagem que se auto-apaga. No romance. com o propósito de lhes tirar pequenos ícones: o copo de leite. Há três grandes modos de funcionamento da imagem. nas atitudes ou nas relações de um corpo com outros. sem parar. funcional e contra-funcional. em seqüência. uma vez que a lógica dos afetos em seu cinema é conduzida por objetos. são eles que atraem nossa atenção. onde a imagem aparece como aquilo que destrói a narrativa..onde todos os sentimentos se pintam sobre os rostos. de tratar mais ou menos o que vemos como uma coisa a ser lida. etc. as rodas do moinho e os óculos fazem recuar a lógica pática. a possibilidade de ver mais ou menos e de ler mais ou menos. remete a toda uma lógica propriamente estética. Pode-se. as imagens são inteiramente implicadas na lógica da ação. Pois. a imagem se apresentando como o lugar de um enigma a elucidar ou a “fazer ressoar”. as rodas do moinho. eles simplesmente nos são impostos. a dos quadros de Greuze analisados por Diderot. então. Ela está no cinema. Se compararmos este modo de expressão à lógica representativa. É isto que permite a Godard tomar imagens que são essencialmente “porta-afetos” para transformá-las em ícones puros da presença. e apresentando a narrativa como a instância de sua elucidação ou o meio de sua ressonância. O que caracteriza a ficção estética é esta . onde o elemento que se encarrega de traduzir e provocar sentimentos não é mais um certo gestual. São os objetos que carregam os traços expressivos. que são as imagens dos objetos que simbolizam os afetos e os transmitem. Então. não distinguimos os traços descritivos. trata-se de uma “desnaturação” das imagens de Hitchcock. assim como no romance. por exemplo. não podemos pensar que elas permanecem solidárias. os óculos. mas penso que nesse ponto a tradição cinematográfica é bem ligada à romanesca: são mais as imagens que as ações ou sentimentos que conduzem a narrativa. Godard tentou transformar estas imagens. ou seja. é esta função condutora que a imagem possui: ela é ao mesmo tempo o que engendra a ficção e o que eventualmente a faz estacar. a ficção cinematográfica são feitas da possibilidade de deslizar. e não pelo rosto de Joan Fontaine. há em Hitchcock um uso duplo dos objetos. de forma contínua e imperceptível. ver no cinema de Hitchcock a lógica aristotélica do agenciamento de imagens visando a produzir um efeito máximo sobre a sensibilidade. o copo de leite. mas num modo diverso do implicado no regime representativo? R. esta transformação só é possível pelo fato de que as próprias imagens de Hitchcock pertencem a uma dupla lógica. mesmo o esquema mimético tradicional é “redobrado” ( doublé) em seu interior por um esquema contra-mimético. veremos que o cinema de Hitchcock já é bem diferente. entre estas três funções. que é diferente da lógica patética tradicional da expressão. mas ao mesmo tempo esta lógica da ação é uma lógica pática.espectador. No regime estético das artes. Ao invés de opor a imagem e a ficção no regime estético. Isto supõe a existência de uma coisa que seja exterior à tradição propriamente representativa. mas também não estacar. o olhar fascinado diante da vitrine. O tempo da imagem e o da narrativa se dão como heterogêneos. congelar “na marca”. este jogo podendo ser um jogo que homogeneíza. substituída pelo encadeamento de micro-eventos.por exemplo.. onde uma textura homogênea. há uma suspensão possível da imagem. onde a característica técnica do cinema remete a algo de fundamental. asperezas. creio que não há de forma alguma oposição entre imagem e narrativa. pois uma história de costumes pode se dizer em uma história de micro-sensações. Godard ou os Straub. Assim. suspendê-lo de sua pura passividade. deslizante” ( lisse). temos então um triplo jogo em ação: ora a imagem indiferente. No regime estético. mas também o modelo de um cinema dito moderno. O vampiro de Dusseldorf .possibilidade de jogar com esta relação tripla. o modelo de um cinema onde o que se evidencia é a disjunção. qual seja. mas esta mesma suspensão engendra uma narrativa onde o personagem adquire as propriedades do quadro ( tableau). Penso de forma mais intensa ao M. Você tem elementos que são elementos significantes tomados em uma lógica descritiva e que ao mesmo tempo são como uma aglomeração de átomos insignificantes. onde a imagem realiza estas três funções. a descrição flaubertiana dá à imagem uma função propriamente genética em relação à narrativa.. é claro que a textura é heterogênea. Os romances de Flaubert . elas se engendram umas às outras. O encadeamento das imagens se . Temos um pouco a mesma coisa no cinema. Mas mesmo em Flaubert a imagem é uma ruptura. Temos o mesmo problema em Virginia Woolf. uma ruptura. onde os elementos se encontram confrontados uns aos outros. há efetivamente uma lógica clássica das ações. Sim e não. A cada instante. por exemplo. por exemplo. De forma súbita. pode-se dizer que há um “recobrimento” de uma lógica propriamente estética e de uma lógica representativa. mas esta ruptura é capaz de se auto-anular. uma lógica estética onde é a imagem o elemento constitutivo da própria narrativa. há uma lógica da narrativa em imagens. como no exemplo flaubertiano. ora enfim a imagem como pura passividade. Temos. etc. R. ora a uma forma estilhaçada. ora a uma forma perfeitamente “lisa. As imagens obedecem a esta lógica de “esteira rolante “ de que falava Proust. me fazem pensar nos últimos filmes alemães e nos primeiros filmes americanos de Lang. quando o policial olha os arranhões na madeira do parapeito da janela. B. de tal forma que não ocorrem fricções.a beleza do inerte: Charles emagrece. é claro. E também a imagem pode funcionar como ruptura. e a história no sentido tradicional é como que esvaziada em seu interior. ora a imagem que porta um mundo significativo para ela mesma. onde tudo pode se congelar a cada instante. Portanto. o espetáculo indiferente visto da janela de Charles ( Bovary) vem invadir o espaço da narrativa. É o modelo proustiano. um tapete de micro-sensações acaba por originar uma história linear ( lisse) que se opõe à narrativa em rupturas à la Joyce ou Proust. o molecular pode constituir uma cadeia que preenche a narrativa molar. o M nas costas. Neste caso. que não corresponde de nenhuma forma ao regime representativo. Há uma ruptura. É esta lógica que funciona na tradição clássica da narrativa cinematográfica. podemos estacar diante da imagem. sua figura se torna interessante. ou seja. segundo o modelo proustiano da oposição entre narrativa e epifania: a imagem se impõe e a narrativa se desvanece. ou então o visor do fuzil no final de You only live once. No exemplo de Flaubert. ou no exemplo de um certo cinema de Hollywood dito clássico. mas em um pressuposto de homogeneidade que faz com que o tempo da narrativa e o tempo da imagem coincidam ao longo do percurso. mas ele mistura o heterogêneo com o homogêneo. Mas este encadeamento pode finalmente vir a se identificar com o encadeamento tradicional. Ou então teremos uma estrutura claramente em ruptura. com os traços escritos. como em Flaubert. Esta combinação dos três tipos de imagem pode dar origem. para retomar os termos deleuzianos. a função estética do close é precisamente uma função de aproximação entre a humanidade dos rostos e a inumanidade das coisas. B. “parado”.encaminha a seu termo narrativo. mas também à pura cristalização do sentido. No entanto. em termos deleuzianos. e assim destrói as hierarquias tradicionais.Ora. Os ícones hitchcockianos de Godard não são rostos. Temos a sensação. embora eu não goste muito desta oposição. O cinema não pode retomar tal e qual a lógica romanesca. O animal é uma figura de transição entre o humano e o não-humano. o importante é a indistinção dos coelhos mortos. que funciona muito em cima do close sobre o rosto. Mas o animal pode ser também a figura onde o código expressivo não é visível. se opõe ao que seria um close da angústia sobre um rosto. Em Bernanos. ou de registros expressivos. É aliás muito difícil falar aí em “detalhe”. de qualquer maneira. toma como exemplo da passagem de um regime de cinema ao outro-. quer seja uma heterogeneidade de objetos. Então. Podemos pensar também no copo de leite em Suspeita. ao símbolo. ou o devir-expressivo do objeto. pelas paisagens. o importante para ele não é este rosto na iminência de naufragar na rigidez da psicose-e que Deleuze. de direções: é o cão que sente. Eu comentei isso no exemplo das lebres do Jornal de um padre. mas como paisagem. Mas o objeto possui um status privilegiado? Porque. “o que ocorre”( o balão ou o assobio em M) é o condutor. que vão assegurar o equivalente da .quando um acessório não “fala” mais como acessório. um dos ícones retidos por Godard. Mas na lógica de Godard. É o que Deleuze resumiu na idéia de devir-inumano: esta lógica passa pelo devir-paisagem do rosto. é uma figura que preenche as três funções da imagem. É a história do personagem que tenta entrar no pensamento do veado que vai morrer. mas eu diria que. Se tomar por exemplo o balão em M. Mas a mesma função-imagem se efetua diversamente.quando uma descrição se encontra como paralisada. Certamente. e ao mesmo tempo. e mesmo quando se trata de Vera Miles no Homem errado. O animal pode funcionar como portador de índices. o importante é a escova de cabelos que ela agita. é o objeto que se presta ao icônico. vemos a representação das linhas do jornal e a neutralidade da voz off. no cinema e em literatura. as imagens às quais faço referência aqui não são forçosamente closes. ou imobilizado por um gesto da descrição e reificado. em certo sentido. podemos pensar no cinema de Sternberg. entre o sentido e o não-sentido. Podemos pensar no animal. mas não é um close. ele poderia cada instante se paralisar na fascinação diante do que ocorre. R. Ele se presta ao índice. mas numa relação suspensa com a significação. isso passa também pelos rostos. pelos gestos. vemos que eles vem do criadouro e que é preciso deixar de lado este traço de indistinção entre o humano e o inumano. É sempre por um procedimento de heterogeneidade que uma coisa gera imagem. é um detalhe. há um sistema de apropriação que é quebrado. porque no cinema vemos os coelhos. que a imagem toma sempre como “motivo” um objeto imóvel. nos exemplos citados. estamos plenamente colocados no regime estético. onde você tem o sujeito e o acessório. apesar de tudo. Não confiro um privilégio particular ao objeto. R. que indica alguma coisa. que agora não passam de detritos. Em resumo. B. efetivamente. que late e em seguida se lança na direção da coisa pressentida. por este motivo. etc Poderíamos dizer. Não necessariamente reificado. mas antes detalhes. que não está tão em close quanto parece estar. Aliás. a figura onde o sentido vem “entrar em impasse”. que o esquema sensório-motor não funciona mais. e que . contada por Karl Philip Moritz e comentada por Deleuze. é uma intensidade diferencial que coloca uma história num quadro ( tableau) ou um quadro em história. O modelo de imagem que você propõe. o vivo e o inerte. ou então falar enquanto coisa muda. como Deleuze. eles representam tudo o que pode ser. temos sempre dificuldades em considerar o som como um elemento. A imagem é sempre constituída por coisas que escapam à unidade visual. Um rosto torna-se paisagem. Ocorre uma imagem. Ao contrário. quando Flaubert fala do boné de Charles Bovary. outros sons e outras palavras.e diz que ele possui os traços do rosto de um imbecil. repulsivo ou inquietante. Tomei exemplos de imagens que podemos chamar de simples precisamente para criticar a ilusão icônica da simplicidade da imagem. ou seja. etc R. Seria preciso pôr radicalmente em questão a identificação entre a idéia da imagem e a idéia do dado visual. A imagem não tem necessariamente esta relação extrema ao sentido no regime estético. de circuito complicado. Os entusiasmos “naturalistas” na descrição literária já não colocavam nada de particular diante de nossos olhos. a imagem-intensidade não é uma intensificação visual. ou antes: pluralizada. Não podemos jamais estritamente delimitar cinematograficamente a unidade imagem. embora a própria noção de plano não seja estável: trabalhamos sobre o modelo do quadro. um intervalo ( écart): um intervalo entre uma função de significação e uma função de “mostração”. parece sempre um modelo de “imagem simples”. Ao mesmo tempo. Uma imagem vem como um operador de desestabilização de um certo regime do sensível. B. Mas também há que toda imagem está “no lugar” de outras imagens. Ele fala como fala um rosto que não fala. Mesmo quando falamos. Há toda uma lógica de objetos com potencial variável que é extremamente forte. Todas as figuras privilegiadas no regime estético das artes são figuras de transição entre o humano e o inumano. índices de memória. onde Charles é qualificado por seu boné e onde o boné é qualificado por sua semelhança ao rosto de um imbecil. seja o acessório sobre o qual o olhar desliza. ela funciona em série. que os encadeia a outras imagens e outras histórias. seja o puro indecifrável. hieróglifo. é marcante constatar que as imagens constituem uma .“imagem” literária das lebres. por exemplo um regime descritivo. Ela é um operador de diferença e. como em Proust por exemplo. entre a imagem mostrada e outras imagens que seriam possíveis. quando há um salto intensivo de um registro a outro. onde uma imagem chega sempre numa série ou um circuito (réseau) de outras imagenso que implicaria levar em conta uma virtualidade de imagens com as quais elas podem comportar posições em séries. Por exemplo. eles desconectavam as palavras das representações visuais às quais estavam ligados pelo regime da descrição funcional. mas ela é fortemente caracterizada por esta polaridade: falar enquanto signo. em imagem áudio-visual. ela toma o lugar de imagens que poderiam ter sido feitas e não o foram. mas também um intervalo entre imagens. um traço de expressão torna-se uma história. Em Proust. E mesmo no cinema. com a capacidade de engendrar outras imagens. destituída de sentido. para mostrar que a imagem era sempre uma relação. é uma expressão ambígua. ela atrai ou repele outras. seja o índice que induz um movimento. e não um complemento da imagem. esteticamente falando. ou o que Deleuze chama de regime sensório-motor. É neste sentido também que a podemos chamar de plural . efetivamente neste sentido. portador de sentido oculto. tanto em literatura quanto em cinema. Mas a imagem não seria também plural. Dizer que “vemos”. em relação ao tanto que este possa ter de indiferente. mesmo pretendendo o contrário. temos a tendência a identificar sempre a imagem ao plano. o significante e o insignificante. então. é uma espécie de curtocircuito. Uma imagem é sempre um intervalo e uma expansão. assim como em nossa “cabeça”. que nos remete fortemente a este fato teórico de que a imagem é sempre uma relação. a roda das metáforas. por disciplina. esteticamente falando. Quando ele fala de um filme. A imagem escapa sempre à especificidade visual para induzir um regime de metamorfose que é um meio de desestabilização das formas fixas. O senhor falaria então na idéia de imagem mental? R. ou a qualquer outra referência técnica. assim como sobre elementos de leitura crítica. as imagens transformam uma conversação em paisagem ou uma sala de recepção em um deserto. somos sempre nós quem a “decupamos”. Assim. é preciso tentar se fixar sobre o que nos é dado pelo filme e sua objetividade. o gesto se metamorfoseia em cantarolar e faz. em Chantal Akerman. etc. é-lhe no fundo indiferente argumentar sobre um plano. o cinema não remeteria em questão a idéia de imagem. É preciso distinguir a função imagem da idéia de unidade visual. A imagem exprime sempre a transformação. funciona sobre um esforço de objetivação que remete constantemente a um processo de subjetivação. de derivações múltiplas. Além do mais. É uma idéia complicada. Deleuze brinca com a idéia de que o universo inteiro pode ser associado a um plano. É importante ter consciência que a unidade não é constitutiva. que constitui a verdade da imagem singular. ou uma palavra pronunciada por um personagem. aéreas. O melhor equivalente cinematográfico encontraríamos talvez na forma com que. como regimes da natureza: as imagens vegetais se transformam em animais. assim como da de unidade técnica. O discurso sobre a imagem cinematográfica é em suma sempre um discurso ilegítimo ( bâtard). de associação. sem nuance pejorativa. uma página. mas ao mesmo tempo. A imagem. Assim como não podemos mesurar a imagem pela forma visual instantânea. correspondentes à captação de dois elementos essenciais da imagem estética: esta constitui um intervalo e é uma expansão. É um jogo complicado. ela é portanto o operador de um regime de metamorfose. e penso que isto também caracteriza propriamente a imagem no regime estético das artes. a imagem não produz apenas efeitos subjetivos. Nos encontramos numa démarche contraditória: sabemos muito bem que o que vemos não se encontra nem um décimo sobre a película ou sobre a tela. não podemos limitá-la ao começo de movimentação e de fixidez da câmera. penetrar o mundo num quarto e uma infinidade de histórias num face a face intimista. Ao mesmo tempo. Há também a imagem mental no sentido de Schefer. ou o processo que liga três planos num conjunto. O discurso sobre a imagem móvel é sempre duplo. mas também efeitos de imagens. em todo caso tento sempre não fazê-lo. e que iremos associar de maneiras infinitamente diversas. B. um elemento do roteiro.espécie de “torneio” ( tour) sobre elas mesmas. uma tela ( pintura). B. em marinhas. onde o que vemos sobre a tela se encontra acondicionado num universo imaginário que lhe ultrapassa completamente. por exemplo. ou lhe imporia uma outra forma de apreensão? . Há empiricamente uma sub-percepção constante da unidade visual. Claro que há a imagem mental no sentido em que foi pensada para ser na imagem visual. Ele fala de um filme enquanto ele pertence a todo um universo de imagens mentais que o constitui. No exemplo flaubertiano. podemos dizer da imagem: é um plano no sentido tradicional mas também um evento singular que se passa nesta imagem. em um único modo. assim. é a roda das imagens. a isso se acrescenta no cinema a impossibilidade de “parar” o encadeamento temporal. Ela pertence a uma estratégia artística e também a uma estratégia de leitura. Mas a imagem mental é também a infinidade de processos de associações que faz com que reconheçamos diversas coisas sobre uma tela ( écran). Mas acho ruim raciocinar em termos de imaginário. Vão se constituir quatro ou cinco imagens que são “as imagens” de um filme. mesmo se. nega sua própria autonomia. A imagem não seria então produzida numa espécie de contra-fluxo. pode-se ingerir páginas de descrições sem ver o que quer que seja. nós as reinserimos em sistemas de associações e derivações infinitas. Há de um lado uma consistência própria das imagens. E no entanto esta imagem resume tão bem o poder de efração das imagens do filme e de um cineasta que recentemente encontrei o mesmo “erro” compartilhado por outro “espectador”. Penso também neste trabalho de interpretação necessária que Gombrich descreve no domínio pictórico e que se produz a uma escala infinitamente superior com a imagem cinematográfica que. relendo os textos da grande época macmahoniana.a tese de Schefer. Que obras do cinema contemporâneo lhe ajudam a pensar a noção de imagem? E em qual (s) direção (s)? R. Há um universo das imagens do cinema que talvez só seja constituído pela palavra. Esta reconstrução é para mim diferente de uma espécie de imaginário. podemos distinguir três grandes momentos na idéia da imagem cinematográfica: . só se referia a ela mesma. B. Uma imagem está morta se ela está dada e se interrompe. em seu desfilar. É por isso também que o estudo narratológico “plano a plano” é geralmente tão decepcionante. o que. evocar outras imagens que são “falsas”. o que me parece ser. ou delírios particulares. nada é propriamente mostrado. deslocadas em relação ao filme. A noção usual de imagem remete a uma fixidez que é totalmente ilusória. de outro. Para que as imagens se projetem. Não sei se podemos empregar aqui o termo com o rigor com que é empregado por Deleuze. por um lado. Se pensarmos na imagem literária. de contraefetuação.R. É por isso que é tão importante falar sobre os filmes. Disto isto. em constatar até que ponto a sua celebração enfática da presença não permitia que se visse nada. A vida das imagens se faz com outras imagens. A idéia de evidência visual se evapora de forma absolutamente vertiginosa. é preciso que escrevamos. para nós. Digamos em primeiro lugar que minha cultura cinematográfica é muito descontínua e seletiva para abarcar uma unidade recuperável sob o rótulo “cinema contemporâneo”. parar o filme. que seria assumida pelo espectador? R. A isto se junta que a contemporaneidade se define tanto pelas novidades quanto pelos filmes de diferentes épocas que nos é possível ver em um dado momento. outras imagens. Podemos retomar a fita cassete. o “desenrolar” fílmico a absorve e. fez de Ozu mais um contemporâneo do “après-Nouvelle vague” que Renoir. Esta aparição instantânea de fato não existe: pelo contrário. A expansão das imagens não é um imaginário. Algo permanece quando se cria indefinidamente outras imagens com outras palavras. Já a imagem cinematográfica mostra tudo. estas imagens se tornaram inteiramente autônomas da unidade que supomos pertencer ao filme. Eu durante muito tempo vi o cinema de Nicholas Ray através do plano da aparição de Cathy O’Donell de macacão na garagem de They live by night. a partir do momento em que a utilizamos. constituam uma espécie de memória do filme. para retomarmos uma expressão de Deleuze. Fui impactado de forma inversa. mas isto não concerne apenas ao cinema. B. penso eu. mas inserindo este todo em um fluxo que impede a fixação do que aparece na tela e que obriga a reconstruir o filme de outra forma. Por subjetividade não compreendo apenas associações singulares. Mas certamente as imagens fílmicas vivem das contra-efetuações que nós operamos. o personagem é introduzido progressivamente por esboços ( esquisses) paralelos. assimilando a dissociação dos componentes da imagem a uma função de crítica positiva. no puro pictórico. Godard . Penso também em certos filmes de Hou Hsiao Hsien. que deslocam a oposição do clássico e do moderno ao isolar um plano não sob a forma do “corte irracional” mas sob a forma de uma saturação e de uma complexidade internas que no entanto não obedecem ao paradigma baziniano da profundidade de campo. parente da “quase-imagem” do livro. Em alguns cineastas. um prolongamento ou uma aceleração do tempo. em uma espécie de papel pintado multicolorido. ele nos faz sobretudo sentir até que ponto o som funciona como “terceira dimensão” da imagem cinematográfica. Penso enfim nas obras de Kiarostami. mas que estabelecem sobretudo uma indecisão entre os traços pictóricos e os traços narrativos ( assim. E ele permite repensar este caráter paradoxal do “ruído”. e um outro pensamento da pureza cinematográfica. Pretendendo liberar o cinema da ilusão perspectivista e assim aproximando-o de uma inencontrável pintura. Houve a época de Bresson. não um ranking.pela qual meu interesse é bem fraco. com seus micro-eventos. fazendo do filme o desenvolvimento de um poema ou de um quadro. oscilava entre uma idéia crítica de cinema. Eles se situam fora da linha dominante americana. para transformar o movimento em imobilidade e a ilustração funcional em fogo de artifício gratuito. É o momento onde cessou de se opor uma ilusória “pureza” da imagem visual à mescla cinematográfica do visível e da palavra. do narrativo. à maneira de Bonnard. As formas de cinema contemporâneo que me interessam são aquelas que permitem sair de deste dilema. que fixou o status artístico da imagem cinematográfica. teorização que aliás não cessava de desmentir as formas concretas da narrativa cinematográfica. marcando a distância entre imagem estética e unidade visual. e confrontando-as a formas de heterogeneidade próprias à imagem pictórica ou literária. ao explorar de diversas maneiras as formas de composição e decomposição que forjam a imagem cinematográfica. Bergman e da Nouvelle Vague. em sua velocidade devoradora das imagens. São exemplos. onde apareceu que a imagem era em primeiro lugar uma diferença de potencial. ou simplesmente minha preguiça forte. ao mesmo tempo. do objetivo e do subjetivo). desde o plano da criança-micróbio percorrendo o terreno em ziguezague geometricamente traçado sobre a colina de Onde fica a casa do meu amigo?. o enriquecimento ( surenchère) plástico que desejaria isolar o visível em sua pureza acaba por reencontrar de outra forma a heterogeneidade da imagem cinematográfica. ao utilizar as formas do cinema mudo e a gesticulação do clown. de elementos plásticos e de figuras discursivas). parecem ornamentos ( fioritures) pictóricas ( planos aproximados absorvendo o corpo. com as rupturas de escalas visuais e os conflitos de imagens que isto pressupõe.e da sub-dominante francesa. Complexidade do mesmo gênero. que jogam sistematicamente sobre a transformação das formas. que. véus e espelhos embaralhando as fronteiras do real e da aparência.houve o tempo em que a imagem visual foi pensada como elemento de uma língua específica e onde a originalidade do cinema foi assimilada a uma espécie de nova língua universal das imagens. Esta clarificação. Este jogo é ao mesmo tempo uma maneira de repassar as eras do cinema . se encontra nos procedimentos de Wong Kar Wai. instantâneas ou progressivas. onde são ainda os “clássicos da modernidade”. e a sonoridade dostoievskiana arcaica de Sokurov é bem próxima da sonoridade “neo-realista” suburbana que encerra os personagens contemporâneos do Ossos de Pedro Costa. que encarnam a potência disjuntiva das imagens e . ou antes francófona. da narrativa e do plano. Penso aqui na tentativa de Sokurov. Penso por exemplo em alguns filmes de Kitano que jogam em cima das transformações. um intervalo entre regimes de “imagismo” (imageité). em relação aos cortes da história do cinema. a princípio. estes brancos e estes negros que desempenham um duplo papel de componentes do plano e de separação entre os planos. até a janela fechada de O vento nos levará. que me parece significativa até em suas contradições. que torna a imagem visível cinematográfica. os Straub ou Chantal Akerman. Uma concepção exclusivamente figurativa do maneirismo No editorial1b deste número. Ou ainda. podemos encontrar a reatualização de uma tradição pictórica e caligráfica que torna equivalentes traços pictóricos e escriturais. os autores desta revista adotam. recapitula brevemente os usos do termo maneirismo que existiram no domínio da crítica de cinema. num artigo muito interessante intitulado “ Sobre uma estética maneirista”. de João César Monteiro “Lentamente. ela pode. em Kitano. Tradução: Luiz Soares Júnior. vemos os códigos do filme de yakusa trabalhados pelos códigos do Nô e os “desvios do código” típicos da tradição burlesca.1t Falar de maneirismo a respeito de um filme como A comédia de Deus ( 1995). propor uma definição do maneirismo em sua abordagem “exclusivamente figurativa”5: o maneirismo ou “anamorfose sistemática e obsessiva de um motif ( tema?) magistral 6”. uma posição firme e categórica sobre a problemática do maneirismo cinematográfico. uma visão de conjunto se impôs à redação: a flutuação semântica que permanece associada a esta noção de maneirismo “presa em tenazes entre os partidários do maneirismo ‘amaneirado’ e os pensadores do maneirismo genérico”4. Uma vez que esta posição procede de uma releitura crítica de trabalhos anteriores consagrados à questão. a fim de proporcionarmos maior relevo à concepção de maneirismo que será desenvolvida neste estudo. Em Wong Kar-Wai ou Hou Hsiao Hsien. desde o famoso e fecundo artigo de Alain Bergala “De uma certa maneira”2. e por restringir consideravelmente a pertinência da noção de maneirismo no campo do cinema. a “redação”( uma vez que é “ela” que assina o artigo). do cineasta português João César Monteiro. a princípio. Assim. João César Monteiro. começa a preencher um cornet de sorvete”.historicamente não contemporâneas umas das outras. à estética maneirista . servir como um contraponto de referência. aparecido em 1985 no Cahiers du Cinema. Se seguimos esta definição. Stéphane Delorme e Mathias Levin para a revista Balthazar. um encontro entre os princípios da modernidade cinematográfica e da tradição do ícone. Que Deus me ajude. o que podemos compreender como uma estética dentre outras. Em um número importante. A importância dos cinemas extra-europeus hoje vem sem dúvida do leve interstício que desloca as filiações e organiza encontros do cinema “moderno” com diferentes tradições. em Sokurov.continuam o diálogo com a imagem literária ( penso no crescendo da declaração da mãe em Sicília!. muito docemente. em Kiarostami. A lentidão de Deus: Maneiras e maneirismo na Comédia de Deus. o senhor João de Deus vai se postar detrás do balcão e. com. da necessidade da imagem ou do interdito da imagem. supõe a priori que não reduzamos os contornos deste campo estético aos limites estabelecidos pelos redatores da revista Au hasard Balthazar1. Entrevista realizada em junho de 2000 por Sophie Carlin. retendo seu fôlego para que nada se sobressalte à sua passagem. até sua evolução sob a pena de Serge Daney3.pertenceriam.do desejo da imagem. o encontro entre a forma de “imagética” dominante do poema.mas vejamos que Delorme fala de uma “estética”7. de forma típica ou mesmo exclusiva.. Coube a Stéphane Delorme. mas também com todas as outras formas. ou ao decrescendo dos últimos planos marinhos de A cativa). efeito. Em vista destes conceitos. a atenção à técnica de uma arte procedendo de uma interrogação sobre o como ( como isto foi feito?) ..22 Em que consistirá. e não mais sobre o que. todos os aspectos que fazem sentir ou supor existir uma vontade artística. esta maneira objetivada tornando-se assim o objeto principal sobre o qual o maneirista vai colocar as exigências de seu trabalho criativo. Ora.os filmes que deliberadamente se inscrevem em um jogo de relação entre uma obra originária e uma obra segunda 8. de exageração e de deformação figurativa 9. já que Klein estabelece uma equivalência entre ambos os termos? Ele aparecerá na criação artística quando se fizer presente uma atitude similar ( falando-se por analogia com um certo tipo de atitude humana) ao que chamamos de “afetação”. e orientá-la para a maneira. “a maneira é tanto mais sensível na arte. portanto. Ela elimina uma acepção do termo que permanece fundamentalmente ligada à noção de maneira. assim como vários de seus predecessores13. ao cabo dos dois movimentos lógicos de suas rigorosas análises.como podemos. e da produção dos efeitos buscados.” 23 O maneirismo supõe. os movimentos da câmera e os ângulos de tomada de cena. com efeito. a partir da primeira. A maneira. situando-se não apenas do lado do prazer estético do espectador mas também do artista.Robert Klein estabelece. uma definição formal 17 da arte entendida como “uma produção de efeitos”18. tentar qualificá-lo25. para distinguir a maneira de outras concepções de maneirismo. um trabalho de distorção. parece-me útil conservar esta dimensão do amaneirado no cadre do cinema. na medida em que a forma que esta nos oferece melhor preserva os traços . 10 Embora apaixonante e produtiva. a repartição dos suportes ou escolha dos materiais na arquitetura. A arte a maneira são. uma “objetivação da maneira”24. em vários filmes. para dar conta de certas particularidades estilísticas de um filme como A comédia de Deus. o que os autores desta revista. ora concretizada pro gestos. escreve.o exemplo típico seria a retomada e a re-elaboração maníaca por Brian de Palma . como uma “maneira” parcial ou totalmente autonomizada ( tomada como objeto) enquanto produtora de efeitos19. a “pesquisa” por uma imagem poética. Assim. estas formas claramente “sobrecarregadas” que são o preciosismo. a canastrice. a cadência de uma frase. o maneirismo ou o amaneirado. se afetação “consiste em desviar a atenção aos fins naturais de um ato. oferece as aparências de uma conduta. em todos os sentidos que este termo11 pode revestir. um maneirismo que não se diferencia da concepção original de “maneira”. subtraído ao Psicose de Hitchcock. em um artigo intitulado “ A arte e a atenção à técnica”.O maneirista “amaneirado”. E o terreno que lhes é comum é aquele nomeado por Klein como a “conduta”21.esta forma de maneirismo tão minoritária e “anedótica”. obra esta que opera. aparentadas 20.a pose. e cujo sentido mais interessantes e contundente é justamente ligado ao “que a língua comum denomina ‘ as maneiras’12”. etc Portanto. ora puramente ideal ou simbólica: o traço do desenhista. a gratuidade. tomada praticamente como objeto e fonte dos efeitos. ou melhor. compilado em sua obra A forma e o inteligível 15.aparece como um prolongamento lógico da concepção que consiste em deslocar a atenção do “que” ao “como”.em resumo. esta parece ser uma concepção muito restritiva do maneirismo.14 Sobre um “maneirismo amaneirado” É sem dúvida Robert Klein. a afetação. do tema do chuveiro. portanto. uma real gratuidade e uma “mão” real ou metafórica”. como Klein nos diz da afetação. O “maneirista amaneirado” será . ou seja. Buscando estabelecer a relação entre uma arte e sua técnica. nestas condições. recusam é um maneirismo “amaneirado”. que propôs a definição nãohistórica16 do maneirismo que mais permanece tributária do termo “maneira”. substrato etimológico do termo maneirismo. Trata-se de colocar a ênfase e de pôr em relevo certos aspectos precisos e escolhidos do filme.” Segundo esta concepção. duas razões nos tornam preciosa a concepção de Robert Klein do maneirismo como “arte da arte”. de simples efeitos maneiristas. o termo maneirismo não serve forçosamente a qualificar .tal cineasta revelando-se maneirista sobretudo pelo uso extremado da composição e refinamento de seus enquadramentos.em primeiro lugar podemos encontrar o lugar da afetação. As tendências maneiristas de um autor. Além da reflexão sobre a maneira que nos proporciona. o estilo de um criador. Pelo contrário: ela nos permite fazer da afetação uma categoria estética própria.aquele que se inscreve em um movimento de “deslizamento do que ao como”. Tampouco constitui uma repercussão do sentimento de “ter vindo depois”. Não é por acaso. e que contribuem a excitar o desejo de X. e produzir a emoção estética pelo singular uso que ele faz da técnica consubstancial à sua arte34. caracterizada por certo número de traços definidores e à qual podemos afiliar este ou aquele artista. como disse Daniel Arasse 28 ao comentar a definição 29 proposta por Klein. em relação ao precedente. onde . Além disso. e de ter por tarefa necessária e primordial situar-se em relação a um modelo inultrapassável 31.32 O “maneirismo amaneirado” é uma atitude estética que podemos encontrar em todas as formas artísticas 33. aspectos portadores de uma dimensão amaneirada. em certas obras. nos limites deste estudo. no cadre do cinema. esta permite-nos postular que o maneirismo nasce “quando uma arte se interessa a seus instrumentos de representação. relativamente isoláveis. que Klein faz referências freqüentes ao trabalho dos atores-intérpretes. “O maneirismo amaneirado” não é uma escola artística ou um movimento da história da arte. cada novo nível sendo “artificial. em particular numa arte como o cinema. é como se a obliqüidade de “fazer maneiras” encontrasse direito de cidadania na esfera estética e ao olhar analítico. em nossa abordagem do cinema de Monteiro. ou mesmo afetado. quando intenta ilustrar de forma concreta . é preciso postular a existência. Em primeiro lugar. de defender a hipótese que um filme como A comédia de Deus apresenta em seu conjunto uma estética maneirista. onde daí se implica uma sequência onde interviriam os como dos como”. por procederem do interesse pelas técnicas artísticas constitutivas de uma arte. ao lado da idéia de maneirismo como categoria genérica. A definição de Klein nos oferece também o grande mérito de anular os preconceitos habitualmente reservados à afetação36. outro pelo virtuosismo ou ênfase35 de seus movimentos de câmera. Ora. das poses contorcionistas de A (Delphine Seyrig) no Ano passado em Marienbad. ou até mesmo destruí-lo. ou antes: uma arte da arte”.)27 Afetação e efeitos maneiristas. desde que o artista concentre sua atenção. em toda a sua extensão. para tomarmos um exemplo que não tem nada em comum com Monteiro. de suas posturas artificiais e complicadas que a “figuralizam”em um estranho e inacessível objeto feminino . aliás. senão em certas atitudes e gestos dos atores? É preciso recordar. que mescla técnicas bem diferentes. podem se manifestar mais em certos pontos da obra que em outros. que representa o pólo relativo ao natural”26. Com Klein. seja na técnica concernente aos próprios instrumentos ou na técnica da representação. com o objetivo de trabalhá-lo. sua reflexão e esforço sobre a técnica e a tecnicidade com o fito de atingir a expressão. Deste ponto decorre que um princípio metodológico que estabelece que não se trata. Neste sentido. visto desta maneira. às vezes bem pontuais ou mesmo em segundo plano. Daí a definição do maneirismo ( ou amaneirado por Klein: uma hiperarte. suscetível de ser utilizada para dar conta da especificidade de uma démarche artística. o maneirismo não designa uma corrente estética particularmente concernida 30. nos dá perfeitamente a medida deste ponto: “Adotar uma pose é sair de sua própria vida viva . sua fleuma testemunha uma mesma impávida calma. o saque de seu apartamento. que redundam em escândalo. a práticas sensuais ou sexuais reprovadas. sorriso nos . com efeito. a violência física. convergem para a expressão de uma figura singular: a figura da lentidão. separada e congelada pelo cineasta. No entanto.a loja de sorvetes da qual ele é o gerente. e é isolada. se metamorfoseia no Inferno41. transformadas em objetos de expressão. mímicas. velocidades de deslocamento.suas elaborações37. uma figura primordial e maior preexiste ao processo de anamorfose. em termos de maneirismo. estes efeitos de estilização amaneirada participam de um projeto figurativo. ou seja.é o “tema magistral”. João de Deus recolhe então os frutos amargos: a indignação de todos. Georges Charbonneau. não é alheio à expressão figural: ele faz das próprias maneiras o terreno de expressão das figuras. No primeiro caso. que agora. primeiro filme de um díptico40 de que As bodas de Deus constitui a segunda parte. Mas é necessário precisar que estas maneiras. as entonações e inflexões da voz. modulações do rosto. que se chama “Paraíso do sorvete”. Sua relação fundamental à figura não é a mesma. agilidade ou rigidez das posturas. para se figuralizar38”. “O movimento lento é essencialmente majestoso”. o pivot em torno do qual gravitam os empregados e os fornecedores. sua destituição do Paraíso. com o objetivo de penetrar no mundo das figuras. no limite de suas preocupações. o jogo do ator. seriam suficientes para colocar esta obra no campo de uma poética do maneirismo? É esta a hipótese que será proposta e explorada aqui. A narrativa segue a rota descendente do devir deste personagem. Ele ultrapassa os limites. quando aparecem ostensivamente em um filme. agora inventor de perfumes de sorvetes por obra de um feliz acaso que permanece secreto para o espectador. O “maneirismo amaneirado”. a redução a cinzas de seu Livro dos Pensamentos. sob os auspícios de uma galopante americanização. reduzidos ao papel de satélites do mestre supremo. para ser retrabalhada. Sem adotarmos a perspectiva do “maneirismo amaneirado”.e depois a filha do seu açougueiro.aparecem como um dos primeiros objetos de atenção para a leitura de um filme. Mas ao fim do filme João de Deus é expulso do Paraíso. seu andar a passos contados não se acelera de forma alguma. trabalhando sob suas ordens. esta pequena utopia. ligados ao personagem João de Deus. ao mesmo tempo como técnica de encarnação e uso de um impressionante repertório de instrumentos que o corpo oferece à sua disposição. Eis a consequência das liberdades tomadas pelo personagem para com uma ordem moral hipócrita e de seus abusos na prática de perversões refinadas. nos narra um período da vida de João de Deus. ele é a “alma da casa”. Fazer maneiras. a extrema contenção no registro de sua voz permanece idêntica. de um extremo a outro do filme. João de Deus havia dado uma forma muito particularmente sua a este micro mundo. como nos permite compreender os primeiros planos do filme onde. A Comédia de Deus. um grande número de efeitos maneiristas. sentado no centro da imagem.o gestual. Talvez seja neste nível que a diferença é maior entre as duas concepções de maneirismo que tentamos resumir. tomando apoio sobre uma análise de traços sintomáticos do maneirismo no jogo do ator João César Monteiro em A comédia de Deus. na Comédia de Deus. e é impassível. Ora. etc. adotar uma pose. No segundo caso. Rosário. levando uma das moças. as expressões. João de Deus não se contentou em criar perfumes capitosos ou de reger um conjunto de jovens ninfas. ser afetado: estes movimentos coquettes. a figura essencial não preexiste enquanto tal às “maneiras”: ela constitui uma repercussão do trabalho operado a partir das maneiras. interpretado pelo próprio João César Monteiro. Joaninha. Mas ao antecipar a aparição do personagem. portanto. em primeira instância. nem mesmo ambos de forma conjunta. A figura se caracteriza. de João de Deus. configurar a Lentidão em uma figura na Comédia de Deus. onde conserva pequenos sachets de celofane contendo pêlos pubianos vindos dos quatro cantos do mundo. diante das portas envidraçadas da loja. tem um valor de incipit 2t: ela coloca o filme sob a epígrafe da Idéia da Lentidão congênita ao personagem de João de Deus. é para se debruçar longamente sobre cada página. que ela tem por tarefa manifestar”47. ou mesmo disparates. aparência exterior e modelo inteligível. relacionar) entre domínios separados. João de Deus. e possibilita acentuar-lhe o relevo. Nada de mais alheio à Comédia de Deus. confere corpo à idéia de Lentidão que o precedia e. é por ser gerada nesta lógica do interstício. de alguma maneira. e imprime . sua erotomania ou seu gosto por petiscos refinados. mas se encontra inscrita . entre os dois: entre visível e invisível. Esta réplica. A lentidão não é apenas o traço característico deste personagem libertino. O movimento lento é essencialmente majestoso”42. Como bem resume Olliver Schefer. e é lentamente que ele se encaminha para sua catástrofe. mas asperge sua vida de prazeres) e sensualista. quando em seus Pensamentos ele escreve que “figura porta ausência e presença”48. Quando João de Deus confere o Livro dos Pensamentos. desde a investigação filológica de Erich Auerbach em Figura45. em registros diferentes. e sobretudo intrinsecamente ambivalente.a moça o espera com uma outra colega. “Cá está. A lentidão inerente ao personagem de João de Deus também pertence ao domínio da figura por ser apenas um modo de manifestação particular de uma Idéia mais geral de Lentidão que age em todos os níveis da representação. É por ser lido na velocidade de uma meditação erótica que este livro é o suporte de pensamentos. tão sucinto quanto sugestivo. Pontualidade britânica. João de Deus vive num modo onde a lentidão é soberana. torna-se para o espectador aquele que. por este interstício ( entre-deux). em primeiro lugar.lábios e fechando os olhos que ele se oferece ao açougueiro que lhe quebra a cara. sua matriz “invisível. ao penetrar no plano. igualmente caracterizado. por seu físico atrofiado. e eis a causa de sua fecundidade. “ao mesmo tempo forma-exterior. que a noção de montagem rápida que dinamiza o encadeamento de planos curtos. o quanto a noção de figura é polissêmica. ela também permite in-formar a visão do espectador: antes de ser um personagem. por exemplo. que se encontra no plano seguinte aos créditos43. ou mais exatamente aquilo que da figura constitui sua parte visível ( ou mais amplamente sensível) se ordena “de acordo com seu modelo”.46 Pode-se dizer portanto que a “figura visível”. verificando aqui e ali a inflexão de frase que lhe fora inspirada por tal triângulo pubiano. Se a lentidão relacionada ao personagem de João de Deus é eminentemente figura. ou soprando delicadamente sobre alguns pêlos que escapam dos sachets. sua obsessão pela higiene. É este o retrato. austeramente hedonista ( vive como um monge. É a economia fílmica em seu conjunto que é lenta. ou aspecto visível”. oferecido por uma das moças empregadas no Paraíso. A Lentidão é a Idéia invisível que o define de antemão. Pascal resumiu de uma forma sugestiva esta característica da figura. Sabemos. real de uma coisa. do “entre”. o esperava. Esta relação entre um corpo e uma Idéia44 que este se encarrega de encarnar é o que permite. para vê-los flutuar sobre a cartolina. e “modelo abstrato”. Ele ainda se encontra fora de campo. encontrando sua função e sua virtude em uma mise en rapport ( pôr em relação. Figura da Lentidão. ela não é propriamente “nem um nem outro separadamente. e que seu corpo em seguida se encarrega de figurar. Na Comédia de Deus. João César Monteiro propõe uma arte da pose. gestos que ele convoca ao sabor de sua vontade ou das necessidades do momento. que contribuem a transformar estes planos em tableaux vivants . falsamente naturais. que a lentidão é um dos sinais mais destacados e distintivos da estética de João César Monteiro. Monteiro também inventa para seu personagem um repertório gestual maneirista dos mais singulares. se revela profundamente maneirista. com a cabeça voltada para frente. Por dar-lhe uma forma. O maneirismo dos gestos vem em primeiro lugar de sua recorrência: João de Deus parece cultivar um catálogo relativamente restrito de gestos eleitos e cultivados. Este maneirismo provém. em primeiro lugar. ou mesmo em imagens-tempo. modo de vida na contracorrente do frenesi liberal. ele traduz corporalmente a forte impressão que a beleza da moça lhe causa. o corpo de João de Deus apenas a assume. das atitudes afetadas. para dar maior amplidão a um “Que sei eu?”. em nossa análise. um maneirismo de posturas trabalhadas ao qual a lentidão é ontologicamente necessária. Jogo maneirista. Para impor a Idéia de Lentidão enquanto figura. ou quando levanta os braços acima da cabeça. Uma das figuras essenciais de sua arte poética. querendo dizer “não falem comigo”. com o risco inclusive de esgotar a paciência de certos espectadores50. imprime uma tonalidade tranqüila ao cotidiano. Com este fito. preciosistas ou canastronas que ele empresta a seu personagem. e aqui dá-se a ler como a chave para abrir o baú das delícias da vida. se fixa no café em posturas indolentes e refinadas. e que ganham em expressividade na mesma medida em que perdem em espontaneidade. no sentido particular de transmitir uma “de-mostração”: o corte e a aparição do plano seguinte se fazem frequentemente depois que um plano sequência permitiu que a situação que ele deu a ver se prolongasse em excesso. devidos à disposição estrita ou aos movimentos coordenados dos personagens no espaço. minutos depois. Max Monteiro53 elabora um tipo de interpretação inédita que. sua inércia física e seus profundos suspiros dão forma a uma lentidão exibida como arte de viver. pelo contrário. a raridade ou fraqueza das ações51 e dos efeitos de composição. ou mesmo ética: a lentidão. ele mantém ostensivamente seu cigarro entre o dedo maior e o anular54. Ou. Filmado em plano de conjunto. ele a torna particularmente visível. esta dama com cabelos grisalhos52 não faz nada além de se deleitar em contar esta história. onde se sentara. a montagem se faz sobretudo “mostragem”. e que ele contribui para exprimir na medida em que “fazer uma pose” significa não apenas permanecer em posições corporais que nos dão a sensação de tornar o tempo mais lento ( ralentir) mas sobretudo “dar-se o tempo” de se instalar nestas posturas e manifestar que se vive sob um modo lento. ele pode simular uma postura que o torna infinitamente frágil diante da mesma Rosário. que impressionam Rosário e contrastam com a “falta de jeito” da moça. O caráter ronronante de seu fraseado. os braços cruzados sobre o dorso. quando eleva os olhos para o céu. “entalada” atrás de uma das mesas do Paraíso. quase no centro do cadre. Desta maneira. seus gestos contidos e lânguidos. destacando cada sílaba com a mesma “devida reserva” ( segundo seus próprios termos) com que. Mas o caráter maneirista deste .ao filme um “beat”49 tônico que pode dar ao espectador a sensação de ser levado por um crescendo sempre uniforme. antes de iniciá-la nas regras de higiene. onde a lentidão se torna um dado sensível. que acompanha sempre este gesto. As escolhas da cenografia e da mise en scéne reforçam a impavidez inerente aos longos planos fixos: abundam com frequência um certo hieratismo dos personagens. destes distintos elementos. É esta aliás a intenção de uma sequência onde uma habituée do Paraíso retraça as grande etapas da invenção do sorvete. dos primeiros sorbets romanos até o “inundado” icecream: instalar a dramaturgia plenamente na lentidão. Concluímos. saboreia cada colherada de sua taça de sorvete. Ao invés de exprimir os trejeitos que exprimiriam a emoção do personagem. jogando seu jornal sobre a mesa e colocando as mãos sobre a nuca. vemos que é a lentidão com que Monteiro age que permite ao espectador realizar facilmente a distinção entre o que advém do obverplay e do underplay. João de Deus molha os dedos em seu copo d’água e asperge as bochechas. adaptando-as às suas conveniências. em trabalhar as formas da passagem de um registro ao outro. Sua interpretação representa. Deste exemplo e do precedente. se instalou da melhor maneira que pôde sobre a cadeira. fazer referência à tipologia delineada por Luc Moullet no seu Política dos atores55. ou atuação contida. o resto de seu corpo se situa no underplay. o jogo maneirista de Monteiro pode ser qualificado de under-overplay lento. ocorre a Monteiro subverter o overplay pelo underplay. o underplay e o overplay. ou seja. modeladas pela Lentidão.A lentidão aqui está serviço de um jogo de deslizamentos. no decorrer das mesmas posturas. entra no Paraíso. o maneirismo da interpretação de Max Monteiro repousa sobre uma “maneira de interpretação” paradoxal. pernas alongadas ao longo de uma cadeira. De uma forma mais essencial. a particularidade do ator Monteiro56 não consiste apenas. em um movimento de ereção cujo caráter metafórico não temos dificuldade em captar. enquanto a agitação de seu pé demonstra uma forma minúscula e localizada59 de overplaying. João decompõe. Trata-se aí de um mini gestus62 .gestual provém também da lentidão com que Monteiro executa estes gestos escolhidos. submetendo partes distintas do seu físico a lógicas contrárias. Quando ele alteia o tom de voz e bate o pé em cólera contra uma de suas empregadas. recusa seus avanços sexuais. as micro ações que o levam do repouso-sentado. . natureza artificial e virtuosismo proporcionam seu valor poético. rosto de mármore e olhar congelado pelo evento. mãos cruzadas atrás da nuca. tal qual uma aparição60. Virgínia. João de Deus não deixa de nos transmitir uma impressão de controle total de si. Não realmente overplay nem exatamente underplay. de quem emana cristalina luz. que faz da maneira com que João se inscreve no encadeamento de uma postura à outra o tema fundamental deste plano. onde a “nonchalance” underplay da execução assume a energia emocional “overplay” que atravessa João de Deus e que. a especificidade da atuação de Monteiro é de mesclar simultaneamente. como se estivesse em câmera lenta. que se dão a ver e compreender enquanto puras maneiras. ou sobre-atuação. mas reabrindo os olhos. Ele opera uma distinção. entre o underplay. De forma sutil. Assim. com efeito. cômoda e eficaz. como uma onda. Sublinhados pelo tempo suplementar ao que seria necessário para sua execução. estes gestos se tornam outra coisa: formas. A interpretação de Monteiro embaralha ou problematiza diferenças simples entre certos tipos de atuação a priori opostas. atuando com comedimento e mantendo sob retenção as emoções fulgurantes e tempestuosas. Posta a serviço de um personagem que é um verdadeiro oxímoro58 vivo. como talvez seja o caso de Harvey Keitel57.um instante depois de tê-los fechado. Quando Joanninha. por exemplo. a exteriorização demonstrativa que pode. e o overplay. e que tem por função exprimi-la. que se recusa a limpar o muro do banheiro coberto de excrementos. a capacidade do ator em interiorizar e apagar de seu rosto e corpo as expressões muito marcantes. João vive o evento sob o efeito de um estupor erótico: “senhor João de Deus. cuja complexidade. para que a moça acredite tratarem-se das lágrimas.a ficar em pé. uma vez que é ela que o exprime. encontra-se fulminado pelo esplendor de uma Joaninha . frutos de um doloroso desgosto que ele sofrera. para colocar em evidência esta questão. o faz se mover. tomar a forma de um desencadeamento pulsional de violência ou se manifestar sob os aspectos da canastrice. uma mistura heterogênea entre grave sobriedade e insana excentricidade. de contenção no comportamento que traduzem a extrema rigidez de seu porte e a impassibilidade mineral de seu rosto. Ora. Podemos. com a intenção irreprimível de “tirar um cochilinho”61. É quando procura comover que se mostra mais lúdico: quando uma de suas empregadas. Em torno de Rosário. Cada gesto seu se encontra marcado por uma delicadeza musical que entra em perfeita concordância com as harmonias líquidas e melancólicas da Morte de Isolda de Wagner. destila sua beleza. Quando da cerimônia do champanhe. João de Deus dá-nos a medida plena do refinamento de suas maneiras afetadas. Há. cuja finalidade é essencialmente crítica. destaca com minúcia cada sílaba: ela representa um modo de expressão e de enunciação contrárias às vociferações de Judite. a braçada. onde as atitudes “amaneiradas” que João de Deus lhe instiga sublimam estas curvas nascentes e ainda incertas. Aqui. seduz metodicamente a moça. que. que parecem tanto celebrar a beleza de Rosário quanto entoar um hino à bunda da jovem que ele em seguida vai enrabar. sua voz arrastada e às vezes quase inaudível que. para Monteiro. degustar a Champanhe. caricatura em forma de ex-puta do patronato sem escrúpulos que é o braço armado do capitalismo. certamente traduz uma forma de ação política. depositária graciosa de um conjunto de gestos lentos que ela recebe de seu mentor.cadenciado por tiques de transe e por élans de calmaria etéria. Nestas cerimônias. ao ver o muro do toilette das mulheres coalhado de merda. João de Deus. demiurgo delicado e inspirado. fazer a Joaninha tomar um banho de leite. o crawl e o crawl de costas. fazê-la provar o sorvete do “Paraíso”. estão na base das grandes cerimônias lúdicas63. para que a menina cure seus problemas intestinais. Desta forma. Estas cerimônias são importantes porque nelas as maneiras de agir de Monteiro repercutem65 sobre as moças para as quais são “postas em cena” ( il les met en scéne): graças a estes rituais. inventada em homenagem à graça travessa da Joaninha. mesmo quando ele clama por sua “pobre mãe”. João de Deus dá a impressão de animar o corpo da Rosarinho . Ele usa a palavra e a linguagem de formas singulares. com o objetivo de mesclar sutilmente ao prazer do instante o desejo de atingir um instante ainda mais prazeroso. Falar lentamente. dentre as quais figuram a sessão de natação. antes de sentá-la numa rede em forma de “cornucópia” ( corne de l’abondance”). desejo e prazer se amplificando de maneira a serem dispostos diligentemente no tempo. O gestual maneirista faz-se aqui musical. confere ocasionalmente ao seu papel de educador de moças a função de mestre de natação-dançarino. abrindo e fechando os braços em amplos movimentos. orientando-as a uma finalidade de sedução. para que João de Deus confeccione um sorvete que vai levar seu nome.Cerimônias de Deus. estas podem se tornar espécies de bonecas maneiristas. no qual esta deve colocar seu perfume. o sumo de sua arte.inventor desta situação que a princípio nos parecera surrealista e incongruente. iniciando-a aos três tipos principais de nado. à medida em que se prolonga. está claro. estranhas e preciosistas que este personagem afeta e confecciona. por exemplo: a maneira caricaturalmente lenta com que João lê o discurso interminável . no apartamento e a cerimônia da champanhe. cheia de ovos frescos. como se inebriada pelo efeito de uma contaminação estética. Maneirismo do discurso A lentidão de João de Deus também está a serviço de um profundo maneirismo no discurso. que banham toda a seqüência. A conseqüência disto é uma “pesquisa” ( recherche) exacerbada do erotismo: Joaninha assume um papel em um teatro64 fantasmagórico. mas que. quando proliferam. adequadas aos propósitos fetichistas de João de Deus. João estende o tempo do processo de sedução. dividindo-o em pequenas etapas que parecem constituir um crescendo em direção à marcha das delícias: vestir-se com um kimono. a jovem se transforma em marionete maneirista. onde Monteiro. Este under-overplay lento contribui a transformar as ações afetadas de João de Deus em pequenos cerimoniais. A mesma coisa na seqüência da natação no apartamento. Cada “estação” da cerimônia a conduz ao ápice de refinamento. que começa a se remexer sob os cobertores. sua trepidação. portanto. encontramos o maneirismo em si. por exemplo. nenhuma necessidade de outra forma de discurso. João em primeiro lugar acende a luz do abajur. Esta sucessão de pequenas ações fragmenta o tempo e nos dá a impressão de torná-lo lento. religiosos e econômicos: as fórmulas cortantes tem o tempo de ressoar como golpes violentos. mais violentos ainda na medida em que enunciados com tranqüilidade. Esta forma de lentidão acentua o caráter provocador e corrosivo deste texto em forma de diatribe onde ele esculhamba. ainda deitado. ou mesmo “super moderno”70. ao invés de pronunciar um “sim” franco e maciço. sob o modo do burlesco. Na penumbra. seu super-consumismo”69. os corpos políticos. do campo. Fórmula onde. discurso infligido à assembléia de canalhas da pior espécie. ao se exibir. João prefere sempre dizer um “Não digo que não”.sobre seu “savoir-faire” em matéria de sorvetes. O corpo de Monteiro. o perturbador anti-herói de Hermann Melville. na presença de alguns de seus representantes. após o primeiro toque da campainha. cujo . e se recusa obstinadamente a desmentir o seu modo de vida libertário. frase célebre do escriturário Bartleby3t. nem no momento de “subir ao cadafalso” o personagem cede67. na cena em que João. Assim. Este maneirismo oral culmina em uma fórmula definitiva. Esta impõe sua temporalidade à cena e ocasiona a “estagnação” do filme: a figura da lentidão . célebre confeiteiro francês. como afirma Fabrice Revaut d’Allonnes. se. não podemos nos espantar de ver culminar a lentidão maneirista de João de Deus em momentos extremos. diante da voz tonitruante do açougueiro Evaristo. A interpretação maneirista de Monteiro é de tal maneira fiel ao burlesco. “a obra e o homem burlesco se apresentam como paródias críticas da sociedade contemporânea. ao saber do que João de Deus “fizera” à Rosarinho. depois.reunida para assistir ao julgamento de seu sorvete por Antoine Doinel ( Jean Douchet). esta cena não serve literalmente para nada) assume integralmente. dito com a lentidão que o caracteriza em tudo. que soa a campainha até o momento em que este vem abri-la. Semelhante seqüência mostra que um dos pontos de chegada do maneirismo de Monteiro é o que se convém nomear de “burlesco da lentidão68”.. de se precipitar à porta. que é o: “Eu preferiria não” ( Je préferèrais ne pas”). Monteiro o transforma num ser extremamente deslocado( decalé) 71. Por ser um personagem feito de excessos. Mas de forma ainda mais fundamental que o discurso escrito. Perto do fim do filme.escrupulosamente anunciado como breve. a figuração de uma soberana lentidão.Ao invés de se inquietar ou mesmo se surpreender com o toque da campainha. O extremo está. Armados com esta fórmula. segundo nos ensina Deleuze66. fazendo o personagem viver sob o modo de uma excessiva trepidação. pega os óculos sobre cabeceira. percebemos o corpo de João. Ao invés de figurar e expor ao ridículo a vontade de aceleração do tempo que acompanha as mutações do mundo moderno. determinado a lhe cortar o sexo. por não estar s serviço de nenhuma narração ( de um ponto de vista estritamente narrativo. despertado no meio da noite pela patroa Judite. titubeante. com seu frenesi. põe sobre o cobertor os óculos e se espreguiça ainda diversas vezes antes de finalmente pôr os pés no chão e sair . de forma covarde). senta-se sobre o leito e observa a hora. que lhe ordena “arriar as calças” ( capitular. subvertendo-o por efeito da insistência na lentidão. industrial e mercadológica. talvez única de comicidade. apesar de assumir uma figura que lhe é a princípio oposta. a princípio. Burlesco da lentidão. João de Deus apenas redargüi com um “Eu preferiria não”. Monteiro inventa uma forma singular. que consiste a renovar o burlesco por excesso de lentidão. domina. tomando o tempo de complicar as afirmações mais simples. permanece indefinidamente no leito. são as maneiras espontâneas que tem de falar que são profundamente maneiristas no personagem. modo de vida lento é suficiente para produzir sua função cômica e crítica. O retorno do mesmo gesto. Magistral. adiar o advento de um futuro catastrófico. por intermédio de sua incomparável singularidade maneirista.Mas ela representa um meio de resistência que frustra aqueles que decidem afrontá-lo. De uma estética maneirista. e que traduz uma certa forma de nobreza. paralisado pelo trajeto da repetição. A lentidão que emana de seu personagem pode levar ao riso. em um mesmo decisivo gesto cinematográfico. de levar. O absurdo inerente ao burlesco não perde aqui nada de sua força. Notas autor: 1“Maneirismos” em Au hasard Balthazar. custe o que custar. Este burlesco da lentidão culmina no encontro face a face entre João e o açougueiro Evaristo. Os autores falam de maneirismo genérico tendo em vista os escritos de Serge Daney e Jean-François Rauger. Apenas o arbitrário pode pôr um fim. crítica e cômico.” . João de Deus pode girar o tempo a seu favor. mas pelo contrário se encontra multiplicado. obra citada. entre o corpo magérrimo de João de Deus e o corpo pesadamente rotundo. o título da revista mudou: chama-se apenas Bathazar. conter seu avanço. Cinejournal e Devant la recrudescence des vols de sacs à main 4 Maneirismos. uma lentidão que acaba por se impor. já que a obra original é uma obra que atinge um grau de maestria e de perfeição inultrapassáveis. cigarro ejetado da boca do personagem pelo açougueiro com uma mão cada vez mais nervosa. 6. de qualquer jeito. De um “motivo” ( ou tema) pois uma figura é destacada da obra original e eleita como objeto exclusivo. “quebrar a cara”. ao aprofundar o presente em uma infinita lentidão.o fato de que não resta nenhum cigarro na carteira. que atinge o nonsense. barrigudo e arredondado do açougueiro. abril 1985 3 Serge Daney. suscitar a ironia ou ser o objeto de uma desprezível suspeição ( no primeiro plano do filme. assumindo os riscos das “maneiras” e do grotesco. uma das empregadas suspeita que o patrão não seja lento por natureza. A forma burlesca se deixa trabalhar aqui em seu interior. pois o personagem vai. Ao desenvolver uma forma de burlesco intrinsecamente maneirista. mescla. pois ambos concluem que a dimensão do excesso72 pertence de direito a esta corrente expressivaMonteiro.nos referimos aqui tanto ao maneirismo histórico quanto à interpretação de Robert Klein. Desde este número. De uma certa maneira. A lentidão não o salva. 5. É. mas sim para atrasar a tudo e todos). Sistemática pois é este retrabalhamento que dá sentido à obra.Delorme. um cigarro aos lábios. com a insistência do João de Deus em não se deixar executar sem antes fumar um último cigarro. que se inscrevem em “uma linha teórica que vê no maneirismo a vontade de prosseguir com um gênero em decadência". Desta forma. inscreve o cômico da situação num jogo de repetições que transforma o burlesco em uma mecânica distendida e alucinada. Cahiers du Cinema. Delorme explicita claramente cada termo da definição: “Uma anamorfose porque o retrabalhamento é fundado sobre a distorção da imagem primeira. Ela se oferece como o sintoma mais evidente de uma natureza altaneira que. contudo.e estancar o delírio de um tempo que não avança. 2 Alain Bergala. impõe na mesma medida o respeito. Não nos é negado inclusive ver nela uma forma superior e aristocrática de carisma. Obsessiva pelo fato do maneirista nem sempre ter se desvencilhado da imagem originária. 7. Podemos, com efeito, assinalar que o tom categórico que percorre a maioria dos artigos deste número a serviço da concepção do maneirismo defendida por Delorme, se encontra nuançado por vasto gênero de opiniões, aliás bem explícitas e conscientes. Assim, o título do número, Maneirismos, com um sugestivo plural, sub-entende uma pluralidade de questionamentos, não necessariamente conciliáveis entre eles. 8. Um filme como A comédia de Deus não é de todo estranho a um tal jogo de “relação” ( mise en relation).O filme é recheado de alusões, citações, de piscadelas em relação a obras anteriores ( Los olvidados de Buñuel, Foolish wives de Stroheim, a série dos Doinel de Truffaut). Mas se trata de intertextualidade e de hipertextutalidade, não se trata, em Monteiro, de um trabalho de re-elaboração figurativa. 9.Como escrevem os redatores da revista: “O maneirismo parte de uma figura congelada e, por condensação, deslocamento, anamorfose , estilhaçamento, etc a des-figura ou refigura”. 10. Para uma análise bem detalhada deste conhecido exemplo, podemos nos referir às páginas de Nicole Brenez sobre “Brian de Palma e os psicotrópicos”. Notaremos, de forma interessante, que a autora não utiliza jamais o termo maneirismo, mas inscreve suas análises no espaço de uma reflexão mais ampla sobre o conceito, criado por ela, de “efeito visual”: Trata-se de um encontro frontal, de um face a face, entre uma imagem já constituída e um projeto figurativo que se consagra a observar, ou dito de outra forma, um estudo da imagem pelos meios da própria imagem”, Da figura em geral e dos corpos em particular.” 11. Para um detalhamento da evolução do termo maneira através da história e uma recensão de seus diferentes usos, ler Alan Rey, “Maneira”, em Le Robert historique de la langue française. 12. Charbonneau. “ A presença amaneirada. "Aproximação fenomenológica das maneiras”, em “Fenomenologia da experiência amaneirada”. Ficamos muito interessados em constatar que esta revista de antropologia fenomenológica, aparecida cinco meses depois do colóquio de Poitiers, desenvolve e pensa, através de estudos diversos, uma concepção do maneirismo em sua dimensão amaneirada. Georges Charbonneau analisa a experiência amaneirada através do que ele nomeia os “quatro núcleos fenomenológicos”: a dissimulação sofisticada, fazer uma pose, a “deferência preciosista” e a “presunção empertigada”. 13. Podemos achar também nos escritos de Alain Bergala, no campo da crítica cinematográfica, assim como em W. Friedlander, no domínio da história da arte pictorial, um uso depreciativo do termo “amaneirado”. Walter Friedlander em Maneirismo e anti-maneirismo e Bergala op. Cit. 14. Argumentando a favor de sua concepção de maneirismo, os redatores da revista escrevem: “O sentido do maneirismo, sua invenção e seu valor encontram-se unicamente aí. O resto é anedótico”. 15. Richard Klein, A forma e o inteligível, 16. Por ser não-histórica, isto é, construída fora de toda referência direta com o maneirismo pictorial, esta definição é particularmente apta a interessar o cinema. 17. Klein insiste no caráter formal desta definição: ela não visa a dizer a verdade da arte, mas a dar conta da arte unicamente na medida em que esta se relaciona com a técnica. 18. É conveniente aqui precisar que os efeitos constituídos pela obra de arte fazem efeitos justamente para um espectador. É a razão pela qual Klein considera que “cada artista deve, na medida ( evidentemente variável) em que este “visa” aos efeitos que produzirá sua obra, interiorizar o espectador intersubjetivo ou universalidade que sofrerão seus efeitos”. 19. Ibdi, op. Cit. 20. Klein precisa: “Se uma maneira é virtualmente arte, é em primeiro lugar porque arte, segundo certas concepções correntes da expressão, é uma maneira de fazer alguma coisa”. 21. ibdi, op. Cit. 22. ibdi, op. Cit. 23. “Os movimentos preciosos, as atitudes cultivadas, a linguagem florida ou empolada, e em geral toda conduta artificial ou induzida pela interiorização de certos espectadores imaginários correspondem a esta definição” . 24. Ibdi. P. 392 25. Precisemos que Klein fala indiferentemente de maneirismo e de amaneirado, mas não de “maneirismo amaneirado”. Não cremos, no entanto, estar traindo seu pensamento ao utilizar esta contração num sentido positivo. 26. Ibdi. P. 393 27. Ibid. p. 393. 28. D. Arasse, “Conversação com Daniel Arasse” em Simulacros 2. 29. Para Daniel Arasse, esta definição do maneirismo, por mais justa que seja até certo ponto, é muito formal. Ela não dá conta do que , segundo ele, constitui a particularidade do maneirismo pictorial, categoria não apenas conceitual mas ancorada na história da arte e na História simplesmente: ser uma arte ligada a uma dupla crise- crise e contestação dos meios de representação clássicos de uma parte, mas também, e talvez sobretudo, crise de confiança na política de outro lado. Mas o maneirismo é apenas a constatação de um estado de crise: ele busca, e é isto o que para Arasse constitui sua singularidade, trazer uma resposta a esta crise. As reservas de Arasse são evidentemente relacionadas a seu ponto de vista de historiador da arte e sua vontade de remontar às origens do maneirismo pictorial, ao que o funda: não há uma única razão para que estas sejam aplicáveis in extenso em relação ao campo do cinema. Apesar disso, veremos que o maneirismo de Monteiro não é destituído de dimensão política. É necessário então sublinhar que Klein refuta frontalmente a acusação de formalismo feita à sua concepção de maneirismo: “Esta definição do maneirismo ou do amaneirado não é mais, em nossa opinião, exterior, descritiva ou formal: “é a primeira, entre todas as que propomos aqui, que nos parece isenta deste defeito. O maneirismo é verdadeira e essencialmente uma “arte da arte”, enquanto que a arte não é, verdadeira e essencialmente, “a atenção prática dirigida ao como objetivado sob o ângulo da produção de efeitos”. Em outros termos, o maneirismo supõe e leva a sério uma “definição formal e exterior da arte” ( sublinhado pelo autor). 30. digamos “relativamente concernido”, porque as fronteiras do maneirismo pictorial nos parecem amplas, até mesmo flutuantes. Assim, Arasse considera, como bem o indica o titulo de sua obra consagrada à questão, que, longe de representar uma decadência do Renascimento, o maneirismo participa consubstancialmente do Renascimento: “é, finalmente, toda Renascença que é maneirista”. D. Arasse e A. Tönnesmann, A Renascença maneirista. 31. Bergala resume perfeitamente este ponto: “[O maneirismo histórico] se caracteriza pela percepção que puderam ter pintores como Pontormo ou Parmigianino de terem chegado “tarde demais”, depois de um ciclo da história de sua arte ter sido cumprido e um certo nível de perfeição sido atingido pelos mestres que os haviam precedido há pouco, como Michelangelo ou Rafael. A “Maneira” constituiria uma das respostas possíveis ( com o Academismo e o barroco) a este passado próximo esmagador”. 32. A contribuição mais original de Stéphane Delorme na reflexão sobre o maneirismo é sem dúvida ter mostrado que os cineastas representativos da concepção de maneirismo que o interessa ( de Palma, Peckinpah, Argento) devem, violar, enfear, ou até mesmo destruir o tema magistral originário para terem a esperança de poder fazer surgir novamente a beleza. 33. No decurso de seu estudo, Klein não hesita em tomar exemplos em formas artísticas bem diferentes. 34. É a razão pela qual Robert Klein, se bem o compreendemos, parece ver no “virtuosismo” um elemento constitutivo do maneirismo: “O virtuosismo é (...) uma primazia acordada a uma meta-técnica, a técnica da produção das formas que produzem efeitos. O que conta então para a consciência não é mais o como da obra ( sua forma), mas o como de sua produção. O virtuose, digamos, não “comove” ( o efeito direto das formas é diminuído), mas suscita a admiração ( o efeito que tem primazia é produzido por um “objeto” não sensível que age indiretamente: a habilidade do executante). 35. Para retomar o termo usado por Michel Chion 36. Klein, com efeito, precisa esta nota: “Por pura convenção do vocabulário, que podemos negligenciar aqui sem prejuízo, a afetação tomou, na maioria de suas acepções correntes, o sentido pejorativo de uma inter-subjetividade fracassada, onde o personagem afetado empresta ao espectador que ele interioriza sua própria falta de gosto; daí o ridículo desta conduta. Mas para a definição essencial da afetação, basta sublinhar a objetivação da maneira- um ato neutro do ponto de vista dos valores, e que pode ser bem ou mal realizado, mas que implica sempre ( daí sem dúvida a prevalência do sentido pejorativo) um certo artifício: o obscurecimento do but ( fim, objetivo) natural”. 37. Por exemplo: um ator que se prepara a interpretar uma explosão de cólera. O problema não está para ele em se pôr em cólera, mas de fazer de tal maneira que sua explosão seja vista, que seja clara, eficaz, que evite o lugar comum, etc; ou seja, é preciso que o ator chame a atenção para seus efeitos, que ele interiorize o espectador”. 38. art. Cit. P. 76 39. O que preexiste à expressão da figura é o “modelo inteligível” que a figura se encarrega de tornar manifesto. Sobre a relação entre figura e modelo inteligível, ver cf. infra. 40. Segundo Monteiro, Le bassin de John Wayne, rodado entre as duas partes do deste díptico, era em realidade previsto para ser realizado antes da Comédia de Deus. Com o recuo do tempo, Monteiro considera aliás este filme com muita severidade: segundo ele, “é um filme de alcoólatra, rodado num estado de embriaguês permanente”. Ele romperia portanto, a ligação entre A Comédia de Deus e Bodas de Deus. Cf Emmanuel Burdeau, “Não ceder um único pêlo, entrevista com João César Monteiro”, Cahiers du Cinema, dezembro 1999. 41. Ou seja: transformada em um fast-food do ice-cream, onde vicejam toda espécie de Pom Pom Girls. 42. A última frase é de Balzac, retomada em sua Théorie de la Démarche ( 1833). 43. Um plano precede este, que serve de fundo aos créditos do filme: o plano cósmico de uma galáxia que efetua evoluções lentamente, acompanhadas por uma música religiosa de Monteverdi onde exultam algumas aleluias. Pelo conjunto possuir um caráter extremamente majestoso, este plano pode sem dúvida passar por uma prefiguração do “movimento lento essencialmente majestoso” de João de Deus. 44. Nosso agradecimento a V. Campan por sua releitura crítica do artigo que nos permitiu precisar este ponto. 45. Erich Auerbach. Figura 46. O. Schefer, “O que é o figural?” 47. Op. Cit. P. 915 48. Pascal, Pensamentos. Para Pascal, toda a Natureza é figura, na medida em que tanto encerra quanto revela Deus, e apenas aqueles que possuem fé se encontram capazes de decifrar esta “ausência e presença de Deus” em um mundo literalmente figurativo. 49. Segundo a expressão de H. Damisch sobre a importância da noção de ritmo nos escritos de D. Païni. Damisch, A imagem-ritmo, prefácio à obra de Païni, O cinema, arte moderna. 50. S. Goudet considera, por exemplo, que a “própria duração dos planos (...) parece às vezes “forçada” na primeira metade pela necessária homogeneidade do projeto ou pelo “autorismo” do cineasta. S. Goudet, A comédia de Deus, Rigor e fantasia em Positif, fevereiro 1996, p.22 51. É preciso entender a idéia de fraqueza das ações, no sentido em que raros são os atos que implicam em repercussões narrativas maiores. 52. Não seríamos obrigados a concluir, no entanto, que o sentido da lentidão seja privilégio da idade na Comédia de Deus. Há personagens maduros que agem com precipitação. Assim, se a velha dama com a taça de sorvete se indigna com a velocidade com que as jovens, neste momento na loja, abocanham seus sorvetes com grandes lambidas indelicadas de língua, a maneira com que o açougueiro Evaristo se precipitava violentamente diante das provocações do “selvagem” deixara, sequências antes, João de Deus desconcertado e sem voz. 53. João César Monteiro utiliza este nome Max nos créditos da Comédia de Deus em relação específica a seu trabalho de ator. A ressonância com Max Schreck- o intérprete do conde Nosferatu no filme de Murnau- não é fortuita. Jean Louis-Leutrat havia, a propósito de Recordações da casa amarela, notado e analisado em suas repercussões fantásticas a semelhança entre o físico de João de Deus e do vampiro. Jean-LouisLeutrat, Vida dos fantasmas. Ver também sobre este ponto o que o próprio Monteiro diz, em sua entrevista com P. Hogson, “Entrevista com um vampiro, encontro com João César Monteiro”, Cahiers du Cinema, fevereiro 96, p.33. 54. Por prazer da anedota, notamos que João de Deus compartilha este traço singular com o escritor M. Houellebecq. 55. Luc Moullet, Política dos atores. Se Moullet se interessa unicamente a quatro grandes atores americanos ( Gary Cooper, John Wayne, Cary Grant e James Stewart), a distinção que ele opera em seu prefácio é uma distinção geral, que funciona fora do contexto americano. 56. João César Monteiro, a maior parte do tempo reservado, às vezes se deixa levar por surtos de agitação desarvorada. Sublinhamos o momento na piscina em que ele reúne no vestiário as moças que levara para a piscina. Antes de se engolfar pelas escadas que vão conduzi-lo a elas, ele adota uma postura mefistofélica, levantando os braços acima da cabeça e agitando seus dedos em castanholas , tal qual um abutre rompendo sobre as presas, que pertence puramente ao overplay. Ainda mais também na cena em que mergulha a cabeça na cornucópia com os ovos na qual Joaninha havia sentado antes. Ele torna-se pouco a pouco uma criatura fantástica, que deixa livre curso à sua canastrice e tem desejo de fazer, literalmente, qualquer coisa. Este traço é levado até o extremo em Le bassin de John Wayne quando, de pé e nu, urina diante da câmera, ou quando ele tagarela de forma interminável, em cena anterior, bebendo num chopp em forma de falo. 57. Ch. Ortoli. “Les déchirures du male”, A propósito de Harvey Keitel, Lettre du cinema 58. S. Goudet, sem se dirigir exatamente ao jogo “atoral” de Monteiro, sublinha a importância da figura do oxímoro para dar conta do personagem de João de Deus: “No cineasta português, o oxímoro não visa emaranhar as referências entre o real e o imaginário, mas a tornar mais complexo um personagem que, não sabendo distinguir o nobre do ignóbil, o alto e o baixo, toma literalmente seus desejos por realidades. (...)Este maníaco da aplicação da ordem e da limpeza tem, no entanto, por outra característica, uma atração obsessiva pelo interdito, o sujo, o obsceno, e um gosto fortemente pronunciado por matérias excremenciais. A conjugação destas duas tendências contraditórias explica e constitui a personalidade deste ser estranho, em quem coexistem e se mesclam, como em um banho de leite mareado de urina, a impureza e a pureza.”. Não podemos concordar em sua totalidade com este comentário de Goudet. João de Deus não nos parece, em efeito, incapaz de distinguir entre o nobre e o ignóbil: ele possui sobretudo uma outra concepção do nobre, distinta da comum. Mas podemos reconhecer a importância do oxímoro neste filme. 59. Embora localizada, não menos importante. A arte poética de Monteiro é também uma arte do detalhe. 60. Para aprofundar a intensidade desta aparição, Monteiro aplica aqui o princípio Além do mais. “O Homem burlesco”. propondo à Joaninha vestir seu quimono de seda para participar da cerimônia da champanhe. Sem estarmos absolutamente seguros. 71.. Não-lugares .. Um indivíduo que vem de lugar nenhum e que vai para lugar nenhum”. 72. convida-nos a considerar que o maneirismo é . ver Marc Augé. antes de nos mostrar a própria visão resplandecente.bressoniano do efeito anterior à causa. toda situação. notaremos que o retrato pintado por d’Allones se aplica como uma luva a Monteiro:”um ar estranho. Os comportamentos amaneirados são. Gilles Deleuze. Le champ aveugle. 1991.). se podemos dizer.(. desce uma escada com o braço esquerdo elevado. veremos também aí uma homenagem ao Marquês de Sade. João de Deus abre uma grande cortina em duas pans. uma figura de inadaptação à sociedade en décalage. Sobre o gestus. 66. pode sublinhar que. Monteiro assina este artigo fazendo preceder seu nome de uma partícula. parece-nos que esta expressão é perfeitamente apropriada para Jean Michel Frodon. Pascal Bonitzer. embora seja conveniente vestir-se para a cerimônia.. instantes antes da abertura de degustação do sorvete por Doinel.. que fascina. 63. quando. individual e portátil. em outros personagens. apesar de permanecer inalienável. que intriga (. A imagem-tempo. Sobre isso. João César Monteiro “Que Dieu me vienne en aide”. formal e afetada quanto esta posição é a mesma assumida por um personagem pintado no muro diante do qual ela passa e estaca um instante. Um inadaptado que. O exemplo mais manifesto aqui é o de Judite. de qualquer forma. 68.) e uma natureza estranha. Antes de fazer Joaninha entrar na grande peça do apartamento na qual vai se desenrolar o essencial da cerimônia. 65. Sobre a percepção de aceleração do tempo como uma das três figuras do excesso características da “sobremodernidade”. de maneira tão gratuita.) A invenção da figura humana. Outra marca de seu gosto pela afetação. o que contribui a tornar mais incerta ainda a distinção entre João de Deus e ele. a mão derreada. Revault d’Allones. todo meio social. com a intenção de fazê-la entrar literalmente em cena. 64. Traffic. F. 61. Deleuze. que mantém com o mundo uma relação. pode se adaptar a toda profissão. introdução a uma antropologia da sobremodernidade. a casa não é tão cerimoniosa assim. A idéia de hiper-arte. Em Jacques Aumont ( dir. destilada por Klein. 67. a patroa de João. e se encontram aqui e lá. 62. Crítica e Clínica. 69. o cinema: o humano e o inumano 70. Para retomar o título da entrevista dada por Monteiro em Cahiers du cinema por ocasião do lançamento das Bodas de Deus. uma constante na Comédia de Deus. assim como este a ele. Sobre a importância do efeito antes da causa para o cinema. no entanto. é a razão pela qual João de Deus pode brincar com as palavras e. Ele escolhe primeiro mostrar o personagem que reage à visão de Joaninha. tanto quanto a ligação que estabelece entre o virtuosismo e o maneirismo. 3. cuja nuca ela acaricia desde que se dá conta de sua presença. o escriturário. Contratado num escritório próspero como escriturário. segundo o autor. a figura excessivamente íntima de seu marido Nick ( Peter Falk). inteiramente sob a esfera do possível? amical por se assemelhar a qualquer outro homem?). Bartleby. alguns fenômenos muito complexos. a reconhecer? Isto já não equivaleria a uma admissão de que. a princípio nos parecem incompreensíveis: este homem ( O. a fraternidade. delicados ou que se encontram entre os mais arcaicos na história da representação sofrem aqui um tratamento resolutamente claro. Um parágrafo introdutório. para em seguida lhe perguntar pelo nome. fora em parte inspirada pelas idéias de Ralph Waldo Emerson. Por outro lado. Ele não toma por ponto de partida as figuras que se abraçam. O transcendentalista. e ao filme de colocar em seu frontispício a silhueta de Garson Cross como o emblema da seguinte questão: o que posso saber de um corpo? há algo a saber sobre um corpo. Jensen. neste personagem casual. G. sobretudo seu ensaio. de antemão. explicativo. e que. uma história de Wall Street: Novela de Melville. o que significa ser um ator. Encontram-se assim . se encontra a idéia de que “a graça excede a medida”. onde o contato se dá mais estreitamente. em Uma mulher sob influência. 2. Tão radical é a singular intransigência que este acaba por morrer de fome. Rainer Maria Rilke: Auguste Rodin.portador de uma dimensão de excesso. John Cassavetes: Uma mulher sob influência. Dentre os traços definidores do maneirismo pictorial. e esta indefinição é o que leva Mabel a reconhecer no dia seguinte. De Dieu qui vient à l’idée. Paráfrase irônica com o título de um dos capítulos das Meditações de Descartes. Notas do tradutor: 1. Ele começa pelos recantos.Drun) que Mabel encontra no bar. ( 1903). ele nos escapa? Uma mulher sob influência é um filme concernido pelo princípio que talvez mobilize da melhor maneira as potências figurativas da cinematografia: a plasticidade das criaturas. Que Dieu me vient en aide : Em francês no original.O personagem é analisado por Deleuze em seu Crítica e clínica. Inciptu: consiste nas primeiras palavras de um texto literário ou nas primeiras notas de uma partitura. ela o conhecia ou não? Esta questão permanece indefinida ( trata-se de um amigo próximo? parente? amical porque ainda desconhecido. rindo. Certos atos extremamente simples. publicada em 1853. ou a fórmula”. mas agora da definição: a loucura. num texto chamado “Bartleby. não mais sendo trabalhados por valores indefinidos. Fabien Boully Tradução: Luiz Soares Júnior Die for Mr. ali onde algo de novo se produz ele inicia seu trabalho e consagra todo o saber de seu instrumento às misteriosas aparições que acompanham o nascimento de uma coisa nova. com o indefectível: “ I would prefer no to”. não há modelos que ele dispõe e agrupa. Bartleby é um personagem que se recusa a cumprir qualquer dever ou atividade que lhe são prescritas no trabalho. como se nos pontos culminantes da obra. respondendo sempre com um “I would prefer not to”. Spaghettis? A loucura. não é louca ao ponto de uma diferença irreparável para com os outros. Do you want me to do it?”) ou não sabe o que faz. suas aparições subitamente organizam um espaço até então amorfo: Mabel. cujos antecedentes encontraremos na gentilezza de São Francisco de Assis e de seus companheiros. amigos. Sua loucura é aquela da grande solicitude. provocando a hilaridade em pleno furacão de sua grande e dolorosa cena de histeria. disposto a prolongá-lo por excesso.sobretudo gestos. Nick.and I belong to you”. de que Mabel não cessa de dar provas na primeira parte do filme. mesmo que apenas por um instante. aparece como um dom: no sentido do dom de si e do talento que nos foi proporcionado. ordena às cerimônias de alegria. inclusive a família.I’m a good mother. antes de sua internação. dinamizada por esta idéia inicial de que “as formas da arte registram a história da humanidade com mais exatidão que os documentos”. ao contrário. excitada por tudo o que ela encontra .implicados. uma vez que ela é a única fonte soberana de suas ações. a força que uma síntese temporal atribui a temporalidades frágeis ou da discrição que é conveniente na abordagem de fenômenos devastadores: “Quando vemos esta mulher sozinha ao telefone durante dois minutos. já que este ressoa intensamente em si. Mas como descrever na tela que uma mulher pode enlouquecer por ter ficado sozinha por trinta segundos?” A obra de John Cassavetes pertence à tradição de Faulkner e Schoenberg . o orgasmo ou o tédio podem nos levar à loucura. “ a arte se dirige ao sofrimento real”. Seu programa. escrevia ainda Adorno. obras que trabalham as profundezas das formas. é preciso sentir que ela pode enlouquecer. parentes). uma característica no entanto a distingue dos outros homens. profundamente atenta para com todos com quem ela interage. que identifica o trabalho de construção de seu filme à tradição de experimentações modernas sobre a estruturação de uma obra. grita ela ao pobre dr. de captar ao menor frêmito cada afeto. ela parece viver segundo impulsos irracionais. ora triste ora ardente da reunião ( operários. Pois o dom de si provém desta faculdade de esposar todos os registros “pathiques” 1. e é o programa do puro amor: “I have five arguments in my favor: Love. construídos sobre uma alternância permanente entre o patético e o burlesco. Este último caso dá lugar à cena . e não a uma aparência das paixões. uma vez que cada um se distingue de todos os outros: Mabel tem um projeto. Zepp ( Eddie Shaw). não o conclui ( cena da celebração fracassada que ele organiza para o retorno de Mabel da clínica: “I can’t do it.Na vida. em Uma mulher sob influência.nos Onze Fioretti de Saint François d’Assise.Friendship. É o gênio da inventividade transbordante. que nos dão a idéia de uma completa liberdade. consiste em cinco argumentos. a conduta de Mabel é fruto de uma clareza e simplicidade radicais. na contracorrente das ações indecisas. e de imagens.Comfort. de forma surpreendente mas com grande rigor. que revela ao marido quando da grande crise.. Se ela não constitui a diferente( différente). o personagem de Mabel fulmina de uma réplica à outra: “Get back to your coffin!”. Ela preside à mesa do almoço com os spaghettis. Mas se o filme de Rossellini muda de registro emocional de uma seqüência à outra. cada impulso emocional do outro. crianças. ao contrário: ela se encontra no próprio princípio da comunidade humana. até o ponto drástico de tornar-se seu único pretexto e meio de advento. hesitantes e coagidas pela instância social dos outros personagens. por exemplo.. é sempre o centro. tal como é construída pela mise en scéne. não cumpre o que promete ( firme decisão de não partir para uma noite de trabalho: logo o encontramos no canteiro de obras). Cassavetes assinala um dentre eles. Mabel recolhe a sociabilidade de todos. uma vez que. Neste sentido. certos procedimentos descritivos típicos do cinema. uma linha de conduta. “Eddie the Indian” ( Charles Horvath). depois saindo deste lugar . É Mister Jensen ( Mario Gallo). o filme precedente de Cassavetes. em sombrios closes estabelecendo maus raccords com os claros planos de conjunto de Mabel entrando. atualiza sua estupefação. o que permanece para sempre inassimilável: seu corpo. Rilke sobre as “coisas” de Cézanne. A cena do canteiro. só se encarregaria de implantar a confirmação). com suas fronteiras simbólicas. com seu vestidinho curtíssimo. a seqüência em travelling do acidente de um operário. ora como a difícil cura de duas consciências enérgicas ( e a seqüência final. É claro. Minnie e Moskowitz. seu sopro? Estes elementos esposam de maneira exata a forma de sua presença no mundo? que traços seus eclipses ou sua desaparição deixariam? E por exemplo. Ou antes: ao permitir estas duas apreensões antagônicas. como queiram. fugindo da depressão a qualquer preço. o que me foi dado a ver. ao mesmo tempo e sem que haja a prevalência de uma dimensão sobre a outra. o tratamento plástico. A casa. que evoca irresistivelmente o de Barbara Lodan em Wanda ( o outro grande filme americano moderno sobre o desespero das mulheres) ela pergunta a hora com seu entusiasmo típico. não vemos se o operário está morto ou ferido. cláusula lógica. mas tangível”. literalmente. se organizava segundo uma dupla estrutura: podíamos assistir à tumultuada aliança entre Minnie e Moskowitz ora como o prolongado mal-entendido de duas criaturas desvairadas. pois. os faux-raccords magníficos tornam o evento ilegível.mais sutil de Uma mulher sob influência. quando no entanto este personagem era o único que não tinha zombado da internação de Mabel. Parece-nos agora impossível subscrever à leitura deles: a decifração do comportamento de Mabel apenas pelo diagnóstico da loucura. que se assemelha à cratera de um vulcão. seu palco principal. não compreendo absolutamente nada. ameaçado por Nick. para quem as crianças deverão morrer. a propósito da própria Mabel: quem a toma por uma louca? São. se encontra estruturada por um complexo: o da culpabilidade experimentada por Nick em relação a Mabel. É preciso retornar ao real da visão e da escuta. desliza ao longo do imenso declive de pedra do monumental canteiro. A figura de Mabel. encarnada na forma de uma queda de pesadelo. uma catástrofe. os transeuntes aos quais. se expõe a parceria de uma atriz e de seu metteur-en-scéne. e que não aprecia nada a ostentação da expressividade infantil. ou seja. Uma mulher sob influência se organiza também segundo uma dupla estrutura simultânea. mas vemos perfeitamente que este concentra a angústia e o sofrimento de Nick. sobre os limites da representação figurativa: “incompreensível. a própria tarefa da interpretação mostram-se terrivelmente insuficientes. encontrava seu sentido: do que me importa absolutamente ( o objeto amado). a feliz excitação de esperar pelo ônibus que trará suas crianças da escola. uma surpresa contra toda expectativa precedente). compreendemos mal a causa desta queda ocasional. salta e brinca diante deles. notadamente. ao dançar O lago dos cisnes. leva o filme a renovar as modalidades da descrição: deste ser diante de mim. no intervalo preenchido entre evidência e mau-entendido. suas coxias ( onde se desenrola a cena mais intensa. Súbito o operário cai. Era possível ver em Minnie tanto o filme da patologia cotidiana quanto das contingências de um amor inelutável.princípio de Mabel. o filme. o burlesco ou o dramático. ( e a extasiada seqüência final sobreviria como uma queda .eu lhe pertenço de corpo e alma. de clima realista. seu gesto. esta mesma estrutura redobrada no “sucessivo”. entendemos apenas que Nick é o culpado. ao sensível e à sensação. construída sobre o princípio desta infinita solicitude segundo a qual a compreensão do Outro não implica na capacidade de compreender as coisas. tratam-se das relações entre uma mulher e seu marido mas. como nos filmes de Bergman. na cobertura do caminhão . quando da seqüência do almoço com espaguetes. a necessidade do duplo. Os diálogos dos reencontros entre Mabel e Nick .fechado. o que o filme nos descreve da apreensão e da inteligibilidade dos atos. nos é oferecida em duas versões. No entanto. a serviço desta “deformação” vocal . Talvez seja isto o que suscita a loucura.. se afirma em si algo a respeito da função do ator: que seu trabalho não é uma metáfora. onde a experiência ainda não começou. de areia. neste lugar onde o primeiro. algo alheio à vida. com uma voz nada histérica. vem ocupá-la (as torrentes de água. esta estrutura dupla. é o próprio filme que pede a Nick.pede a Nick para que repita seu texto: a insignificante observação de Nick. perfeitamente natural. do corpo de Gena Rowlands. como desejo de “mise en relation” 2 e troca. a real beh-beh ! ». a primeira um pouco chã.quando ele se recusa. O que o filme nos descreve da experiência sensitiva de Mabel. vê-lo igualmente onde ele não se encontra. age no sentido de nos alienar definitivamente do referente: pois o atordoamento provocado pela súbita passagem de um corpo verdadeiro remete o conjunto da ficção ao registro da representação: nós não estávamos assistindo à aparição de uma presença. E isto nos indica uma função do ator segundo Cassavetes: ele é aquele que se põe no limiar da inconsistência das coisas. o filme nos dá sucessivamente a versão de Mabel. por exemplo. ela reencontra suas crianças) e a faculdade que possui Mabel de transformar todo espaço em tripé ( inclusive uma mesa da sala de jantar) abriga antes de tudo um teatro e sua trupe. onde o mínimo gesto pode criar um mundo e o encontro com o desconhecido. completamente desastroso também. onde a sensação não mais constitui lei. onde tudo ainda está por ser inventado. ao telefone. segundo a vibração de seu sopro e em suas intermitências. entre lágrimas e tormento. tudo sempre nos conduz ao plano mais sensível dos fenômenos. a propósito da aparição súbita das crianças na rua após meses de ausência. um reflexo esvaziado de substância. tépido e abstrato onde. etc) constituem o seu próprio fim. A irrupção de um corpo real. onde a importância e a gravidade da questão colocada pelo ator ( a adesão a si mesmo. O filme impede. também esta mobilizada ( “Come on! Stop with the jokes! Conversation! Normal conversation! Family atmosphere!”) são a recitação dos conselhos rituais do diretor ao ator: « Just be yourself. « Give a beh-beh ! Better than that. Enfim. e seria preciso comparar aqui a festa infantil para Mr. súbitas homogeneidades do plano excessivamente vazio ou cheio. realmente vê-lo. Be yourself ! Do what you want ! » e as interpelações naturais do ator ao seu metteur en scéne: « How am I doing ? » E se Nick pede a Mabel para executar sua expressão favorita. ou quando tira a roupa. evocação da imagem em sua textura). ser a matéria de . em seu gesto e nos gestos que ele não executou. como uma leitura à la palco italiano. orquestrada por Mabel. e o piquenique marítimo organizado por Nick. sobre a mesma situação. mas de um natural que produz uma terrível cisão. Jensen. Estávamos vendo e entrevendo a totalidade do trabalho do ator. . diante da família espectadora . depois de ter enfim feito as crianças dormirem: Mabel se volta para Nick e subitamente. que sem dúvida é inteiramente investido pelo personagem. a segunda super-expressiva.esta não se apresenta de uma forma reflexiva. de sua invenção permanente de eventos afetivos e ginásticos. no momento em que ela desce novamente as escadas. muito aplaudido também. interdita explicitamente semelhante fechamento. Ver um corpo.a mesma trama narrativa. Gena Rowlands lança a seu marido ( Peter Falk/ John Cassavetes): « You know I'm really nuts ». estas matérias que às vezes invadem a imagem quando Nick. mas talvez não tenhamos visto nada do próprio ator. apenas ao magistral espetáculo da plenitude criativa. mas que nos oferece uma sublime descrição da afeição paterna. a ir trabalhar. depois a de Nick. graças a quem as paisagens adentram o filme. em favor de uma réplica de Mabel na última seqüência. mas o que anima a vida em seu princípio. muito próxima de sua boca. por exemplo) e remonta. nem a adesão a si mesmo. de afecções e de signos resolutamente inédito. Nisto.seqüência das crianças e da avó. O problema da criatura em John Cassavetes não concerne à identidade. que enxerga a si mesmo como o guardião do Ser e dos outros ( aí temos a tirada assustadora e burlesca a respeito da mãe de Nick: « I don't like this woman in my house guarding the staircase. em cada uma de suas espetaculares entradas em cena. or what? Which self? O ator. convidados a juntar-se aos pais no leito: a que grau vai se operar a fusão e quais qualidades esta vai liberar? Modos de troca. engendra um repertório de paixões. que não visam igualmente o conhecimento. Mabel aceita. o experimentável. She's guarding the staircase from me. ou entre os elementos de um conglomerado de corpos. como a portadora do mistério da pessoa. O gestual de Mabel toma empréstimo ao repertório americano ( o « Stand up for me. Up above are my children in my home and she is the kiss of death ») ou guardião de si mesmo: Mr. como quando Mabel faz sua primeira aparição no filme.uma pura possibilidade. a pantomima. Which self? O ator em Cassavetes vem efetuar uma improvável ciência da subjetividade. vertigens. como tocar a este homem? A atriz trabalha sob o império destas questões. equilibrando-se sobre o velocípede de seu filho. os saltos acrobáticos. ao mesmo tempo verossímil e virtuose. mas que a fazem advir. ele canta Verdi. Dad ». põe-se a cantar. intensidade. talvez a mais extraordinária. densidade. que se recusa a dançar e brincar de morrer. recusa a evidência do descontínuo e da intermitência. Ele concerne à qualidade de fusão entre dois corpos. leva-a a se inclinar sobre um corpo: um dos convivas. cintilações. na intuição de que sua criação possibilita ao humano a experiência. quando este é vivido na experiência comum. em jamais o menosprezar ou recalcar. E sua criação própria consiste em tornar este mistério inesquecível. Celeste Aida. uma vez que o próprio ator já está ciente de muitas outras retóricas. sua conduta se torna insuportável para quem prefere viver no esquecimento da “precariedade das coisas”. napolitano ( os gestos de maldição. muito próxima de seu canto. tomado ao James Dean de Juventude transviada). Jensen. How do you want me to be? Nick: Yourself. Willie Johnson ( Hugh Hurd). Mabel: You mean funny or sad or happy or shy. acolhe. muito próxima a seu rosto. às vezes decepcionante é claro. no modo de uma infinita e sem reservas abertura ao Outro. e encontra. que engendraram a ambos. Mabel se aproxima. recusa-se a assistir à morte do outro. Esta abertura ao encontro sob o modo da fusão. mostra-se aqui sabedor da origem e da diversidade do ato criativo. ao longo do filme. se inclina. que passa também por um reconhecimento da relatividade de si. com freqüência. um operário negro levado por Nick para o almoço. um número inacreditável de gestos para representar seu desejo. Uma das invenções de Mabel. que não admitem necessariamente respostas. ela se . busca o outro como se tivesse fome dele. Ela busca o segredo da voz. como no encontro de Mabel com Garson Cross). do aparecimento eventual e incondicionado de um movimento ou de um afeto extraordinários. do qual sou soberano. e ainda mais remotamente. e ainda menos a identificação do outro ( basta “dar uma cheirada nele”. ela quer descobrir o segredo da beleza. Mabel: I don't know what you want. às origens da arte do ator: a dança. O que é um corpo. e ao longo do qual se avança. pode-se dizer que é o melhor realizado. Figurinos estereotipados.é algo habitual.e com freqüência é falso dizê-loque todo grande filme é um documentário sobre sua própria filmagem. 2. embora secundário nos créditos. Tourneur tira o máximo. quase todos. durante todas as etapas deste trágico e triste trajeto. que tem as cartas na mão.do roteiro e de suas condições de filmagem. L’invention figurative au cinéma. Semelhante porque Wichita é. Nicole Brenez. uma mulher que anuncia o que vai se passar. e de forma semelhante em Wichita. enquanto a monótona espera por alguma iluminação que viesse pôr um termo ao nosso medo nos mantém na angústia total. Passa-se de outra maneira. Angústia causada. devido à sua hibridez.aproxima deste homem como se estivesse a redefinir o corpo do outro. Tradução: Luiz Soares Júnior. principal ele também. como bonecas feitas do mesmo molde) não é nada além disso ( nenhum a priori teatral ou linear. um roteiro complicado e um filme entre dois orçamentos: nem a superprodução. atores que tem quase todos o mesmo talhe e os mesmos traços. Em francês no original: colocar em relação.central. uma aberração. Uma exceção: um personagem. suas roupas). o vazio. que dá as cartas. por um galho de árvore que se quebra sob o peso de um leopardo assassino e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta..De outra forma porque se trata de um roteiro complicado. Os dois primeiros são Cat people e Walked with a zombie). Notas: 1. isto que se sabe o tempo todo. Não como se deve( on doit) entediar. uma rua.confusamente. o ar. Jacques Tourneur. ( Maurice Merleau Ponty). relacionar. Nenhuma relação. e dela nos oferece a intuição. recusou um projeto de filme. De Leopard man. com uma exceção ou outra. a angústia ordinária. desta pobreza de contrastes. o filme que mais perfeitamente dá medo da história do cinema: a estrutura da história ( uma rua. Um cenário praticamente único. o intervalo entre os atores. por Louis Skorecki Por que acho que Tourneur é o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de resposta os dois únicos filmes que tivemos a chance de ver dele ultimamente: Leopard man e Wichita.que organiza o roteiro. de forma tão sisuda. (. Enfim. e até mesmo o espaço entre os atores e seus personagens. um filme monstro. Com freqüência se disse. seus figurinos.Desta mediocridade.). sem dúvida um homem . pático: Termo da devoção mística: refere-se àqueles que permanecem sujeitos às suas paixões.. Tudo sob uma transparente luz. em primeiro lugar porque não é um roteiro muito bom.com os grandes clássicos da pretensa história do cinema. livremente aceita por Tourneur. só se trata para ele de filmar o entre-deux -o interstício: o espaço. alguns personagens em miniatura. e como se ela visse aquilo que só poderíamos ver a partir de sua intervenção: ela vê a sensação do canto. (roteiro que Biette errou ao tomar ao pé da letra. nem o filme B. Neste filme isso é verdade: um homem de mais de quarenta anos ( Joel McCrea). o mais perfeito e representativo da série dos três filmes produzidos por Val Lewton ( é o último. mas também porque Tourneur não se importa em nada com temas e tramas.que nunca. uma rua principal. trans-lúcida. O Ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos a experiência. nenhuma ambiência onírica e poética convencional). um filme sobre o tédio e um filme onde nos entediamos. com o cenário. De la figure en general et du corps em particulier. os personagens de uma história são perfeitos desconhecidos. constitui a força da fábula.. não velar os próprios olhos diante da persistência do real. status de préhistória. mais de cem dentre os mais belos. ( culpados simplesmente por serem parentes dos atores do drama). destas manchas do real que são as efetivas marcas sobre a tela de uma experiência única do invisível. Na verdade.de ilustrar. tal qual). a fim de impor a lei e a ordem na pequena e próspera cidade de Wichita. da rigidez. um pequeno filme intimista. isso dá medo. por uma espécie de orgulho de último minuto que sempre lhe permitiu saber que ao fim de . cineasta prestigioso que Jacques. em pessoa: no cadre de uma janela. Ludwig). sensível.e para Jacques Tourneur tudo é possível. Tudo está no cadre.e sobretudo distanciado de seus colegas. Nada existe. um velho amigo com olhar cético e divertido ( mas sempre correto) que devia estar se perguntando. os mais dotados artesões do filme B ( Ulmer. e sob forma de Versions françaises tão podres quanto). Nada de fora de campo. Dwan. deslumbrados. mas muito intoxicado de admiração por um modelo por essência fora de alcance ( seu pai. ele já estava além ( il était dejá ailleurs).. passam. no cadre. para nós. basta olhar o filme. orgulhoso. mas de um invisível que é capaz de se ler e se desenhar sobre a tela: os traços estão lá. uma série de vinhetas sobre a vida de uma pequena cidade americana. hoje em dia. num piscar de olhos. porque (. Heisler. porque ele escolheu: ele filma ao pé da letra e de encomenda os protagonistas entediados e fantasiados desta mascarada histórica que reconstitui as historiazinhas verdadeiras do Oeste folclórico ( e nos entediamos como eles ao vê-los ocupar da melhor forma que lhes é possível todo espaço impossível a preencher do Cinemascope. quando o descobrimos. se persuadiu de jamais poder igualar). na velocidade mais terrível e mais inexorável.inteligente. incomodado em suas roupas de justiceiro em missão implacável. Quando o fazem. no começo dos anos 60. as pegadas. diante de Joel McCrea.seis anos antes. cujo mistério não deve ser esclarecido ou explicado” ( Jean Claude Biette). E não há nada mais a dizer. e basta.) “ ele adorava a idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e esperam muito tempo pra tomar um trago.e dentre os piores. bebem muito e quebram tudo. de todo movimento. uma criança e uma mulher.. Além: inconsciente de sua própria importância. Maurice.de filmar.e isto é mais do que suficiente. no cadre de uma porta. toda sua vida. “Para Jacques Tourneur. Isso se passou. e esta violência que explode mortalmente e que. arrastados por duas balas perdidas e precisas. para ele. como ao mesmo tempo e de forma bem correta filmar as inépcias de um roteiro para crianças retardadas.westerns. para ele. Tourneur não existe.senão a complexidade fiel e minuciosamente transcrita de um découpage impossível de se acreditar mas possível. Jacques Tourneur não está se perguntando por nada. mas Tourneur filma também a morte. E tudo isto diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur ( com quem ele rodou. assim se vê. A morte é a parada( arrêt) brusca e irreversível de toda vida. arrasado de tanto cinema. O cinema de Jacques Tourneur é sim o cinema do invisível. nos cinemas dos bairros podres. Acrescentemos: nada existe além da fidelidade a mais escrupulosa possível ao découpage ao qual Tourneur escolheu se submeter. na época”. um velho e divertido amigo que devia estar se perguntando. em seu pequeno fora de campo apaixonado e pessoal. quando filmava em Hollywood e. e as sombras.. que no entanto Tourneur consegue ocupar inteiramente: mas nesse caso trata-se de um tédio formidável. um filme que é para ambos a mais bela lembrança e o mais belo momento de suas vidas. No momento de seu esplendor ( ou seja. É real. O que ainda se movia há um instante é marcado definitivamente pelo selo da imobilidade. o célebre justiceiro do Oeste. do estado de vida ao estado de morte. nada existe além do que está na tela. de uma inteligência e precisão fotográficas como só nos podem mostrar dois mecanismos que possuem para nós.. é assim.). obrigado a se fantasiar de Wyatt Earp. Stars in my crown. é isto o que ainda hoje constitui o gênio inacreditavelmente tímido do cinema de Tourneur. Se alguém vai falar. Unicamente sob esta condição ( que é mais fácil de enunciar que de “preencher”) pode-se penetrar em Canyon passage: da abertura mizoguchiana ( em primeiro plano. como ele quiser.espectros ( revenants). (. toda a mise en scéne que se segue: uma maneira única( e inimitável) de filmar os atores como dóceis fantasmas. Talvez tenham razão. É preciso lavar os olhos. que desconfiava de tal maneira dos montadores que evitava filmar um metro de película a mais. desaprender os “frou-frous” de imagens e de sons que nos jogam na cara em golpes furiosos de zooms. Um cinema cuja fase perversa mais consumada é representada por Jacques Tourneur. claro.. Tudo está dito. Então. de qualquer modo. a nós. o próprio som é muito importante. não conheço outro. que literalmente desbota. corto todo o som e não se ouve o ruído dos passos. Depois.. Mas para realmente vê-lo. É por isso que faço minha própria dublagem de som no estúdio. um cavaleiro se . é melhor apreendido. sombras familiares. vocês vão ouvir atores. dito bem mais baixo. quando por acaso os encontramos? Esta questão se pôs no domingo passado ( exatamente.sempre preservando-o previamente das alterações que Holywood número 01 com certeza decidiria impor? Nenhum.Coisa rara: personagens que murmuram seu texto.. Sigo sempre de muito perto a sincronização e montagem sonora de meus filmes. que poderia servir para forjaram uma outra versão às suas costas).) Jacques Tourneur: “Reparei que . enquanto ele atravessa a sala ou sobe a escada. a escada. Assim que o ator terminou de falar ou de abrir a porta. mudar o ritmo da visão.) este Tourneur trata-se de uma absoluta maravilha. Com freqüência.. os técnicos vão manter todos os sons.eu sei que quando o filme estiver terminado e eu não estiver mais lá. destas essências de obras-primas. que esperamos tolamente dos filmes que não continuem a se atolar neste neo-classicismo amorfo. se levanta ou vai caminhar. Um cinema que. na FR3. os técnicos não farão besteira na dublagem. põe-se uma única questão: que fazer desses filmes tão perfeitos. 28 de outubro de 1985) quando Brion exibiu no Cinéma de minuit. duplo. que esforço é preciso fazer! Esquecer de forma ativa os filmes com que o cinema e a tv nos galvanizam há anos. confessemos tudo. nos é a cada dia mais inútil. faço isso: deixo primeiro o ator interpretar a cena. que outro cineasta desenvolveu um sistema holywoodiano bis. Fora isso. Assim. corto o som e ocorre um grande silêncio. tem mais intensidade. os passos. um dos mais raros filmes de Tourneur. Me criticam dizendo que dessa forma minhas cenas ficam um pouco sem brilho ( ternes). um elemento de verdade”. sei que. eclipsando tudo ao redor dela). O mais miraculoso é que a obra de Tourneur permanece exatamente igual ao que ele descreve. os atores tem tendência a gritar. E . (. depois eu ir embora. para apreciar sua inteligência clássica. Que outro cineasta hollywoodiano ( salvo talvez John Ford. Se um malfeitor entra numa casa e vai subir uma escada. a chuva respinga sobre o teto. mas acredito que isso lhes acrescenta. Às vezes tomo grandes liberdades. inexpressivas. lhe digo: Muito bem. Canyon passage ( 1946). Refaça exatamente a mesma coisa. Revejam Appointment in Honduras ( se puderem arranjar uma cópia): efetivamente. aliada a uma insensata preciosidade do trabalho sobre as cores ( a robe amarela de Ann Sheridan. O mesmo diálogo. Esta ternura pelos atores. na maioria dos filmes. Ann Sheridan em particular.a porta. mas fale duas vezes menos forte. último sobressalto de cine-teleastas desesperados por terem perdido a receita ( estúdios+ grana+ engenhosidade dos artistas-artesões + inventividade de uma arte industrial em pleno boom) do velho verdadeiro cinema clássico. que não gritam. não gosto de misturar os sons.contas o gênio era ele. Susan Hayward. uma outra cena. E Dana não perde tempo: tasca em Susan um guloso beijo na boca. súplica dos mortos. Não há ninguém à sua altura.estes enunciados sugerem. Brian permanece imóvel.aproxima. não é?).e também uma espécie de eco amplificado do grito mudo dos mortos. o afresco de mil desejos que se entrecruzam e o mais belo melodrama homossexual jamais encenado. falarei em primeiro lugar de Truffaut ator. que capta o olhar terrificado de duas crianças ( com a velocidade da bala assassina. um ladrão visto de relance que foge por uma janela quebrada. alguma atonia e mortificação da voz em proveito do texto. uma emoção alheia às modulações expressivas habituais. com um acento violento. vigoroso. o próprio tônus da paixão. ele é o único. O quarto verde. é claro). Bom dia. A inteligência de sua interpretação é marcante: “monocórdio. seu corpo atarracado teso. ninguém filmará assim depois. a voz de Truffaut é. Como nesta inacreditável provocação de Bryan Donlevy a Dana Andrews: “Você faria melhor?”. bressoniano”.de Wichita)? Ninguém. sentimentos em suspensão. trata-se do mais belo filme francês destes últimos anos-. ( e estão aí para desencorajá-los a ver. a quem não viu o filme. Mas se o diálogo é constantemente admirável. de Julien Davenne. Lumiére inventa as imagens. a voz de Trufrfaut o leva à incandescência. Não o último cineasta: o único. convivialmente – o sentimento da felicidade que perpassa ( talvez pela primeira vez) sobre a tela.como se jamais tivéssemos visto índios no cinema. quando nesta voz ressoa totalmente um outro som. A preguiça e a imbecilidade se notam quando se ouvem os epítetos “monocórdio. é esta violência da paixão. no tempo de um único filme. paisagens de sonho atravessadas com a velocidade do technicolor: todo Wenders aqui desfila em trinta segundos! E ainda: peso opressivo dos corpos. Canyon passage: ao mesmo tempo uma saga americana. Tourneur se encarrega de destruí-las. Tal é o personagem e tal é o ator. ( Câmera/stylo número 6. perturbadora. O que ouvimos ao longo de todo o filme na voz de Truffaut. É isso. do começo ao fim do filme.da idéia fixa e do coração inflamado. Cinema. ao acabar de beijar sua noiva. E antes de tudo. Tourneur não existe. profunda.de criança também. um western documentário. exigência infatigável. Esta voz é um sintoma: o sintoma da preguiça e da imbecilidade de uma boa parte da crítica de cinema na França. Louis Skorecki. em sua extrema debilidade diante do tempo e do esquecimento. Ninguém filmou assim antes. François Truffaut Posto que. Índios seminus que subitamente aparecem. para quem tem dois olhos para ver e ouvidos para escutar ( o cinema também é som. Ora. A moça em um instante é eclipsada. E assim vai. E ainda: uma casa que se constrói coletivamente. perturbador e admirável. E seria . uma outra onde uma idéia nasce literalmente sobre um rosto ( Brian Donvely decide tornar-se assassino). Jacques Tourneur: Alguém disse outro dia uma coisa divertida: uma flor que colhe a si mesma comete um suicídio”. de sua voz. Disputas de sombras sobre um muro. uma epopéia doméstica. depois chega.o ritmo da elipse. maio 1986). uma história de paraíso perdido. Madame Televisão. a todo instante tensa.a câmera desce para se pôr à sua altura) a uma sucessão de preguiçosas vinhetas que desfilem no ritmo mais speed imaginável. da muda solicitação. bressoniano”. inventar uma cena cega na qual um homem ( Ward Bond) despeja toda sua fúria sobre um poste. Tradução: Luiz Soares Júnior. anti-cinema. Passamos aí a uma outra coisa. Que outro cineasta saberia. tão avessa em aparência às preocupações mundanas. esta pornografia da morte que dá o valor ignóbil de certos documentários. o filme sustenta o mesmo discurso que Bazin. como diz o narrador do Bleu du ciel. Bazin em seu texto denunciava o que ele chamava uma “obscenidade ontológica”. Ns realidade. e Truffaut não é apenas autor.implicando seu próprio corpo. a capela dos mortos. A câmara verde. sobre filmes de atualidades. se assim podemos dizer. mas também crítico. cerrado. a história de Julien Davenne. até chegar aos seus mortos. Raramente um filme. se implicou a este ponto. onde brilha uma chama às vezes material. e de alguns outros textos do mesmo autor. E implicando seu corpo ( que se capte toda a ambigüidade da palavra. e que neste. foi capaz de bombardear de tal forma as marcas do sujeito da enunciação como este aqui.. Em aparência. e o escândalo desta morte violenta. ao mostrar “ na dura” . ou fixados. destes olhos realmente estranhos. Julien Davenne. pois aí começa o que devemos chamar ( e aliás o que Bazin. mas fragilmente sobre placas de vidro ( quebradas pela criança muda em uma cena breve). 3 Mas não a imagem de sua agonia ou de seu cadáver. através de uma fotografia e uma breve biografia. E é claro que é preciso aqui citarmos André Bazin. que sugerem uma indefectível angústia. de forma direta. Graças ao filme.é realmente um manifesto do cinema. em movimento ( créditos. sem dúvida ( e qual filme não se mostra comovente ao mostrar como vivos os desaparecidos?). o cinema como arte necrófila). ator e personagem. do particular ao mais geral ( a ligação tão secreta quanto notória do cinema com a morte. Julien Davenne não é de forma alguma um perverso. Tal é o . em O que é o cinema?) Manifesto do cinema. não para sempre. em sua dimensão mais metafísica. sem nenhum reflexo. não possui nenhum “gosto vicioso por cadáveres”. tão semelhante ao seu herói solitário. na capela de Truffaut). seu amor pelos defuntos é destituído de todo erotismo. vendida como documento sensacional. com a superposição do rosto de Davenne-Truffaut en poilu1). enquanto enunciado cinematográfico. designa por) de perversão. a relação que nós. raramente um cineasta “ se pôs” . Para dizer as coisas com mais simplicidade. é claro que eles nos transmitem a verdade do cinema. diz-nos exatamente o contrário. já que trata da importância vital. inextricável. antes do cinema.): é claro que estas câmaras obscuras. e o escândalo desta morte para sempre privada de paz.preciso falar também do olhar de Truffaut. onde o amor se nutre da morte. eternos remortos do cinema!” ( “ Mortos todos depois do meio-dia. mais religiosa: “Só se conhecia. de conservar a imagem dos desaparecidos. Não se compreendeu que não é sem razão que Truffaut encarna seu personagem. É claro que estes cadáveres captados no limiar de sua morte. inspirada no Altar dos mortos de Henry James ( também ele presente. com a fotografia de Cocteau e até mesmo a de Oskar Werner ( curioso arrependimento do autor do “Diário” de Fahrenheit. Esta história tão singular. ou conjunto de enunciados. Conservar a imagem dos desaparecidos. pode-se hoje violar e dispor à nossa vontade o único de nossos bens temporalmente inalienável. interpelados um a um. transformada em história de seu próprio calvário pelo cinismo das projeções permanentes. homens realmente na beira da morte. mesclando os mortos de Julien Davenne aos mortos de François Truffaut. espectadores.em seu filme. é a mesma preocupação que o anima. na capela ardente onde culmina o filme. a paixão de Truffaut). temos com esta moderna capela ardente .mas sim.a profanação dos cadáveres e a violação de sepulturas. no mesmo texto. O filme também nos apaixona porque o sentido flui e reflui em uma dupla direção: do general ao mais particular ( o sentido que este filme tem para Truffaut. estas câmaras são o cinema. o fogo sutil de um delírio de eternidade. tudo isto enredado. Mortos sem requiem 2. o ator e o personagem se entrelacem de forma tão estreita. um necrófilo. encontramos filmes que se assemelham aos personagens que figuram neles.em relação a este filme fúnebre).. com a intenção de se opor a ele. como bem escrevia Proust ( presente também em efígie na capela do filme). E remetamos ao diálogo entre os dois cineastas: Hitchcock: Há um outro aspecto que eu chamaria “sexo psicológico” e é aqui a vontade que anima esta homem de recriar uma imagem sexual impossível. Que a comunicação com o que perdemos seja .. por exemplo?) Esta cena faz Buñuel parecer superficial. que de um modo um pouco mais trivial e num tom menos altaneiro.. com olhos abertos pintados sobre as pálpebras fechadas) e exige que esta seja destruída pelo escultor. Como não ler em filigrana um desgosto. ou seja. já que ele pertence ao guardião. ( O cinema segundo Hitchcock). uma das mais belas do filme. é evidente que esta “figura de cera”. repito. não está em James. é uma exigente definição do artista. de alguma forma. reage com um horror violento diante da realidade desta fantasia ( realidade no entanto impossível de ser melhor “realizada” pois. de matar esta imagem sacrílega. no cemitério. como nos filmes de Cocteau. quase pânico. na ocasião. perfeitamente claro. maquiada para a circunstância. ao artista que não pode fruir de sua obra. A diferença é que não se trata. É possível que Truffaut. trata-se de necrofilia. aparece como uma monstruosa paródia da morte. esta figura de cera é de fato a atriz que encarna a morta. descreve em efeito uma trajetória análoga. este homem quer transar com uma morta. no Quarto verde de “dormir com uma morta”. escrevendo com Gruault a cena da figura de cera. Mas o essencial é que a tentativa é igualmente impossível. em lugar do que deveria ser interditado à representação? 4 Assim como James. desta facilidade suspeita e ignóbil em produzir os corpos. igualmente desesperada ( na cena que se segue à do manequim de cera.onde Julien Davenne. como um maníaco.se vi bem.. um protesto diante de um certo impudor do cinema. O “maníaco”. ou seja. Truffaut: Justamente. mas ela fracassa. esta é a corda de que O quarto verde retira sua vibração essencial. o espectador pensa em Hitchcock. da cena. enquanto obra de amor.a imagem dos corpos. as cenas que prefiro são aquelas em que James Stewart leva Juddy ao costureiro para lhe comprar um tailleur idêntico ao que vestia Madeleine.. “ nosso coração muda. mas de lhe conservar o amor intacto. esta inexistência. tendo encomendado uma imagem em cera da mulher desaparecida. É provável que tenha pensado em Hitchcock. é justamente este desespero que Davenne confessa sentir ao túmulo de sua esposa). Em todo caso. este círio faltando necessariamente no edifício de fogo. ele parece nos dizer que unicamente a arte. o cuidado com que ele escolhe os sapatos.aliás. tanto quanto um livro.Poderia. este corpo duplamente inanimado. para dizer as coisas às claras. não possa realmente conservar vivo um morto ou um amor. Truffaut não crê na existência de relações sexuais ( se preferirem: não crê em sua capacidade de representação) se. poderia preencher esta falha. que. no Altar dos mortos. um horror. mas à aventura de James Stewart em Vertigo. como James. a leva a morrer uma segunda vez. daí a necessidade de destruí-la.Que um filme. No entanto. ao oficiante e à testemunha. o homem refém do impossível. Esta cena. e que esta. pelo menos do meu conhecimento.sentido. Nenhuma explicação nos é dada sobre o horror. e esta é a pior dor”. a famosa” imagem no carpete” . O passional projeto de Julien Davenne evoca um outro no cinema. se comporta exatamente de forma contrária ao personagem dos personagens de Buñuel( Archibaldo de la Cruz . Não me refiro ao Homem que amava as mulheres. pois a arte é indefectivelmente lacerada pelo que a assombra. tenha pensado em Buñuel. ou. ela é muito cinematográfica para não ser reivindicada unicamente por Truffaut: como não ver que Davenne. do personagem. no Quarto verde. a gangsterização Sinatra. incansável e unicamente a eles. foi Lang sim quem filmou os embates amorosos de um jovem rapaz com trejeitos de moça ( Jon Whitley) e de um pai substituto. Estamos em 1955. o argumento do filme de Truffaut.. a resposta secreta que deles esperamos? Aí. há vinte anos. Requiem ( latim): Missa fúnebre. os cabelos de cor indefinida. e que vive ainda ao vosso lado. Não estamos nas bichas. estes escárnios adquirem um outro sentido. falar-lhes a sós: são mudos e não nos respondem. correu ao máximo este risco. 4. com o desastre Presley. em filmologia. Não estamos em Losey. e que não podem dar. como se diz em português: alguém que tem pêlos nas ventas. Em francês no original. parece-me claro que este toma seu ponto de partida em uma essencial insatisfação diante da emoção um pouco boba sugerida aqui por Elie Faure. maio 1978) Pascal Bonitzer Tradução: Luiz Soares Júnior. Diante do argumento do filme ( que é igualmente o da novela) . O pequeno Mohune. de maneira nenhuma. É arriscado no cinema. Ok. como bem nos lembra a cena do roubo) mas também que esta impossibilidade é a prova de uma fidelidade que é a única coisa que conta. E é isto o que faz de O quarto verde obra tão bela e tão forte”. charmoso demais para ser . mas o pai de Moonfleet é um cafajeste. referente à significação da palavra “poilu” ( peludo). criança efeminada. o pequeno Mohune é oferecido em holocausto. 3. a meu ver. Nota do autor: A “facilidade” em questão se chama. exatamente. Eu sei que o cinéfilo de Moonfleet tem os cabelos verdes. Tu achas que ele vai questionar seu querido Stewart Granger? Stewart Granger é um verdadeiro herói underground.). é preciso morrer. mais que em outras artes. não? Não. 1959). Apelido dado aos soldados franceses da Primeira Guerra. como um Ballantree de opereta. compreende-se os escárnios com que por ocasiões o público francês acolheu o filme. 2. Faça-se uma idéia das telas pintadas e das canções de Luis Mariano.. Nota do autor: Ellie Faure: “Você vê reviver diante de si a mulher que amou vinte anos antes. Em Moonfleet. 1948. Moonfleet e Rio Bravo Moonfleet 1: "O pai é aquele que não responde às questões que não lhe são colocadas. antes que tudo fosse acabar. que tramam em suas profundezas o universo de Moonfleet. (. sim ou não? Não. e que você deixou de amar. não? Stewart Granger? O que te leva crer que ele é o pai? A criança ama seu pai. pode-se-lhes consagrar todas as atenções. meses mais tarde. resumido assim. Isso muda o que? Tudo. criança aventureira. Não estamos em Warhol ou Kenneth Anger. que em argot se refere a alguém corajoso.. Pode-se amar os mortos tanto quanto aos vivos. criança apagada. A Criança sacrificada é aquela de Bigger than life ( Nichjolas Ray. Então.impossível. Se esta citação situa bem. quando o separaram bruscamente dela. o que sem dúvida é representado pela criança muda no filme ( irmão de Antoine Doinel e do menino selvagem. viril.. com O quarto verde. e em breve John Wayne como travecão pós-cinema em Rio Bravo. vocês esteve prestes a morrer? Você vê reviver a criança morta?” ( Trata-se de Função do cinema. mas então. Gonthier). impressão de realidade. (Cahiers du cinéma . onde tudo começa ( Hitchcock apresenta). tentar fazer escutar a linguagem nua do amor: Truffaut. Mas quem não vê que “os mortos” aqui são apenas a imagem extrema destes a quem perseguimos com nosso amor. sonha ser um cavaleiro branco. Notas: 1. pode-se. honesto ( Stewart Granger). Vão te dizer: mas não é verdade!, Mooonfleet é apenas um filme de aventuras à la Louis Stevenson, um Maitre de Balantree languiano. Não é falso, mas também não é o mais importante... " Moonfleet 2: "Este filme não é apenas uma etapa no país da cinefilia. É mais que isso, muito mais. É de onde se parte para nunca mais voltar. Aquele que não retorna permanece em estado de exílio, em estado de infância, de maravilhamento. Aquele que retorna não é mais o mesmo. Ele viu demais para coincidir novamente com o que um dia foi. Ele descasca pouco a pouco de si mesmo, e os transeuntes casuais encontram pedaços dele dispersos pelo vento, fragmentos de pele do cinéfilo, que vem planar sobre a lua, como tantas juras de amor perdidas. Trata-se de dizer aqui, com as pobres palavras de que dispomos, do que o cinema é feito, e do que o cinema se desfaz. Ele se desfaz como pode, o coitado do cinema. Em 1955, já estava fodido. Explodido, quebrado, em estilhaços. Não é por acaso que neste mesmo ano Hitchcock vai para a tv, com suas indestrutíveis miniaturas em preto e branco. O minimalismo televisivo hitchcockiano carrega tudo à sua volta, até mesmo o suntuoso Cinemascope que Fritz Lang inventa para Moonfleet.O que ele dizia do Scope, Lang? Esqueceram, é, gracinhas? “O cinemascope é bom pra filmar serpentes e enterros.” Lang sabia que Moonfleet enterrava Moonfleet. Ele sabia que esta lição de cinema era uma lição perdida. Ele sabia que o exercício só era útil1 para aquele que o quisesse esquecer. Pois é, é isso. Esquecer a lição, a dor, esquecer o cinema. E basta. " Moonfleet 3: "Moonfleet de novo? de novo. Sim, de novo. Em nome do cinema do presente? Sim, o cinema no presente. Sim. De novo. E de novo novamente. Rio Bravo também? Claro. E por que? Porque é Rio Bravo que estrutura Moonfleet. Mas como Rio Bravo, que saiu em 1959 pode estruturar Moonfleet, que vimos em 1955? Você não vai me dizer que se trata de pós-crítica, pós-cinema, vai? É pior ainda. O cinema começa pelo fim. O fim, que fim? O fim, é tudo. Devemos olhar para trás, não? Sim. É o travestismo terminal de Rio Bravo que nos ilumina o travestismo precoce de Moonfleet. Perucas e minstrel shows, é isso, né? É, é isso... “Rio Bravo ajuda a entender que Moonfleet está no centro de Moonfleet. A iniciação, o terror, o sadismo. O sadismo está no centro de Moonfleet como um travesti emperucado e maquiado. Ah, é? Claro. Stewart Granger é Daney, né? Não, é o contrário; é Daney quem interpreta 2 Stewart Granger. E a criança? A criança é Louis. Louis? Sim, a criança é Louis, é sempre Louis. Sim. Ao fim da linha? Sob o rolo compressor? Sim. E Moonfleet? Moonfleet é o rolo compressor. Tem certeza disso? Ah, sim, claro... (...) Tanto em Rio Bravo quanto em Moonfleet, trata-se de iniciação. A iniciação, do que se trata? Aprender. Aprender o que? Aprender a aprender. Tá bom, então? Que esteja bem, nada a ver. E o que é que temos de ver, então? Que é a mesma coisa. Que mesma coisa é essa, então? Uma lição de cinefilia, uma lição de Rio Bravo. O que é uma lição de Rio Bravo? Moonfleet. Como Moonfleet ( 1955) pode ser uma lição de Rio Bravo ( 1959)? É assim, oras! Como “é assim, oras!”? Como o último Skorecki, Cinéphiles 3 ( Les ruses de Fréderic). É seu último filme? É. É uma lição de Rio Bravo? Sim. Só existem lições dadas por Rio Bravo. Não se trata de data ou de conteúdo. Ah, é? É, é a lição para a criança. O terror? É. O sadismo? É, pois é. (...)” Rio Bravo 1: “Falava-se outro dia do filme horroroso de George Cukor, Sylvia Scarlett. Falava-se também de Jane Bowles3 e de travestismo. O travestismo último, no cinema, está em Rio Bravo. Eu já disse isso cem vezes, direi mil mais, até que um ou dois leitores entendam. Que dois leitores entendam, já basta, estou no caminho certo, menos só. Se sentir menos solitário, para um homem do frio como eu, isso esquenta o coração. É de fora que eu vejo essa coisa. É de fora do cinema que eu vejo o fantasma do cinema. Por que “fantasma”? Porque sim. Porque em 1958, ( se estamos falando da filmagem), ou 1959 ( se estamos falando da data do lançamento), Rio Bravo já era o espectro do que tinha sido o espectro de uma arte usina defunta, um western travesti onde Jane Bowles, a queridinha de Tennesseee Wiliams e de Truman Capote, não teria do que se envergonhar. Se o roteiro de Sylvia Scarlett tivesse sido escrito por Jane Bowles, o único travesti literário do século passado4, Sylvia Scarlett teria sido uma obra-prima. Teríamos visto Katherine Hepburn, adorável rapaz travestido, sucumbir ao sex appeal do crocante Cary Grant, e lhe passar a língua sobre a covinha do queixo. Ela o barbearia com a língua, destramente, assim como Angie Dickinson barbeia Dean Martin em uma bela cena cortada de Rio Bravo. Sylvia Scarlett é um dos piores filmes do mundo, e dos mais charmosos também. “Quando eu te vejo, diz o homem ao travesti Katherine Hepburn, eu me sinto um pouco estranho, um pouco queer”. O filme é belíssimo, mas Rio Bravo vale cem mil Sylvia Scarletts, mesmo se chega pelo menos vinte anos tarde demais. 1934-1959: meçam a distância vertiginosa entre estes dois filmes travestis. Mas o que chega muito cedo ( Sylvia Scarlett) está longe de dar tão certo quanto o que chega tarde demais , ou seja, aquele que vem em seu tempo certo, este Rio Bravo idealmente sincronizado com seu tempo, com o tempo do pós-cinema travesti.( Libération, 8 de maio 2006).” Rio Bravo 2: “(...) Eu me chamo Fréderic, Rio Bravo é teu filme preferido, repita comigo. É a última fronteira, o western em frangalhos que se autoparodia, o filme de gênero que recapitula todos os outros, a linha vermelha além da qual o teu ingresso não vale mais nada. Depois de 59, depois de Rio Bravo, o cinema decide viver no dia a dia, à luz do dia. O cinema “ de dia”, caso não saibam, é a televisão. Muita água rolou desde então, o cinema hoje é a tele-realidade. Vocês não concordam comigo, tou pouco me lixando. Vocês pensam que as séries televisivas, 24 horas, Nick/tup, Oz, Les Soprano, tomaram o lugar do cinema. Vocês estão atrasados em pelo menos vinte anos, estes anos capitais do pós pós-cinema onde ocorreu justamente o contrário: foram os filmes de cinema que se puseram a pastichar à toda a televisão, as séries de televisão em todo caso. Rio Bravo só existe hoje como minstrel movie, um filme que se esgota no travestismo de seu roteiro e de seus atores. Os minstrel show do século 19 permitiam a um público branco ver os negros sem se assustar além da medida, precisamente na medida em que brancos maquiados de forma ultrajante os interpretavam, só conservando dos corpos negros os excessos, o grotesco e o patético, como mais tarde os travestis farão com os corpos das mulheres. Vocês vão me dizer: qual a ligação com John Wayne, Angie Dickinson, Ricky Nelson? Ora, não ver na peruca de John Wayne, em seu corpo volumoso, em seu ar de mocinha assustada com uma mulher grande demais, ou vestida com colantes cor-de-rosa demais ( ou seja: os atributos da drag queen); não ver que Angie Dickinson e Ricky Nelson são ainda mais explicitamente travestis e maquiados que ele, não ver isso é recusar o cinema, o cinema à luz do dia. Mas afinal de contas, por que não, não é? ( Fréderic Beigbeder em Les Cinéphiles: Les ruses de Fréderic, 2006).” Notas: 1. Il savait que l'exercice n'était profitable: referência a um livro de Serge daney sobre tênis, L’exercise a eté profitable, Monsieur. 2. em francês no original: C'est le contraire, c'est Daney qui joue à Stewart Granger. Este verbo “jouer” é bem ambíguo, e tem a acepção tanto de interpretar um papel quanto de brincar, jogar ou encenar. Ambigüidade esta essencial à retórica de Skorecki, gênio do paradoxo e dos jogos semânticos de sentido. 3. Jane bowles ( 1917- 1973) escritora norte-americana bissexual, mulher de Paul Bowles. Autora de um único romance, Two serious ladies e de uma peça de teatro, In the summer house, era idolatrada por Tennessee Williams, John Ashbery e Capote como uma das grandes escritoras de seu tempo. 4. O século passado a que Skorecki se refere é, naturalmente, o século 20. Louis Skorecki. Tradução: Luiz Soares Júnior. Uma arte de laboratório Losey é acima de tudo um pesquisador; sua mise en scène, um método. Seu objetivo declarado: conhecimento. Seu único instrumento: inteligência, ou particularmente lucidez. Sua abordagem toma como modelo a do cientista. A mesma atitude básica diante do fenômeno sob observação, o mesmo procedimento: revelar a experiência vivida (lived experience) em sua totalidade, registrá-la como um objeto, fazer deste objeto o campo de investigação, resumindo, instalar a experiência vivida em condição laboratoriais. Losey restitui à câmera sua função original de instrumento científico. Esta é a marca de sua originalidade. Isto quer dizer que outros cineastas não são incitados pela mesma ambição? O conceito a priori de realidade, a realidade filtrada e ideal de um Fritz Lang, que cria um universo abstrato no qual paixões reduzidas ao essencial confrontam-se mutuamente, de um Mizoguchi, assombrado pela eterna oscilação entre um mundo exterior e um mundo pessoal, de um Raoul Walsh, que glorifica a aventura, mostra que esses cineastas não tem os mesmos interesses que Losey, mesmo que suas mise en scène’s sejam similares e muito frequentemente superiores à dele. Mas e Nicholas Ray e Rossellini? Eles também consideram a experiência vivida como um todo a ser levado em consideração a priori. Conhecimento, pra eles, consiste então na súbita penetração intuitiva de uma realidade que foi antes preparada pela análise. O processo é o mesmo pra ambos: ir do exterior para o interior, através da sensibilidade. Isto significa que, a despeito do ponto de partida em comum, seus procedimentos são radicalmente opostos aos de Losey, visto que ele sempre parte do interior para o exterior. A um conhecimento instintivo que é puramente artístico, no senso tradicional da palavra, Losey prefere um conhecimento lógico, no qual intuição e dedução estão subordinados à inteligência. Esse tipo de atitude levanta o problema da estética do cinema moderno, que vai muito além do escopo deste artigo. ‘Este era um dos princípios de Brecht, e o único com o qual que eu estou em total acordo’, Losey nos contou, ‘que o momento em que a emoção interrompe a linha de pensamento da platéia, o diretor falhou’. Se um termo pode caracterizar a mise en scène de Losey, acho que deve ser ‘uma explosão aberta à vista’ (bursting open to view). Não é totalmente verdadeiro dizer que ele parte do interior para o exterior. Ele se prende às aparências, observando cuidadosamente relações objetivas e se recusando a interpretá-las. Qualquer outra atitude seria não-científica e então, em sua visão, não-artística. Porque para ele o interior é a reflexão de um fenômeno externo, a projeção de um conflito interiorizado. Os gestos referem o que os motiva e nada mais. Efeitos revelam somente suas causas e o que gerou estas causas: a pessoa desnuda. Losey é o primeiro cineasta que tomou como seu único material de investigação – sem nenhuma referência à moralidade, metafísica ou religião – a verdade do ser humano. (O argumento estético que Jan, o jovem pintor holandês, expõe em Blind Date é, neste ponto, muito claro) Mas se a pele está na iminência de romper-se, se a pessoa é, por fim, para ser revelada à luz do dia, a realidade tem que ser posta em condição de laboratório, isto é, fechada e sujeita à uma pressão alta o suficiente para produzir a ruptura. Isto pressupõe uma situação dramática intensificada até os limites do teatral. Deve haver uma crise aguda, uma temperatura febril, uma operação emergencial. Portanto aquele estilo que é tão particular a Losey, um estilo que é bruto, tenso, excitado, incisivo. Um estilo que choca. Como Time Without Pity e The Criminal, Blind Date é um filme sobre uma irrupção. Um terremoto estilhaça toda ilusão de estabilidade. É a manifestação visível de pressões tremendas que se desenvolveram sob a crosta da terra. Se admitimos isto, tudo em Blind Date se torna claro, gesto e décor, plot e estrutura narrativa. A história começa, então: Jan está correndo para o apartamento de sua amante. É a primeira vez que ela permitiu sua visita. A porta está aberta. Ele entra. Não há ninguém. Ele aproveita a oportunidade para descobrir que tipo de ‘décor’ sua amante tem, como se isso o ajudasse a conhecê-la melhor. Ele ri de sua falta de organização, é surpreendido pela decoração berrante do banheiro, tranquilizado (reassured) por um pequeno quadro de Van Dyck, e, descansando no sofá, tentado (mystified) a achar um envelope recheado de notas. Ele espera. A polícia chega. Sua amante foi assassinada enquanto ele olhava o apartamento. Ele se torna o primeiro suspeito.Vamos parar por um momento nessa sequência de abertura e na descoberta do apartamento de Jacqueline por Jan, descoberta da própria Jacqueline também. A câmera só observa meticulosamente a sequência de eventos, a manifestação de fenômenos e suas relações objetivas. Antes de tudo, a própria personalidade de Jan. Excitado por sua aventura, seu verdadeiro ego (true self) se revela em suas atitudes tanto quanto em suas reações, e é evidente em cada um de seus gestos. E porque eles são reflexos daquele verdadeiro ego, seus gestos são tão raros quanto refinados (e às vezes, admito, nos limites do preciosismo). Como na maneira em que nosso jovem amante pára de repente , apoiado em uma perna, no vão da porta do quarto, uma posição enfatizada ainda mais pela mudança do ângulo. Tudo em Jan denuncia uma inocência sem mácula, o coração intacto de uma criança ávida para ser encantada pelo amor. Muito ávida, de fato, para observadores imparciais como nós, e não podemos evitar a idéia de que há um hiato entre a natureza de Jan e o tipo de mulher que ele ama, enquanto seu apartamento a denuncia. Este pertence claramente a uma prostituta de alta classe. Algumas das reações de Jan deixam claro que ele está atento a isso, mas então um objeto de bom gosto traz sua confiança de volta. Ele está de fato desejando ser arrebatado. Ele está cego por seu amor e sua confiança. Ele está no limite da submissão, sua inocência é ameaçada. Este é o coração da matéria (subject-matter) de Losey. Jan tem que avaliar a si mesmo, ter a noção exata de seu valor, se calcular, em resumo, se estudar, i.e. alcançar a lucidez através de um auto-exame crítico nos termos de sua relação com o mundo exterior. O assassinato cria as condições necessárias para um experimento desse tipo. Ele constrói um mundo enclausurado no qual as maiores pressões são induzidas a agir. Elas transportam as pessoas com uma intensidade crescente, subsumidas por estas condições, levando-as a uma espécie de ruptura brusca que é dada visualmente pela mise en scène e que é, me parece, a dinâmica básica de Blind Date. Essa ruptura brusca nasce com a lacuna entre Jan e o décor. É desenvolvida imediatamente após a chegada da polícia, quando o inspetor Morgan também dá uma olhada no apartamento. Desta vez é uma fria e clínica inspeção que não deixa dúvidas a respeito da inconstância do caráter de Jacqueline ou sobre a indiscrição e a impetuosidade claras de Morgan (seus gestos, seu sotaque gaulês, sua reação ao espelho em frente à cama, etc) O confronto de duas visões divergentes de um mesmo apartamento e, portanto, da mesma mulher produz uma ruptura até mais violenta, o flashback. Este se opõe visualmente, por sua áspera, branca iluminação Nórdica e pela pobreza do décor, à fotografia cinza e ao apartamento desorganizado da primeira parte. O flashback, gerado simplesmente pela lógica da situação, é tanto uma evocação sensual de um caso de amor quanto uma análise precisa de um relacionamento entre dois amantes e um julgamento de seu amor. Como uma investigação feita necessária pela lógica interna da situação, ela traz à tona a incompatibilidade óbvia entre a Jacqueline que Jan ama e a dona do apartamento, enquanto a polícia junta as peças na base de evidências e objetos. É isto que Morgan não pode deixar de notar – ele tem um bom faro, mesmo com o nariz entupido. Losey gosta de sobrepôr a luta por lucidez com essa espécie de obstáculo físico (embriaguez de Redgrave em Time Without Pity, a gripe de Morgan em Blind Date), um obstáculo que tem seu contraponto na paixão cega de Jan. Deve-se lutar contra a névoa de sua própria mente. Morgan também está envolvido nesse caso, tanto quanto Jan. Ele se vê envolvido na mesma busca por verdade, e assim pela sua própria verdade. Daí as pressões às quais tem de se submeter. Pressões sociais impõe uma hiato entre seu desejo por uma promoção no trabalho e, o mais importante, seu respeito próprio. Uma simples questão de dignidade. O problema para Morgan e para Jan é o mesmo: resistir à corrupção, preservar sua integridade. Uma vez que eles percebem isso, após a pequena briga que as questões ofensivas de Jan provocam no escritório de Morgan, a resolução não está muito distante. A mulher – Jacqueline/Lady Fenton – é redescoberta, sob a dupla pressão exercida por Morgan e Jan, sua duplicidade é translúcidamente clara. A mentira amaldiçoa a verdade. O ego conquistou as aparências. A inocência é libertada. Nós estaríamos, então, julgando mal Losey, estaríamos interpretando de modo completamente errôneo sua obra se nos recusamos a ligar sua estética a um racionalismo de Esquerda.. Até, como Domarchi sugeriu, da extrema esquerda, visto que Losey recusa categoricamente qualquer apelo ao sentimentalismo a que a então chamada “esquerda artística” está tão ligada. Sua arte é uma arte de laboratório. Colocase um bloco completo de experiência vivida num pote. Cria-se as condições mais favoráveis para o experimento. Então analisa-se meticulosamente todas as relações objetivas que se formam e descobre-se que a luta é a origem vital de toda realidade. A luta de indivíduos (Jan e Jacqueline, Jan e Morgan), a luta de classes, etc. Mas visto que o conhecimento do observador é sempre determinado pelo da pessoa observada, a luta permite que este conhecimento se desenvolva. Nessa temperatura de conflito dramático, a violência quebra estruturas ossificadas, pressionando o ego de volta à superfície. Dominar e organizar as vibrações internas do ego: essa exigência que Jan faz de Jacqueline enquanto ela está desenhando (apesar de que ela, refletindo sua classe, procura somente ocultá-las) é o que Losey exige de sua arte. Uma arte que despreza o ornamento, que usa lucidez para destruir o mito, que irrita e abala. Uma arte que fere porque não permite concessões. Mas uma arte com sede de verdade. É por isso que ainda repele a tantos. JEAN DOUCHET Cahiers du Cinéma nº 117, março de 1961 Tradução: Luan Gonsales. O quarto verde É sem dúvida o filme mais original e cativante de François Truffaut. Surpreende-nos uma maturação de temas e de estilo pouco freqüente na obra de Truffaut e no cinema « Les amis des amis » . Davenne luta de todas as maneiras contra a ingratidão e a indiferença dos vivos. velas. afastam o público quase automaticamente. o lirismo muito contido dos diálogos e da interpretação (Truffaut pensou em Charles Denner para o papel principal).. mescla sem vergonha e sem complexo as duas fontes. Embora isto nunca seja dito. Jacques Lourcelles Tradução: Matheus Cartaxo Le voyage à travers l'impossible (1904) . outra originalidade. em todo caso. ela é em parte um recuo infantil diante da ação. essa morbidez tem a ver com a infância. tão comuns para com os mortos. O filme é o reflexo íntimo dessa reflexão. A mise en scène consiste em efeito. Esses limites. « La bête de la jungle ». Três novelas de Henry James. que terá se inspirado em Verne e Wells. Para ele. a descrição do real e do imaginário. Julie representa para Davenne um tipo de mãe perfeita e. e esta constitui a primeira originalidade do filme. já indicada pelo próprio Wells na ocasião: as ficções de Verne são sobre o devir provável [. em fazer com que ele .B. um filme como Una voce umana de Rossellini (uma mulher ao telefone sozinha num aposento durante 35 minutos) e Os Dez Mandamentos de DeMille são tão espetaculares um quanto o outro. Como disse Jean Mambrino (no prefácio da publicação do roteiro em “L’Avant-Scène”). Mas aí o toque de Truffaut é ligeiro e empolgante. ou seja. no entanto. foto. A morbidez de Davenne é vista sob uma abordagem positiva. a emoção e a reflexão do espectador nesse sentido. e a história do cinema (a despeito dos próprios historiadores) lhe dará inteiramente razão.: o fracasso comercial do filme não é nada inexplicável. quer se trate das atualidades reconstituídas ou da féerie mais delirante. O Enigma de Andrômeda de Wise). Na sua enquete sobre « O primeiro Wells ».Georges Méliès Ocupa os números 641 a 659 da Star-Film (septuagésimo oitavo dos cento e quarenta título conservados até a data de 1981). ainda válidos hoje em dia. para além das intenções do autor. etc. Efetivamente. o sonho sobre o provável e o possível. Sua formação de prestidigitador era a melhor possível. pois na França a morte e a fortiori o culto dos mortos são. Borges escreve: « Verne escreveu para a adolescência. Méliès terá se antecipado sobre a política-espetáculo. Méliès sente que tudo aquilo que aparece sobre uma tela deve ser por essência espetacular. e nem deseja sê-lo. as de Wells sobre o puro possível. Inventor do espetáculo cinematográfico. O classicismo seco da mise en scène de Truffaut. Ela orienta. “dolorosamente materialista” pois Davenne não pode imaginar a presença dos mortos sem ligá-los a um souvenir tangível da existência deles (objeto. como a prestidigitação. N.).francês contemporâneo em geral. fascinante e crível. com suas atualidades reconstituídas. É um tipo de refilmagem e uma amplificação de Viagem à Lua.). Que Davenne termine por amálos mais que aos vivos – atitude condenada pela heroína – dá ao filme uma coloração fantástica e conduz o personagem à monstruosidade. insubstituível. Wells para todas as idades do homem. no cinema.. enfim. Notemos brevemente que. Essa intuição pulveriza as distinções falaciosas. » Méliès. a um culto material dedicado a suas memórias (capela. mas para lhe fixar os valores essenciais. não somente para inventar o espetáculo cinematográfico. Méliès negou desde a origem. o filme é. sem dúvida mais longa em seu autor que a saga semi-autobiográfica de Doinel. como a doença incurável. ajudaram Truffaut a precisar e encarnar dramaticamente sua reflexão sobre a morte.]. etc. a bela fotografia obscura de Almendros (talvez demasiada lustrosa e superficialmente elegante) oerfazem uma obra que não é em si mesma mágica e sobrenatural. Há entre eles uma outra diferença. temas tabus que. « L’autel des morts ». que a ficçãocientífica moderna quer apagar (cf. a ficção cinematográfica engloba o documentário e a ficção-científica. em dirigir e se apropriar do olhar do espectador. da sociedade e da vida. unir-se-ão ao cinema mais moderno. John Payne está disposto. onde a situação é a mesma. as noções de base do cinema como espetáculo já se encontram largamente exploradas. é para melhor descobrir os fios da aventura. à exclusão de todo o resto. como se isso aumentasse sua modernidade. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões. As qualidades psicológicas e as intenções do prestidigitador são também aquelas do verdadeiro cineasta. Ao curso de uma abundante ( e desigual) produção de filmes igualmente fracassados. O momento também que o cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por intermináveis digressões. este mesmo empenho em salvaguardar. se delineia aquilo pelo qual ele deve ser chamado: um certo olhar sobre o mundo. Ao contrário. Maldição estranha. até mesmo esta amizade. ela não está perto de chegar ao seu término porque . o de Tati e o de Fritz Lang. a verdadeira. Daí o empenho em preservá-lo. em Tennesse’s Partner. o que torna seu cinema precioso é. os planos longos e generosos aos quais estava restrito e que apenas desejava enriquecer através de uma profusão de trucagens. para citar apenas dois nomes. Exigência de pudor. há . Haviam julgado mal Dwan: se esquecemos nele os remendos da intriga ( ou antes: se estas são tão pouco ocultadas). Em Surrender. e eventualmente de personagens. Dando a ver ao espectador a porção do real que escolheu (pelo lugar da câmera e pelo quadro). A reflexão sobre Méliès está apenas começando. onde os mal-entendidos valem mais que as indiscrições. Ou melhor: ele é mais que isso. a coisa que lhe pertence intimamente. Dwan faz da maldição o tema de seus filmes. Perder este segredo é um pouco como perder a sua razão de viver. O verdadeiro problema se coloca. por sua recusa ao exibicionismo.nesse precursor genial. o momento onde esta se dilui e se perde.que faz com que ninguém jamais seja julgado segundo suas motivações. destes parênteses: tal filme que começa com uma cena de violência se coloca. dez minutos mais tarde. ao substituí-la pela deles. a correr os maiores riscos. Para impedir seu amigo de se casar com uma piranha. e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas palavras. interpretados por atores de terceira ordem. No o plano técnico. sob os traços de um melodrama familiar ou de uma comédia leve. frequentemente identificado com o que em profundidade ele não é. o símbolo característico dos diretores de filmes B. fornecendo-lhe uma (falsa) impressão de liberdade em relação ao conteúdo desse quadro.no próprio seio da violência. ao invés do culto da aventura. ou antes: serão reencontrados por ele. É que a modéstia e a paciência são suas qualidades: cineasta maldito. Vemos correntemente em Dwan um dos representantes típicos do cinema de aventuras. Secreta. Tanto um como o outro nos fazem descrer na realidade. Cada um vive com seu segredo. seu cinema anuncia. se os heróis também não reivindicassem para eles esta mesma vontade de se calar.a intimidade dos dramas pessoais. a sacrificar tudo. Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da Triangle ( o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado incansável .veja aquilo que se quer que veja. a arte de Dwan já o seria por sua modéstia. o fantástico e o humor indissociáveis da vertigem. ora. sua justificação no mundo. certos exegetas modernos querem a todo custo que haja montagem em Méliès. aquela que se tece na intimidade dos seres. não nas peripécias da ação mas todas vezes que a vida íntima dos heróis é ameaçada. Eles tornam o maravilhamento inseparável da inquietude. marcados por uma mesma precariedade de meios. Jacques Lourcelles Tradução: Bruno Andrade Allan Dwan por Serge Daney Discreto a ponto de passar desapercebido. onde a incompreensão é preferível à exposição dos sentimentos. desde logo. mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar em relação a isso é The restless Breed. Descobertas cuja mais simples consiste na constatação de que o tempo é o bem mais precioso. e os personagens seus projetos: nesta vasta “cavidade”( creux). Rhonda Fleming disposta a tudo para que o passado de sua irmã permaneça em segredo. é também aquele que se arrisca mais. em que Dwan. 1966. O movimento dos seus filmes é. Dicionário do cinema. que é também a história de uma vingança secreta. Nada de espantoso.a obra-prima do nosso autor. mas a prova que mesura a importância dos segredos.A partir daí. de cinema crítico. Desde o momento em que Scott Brady decidiu vingar seu pai. Cada filme é um pouco a aventura de um segredo e de sua desaparição: ou o levamos conosco para o túmulo. esta possibilidade de intimidade o que faz a diferença. uma tradição cinematográfica.nos dão a melhor imagem desta cumplicidade reencontrada. definitivamente recusado aos outros. um desnível) entre o herói e o xerife que o persegue: em nenhum momento o xerife compreende as motivações verdadeiras do outro. mas com um gênero. são estas vinganças pessoais. suas razões profundas insondáveis. capaz de se virar com qualquer coisa ( faire feu de tout bois).perpetuamente um décalage ( um hiato. em Sweetharts on Parade. se acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente. O caminho mais curto entre dois pontos não é mais a reta. sem olhar em torno de si: um atirador rápido não tem tempo a perder. excessivamente fechados. não é seguro afirmar que ele conservaria. o único que conheceu uma difusão mundial: o western. o cineasta parece esquecer seu filme. Para além dos inevitáveis mal-entendidos. Aí. a se abrir lentamente. Cinema disponível onde sempre chega o inesperado. não mais em confronto direto com a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade históricaque Leone conhece bem. Onde tudo é pretexto para descobertas. um texto global. Assim se explica que Dwan. uma dançarina. Éditions Universitaires. atravessar a tela.tenha um valor estratégico). o filme se torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. por Serge Daney Era uma vez no Oeste marca o apogeu ( e talvez o colapso) de uma série de filmes assinados por Sergio Leone cujo interesse é a priori imenso: eles constituem a primeira tentativa . uma ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas desejariam se precipitar. Era uma vez no Oeste. sempre os atos serão mal interpretados. é o meando que é necessário. no cadre de uma superprodução. e isto até o fim do filme. Tradução: Luiz Soares Júnior. tudo pode acontecer. os saltos no tom não são mais os caprichos de um cineasta sem rigor. é este segredo. mas em Dwan. o acaso torna-se cúmplice do cineasta que o serve e que dele se serve. silenciadas até o fim ( Cattle Queen of Montana) ou ainda. as digressões. a amizade entre duas ruivas. quando ele o mata. É ainda. muito vulneráveis. deste segredo enfim compartilhado. embora pouco conseqüente. ou seja. é preciso perdê-lo em demasia para lhe dar valor. esta parte de invenção que lhe é necessária. Não é pouca coisa. Ao curso dos encontros. ou o dividimos com os outros. um velho xerife lhe exortam para que deixe a cargo da justiça o direito de vingá-lo. o que para os outros é um simples “esbarrão” constitui para o herói comoventes reencontros. este: obrigar seus personagens. em Slightly Scarlet. o tempo perdido. . Assim. Em outros. as últimas cenas de Tennesee’s Partner. o Decano dos cineastas de aventura. portanto. o cineasta se esforça em suscitar à sua passagem tudo o que o possa retardar ou distrair: um padre. portanto. Constituem ora a mostrar o que o western clássico ocultava. é igualmente possível empreender desde hoje a decifração de uma obra já pletórica (superabundante. sem negar seu caráter popular). Por duas razões (ao menos): 1). Etc. Os resultados práticos de semelhante operação foram nulos. um eufórico trabalho de desconstrução. mas não cinema crítico. de quem pouco se tratou aqui. contra as quais ela luta” ( Nietzsche). ( Isto no caso de Sollima e do magnífico Colorado). Este trabalho pode ser bem realizado sob uma condição: que o western italiano conserve seu caráter de massa. “Uma força não sobrevive se em primeiro lugar se ela não toma de empréstimo a máscara das forças precedentes. mesmo se os filmes belos ( Tourneur). mais exatamente. e paisagens). seria interessante mostrar como ao western convencional. daí. Cinecittá no momento preciso em que o péplum corre perigo. tradicional e popular: a Itália. de Sergio Leone. Não se trata mais. os Americanos renunciaram ao western racista e beato ( DeMille). Isto quer dizer que o western italiano deve ser produzido em massa e para as massas. como da beleza ( dos atores. a burguesia) de individualidades excessivamente videntes. paralelo. sucumbindo à obsessão utilitária. hoje em dia. subversivo e vagamente político. Interessante de ver também como este cinema se dá a escolha dos meios (chamada também de gratuidade por toda uma tropa de bem-pensantes que é preciso obrigar urgentemente a ler os textos decisivos de J. Mas de onde.a partir dos anos 50. Porque de que até então havia razões ruins para amar os filmes B. Trata-se apenas para Cinecittá de re-investir homens. em fazer da surenchére (supra-oferta) o equivalente de uma negação. amado de forma esnobe e contraditória ( em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo aspirar à qualidade. construído sobre o morceau de bravoure ( High noon. Este só poderia se elaborar “de fora”. e é conveniente modificá-los. de desmistificar em um único filme toda uma tradição. Quanto a Leone. 2). artigo decorativo). começam a ser conhecidos ( mas admitamos que só foram seriamente utilizados nos filmes de Leone e do misterioso Sollima). Ora. Senso crítico. sob a máscara das velhas formas ( portanto. ora a exagerar o este mostrava. o essencial está aí: não que alguma demiurgia tenha decidido um dia fazer cinema crítico. mas que este cinema seja antes de tudo ( ou em última análise) o único produto de uma evolução econômica. o que é o caso. figurantes e capitais em um novo gênero de filmes. . Quanto aos meios deste trabalho. minado por paródias ( já Sergio Leone aí). nem mesmo à consciência clara dos elementos ( temas. Peckinpah). um jorro de filmes humanitários ( Daves) ou crepusculares ( Ford.Como um cinema crítico é possível? Desde muito tempo. E isto apesar do grande obstáculo: a recuperação pelo cinema de qualidade ( a arte e o ensaio. Admitamos hoje que na Itália alguma coisa que Hollywood não podia realizar era possível: a tomada de consciência deste lumpen-cinema. efetuando. Goux).J. o cinema B delimita uma espécie de lumpen-cinema ( cinema do lupemproletariado1). Em relação a isso. da justeza de tal ou tal estilo de narração ( elipse ou tempos longos) ele faz um uso estratégico a tal ou tal momento. de que “fora”? De um dos raros países que possuía também um cinema de série. Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria robusta . Trata-se de “amortizar” ( reconstituição do capital empregado em uma compra). bom de qualquer modo pra fazer a máquina girar. A força dos filmes de Leone está em extenuar a retórica habitual do western. mais pra Zinnemann que para Dwan. com muitos elementos) em tiques e “tropes” ( retórica. Estas origens vis e baixamente comerciais fazem ( farão/fariam/poderiam ter feito: o futuro nos dirá) a grandeza do western italiano. The tin star) Leone opõe uma seqüência ininterrupta de tempos fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um mínimo de sentido. situações) que ele ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos. Ou. todo um conjunto de convenções e reflexos. cenários. Admirável é o realismo da interpretação dos atores secundários. Alguns gestos inclusive são frequentemente recorrentes nele. no papel do qual George C. Piada? Não. O’Connel se decepciona ao ver um psiquiatra jovem e imberbe. em Saint-Tropé. este se situa ao nível do resultado. empregado do bistrô que tem o hábito de enxugar os copos toda noite e que não quer falar. a quem a firma Preminger presta uma discreta homenagem. um cadre bem precisos. como Carlyle sugeria que todo escritor fizesse. a que devemos os mais belos toques humorísticos do filme. em Israel. Notemos aliás. Critica-se com freqüência aos Cahiers não falar dos atores. Há dez anos. Anatomy. quase todos os comparsas do filme são estereotipados. que foi imposto ao júri. O personagem do velho bêbado que rouba e bebe uma centena de litros de uísque nos . outrora essenciais à sua arte. Pois bem. e não em função de uma ótica realista. falemos! Dos vinte e cinco que figuram nos créditos. into things themselves». Preminger. Esta filosofia do figurino. que enxuga seus óculos com este gesto largo e contínuo. me refutem vocês. entregue a si mesmo. provocando de parte a parte algumas rupturas de tom. Mas. de abandonar os sunlights. do figurino em Preminger. não da abordagem. não teria sublinhado os detalhes de nossa vida cotidiana. a fim de poder se renovar. adora as viagens. pois temos ao mesmo tempo a fascinação e o realismo mais cru. Ele tem necessidade de mudar de cenários. parte do proletariado constituída por aqueles que não dispõem de recursos e caracterizados pela ausência de consciência de classe. É interessante notar as forçosas repetições destas atitudes e suas diferenças de um personagem a outro. É que a composição não exclui o realismo. aliás.a redução do orçamento. “looks through the shows of things. não sabe o que fazer com as mãos. Aqui. Ottobiografia Preminger brada a todos os ventos: sou um cineasta realista. Mencionemos igualmente a espantosa complexidade de relações entre o advogado e seu ajudante Dancer. é a mesma de Carlyle. Tanto melhor se as coerções realistas se opõem ao estilo clássico de Preminger . muito descontraído. como a de Gene Tierney. em relação a estes personagens. é para gozar de uma maior liberdade que em Hollywood? Pra encontrar um novo meio de publicidade. Scott nos oferece uma composição de primeiro nível. Preminger não teria rodado cenas crepusculares sem iluminação nenhuma. um “botar os pés no chão”. o doutor Smith. A arte evidente mas indizível de Preminger necessita de um contato direto com a ordem da razão. foi filmado à incrível velocidade de quatro minutos de filme por dia. Depois. Preminger. Londres.Serge Daney. A passagem detrás da barra de testemunhas evidencia estas diferenças: Paquette. Eu falo de realismo. Tradução: Luiz Soares Júnior. se filma em Chicago. etc. Na terminologia marxista. nunca tem fósforos. inclusive James Stewart. tão típico em intelectuais americanos. móvel como sua câmera. não há um ao qual se possa fazer a menor crítica. ele teria orientado a interpretação de Lee Remick para uma fascinação bem artificial. Ao contrário do psiquiatra. Ela acentua a verossimilhança: a maioria dos personagens que se exprimem em público se incumbem de inventar uma atitude particular. no Canadá. que vai desbancar todos os records atingidos até então? Creio que as razões essenciais são outras: em primeiro lugar. portando um nome americano ao invés de um germânico ou sei lá o que. Se ele roda um filme inteiro numa pequena cidade do Michigan. ganhamos nós. um tema. em Anatomia de um crime. Nota 1. a importância das aparências. Luc Moullet. É o público que cria a baixeza e enobrece o filme. artificial e pedante. mas que não nos parecia indispensável reproduzir in-extenso em um filme de ficção. tais como as que se encontram em todos os processos. Mas a astúcia levada a tal ponto denota uma inteligência muito grande para não ignorar a sensibilidade. E creio que devamos considerar Anatomy of a Murder como uma obra autobiográfica. Enquanto que. Otto zombador. marxistas ou puritanos. Por seu jogo. O que é realmente cômico é igualmente profundo e sério. na tradição literária e cultural francesa. O maquiavélico Biegler não nos mostra um brio inacreditável na astúcia? Tão mais inacreditável por não ser especialmente enfatizado. possui a idade. cultivo simples e moderado da sensibilidade. etc Estas diversas ambigüidades. alternância que acaba por tornar-se identidade. Ele é o mais forte porque está mergulhado na vida mais concreta possível. Preminger “propõe”. Preminger é talvez um dos mais cruéis. Estas intenções publicitárias. são ao mesmo tempo parte integrante do filme e absolutamente estranhas a ele: elas zombam daqueles que se chocam de escutar vinte vezes as palavras espermatogênese. sublime. gentil mas firmemente. não é porque ele não leva a sério sua profissão. slip. Preminger nos propõe a inocência sob as aparências da culpabilidade. os modos. Preminger é um verdadeiro idealista. de habilidade e intenções publicitárias duvidosas”. é ele que passa a ser julgado pelo filme. insinceros ao ponto de alijar da matéria de suas obras tudo o que lhes parece estranho a elas. Apenas ele é o tema do filme. se ele ganha o jogo. tocando jazz. Otto crítico.mostra que todos estes cúmplices se definem mais ou menos como personagens negativos. e que se limitam a detalhes escabrosos e de mau-gosto. sem comentário. Os cínicos são pessoas necessárias. mas certamente um dos menos malvados. ao homme précieux ( Préciosité). nosso advogado é mais forte que os outros. tem por auxiliar um velho alcoólatra que toma iniciativas descabidas mas bem frutíferas. Ao puro. já que se funda sobre uma condenação da realidade em nome de um suposto “bom-gosto” que nosso tempo teve o mérito de sacrificar a valores superiores. Novembro 1959 Nota: 1. Sobre eles. dos mais lúcidos. No momento em que o espectador pretende julgar um filme em função de critérios superficiais e extra-cinematográficos. “Sobre um tema sério reencontramos aqui a mesma vontade de mesclar o divertido ao trágico que em A Grande Guerra. oposto. tudo é puro. encontramos a alternância entre a sisudez e o diletantismo. brio que temos a surpresa de descobrir em seu estado natural. É preciso vê-lo interromper o interrogatório de Laura Manion sob falacioso pretexto de que Dancer se interpõe fisicamente entre a testemunha e ele para nos darmos conta de sua esperteza. neste caso. De todos os grandes cineastas. Não precisamos criticar em Preminger seu hábito do jogo duplo. e a mesma ambigüidade sobre a significação do filme. ao mesmo tempo que o espectador do processo. que encontramos também em Hawks e Hitchcock. encontra aqui o papel da sua carreira. alguns incômodos ao realizador. De Preminger. (ops! Perdão). número 101. É de qualquer maneira uma definição do honnête homme1 do século 20 que Preminger nos propõe. evidentes. Confesso não compreender esta crítica. Se o nosso cineasta. expressa por Jean-Louis Tallenay no RadioTélevision Cinema. o humor de Preminger. por sua forma de agir. James Stewart. ao que parece. Gentleman. testemunham um humor superior. Alguns a poderiam qualificar de cínica. Stewart-Preminger nos mostra bem esta confusão de valores. É o herói positivo do filme. que se opõe a estes falsos idealistas demagogos. Sem falar das insolências verbais que valeram. . Cahiers du Cinéma. A menos de que se trate. já que passa a maior parte do tempo pescando. Face a esta hipocrisia que bem rapidamente se revelou estéril. que parece afeito antes de tudo para divertir e seduzir. Ele ama a boa cozinha. com o personagem de Paul Biegler ( James Stewart). a inscrever o filme mais bem realizado. Desde 1949. buscou. e não achei nada difícil esta experiência. a discrição. ou seja: filme que deve encantar a crianças e adultos. filme ao mesmo tempo subestimado e muito imitado. Antes mesmo de abordar o que em sua obra releva da noção de autor no sentido estético-filosófico que este termo adquiriu no interior da expressão “política dos autores”. que aqueles que o puderam ver em sua versão original em 70 mm jamais esquecerão. hipócrita ou imatura sobre os obstáculos intransponíveis aos quais teremos de enfrentar quando carregamos um nome célebre e nascemos célebres. sereno.”. neste tom amável. o superdotado da mise em scéne que. descritos com uma audácia insólita para a época. a modéstia. reconhecido. de abordar e aprofundar um tema. convém encarecer em Fleischer o autor de uma série de sucessos. evocação brilhante de um fato criminal e mundano. bastava dizer ao dono de um cinema que eu era filho de Max Fleischer para ter uma entrada gratuita. mais desconcertante. a melhor adaptação de Jules Verne ( Vinte mil léguas submarinas). mas sempre com a mesma paradoxal humildade. obra que se constitui também em um dos melhores filmes para crianças na dupla acepção do termo.Tradução: Luiz Soares Júnior. Assim Fleischer inicia o livro que escreve sobre seu pai ( Out of the Intwell.Quando eu era pequeno. complementando suas memórias( Just tell me when to cry. Fleischer inaugura. E Fleischer continua. ( e Deus sabe o quão numerosos foram!) . rodado em sua maioria em um vagão de trem). eu me aproveitei da chance de poder me banhar na luz de sua glória. (. da sua. eu fui o filho de um homem célebre. uma forma de equilíbrio íntimo na forma de trabalhar. criador de Betty Boop e Popeye. filho de um dos mestres da animação em Holywwod. etc. nascido no Brooklyn em 1916. Bem. mais definitivo. um dos melhores filmes de guerra jamais realizados ( Between heaven and hell) . com seus personagens perturbadores. tanto nas profundezas como nas superfícies. indiretamente.. intrigante e eficaz. qualidade que vamos reencontrar em La fille sur la balançoire. e muito menos Barabbas talvez o melhor filme bíblico dos anos 60. livro que nos informa abundantemente sobre sua família e suas origens. Dirse-ia que o fato de ter nascido num meio confortável acentuou ainda mais neste homem qualidades sem dúvidas inatas: a serenidade de suas relações com seu próprio ego. rival de Walt Dysney. 2005). aparecidas em 1993): ‘Dizem que é difícil ser o filho de um homem célebre. se quisermos gemer de forma romântica .)Longe de dolorosamente viver à sua sombra. Na verdade. ambíguos. ora ela abre possibilidades que irão servir tanto a obra de Fleischer quanto a de outros. documental e lírico. A tal ponto que muitos espectadores que mal conhecem seu nome reservam à camada mais profunda de suas lembranças cinematográficas um lugar à parte para uma ou outra obraprima sua. Ora ela delimita definitivamente certa tendência de um gênero afirmado ( a claustrofobia do filme noir encontra sua ilustração limite em The narrow margin. do mais anódino ao mais atroz. foi formidável. a evocação da carreira de seu pai e. com Follow me quietly. que as comparações com ele são insuportáveis. fábula de ficção científica ecológica. Citemos casualmente alguns de seus sucessos: devemos-lhe entre outros o melhor filme de aventuras ( Os Vikings. Richard Fleischer Não podemos contar com Richard Fleischer. consciente ou inconscientemente. Não esqueçamos Soleil vert. e jamais ultrapassado em seu gênero). em cada gênero que ilustrou. mais inventivo . Em todas as instâncias age o virtuosismo de Fleischer. a narrativa baseada na busca de um assassino .. no interior do filme noir. que vc vive à sombra dele. e em The Rillington place. tentativa que Joe Dante vai concretizar de maneira brilhante vinte anos mais tarde. a mise au jour. mas antes uma espécie de poema sociológico. as evoluções dos personagens uns em relação aos outros no interior do plano. Ele vai ajudar. num abandono afetivo quase total. Ele já estava em seu primeiro filme. Child não é de forma alguma um filme de ação. uma segunda grandeza que vem se reunir à primeira. com Adventure interiérieure. sua imaginação dramática se curva às vezes a um esquema. Fleischer vê imediatamente como o novo formato pode ser usado para enriquecer suas intenções. Durante muito tempo. Como Preminger. ele lança o filme de miniaturização que se passa no interior do corpo humano. acreditei que Fleischer havia aperfeiçoado seu virtuosismo nos filmes de ação de orçamento precário dos anos 40. a mise en valeur ( a colocação em relevo) características do filme de ação ( tempo vívido e cativante. de lutas pelo poder. entretém com o tema onipresente da violência) não é apenas um cadre. Em Child of divorce. Child of divorce antecipa os filmes ulteriores de Fleischer ao revelar em plena luz suas intenções ocultas. a revelação das relações que cada um. tenham de fato a mesma densidade e complexidade de certos planos seqüência ultra-sofisticados realizados no antigo formato ( 1’66). de um extremo ao outro da escala social. este esquema chega a um acréscimo de fausto e de beleza pois aqui a decadência ( e a morte) do Viking agrega ao tema uma segunda beleza. um cenário mas o próprio tema da obra.Em The vikings. feitos na RKO. o olhar documentarista do autor pousa sobre uma decadência da noção de civilização. em Violent Saturday a exteriorizar os diferentes aspectos de um tecido social particular. E o filme aparece como o termo desta “sociologia desoladora” de Fleischer. acuidade e riqueza narrativas. será bem-vindo. por exemplo. a saber. não sem uma certa hipocrisia. isto não é verdade. autor brilhante de Violent Saturday e La fille sur la balançoire). que ele retomará em O estrangulador de Boston. que para ele a utilização. como o Cinemascope. em Eagle Lion.psicopata ( ou “serial killer”). De fato. religando mais estreitamente e de forma mais natural . ( É preciso sempre escrutar com atenção os primeiros filmes dos grandes cineastas: são com frequência eles que nos informam mais essencialmente sobre eles). Com efeito. e permitindo que bom número de planos. redundando na desordem trágica de uma sociedade que pretende viver sem interdições e sem regras ( “The donts are dying” é o leitmotiv da narrativa). crueldade insidiosa. ao mesmo tempo descritivo e explicativo. em The new centurions. mais ou menos dissimuladas. Nesta ótica. E todo progresso técnico que possa servir a esta ambição. Em Viagem fantástica. apoiando-se sobre a . e desde este. permaneceu invisível por anos ( este primeiro Child eu vi apenas em 1980. Ao contrário disso. que coloca em causa a própria noção de humanismo. violência) são apenas um meio eficaz para penetrar em profundidade em uma realidade moral e social que o interessa antes de tudo. um pano de fundo. Fleischer se interessa tanto pelo devir dos indivíduos quanto das sociedades.de um conjunto de segredos. Durante quatro décadas. todo Fleischer já está presente. que mostra as conseqüências do divórcio de seus pais em crianças . em tudo o que possui de melhor e mais original. de hierarquias.a atualização. deixadas pouco a pouco. fundando um gênero à parte. que fascinou gerações de historiadores e de artistas: o esquema ou ciclo que encadeia e une irremediavelmente grandeza e decadência. ao mesmo tempo perspicaz e comovente. Poeticamente. inspiração à qual devemos uma parte de sua obra. Child of divorce ( 1947). quase um quarto de século depois da descoberta de Fleischer . obra-prima absoluta na reconstituição documental de um incidente atroz. aparentemente simples a visualizar. nos melhores filmes de Fleischer a descrição do tecido social onde evoluem os personagens ( ou seja. Os cristãos das catedrais talhavam na pedra sua fé. mas figuram em dois filmes do único grande cineasta cristão. obedecendo assim ao esquema “grandeza e decadência” que Fleischer tinha utilizado várias vezes em seus filmes. impõem a retidão exemplar de uma arte sempre juvenil e madura . Que não venham criticar os temas bíblicos de alguns de seus filmes. DeMille Se me pedissem para eleger o mais belo plano do cinema religioso. A reprovação é em si absurda. Ele não asfixia os frêmitos da carne e as palpitações do coração. E os raivosos ataques da inteligência nada puderam contra seu magnífico e insolente sucesso. o cristão DeMille. uma implacável fidelidade às fontes das emoções. mas também de um espírito que jamais se curvou.. Seus filmes foram oferecidos a multidões e exigiam dos homens o exercício de um coração singelo e reto e de um julgamento são: sabemos que DeMille não se decepcionou com o acolhimento esperado. e por este motivo especificamente cinematográfica e cristã. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. ou seja. Eu não sei se DeMille é um autor. com um hiato de trinta anos.Meu professor de Letras comentava ironicamente Os dez mandamentos. Cecil Demille é um cineasta bem-aventurado. ouro e sangue. digna de uma criança de Anderson: é exatamente à altura da Bíblia que respira a obra de DeMille. e seus filmes. a obra de Fleischer é um dos exemplos mais brilhantes e criativos do milagre hollywwodiano. como Robert Bresson. Mas por detrás do tom ressentido do professor se oculta uma ingênua verdade. Estas imagens que tentei descrever não pertencem a Mizoguchi. DeMille. eu deixaria de lado Dreyer. e proporia aquele que afeta o espectador com um insuportável encantamento:uma perna de mulher abandona a máscara luxuosa de um biombo e se estira como uma serpente. Sua fé recolhe sua riqueza da vida. numa época em que o cinema de Hollywood iria ser definitivamente enterrado.diversidade de gêneros. destilam os confrontos às vezes épicos entre as graças e as desgraças. Eu não lhe reconheço uma temática ou um universo interior. age neste caso com lealdade. O menos espantoso nesse caso é que Fleischer tenha podido participar deste milagre até meados dos anos 70. A obra religiosa de DeMille é encarnada. ou seja. não recorre abusivamente a símbolos. e a unidade de sua obra é a única realmente digna de interesse. sem se inquietar com direitos autorais. Trata-se de The affaires of Anatol e de Sansão e Dalila que.e dizia: “Fala-se ali como na Bíblia”. cheios de carne. sem intenção demonstrativa.. Bresson e Rossellini. quando duas perfeitas mãos igualmente saem de seu refúgio para orná-la de seda. tons.Concordo com ele em que os diálogos dos filmes de DeMille e o estilo de Roland Barthes não se assemelham. orçamentos que estavam à disposição na Cidade do Cinema e que faziam sua força. Introdução a obra de Cecil B. A mise en scéne de DeMille é talhada vivazmente no real . quando a vida de um homem ou de uma mulher se transfigura em felicidades e sofrimentos. e não vejo porque os intelectuais europeus lhe . ou então o plano onde podemos contemplar uma outra mulher seminua se extasiar com a carícia dos fluxos de ouro e pedras preciosas que ela dissemina pelo seu corpo. Cecil Blount Demille. como Rossellini. e sem querer meu professor lhe acordava um certificado de grandeza e beleza. um povo geme sob o chicote. sua liberdade de espírito jamais suportou compromissos. e aliás demonstrarei como o cavaleiro do Santo-Sepulcro conheceu. vê a alma humana nas vilanias e convulsões de sua Queda. despido de toda intenção polêmica ou demonstrativa. . e no entanto nenhuma complacência enternece estes grandiosos planos de escravidão e opressão. cineasta cristão. Seu tenaz individualismo leva. não velada pelas possibilidades opressoras de uma ideologia ou formalismo. O que fascina em Sansão e Dalila não é tanto Victor Mature quanto o esplendor arrogante de Heddy Lamar. É um mestre imagista da Desobediência. aparentado aos maiores. DeMille não é prisioneiro de nenhum sistema religioso ou estético. de forma diametralmente oposta. a visão do Éden. Se sua fé não sofre nenhuma acomodação. enfim. as orgias terrificantes em Dynamite ou as crueldades em Godless girl irrompem glacialmente na tela do cinema. quando o palácio desaba quando o rei de Gaza ( Georges Sanders) soergue um brinde de adeus. com efeito. Apenas uma sociedade jovem e leal. pois a emoção é livre e simples. A fabulosa Duesenberg de Kay Johnson em Dynamite ou as jóias de Heddy Lamar em Sansão são o escrínio eterno do pecado. pois esta lucidez trágica e intuição religiosa se confundem. dos grandes aristocratas da fé. é também um homem livre. e aos discursos ele prefere o espetáculo nu dos vícios e perdições. a dizer que este é um grande cineasta americano. crianças e velhos sucumbem sob o peso da pedra: a inocência torturada sugere a DeMille belas cenas. Em Dez mandamentos. E seu olhar alia a compaixão à lucidez. Godless girl oferece a mais assustadora visão das obras de Satã. fulminados por uma mise en scéne severa e intransigente. belos contendores dos bem-pensantes e do bom senso. que contam entre as mais duras que se pôde ver no cinema (vejamos igualmente The sign of the cross). idolatra demais tudo o que vive e que sofre para odiar seus personagens. DeMille. de fato. Em sua obra. Demille não é um moderado. Mas deixemos os intelectuais opinando e busquemos adquirir a serenidade imperturbável do nosso metteur en scéne. DeMille. e que este grande poeta da infelicidade e da violência é antes de tudo o poeta da alegria e da doçura. gostaria de me abster de qualificar este filme de fantástico. e nos faz pensar nestes escultores desconhecidos da Idade Média . metteur em scéne generoso.que compõem o inevitável corolário do pecado: a luz insana do enxofre que brilha ilumina ainda a soberba liturgia do Mal. pertence à raça chamejante dos grandes cristãos violentos e sexuados. fossem embora os mais detestáveis do Velho Testamento1: DeMille não julga. Ele escrevia: “Ele. podemos ler a admirável resposta de Léon Bloy aos acusadores de Barbey d’Aurevilly. DeMille não profere nenhum anátema. a emoção é um maravilhoso instrumento de conhecimento. Este espetáculo infernal de jovens espancados ou jogados em uma pocilga horroriza e espanta ao mesmo tempo: Godless girl possui uma tal densidade de selvageria e brutalidade que apenas abordaram os grandes contendores do Mal. Eu fico tentado a me apropriar deste julgamento definitivo e a aplicá-lo a DeMille. onde crianças e adolescentes são entregues aos suplícios monstruosos organizados meticulosamente para eles numa casa de correção nos Estados Unidos. e sobretudo este cúmulo de cinismo e indiferença . que inocentemente mencionavam todas os horrores dos réprobos sobre os muros de suas catedrais”. mas mostra. com um realismo simples e terrível. Cecil B. E Demille é forte o suficiente para não subtrair destas imagens o terrível aparato da sedução. Neste sentido. garantida pela profunda inocência de seu autor. Os transbordamentos de luxo em Sansão e Dalila. tão adequado e tão indomável. A este apaixonado pela liberdade afeta particularmente a infelicidade . melhor que qualquer outra coisa. Este. Eu não me prolongarei de forma abusiva sobre os infernos de DeMille. Pois Cecil B. Em Belluaires e Porchers. No entanto. o rosto iluminado pelo sorriso libertino. pôde engendrar um cinema tão preciso.recusam o que concedem a Veronese ou Poussin. a sociedade americana. a narrativa e a viagem a conduzem sob o ritmo aleatório dos grandes expressos intercontinentais. é também.Cineasta americano. cuja importância não deixaremos de assinalar. Que me compreendam bem: não penso que sua obra iguale a universalidade e a riqueza de Raoul Walsh.pois estes caminhos de ferro. um grande filme de “amor ferroviário”. foram os grandes cúmplices do sucesso mundial do filme. se não esmaecem sob a fachada da coletividade. estão à altura da nova coletividade. Este sangue de grande raça faz florescer em força e brilho a obra inteira de DeMille. Ora. A biografia de DeMille escrita por Michel Mourlet é bem esclarecedora. justificam a ambição e a consciência de uma civilização essencialmente voluntarista e confiante. as dores se engendram e se dispersam no entrelaçamento dos espetáculos do circo. estabelecer grandes vias de comunicação: ao contar a história de uma linha ferroviária. era o fruto de uma civilização virgem. Bíblia na mão. DeMille eleva sua arte ao coração da América juvenil e conquistadora. o cinema americano. onde o trilho e a locomotiva resplandecem de potência. se infla. Paul Morand escreveu: “As estradas são a expressão da inteligência. Transcrevi esta bela frase pois me permite introduzir um gosto original de DeMille. muito felizes de se ver justificados pelas maquinações eclesiásticas 2. Cecil DeMille é provavelmente “ o mais americano” dos grandes cineastas americanos. A paixão européia pelos westerns se assemelha a uma confusa nostalgia por uma era quase mitológica. escritores ou cineastas. pioneiros. As crianças. os meios de locomoção e particularmente os caminhos de ferro. Union Pacific. onde sua intensidade varia segundo a dificuldade de um trapézio. uma nação. depois o de Walsh e DeMille. o capricho de um elefante e o número de . se ouso falar assim. Construir rotas.a ninguém surpreenderá que seus heróis favoritos sejam “fundadores de impérios” e que estes. da cultura e da liberdade de uma ação”. Por isso . mas homens e mulheres purificados pelo exílio construírem. The Greatest show on Earth reúne as condições exemplares do desabrochamento de um gênio lúcido e totalmente sob domínio: cada plano faz ressoar a vida em plena luz. DeMille é em primeiro lugar pelo seu caráter religioso. talvez devêssemos salvar Union Pacific. onde não se via Igrejas a elevarem a Cruz nos altares. magnífico western. enquanto que estes americanos são contemporâneos das épocas que ilustram. The Greatest show on Earth. glorifica o espírito de uma nação. enfim. ainda mais que as estradas. O circo! Quando a gigante tela se ergue. DeMille fundou o cinema americano. que tomaram da Escritura o princípio exclusivo de seu pensamento e ação. que ainda não tiveram o gosto pela vida e a liberdade do amor seviciados pela escravidão universitária. primeiro o de Ince e de Porter. É preciso um esforço corajoso da imaginação para compartilhar a fé destes homens do Novo Mundo. . DeMille adora as viagens. pois se identifica exatamente à história do Cinema americano e que tem como medida a própria América: é a vida de um pioneiro e de um fundador. . A energia maravilhosa deste filme extasiado e musculoso . quando o padre abençoa a locomotiva que conduzirá o circo através da América e as hastes se afogueiam sob a grandiosa respiração do vapor. as alegrias. este talento perfeito que é ser Americano triunfa em uma obra-prima encantadora. mas também a síntese e o símbolo de um grande sucesso coletivo. se desdobra e se estende soberbamente em torno dos mastros . Há em seus filmes uma vontade de simplicidade dramática e de clareza um tanto brutal que só surpreendem europeus absorvidos pelas delícias de Capoue. Mas se gerações futuras quisessem conservar um único testemunho da civilização americana. o coração palpita como se assistisse ao nascimento de um mundo e uma arte conjugados. Em uma larga medida. tornam-se suas pedras de toque: o herói de Union Pacific não tem outro propósito senão servir. Cendrars ficou maravilhado por este filme onde as paixões. Cecil B. Como as princesas da corte de Louis XVI que se deixaram seduzir pelos balões de Montgolfier. a acuidade do enquadramento. Fritz Lang: Human desire. quando DeMille mostra. ou seja. o segundo onde Charlton Heston . cineasta moderno. Jean Cocteau. Enumerarei três.quiilômetros de um trilho. Em conjunto com um sereno desejo de construir um Novo Mundo. a síntese e concisão da mise en scéne. Fiquei bem tentado a escrever que este Americano. elíptica.Uma arte nova se inventa para trabalhar matérias e energias novas: a arte de Cecil B. DeMille. quando digo que sua arte é essencialmente moderna. aparentemente restabelecido. em um extraordinário plano de conjunto. Raoul Walsh: Colorado Territory. rápida. um cavaleiro assomar neste trem e saltar sobre um vagão. Assim. sobre a pista. entre os espectadores. Roger Vailland ou Jacques Laurent. da forma como entendia Péguy. depois do acidente de trem. à maneira de Raoul Walsh ou Allan Dwan. sólida sob todas as dificuldades. White heat. Dois primeiro em The greatest show on Earth: o primeiro em que Cornel Wilde cai do trapézio e se esmaga sobre a pista. o amor do circo. Já aqui evoquei várias vezes. Sinto-me singularmente desamparado para apenas sugerir a prodigiosa vitalidade desta mise em scéne. DeMille é essencialmente moderna. e não descreverei mais. Mas DeMille é muito orgulhoso e reto para sustentar um paradoxo: de fato. os melhores planos dos filmes de DeMille fulminavam verdadeiramente pela surpresa da elipse. enfim. Barrès deu a uma de suas heroínas o nome de “Nossa Senhora do vagão do Sleepingcar” ( Três estações de psicoterapia): o trem é talvez o objeto que mais fascinou alguns civilizados excitados pela modernidade (Cendrars. mas monumental e ruidosa. violenta.e desde sua origem o cinema americano lhe consagrou as mais belas sequências: Edwin Porter: The great train robbery. ela se dispersa por todos os lados. Honegger). da violência e da singularidade do tema. afirmo que DeMille praticou uma mise en scéne que elevava . nas coxias. dentre as quais a melhor permanece sendo The affairs of Anatol. projetado brutalmente até o solo por um movimento descendente de câmera. que este cristão era profundamente anti-moderno. cuja evidência súbita desempenha um papel audacioso. sua complexidade e sutileza. é porque as virtudes de uma Crampton ou de um Pacific 23 são também as de sua mise em scéne: poderosa. e aos quais atribuiríamos as qualidades dos metais raros. face à câmera fixada sobre um trem em marcha. Maurice Barres foi o primeiro a compreender que os sentimentos não vagabundeavam mais ao ritmo das diligências. e que a língua francesa deveria buscar em si um novo classicismo. estes príncipes do espírito não desdenham o prazer da velocidade e de uma cadência novas. lição recebida por Paul Morand. que não se poderia mais escrever Adolphe ou Le Lys dans la valée. enquanto o cavalo permanece no alto do trem! Cecil B. A energia de que falava a respeito de Union Pacific se intensifica em The greatest . o catálogo destes objetos preciosos que fazem a narrativa se romper como certos versos de Racine . Recebe sua apoteose ao fim do filme. Só os iguala em vigor este plano noturno em Union Pacific onde vemos. Se DeMille ama a tal ponto os caminhos de ferro. DEMille herda da velha América e de Fenimore Cooper uma desconfiança da civilização urbana que se desvela nas deliciosas comédias satíricas do cinema mudo . a beleza do ferro e dos cavalos a vapor. nervosa. arranca o impermeável que cobre seu braço esquerdo e descobre bruscamente um horrível coto de braço. e a maravilhosa Betty Hutton em cima de um elefante cantar ao amor. o amor da vida. a cavalgada improvisada pelos sobreviventes conduzir para um “théatre de fortune” ( teatro de variedades em Paris) a multidão em delírio. crônica ácida e refinada da alta burguesia de Nova York. intrigado pela demissão de um sorridente Cornel Wilde que acabara de voltar do hospital. Morand. DeMille. o atroz estilhaçamento de uma felicidade perdida. imóvel. The squaw Man ( 1931). Esta obra-prima de emoção e de delicadeza atinge ápices de nobreza: quando a índia oferece a seu filho o cavalinho de pau que fez para ele e o pequeno o troca pelo trem mecânico que lhe deu o pai. olhos inundados de lágrimas. um sorriso ferido não podem impedir a fulgurante destruição de uma paz íntima que DeMille descreve com um tato admirável. Giraudoux não se enganou. conta-nos a busca infeliz da felicidade conjugal. os prazeres eqüestres: Milady. características que nos remetem irresistivelmente a Poussin. mas o autor de Da Velocidade nos ensinou também o gosto pela lentidão. entre os gritos de danação. purificados de toda impureza. um desejo de calma e de repouso. na adoração cúmplice para com a jovem Santa do povo. Joan the Woman revela a intimidade absoluta do cineasta com seu sonho.estes loucos pelo volante são apaixonados por suas aldeias. talvez o filme mais sóbrio na história do cinema. Pradarias visitadas por santas. . recusando rigorosamente o que não lhe é essencial. aliás. Tradução: Luiz Soares Júnior. Esta santidade triunfal que ilumina as angélicas cenas da infância ou os êxtases sobrenaturais dos combates reconcilia na realidade das obras de Deus as duas aspirações de uma mise en scéne que aspira à serenidade e conduzida à ação. .daí a pureza quase abstrata de seus cenários e figurinos. DeMille assemelham-se ao Paraíso. petrificada. um pobre casebre da Lorena em que se reconhece Georges de La Tour: as aldeias secretas de Cecil B. e o combate desesperado que ele empreende pelo seu Criador lhe confere uma grandeza que situa o filme numa perspectiva essencialmente trágica. A vida de Joanna D’arc suscitou muitos filmes. . Notas: 1. Encontramos em Sansão e Dalila. A obra de DeMille converge para uma necessidade de equilíbrio. o herói e os sentimentos. Os filmes de DeMille reservam. oásis agrestes de silêncio e de frescor onde parecem se realizar os idílios frágeis. 2. Revisão: Matheus Cartaxo. belo filme pudico. uma luz mais doce e paisagens menos tormentosas. Dez mandamentos e sobretudo em Godless girl estes radiosos instantes onde natureza. as lágrimas das vítimas ou os estrondos das máquinas. mas nenhum que seja animado de uma fé tão assegurada. Michel Marmin. ressente de súbito a crueldade e o peso da infelicidade. Paul Morand é sem dúvida o único escritor que soube nos falar de uma Bugatti ( Buda Vivo).que é apenas um instrumento de Deus. se ordenam sob o milagre da candura divina: incursões fabulosas dos sonhos de um cristão que não se consola com a Queda. plenitude espontânea de um olhar e de uma mise en scéne tão exatos que Louis Delluc podia ver na Joanna D’arc do Americano uma grande obra “francesa”. Os Dez mandamentos.sua época. de uma fidelidade e humildade tão exemplares. Um ternura infinita. a infeliz. Ramsés é um personagem bem mais comovente que Moisés. dando-lhe uma alma. a condensação teatral da mise en scéne. conduz a tragédia com um despojamento exemplar. a sobriedade hierática da direção de atores ( Charlton Heston e Yul Brynner igualmente admiráveis). uma pequena camponesa tocada pela Graça. Nos Dez mandamentos. Joan the woman: o classicismo de uma arte recém-nascida. o charme de um grande rio preguiçoso. segundo ele. talvez inteiramente admirável. .ébrios de cultura e política. O carrasco de Veneza e Fille d’amour. descoberto depois de mil outros por alguns adolescentes excitados. destas grandes máquinas ruidosas e coloridas que ele constrói. entregue como pasto ao esnobismo devorador das multidões. preciosa e paroxística . agora é Antonioni ou Resnais que precisamos suportar. a complicação de suas formas. a ambição de seus temas. no espírito de desenhos animados para as crianças ( ele fala isso a propósito de Hércules). Nossos infelizes contemporâneos confundem tenazmente o estetismo e a beleza. a não ser por necessidades de roteiro. e este preâmbulo teve apenas por objeto situar Cottafavi em seu verdadeiro posto de meteorito. sem julgamento e sem gênio que lotam os cafés. registro cuja existência se explica aqui pela relativa liberdade que tais produções com orçamento limitado e fraca difusão paradoxalmente permitiram. Ele também se mostra surpreso ao ouvir os elogios ou as críticas endereçadas a um “marivaudage’ antigo intitulado Les Vierges de Rome. “sereno bloco aqui decaído por um obscuro desastre”. Não um metteur em scéne a mais. embora seja necessário rever Milady. já que. é por estima a uma obra que de forma alguma se inicia com Revolta dos gladiadores. Eles pensam “em primeiro grau” porque apenas se importam com as aparências da obra. ao contrário portanto do que se vê evocado nos artigos elogiosos. em filmes em preto e branco. como Milady e os mosqueteiros.Du coté de Racine Em uma época na qual qualquer um proclama a importância de qualquer coisa. de torturas. revistas e certos cineclubes . mais conforme às preocupações do metteur em scéne. como aliás se depreende de suas declarações. a fim de assinalar sua importância a alguns espíritos fraternais. uma vez que os malentendidos não cessam. assim como antes quiseram discernir um auto-retrato no M de Losey. Um cinema de paixão. o tédio e a gravidade. com a ironia aveludada que estende em torno de si como um véu. a inteligência e os professores. Chamo de pensadores de primeiro grau a inumerável corte de intelectuais sem gosto. então triunfante. sobretudo nada ao neo-realismo. filme do qual se diz responsável por apenas alguns planos cujo número se pode contar nos dedos. É preciso ouvir Cottafavi falar. com problemas de ordem histórico-mitológica romana. nos impedindo portanto de verificar um julgamento mais precoce. que não tem estritamente nenhuma ligação. de .Uma mise en scéne espantosa se encontrava definida. eles se estabelecem em um agudo registro passional. É por isso que o entusiasmo de certos jovens diletantes pelo que seu representante mais dotado nomeia de forma galhofeira como “neo-mitologismo” aparece-nos como menos imprudente do que parece. depois de Bergman. Estas banais constatações devem ser atualmente repetidas. Mas este filme desertou de nossas telas há 2 anos. Mas assim se deu em todas as épocas. Centrados ao extremo sobre dois ou 3 personagens. suas referências culturais. ainda muito pouco considerado hoje em dia e que apresenta as características mais passíveis de excitar o desprezo grosseiro dos pensadores de primeiro grau. Se é preciso insistir sobre a possibilidade de um mal-entendido a respeito de Cottafavi. Vittorio ainda não deu o melhor de si mesmo. incapazes por isso mesmo de sentir em uma obra a vida ou a ausência de vida. é temerário tentar exprimir o que enxergamos na obra de um cineasta há dois anos atrás desconhecido. que não devia nada a ninguém. incapazes de dominar um mundo que eles apreendem através de filtros teóricos com colorações e deformações estranhamente variadas . mas um dos raros cineastas que merecem que se tome a palavra . não um “gênio” a mais. a tudo o que constitui este envelope mais ou menos ricamente ornado que não pensam em abrir. depois de Fellini. A verdade é que o melhor desta obra se situa antes do período cinemascope. Recordemo-nos que Fritz Lang começou a dominar sua mise en scéne aos cinqüenta anos de idade e vinte de carreira. quando escuta o galope dos cavalos. que talvez fosse melhor qualificar de alegria. mas ela se volta para a câmera com lágrimas que marejam seus olhos. flageladas. como o que se pinta no rosto de uma . É o único cineasta que filma sistematicamente a instalação da crise. os mesmos reflexos de uma sensibilidade superaguda em torno de certas jovens mulheres. nesta solidão absoluta. sua angústia e sua morte. que determina uma crueza de negros e brancos. A cada plano uma tragédia de ordem física se instaura. No início de Milady. orienta-o totalmente em direção a um único fim e. Retira-se para seu quarto. Mas Cottafavi. e em um grau menor na Revolta dos gladiadores e Legiões de Cleópatra. Podemos reencontrar em seguida. desde alguns meses. principalmente no Carrasco de Veneza. uma cena nos mostra uma jovem que acaba de saber que seu marido foi morto. enquanto ela murmura: “Os Mosqueteiros”. tendo penetrado aí por efração. falta de jeito) de autodidata. mordidas pelas serpentes. enquadramentos desajeitados. découpage às vezes “travada”. que domina os instantes de crise. devoradas pelas feras. a noção de “irrupção” ( envahissement). e isto a tal ponto que não se poderia falar impunemente em coincidências. até finalmente tombar. Assistimos à invasão lenta e inelutável de uma alma pela dor . dando-nos a vertiginosa sensação de violar um segredo. um mondo radioso torna-se uma potência eriçada de grilhões onde a criatura aprisionada se debate. apesar do interesse intermitente que o autor portava a estes dois filmes. Acaba de ser ferido. prazer tão exacerbado quanto a dor que ele suprime. Estes exemplos ilustram uma dimensão capital da mise em scéne de Cottafavi. ou mais fisicamente ainda de prazer . Na Fiamma che non se spegne. e pouco e a pouco é invadido por este. crueza que indica na técnica de Cottafavi desta época um amadorismo menos recomendável. um duque se bate em duelo. ao invés de passar diretamente à sua expressão “já instalada”. brancos quase calcários . Ela compreende a notícia através de uma troca de olhares. de penetrar em uma zona interdita. anda não distribuído na França. O que conta aqui são algumas penetrações mais profundas.É esta petrificação do ser que a câmera descobre . Aliás. esmagadas. de gelo e de metal. pois não admitimos o principio em voga.terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados.. transida de horror. e parte novamente. se petrifica. mas torna. segundo o qual uma câmera que treme indica forçosamente genialidade . o rosto da heroína. marcadas a ferro e fogo. que o desapossa de sua liberdade e de sua consciência lúcida. tratadas com extrema crueldade. Ele se encontra fora de campo. mineraliza-o em sua paixão. segundo infinito onde o ser é surpreendido em uma íntima transformação. pois o verdadeiro tema destes filmes reside efetivamente no sofrimento da carne. No Carrasco de Veneza. dizíamos. imerso na morte. a figura e o corpo estupefatos. Eu vejo apenas nos filmes de Cottafavi este caráter ensolarado da fotografia. Toda atenção é fixada nesta passagem entre a calmaria e a tempestade. mesmo se certos resultados sejam para nós fonte de encantamento. em gestos raros. ou uma fotografia grisalha de atualidades possua mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam a vida e o brilho. filmada face a face neste quarto. como se descobrisse com um espanto imenso seu próprio fim. pelo peso do silêncio que a acolhe quando entra em casa. ele entra marchando. Nós não vemos imediatamente seu rosto. em silêncios ensurdecedores. inventa o cinema: é preciso lhe perdoar estes ‘maladresses” ( mal jeito. em olhares de pedra. contemplássemos com horror sagrado aquilo que ninguém deveria contemplar. para além da malha dos hábitos e a máscara vermelha do Príncipe. algo que convém tão perfeitamente às cenas nas folhagens ou à beira da água.. Mas a tragédia é entrecortada de momentos de felicidade. em todos os casos violentamente eletrizada. de alguma forma. como se. de tal forma é verdade que esta sensibilidade só existe como suplicante ou exultante. preciosismos juvenis.o motor desengata. por meio do conhecimento dos termos do conflito. diante de uma exploração maníaca do tempo e do espaço. Da mesma forma. uma feiúra admirável de grande felino). A violência é uma “descompressão”: resultante de uma tensão entre homem e mundo. onde o sublime não é de natureza íntima mas espetacular e coletiva. Assim. o que nos parecerá singular. em um mundo de príncipes. Neste preciso momento. que as outras artes só podem sugerir ou simular. até o desencadeamento do evento narrado. Estamos muito distantes da démarche fútil do “behaviorismo”. podemos dizer que toda obra a contém ou no mínimo a postula. Assim. elegante e viril. Exaltação do ator. Este momento. à semelhança de um abscesso que vaza. que consiste na busca de uma harmonia mais real e superior. da convulsão mental à sua encarnação no universo dos corpos e dos objetos. latente ou virulenta. a simetria dos gestos e do cenário. mesmo enquanto primeiro momento de uma démarche que a negou. Toda a sequência é fundada sobre uma geometria dos deslocamentos dos soldados em relação a volumes regulares. É preciso passar por ela. e o poder de resolução concedido por este saber. e representa a perfeição de uma raça senhorial. no momento em que a força acumulada extravasa. ela reside no seio de toda criação.mulher no instante em que o prazer a invade e absorve. A violência é um tema maior da estética. em torno de certos rostos de mulheres. até o instante em que o tema de sua descrição efetua a passagem do ato intencional. se encontra definido um tipo de herói cujos modelos são Charlton Heston. a mise en scéne vai encontrar na violência uma constante ocasião de beleza. onde todos os gestos e eventos se equalizam. que conduz à uma liturgia da preparação: preparativos de revolta. a câmera se apossa de forma natural. Ultrapassada ou presente. vamos ser obrigados a reconhecer que Cottafavi está do lado de Racine . A negação da violência em uma obra de paz compromete esta obra nas dimensões mais secretas de seu ser. e empunha a tocha que a literatura lhe estende. um soldado vai ser fuzilado. nos confusos limbos de sua gestação. Losey torna-se incomensuravelmente superior a Stendhal. Stendhal é superior a Losey. no limite de suas possibilidades. falamos de cinema por aqui. Fernando Lamas. paradoxal e exemplar. nas cenas decorativas. se impulsiona em jatos crescentes sobre seu obstáculo. caminhões estacionados. de execução capital. estes eventos são precedidos de uma “mise en place” do sistema . do esfacelamento ( déchirement) secreto das paixões. introduz em uma ordem nefasta sua desordem pessoal. ela explode no ponto extremo desta tensão. concilia a força à beleza ( ou. O herói destroça os malefícios. Herói brutal e nobre. se quisermos encontrar algum repouso. feita para vencer e pressentir ou conhecer a todos os . se entendermos a arte como um caminho em direção ao apaziguamento. Apologia da violência. para Palance. que o preenche pouco a pouco até o transbordamento. Robert Wagner e Jack Palance. Se quisermos bem considerar que esta tragédia se ordena em torno do amor. Assim. utilizando. já que vem ao mundo nos gestos do homem. mas também no exercício desta força que conforma a matéria à forma com um furor obstinado. no sentido nobre do termo. Às vezes. no final de Fiamma. É a arte por eleição da violência. Este é o mecanismo da tragédia. Michel Mourlet Tradução: Luiz Soares Júnior. falésias brancas. À “irrupção” ( envahissement) interior corresponde o mesmo movimento exterior. mise en place que retém a quase totalidade da atenção. rompe os diques. o mundo toma uma única significação. de que eles decorrerão como uma consequência geométrica. com seu pote de tinta preta. e que eles vêem em todos os lugares. das mais derrisórias crispações. independnete de todo e qualquer filme. “em impasse”. É o império do falso. eis o que nos é dado. recobre uma concepção nietzcheana da moral sincera. e sua presença num filme é suficiente para provocar a beleza. A violência contida testemunhada pela sombria fosforescência de seus olhos. Este crítico não se apercebeu que procedia. um crítico dizia que. No nível mais baixo. em quem toda expressão. esta alegria do gesto eficaz. sem ressonâncias para além do tohu-bohu sonoro onde ela se compraz. mas a inundação permanente. É neste sentido que podemos dizer que Heston . aos 17 ou 18 anos. por uma confusão sem dúvida interesseira. miserável. Toda intensidade real se torna impossível. É necessária a simplicidade de certos teólogos para relacionar sua significação a uma entidade política que substituiu para eles o Diabo . o arco orgulhoso das sobrancelhas. em sua essência mais pura. e resolvê-los pelo desprezo de um deus prisioneiro. dos fariseus e dos escravos. do artifício. Há alguns anos. agitado por vagalhões surdos. 1 Charlton Heston é um axioma. mas é curta. Pois o cinema nos propõe diversos tipos de violência. Welles só sabe destroçar figurinos de cartolina que ele desfila diante de nós. nestas experiências de esteta neurótico. a mise en scéne. oposta à consciência dos idealistas. tende ao que certas pessoas qualificam de “fascismo”. A violência de Welles é mais sincera. este brilho do olhar depois da vitória. cuja estética ignora u recusa Charlton Heston. a Welles? Mas nossa ingratidão a nós mesmos. o terreno lamacento. a mise en scéne pode aceder aos confrontos mais intensos. esta não tem limites). enquanto ruge nos alto-falantes. unicamente por sua existência. em Ray “a violência ‘inflama’ diretamente. James Mason constantemente entre as lágrimas e as tesouras. ao julgamento sem apelação de uma mise en scéne desvitalizada por perpétuos transbordamentos. Recusar esta busca de uma ordem natural. a potência fabulosa do torso. é condenar-se a nada captar de uma arte que consiste na busca da felicidade a través do drama dos corpos. com palavras que julgava lisonjeiras. na medida em que este termo . Heston é um herói mais languiano que walshiano. infelizmente desenfreada: não a pressão formidável de uma massa d’água que sua liberação transformará em correnteza. conquista e de orgulho. é uma espécie de aura que acompanha cada gesto do herói. que fazemos gritar ao pressionar seus ventres. a paixão se esgarça em intermináveis farrapos. o perfil de águia. todo élan passional se encontram a serviço de algumas idéias de que ele não conseguiu se desembaraçar desde a idade ingrata ( Quantos de nós não descobriram o cinema. Uma escala acima. inscritas sobre marionetes manipuladas por fios. Nisto. algo que o pior dos metteurs en scéne não consegue envilecer. Apenas ele já constitui uma tragédia. graças a ele. a violência de Kazan. Deixemos de lado a violência em Buñuel. Nicholas Ray oferece da violência uma imagem mais carnal e ampla. É a reação da criança que chuta o móvel onde se feriu: a cena onde o cidadão Kane se lança a depredações do mobiliário é significativa deste estado de espírito. frenesi de guignols alcoólicos cuja expressão ideal é atingida pelo inominável Karl Maden.Exercício de violência. mais verdadeira. é mais uma violência que canta que uma violência que mata”. ela parece mesmo puramente autobiográfica. Por ele. a curva amarga e dura da boca. e não há nenhum conhecimento real do ator nesses excessos gratuitos. .êxtases. a saliência dos pômulos. nos dá do cinema uma definição ais justa que filmes como Hiroshima mon amour ou Cidadão Kane. O infantilismo do pensamento rivaliza com o grotesco das formas. Cego por seu próprio personagem. exprime a coragem de viver. mas traça um caminho triunfal. pertencente ao procônsul da Armênia. Revolta dos gladiadores não constitui uma excelente introdução ao conhecimento de Cottafavi. L’’affranchi. A obra de Walsh é a ilustração do aforismo de Zarathoustra: “O homem é feito para a guerra.É com Walsh que encontramos. presente e dissimulada em todos pos gestos e todos os olhares. Ao apreendê-la.entre Belleville e a Porte Saint Martin. e o resto é loucura”. O Carrasco de Veneza. tem tendência a se diluir nesta primeira confrontação com o formato . Além do mais. ela capta também a calmaria. pelo contrário. A Revolta dos Gladiadores Certo. centelha à passagem do herói. distribuídas. como em Ray. um filme de época não é algo sério.com exceção da última. a mulher para o repouso do guerreiro. sua nobreza. A abordagem loseyana da violência se situa no nível mais íntimo da carne. Referência do autor a Martinho Lutero. necessariamente. Michel Mourlet Tradução: Luiz Soares Júnior. Todos estes filmes são interessantes. Esta violência clara e retilínea não designa sua derrota. como o salto nos músculos do tigre. Violência da guerra ou do conquistador solitário. este aqui está cheio de erros históricos. que atendia pelo nome de Medorus. duas são obras-primas: Milady e Femmes libres. oferecidas pela tela normal. ela se recolhe e se concentra. Sem dúvida. Fille d’amour. Seria mais conveniente aproximar de Losey. Vittorio Cottafavi é um jovem metteur em scéne italiano que realizou uma quinzena de filmes com títulos proibitivos. Milady e os Mosqueteiros. manifestação de seu poder. Contida. a cada enervação amplificada do sangue. quatro ou cinco contém belezas às quais nenhum outro cineasta europeu pode aspirar emular. completamente desconhecidos dos amateurs de cinema. é claro. 1. mas unicamente os de Walsh se alçam de forma plena aos níveis da epopéia ou da tragédia. pela primeira vez. A mise en place. que segundo consta. a verdadeira beleza da violência. ela capta a palpitação frenética do ser no momento em que este se exaspera contra os obstáculos. o reconhecimento de um confronto dos homens com os elementos. dizia que o Diabo lhe aparecia e lhe atirava um tinteiro à cabeça. Repris de Justice. Esta violência abre uma brecha em direção à paz e anuncia estranhos excessos de felicidade. o mundo em torno desta desaba e enterra o herói. Por exemplo. O universo asfixiado de Fritz Lang é particularmente propício à eclosão e manutenção da violência. Roberty Aldrich. até agora extremamente íntima. certos espantosos reflexos de ator em Ida Lupino ou Mizoguchi. do homem com os outros homens. com um aspecto miseravelmente “alimentar”. ao invés de se diluir por rarefação. Se a violência de Walsh é solar. Onde está este cão? Enfim. Tito Lívio nos fala de um cão fidelíssimo. a desintumescência. e só vejo o argumento da Flauta encantada de Mozart para rivalizar com ele em termos de ingenuidade e inverossimilhanças. e o desencadeamento da força para a vitória. Pudemos ver na França: Femmes libres. À ilustração desta fórmula visam todos os honestos filmes de aventuras e de combates. ao invés do diretor de The big knife. delineia com ênfase a caricatura. mas em um sentido muito diferente. e sua dimensão trágica mais constante. em um instante postos em questão. co-produções dubladas. fundada sobre as possibilidades maiores de surpresa. o roteiro é infantil. a de Lang é subterrânea . refreada. Mas o cineasta que melhor soube mostrar e penetrar na violência foi Losey. Losey cujo discípulo incompreensível . Le Prince au masque rouge e esta Revolta dos gladiadores. de “surgimento” e de seleção. Ela apenas se libera no terror. Pode-se certamente falar sobre evolução no trabalho do autor de Roma. do amor e da morte. a primeira performance da Sagração da Primavera: ouvimos exclamações do tipo “Ele não sabe pintar”. “Eu posso fazer algo tão bom quanto”. Antes de Rossellini. Máscaras. por algum tipo de reflexo condicionado. Rohmer sobre Viagem a Itália O termo "neo-realismo" se tornou tão discutível que eu hesitaria em usá-lo em relação a Viagem à Itália se o próprio Rossellini não o tivesse de fato invocado. O público reage de um jeito particular com o que é novo. beleza crucificada. punhais (e seus equivalentes modernos) só conhecem duas conclusões possíveis . não é música. então emergiu num salão sombrio uma convenção do natural. jogo gratuitos e “fora de propósito” ( hors de propos) que nos falam do essencial. seqüência de impulsos e de repousos. à semelhança de Preminger e Mizoguchi. Que me importam os pretextos. Ele estava familiarizado com todos os caminhos que. não é cinema”. Tão deliberada quanto a recusa de Manet ao chiaroscuro. Assim como os estudantes de arte do último século forjaram uma convenção da "pose". este. e nos oferecendo. provocando um certo relaxamento geral. Assim se encontra ilustrada a mise en scéne que amamos . pesados cortinados. os olhos perdidos. isto é. Para Rossellini essa substância não existe. Com cada tentativa ele se exibe (goes through the roof) com tamanha diligência que nós não temos nem tempo para ajustar nossos instrumentos e avaliar sua performance. cinzela seu delírio em filmes preciosos. agudos e ferinos como diamantes. Cottafavi se liga aqui à beleza dos rostos. ainda aqui e já fora do mundo. para servir de suporte e referência a algumas proposições sobre o gênio de seu autor. gritos. em um último estilhaçamento. palácios. Michel Mourlet Tradução: Luiz Soares Júnior A Terra do Milagre. um trabalho pessoal. e ele jogaria com esses reflexos mas não tentaria rompê-los. Cidade Aberta. esta “lentidão “ ( ralentissement) súbito do homem que estaca diante de sua própria morte. No entanto. espelhamentos. poderia provocar emoções particulares em uma platéia – encantada com o menor gesto ou movimento. que é seu colaborador mais duradouro e o mais próximo a ele em idéias – não é verdade que ele negou seus amores antigos: ele somente se contentou em sair na dianteira. fantasmas maiores que se resolvem em uma sublimação dos gestos. Se é verdade que seus filmes mais recentes só podem em parte ser colocados junto com todas as outras produções italianas – incluindo os filmes de Fellini. de dimensão eterna. flagelações. “esfolados vivos”. mas feito de uma substância cinematográfica compartilhada. exceto no sentido . Deixando seus compatriotas tateando nas brumas neo-realistas.de uma linguagem cinematográfica coberta com cinqüenta anos de uso. Observemos novamente os julgamentos nas primeiras exibições dos impressionistas ou do fauvismo. Ao menos esse foi seu comentário para um membro da platéia na estréia em Paris. até o mais inspirado e original dos cineastas se sentiria obrigado a usar o legado de seus precursores. oscilando entre os dois pólos de sedução. o segredo de uma divindade dolorosa. grupo esculpido no instante e. Ele vê neste filme uma expressão mais pura e profunda de um “neo-realismo” que em qualquer um de seus filmes anteriores. o autor de Viagem à Itália despreza a escolha mais fácil . e tempos longos desnecessários. magnificada nos suplícios. se os eventos se dissolvem na magnificência da expressão? Mais que qualquer outro. Ele criaria arte. condenando seus rivais por estarem a salvo em seus lugares. janelas sem fundo. Seus atores não se comportam como os atores de outros filmes. ou então esta cintilação de dois corpos enfim reunidos. nostalgia de um universo de príncipes onde apenas os jogos de príncipes são permitidos. há ainda muitos planos tensos. no entanto.Cinémascope. paroxísticos. “Não é pintura. venenos. com este espírito. Sua direção de atores é exata. Um tema dramático dentro dos padrões. Rossellini e Murnau são os únicos cineastas que fizeram da Natureza o elemento ativo. algo além do que nosso papel natural de espectadores nos induziria a reconhecer. Neste filme em que tudo parece acidental. de tempo em tempo ela cruelmente me forçava de volta à própria matéria do filme. É estranho como tudo em que a regra falta é como uma escrita automática. a heroína desata uma abundante nuvem de fumaça . Confesso minha incapacidade em definir adequadamente os méritos de um estilo tão novo que desafia toda definição. este filme é diferente de qualquer outro. tudo. e também o tema de Aurora.em que seus gestos e atitudes são comuns a todos os seres humanos. mestre da magia. Certamente nenhuma câmera de documentário poderia ter gravado a experiência deste casal inglês desta maneira. Tendo em mente que até a cena mais direta e menos planejada é sempre inscrita na convenção da edição. Não foi há muito que elogiei Stromboli ou Europa ‘51 por seus aspectos documentais. o elemento . no entanto. A história é solta. não se cria uma peça verdadeira de cinema tão original como esta vagando pela estrada com uma câmera de 8mm em mãos. Eu admito que fui mergulhado em todos os tipos de absurdos fluxos de consciência: o modelo da jaqueta de George Sanders. Com uma simples baforada de seu cigarro no declive do Vesúvio. Este argumento não será levado além do necessário. Certamente não! Não se produz literatura tirando palavras da cartola. A velha relação entre signo e idéia é rompida: em seu lugar surge uma relação nova e desconcertante. no entanto. quantos anos ele deve ter. Mas notei que até mesmo quando minha imaginação parecia vagar. pra não mencionar a forma dos crânios nas catacumbas ou os novos métodos arqueológicos – algo que não seria permitido numa trama com o tempo mais sustentado. e tal convenção é denunciada pelo diretor com a mesma virulência demonstrada em seu ataque ao suspense. até a mais maluca digressão mental. ou. Diante de um trabalho desta estatura uma declaração de circunstâncias atenuantes é inapropriada. Até se pensarmos somente em seus enquadramentos e seus movimentos de câmera (onde até os maiores diretores não alcançam inovações há muito tempo). As novas e maiores erupções só podem vir da fenda mais estreita e menos perceptível. Viagem à Itália é a história da separação de um casal e sua subseqüente reconciliação. nada poderia estar mais distante do amador. continuidade e seleção. Estou ciente da possível objeção: "Não atribua a uma habilidade suprema o que só pode ser o resultado acidental do descuido". ele consegue dotar a tela com aquela terceira dimensão tão perseguida nos últimos três anos pelos melhores técnicos nos dois lados do Atlântico. Através de sua magia somente. Este tipo de ilusão certamente não é aquela que um ator teria orgulho em criar. Confesso que enquanto assistia ao filme meus pensamentos se desligaram pra direções distantes daqueles da própria trama. é surpreendido ao se pegar tentando olhar o horário num relógio que um dos atores está usando. mais adequadamente. mais do que doma sua matéria. o quanto ele envelheceu desde Rebecca ou A Malvada.é assim que Rossellini. Mas em sua construção. Do mesmo modo é a alta e novíssima idéia de realismo que descobrimos aqui. como alguém que vai ao cinema pra matar o tempo entre compromissos e. o estilo de cabelo de Ingrid Bergman. Viagem à Itália não está mais perto do documentário do que do melodrama ou do romance de ficção. é parte essencial dele. livre. imperiosa e ainda assim não é totalmente "atuada". Ele conta com esta cumplicidade como um músico tocando numa caverna usaria o eco a seu favor. com a mente mais em suas próprias preocupações do que naquelas do filme. eles nos encorajam a olhar para outra coisa por detrás deste comportamento. cheia de fraturas. neste fim de segundo milênio. que sempre tentou criar e . Eles apresentam uma concepção do homem como uma divindade .até aqueles mais tingidos com misticismo . convém maravilhosamente a Welles para a descrição de um mundo deteriorado. o terceiro é Deus. Do museu de Nápoles às catacumbas. enquanto sua unidade permanece inalterada. Ambos os filmes são dramas com três personagens de fato.principal da história. ambos os filmes protegem sua liberdade tanto melhor. No primeiro uma "harmonia pré-ordenada" governa de uma vez e ao mesmo tempo os movimentos da alma e as vicissitudes do cosmo: a natureza e o coração do homem batem com a mesma pulsação. mas na vasta e iluminada consciência. Traduzido de inglês para português por Luan Gonsales. Não um templo tomado pela hera. Há preocupação sobre o desaparecimento da arte sagrada: o que importa. Por eles se recusarem a iluminar seus mecanismos (mechanics of choice). O segundo vai além desta ordem – e sua magnificência pode revelar-se igualmente . trazer para a arte aquilo que as grandes riquezas de todo gênio humano ainda não souberam descobrir: a noção do milagre? MAURICE SCHÉRER (Eric Rohmer) Cahiers du Cinéma.logicamente. ele cada vez mais despreza o frágil suporte da filosofia natural. Ambos. é porque aquele milagre estava na ordem das coisas. a qual. Mas Deus não tem a mesma face em ambos. mas um edifício cujas pedras aumentam com o passar de cada século. quando ela exibe e dilapida seus meios”). É essa a tarefa do cinema. Traduzido de francês para inglês por Liz Heron. mas de sua capacidade de se renovar na vida e na arte. Aliás. no limiar do estágio último de sua decomposição. de que Borges deu uma definição breve e radical ( “eu chamaria barroca a etapa final de toda arte.que é uma enorme tentação para nosso orgulho e que quase nos desfaleceu. Secreta? Deixem fazer-nos entender: não nas zonas problemáticas da libido. Durante sua entrevista aos Cahiers no ano passado. Os maiores trabalhos . nós acompanhamos a heroína ao longo do caminho espiritual que guia da superficialidade dos anciãos sobre a fragilidade do homem à idéia Cristã de imortalidade. seu poder infinito de enriquecer-se. E não só através de seus dogmas (estou pensando no recém-proclamado dogma da concepção). depende de um milagre. se o cinema está tomando o lugar das catedrais! Eu irei além: o que faz o Catolicismo tão maravilhoso é sua extrema abertura. apodrecido. você pode dizer através de um milagre. nenhuma das histórias contadas nestes filmes poderia se passar senão no século 20. Tal filosofia é estranha à arte do nosso tempo. da fonte de enxofre do Vesúvio às ruínas de Pompéia.descobrindo aquela suprema desordem que é conhecida como milagre. E se esse filme tem sucesso . Assim a alma nos é entregue em sua própria origem e não encontra objetivo mais digno que o reconhecimento da ordem no mundo. devido à sua rejeição da facilidade do estilo psicológico e seu desprezo pela narração incompleta (understatement) ou pela alusão. 47. Pela graça de sua música talvez uma missa de Bach possa nos encaminhar para mais perto de Deus do que a magnificência das catedrais.parecem achar sua inspiração numa idéia um tanto quanto oposta. Essas duas frases são eloqüentes o suficientes em si mesmas e me eximirão de um comentário mais longo. O barroco. Rossellini falou a respeito do "senso de vida eterna" e da "presença do milagre" que foram revelados a ele no solo de Nápoles. maio de 1955. no fim. A marca da maldade Grilhões do passado e A marca da maldade constituem o ápice do barroco wellesiano.senão completamente Deus . em um universo terrivelmente velho aos olhos de Welles. tiveram o extraordinário privilégio de nos conduzir para o interior da região mais secreta da alma. complacências e inverossimilhanças que já se viu num policial depois da guerra. e ainda mais pela atmosfera que pelos personagens. ou seja. em vistas de sua novidade. é abusivo colocar Welles entre os grandes artistas deste primeiro século de cinema. Pouco importa. chuva de planos criando um ritmo esbaforido e rico em surpresas em um. Se os que usa em Arkadin são quase tão catastróficos quanto os de Cidadão Kane. ao mesmo tempo. O tempo fará justiça a este erro. privado de realizar a obra abundante e constante. de que sempre usou e abusou. uma última vez. cujos últimos sobressaltos são fixados com paixão pelo autor. Mas este não seria o destino e a última pirueta de . Tecnicamente. pois toma sua construção de empréstimo de certos filmes noirs. O roteiro de Arkadin é ligeiramente superior ao de A marca da maldade. da memória inalterável e mortificante.. secreta e definitiva. É uma proeza. Já o roteiro de Marca da maldade é o mais cheio de convenções. em todo seu esplendor minado “ de dentro”. os dois filmes são idênticos e recriam este espaço crepuscular. quando tinha um pouco mais. cujo precursor foi Cidadão Kane. que Welles utiliza o plano sequência numa ótica oposta a de um Preminger.encarnar personagens à imagem e à medida deste universo. No primeiro plano de Marca da maldade. Os temas da corrupção e do poder.trajeto do carro com a bomba( sem dúvida o mais espantoso e significativo de toda a carreira de Welles)-. cometido ao lado de outros por histórias do cinema que ainda tem muito a explorar em uma arte tão difícil ainda de julgar. o seu teatro de sombras e pesadelos. estes dois suspenses coexistem e coincidem absolutamente. pois permitiu a Welles encenar. planos sequência cuja duração infla até se esvair em outro. que outros em Hollywood pacientemente construíram no ingrato conforto da obscuridade. Welles explicou que recorria aos planos curtos quando tinha pouco dinheiro. as qualidades de um príncipe do artifício . Nesta empresa. a fotografia violenta e contrastada ( Welles é o cineasta para quem o uso da cor é essencialmente alheio) o uso das curtas focais e dos enquadramentos insólitos ( plongées e contra-plongées). e também por não conter nenhum maniqueísmo. Seria também injusto negar a Welles as qualidades que lhe pertencem: as qualidades de um grande “pequeno mestre”. os estilos de Arkadin e Marca da maldade podem parecer opostos: montagem curta. No entanto. e aos longos. que soube persuadir seus contemporâneos de que tinha gênio. mas este é um estímulo para que Welles se interesse mais pelos personagens que pela ação. neste sonho idealmente clássico de um filme que seria composto de um único plano. e eis uma das razões de seu gosto pelas maquiagens e postiços. da impossível mudança de identidade ( sublinhada por esta profusão de máscaras e de lugares diferentes onde os personagens buscam de forma vã se ocultar) ressurgem perpetuamente entre as linhas e as imagens. percorrido por fantasmas expeditos . em A marca da maldade ele nos dá uma cativante composição de um destroço inchado e à deriva que nos faz completamente esquecer que o ator à época tinha apenas quarenta e dois anos. no plano do roteiro. espaço este que o cinéfilo mais debutante reconhece como inegavelmente wellesiano. Quanto ao resto. e participam da universal corrupção do mundo. são de um nível muito inferior. Os dois filmes. É preciso ficar bem entendido. destinada a tirar o fôlego do espectador e a engendrar um suspense interno que concerne menos à ação propriamente dita que ao virtuosismo do diretor. no entanto. O plano sequência de Welles se designa e se reivindica como tal em cada um de seus segundos. ou de um brilhante megalômano cuja megalomania tornou conhecido e superestimado para além de toda medida e que foi. aos planos seqüências. Todos os personagens “estão no mesmo barco”. que através do plano quer fazer esquecer o découpage e a montagem. o de delinear o retrato e o balanço de um mundo em agonia. Nota: Sem dúvida. Aliás. sua juventude o incomodou bastante. estes dois estilos chegam a um resultado idêntico. E não é espantoso que Hitchcock. A razão estará em que a virtuosidade cansa facilmente o mestre do suspense? Em todo caso. nada de mudança de local. primeiro onde o diretor aparece como produtor. 5) normal. ‘0’. o sonho do filme em um único plano possui algo de cósmico: trata-se de abater as muralhas em torno da realidade a fim de apreendê-la em um único fluxo uniforme e em um espaço contínuo. tecnicamente. Hitchcock vai levar a cabo este desafio em primeiro lugar tomando-o ao pé da letra: um plano é um plano. a lógica do ponto de partida se perdem no meio do caminho ou.certos barrocos? Inspirar-nos o lamento. As dez mudanças de planos se operam da seguinte maneira: 1) mudança de plano correspondente a uma mudança de lugar ( é o único do filme: passamos do exterior ao interior do apartamento). vai levar esta tendência ao seu mais alto grau de refinamento. através da dilapidação de seus dons. O cinema da fascinação ( Lang. Preminger. por exemplo. nenhum plano pode durar mais que dez minutos de projeção). Data importante na carreira de Hitchcock. em Festim diabólico. etc).de um bom número de diretores. o plano seguinte vai se efetuar sobre as costas de um personagem ( fusão sobre preto. tenha tido nesta época o desejo de estender as possibilidades do plano sequência à dimensão de um filme inteiro. portanto. Festim só tem onze ( respectivamente. De fato. vai seduzir os públicos do mundo inteiro: um extremo formalismo posto a serviço de emoções elementares. . durante mais de quarenta anos. todos os planos em um único plano. 4) sobre as costas de Douglas Dick. se preferirem. 8) sobre as costas de John Dall. um exercício de estilo. 7’18. enquanto que.. 7’09. o de 1’54. 7’51. ou podemos acentuá-la e tomar como ponto de partida pesquisas estéticas que valorizam a montagem e a multiplicação dos espaços. 7) normal. 4’36. 9’57. no espírito de um Preminger . 9’36. É baseado na fórmula que. Realizar um filme de um único plano foi sempre o sonho. que considera cada filme como uma desafio. 7’47. 2) sobre as costas de John Dall. Festim diabólico é também um dos filmes mais sérios jamais filmados. 6) sobre as costas de John Dall. formalista. e o último “fondu au noir” vai se dar excepcionalmente sobre a cobertura do baú. 9) normal. “fondu au noir” disfarçado). Enquanto que um filme em média comporta entre duzentos e seiscentos planos. portanto tempo contínuo. este sonho corresponde à passagem ao limite de uma das duas principais atitudes estéticas possíveis no cinema: dada a inevitável fragmentação da criação cinematográfica. Pragmático. 3) normal. 5’39). primeiro dos quatro rodados com James Stewart. pelas obras sublimes que poderiam ter nos proporcionado? Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior Festim diabólico Primeiro filme de Hitchcock em cores. uma nova maneira de estarrecer o público. Curiosamente. ao desenvolver o uso do plano seqüência. se desvanecem em um harmonioso compromisso. O desafio proposto nos leva assim ao teatro mais fechado e claustrofóbico. ou podemos negar esta fragmentação ao forjar uma continuidade que absorva todos os espaços em um único espaço. uma vez que. de temas universais. o “parti-pris”. uma mudança de plano será absolutamente normal e visível. mas não esteta.mais ou menos confesso e consciente. portanto nem um único raccord visível ( o que vai implicar a utilização de astúcias e truques visuais . . Siodmak. 10) sobre a cobertura do baú onde está o corpo. 7’36. ligados em sua maioria à moral. cultivado nos anos 40 nos Estados Unidos. e isto a tal ponto que Brasillach e Bardèche puderam apreciar no Névski “ o mais comovente dos filmes fascistas”. este filme que recusa a montagem é extremamente découpé e autoritário em sua mobilidade e sua maneira de apreender o espaço. Vejamos que o filme não brinca em serviço. O próprio pai. Encenado com deleite por Hitchcock. Os fins do filme são patrióticos e realizados com vistas a um futuro imediato. engendrou uma atmosfera tão irrespirável. posto por Hitchcock à parte da mediocridade ambiente. escritos. Com a ideologia marxista desapareciam também em Eisenstein os parti-pris formais que ele engendrou e a criatividade que estes tinham trazido para A greve e Encouraçado Potenkim. que visa a fazer esquecer ao espectador a existência da câmera. elitista. Nenhum filme de Hitchcock. que daria a um único ser ou a uma única categoria de seres um lugar à parte na sociedade. Neste sentido. teorias. sabendo permanecer extremamente divertido. é o personagem principal da história. em face da mediocridade dos outros personagens ( notemos que Hitchcock evitou colocar em suas bocas o menor diálogo brilhante). do próprio morto. O cinema falado não trouxe nada para Eisenstein.deste absurdo holocausto. trata-se aqui também de uma encomenda ( pessoalmente mantida por Stalin) que Eisenstein realiza. Este não possui nenhum sentido do diálogo dramático. que espera ( ?) que seus assassinos sejam reconhecidos e julgados. uma vez que consolida justamente a moral tradicional. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior Alexander Névski Como O Encouraçado Potenkim. A abjeção dos dois assassinos é elevada a um outro nível. participa do mal-estar geral enquanto vítima pateticamente impotente. e as discussões entre personagens filmadas em planos aproximados demonstram um crasso academicismo. Aqui. tanto pelo autor como pelos outros. Efetivamente.universalista em seu princípio. O filme sublinha também a responsabilidade do intelectual. conduzindo.do autor e elimina como monstruosa toda tentativa de uma moral individualista. cada ator declama seu texto como um folheto . Festim ocupa um lugar central no seio do edifício hitchcockiano . Aí também ele vai na contramão da ótica do plano sequência segundo Preminger. com tanta seriedade quanto se constituíssem atos. utilizada com frequência na época no cinema fascista italiano e no cinema nazista.Aliás. Aqui. Quanto ao personagem de Stewart ( o professor). cujas palavras. muito presente: ela. um espectador submisso e satisfeito. como sempre em Hitchcock. tirando Psicose ( onde o mal-estar.depois. Outro aspecto do segredo de Hitchcock: ninguém antes dele ousou ser tão grave. o formalismo eisensteiniano se limita a construir para o herói Alexandre uma estátua decorativa. ele é aos olhos do diretor o mais culpado de todos. paradoxos devem ser considerados. do começo ao fim. é claro. mas se mostra mais feliz quando se presta a pesquisas plásticas e estetizantes no célebre “morceau de bravoure” da batalha sobre o lago. em seu percurso. Eisenstein emprega a figura da “metáfora histórica desviada”. deságua no terror). este “huis-clos” onde a câmera circula no meio de compartimentos escamoteáveis e móveis com rodilhas contém a mais bela “descoberta” da história do cinema ( maquete de Nova York pouco a pouco tomada pela noite) e só visa a um único fim: acentuar de forma surpreendente a tensão e o mal-estar suscitados pela intriga. a intervalos regulares. Festim diabólico é um filme relativamente excepcional na obra de Hitchcock: o espectador não pode se identificar a nenhum dos personagens. Não se trata mais de exprimir a ideologia marxista. a não ser talvez ao morto no baú. a câmera permanece. mas de ilustrar uma propaganda nacionalista. Escalava com um guia famoso de montanha. a repetição por exemplo. dezembro 1961 Como você chegou à mise en scéne de cinema? Comecei a me interessar sobretudo pela música. Fiz em minha juventude muita escalação de montanha. foi por paixão esportiva. propícia à expressão dos corpos nos rochedos. comecei a descobrir certas leis. e também fracassei na pintura. Eisenstein está à vontade com as armaduras. Enfim. cheguei ao cinema. Présence du Cinema número 9. as massas brancas do lago e do céu. Talvez eu também tenha fracassado na mise en scéne. este tornava-se obsessivo. espetacular em seu princípio. E comecei a me interessar pelo documentário em 16 mm. e permite anexar às imagens o contraponto da admirável música de Prokofiev e dos coros cantados em off. pois em suas conferências ele fazia projeções para ilustrar suas explicações técnicas. Emilio Comici me pedia sempre fotos. mostrando soldados russos que proferem uma ou duas frases enquanto combatem os adversários. fracassei também na literatura. porque à uma certa altura da minha vida fiquei com medo. lhe seriam necessários ainda as duas épocas. Vittorio Cottafavi: entrevista com Michel Mourlet e Paul Agde . Os planos aproximados. Eles só aparecem no prólogo e no epílogo ( que mesmo assim ocupam dois terços da duração do filme). Eisenstein. ( É verdade que a seqüência do lago foi rodada em julho. Neste filme ilegítimo e desigual. que o próprio diretor julgou a mais superficial e menos pessoal de suas obras. aos movimentos da multidão quando esta é reduzida a colisões pictoriais de volumes. ainda não aprendeu a integrar o homem em seu formalismo. em terra firme). a única que merece atenção no filme. mas como não tinha nenhuma aptidão para música. o Terrível. e que se você repetia três vezes o mesmo movimento. não é preciso montar. em Alexander Névski. eu era uma promessa que não vingou.verbal. agora que este formalismo suplantou em sua obra a ideologia. era uma jovem promessa do alpinismo. pensei em fazer pintura. Escrevi dois ou três contos quando jovem. Não tinha nenhum sentido das cores. após o combate. extremamente elíptico: o plano do cavaleiro parcialmente afundado no lago. assim como as cenas do epílogo. A idéia do lago que se fende. Então. fracassando em outra. mas não tinha nenhuma vocação pra literatura. Me cansava muito. se integram mal ao conjunto e são frequentemente catastróficos. O cinema falado só interessa a Eisenstein enquanto sonoro. No que se refere ao combate do lago. os capacetes. cuja túnica acaba por ser tragada pelas águas. Sua beleza plástica é devida aos capacetes e armaduras dos cavaleiros. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. para destilar a mensagem patriótica e nacionalista. Com 28 anos. O esforço de caracterização dos dois amantes de Olga é extremamente desajeitado. vale sobretudo por seus planos gerais. os cavalos. trata-se de um documentário. mas enquanto isso persisto nessa linha. a página em branco me dava pesadelos. Para tanto. só se mostra enquanto tal na tela em um único plano. Fracassando em uma. e era muito hábil em tirá-las com uma iluminação que sugeria uma certa obsessão da vertical. Mas ele não sabe o que fazer dos homens. Emilio Comici. a estratégia abstrata do combate. Estudei a montagem. esta longa sequência de trinta minutos. Nesta época. E meu amigo me dizia: “Mas não. a natureza. Este filme de 1938 poderia ser de 1932 ou 1933. passei à literatura. os tormentos e a maldição de Ivan. massas e linhas. não de . Assim. eu fazia muitas fotos. A primeira vez que pensei em fazer filmes. que infelizmente morreu num acidente na montanha em 1940. nos sugerem a passagem ao plano seguinte. convencional. busca o detalhe quando lhe dão o total. pode ser o décor. o pintor nos proporciona o movimento como na montagem. um detalhe. Em um quadro.já que é o próprio cinema quem se encarrega disso. Chegamos ao cenário. enfim. Ou então o pintor nos dá uma totalidade. a composição da imagem e a ligação dos planos. a partir do primeiro. falso. É a montagem do pintor. temos um ritmo de imagens. a morte. o segundo torna-se quase uma necessidade. Isto é muito difícil de pré-organizar no papel. os movimentos de câmera. Assim. etc. a fim de dar ao imprevisto mais possibilidades. descobri algumas pequenas coisas que começaram a me interessar como possibilidades. Interessava-me muito menos pela história que pelos seus sentimentos secretos. do espaço-tempo. Estas subdivisões. As boas tomadas são aquelas em que. tomei mais interesse pelos filmes e passei a vê-los de um ponto de vista totalmente diferente. Você deixa espaço para a improvisação ao rodar seus filmes? O espírito de improvisação. Depois o olho transita e vê outra coisa. Há uma história que amaria filmar. como se justamente estivéssemos prestes a filmá-las. ao contrário. na ação. ou então busca o total quando lhe dão o detalhe.um filme”. uma luz particular das coisas. No entanto. Depois deste primeiro contato com a câmera. ou seja. ser de antemão bem exato em cada ponto. É preciso estar com a cabeça completamente livre. os problemas de iluminação. menos maturado possível. um movimento. ou close.e visamos o primeiro ponto de vista. nunca fiz um filme sobre a montanha. É preciso que este o faça portanto com uma tal exatidão que o olho encontre precisamente o que espera ver. segundo sugerido pelo texto. que é o ponto de vista. segundo penso. Justamente. o conjunto. e que é preciso. não deve convidar o olho a determinar o plano . O plano é ruim. o olho agarra esta totalidade. No entanto. ou mesmo na intensidade expressiva dos olhos. nunca devemos prestar atenção a elas. O que eu jamais entendo é quando leio num découpage “traveling”. de que Rossellini é mestre em seus filmes. foi a primeira coisa na qual pensei quando tive a possibilidade de começar a dirigir: um romance de Ramuz que acho extraordinário e que se chama O grande medo na montanha. pois atrapalham: é a própria cena que deve sugerir o movimento a ser feito. depois viaja e vê os detalhes. digamos. Entra aqui a questão da composição e da decomposição das imagens. não perdi toda esperança de realizar este filme no futuro. não? . Quanto mais experiência adquiro. e começamos a visar o primeiro ponto de vista que. Os produtores acharam que não era comercial. E tive ocasião de ver filmes franceses de vanguarda na época. torna-se forçado. literariamente. nos obriga sempre a fazer o filme em cima do découpage menos completo possível. executamos o primeiro movimento. há o sentimento do pânico. com exceção da disposição dos planos. um ritmo teórico que não corresponde ao ritmo nascido da realidade concreta da filmagem. ao contrário. Nunca devemos chegar ao local de filmagem já “ domados”. com tudo o que devemos fazer na cabeça. o olho pousa sobre uma coisa antes das outras: o pintor nos deu um ponto de vista. a não ser no caso de certas cenas que nascem à medida em que trabalhamos o découpage. o . O cinema. e este movimento sugere uma direção que confere ao quadro uma amplidão que ultrapassa até mesmo seus limites materiais. como Entr’act e Sangue de um poeta. que nos afeta em primeiro lugar. nesta montanha. quando o olho busca alguma coisa. Isso aconteceu em particular com diversas cenas de Fille d’amour. no movimento. Se dispusermos os planos na mesa de trabalho. começamos pelo começo .é um erro começar pelo começo. ou plano geral. mais compreendo que é perigoso. ou seja. eu buscava visar uma morte sob o ponto de vista histórico.découpage deve dar a construção fictícia. um sentimento não se assemelham. mas queria dar a idéia que em Augusto. Não sei até que ponto meu propósito foi atingido pois. mas não o frisson que devemos sempre experimentar enquanto estamos realizando essas coisas. enquanto coloco a câmera em seu lugar. como sempre em um filme. Enfim. ter tudo pré-ordenado. há muitas mudanças entre o que haviam previsto e o que fizeram no filme. todos a conhecem. na hora eu me disse: “Não. Augusto chega diante do corpo de Antonio e se dá conta de que não se trata do suicídio de um desesperado. Isso acontece porque. a morte. que pousei sobre ele. no momento em que ia filmar. uma transformação . seria preciso dizer “o découpage tirado de tal filme”. e isto deveria ser mostrado apenas pela atitude. Todo mundo viu isso. Digo para mim mesmo: “Oh. eu o mudei de posição. os sentimentos . Se é verdade que o cinema é uma expressão. Ver-se-ia que. dos bons diretores. da posição. a morte da moça. a luz exata. eu procuro “capturar” esta árvore. eu a descubro pela primeira vez. pois não se poderia fazer um close de Augusto. os outros estão se lixando. pensei no manto vermelho. é melhor falar em descoberta. só querem mesmo é fechar o caixão. o projeto. mas uma abstração. À cada vez a morte deve ser descoberta segundo o caráter. mas a cada vez que vou filmá-la. em todos os seus graus. não é isso”. ele compreende a grandeza de Antonio. pois todos os dramas da vida são degraus para alcançar a grande morte final. sua força expressiva de árvore. vemos que uma expressão. Para dar um exemplo. E queria poder contar quantas vezes se colocou: “ O ator sorri. Não sei se consegui exprimir tudo que queria nesta cena. Neste momento eu encontraria o lugar exato da câmera. ou seja. uma linguagem. e a quem fecharam o caixão. enquanto que se eu estivesse com o espírito prevenido a respeito da árvore. é uma descoberta da morte. enquanto filmamos. havia três sentimentos. Logo. E a morte. uma posição de cabeça. É por isso que acho que fiz bem. uma sinfonia de cores que dá conta também de uma presença metafísica da morte: a morte de um grande personagem deve ser a morte de todo grande personagem. a linha geral do que estamos em via de buscar. digamos que é a idéia de fazer uma certa linguagem. afastando-se do corpo. mas apenas contemplando-o com um certo orgulho. Neste momento. para um diretor. na vida verdadeira do filme . Estava prestes a situar o morto. a realização de uma vida. o cinema não é a própria linguagem. sua maneira de voltar a cabeça para Antonio. gestos e poses. neste instante. a fim de descobrir a morte do grande personagem histórico. Na Fille d’amour. em suas atitudes. sem nenhum signo de respeito ou saudação. Isto me sugeriu a idéia da cor. busco descobri-la.que nunca é a verdadeira vida. depois coloquei o amigo do morto com este encarnado. sua curta estacada. do outro lado. o frisson da descoberta. E estes três sentimentos devem ser dados pelo que ele mostra em relação à morte. ou seja. Quando se publica o découpage de um filme. eu lhe daria sua essência de árvore. na maioria dos diretores. ela já está no caixão(estão prestes a fechá-lo). eis uma árvore”. No Legiões de Cleópatra. contente” e se depois.não se assemelham ao que havíamos escrito. depois se deslocar pela escadaria. mas se. Não se pode falar em improvisação em tudo isso. a satisfação em que um Romano tenha morrido como um grande Romano. Me incomoda sempre que os editores não publiquem o découpage de antes do filme e o découpage de depois. teve um amigo próximo que morreu. que não teria significado nada numa cena onde se deve respirar o cenário de um só fôlego. A moça não está lá. eu construí esta morte pedaço por pedaço. eu queria exprimir três coisas: o ódio que ele sentia por seu adversário. certamente dá uma segurança. mas uma morte gloriosa. direi: uma árvore é sempre uma árvore. se filmou o mesmo ator com lágrimas nos olhos. todos a viram. É por isso que penso que. É um tema que me afeta muito. a admiração e o sentimento romano. esta seria uma árvore como qualquer outra. Existem situações para as quais sinto a necessidade de orientar a totalidade dos eventos segundo uma certa construção na imagem. de aventuras. Não é preciso exteriorizar. conseguimos um sucesso no nível da comunicação fílmica. em certos momentos. Posso dificilmente explicar o que tento exprimir. é captar algumas pequenas verdades interiores. construída com sons verticais e horizontais. A cena da execução na Fiamma é um pouco à maneira de Bach. ou seja. Depois disso. Ah. faz-se política.esta talvez seja a melhor forma de dizer. A desordem ordenada. As ordens dadas pelo chefe do pelotão. na Fiamma che non si spegne. pois o milagre está prestes a se realizar. Penso que o homem está à procura de uma ordem. dentro. Clouzot. É uma outra possibilidade de ver a morte. devemos nos manter no estado de alma que convém. há um pouco de verdade demais. mas de alguma forma no inconsciente. Um homem vai ser morto com todo um cerimonial. podemos dizer ao público: “Escute. Na política. Então. uma engrenagem que não se pode fazer . tenho horror de ser muito explicativo. para sugeri-las ao público. se discute. Me dá um pouco vontade de rir disso. Eis o motivo. mas o que busco também através deste gênero de filmes. de fazê-lo destilar um certo som. precisamente idêntico na maioria de seus filmes em certos momentos? Você disse muito bem: geométrico. ela instaura uma ordem inelutável. Se trata-se de um sentimento secreto e que precisamente você o mostra com clareza. a alma se libertará. O corpo vai tombar sobre a terra. Não se trata então do desejo de dominar totalmente o mundo em um certo momento? Sim. Em relação aos filmes. quando esta se conforma a um esquema geométrico determinado. Assim. geometria de linhas longitudinais e transversais que pode aparecer a muitos como um formalismo. Ele não dá jamais o puro sentimento. Assim como. aliás. explica muito muitas coisas. a fim de que sejam liberadas certas coisas do espírito. composta de volumes e sublinhada por travellings. O que devemos fazer? Liturgia. Há cenas onde esta geometria é de tal forma declarada que talvez incomode o espectador. eu direi: amo Bach demais para não tentar emulá-lo em um filme. Arrisca-se sempre nos filmes de passar da expressão artística para a expressão política . é verdade. Trata-se muito exatamente de uma liturgia. O público pode descobrir o sentimento. Para ser claro. Poderia nos precisar o sentido de sua mise en scéne.secretos que devemos comunicar ao público não devem chegar até ele com a clareza da explicação. sim. não tinha pensado nisso”. você só pode mostrá-lo em segredo. um ballet. porque nas ciências ele consegue paralisar numa ordem a desordem da criação. de ver dentro das coisas. procuro dar-lhe duas direções em diagonais. não se faz jamais sentimento. se o examina. A multidão me dá sempre pesadelos. Eu poderia dizer o mesmo da multidão. nas Legiões de Cleópatra. como Cayatte. pois isso nasce de uma profunda necessidade do meu espírito. o sentimento se cria sem que haja necessidade de explicá-lo em termos lógicos. Um sentimento explicado torna-se impuro. não fazer declarações de princípio. Alguma coisa vai acontecer. já que tal composição a torna para mim um pouco mais humana. toda a cerimônia durante a qual vão fuzilar o homem é construída segundo uma forma geométrica quase maníaca. Se este responde: “Ah. obrigar o público a descobrilo. ele as dita como se dissesse uma missa. isto quer dizer isso e isso e isso”. ou seja. como se fosse algo de inumano. ou seja. a batalha tende a se tornar. Esta liturgia em forma geométrica é também o próprio movimento da tragédia. A forma desta cena nasceu da necessidade de dar uma ordenação às coisas materiais. incrível. Em A Verdade do Clouzot. Eu faço filmes de capa e espada. A câmera possui um poder extraordinário. O pintor nos dá a interioridade pela potência de suas pinceladas. Fritz Lang fez geometria. O próprio som. quando vi esse filme. Nos acreditávamos mestres da coisa. designando o personagem. depois nós percebemos que ela trabalhou por conta própria. As palavras. Chegado a este termo. até o momento em que não mais será silêncio. Uma vez no interior desta ordem. o fato deste se distanciar e se aproximar. infelizmente. Não é fácil determinar a duração do silêncio necessário para atingirmos este ponto. ele me trouxe algo que ficou na minha memória: as escadarias. No entanto. No entanto. quando este sentimento deve invadir a interioridade do espectador. Eu cheguei ao limite de um certo jogo de linguagem. Sim. Sim. Não há um perigo nesta ordenação dos eventos. possuía uma presença na tela muito expressiva. preto de um lado. Quando se ultrapassa um certo nível de sentimento.. Eu diria melhor: “da inteligência da câmera”. Enquanto que. jamais o esqueci. carregada de significados. Mas já víamos a busca de uma solução formal do problema dos sentimentos. uma situação sujeitoobjeto. Nos Nibelungos. posso abandonar a liturgia. você disse bem: “interiorizando”.. Ela viu por si mesma. Enquanto que. Eu penso até que se pode chegar à interioridade na pintura muito mais pelo não-figurativo que pelo figurativo. em que o espectador não estará mais em situação de dizer: “ O personagem não fala mais”. com amizade. a geometria é rítmica: em suma. do espírito. que foi construído um pouco teatralmente. Se começamos com este princípio de geometria. Era um pouco infantil vestir Brunehilde de negro e Krimhilde de branco.. nos separa dele. isto era do teatro expressionista.. mas um pouco decorativa e superficial. os diálogos são inimigos que é preciso abater para penetrar na interioridade da consciência. no cinema. da morte ou da vida. Assim como no Gabinete do doutor Caligari. Um quadro abstrato pode exprimir uma interioridade extrema. tem um poder próprio: eu creio ter captado a expressão de um ator. prolongou estas pesquisas. o jogo do som. branco de outro. retomar uma desordem indolente na situação dos personagens. Neste momento. devemos ir até o fim. Quando Lang fez esse filme. a geometria é puramente formal. O que aconteceu? Foi a câmera que mudou. há um perigo aí. O milagre deve acontecer. do sofrimento. sim.parar. nos liberar. a dama de branco. de alguma forma. pois. nenhum outro meio artísticos a possui. Enquanto que os silêncios já estabelecem uma identificação. Estas experiências me interessaram por um certo momento. Mas para fazê-lo é preciso antes de tudo renunciar ao que. trabalha-se sobre o concreto. eu era muito jovem. quer seja o milagre do sentimento. mas no entanto dava uma “direção”. a dama de negro. no cinema. impossível dela sair. é uma geometria de movimentos de câmera e uma geometria de movimentos de atores na câmera. apenas uma composição nos limites do quadro. flagramos uma outra expressão. com sua seqüência . Por isso é preciso conhecê-la bem. As palavras criam uma distância. Não é bom portanto prolongá-lo de tal forma que os mais . constitui algo de incompreensível. que escolheu. Esta faculdade de “penetrar na interioridade” com a câmera. Eu falava há pouco do poder da câmera. E o silêncio vai se prolongar. Mesmo em sua exterioridade. o caráter concreto da câmera permite um travelling espiritual que ultrapassa a forma do rosto para entrar no sentimento. Tudo isso. Não é uma geometria criativa. ele pode começar a se identificar. poucos espectadores possuem a mesma receptividade. ou seja. É preciso estar em boas relações com ela. interiorizando-as. Tudo se torna geometria. não era ainda o grande Fritz Lang que é hoje. o da teatralidade? Não se pode fazer comparação entre cinema e teatro pois. no teatro. eu buscava saber o que poderia tirar daí. É uma geometria de montagem. porque senão ela lhe prega uma peça. Você. ele deve invadir ao mesmo tempo em que penetra na intimidade do personagem. vejo os rushes. Uma imagem abstrata na tela perturba. Ao contrário. como sempre ocorre diante de um aperfeiçoamento técnico no domínio das artes. Da mesma forma na Fille d’amour. dramaticamente. Deste momento. Na Fiamma.. desde a invenção do cinema falado. ele salta em seu carrinho. mas sons. mas. Ele compreende que o industrial. e em toda a cena da execução. onde já se encontra o carro do industrial. com uma participação concreta. de participar de um drama. e ao mesmo tempo dar a este a possibilidade de penetrar na interioridade de uma consciência. O senhor chegou a este paradoxo de que. Giuseppe escreveu!”. na primeira parte. Até o homem compreende isso. É uma longa sequência onde o sentimento mudo torna-se claríssimo. O homem que traz uma carta de seu marido pergunta: “Boas notícias. Seus olhos já se fixavam no ponto . E ela entra e vê o rosto onde a infelicidade se inscreve. A dos vagões-leito. Em pouco tempo. há quatro sequências inteiramente mudas. do homem com os outros homens e do homem com Deus. não se fala mais até o fim da primeira parte. O Cinemascope.. Madame?”. e há a cena onde o jovem. ela havia lhe dito que ia voltar pra casa da família. estamos livres para nos calarmos. rompia um certo ritmo. a importância do silêncio é ainda mais clara.. há a relação do homem com o crime. resultado buscado toda vez que fazemos um filme. Com a invenção do som. de seguir como um texto. do homem com a justiça. há uma das últimas cenas . Há dentro da história uma sólida construção policial. colocamos o som num saco. é uma adaptação de Bernanos: Um crime. de alguma maneira. enquanto os filmes mudos obrigavam a achar equivalentes à palavra e ao som. Então. que estava em viagem durante o tempo de seus amores. Mas ela não pode levar seu sacrifício até o fim. Neste sentido. Há a cena da tuberculose. Acho que podemos fazer um drama que seja bem acolhido pelo público. quando ele descobre que ela está morta. Só sentimos esta espera por um fim qualquer. As ordens dadas aos soldados. interposto àquela que se vê de longe. ruídos da natureza. no entanto. boas notícias!”. e que se disse tantas palavras. há esta atmosfera de espera . vi que o público tinha se adaptado à imensidão da imagem. Não tinha ainda compreendido suas possibilidades. timidez em relação à nova máquina que haviam inventado. e também não reduzi-lo de tal maneira que ele não atinja consciência da maioria dos espectadores. Há. muito longa e plena de emoção. estava de volta a Milão. O que eu chamaria interiorização. Ela começa a ler e responde: “Sim. no bar. espera para ver quem sairá da casa e saltará no carro. e que ele não pode fazer mais nada. Achava que ele suprimia os movimentos da câmera. espero fazer um filme onde os problemas de interiorização possam ser facilmente transmitidos ao público. Expor a situação pelos diálogos neste momento não é mais necessário. e pára diante da “villa”. . Uma vez que os filmes são falados. Esta questão do cenário nos leva à questão do Cinemascope. quando as pessoas correm em direção ao lugar onde vão fuzilar o homem. no início. As ligações sexuais do velho com a moça se passam nos olhos. Nesta última cena. é igualmente um trecho totalmente mudo. depois a porta se abre e ele vê o homem sair. não são palavras que ouvimos. sons que não somos obrigados a compreender. o chofer que marcha ao longo da entrada. pensei que fosse mais uma loucura da indústria. O anúncio da morte à mulher. aliás.receptivos se cansem de esperar. os melhores filmes são mudos? É verdade! Mas acreditem-me. porque são. depois corre pra casa relendo a carta e grita: “Papa. ouve dizer que a moça está em Milão. Era talvez simplesmente. hoje não somos mais escravos das palavras. onde as melhores seqüências são completamente mudas. do lado de fora da villa. sim. porque nela algo se quebrou. Mas nesta construção policial. enfraquecia a montagem. quando a criança se põe a chorar. onde assistimos a invasão pelo desespero da mulher que se sacrificou. sobre o rosto do jovem que. as traduções do intérprete. com os preparativos. Esta experiência eu realizei com Fille d’amour. É necessário apenas abandonar o espaço à invasão de sentimentos secretos que se deve exprimir. Uma tragédia psíquica. É uma idéia absurda. Ou seja. Uma é o fracasso. de costas muito largas) corresponde à largura da tela. duas coisas na vida humana. O que ainda não se resolveu. a vantagem de tal formato é que ele corresponde a uma atmosfera. Mas no que se refere a um filme de hoje. Por exemplo... mas em formato normal. e que é em technirama. as proporções do cinemascope não correspondem às proporções de nossa vida. a montagem interior da própria imagem. seria mais uma atração de circo que expressão artística. portanto. no amor. é um meio de “escrever cinema”. na montanha. Somos compostos de uma parte que é o espírito. chamado O deserto dos tártaros.) Entre os filmes que adoraria fazer hoje. eu o faria em Scope preto e branco porque sinto que o sentido e o cenário exigem a amplidão da imagem. é preciso tomar as proporções pitagóricas do formato normal. É justamente por isso que eu digo: é um formato poético. pode-se resolver o problema cortando a imagem do interior.focal que nos interessava (. limites e sofrimentos. É isso. O cinemascope não está exatamente à medida do humano .. ora dum cinemascópio vertical. É portanto uma forma de expressão que convém ao cinema enquanto arte. precisamos estar distante dos atores”. O cinemascope hoje. no ódio. mais alargado. O movimento segundo linhas geométricas é reforçado. É preciso estar perto dos atores. foi a composição da imagem. reduzimos sua importância. segundo penso. nos nervos que se crispam. eu lhes digo francamente. o filme de nossos sentimentos cotidianos.. restringimos a imagem ao seu centro de interesse. Um formato feito para conter certas fábulas. podemos penetrar nas consciências e arrancar-lhes o segredo dos sentimentos. O ideal seria dispor da possibilidade de mudança das imagens. no sentido em que Le Corbusier . e se debate em sua dor.. e estou certo de que. por exemplo. que é a dinâmica deste gênero de aventuras (um homem bem forte. ou horizontal. Mas apesar do respeito que tenho por Abel Gance. A vantagem do Scope eu encontrei num filme que estou prestes a rodar (Hércules na conquista da Atlântida). (. O ser humano é como que aprisionado no mundo. E os limites do corpo aprisionam a alma nos olhos. se identificar. O movimento horizontal. no seio desta amplidão. Este filme.. faria em technirama A vida é um sonho.). baseado num romance de Dinu Buzzatti. um cinemascope um pouco mais aperfeiçoado. Podemos colocá-los a 60 centímetros da câmera. é o sentimento mais belo e o pior. (.. Há filmes que devem ser feitos em Scope. é o espírito em todas as suas possibilidades. com seus defeitos. se estas assim o permitirem. Então. Mas o veículo deste espírito é o corpo. dizendo de forma mais geral.) é um romance estranho.) Eu diria de uma forma geral que considero. Podemos muito bem valorizar um detalhe. trabalhando sobre a imagem. participar. pois as diagonais do cinemascope são prolongadas e menos verticais que no formato normal. Mas à parte este excesso de peso. no rosto. que possui o desejo de se exprimir. que deseja se comunicar com os outros. e em cinemascope preto e branco um outro filme. Nossa vida cotidiana não se faz em cinemascope. mas de forma alguma “no homem”. Ora de se servir do formato normal. portanto um pouco mais difícil de mover. (. Diziam sempre: “No Cinemascope. Há uma constante na maioria de seus filmes. constrói suas casas segundo certas proporções do homem com o braço estendido. que se passa numa fortaleza militar.. Pode-se jogar muito mais com seu entrecruzamento. a presença do sofrimento físico. com uma aparelhagem um pouco mais pesada (mamute) que as outras. se existem muitas coisas à direita e à esquerda. ou seja. na pele. que participa do . a alma. do ponto de vista dramático. à condição de que o resto da imagem não tenha nenhuma importância. se quisermos fazer um filme “no homem”. O fracasso contínuo do espírito que não consegue se libertar. certas histórias que são próximas do homem. É preciso fazer aquilo de que falamos sempre. Naturalmente. A alegria. O homem está prestes a se fazer. pelo espírito. é De Sica. mas pelo sentimento ele se coloca muito mais embaixo. Há um grande mestre de crianças na Itália. um momento do sentimento que se extingue muito rapidamente. e não em si mesmo. com sons.Eis a razão pela qual me interesso muito mais pela mulher que pelo homem. Portanto. mas são termos que correspondem hoje ao nosso sentimento da vida. que começa a participar de certas coisas e se recusa a outras. Mas como momento exato do sentimento. a humilhação. E este é um problema quase insolúvel. busco sobretudo o sentimento. se construir. É por isso que. É um exemplo perfeito de uma criança que atinge uma certa verdade da vida. não creio que faria um filme “erótico”. crianças com palavras. Talvez. precisamos fazer as crianças com crianças. de tomar parte. como devemos interpretar isso. Quanto ao erotismo. isto deve explodir em um drama. No cinema. Um acidente do sentimento. O segundo aspecto do drama humano. Ele nos deu as crianças mais verdadeiras. . ou na música. em se tratando do homem ou da mulher. (Vocês se lembram de Pedro e o Lobo. a presença física e moral das crianças é com frequência definida de uma forma bem precisa. uma vez que os corpos são obstáculo a isso. O homem está mais colocado sobre o espírito que sobre o sentimento. é o lado do homem que me interessa mais. não pelo “além” dos sentimentos. Não é preciso dizer que no homem também existe um lado feminino. Não é questão de sexo mas de dosagem de personalidade. no cinema. mesmo no homem mais brutal. dentro do qual a alma é como um líquido. Vi muitas vezes Ladrões de bicicleta pela criança. de entrar. E acho que o vaso-mulher contém muito mais possibilidades de desespero e de sofrimento. É por isso que eu o tomo como exemplo a seguir. o que me interessa é a força do amor e a impossibilidade de atingir seu ponto de perfeição. se posicione ele um pouco mais alto que a mulher. Em todos os seus filmes há uma certa crueldade. o que eu acho extraordinário. ao descobrir o sofrimento. eu a vejo como uma força feita para penetrar a dor. sim. não se pode fazer um filme inteiro com elas. Esta tentativa é um fracasso. que cada dia faz progredir. é sustentado pelo sofrimento precisamente. O problema desta construção. se anular um no outro. de possibilidades de doação que o homem. é a presença parcial do homem. sobre o sofrimento moral mais que o físico. Na criança. O amor é o desejo de se identificar com o ser amado. Pode-se tirar instantâneos das crianças. e um fracasso dramático. o que isso significa? Uma tentativa física de se identificar. Esta possibilidade de identificação é como sempre destinada ao fracasso. mas acho que Bach nos deu algo que ainda não conseguimos exprimir com o cinema. o gozo. O sofrimento me interessa mais que a alegria. Adoraríamos falar dos personagens de crianças em seus filmes. Eu peço que me perdoem por citar tanto Bach. é muito importante. nas histórias de amor. O ponto perfeito do amor é o momento em que homem e mulher buscam se dar um ao outro. é um aspecto exterior do sentimento. mais representativas do homem em seu berço. uma certa tendência a torturar as mulheres. como em literatura. interpreta mal. O que é o amor? Falo um pouco como existencialista. como estes sons em fuga vertical que se assentam sobre um substrato horizontal. Infelizmente. Eu me interesso pelos limites do sentimento. em relação ao que você dizia do sofrimento físico e do amor? O ser humano é como um vaso. Beijar uma mulher. é a impossibilidade de se identificar. O vaso é construído de uma maneira diferente. de Prokofiev). pois a criança que interpreta um papel. Quantos sofrimentos de nosso corpo nascem da alma!. Em seus filmes. Não se pode fazer. isto não ocorre em muitos cineastas. Um filme de sentimento onde houvesse o momento erótico.sofrimento do corpo e lhe inflige sofrimento. muito mais que o inverso. Ora. Mas você sabe: “Tot capita. no entanto. Outra coisa: este senhor não conhecia as possibilidades técnicas da câmera. Deram-se conta depois. Um dia. pode-se torná-lo verdadeiro nos limites da própria história. sua parte de erro. diziam os latinos. com Roma cidade aberta. me dizia: “Não se faz filmes assim. A criança. Mas era. devemos antes chamar esta escola “neoverismo”. com a mulher. Rossellini é o grande mestre do gênero. com verdadeiros marinheiros como atores. em particular estas iluminações que os americanos nos haviam proposto como critérios do domínio extremo da linguagem cinematográfica. Isto quer dizer que em um homem. Que pensa você do neo-realismo. Eu a quis inconsciente porque é a história de um homem que executa o que se chama um “salto qualitativo”. formulou-se a teoria. Michelangelo deixou-nos esboços que possuem um poder expressivo extraordinário. Podemos fazer reis.a possibilidade de rodar um filme sobre a história de um submarino que vai zarpar. que era um bom técnico. Então. não se pode iluminar”. e a isso a criança escapa. permanece uma criança. é bem difícil falar deste movimento agora. O câmera. e a refinaram. certos resultados fascinantes. O amor e a aproximação da mulher deveriam levá-lo um pouco a rir. aplicaram-na voluntariamente e sem necessidade nas mesmas circunstâncias. como o cachorrinho que anda mal com suas pequenas patas. Eu acredito nas crianças da vida de todos os dias. A criança é o personagem menos histórico possível. a brincar. ninguém trabalhava então. ele filmou por necessidade das coisas reais. As crianças de hoje. inconsciente. mas se trata de uma puberdade feliz. que no homem religioso constitui o dom do céu. E cada um pode dizer o que lhe passa pela cabeça. Já que ele nos indicou as possibilidades. mas também os limites do neo-realismo. Descobriu-se a beleza das coisas inacabadas. Estes paradoxos nos permitiram descobrir que uma aderência à realidade cotidiana pode nascer de uma certa inadaptação técnica. tal como este foi definido por Zavattini? O termo neo-realismo não é muito apropriado. O resultado? Muito interessante. Entre a criança e o homem. pela força das circunstâncias. tot sensus”. falsos. Falsos porque são históricos. não adere a este gênero de história. . um filme dramático. como o afirma Zavattini. Mas esta . Eu o quis desajeitado porque ele deve chegar a dar este “salto”. A insuficiência da linguagem tornava-se um elemento de verdade. Há uma ruptura e um impulso para frente. se situa a puberdade. com sentimentos. É preciso muita paciência e experiência. enfim. seu primeiro monumento. eu queria que tudo o que precedesse esse “impulso para frente” (situado nos sessenta últimos metros do filme) fosse simples. assim como é inábil durante a guerra e em tudo o que ele faz no seminário. mas no esforço de liberação de certas convenções dos meios cinematográficos. deram a um oficial de marinha chamado De Robertis – ele morreu há uns dois anos . O problema é evocado na Fiamma che non si spegne. Filmaram nos abrigos. situações. tem sua parte de razão. Ainda assim ele filmou. Ele fez um filme bem documental. Com eles. Todos os estúdios estavam destruídos. Ele fez tudo o que lhe passava pela cabeça com total facilidade e falta de respeito pelas regras. Não tinha a menor idéia da ligação de um plano a outro. mesmo em roupa de época. a continuidade não é mais respeitada. Inábil. a santidade. É deste filme que nasceu na Itália o neo-realismo. em certo momento. com uma luz lamentável. por meio de uma certa pesquisa da construção do personagem e do jogo dos atores. podemos. com muita humildade.Acho que eles ainda são muito artificiais. só que realizado num espírito de documentário. Isto corresponde um pouco à descoberta do neo-realismo. rainhas. soldados bárbaros com muita verossimilhança (verdade). A puberdade do rapaz deveria ser extremamente cândida. Rossellini rodou este filme em circunstâncias e em um estado de espírito singulares. feliz. o resultado foi notável. numa certa medida. chegar à verdade. Eu penso que a importância do neo-realismo italiano não está na descrição minuciosa da vida cotidiana. Tendo obtido. uma impossibilidade de atingir a perfeição formal. O que é dado de forma falsa . quase banal. Se não há santidade no heroísmo. Ele permanece um herói. Os alemães de Fiamma não eram os alemães do neo-realismo. poética enfim. mas nada foi perdido. de contato encontrar esta escola e meu filme. um pouco mais compreensivo em relação a certos problemas morais. ou seja. Meu herói não era o herói particular de um episódio particular. a esta coisa horrível: amando-nos. não se põe nenhum problema. que na banalidade cotidiana e coletiva. as artes eram um pouco controladas do ponto de vista político. não é tanto por não ter tido ocasião de fazê-los. No entanto. Esta experiência. Fiamma che non si spegne. parece que se você não fez filmes neo-realistas. Era o homem que opera o “salto qualitativo”. No neo-mitologismo. igualmente na África Central. São os movimentos extremos de uma necessidade moral.Eu quero reduzir os limites deste estado ao essencial. Antonioni tem seu estilo particular. dizer: “Este filme é neo-realista” pareceria um pouco estranho. Eu poderia fazer um paralelo com outra experiência. poética esta. eu sempre me interessei pelo neo-realismo e seus resultados. tinha o mesmo caráter de contingência histórica que o neo-realismo. Poderia o senhor definir sua situação pessoal em relação ao neo-realismo? Para mim. à sua formação e explosão. Durante o fascismo. Mas não vejo que ponto em comum. eu tenha oportunidade de rodar um filme neste espírito. usaria as palavras: “Esfacelamento interior” (déchirement interieur). salvo talvez o último Hércules. seus temas próprios. E assim em todos os meus filmes. penso. e aí torna-se possível a cada um se identificar com ele: sua singularidade tornou-se universalidade. que foi muito forte na Itália durante vários anos. Não tem nenhuma importância que a história se passe hoje. e nas ruas de Milão. Penso que nosso cinema atual contém as consequências destas experiências. Ela poderia se passar. No neo-realismo. eu o vejo sempre como uma espécie de santidade. não havia esta busca desesperada por uma certa deformação da alma. Os cenários não tinham importância sob o ponto de vista do realismo.. à incompreensão. A maioria dos heróis são personagens abomináveis. eu o rodei exatamente no tempo do neo-realismo.experiência passada certamente nos trouxe algo de importante. contemplamos o vazio. a poesia foi parar num hermetismo onde a imagem se fantasiava completamente de sons. mas ligeiramente fantasiado de . partimos de outra direção.. Por sua vontade de ir além das aparências. Para resumir exatamente o que você acabou de dizer. Hoje. e oposta à do neo-realismo. este sentimento de incompreensão humana. espiritual. eu não disse: um herói. O heroísmo. mas tudo o que não representa mais o neo-realismo se aproveita de seus resultados. podemos chegar a nos arruinar mutuamente. que à primeira vista parece neo-realista. você está necessariamente do lado de Racine. mas sem ter tido ocasião de participar dele. mas antes porque o movimento de sua mise en scéne é bem contrário a esta démarche. pelo interesse que devota à crise. ao termo destas experiências. mas em relação ao desespero. mas os Alemães de todos os séculos. o limite. Eles vem da parte mais selvagem do homem. quando esta questão já não for tão decisiva. Talvez. Eu digo: um personagem. à impossibilidade de adesão de um ao outro. ao universal. voltamos atrás. em iluminações sucessivas. O que é La dolce vita. até mesmo em Fille d’amour. o herói é o homem forte que mata e nada compreende das almas. Os dados eram completamente diferentes. E paradoxalmente creio que o universal é contido muito mais no singular que no plural. Trata-se de uma idéia romântica que não tem nada a ver com o neo-realismo. Assim. Mas dizer de um filme que ele nasce de uma experiência neo-realista. senão o neorealismo transformado e integrado numa experiência poética de hoje? Este é o ponto de vista histórico. graças a palavras de significações cada vez mais ambíguas. isso já é alguma coisa. Um personagem se destaca dos outros. ele é apenas loucura e egocentrismo. o problema nunca se colocou nestes termos. quando li esta história. e ela tapa a saída. que é mais cinematográfico. Então. está o inimigo. embora comporte elementos do outro livro. ao o invés de colocá-la como situação coletiva. A luta contra os judeus representa exatamente o que dizia Kafka. O ponto de partida abstrato se concretiza em um personagem. Mas se temos a força. exprimindo este medo pânico que o homem experimenta hoje em dia. gosto muito de Julien Green. aí se diz: “Mas se ele entrasse por essa saída. porque fica literatura filmada. se a adaptasse pro cinema. cava uma saída de emergência. individualizando a situação em personagens. espero adaptar Um crime. É evidente que foi algo que não deu certo. e se limitam a transportar o material literário ao filme. Talvez seja muito difícil. de uma outra linha expressiva. mais aceitável pelo público. O que é para o senhor o tema de um filme? Penso que é um estado de alma. ficamos na defensiva. aderir a ela e transformar num filme. ela ouve um ruído. talvez a nação mais kafkiana. talvez um esforço que meus músculos não poderiam suportar.. O medo que leva o homem à guerra. Mas os que a entendem se dão conta de que é o equivalente da imagem literária. Até que nos sintamos fortes o suficiente para esmagar o inimigo. mesmo se há um desvio na “letra”. a vontade de acertar. O trabalho de transposição aliás é tão difícil que se renuncia quase sempre. Um estado de alma genérico sobre um problema. uma outra linguagem. Não é preciso dizer que os escritores. em francês). penso que a maioria das obras literárias que correspondem a nosso . os eventos adquirem vida. depois. Há também Bernanos. com medo de que a descubram. Adrienne Mesurat é uma história à qual. há a possibilidade da imagem fílmica. Em cada imagem literária. Enquanto isso. a idéia deve permanecer no “vago” do découpage. advém a loucura de suprimir o inimigo. Quanto ao personagem tal como eu o concebo. como o romance. ele escreveu coisas que me tocam profundamente. E acho que esta loucura tem um poder extraordinário. me senti totalmente uma toupeira. Um dos meus maiores desejos seria adaptar Sob o sol de Satã. torna-se coletivo. a idéia se materializa imediatamente em uma linguagem composta de palavras e em uma construção determinada. cavamos buracos. É um tema que adoraria definir em um filme. Em todos os lugares. Isto corresponde exatamente à forma dramática de minha concepção de vida. um sentimento. E nos identificamos de tal maneira a ela que. e em torno deste. deste crime. Assim. psíquica. na gênese do filme. faz seu buraco. Pode-se portanto acolher uma obra já acabada. A toupeira. Os escritores que não compreendem a linguagem do cinema. num romance. se é evidente que o tema imaginado pelo diretor é mais próximo de sua personalidade que o que vem de fora. este sofrimento.. na pré-ordenação do material. entre os escritores franceses.personagem. Ainda não pensei em fazer um filme disso. Somos toupeiras. Comunica-se de um a outro. Ela tem medo. Creio que o nascimento do tema é mais ou menos a mesma coisa num romance. eu poderia lhe dar um exemplo com um conto de Kafka chamado A construção (La taupe. que lentamente se precisa no personagem.”. uma tese. que enquanto judeu teve uma exasperada sensibilidade dessas coisas. A loucura coletiva que nos valeu a última guerra irrompeu na Alemanha. Esta toupeira é um personagem. Este personagem somos nós mesmos. existem comunicações espirituais de tal monta que podemos encontrar em outros autores mais coisas semelhantes a nós do que podemos imaginar. Estamos sempre na iminência de construir nossa pequena defesa. Por outro lado. enquanto que. esta compressão. Em seu Diário. moral. Com exceção de que. Quando nos sentimos suficientemente protegidos. o essencial é que se permaneça fiel ao espírito. em sua maioria. creio que não mudaria quase nada. a perseverança. de tal modo eu participo deste drama terrível. ela dissimula a entrada e a aprofunda. esta busca por uma liberação impossível. cava outros buracos pra descobrir onde está o inimigo. acham que foram desrespeitados. Poderia eventualmente conseguir. embora de forma um pouco intempestiva. delicado. destacada de mim. quanto mais ator ele é. Devemos nos confessar (no sentido de se abrir. Mas não posso dizer: isso não existe. não o sinto. Não. Por esta re-criação de elementos literários. Falo dos verdadeiros atores. Esta equivalência é o verdadeiro objetivo de seu esforço. quando a expressão artística atingiu seu fim. É um dos dados concretos. mas em compensação temos uns 100 metros de película onde vemos o poeta. este algo que toca. a primeira coisa a fazer. e eles procuram te dar. adulá-lo. além de um simples roteiro? Penso que você exprimiu exatamente a verdade. votado a grande sucesso.E sobretudo é preciso evitar lhe impor um “som” que não lhe seja harmônico. é se aproximar dele com amor. que não me corresponde. pressioná-los pela força. é preciso dizê-lo em certas circunstâncias. Quando um ator me diz: “Não posso fazer isso. Depois de ajudá-lo a aderir. É evidente que se adapto uma obra que não me interessa. Ele mesmo pede conselhos aos atores. ou seja. de fortificá-lo sem que se veja o esforço. mas lhe permanece inteiramente fiel. preferiria fazer assim”. Pode-se obter muito deles. desviamos o volante. um filme talvez perfeito. sim”. A mise en scéne não é uma coisa abstrata. eu trabalho com a história. mais ele deve ser ‘bem levado”. Ajustamos um pouco mais forte. o diretor dá conselhos que ele deseja que sejam executados. o trabalho com o ator é um casamento. autônoma. Em um certo sentido.verdadeiro sentimento de autor de cinema podem encontrar um equivalente exato na imagem. O Confiteor. podemos arruinar completamente um filme. pois seria um crime não ouvir um homem que tem sensibilidade e cujas . é preciso lutar com eles. eu demando uma colaboração. o dom de comungar com o público. se posso falar assim. um pouco mais à esquerda. na medida em que o cineasta nela se reencontra e reconhece. sem dúvida. para o diretor. não em outras. de dom. Trabalho com o ator. Você chega até o ponto de deixar a este tipo de ator uma certa liberdade de ação? Não. eu busco uma confiança recíproca. mas é um outro trabalho. pois os que não são. cometia um grande erro. Podemos trabalhar com esses como quando conduzimos um carro: mudamos de velocidade. se não obtivermos sucesso. Enfim. talvez mesmo no domínio das artes seja a coisa mais concreta. os atores poéticos. transformar em mise en scéne o que é literatura. de um material. Um trabalho no plano do profissionalismo. eu o escuto sempre. de sacrifício pelo companheiro de sua vida. com cenários. até que a expressão adira ao personagem. O casamento é um esforço contínuo de “saber levar”. chegamos a uma outra forma que talvez acabe por trair em parte a obra original. Eles possuem um profissionalismo tão sólido que podemos explicar claramente tudo o que desejamos . É preciso se explicar longamente. a alegria de se exprimir e lhe dizer: “Sim. Não lhe dar porradas. um pouco menos. mais à direita. fazer pressões. não uma liberdade de ação. eu faria o filme. mais sensível. sugestões. que tem o desejo de se exprimir. de sustentá-lo. o ditador que dava ordens e queria que as executassem. Então. dar-lhe segurança. mesmo se às vezes seria preciso lhe dizer não. com interesse. Isto para os atores realmente atores. Tomá-lo pela mão. O “não” . sempre pronto a renunciar ao que se pretendia obter. O segredo do diretor é utilizar o ator o mais adequado possível a seu papel. estes atores profissionais dão mais satisfação que os atores “atores”. compreendê-lo. Com o ator. aquele que está maduro. Há também aqueles que possuem apenas uma profissão. até mesmo seus defeitos. É claro que devo transfigurá-la. Mas o verdadeiro ator. Como aborda o problema da direção dos atores? Acho que o ator é um ser que. é um pouco assim. mas que não possuiria o frisson da criação. ou será que a obra literária não desempenha antes o papel de trampolim de sua inspiração. com a câmera. ajudá-lo. Trabalho com atores. entrar em comunhão com) um ao outro. O diretor do tempo romântico da mise en scéne. não faça assim. não. não estou de acordo. suas roupas de época. com seus físicos imponentes. não? Buscamos. perdem tudo facilmente. de Otto Preminger 1. Que fazemos. A outro um mi. o assombro de suscitar. certo momento. os grandes filmes de Preminger são sobre a criação. em nosso trabalho. o movimento da boca. Cada filme possui sua verdade. Sobre Hurry Sundown. de quiproquós profissionais. por exemplo. e ting”. um som. quando se trabalha com nãoprofissionais. depois alguns filmes tocados pela loucura. Whirlpool). Eu não trabalho mais com uma orquestra. Preminger falava da criação. fazemos ele dizer uma réplica. mas de uma criação estranha. trabalho em filmes que demandam uma construção. Preminger não é homem desta criação. Eu falei da busca pelo dilaceramento interior. o mito enfim. o trabalho é de outro gênero. A roupa deve ser empunhada de uma certa maneira. com o anão Salvatore. dinamismo) que proporciona a tudo e a todos seu lugar no mundo. em certos filmes do neo-realismo deu resultados bem interessantes. Mas por que renunciar. É preciso manter firme o ponto alcançado. ele trabalha em fa. É um natural particular no “não-natural” do cenário e da situação. mas que. porque só damos o tom fundamental: não se pode executar uma sinfonia de Beethoven. há a última espécie de direção de atores. Isto foi conquistado! Cuidado pra não perdê-lo. a chama indivisa que impulsiona para frente. É um trabalho muito lento e com freqüência ingrato. de descrever uma criação inocente. Para alguns. falo em teoria. pois se não são profissionais. Não o élan ( impulso. sobretudo se ele compreendeu bem o personagem. que ignora que jamais esteve tão próximo da aranha. Revisão: Luan Gonsales e Matheus Cartaxo. Um filme em roupa de época tem sua verdade em roupa de época. há pouquíssimos atores. mas com um diapasão. sem remorsos.não o natural do cotidiano. buscamos. em nome de uma autoridade exterior. pouco natural. Claro. embora ela tenha sido sua grande preocupação: a esperança. Laura. A um eu dou um fa e tang!. pouco satisfatória. Tradução: Luiz Soares Júnior. a expressão dos olhos devem estar adequadas aos figurinos e cenários. Não deixam de ter razão. Depois. porque em um filme que estou prestes a filmar( Hércules à conquista da Atlântida). Com eles. inocente pois . Desta impossibilidade nos vieram algumas obras-primas. seus belos gestos. que os fazem parecer mais uma torta que homens. esta inocência é aquela do inseto que se enrosca na teia. executa-se simplesmente. Depois. e hoje a amarga insignificância de Hurry Sundown. não está bem. La dé-faite. “Então. Aí eu me refiro a De Sica. Nos filmes que lhe valeram sua reputação ( Fallen angel. Eu poderia lhe responder: “Não. e que a análise não consegue atingir. que não é ator. Atualmente. sobretudo mais simples. É preciso portanto buscar um natural. mas o natural da “roupa de época” (costume).nem mesmo uma sonata. Há tipos que desempenham seus papéis da melhor maneira que podem. Mas seria mais legítimo falarmos na impossibilidade de toda criação. ele trabalha em mi. Torna-se muito mais mecânico. Ainda não está bem. a esta colaboração fecunda? Acho que. graças a esta falta de “profissionalismo”.. uma grandiloqüência exterior. vejamos.possibilidades de expressão estão amadurecidas. faça assim”. a falta de humildade é o pior perigo. te imploro”. captamos no jogo de uma ceninha que vamos repetir um tom que deu certo. e modificar o resto em função deste fragmento de verdade do senhor que não é um ator. o herói no sentido próprio e antigo do termo. Ele faz o que eu tento fazer às vezes. suas cabeças romanas. que é verdadeiramente um especialista da questão. espantosa apenas pela soma das energias postas em jogo. criador porque cego. até se confundirem olhar e coisa olhada. encerrados em sua solidão. orgias por impotência. Preminger é dotado do talento contrário: os que passam diante da câmera já se distanciam uns dos outros. Ford. A arte da mise em scéne consiste portanto em articular este vazio que desliza fatalmente entre dois seres.que é o objeto do filme ( e da famosa “mise em scéne”). um espaço que uma soberana ironia ( o poder de distinguir) mantém ( Anatomia de um crime). Seguem-se terríveis excessos de “estranhamento”: uma vez que os homens são fragmentos. a comunicação restabelecida. personagens que tudo separava e que uma mesma terra.é também o papel do artista: a abolição feliz das diferenças. prazer perverso e sem recompensa. uma sensualidade já decadente se desencadeiem. e retém deste contato. mas reconstituir o mundo inteiro. 3.esta coesão. O homem é diferente. ou a uma junção desajeitada e imperfeita. A “fascinação” exercida pelos filmes de Preminger é o efeito desta distância que procuramos reduzir o máximo possível. a obra inteira será votada ao reino do fragmentário e do detalhe ( Hurry Sundown). pelas exigências de uma “história”. brilha em todo o seu esplendor e se consome em pura perda. inquietantes e como se fossem contra natura. na destruição. Às vezes filmar reconcilia: em Renoir. a compartilhar o mesmo espaço. de forma leviana. o corpo-acorpo assumido. e sua importância vem do fato de que ela. Preminger se situa no coração de sua criação: a vitória da coesão sobre o fragmentário. uma carência ( un manque): suscitar em torno dos personagens. Filmar dois personagens é sublinhar sua diferença. a partir destes pedaços. até que o olhar se turve ( brouille).dado. fantoche.o Apocalipse).como se acreditou. esta “ligadura” ( chamado também de savoir-faire.que os separa. 4. Esta é a lei que corrói o cinema de Preminger. Mas esta confusão. Paradoxo que poderíamos . Mas esta confusão.garante a solidez do edifício. porta aberta a todas as violações por frigidez. para Preminger. relações sem liga e sem “ligadura”.panacéia universal ou meio privilegiado de fazer cinema. “Mise em présence”. O exercício da mise em scéne é também a expressão de uma falta. onde o vazio ameaça. Preminger é este homem que só buscará a fusão. preso na armadilha. um espaço que fosse sua prisão comum: arquitetura dos vazios.a certeza de sua maldição como o maior dos prazeres . que uma raiva fria.que seria a proximidade máxima. uma vez filmadas. É preciso levar a sério a cena de Exodus onde vemos Ari bem Canaan pronunciar a oração fúnebre de Karen e de Taha.hipnotizado. isso quando uma sensualidade progressivamente devoradora não o fratura sem fim ( Bom dia tristeza). o mais pesado dos sentidos. ou habilidade) vier a faltar. a coesão na morte ou na aniquilação. os homens se roçam .e unicamente ela. torná-la insustentável. “salta aos olhos”) contém. 2. Quando filma Exodus. Ela é o cimento de um edifício onde nenhuma pedra se assemelha à outra. suscetíveis apenas de serem justapostos.está fora de questão ( a não ser. desvario da proximidade. na morte. um mesmo túmulo vão acolher: o plano dos dois caixões. vítimas de suas diferenças. é o espaço que os aproxima. que os restituirá mais seguramente à condição de fragmentos. as diferenças. como aparecerá mais adiante. Se este poder. a exigência sobre a qual este cinema é construído.em vão. A arte da mise em scéne não era. votados à dispersão que é sua lei. entre dois momentos de um filme. Então. cego fantasma criador. de talhe tão diferente ( diferença insustentável e que. não mais diferem: o espaço que elas repartem torna-se sua terra de acolhimento. verdadeiramente. A partir de 1960. o primeiro de seus pontos em comum. Filmar é tornar o incompatível evidente. é preciso reconstruir o mundo pacientemente. retomado. Pressionados pelo roteiro. da Igreja ( The Cardinal).em 1967. exige um cadre mais geral. ou do Exército ( In Arm’s Way). mas destinado à tensão raivosa da proximidade.enunciar da seguinte maneira: descrever uma multidão onde poderíamos. 7. mesma nas altas esferas da política ( Advise and Consent). às imagens sem filme. isto é. O filme como conjunto de elementos. pouco suscetível de um encontro harmonioso. A vista sobranceira. Também sob este ponto de vista. 6. É bem evidente que no espírito de Preminger o cálculo foi inverso: tratar-se-ia de encontrar um tema grandioso o suficiente para justificar a violência gratuita destes dramas.Assim. a rapidez da execução. Certo. Os espaços brancos do texto devoraram o texto. os pretextos cessaram de ser plausíveis. dando-lhe palcos plausíveis. o problema racial nem explica nem é mais explicado por Hurry Sundown. conforta: uma multidão onde só encontramos rostos conhecidos. 8. a escolha de certos atores. seu encadeamento arbitrário. é isto que constitui o fundo das coisas. Cada cena não precisa mais ter relação com o todo. Preminger pôde dar. a regra que é. sabemos bem. na medida em que o fragmentário acentua seu domínio.em sua própria estrutura. a não ser de forma bastante distanciada. temos os “grandes temas”: o episódico. a de um casal que se precipita em direção ao seu desastre. é porque o problema para ele é apenas um caso particular da regra. a obra se desfez ( se dé-faite). e se este trata mal deste tema. o inacabado não possuem nada de assustador.( “défaite” como se diz de uma coisa que ela se desfaz . A arte do cineasta. In Harm’s way era um filme admiravelmente realizado. se são garantidos pela amplidão e pelo mistério de um grande tema. In Harm’s way era a soma falsa de elementos justos.falar dos Negros como Preminger o faz. sua impossível resolução. Assim. A dispersão. Que um homem seja algo de fragmentário. Assim. a falta de sinceridade despontam em cada plano. Ninguém está em possessão do jogo completo das causas e dos efeitos. da dispersão. os interstícios consumiram as pedras da construção. vemos uma meia dezena de dramas e de problemas pessoais que parecem ter suscitado Pearl Harbour. a todo momento. Em In Harm’s way. chamar cada um por seu nome. À ruína moral dos personagens corresponde aqui o retorno do filme ao caos. O resto. onde a fragmentação é justamente a lei. mas é um palco convencionalmente explosivo onde pode se posicionar esta outra violência. O mal que roía os personagens acabou por corroer o próprio filme. dezembro de 1967. a recusa de uns de se entregarem aos outros. o desvio que tomou a obra de Preminger estes últimos anos. com . um horizonte mais universal. é porque não é mais possível. Dir-se-ia que é um cálculo desonesto. Se há um ponto em comum a Billy Wilder e seus personagens é um empenho extremo na eficácia. mas esta ilusão não se sustenta mais. Tradução: Luiz Soares Júnior Cinema e prostituição. Se o filme choca. está também ameaçado de dispersão. Daí vem as travessuras dos personagens e a arte do cineasta. à maneira de um “relais”. sequência de elos ( maillons) que ignoram o destino da cadeia. in extremis. a entropia. Há também outra coisa.se cadeia houver. Cahiers du Cinéma. 5. ao reino do detalhe. Decisão que não se assume sem consequências.uma evolução análoga. Fortune Coockie. a mise em scéne no ponto de clímax dos seus poderes conferiam ao filme esta “liga” que o preservava.défait). a única maneira de descrever. é apenas uma tentativa de justificar esta verdade.a ilusão de tratar de alguns grandes temas. Outra consequência: os filmes sofrem. Serge Daney. à medida em que se distancia de seu objeto.défaite. Billy Wilder 1. Não é o caso neste Hurry Sundown. capaz unicamente de violar ou se dispersar. a fim de se conservarem na consciência infeliz de sua diferença.pôde se dar. soma de energias. e contemplamos esta distância que ninguém poderá preencher. Esta ausência de um ponto de vista pessoal . ou seja: não visando mais aos fins. de tal forma que um plano e um olhar lhes basta para criar um mundo. mestre de seus meios de expressão até o limiar da vertigem. enquanto que ela não passa da face dupla e da última consequência de um frenético gosto pela eficácia. do último acessório ao último figurante.sobre a matéria que organizam faz dos americanos admiráveis bricoleurs. o medo. cada filme esmerando-se diabolicamente em nada dizer. Ganho inapreciável. em uma grande confusão. mas que meios são estes (sur quel bord est-on embarqué)? O bricoleur não é responsável pelos instrumentos improvisados de sua arte. Que Wilder seja infame. Seu único empenho é fazer brotar um sentimento. já que tudo.até mesmo um minguado ponto de vista pessoal. sempre. teríamos dois sentimentos ao invés de um. Nem ele. olhar soberano. descoberta rude mas cheia de ensinamentos. e que um bom filme é em primeiro lugar o que esgota todas as possibilidades (o riso. O excesso de eficácia é a morte da eficácia. temas dos quais ele é o prosador soberano. que acreditam pertencer a um mundo e uma civilização que lhes foram dados de uma vez por todas. oferecem o espetáculo de um domínio absoluto. uma emoção. mas se esta jovem fosse feia e ridícula. Admiráveis contadores de histórias. Era uma sábia política. pois o vazio também perseguia o cinema americano: quando o excesso de cinema (trop de cinema) mata o cinema. justo e rigoroso pousado sobre diversos mundos ao mesmo tempo. Isto não deixa de ter implicações. indiferentes à matéria que abordam. cada mundo dando as costas um ao outro e o mundo remetido ao . para além de certo limiar. A lei foi a do rendement maximum (rendimento máximo). o cinema “europeu” aprendia a abrir as portas a este vazio . McCarey é um homem que nos diz que é triste filmar um casal de velhos executado numa igreja (Satan never sleeps) mas que podemos.frequência tachada de vulgaridade. as lágrimas. espécie de “parte maldita” (part maudite) da qual seria impossível “se servir”. baixeza e outras infâmias. Observemos igualmente sua predileção por tudo o que é mentira. aos demônios de onde nasceram. etc) de um roteiro. poderia servir. tanto quanto um cineasta americano não é responsável pela América. é algo que não contestamos. acrescentar um elemento de beleza à cena. ou um ponto de vista “à perigo” . Alguns filmes recentes testemunham esta desordem e esta modernidade inesperada.os mais inocentemente perversos . Daí a beleza destes filmes . assim como. pode servir. não fazem diferença . O princípio do rendimento máximo se desdobra automaticamente em um cinismo que os maiores entre os Americanos transformaram em seu bem precioso. 2. e os outros preservam esta parte de “emoção” que julga a imagem complacente com a“ternura detrás da ferocidade”. os sentimentos não contam mais. imposturas. nem seu pequeno mundo de admiráveis crápulas ou de cretinos honestos: os primeiros destilam um riso vulgar como de hábito. por meio de certo enquadramento. In Harm’s Way. Da eficácia nos veio o cinema americano. Ao mesmo tempo. É tocante que uma belíssima jovem (The bells os Saint Mary’s) narre suas desilusões amorosas. indiferentes à imagem. este se distancia de nós. Gideon of Scotland Yard. The Chapman Report .excessos ou silêncios inutilizáveis. e da América o maior dos autores americanos.Pensemos no que Claude Lévi-Strauss chamou de “bricolage” intelectual: fazemos isto com os meios à nossa disposição (les moyens du bord). e graças a ela.como o queria McCarey . excessivamente seguros de seus meios. a habilidade dos Americanos era um meio de não deixar nenhum vazio em seu cinema. e cujo resultado é a maior das entropias. e talvez os próximos filmes de Billy Wilder.mas são remetidos ao nada. Mais que uma lei. Wilder não mudou. uma estética: a convicção de que tudo. todas as vezes em que a ocasião se apresenta. prostituição.. O métier. The fortune Coockie confirma isso. 3. Vale a mesma coisa para o ligeiro movimento de surpresa de João Batista . Em 1976. 3. volens nolens. num filme que comporta pouquíssimos cortes). não dirigidos(vide Caprioli. agindo como se soubesse que está sendo observado (e o filme prova que ele tem razão).Wilder de súbito não mais solidário com seus personagens. ou seja. mas visto com um certo recuo. O humanismo rossellianiano é este. de mostrar-lhe os mecanismos . O cineasta não escolhe nem seus temas nem suas mídias. Por um lado. assinado por Buñuel. grotesco no papel de Herodes. O famoso “ apagamento” do cineasta torna-se um axioma. é um pouco a coxia do cinema. 2. Mas a platéia. por outro. em close. que ele representa como interpretou Salumi em Toute va bien). e a quem reconhece de súbito: mas é Jesus! Estas imagens são maculadas por um certo ridículo que é igualmente o que lhes dá o seu valor ( e que desde sempre constituiu o coração do cinema de Roberto Rossellini). a eficácia consiste em denegrir a eficácia. 195. expulsa os mercadores do templo a golpes de corda. supervisionados por Deus). pois figura no roteiro do filme ( de Rossellini) e no roteiro original ( os Evangelhos. No plano seguinte ( depois de um corte. Por isso não nos espanta que The fortune Coockie seja um filme sobre a mise en scéne. acreditando na dignidade do filme. Mas não é preciso dizer que o cinismo tem a última palavra: de agora em diante. Em relação às mídias. Neste ridículo. Mas é preciso observar que o seu universo é este mesmo descrito acima. teria feito a sala explodir em gargalhadas. afinal de contas.remete cada coisa a seu lugar e o filme ao filme. ele se cansa facilmente) que é também um gesto inesperado ( geralmente não esperamos de um Deus este gênero de “pequenos fatos verdadeiros”). reside o humanismo de que Rossellini se tornou. Ainda não. não ri. ao longo dos anos.O mesmo plano. Gag sutil. afinal( après tout). Jesus. quando se prepara para verter um pouco de água do Jordão sobre a testa de um candidato ao batismo que ele ainda não notou. o mundo da eficácia. onde cada homem tenta se vender ao melhor preço e sob as melhores condições. é preciso admitir que o cinema foi por muito tempo o veículo ideal desta publicidade. na cabeça. Nestes dois planos. Cena duplamente esperada. Ridículo ligado à resistência e aos reflexos mínima dos corpos dos atores de hoje superpostos ao livro de imagens bíblico. Este recuo. trivial. o reverso do rendimento máximo. o ridículo consiste em reivindicar como um projeto positivo o que chamamos. esta margem . Corpos entregues a si mesmos. necessariamente cecilbedemilleano e pobre que temos. o cantor indecente. é sempre mostrado sob os refletores do “morceau de bravoure”. Serge Daney. o que provoca o sorriso é a irrupção de um reflexo( de um gesto natural: Jesus é um homem. enxuga sua fronte coberta de suor. alegre (Irma la Douce) ou extasiada (Kiss me stupid!). o outro lado. Afinal( après tout). cinema esperanto.seu movimento impessoal. Jesus. a modernidade de Rossellini esteve em . Transparência generalizada. Sobre O Messias de Rossellini 1. 4. sublime canalha. menos empenhado em ser eficaz que de falar de eficácia. típico da frase que se usa como desculpa: é o humano. O tema dos últimos filmes de Billy Wilder é a prostituição. involuntária (The Apartment). que se irrita por nada. e nisso ele é um cabotino supremo. Wilder não está nessa. Cinema esperanto. Depois ( après) do fim do mundo. E se não existe prostituição sem publicidade prévia. Willie Gingrich. Wilder é seguro o suficiente do domínio de seus meios para não sentir a necessidade de ser eficaz a cada instante. novembro 1967 Tradução: Luiz Soares Júnior. nos Cahiers. Cahiers du Cinema. que havia se tornado a sofredora. Du visage au cinéma. Algo como uma Enciclopédia Alpha audiovisual que só comunicaria a idéia da comunicação. isolado sobre um fundo branco que lhe acentuava o desespero. apesar do kitsch sulpiciano de planos de vitrais. de uma outra forma menos ecumênicas que as de Rossellini). Esquecer Montoire e Auschwitz. a contemplação de um rosto. a idéia imperialista de uma comunicação fácil e obrigatória. um transbordar de lágrimas irreprimíveis. terrivelmente sofredor. É para este público que ele trabalha. A prosperidade crescia a olhos vistos. todas as derrotas. o que poderia ainda provocar as lágrimas de uma jovem. Um rosto em grande close. abandonadas. As lágrimas eram o signo visível de que alguma coisa se transmitia do sofrimento representado na tela àquela que o observava. Depois de trinta e tantos anos. quase voluptuosas? Evidentemente. Serge Daney Cahiers du Cinema. Em relação aos “temas”. já era à época um eterno monumento. a Nana de Viver a vida. e para quem a história do Ocidente seria tão opaca quanto para nós a dança das abelhas. mai 1976 Tradução: Luiz Soares Júnior. com a condição de que um pedaço de celulose os reunisse. Por trás desta reivindicação da comunicação pela comunicação. à humanidade da alma humana. uma vez que só existe – afinal. Era 1963. acossa o Ocidente. O estruturalismo começava a disputar as manchetes das revistas com a Nouvelle Vague. esquecer Dien-Bien-Phu. 4. A paixão de Jonna d’arc. de um público de sobreviventes à catástrofe que. Prólogo Foi há trinta anos atrás. nada mais. o filme parecia feito para tornar visível. dos grandes homens) da história do pensamento judaico-cristão. monstruosamente cortado de seu corpo. a Joanna D’arc de Dreyer. do rosto da alma. Neste mundo que queria esquecer a derrota. A França do crescimento industrial fazia o possível para esquecer. de Alberti a Marx. a Algéria. construíam-se autoestradas. de Sócrates a Jesus. . ( Da mesma recusa de se deixar aprisionar na questão da especificidade Godard tirou outras lições . Constituir arquivos e manuais para este público é falar esperanto quando estamos certos de que já não há ninguém para compreender o que quer que seja.a comunicação. acrescidos ao filme por Lo Duca.proclamar nestes anos que o cinema e a televisão são a mesma coisa.. que se aturdia fascinado com o progresso infinito da vida material. esta assustadora e essencial nudez da alma. Pode-se também pensar que o público de O Messias não existe. O rosto da jovem em lágrimas também era um close de filme: Anna Karina. ele declara com orgulho que sua escolha não deve nada a seus caprichos ou a suas concepções. anos que viram tantas coisas se encenar na história do cinema e na história do mundo. com sonorização pesada. Público sonhado sob medida pelo delírio didático. segundo Rossellini. Hino à alma. esquecer Hiroshima. que o atravessava: que a observadora havia se identificado ao sofrimento. de uma vez por todas. um encontro permanecia eficazmente possível entre estes dois rostos de mulher. ou talvez em 1962. mas a uma espécie de necessidade objetiva que lhe impõe falar dos grandes momentos ( ou seja. pode-se ver ( não sem comoção) o estado mais indolente de uma espécie de comunhão dos santos laica(no elemento da Cultura para todos: filme como hóstia) ou uma farsa bufa(pantallonade) essencialista a mais. depois de tudo ( après tout). uma jovem chorava no cinema. em contracampo de Falconetti. apresentada então em uma versão degradada. que se trata de um público “por vir”. torturado. alma diante da qual a verdade estacaria. circulando de rosto em rosto sem jamais se fixar. as intenções. mas o que ele explicava era apenas isso: um rosto é uma tela. como se fossem superfícies in-diferentes). no cinema de arte europeu. lhe disputava o espaço do plano. Alguns anos depois das lágrimas de Nana. querido e posto como Absoluto. quaisquer que sejam. Nana e Paul disputam uma partida de fliperama. ora ameaçava de tal forma o seu ser que chegava ao ponto de trocar com ela nomes e rostos. Daí resulta que as faces de todos os Espíritos tornam-se as formas e as efígies de suas afecções” ( Swedenborg. não se tratava mais de uma alma “por detrás de um corpo”.A alma tem um rosto? Sim. sobre um outro rosto ( ou então os rostos podem se agregar. e ele recita: “A galinha é um animal que se compõe de exterior e interior. alguma coisa havia ( qual?) precipitado a situação de um estado a seu extremo oposto? E se Vivre sa vie é o “revelateur” que acrescenta a lupa de seus closes aos closes de Dreyer a fim de fazer . “dar uma alma” a rostos gigantes. que vive para além da morte. mostrá-lo simplesmente. O filme era a explicação desses rostos. fotografamos a alma que se encontra por detrás dele”. frágil e fraturada como ela. são reduzidos a este estado. “com todos os pensamentos. É um tal rosto. de forma vã. Seu rosto. sacralizada de uma Alma absoluta e santamas uma outra mulher. Se tiramos o exterior. os prazeres e os temores que o haviam agitado” que oferecia Dreyer. é o rosto do “homem interno”. não era mais uma putinha ingênua e idealista. Esta mulher em crise não tinha mais diante de si a imagem mítica. Um ano antes. respondem os místicos. Muito tempo se passou desde então. e não apenas pelo fato da “alma” ter se tornado uma noção duvidosa. realizando de uma forma quase ideal esta utópica perfeição do rosto humano. e tudo o que nele se inscreve permanece-lhe alienígena – poderia da mesma forma se inscrever em outro lugar. sem que a ela fosse dada a chance de se reconhecer. que ora lhe estendia um espelho acusador e desapiedado. Paul ( André. o dizia: era uma história de máscara. acoplar. No fim da primeira seção de Vivre sa vie. e ainda menos esquecer. de alma não são mais no cinema um dado ( donné).É neste rosto absoluto que imergia Nana. e Godard. uma superfície. um outro filme multiplicava os closes sobre um rosto de mulher à beira da crise. a transparência. nada mais “jorrava da fonte” ( ne coulait de source). derretendo-se de simpatia ao impacto de uma grande dor. o “pequeno soldado”. de que o rosto só constitui a forma exterior: “Todos. Labarthe) comunica à Nana uma brincadeira de criança que ele acha muito divertida. semelhante “à sua afecção dominante ou a seu Amor reinante”. no momento de fotografá-la: “Quando fotografamos um rosto. à qual a dor do mundo havia imposto a afasia. a sua vontade. foi justamente no território onde ela possuía o valor mais eminente. Nos primeiros planos. a humanidade de um rosto à humanidade de outro rosto? O cinema pode ainda crer neste encontro efusivo . de falar como pensam. S. O próprio título do filme. Persona. e não apenas sob a forma de uma leve suspeita. O Céu e as maravilhas do Inferno). Na verdade. Mas nada era mais simples. ao tocar-lhes com os dedos. Neste curto espaço de tempo que separa os dois filmes. resta o interior. nem mesmo as lágrimas. que a alma foi mais duramente posta à prova. abandona a ambiência do café onde se encontram. víamos uma criança talvez morta tentar. nos últimos planos. Não há nada “por detrás”. até a dimensão física das lágrimas. há trinta anos atrás. a criança tateante ainda se encontrava lá. de súbito muito próxima. superpor. e os rostos não cessavam de lhe escapar definitivamente. como se imediato e natural? Nada é menos certo: o potencial de humanidade. sua face tornam-se então uma imagem. A alma pode realmente falar à alma. Bruno Forestier. e quando tiramos o interior.A “verdade” não passava de uma trama inapreensível. e mostrar. anunciava à mesma Anna Karina ( ela se dizia chamar Veronika Dreyer então). mas uma atriz célebre. imediato. Sua voz. através de seus rostos e seus gestos. vemos a alma”. ainda acreditava que a alma pudesse falar à alma. De qualquer forma. enfim revelados. Aliás. Tobe Hooper. Lewis. ela está muito distante da complacência grand-guignolesque e guignolesque estrita dos filmes de H. seria a de que. Ela é justificada pelo rigor da intriga e pelo ciclo infernal onde embarcam todos os personagens. tv). dois cineastas totalmente independentes e à margem dos grandes estúdios foram particularmente inovadores. e 2000 maniacs. 1964.. La fiamma che non si spegne. 1963. 3) utilização conjunta da audácia visual ( ponto comum com Herschell Gordon) e da discrição nas cenas sanguinolentas. Tomando o cinema por testemunha. procurar perto de nós. foi muito maior. o filme provocou em eu lançamento uma surpresa e mesmo certo escândalo. Cottafavi 1949 . Os cinco anos que separam o filme de Godard do de Bergman condensam esta perda. de um anti-humanismo que Bergman genialmente apenas pressentiu? Este livro não constitui uma história do rosto. e suscitou por um longo período ( que dura até hoje) uma degenerescência do filme fantástico e de horror. o filme acaba em um mal-entendido sangrento que radicaliza ainda mais. bem antes de Dreyer. Apesar de ter relançado o tema do zumbi. até meados dos anos 70).. variação contemporânea sobre o tema do zumbi. realizado com um orçamento irrisório. marca uma espécie de intrusão bem eficaz do realismo no fantástico mais horrífico. E com este objetivo. Ao invés do happy end corrente. remontar bem antes de Godard. sem eco. escrutar. Se houvesse uma tese a enunciar. Herschell Gordon Lewiks. de qualquer forma irrecuperável no plano estético. com o fito de compreendê-la um pouco. ( A notar que esta degenerescência se dá paralelamente a uma revitalização do cinema de ficção científica. ele tenta se questionar sobre como a representação afetou. que filme hoje em dia nos permitiria elucidar as monstruosas “ampliações” bergmanianas?Seria preciso retornar ao cinema primitivo e suas “grosses têtes”?Ou ao contrário. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Em relação à audácia visual. engendrarão a moda do “gore” ( fantástico sanguinolento radicalizado com uma complacência mesclada de humor até os extremos limites da repugnância) e Georges Romero. dispor diante de nós. ilustrada por exemplo por um filme como Massacre da serra elétrica. A de Lewis. 2) a intervenção permanente na intriga das mídias ( rádio.Por estas diversas razões. à questão do rosto.o horror de tudo o que já fora mostrado. ele visa a se interrogar sobre o papel ( suspeito) que artes eminentemente humanistas da representação desempenharam no sentimento atual de uma deserção (déreliction) da face e do humano. cujo Noite dos mortos vivos. examinar). que acentuou seu sucesso. Jacques Aumont. de tanto nos deixarmos “dévisager” ( olhar longamente. Noite dos mortos vivos. perda que é preciso agora desdobrar. no mais alto grau. na ausência glacial de profundidade sob os rostos. de um modo irônico. nem uma história das representações do rosto. questão humana eterna e essencialmente posta. Du visage au cinéma Tradução: Luiz Soares Júnior. a influência exercida pelos dois cineastas não foi igual. por assim dizer. Romero 1968 No decorrer dos anos 60. Em suma. cujo Blood Feast. a lição realista de Romero ficou. 4) recusa das convenções e clichês em uso no gênero. perdemos a face. e mesmo seus filmes seguintes não estiveram à altura deste rascunho de mestre.ressurgir uma alma de suas bobinas. que por vezes nos surpreende nos filmes. Quatro elementos principais darão ao filme sua força e originalidade: 1) a condensação da ação e da duração no seio de um crescendo dramático constante. os últimos signos. o status de todos os seus objetos mais caros. 1974. ao penetrarmos aí por efração. antes de tudo. Longe de ridicularizá-los. Crônica de ritmo fluido e cativante. mas ela se volta para a câmera com lágrimas que nascem. que a velocidade da ação se acelera e que cada personagem. Tão logo pôde. e se refere ao entrelaçamento. Cottafavi não gostava de gêneros. em alguns conjurados ( ex: o casal A. ( Eles são citados na ordem crescente de interesse que parecem ter para Cottafavi).onde teve de trabalhar. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. drama psicológico.Baseado num fato real. pelo contrário ele tenta magnificá-los. quando de uma folga no serviço.e não pertence a nenhum em particular. Fiamma che non se spegne é iluminado. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. a execução final. como se. merecerá tanto esmero em sua composição quanto o suicídio de Marco Antônio e Cleópatra. entre a bestialidade e uma forma de nobreza que os tornaria quase semelhantes a deuses. melodrama. em um depósito de locomotivas.o neo-realismo.capa e espada. estava de tal forma na contracorrente da época ( estamos em pleno início do neo-realismo) que suscitou uma polêmica no Festival de Veneza de 1949. Assim. Il cavaliere di Maison Rouge. tragédia histórica. sofrendo o peso do destino que lhe cabe. as cenas de ação e as cenas íntimas se encontram situadas em um mesmo plano de intensidade quase litúrgica. reconduzidos de geração a geração. por um lirismo de caráter trágico: perseguição do carabineiro no início do filme por marginais. a respeito da qual o realizador confessou que se deixou guiar. aquilo que ninguém deveria contemplar”). Franciolini e Y. claro. Lebon).comerciais. . se revela em sua identidade própria. Cottafavi sempre fez cinema comercial ( popular) contra sua vontade. Ao contrário de Riccardo Freda. de sua busca pela felicidade individual e de seus esforços impotentes a pôr um fim ao martírio histórico da rainha. seu casamento precipitado e noturno. em seus momentos mais fortes. este severo elogio das virtudes morais e do senso de sacrifício. a mais bela seqüência da obra de Cottafavi. sem dúvida. realização das pesquisas formais do cineasta. A última meia hora do filme é. filmado face a face nesta câmara. o que Cottafavi realizou de mais convincente: é aí que os quatro gêneros se mesclam e se harmonizam da melhor maneira. à eternidade que o cinema de Cottafavi ignora -soberbamente. na direção da cena. ela recoloca cada ação trágica em uma continuidade de ordem religiosa que é uma espécie de eternidade: a chama que não se extingue. Il cavaliere é o exemplo mais bem realizado deste trabalho. à sua maneira. A maior originalidade do filme diz respeito à sua construção. dirime a História. É porque ele visa. o retrato da execução de um soldado anônimo em uma guerra com milhões de mortos terá a mesma grandeza. Cottafavi A carreira cinematográfica de Vittorio Cottafavi teve a duração de um raio e a forma do paradoxo. sua grandeza e solidão. Traviata 53. A liberdade não existe no universo fatal de Cottafavi. escreve Mourlet. Cottafavi Uma adaptação moderna da Dama das Camélias. por um estilo de dignidade altaneira que não queria ter nada de popular. A liturgia suprime o Tempo. por sua admiração pela música de Bach. e. Ao longo de todo filme. contemplássemos com uma espécie de terror sagrado. a cena onde sua esposa recebe a notícia de sua morte ( “ Nós não vemos de imediato seu rosto. Mas estes personagens possuem sempre a escolha entre a elegância e a mediocridade. nesta solidão absoluta. O filme participa de quatro gêneros diferentes. E assistimos ao assalto lento e inelutável de uma alma pela dor. ilustrado nas últimas sequências. articulada em três fases. de ogre e todos esses seres míticos que fascinam e aterrorizam a imaginação infantil. destruída muito mais por sua melancolia que pelos acidentes materiais de sua vida movimentada. Charles Laughton 1956 Este filme inclassificável. Our mother’s house. que foi um fracasso comercial e impediu Charles Laughton de continuar uma carreira de metteur em scéne. o de Dreyer em particular. Pouco a pouco submergida pelo amor. Ela está constantemente dividida entre os élans espontâneos de ternura que desejaria reprimir e uma dureza calculista. perdidas em seus problemas de comunicação e melancolia. o cântico que Lílian Gich canta. Para além de toda racionalidade. se inscreve nesta linha de contos negros. perde sua ambigüidade e se torna uma personagem transparente e trágica: uma vítima. Se é absurdo dizer. foi sempre muito apreciado por alguns cinéfilos.foi para a RAI e dirigiu trabalhos mais nobres ( adaptação de peças ou romances clássicos). Ele tenta aqui transformar um melodrama a seu ver muito canhestro em uma evocação raciniana da impossibilidade de amar e ser amado. que ele julgou muito longa e realista. A sensibilidade aristocrática de Cottafavi só consegue se exprimir plenamente na direção de atores. Cottafavi é vitorioso em sua alquimia. filme noir) . Vide as cenas de party onde os personagens se entediam. Tomando emprestado característica de diversos gêneros cinematográficos ( western. Deve muito isso ao trabalho do operador Stanley Cortez. Mas isto a despeito do contexto social e realista do filme. Alguns. Com o auxílio de uma mise em scéne fundada sobre a interiorização e o silêncio. etc). no plano literário. Elsa Lanchester. adaptado de Julian Gloag. não se encaixa em nenhum mas . não há dúvida de que seu personagem é dotado de originalidade incomum. afirma que ele começou a escrever o roteiro com David Grubb. que Mitchum encontra aqui seu melhor papel e foi descoberto a partir deste filme (!). esposa de Laughton. adaptado de Richard Hughes. Tempestade na Jamaica de Mackendrick. e a descrição convencional dessas figuras deslocadas ( mal dans sa peau) e sem força de caráter. como uma falsa vagabunda que permanece ingênua e vulnerável. e fazem dele uma espécie de “Antonioni do pobre”. sobretudo em razão da cena final da prisão. empresta densidade à sua personagem e nos faz ressentir intensamente seu desequilíbrio íntimo. Em sua autobiografia. quiseram ver em Powell um substituto da figura paterna para as crianças. Os cenários de inspiração gótica e expressionista evocam também o universo escandinavo. O desenvolvimento da história. com o objetivo de que esta reencontrasse uma parte do onirismo e do insólito da obra original. este tipo de exegese psicanalítica corre o risco da gratuidade e nos deixa insatisfeitos. O mensageiro do diabo. adaptado do romance de John Meade Falkner. Bárbara Laage. de Jack Clayton. depois encomendou uma adaptação a James Agee.sobretudo de atrizes. narrativas de aventuras mais ou menos fantásticas e “de pesadelo” . a narrativa é pontuada de imagens e cenas inesquecíveis: o cadáver de Shelley Winters no fundo da água. autor do romance original. sentada na varanda. onde se mesclam confusamente um ponto de vista objetivo do narrador e o ponto de vista subjetivo das crianças. e Mitchum que a . um fuzil pousado nos joelhos. Os interiores ( recriados em estúdios) tem em comum uma compósita qualidade de irrealismo. Suas ambições com frequência o denunciam.que dá ao filme sua bizarra coerência. É sobretudo plasticamente que o filme é surpreendente. onde as crianças são ao mesmo tempo os heróis e as vítimas ( Moonfleet de Lang. Laughton a remodelou e encurtou. como foi feito. Ele possui muito de Barba Azul.ou de surrealismo. conta muito menos no filme que a atmosfera e os personagens. Embora aparentemente encorajada pela substância do filme. e metamorfoseia uma personagem de melodrama em uma heroína de tragédia. que havia perdido ( James Agee morreu em 1955 com 45 anos e não pôde ver o filme terminado). O relativo “desajeito” do filme no plano dramático reforça ainda mais sua estranheza. pela claridade bem distanciada do que expõe. Por sua vontade de demonstração a qualquer preço. da precisão e do particularismo. o formalismo mais desenfreado reforça.persegue no jardim. É o caso aqui. Quando se mostra mais brilhante. que a intriga se passe numa “terra de ninguém” ( no man’s land) vagamente anglo-saxônica e em cenários inspirados pelo filme noir e pela ópera. Laranja mecânica. Mas sobretudo eles dão uma dimensão apocalíptica à aventura. O fantástico e a FC intervém no cadre cronológico da ação. bárbaro e insuportável desta violência. recusa pela qual ele pensa atingir um público ilimitado. Uma parte importante de sua mensagem ( na última parte) visa a mostrar que a resistência natural das crianças e sua inocência podem acabar por vencer a loucura. ou seja. por exemplo. Em primeiro lugar. o filme trata do problema número 1 da maioria das sociedades modernas ( presente em um grande número de filmes). como em toda fábula digna deste nome. em efeito. sátira e humor noir). a todos. sobretudo se o espectador busca colocar etiquetas políticas muito precisas sobre os personagens e o tipo de sociedade onde eles vivem. o filme é totalmente de sua época. alegoria. Kubrick inova também utilizando um estilo onde. Laranja mecânica é o exemplo típico do filme que vem exatamente na hora que tem de vir. Do ponto de vista temático e sociológico. o caráter cruel. pela insistência com a qual ele tende a impor seus efeitos e convicções. a violência. Kubrick Menos inovador que 2001. Esta ambivalência aparece tanto no plano formal quanto moral e filosófico. nenhum gênero cinematográfico possui mais um status dominante. a cupidez e o mal que são o quinhão de muitos adultos. sobre um equilíbrio extremamente eficaz entre a sofisticação e a brutalidade. uma parte não desprezível à reflexão e às hipóteses do espectador) é que a violência da sociedade é ainda mais nefasta e perigosa que a do indivíduo. Laranja mecânica representa o filme mais típico de seu autor. o estilo de Kubrick repousa. pela ambivalência clássica e barroca. Este barroquismo . Kubrick mostra que a sociedade. e assim o preenche totalmente. que talvez não tenha tido tanto sucesso como acreditara no tratamento imposto ao perverso. o filme está longe de ser inteiramente pessimista. Kubrick é um barroco. obra precedente de Kubrick. paradoxalmente. comparando a violência do indivíduo à da sociedade. o bom senso ( e seríamos quase tentados a dizer pela banalidade) de suas vistas. No plano criativo. e sobretudo por sua recusa do realismo. levam às vezes a uma certa confusão. o fantástico ou a ficção científica suplantaram ou contaminaram. Mas Kubrick o estuda sob um ângulo original. mais ou menos. teatro. filme de tese. todos afetados por um importante coeficiente de fantástico e ficção científica. não deixando mesmo de recorrer a paralelismos teatrais ( encontros idênticos de Alex antes e depois de seu tratamento) e pela sã habilidade de uma retórica bem aplicada. e o fato. procura recuperar a violência de Alex e de seus companheiros. Mas o que se tornarão elas quando crescerem? Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. linguagem dos personagens e no tipo de tratamento aplicado ao herói. Kubrick é um classicista. Embora noir sob o ponto de vista plástico. responde a uma expectativa do público. O sentido da fábula de Laranja mecânica ( que deixa. Mas sua recusa do particularismo. No fim dos anos 60. Em um desenlace particularmente noir e corrosivo. Kubrick denuncia o absurdo de uma sociedade que buscaria estabelecer a ordem e a saúde através de indivíduos enfraquecidos e doentes ( pois é exatamente uma doença que é inoculada em Alex). no nível das emoções sentidas pelo espectador. tomando emprestado a uma variedade de gêneros literários e dramáticos ( conto filosófico. sob todas as altitudes. Pela justeza. embora provocando nele um choque e uma surpresa. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. quando se trata de valorizar um cenário. os efeitos especiais mais bem cuidados e sofisticados. data do primeiro dia de filmagem. “Encounter in the Dawn” ( 1950) e “Guardian Angel” ( 1950). Alex sai da prisão e volta para casa. É a angústiafísica e metafísica. utilizando segundo a ocasião o estatismo da câmera. consubstancial à existência do homem no universo. durante a qual o orçamento inicial cresceu de seis a dez milhões e meio de dólares. pois não tinha nada a ver com o estilo satírico do livro. uma situação ou o jogo de um ator. O trabalho de escritura e preparação do filme duraram até 29-12-1965. O trabalho e a inspiração de Kubrick visavam dois fins paralelos: realizar o filme de FC mais espetacular feito até ali ( com as maquetes. não podia crer no que tinha diante dos olhos. e penso que foi o editor quem convenceu Burgess a terminar o livro com uma nota de esperança ou coisa assim.inelutável.do progresso científico.do homem perdido nos espaços infinitos. Kubrick propõe a Clarke escrever um roteiro com vistas a um filme de ficção científica . amplos movimentos de aparelho ou efeitos de câmera na mão. A filmagem se estendeu por cerca de 7 meses ( nos estúdios Boreham Wood. mas que primeiro teria a forma de um romance escrito a duas mãos. Ao contrário de várias superproduções holywoodianas. mas também acossado. mas eu só li a versão com o capítulo suplementar após meses de trabalho no roteiro. o que coloca também em relevo o virtuosismo de Kubrick e sua vontade de percorrer o campo quase completo do gênero ( como bem o coloca Bernard Eisenschitz em Cahiers du Cinema 209: “O domínio de Kubrick aparece na justaposição e combinação de quatro grandes motivos característicos: FC pré-histórica. Eu estava estupefato. uma odisséia no espaço. O ponto de partida do romance e do filme foram as novelas de Clarke “The sentinel” ( escrita em 1948) . Um dos rapazes se casa. Nota: Na retranscrição do filme com o auxílio de fotogramas publicada por Kubrick. antecipação a curto prazo. Mas ele admite também “que o diálogo de Burgess no romance é quase perfeito” Sua principal modificação ao livro concerne ao desenlace: “Há duas versões do livro. este filme emana. ele não esconde seu ecletismo formal e mostra com clareza que faz uso de todos os meios ( il fait feu de tout bois). sem passar de mão em mão. ao terminar o último capítulo. Basicamente. e a pós-produção ( mais de 200 planos do filme necessitaram de efeitos especiais) só chegou ao fim no começo de 68. apesar de possuir uma gênese longa ( 1964-1968). graças ao talento de Douglas Trumbull) e destilar uma espécie de poema filosófico sobre o destino do Homem em sua relação com o Tempo. pela próxima etapa.uma angústia difusa. Esta dupla ambição conduz a uma obra de construção muito original e arriscada. feita de quatro blocos relativamente autônomos. de um único homem. viagens interplanetárias. mutantes no hiperespaço”). e no fim Alex toma a decisão de se tornar um adulto responsável”. Kubrick Como disse Jacques Goimard: “2001 é o primeiro filme desde Intolerância que é ao mesmo tempo uma superprodução e um filme experimental”. A contribuição do roteirista e escritor de Ficção científica Arthur Clarke foi muito importante. glacial. o progresso e o universo. no sentido e na forma.“pela metade” assumido de Kubrick é sem dúvida também a parte mais frágil e mais vulnerável ao envelhecimento de sua obra. o outro desaparece. enfim grandes galáxias. 2001 é um filme de angústia. 2001. Ele comenta também seu interesse pelo romance de Burgess: O que me atraiu nele foi a narração. em todas as épocas. No início de 1964. que não deixará de ser para ele ainda mais destrutivo que construtivo. cuja substância é . . o personagem e as idéias”. na Inglaterra) . Honestamente. por assim dizer. reduziu ao mínimo o número de membros da equipe da Discovery. Alguns recusam-se a admiti-lo. longe de comprometer a sensação de tragédia. sublinhe a reciprocidade: um afia o outro. seu otimismo permanece puramente especulativo e. O gênio de Howard Hawks. No plano formal. No que concerne à história da Ficção Científica cinematográfica. quando não estamos mais certos das nossos emoções.A obra de Hawks é igualmente dividida entre comédias e dramas – uma ambivalência notável. enquanto tal. menos imperfeita que aquela conhecida por nós. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. a imaginação do espectador. Tudo o que se sabe a respeito da elaboração do filme. Kubrick parece mesmo emitir a hipótese de que toda evolução científica do homem pode ser determinada pela intervenção de extra-terrestres. Ainda mais notável é a fusão desses elementos para que cada um. ( E é significativo que a maioria dos comentários escritos sobre 2001. a mutação final do herói engendrarão talvez uma forma de vida e de desenvolvimento menos decepcionante. do segredo e do mistério. tornados simples servos das máquinas e do cérebro que os comanda. das hesitações e tateamentos de Kubrick mostra que ele desejou ir cada vez mais longe na direção do silêncio. no entanto. Nesse sentido. que criou em seu lançamento um choque cujo eco ainda hoje não se extinguiu. engendra uma deprimente monotonia. avaliando qual lado tomar e se devemos nos deleitar ou assustar. mas isso não o impede de ser baleado. como nunca antes num filme com tal orçamento. semelhante ao “tédio mortal da imortalidade” de que fala Cocteau). o filme pode ser julgado otimista. o clímax de Rio Vermelho. Ela teve igualmente por efeito dirimir no estilo a tendência de Kubrick a sublinhar pesadamente seus efeitos e suas intenções: de todos os seus filmes. eles recusam a persuasão pelas evidências. e ela. se situa na crista de uma década na qual o gênero deveria tornar-se enfim predominante. remove o fatalismo complacente para manter os eventos num equilíbrio perigoso. O secretário de Scarface fala um inglês comicamente embolado. ao invés de danificar ao outro. sejam no geral de um altíssimo nível). Jacques Rivette. Não pode haver outro motivo para que não o reconheçam. Mas enquanto o pessimismo de Kubrick é ressentido como uma evidência durante a maior parte do filme ( onde mesmo a vida cotidiana dos personagens. mais completo e mais bem acabado. da economia. . nosso riso no decorrer de À Beira do Abismo é inseparável do receio do perigo. 2001. Ele irisa os vastos espaços de angústia disseminados pelo filme com estreitas zonas de humor. Otimismo a bem dizer muito relativo. e sem que este o tenha decidido. que não terá a última palavra). Esta direção foi muito benéfica para o filme. Cahiers du Cinéma 23 ( maio 1953) A evidência na tela é a prova do gênio de Hawks: basta assistir a O Inventor da Mocidade para saber que é um filme brilhante. ora mais evidente ( utilização da música de Johann Strauss). tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Sob esta perspectiva. Kubrick alterna com uma maravilhosa plenitude o aspecto contemplativo ( evolução das naves no espaço) e o aspecto dramático ( vide o extraordinário duelo entre Keir Dullea e o computador Hal 9000. depois de ter sido considerado minoritário e marginal durante cinqüenta anos em Holywood. uma incerteza estimulante que colabora para a força do drama. A comédia jamais está ausente por muito tempo nos enredos mais dramáticos. Estimulou. renunciou a mostrar os extra-terrestres. existe apenas como um imenso ponto de interrogação. 2001 é o mais sóbrio. uma vez que tudo o que poderia advir de melhor para o homem viria “de fora”.Mas 2001 é também um filme de especulação: a influência dos extra-terrestres ( que se manifesta nos monólitos). Humor ora relativamente secreto ( troca de banalidades entre os astronautas) . ele suprimiu o comentário em off do início. Mas. olhando a cena em que ele se disfarça de índio. ao contrário de Capra ou McCarey. sua avançada idade irá julgá-lo. Hawks não está preocupado com a sátira ou a psicologia. Igualmente. Pode-se encontrar nisso uma concepção clássica do homem. ela não consegue dissipar (não a tragédia. qualquer um que critique essa tendência deve primeiramente submeter-se a ela. Em O Monstro do Ártico. imita um chimpanzé com prazer. O filme não é meramente uma história sobre essa fascinação. em O Inventor da Mocidade. uma criatura do outro mundo.Do close-up do . Poder-se-ia aplicar a palavra “expressionista” para a maestria com que Cary Grant desdobra seus gestos em símbolos. é a fascinação que essas tendências exercem na mesma inteligência que as percebe como más. a máscara finalmente cai: no confinado espaço do universo.o conhecimento humano acumulado do passado às formas degradadas da vida moderna (Bola de Fogo. o inimigo adentrou o próprio homem: o sutil veneno da fonte da juventude. Se ele opõe o velho ao novo . no entanto. ele se atém à mesma história – a intrusão do inumano. lógica e impiedosamente – os decisivos estágios de degradação de uma inteligência superior. é impossível não se lembrar do famoso plano de O Anjo Azul em que Jannings olha o seu rosto distorcido. na sociedade altamente civilizada. outrora na forma do macaco – quando enfrenta o homem de rara inteligência. para ele. os índios.coloca nossos nervos em pânico e nos instala num estado tão atordoante e vertiginoso quanto o do equilibrista na corda-bamba cujo pé vacila sem escorregar.Enquanto a comédia confere à tragédia hawksiana sua efetividade. degradação.Ainda pior que o infantilismo. ou no momento em que a envelhecida bacante Ginger Rogers retoma a adolescência e suas rugas esmaecem. ele se coloca ao espectador como uma demonstração do poder da fascinação. A euforia instintiva das ações das personagens confere uma qualidade lírica para a feiúra e a asneira. ele está exclusivamente interessado na aventura do intelecto. E é a mais infeliz das ilusões que Hawks ataca com crueldade: a noção de que a adolescência e a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação. Poderíamos ser expostos a uma visão de vida mais amarga que essa? Tenho que confessar ser um tanto incapaz de aderir às risadas de uma sala lotada enquanto sou arrebitado pelas viravoltas da fábula (O Inventor da Mocidade) que retrata – alegre. uma criatura cujo único trajeto para a grandeza reside na experiência e na maturidade. uma densidade de expressão que eleva tudo à abstração: a fascinação por tudo isso confere beleza à respectiva metamorfose. ou decadência.Não é um acaso que grupos semelhantes de intelectuais apareçam tanto em Bola de Fogo e O Monstro do Ártico. Não é de maneira alguma fácil comparar esses dois contos da ruína: recordamos como os temas de danação e maldição no cinema alemão impuseram a mesma variação rigorosa do agradável para o medonho. A Canção Prometida). Os macacos. que também ganha expressão nos selvagens ritmos da música tom-tom. preocupa-se menos com a submissão do mundo à visão fria e enfadonha da mente científica que com o retrato das desgraças cômicas da inteligência. na doce estupidez de Marilyn Monroe (o monstro de feminilidade que o figurinista quase deformou). a tentação do infantilismo. Hawks. A criança é dificilmente distinguível do selvagem que a imita em suas brincadeiras: até o idoso mais distinto. Esta sabemos há muito tempo ser uma das menos sutis astúcias do Mal – a um tempo na forma de cão de caça(hound). um sentimento tão inquietante quanto o término de um pesadelo. seus esforços pretendem enquadrá-la nos parâmetros lógicos do conhecimento humano. ao fim de seu percurso. ou da manifestação mais crua de humanidade. o peixinho dourado não são mais que disfarce para a obsessão de Hawks com o primitivismo. porém. não vamos estragar nossos melhores argumentos ao ir longe demais) a forte impressão de uma existência em que nenhuma ação pode desatar-se da teia da responsabilidade. depois de ingerir o precioso líquido. ou o homem à besta (Levada da Breca). as sociedades não significam mais que sentimentos. alguns homens da ciência estão engalfinhados com uma criatura pior que o inumano. A existência de sua continuidade é a manifestação do Destino. censura – e fascinação? O encantamento pelo instintivo. ele é um espírito teutônico.Uma arte dessas exige uma honestidade básica. porém. Daí em filmes predominantemente cômicos (Uma Aventura na Martinica. como um pescoço ou um tornozelo. dos . porque tudo é apreendido em conexão com todo o resto. a regra é continuidade. mesmo os extremos da sordidez. em seguida. como nas ações. ou o dos cientistas que não se atrevem a deixar a cabana por temerem a coisa (O Monstro do Ártico). sem elipses. mas a eficácia. de cada golpe . a cabeça do espectador nada em constante turbilhão de imodéstia e impropriedade.Essa obsessão pela continuidade impõe aos filmes de Hawks a impressão de monotonia.chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega do Cary Grant bebê. e o uso que Hawks faz do tempo e do espaço é testemunha disso – sem flashbacks. uma lei biológica. tortuosamente combinados com a lógica in extremis. Mas ao mesmo tempo. atraído por surtos de furor controlado que geram uma cadeia infinita de conseqüências. porque essa é a fonte de comédia. Não é a idéia o que fascina em um filme de Hawks. Começamos a sentir a gravidade de cada movimento que fazem e somos incapazes de escapar à sua presença. À Beira do Abismo). Nenhum personagem desaparece sem que o sigamos.e o gradual colapso do corpo exaurido. Não nos preocupamos com os pensamentos de John Wayne enquanto ele anda em direção a Montgomery Clift ao final de Rio Vermelho. Mas o drama hawksiano é sempre expresso em noções espaciais e as variações nos cenários são acompanhadas das variações temporais: seja no drama de Scarface. Os heróis demonstram isso não tanto nos sentimentos. do tipo geralmente associado à idéia de uma jornada a ser cumprida ou um curso a ser percorrido (Águias Amaricanas. A deslizante e regular sucessão de planos têm o ritmo da pulsação sangüínea e o filme todo é como um belíssimo corpo mantido vivo por uma respiração profunda e resiliente. Isso é também o gênio de Molière: suas loucas relações lógicas são capazes de fazer o riso impregnar a garganta. Ele não tenta confundir as inclinações vulgares do espectador. ou nos pensamentos de Bogart enquanto ele bate em alguém: nossa atenção é direcionada unicamente para a precisão de cada passo – o exato ritmo do andar. E o que é essa sensação se não a mistura de medo. cujo reino encolhe da cidade que outrora governava para o quarto em que é finalmente enclausurado.Hawks é o diretor da inteligência e da precisão. os personagens são confinados em poucos cenários e se locomovem um tanto desgraçadamente dentro deles. como a que regula a vida de qualquer ser vivo: cada cena tem uma beleza funcional. ele as afirma ao levá-las um passo adiante. tempo ao espaço e espaço ao tempo. nada surpreende o herói se não nos surpreender ao mesmo tempo. A Noiva Era Ele toma como tema simplesmente a impossibilidade de encontrar um lugar para dormir e. uma vez estabelecendo que elas são possíveis. a feiúra. Hawks exemplifica as mais altas qualidades do cinema americano: ele é o único diretor americano que sabe como delinear a moral. nessas comédias em que a própria alma sofre a tentação da bestialidade. A ação prende nossa atenção não tanto pela beleza intrínseca quanto por sua eficiência e pelos mecanismos internos que regem seu universo. É também o gênio de Murnau – a famosa cena com Dame Martha em seu excelente Tartufo e várias seqüências de A Última Gargalhada ainda são modelos de cinema molieresquiano. observadas por Hawks com meticulosidade e paixão. a maldade. meditando sobre o poder autônomo da aparência. a renúncia para as forças terrenas primitivas. o ponto mais afiado da inteligência é revertido contra si. É as ações que ele filma.Hawks sabe melhor que qualquer outro que a arte deve ir aos extremos. mas é também um maço de forças negras e fascinações estranhas. Ele nunca teme usar bizarras guinadas narrativas. Sua maravilhosa fusão de ação e moralidade é provavelmente o segredo do gênio. Rio Vermelho). Parece haver uma lei por trás da ação e edição de Hawks. o prolonga até os extremos do aviltamento e da desmoralização. a estupidez – todos os atributos do Diabo são. Hawks utiliza lassidão como dispositivo dramático – para transmitir a exasperação dos homens obrigados a se reter por duas horas. O andamento da ação é substituído pela repetição. e a luta é natural para os heróis hawksianos: briga corpo-a-corpo. sentimentos estão amadurecendo lentamente.pilotos de Paraíso Infernal. ou em O Inventor da Mocidade. A raiva dos personagens é elevada pelo habitual sangue-frio.É impossível evocar adequadamente Uma Aventura na Martinica sem imediatamente lembrar a batalha com o peixe no começo do filme. é um duelo amargo cujos perigos constantes são ignorados por homens intoxicados pela paixão (À Beira do Abismo.Qual outro homem de gênio. Maturidade é a marca da qualidade desses homens meditativos.A monotonia é apenas uma fachada. entre o porão e seu quarto.A medida dos filmes de Hawks é a inteligência. pacientemente contendo raiva. em que os passeios dos personagens indiciam a reversão para a infância (A Noiva Era Ele trabalha o motivo da jornada de outra forma). ele mal olha para o mar: está mais interessado na beleza de seus passageiros que na beleza das ondas. E as mulheres. heróis de um mundo adulto. O herói sente repulsa se tiver que enfrentar um inimigo que se recusa a lutar. apreciação e simpatia: o oponente vira um parceiro. como que à mercê de um capcioso redemoinho. as mesmas ações. sempre os heróis caminham em direção ao seu destino. repentinamente embaralham. Marlowe em À Beira do Abismo pratica a profissão assim como o cientista ou o aviador. como a retórica de Raymond Roussel substituindo a de Péguy. a fachada calma é impregnada da emoção. ou da relação dessas ações uma com a outra? A maneira com que elas influenciam. Marlowe. mesmo quando esses temas são tornados burlescos em Bola de Fogo. cada rebanho é feito para ser engordado e vendido pelo preço mais alto. preocupado com as responsabilidades do homem. As comédias mostram outro lado desse princípio da monotonia. ou objetos mecânicos que lhes tiram a livre iniciativa – aquela . devem juntar-se a ele na luta. uma inteligência que retira sua eficácia do ponto de vista exato de uma profissão ou de alguma forma de atividade humana atrelada ao mundo e ansiosa por conquista. o amor existe mesmo onde há oposição perpétua. presos na sua estação pela névoa e conseguindo escapar para as montanhas de tempos em tempos. se não uma batalha vigorosa como essa? Assim. repelem ou atraem uma à outra se torna um mundo unificado e coerente. e quando Bogart aluga seu barco em Uma Aventura na Martinica. tomado por amargura súbita. não obstante sedutoras. ou amor diante dos nossos olhos para repentinamente libertá-los.essa palavra admirável englobando sabedoria. Um filme de Hawks freqüentemente possui a mesma sensação da agonizante espera da queda de uma gota d’água. precipita os eventos para apressar o clímax de seu caso. Que entendimento mais próximo do outro poderíamos esperar. aplicada diretamente para o mundo físico. com o gramático saindo de sua biblioteca hermética para encarar os perigos da cidade. assim como Bogart (Uma Aventura na Martinica) escapa para o mar partindo do hotel que ele ronda impotentemente. ódio. Ações humanas são medidas e pesadas por um diretor-mestre. Cada rio existe para ser cruzado. O universo não pode ser conquistado sem a luta. mas a inteligência pragmática. cuja tragédia está nos relacionamentos pessoais. um universo newtoniano cujos princípios governantes são a lei universal da gravidade e a profunda convicção da gravidade da existência. Rio Vermelho). com o oculto tremer de nervos e almas – até que o copo transborda. eternamente recorrendo. Da competição surge a estima . quase sempre exclusivamente masculino. que Hawks desenvolve com a persistência de um maníaco e a paciência de um obcecado. evoluindo passo a passo rumo ao clímax violento. como baterias lentamente carregadas que eventualmente soltam uma faísca. Sob ela. poderia ser mais apaixonadamente preocupado com as conseqüências das ações dos homens. por mais que o herói se afeiçoe a elas. comédia advém da intrusão e mescla de elementos alienígenas. ainda que estivesse mais obcecado pela continuidade. Somos seus companheiros ao longo da jornada enquanto ela se desenrola com tanta certeza e regularidade quanto a película que atravessa o projetor. assim como um criador faz no ato de criação. . conectando tempestades com equações em afirmação da vida. justifica a existência e lhe confere seu sentido mais elevado. O pai de Rio Vermelho e Paraíso Infernal não é outro senão Corneille. O que é. ambigüidade e complexidade são compatíveis apenas com os sentimentos mais nobres. em ato de lealdade a si. eles irão até o esgotamento das forças.é o mais verossímil e “raçudo” de todos os Casanovas da tela) em uma narrativa de aventuras polivalente que possui. Uma vez estabelecidos. O herói move-se com mesma leveza e constância do montanhista que inicia com passo firme e o mantém nas trilhas mais árduas. conferindo-lhe uma pouco usual e profundamente oculta grandeza e nobreza. é. duas obras que restituíam ao filme de aventuras italiano seu vigor. seu picaresco.Partindo desses primeiros indícios. ao atingir seus fins. seguindo harmoniosamente as conseqüências. mas é a obviedade de sua modernidade que me impede de detratá-la. eles vencem o direito de serem livres e a honra de se chamarem homens. não podemos deixar de ficar a seu lado. É uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o movimento pelo andar. Hawks concentra-se primeiramente no cheiro e na sensação da realidade. seja lá quais forem elas. por tudo que é ousado e excessivo. mesmo ocasionalmente levado ao ridículo ou ao absurdo. persistente e serena. inclusive até o final da marcha mais longa do dia. O que é iniciado precisa ser encerrado. mas a prova de que o corpo é um todo coerente.liberdade de decisão pela qual o homem pode expressar-se e afirmar sua existência. e nunca hesitarão ou desistirão: ninguém consegue parar sua maravilhosa obstinação e tenacidade.Se é verdade que somos fascinados por extremos. Para eles. lógica não é uma fria atividade intelectual. Freda 1948 Depois de Don César de Bazan e o primeiro Áquila nera. depois de esbarrar nele assim. mesmo que não sejam esses sentimentos os primeiros a serem exauridos. como Hawks dá à sensibilidade moderna a consciência clássica. mas antes a natureza bárbara e mutável das almas brutas – eis o motivo de romances modernos serem tão chatos. Seu virtuosismo o leva a incluir um retrato original de Casanova ( Gassman aqui no início de carreira. O vigor da força de vontade dos heróis é a garantia da unidade entre homem e espírito em nome daquilo que. Il cavaliere misterioso. Finalmente. ao invés disso. porque estes agregam a precisão intelectual das abstrações e a magia elementar dos grandes impulsos mundanos. como poderia omitir menção às maravilhosas cenas de abertura hawksianas em que o herói se estabelece firme e tranqüilamente? Sem preliminares. que alguns ainda consideram “tediosos”. levarão as promessas que fizeram às conclusões lógicas. duplamente. A conversação avança e silenciosamente nos familiariza com seu ritmo pessoal. seu dinamismo originais. e que achamos grandeza na falta de moderação – então é dedutível que deveríamos nos intrigar com o choque dos extremos. Tradução de francês para inglês por Russel Campbell e Marvin Pister. Não quero parecer estar elogiando Hawks por ele ser um “gênio alienado do seu tempo”. sem remorsos e sobressaltos. apontar como. uma narrativa de tom muito mais pessoal e uma de suas obras-primas. mas também sabemos que eles se agarrarão às suas promessas para além de qualquer limite. não estamos apenas certos de que os heróis nunca nos abandonarão. Freda assina este Cavaleiro misterioso. em oposição ao caligrafismo mórbido do período fascista. Não importa que os heróis sejam quase sempre empurrados contra seus desejos: ao se provarem a eles mesmos. A beleza do filme de Hawks advém desse tipo de afirmação. Tradução de inglês para português de Nikola Matevski. ao longo das sequências. adaptado da tradução de Adrian Brine. sem dispositivos expositores: uma porta abre e lá está ele em sua primeira tomada. Prefiro.é seu sétimo filme. (That which is. is). Neste sentido. Freda Primeiro Cinemascope de Freda. com efeito.Trata-se. mas de forma alguma cultivado por ele mesmo. uma nota de desencantamento e de amargura características do autor. Nota: Como sempre em Freda. de cálculo e crueldade. com igual nível de interesse. mesclada à suntuosidade visual. nos arredores de Roma). portanto fora de todo maniqueísmo) . O découpage. lirismo. exaltação e desânimo. de reencontrar na história particular de um lugar e de uma época o que ela pode ter em comum. Ela se sustenta também na exaltação sistemática dos sentimentos fortes. animado pela visão de uma espécie de eternidade da História. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. figurino. utiliza toda a gama de planos. mas com a condição de que este possua uma dimensão épica. vitória e derrota. uma justaposição . Sem. Esta originalidade implica aqui uma fusão insólita e interessante entre o melodrama e o filme de guerra. evidentemente. que se poderia também chamar de poesia. através dos quais Freda nos dá sua visão do século XVIII. Na tela larga. La leggenda del Piave. Freda é. vívido e variado. as seqüências finais da perseguição de trenós. Freda assina com La leggenda del Piave um filme formalmente riquíssimo que toma elementos emprestados do melodrama. acolhendo o espaço onde se esvai uma multidão desvairada e indivíduos tomados por sentimentos extremos. um ponto de vista masculino e feminino ( dualidade que se encontrava já no Passaporte rosso. fotografia) é extremamente cuidado. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Ele coloca aqui com brio o seu universo pessoal: um mundo de perfídia. Beatrice é metamorfoseada aqui em sublime heroína de melodrama. o aspecto plástico do filme ( cenário. que buscam a retomada das fontes de toda aventura e de toda História. Freda celebra em imagens suntuosas as núpcias do melodrama e da História. Como sempre em Freda. Possuem um belo fôlego rítmico e destilam. Freda 1952 Longe do neo-realismo.a progressão enigmática e obscura de um récit policial ou a atmosfera insólita e angustiante de um conto quase fantástico ( as cenas em Viena). A matéria do filme repousa sobre contrastes violentos: heroísmo e covardia ( vistos aqui no interior de um mesmo personagem. e a continuidade da narrativa oferece. O filme acolhe o realismo. do afresco histórico. à maneira da ópera. do heróico e do passional. doçura e brutalidade. Beatrice Cenci. em seu registro do grandioso. onde a sinceridade é sempre perdedora. iluminado por uma elegante luz crepuscular. intensidade na pintura de um passado revivido no presente. de Guido Bignone). que ultrapasse a anedota e a simples verdade do momento. com outros lugares e épocas. O que a História perde em veracidade. esquecer este clima de intriga e de “marivaudage” ( de Marivaux.Ele se encontra sempre maravilhosamente situado em uma concepção ultra-dinâmica da narrativa cinematográfica. do filme de aventuras. escritor francês do século XVIII) glacial. Sua mise em scéne é particularmente forte nas cenas de ação e movimento. com um orçamento médio ao qual ele sabe emprestar a aparência da magnificência. para Freda. que utilizam todas as variações do branco. a filmagem foi muito rápida. são exemplares. sobretudo em se tratando de um filme com muitos figurantes ( 4 semanas. O filme tem também a originalidade de manter na narrativa. o melodrama conquista em caráter febril. aspiração para o Nada do sono ou da morte. O sucesso colossal de Nascimento de uma nação. onde dezenas de grevistas de uma mina dos Rockfeller encontraram a morte. que fez sensação na época do lançamento do filme. assim como certas críticas endereçadas pessoalmente a Griffith ( não o acusaram de racismo?). Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. vai construir o desenlace de I love you utilizando os planos do final de Dillinger. Uma expressão limite da fascinação do vazio. poderia escapar à sua sorte trágica. a Crucificação de Cristo. baseado no massacre de Ludlow. um anti-drama. Ele estava decidido a enriquecer o melodrama contemporâneo por meio de três evocações. três metáforas históricas ( A Queda da Babilônia.uma permanente e viva contestação do academicismorepousa sobre uma igual atenção dispensada ao dinamismo do conjunto da narrativa e à composição plástica de cada cena. sempre muito natural em Freda. o assassinato da esposa representa para o personagem o gesto mais gratuito e o mais significativo que este poderia cometer. Griffith Antes de fazer Nascimento de uma nação. O filme pode ser visto como um sonho ou uma metáfora da insônia. que depois os historiadores multiplicarão generosamente por cinco). A visão deste filme e a visão do mundo que se exprime nele parecerão a muitos uma mauvaise farse ( ( uma farsa de mau-gosto). filmados em longos planos sequências voluntariamente desprovidos de dinamismo interno. teratológica de Ferreri. algo como um longo interlúdio de televisão que podemos assistir comendo ou pensando em outra coisa. nos sons e nas imagens difundidos ao longo do dia pela televisão. perto do fim. um filme no qual o gigantismo e a mensagem de alcance universal impusessem o silêncio a todos. seqüência de gestos privados do devir e de finalidade. perdido em seus objetos. encontra neste filme uma de suas melhores aplicações. a Noite de São Bartolomeu) que dariam ao conjunto uma amplidão espaço-temporal jamais vista. uma anti-fábula. dispersaram suas ambições e o levaram a imaginar. no Colorado. A filmagem iria durar 16 semanas e custar 400 000 dólares ( soma enorme para a época. o dinamismo e a capacidade de aliciamento da mise em scéne de Freda são tais que o espectador.com o caso Stielow ( um condenado à morte fora salvo no último momento da cadeira elétrica pela confissão do culpado). Esta síntese da dinâmica e da plástica. iconoclasta. Intolerância. No entanto. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Ferreri Descrição experimental e quase muda da angústia da alienação do homem contemporâneo. 16 anos mais tarde. põe-se a imaginar que esta história foi inventada. No interior da obra desesperada. seu conforto. Dillinger está morto. Outras versões dirigidas por Mario Caserini ( 1908) e Guido Brignone ( 1941). Na vacuidade desta durée. Nota: Ferreri .lírica e plástica de momentos fortes delineados sobre a trama de seu destino inexoravelmente trágico. a partir do núcleo de The mother and the law. David W. que ela se recria à medida em que é contada e que Beatrice. Sua duração é sufocante e castradora. É isto o que Ferreri deseja. Griffith tinha terminado um melodrama intitulado The Mother and the Law. O filme apresenta também uma semelhança. e que nos faz “passar por cima” de algumas imperfeições no roteiro e na direção de atores. A originalidade do estilo de Freda. Cenários . por obra de intercessão de algum milagre.mas trata-se apenas de uma coincidência. Dillinger está morto é uma espécie de ápice. depois de três anos de existência. o cenarista principal. e o episódio babiloniano sob o título The fall of Babylon. Esta gigantesca “tour a roulettes” avançava e recuava sobre trilhos. e sobretudo do capital investido. Sadoul critica a “ideologia pretensiosa do grande homem. e do qual “ a plataforma no ápice. Intolerância é evidentemente o filme ideal. Ela foi dissolvida em 1918. os historiadores permaneceram muito divididos em relação aos méritos da obra. Mitry de “monumento construído sobre a areia”. ficou longe de estar à altura das esperanças. Huck Workman.gigantescos foram construídos e. O sucesso. fabrica um “chariot” de travelling gigante. Tirando alguns admiradores incondicionais. sua ausência total de senso do ridículo. oferecendo recuo suficiente para que a câmera englobasse o conjunto do cenário. Ele ridiculariza o modo como os personagens são chamados. com o objetivo de. assim como Griffith trabalhava sem roteiro. A fim de recuperar um pouco o dinheiro. comportava 14 bobinas ( 13. aquele no qual. Embora admire o filme. Griffith iria fundar com Douglas Fairbanks. Tendo indicado um novo caminho para os cineastas do mundo inteiro. O chariot ( carro de vagão) se deslocava sobre trilhos posicionados à distância. para as cenas que se desenrolam no cenário do palácio da Babilônia ( 45 metros de altura). Os planos filmados com esta aparelhagem foram os mais espetaculares do filme. o cinema se preservou de perseverar.ninguém negaria a envergadura única da obra-. A notar que. adivinhar o que poderia ter sido o cinema se tivesse tomado outros caminhos. os grandes naufrágios da história do cinema. ao mencioná-las. as exceções. através deles. Ao longo dos anos. sobre o qual estavam reunidos 5000 figurantes. como Claude Beyllie. etc. Mesmo os formalistas russos. Uma outra equipe assegurava o funcionamento do elevador. O insucesso do filme foi o golpe fatal para a Triangle. O filme perdeu o equivalente à metade de seu orçamento. seu pedantismo de autodidata”. a Artistas Associados. por representar o mais fabuloso impasse do cinema. Mary Pickford e Chaplin. mediria cerca de dois metros de lado. e sobretudo os personagens situados em torno das grandes muralhas do palácio. e havia um elevador no meio. Pierre Baudry resumiu bem ( em As aventuras da Idéia) em que consiste a unicidade do filme: “O que é problemático aqui . 500 pés). os cenários construídos para o filme o foram sem plano de conjunto prévio. Heaven’s gate de Cimino). Divididos não entre detratores e laudatores. tanto na América quanto no estrangeiro. The Friendless One vira A Abandonada Número um). que desapareceria sessenta anos mais tarde com outro retumbante fracasso comercial. que deveria subir enquanto o “chariot” se deslocava para a frente. que estima que a única forma de entrever a unidade do filme é ao assimilá-lo ao poema de Whitman( que aliás inspira o leitmotiv visual da mulher com o berço). em torno de 3 horas de projeção. em seu lançamento. ou seja. de 45 m igualmente. é sobretudo aos teoristas que o filme encanta. mas a título de paródia!). e deixou Griffith endividado por longo tempo. em nosso conhecimento não se aventuraram em nenhum empreendimento análogo. ( No ano seguinte. Eles foram se constituindo ao sabor das idéias e das cotidianas inovações do realizador. e não estava longe de ter 20 metros de largura na base. Delluc fala de “tohu bohu inexplicável”. A metragem da película impressa durante a totalidade da filmagem equivalia a 76 horas de projeção.” A torre estava montada sobre seis jogos de bogies com quatro rodas tomadas de empréstimo a vagões ferroviários. -escreve o operador Billy Bitzer-. sobre os quais o filme mais exerceu influência. guiado por sua vitalidade instintiva. mas o filme. ele remontou e lançou separadamente em 1919 o episódio moderno sob o título inicial. Intolerância não foi seguido nem imitado por ninguém ( salvo talvez por Buster Keaton em Three Ages. The mother and the law. que tinha participado da produção. não sem cometer. impulsionada delicadamente por 25 manobras. Para eles. mas divididos no interior de si mesmos e em relação às críticas e elogios que cada um faz ao filme. um monumental contra senso ( The Dear One torna-se a Querida Numero Um. e sobretudo aqueles que prezam a análise das originalidades. teria sem dúvida provocado a morte desta arte tão frágil e ameaçada. servir à Idéia. Ele compreendeu que sua vocação era ser um microscópio que serviria para escrutar territórios menores. O cinema compreendeu que em duas. compreender e fazer compreender . é um melodrama na linha dos numerosos curtas-metragens rodados por Griffith na Biograph. o princípio de organização de Intolerância se estabelece sobre um material deliberadamente heterogêneo (. O episódio de São Bartolomeu se refere aos Filmes de Arte . Ele sentiu que a Idéia deveria desaparecer ( s’effacer) perante a análise e a exposição dos fatos. em particular Dreyer.justamente enquanto arte. contrariamente à quase totalidade dos filmes da história do cinema. The Fall of Babylon é claramente inspirada dos primeiros peplums italianos. (. É significativo nesse sentido que os historiadores antigos ( Sadoul. infinitamente complexos e – além do mais. o cinema descobriu prematuramente em sua história que sua grandeza residia em sua modéstia e intensidade na minúcia. três ou mesmo quatro horas de projeção era-lhe impossível evocar. portanto. por exemplo) e os teoristas modernos ( Pierre Baudry) estejam totalmente de acordo. do qual ele toma emprestada esta teatralidade solene e rígida que impressiona tanto os cineastas no mundo inteiro. este é o escândalo de Intolerância. se reduz no cinema a ser nada além que um vago truísmo sentimental. intolerância.antes de tudo é que. quando se torna tão dominadora. Que grupos de personagens e de situações que não tenham na realidade nada em comum se encontrem reunidos no mesmo espaço ( a tela da projeção) . da Idéia. aos eventos representados na tela. os personagens e as épocas sob seu jugo. o admirável rigor de um filme como o primeiro Dez mandamentos de DeMille. Mas mesmo neste plano ela permanece limitada a um nível bem particular.uma tal identidade de visões é algo raríssimo. O episódio do Cristo evoca as Paixões produzidas pela Pathé e rodadas em torno de 1900 ( sobretudo aquela de Zecca e Nonguet. monolíticas e desvitalizadas. e que unicamente este desaparecimento poderia . que repousa igualmente sobre uma metáfora entre diferentes épocas). antes de tudo formal. Na oposição a isto. Por exemplo. às vezes territórios mais vastos.. em si mesma. tornam-se meras ilustrações. mais importante que os elementos que ela põe em relação.. Todo amador de cinema ( entendo do cinema tal como ele é e foi nas suas obras mais duráveis) vê bem que esta tensão. Esta representa o produto de inumeráveis audácias e inovações da montagem. mais próximo da peça em ato único que da tragédia em cinco atos. mas então estritamente limitados em seu cadre e suas perspectivas ( ver. Ele tem por certo que a metáfora é. e notadamente ao célebre Assassinato do duque de Guise de Le Bargy e Calmettes ( 1908). Quo Vadis de Guazzoni ( 1912) e Cabiria de Pastrone ( 1914).a bem dizer.ao designar os diferentes empréstimos estilísticos ( um a um reconhecidos e negados pelo próprio Griffith) que determinam a especificidade formal de cada uma das histórias. que um traço.situados em épocas diferentes. ao fim. neste sentido. injustiça. Mas a Idéia. Quanto aos fatos. um grito clamando a que nos elevemos contra todas as formas de puritanismo.).a cada etapa de seu desenvolvimento. ela não se situa no estilo respectivo dos diferentes episódios.). e obedece a um princípio de aceleração constante. Griffith quer que a Idéia ponha os fatos. A originalidade essencial de Intolerância reside evidentemente no entrelaçamento de seus quatro episódios. e ainda menos ligar a uma intenção individual e particular. Mais próximo da novela que do romance ou do afresco. A originalidade de Intolerância é. Quanto ao episódio moderno. 1902). como aqui. que Griffith sonhava emular. O filme de Griffith é o lugar de uma tensão entre a heterogeneidade do seu material ficcional e a racionalidade que o funda e unifica”.. ao qual é dado um acento social mais pronunciado. As partes de cada um dos . sempre útil a repetir-. tableaux vivants com caráter edificante.. eventos históricos e políticos distintos. se tivesse se tornado a lei comum. no entanto. Sua principal originalidade estética consiste na tentativa de imbricação permanente da história individual e da História coletiva. No plano material. autopsiada com paixão pelos teoristas. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Depois de numerosas semanas de ensaios. graças também. o filme se coloca claramente à margem das forças vivas que permitiram a esta arte durar e marcar seu território. o projeto de Nascimento de uma nação será. Lembremos que o filme faturou dezenas de milhões de dólares.Tudo isto graças à originalidade e riqueza de seus procedimentos narrativos. apesar do filme contar com um bom orçamento.episódios. Grant. Esta aceleração intensifica. o monumental e o familiar se alternem reciprocamente. à medida em que o filme avança. Lee. Griffith não tendo. Griffith consegue perfeitamente o que pretendia. o dom de fazer com que o grandioso e o tocante.O orçamento passou de 40 000 a 110 000 dólares numa atmosfera regada a jogos de poker e ceticismo exterior. cuja sábia e complexa construção é dissecada. durante a primeira parte do filme ( que termina com a temporada de Ben Cameron no hospital). a filmagem propriamente dita dura nove semanas ( a partir de 4-7-1914) . ao controle estético que o metteur-em-scéne exerceu pessoalmente sobre uma vastíssima matéria. assassinato de Lincoln no Teatro Ford. Visto hoje. Intolerância aparece como a peça de museu por excelência. documentos. altamente profissional em seu lançamento e publicidade. Como fator determinante para o reconhecimento mundial dos méritos do longa-metragem. Nascimento de uma nação. entrecortando a ação propriamente dita de “tableaux d’histoire”. foi grande a habilidade de Griffith em dar a ilusão de que se tratava de uma superprodução. no entanto. Até aí. e que o escândalo (absolutamente compreensível) causado por ele foi muito útil à sua “carreira”. à época do lançamento. ao contrário de um DeMille. etc). David Griffith Primeira epopéia americana. no plano dinâmico. Depois de Griffith. tornam-se cada vez mais curtas. em 30 000 a 35 000 figurantes). etc). Mas é enquanto obra artística que a contribuição e preeminência de Nascimento são incontestáveis e incontestados. mas reduzida a proporções mais modestas.ao sucesso colossal que o filme teve.elemento não negligenciável. Griffith dá assim ao suspense ( que ele não inventou. ao qual ele conferiu um status de nobreza. abrangendo as épocas e os continentes. equivalente de Thaddeus Stevens) ou verdadeiros personagens históricos ( Lincoln. esta lição foi apreendida. o conteúdo dramático de cada história. que este suspense funciona muito melhor num plano mecânico e épico que lírico e emocional. financiamento e realização. teve um papel mais decisivo. pois este se confunde com as próprias origens do cinema) suas “cartas de nobreza”. Nascimento de uma nação é considerado pela maioria dos historiadores como uma data capital para a evolução do espetáculo cinematográfico. rendição de Lee a Grant. fotos concernentes a esta época da História americana. Mas no devir estético do cinema. e sabe-se hoje que o número de figurantes não ultrapassou 500 ( Griffith falara. reconstituídos com o máximo de veracidade ( assinatura por Lincoln da libertação de 75 000 voluntários. pensamos que Cabiria. primeiro filme longa-metragem “ realmente longo” rodado nos Estados Unidos. filmado um ano antes de Nascimento de uma nação. assim como uma incrível envergadura. Artesanal em sua concepção. É de se notar. a solenidade dos “tableaux” se alia admiravelmente ao . interpretados em um espírito de fidelidade absoluta. Mostrando personagens representativos e significativos criados pelo roteiro ( Austin Stoneman. Todos os colaboradores de Griffith mencionaram até que ponto ele estava literalmente absorvido por obras históricas. das boas causas ( na moral). 1. Ao fim. que possuem na imagem uma importância quantitativamente desmesurada. como prejudicial ou nulo. A união do Norte e do Sul é selada pela rejeição de elementos considerados como estrangeiros à identidade americana. conforme o encaremos com maior ou menor seriedade. a própria substância do filme se transforma: não se trata mais de história. na economia ideológica do filme ( retirando-se aqui do termo ideologia todo valor científico ou histórico). Rozier pratica solitária e obstinadamente um cômico experimental em aparência muito simples. plásticamente sublime. até mesmo como absurdo. Elas existiam num estado embrionário nos inumeráveis curtas-metragens de Griffith ( os quais muitos evocam a Guerra de Secessão). na segunda parte. devido ao número de repetições de planos passados nestes lugares. representados em sua maioria por Brancos pintados. mas também. em Nascimento de uma nação. do “fôlego cortado” ( no espectador). Rozier pinta aquarelas em . Dicionário de Filmes Tradução: Luiz Soares Júnior. Atinge igualmente uma apoteose lírica onde o público. tem a coragem de renegar. O conteúdo político desta parte será considerado. pode ser resumida em cinco pontos principais. a rua onde se encontra a casa dos Cameron. Jacques Rozier Hoje em dia. sua própria raça. a narração desemboca em uma admirável fusão espaçotemporal de todos os seus componentes. das duas famílias Cameron e Stoneman. a paz e a unidade reinam sobre tudo. neste “açodamento” da ação ao longo do último terço do filme. serão utilizadas durante mais de cinqüenta anos pelos cineastas do mundo inteiro. menos na comédia.e mais amplamentetodos os elementos suscetíveis de perverter do exterior a identidade e unidade Americanas. no plano dramático e visual do espetáculo cinematográfico. individual ou coletiva. no caso os Negros. quando a cavalgada. libertou Elsie das mãos de seus carrascos. acabou com o cerco sofrido pelos Cameron em sua cabana. e por outro lado na exploração lírica e máxima de certas convenções do melodrama. uma capacidade de síntese e adesão sem iguais para a época. Depois. repetições estas que os valorizam como nichos de um leitmotiv cada vez mais obsessivo. nesta etapa da ação.ritmo extremamente vívido e “bem sustentado “ ( très nourri) que os eventos impõem ao desenvolvimento dos destinos individuais. Nascimento de uma nação triunfa enquanto espetáculo dramático e obra de arte. por sua participação emocional. bem sofisticado em realidade. até então triste e dramaticamente separados. Testemunham. a Carolina do Sul. tal como aparece em seus mais característicos filmes. que trata da reconstrução e dos conflitos raciais no Sul. Os Negros. tornou-se parte integrante da obra. cuja originalidade. Du Couté D’Orouet. a própria casa e enfim o hall desta casa. a experimentação é admitida. sobre a unidade da América. uma amplitude. embasado por um lado na montagem estritamente paralela das ações e na separação triangular de sequências situadas em locais diferentes. A pesquisa plástica conta muito nesta visão do cômico. representam. Uma moral idealizante e sentimental. em particular através do entrecruzamento dos membros. reconhecida e até mesmo encorajada em todos os gêneros. do Klan venceu o perigo dos aventureiros negros disseminados pela cidade. Todas estas figuras “positivas”. civis e militares. em relação à evolução real da História americana. mas de uma espécie de devaneio ( rêverie) paranóico e idílico. devaneio desenvolvido visualmente a partir do núcleo privilegiado e adorado constituído pelo próprio Sul. Especialmente nesta impetuosidade. a cidade de Piemont. É o triunfo do suspense ( na narrativa). onde em geral é rejeitada ou ignorada. angelical por assim dizer. Mas é também nesta segunda parte que o artista Griffith se revela de forma mais brilhante e pessoal. mas à qual ninguém. Jacques Lourcelles. uma vez que o amor. etc. ou mesmo desastroso. um espelho da época e das pessoas. Primeira subida. apesar justamente da felicidade ser sua única preocupação. Os dois filmes exprimem. O roteiro. a se alimentar. Ver em particular a perturbação dos personagens quando distanciados de seus hábitos urbanos. sendo obrigados a reaprender a cozinhar. ou seja. O cômico deve ser brutal. cínico ou devastador. 3. já aí ocorre uma incompatibilidade. ou seja. uma certa incapacidade para a felicidade. o movimento lento são mais engraçados que o movimento vívido. ou até mesmo excelentes críticos: ou saímos tocados ou não. Nesta busca pelo instante. Copolla Em se tratando de um filme fora do comum como Apocalypse Now. Uma comicidade bem contemplativa. O presente. É preciso olhá-los ( les regarder) para compreendê-los. dando a ver suas menores . cortado tanto quanto possível de seus laços com o passado e com o futuro. o que explica o caráter confidencial de sua distribuição. Rozier se recusa a fazer intervir qualquer evento importante na ação. três ou até mesmo quatro subidas ( remontées”) ao longo do rio e que se. a Dias de juventude. como a cor azul em um céu de chuva. Diante de um filme como esse. mais derisórias aventuras. e Du couté de Orouet é o único filme francês que se assemelha. 5. as mais fúteis . se reduz a um canevas sobre o qual os intérpretes vão estabelecer bordados. Pode-se fazer aqui a mesma observação usada para Leenhardt e o seu Derniéres vacances: são sempre os poetas que fazem a melhor sociologia. ocupar constantemente seus pensamentos e desejos.a imobilidade. a partir da observação dos fatos mais simples. controlado” ( rien de trop preparé) deve contrariar a gênese e o desabrochar espontâneos do filme. Não que a ironia esteja ausente de seus filmes. Outro obstáculo. Apesar disso. jamais foi “expandido” para 35mm. Filmar Du couté d’Ouroet é filmar do lado de Flaherty. mas de duas. O único presente. utilizando às vezes alguma coisa de suas relações fora do set. Mas ela é voluntariamente difusa. Para uma parte do público. este presente torna-se também um presente mágico . Por sua milagrosa forma de filmar. tornamo-nos todos espectadores de “primeira linha”.movimento. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. comenta pouco e não explica nada. rodado em 16mm. seus filmes são verdadeiras comédias de costumes. uma mina de observações. observado sob uma lupa pelo autor. ou talvez por causa disso. da parte deles. Tudo o que o rio “carrega” ( charrie) não tem destino possível. Aqui. o lado decepcionante. grosseiro. o presente da memória e da poesia. contido inteiramente na cabeça do realizador. que divertem e querem fazer rir. o “puro” presente interessa a Rozier. 4. as mais estreitamente pessoais. da última parte. “o Apocalypse decepciona”. Do concreto ao abstrato: a guerra. Ver também. ele nos aproxima intimamente dos personagens. deslavada se poderia mesmo dizer. o mais sábio é partir do ponto que mais afetou a todos que viram o filme. Nota: o filme. é porque pertence à sua natureza decepcionar. diluída. Filmar Du couté de Orouet é filmar agora do lado de Ozu. 2. o instante. Graças sobretudo ao realismo dos diálogos e da pista de som. Apocalypse Now. como diz Blanchot. e desta vez para um público ainda mais vasto: o autor. . Adoraria já indicar aqui que o filme é a narrativa não de uma. o impalpável e inassimilável instante que unicamente a câmera consegue captar é então dilatado. Até mesmo o horror. do mestre japonês. recomposto. por exemplo. nada de “excessivamente preparado. no interior de seus filmes. uma insidiosa e poderosa nostalgia. o que a constitui tecnológicamente em uma outra guerra. os dardos) e dissolve tudo o que poderia remeter a uma certa intemporalidade da guerra. para o qual o cinema parecia ser o lugar privilegiado. e voltarei a isso) é o da batalha de helicópteros. O Exército Francês foi um dos primeiros utilizadores da invenção dos irmãos Lumiére. tornada mundial. ela se faz do ponto de vista de um nicho reativo e em Copolla. ele teria se exposto a um escândalo geral. Walsh e Fuller. mas uma aceleração constante.ou que deles retornou-. para provocar medo. Dito de outro forma: nada de fora de campo. Apocalypse é um testemunho sobre a guerra do Vietnam. um morto um morto. uma vez que formalmente adequado à ininteligibilidade da guerra . impedi-la de tornar-se o refúgio do espectador. nada de cenas onde soldados discutem a respeito da guerra. É este o espectador visado por Copolla hoje em dia. que situa o debate no antimilitarismo) ou do aspecto bem-fundado em particular desta ou daquela guerra. e os distribuidores ( que aqui são os produtores) teriam se recusado a mostrar o filme em suas salas. O espectador de cinema pouco a pouco se habituou a ser um sobrevivente. feita por todos contra todos. Suponho que se Copolla tivesse parado o filme antes do episódio Kurtz. trouxe em seu bojo todo o cinema moderno europeu. Da Guerra do Vietnam. no The Naked and the dead. Assim como The deer hunter. Encontramo-nos num “aquém” do sentido ( en-deçà du sens): um helicóptero é um helicóptero. críticos de cinema ( nós. dando a ver. Por que? Simplesmente pelo fato de que nós. isto é em primeiro lugar um espetáculo para os personagens do filme. Bazin falou do prazer suscitado pelo “espetáculo das destruições urbanas”. Portanto. Copolla só retém o que a qualifica como uma guerra de um novo tipo ( mas um novo que integra o arcaico: as trincheiras. uma bela imagem. mostrando-lhe a mais moderna das guerras. Nada desses discursos de combatentes onde se questiona sobre o horror da guerra em geral ( como no The Naked and the Dead de Walsh. sem mais nem menos.desempenha um papel preponderante. É inútil. O som . em Apocalypse Now. para o espectador. uma guerra vista de baixo. cenas ainda freqüentes em Hawks. torná-la mais inteligível. de Roma cidade aberta a Tempos de guerra.A história do cinema é em parte ligada à história das guerras. O episódio com frequência citado como o melhor do filme em relação a isso ( com justiça. vemos um campo queimado. Quando. procurar no Apocalypse Now uma tomada de posição sobre o engajamento americano no Vietnam. sem “subida”. Ora. compreendemos que jamais havíamos realmente visto um helicóptero. nada de pausas nem de tempos mortos. Inversamente. concreto demasiado concreto ( concret trop concret). através de um roteiro inspirado em Conrad. a dimensão histórica é “curto-circuitada” por uma passagem direta do físico ao metafísico. que ele chamava de “complexo de Nero”. por exemplo) teriam achado o filme admirável. penso eu. com a diferença de que em Cimino. mudanças de velocidade. por exemplo. A guerra é antes de tudo este lugar. E ao mesmo tempo. mas que matam. A guerra. elipses no coração das cenas. tais como super-Fabricios del Dongo em Waterloo. técnicas cinematográficas e tecnologia guerreira andavam em um passo conjunto: matar e filmar “progrediram” paralelamente.um uso particularmente manipulador do Dolby. mas pelo contrário: para estilhaçá-la de seu interior. Portanto. Na América. portanto. elevação ( remontée). o filme participa de um projeto de amnésia política. “enquanto ela” não é a simples repetição da Coréia ou do Pacífico. aquela cuja imagem ainda não caiu em desuso. temos aí. uma explosão é uma explosão. mas dificilmente eles podem assumir este em . aquele que escapou aos massacres. Encontramos subitamente pelo caminho objetos que não querem dizer nada para ninguém. quando Willard e seus homens encontram um batalhão que está prestes a arrasar um campo de napalm. não com o objetivo de ancorar a imagem. a dupla coação a qual Copolla não escapou é a seguinte: os espectadores ( e se fazem necessários milhões destes para tornar o filme rentável) vêm em primeiro lugar pelas cenas de guerra.pela primeira vez com tal intensidade. O efeito obtido é totalmente assombroso. Mas esta ligação não se desvenda assim tão facilmente. Do filho ao pai: o padrinho. este jogo entre a suspensão e a disseminação do sentido é a aposta das superproduções. O paradoxo é este: estes filmes só podem ser feitos lá – os Estados Unidos.em Copolla. Por exemplo. a União Soviética. a passagem pela violência mimética ( ele começa a se assemelhar a Kurtz). a carregar sentidos para além de si próprias). o jovem suspeita de que jamais será o mesmo homem. a inteligibilidade para justificar a posteriori estas cenas. mas não aquele que se supunha. com verdadeiras máquinas e verdadeiros corpos. onde o espectador seria convidado a “pensar por si mesmo”.onde não é permitido “não concluir”. o mais velho vai intimidar o mais jovem e será finalmente morto por ele. mas esta é vista do ponto de vista do grande esquecido do mito. se filma as operações militares com um real talento. às vezes pesadamente. horror que ele sente bem lhe dizer respeito. O sentido último como cobertura do gozo ( jouissance) do non-sens ( falta de sentido). com Burl Ives e Christopher Plummer. Ou o atordoamos ou o estimulamos a pensar. Há certamente uma situação edipiana. toda esta parte fica no nível teórico.primeiro lugar. Arkadin-. portanto de toda guerra. Era algo bem mais forte em Jornada tétrica. Mas este horror é um truque. ele desejou filmar esta última parte. em todo caso em impérios. portanto. Evidentemente. Segunda subida. neste caso). ao termo da subida do rio. Laios. antes de embarcar novamente em seu barco. exclama Willard nos últimos planos da versão atual de Apocalypse now. Ele descobriu o horror de toda filiação. abrir as interpretações. Além do mais. Neste filme também um personagem se retirou da civilização e reina sobre um grupo de foras-da-lei e de destroços. uma vez que este desejava morrer desde sempre e que esperava seu assassino com impaciência. no coração de um reino ao mesmo tempo esplendoroso e nauseante: os pântanos da Florida. não edificar. Depois do assassinato. O verdadeiro tema. Se descoberta há. embora se saiba que teve grande dificuldade em decidir de que esta seria feita. já que não chegamos muito bem a acreditar na identificação entre Willard e Kurtz. geralmente desprezada na outra parte do Atlântico. se ele é um extraordinário engenheiro. ele está bem menos à vontade desde o momento em que a imagem torna-se sobre-significante ( sur-signifiante) e a narrativa metafórica. ou mesmo no Welles de Mr. o Jornada tétrica de Nicholas Ray. Quanto a Copolla. “Horror!”. e sobretudo não concluir: vejamos Tati. Como se fosse impossível ( ou então. no filme de Copolla. mas também porque Ray é um imenso cineasta. Uma amizade confusa ligará dois homens. uma obraprima. o que está na base de toda ficção: a subida em direção aos nós fundadores da filiação. dos filmes-monstros ( deixar o espectador estuporado. antes de tudo ( d’abord): é-lhes necessário um fim. Há portanto um momento onde. Copolla não escolheu realmente. Fellini e sobretudo Kubrick. um jovem também vai ser progressivamente capturado pelo horror do que se trama neste reino. O falso . que sai terrivelmente engrandecido na comparação com Copolla . passaremos do concreto da guerra ( as coisas na cintilação de seu ser-aí. enquanto esta se encontra na base de toda sociedade. Mas o rio carrega outra coisa. ecologista “avant la lettre”. Curiosamente.que no entanto são atores bem mais limitados que Brando e Sheen-. Um Laious que teria disfarçado seu suicídio de assassinato para privar Édipo de sua verdade. é que não se mata o pai. de Édipo para Laius. é a atualização ( mise à jour) da ligação homossexual. massacram-se pássaros. etc. o roteiro de John Milius faz-nos pensar em um pequeno filme. um desenlace. É aí que o filme fracassa. Em Ray. em seu “aparecer” mortal) à abstração ( as coisas que se põem a significar. em Copolla é mais grave. ou retemos o sentido ou o disseminamos. subido o rio. assim como em Ray. Em Jornada tétrica. dos filhos para os pais. Evidentemente. seria necessário um tempo maior) conduzir o espectador do estupor atordoado onde até então o tínhamos mergulhado para uma outra forma de relação com o filme. Horror. de toda “fraternidade”. e que há pouco tempo chegou à América ( Truffaut no filme de Spielberg). mas aquela da qual se provém. Salvo que “ser” americano não é jamais algo tão evidente nem tão simples ( não insisto aqui sobre o melting-pot e outros mitos). mas sem possuir meios. Copolla. é claro. da mesma formação ( Exército). ao mesmo tempo em que lhe impomos a vergonha de ter despertado a besta: refrão conhecido. Kurts e Willard são da mesma espécie. não é um cineasta tão profundo quanto Kubrick ( para ficarmos nos gigantes). que seja. mesmo Encontros de terceiro grau) é tornar os Americanos ainda mais americanos ao fazê-los exorcizar um Outro ( em geral maléfico) que os assombra ou habita. Pois no influxo de Apocalypse now. do diabo ou do duplo. O Um e o Outro: a América. No entanto. quando Godard inscrevia literalmente o corpo e o nome de Fritz Lang ( em O desprezo) . Outro no sentido de alien. volta no meio) .) Quarta subida. alguém que exerce antes um protetorado que uma lei.infinitamente decepcionante também. Um monstro ao qual é preciso se identificar. em torno do anticomunismo). A novidade e a força desses filmes está em que eles decidiram não economizar nos meios ( a tecnologia ainda e sempre) para mostrar o outro. É também um filme americano médio pós-Vietnam. é porque Copolla realmente não escolheu entre delírio surrealista e crueldade etnográfica. o abate paralelo de Kurtz e do rebanho sacrificado . título do maior sucesso do verão nos EUA. “o pai falseado” de Apocalypse now. da mesma raça. cujas imprevisíveis metástases terrificam. Ideológicamente. Copolla pertence a uma geração de cineastas que teve de começar sua carreira à sombra da geração dos grandes ancestrais. Quanto a Apocalypse now. do lado da horda paterna. é o monstro proteiforme. possui a maior dignidade literária ( Conrad). tremo de alegria”.pai. não a barbárie dos outros. Até aqui eram sobretudo filmes B que se ligavam nesse tema ( nos anos 50. No entanto. Em Cimino. só conseguindo excitar espectadores muito naifs ( ingênuos) ou muito sofisticados ( cinéfilos). é sem dúvida aquele que. Este “povo do abismo” que idolatra Kurtz não é suficientemente verossímel para que o momento forte desta última parte. Em Ridley Scott. é esta outra subida do rio que leva Willard até Kurtz de . Aí. são os temas mais codificados. decepciona. O espetáculo e o homem de espetáculo: Copolla. sem dúvida. Terceira subida. literalmente surgido do corpo humano e ocupando a astronave como um câncer. há também a velha Hollywood. Em Friedkin ou Kubrick. O cinema americano. The deer hunter. suscite todo o horror sagrado que se poderia encontrar em um Pasolini ( em Pocilga: “Matei meu pai.. vivos ainda.. um deles tornou-se um monstro. é novamente o Americano. ( Alien). o Asiático que é tido por responsável por despertar a besta que dormita em nós: matamo-lo. limitados a truques fracos ou a refinamentos de escritura ( o fora de campo de Tourneur) . Copolla escala o rio da civilização em direção à barbárie. no nível do roteiro. considerando-se abusivamente como a espécie abusivamente como equivalente geral da espécie humana. Se esta escalada também não chega ao seu destino ( aussi tourne court: não segue até o fim do caminho. não cessa de rondar em torno de um tema que é a presença do Outro em nós. comi carne humana. do mesmo país. desde um certo tempo. o objetivo de todos esses filmes ( Alien. Apocalypse now é um filme excepcional. mais literários. da qual toda civilização provém. Aí também pode-se dizer que a “mise à morte” de Brando é uma operação infinitadevido à posição bem particular de Brando na indústria americana: ele é um pouco o Kurtz desta indústria-.”Nós”. antes um “padrinho” que qualquer outro papel. Geração que começara na França. o alien em nós. e que me parece que se esteja sempre pronto a fazer não importa o que para se ser “ainda mais americano” ( não importa o que: Kazan). Vimos que seu jogo de pistas não leva realmente a lugar nenhum. A decisão de mostrar o “Não-Mostrável” ( Immontrable) é muito recente. O Exorcista. Há diferentes versões. em todo caso um mito vivo. é Brando. onde todos confundem Willard com o oficial encarregado. O que ele retém da guerra. Esta espetacularização também se mostra na figura de Denis Hopper. Também na extraordinária cena do teatro no batalhão armado ( por um instante. uma espécie de primeiro assistente de Kurtz. etc. Se esta cena é a melhor do filme. que possui ainda atores para dirigir.Willard. é que ela se tornou para aqueles que a fizeram ( do lado americano) um vasto espetáculo sem metteur em scéne. produtos do delírio de Kurtz. quase de “show em show”.show business. seu bufão e portavoz ( griot). Mas justamente Copolla está mais para um empreendedor.que para um visionário. Ele apenas pode bombardear uma cidade por capricho ou fazer os soldados surfarem. tive a impressão de que Copolla tocava na essência da guerra: sobre uma pista de dança flutuante e em uma nuvem de fumaça rosa. o demiurgo. conseguiu inclusive tirar um filme de duração quase standard do enorme material filmado. No que concerne à força da mise en scène. Duvall não é o deus ex machina. Ele atinge o poderia dramático das cenas pela duração desmesurada das mesmas. Serge Daney. Cimino O grande filme americano dos anos 70. O Franco atirador. é um factótum ( bricoleur). armado com câmeras e a aparelhos fotográficos. Isso não o impede de conduzir. não pelo . É aí que Copolla é com freqüência um grande cineasta. “o Apocalipse decepciona”. por um senso quase mágico do cenário e pela atenção à certas características individuais dos personagens. que não se compreende mais. é o último metteur em scéne. Mas foi tanto por cálculo quanto por ingenuidade ( naiveté) que ele deve ter feito o filme assim. É no filme uma espécie de antecipação de Kurtz ( com o parênteses de que este personagem me parece infinitamente mais convincente). Igualmente na cena realmente apocalíptica das trincheiras. Logo. Pois ele conseguiu rodar o filme exatamente como queria. um herdeiro de Walsh e. Com uma ambição imensa. especialmente. o que as torna misteriosas e encantatórias. sem qualquer preocupação de rigor dramático aparente. passando pelo jovem Negro que canta ‘Satisfaction” no barco. S. é porque ela consegue manter a dosagem entre o real ( o ser-aí das coisas) e o “espetáculo” ( desejado por qualquer um).totalmente sintetizado no olhar de Martin Sheen. pode-se reprovar a Copolla ter tentado o impossível: filmar o irrepresentável phallus. uma busca absolutamente pessoal e original. Vemos isso no plano rápido onde Copolla filma a si mesmo como jornalista televisivo. Desta guerra a respeito da qual não se discute mais. Cimino é o único cineasta da sua geração no qual se pode ver. Cimino tenta construir um cinema épico e wagneriano que é também lírico e contemplativo e não desprovido de densidade romanesca. ao fim do rio e no coração do caos. A busca dele vai de encontro ao centro da sua proposta. Mesmo o crânio de Brando não é suficiente.como o personagem de Duvall.espetáculo em espetáculo. a exibição noturna e sonhada de moças diante de uma massa de rapazes). Talvez apenas tenha lhe faltado o poder de assumir até os seus limites uma economia suntuosa ( une économie somptuaire).no extraordinário episódio da batalha de helicópteros e do personagem interpretado por Robert Duvall. através dos outros aspectos do filme. nas fantasmagorias do final. que Willard busca.é o espectador por excelência: tudo o que ele encontra pelo caminho é ou vivido ou deliberadamente organizado como espetáculo. através do seu filme. Mas é sobretudo verdadeira – esta espetacularização. um filme com um fim. não se pode fazer nada senão tableaux vivants ( quadros vivos). Eliot. de ganhar “o direito de não concluir”. como Kurtz. Tradução: Luiz Soares Júnior. Em termos lacanianos. apesar das inumeráveis peripécias. de The naked and the dead. um reino para decorar e um público para ouvi-lo recitar poemas de T. Kurtz que. desta guerra em particular. e busca tornar evidente. e mais especialmente o herói ( Dana Andrews). nos planos por . Beyond obedecia ao princípio secreto que rege a maioria dos filmes de Lang. um número mais restrito de personagens. a universal culpabilidade do homem. Como frequentemente se dá entre os grandes realizadores de Hollywood. veremos esta vontade se destruir. Provoca .: Um exemplo de pesquisa efetuada por Cimino acerca do cenário: ele explicou (em «American Cinematographie». é necessário lembrar que Beyond é destes filmes onde a última reviravolta exige que sejam vistos pelo menos duas vezes. o filme se encontrava relacionado ao precedente por ligações poderosas. cenários e lugares. Beyond começa como um estudo social ( sobre o controverso tema da pena de morte). uma inquietude e perplexidade extremas. com que uma usina se perfile no horizonte em cada um dos planos gerais de exteriores que figuram nas seqüências que deveriam transcorrer na Pensilvânia. mas com um orçamento mais modesto. extremamente espetaculares. mas com o auxílio de um conjunto de alegorias que transformam o realismo em elementos de reflexão moral e filosófica. o jogo cruel da roleta-russa. atitudes e comportamentos perturbadores que suscitam pouco a pouco no espectador uma desconfiança . filmados em Ohio: único meio de conseguir. surpresas. Os temas privilegiados de tal reflexão dizem respeito à energia e à vontade de poder da América. De acordo com os personagens. Protagonistas e comparsas são apresentados aqui em um incrível luxo de “arrières-pensées ( pensamentos subconscientes). Depois de No silêncio de uma cidade. o pertencimento de todos os personagens à esta raça maldita que é para Lang a raça humana. segundo ele. levada aqui ao extremo. tudo isso são os motivos dramáticos e visuais. interpretado por Dana Andrews. solicitam da parte de seu criador ( Lang) um olhar onde o desprezo absoluto e uma compaixão de ordem trágica coincidem absolutamente.B. A caça. Lang tinha encontrado um meio de acentuar ainda mais a abstração de seu estilo. N. gestos. e uma extraordinária profusão de peripécias. ao transformar-se e mudar de conteúdos. uma perturbação como poucos se ressentem na vida cinéfila. e progride. Os dois filmes se desenrolam em cenários similares e o personagem principal. a saber. a guerra distante. fraturar ou mesmo perdurar. Em relação a isso. . por uma série de desvios labirínticos e envolventes.realismo. com um rigor impiedoso. Lang trabalhava para o mesmo produtor e companhia. Em relação ao resto. uma antinomia essencial entre a vontade de depuração de estilo. Elas estão longe de se esgotar com o aparecimento do “Fim” na tela. para a fábula filosófica e metafísica. Beyond continua logicamente No silêncio de uma cidade. reviravoltas em todos os gêneros. O FrancoAtirador é também um réquiem grandioso dedicado aos sofrimentos e à estupefação da América diante da maior derrota da sua história. o mais espantoso paradoxo do filme está em outro lugar: ele reside no fato de que estes personagens. que permitem confrontar essa possibilidade de poder com o real. um choque. a segunda sendo parte integrante da primeira. Lang Último filme americano de Lang. com consequências e prolongamentos incalculáveis. com a velocidade do raio e sem que nos apercebamos claramente. de atores brilhantes. Epopéia de fracasso. ao mesmo tempo internas e externas. sobretudo nos espectadores que o viram na continuidade cronológica da obra de Lang. No entanto. poderia ser facilmente visto como idêntico em ambos os filmes: assim. É nesta segunda visão que Dana Andrews . de universalizar e radicalizar ainda mais as suas intenções. Esta fábula exprime. Jacques Lourcelles Tradução: Matheus Cartaxo Suplício de uma alma. outubro 1978) como ele tinha construído visualmente o sítio da sua pequena cidade da Pensilvânia. utilizando oito exteriores diferentes. não pode mais condená-lo sem ao mesmo tempo reconhecer em si. fundada para ele na competição e no crime. mas normalizado. um irmão de raça. sóbria e eficaz. carrega o peso de sua culpabilidade inevitável. tendo-o julgado. A pena de morte torna-se um castigo metafísico. Ver por exemplo a estilização da vulgaridade cúpida de Bárbara Nichols . Como a competição e o crime vieram a estar indissoluvelmente ligados. A partir de agora. As ultimas reviravoltas ( Garret acreditando escapar à morte pela descoberta póstuma de uma carta de Spencer. Lang escreveu minuciosamente o roteiro com Casey Robinson. embora se tenha a impressão de vê-los presentes ao longo de toda intriga ( Apenas Dana Andrews pôde obter um número de dias maior). Por causa disso. a evolução global da intriga mas também um grande número de planos isolados contém integralmente o sentido de suas intenções. o espectador. No silêncio de uma cidade.os intérpretes prestigiosos reunidos para o filme ( George Sanders. cujos elementos evitam se valorizar. a perfeição de seus estilo. prometido a cada ser vivo. depois perdendo sua chance de sobreviver com seu erro e pela confissão e traição de sua noiva) são para ele outros suplícios que se juntam à sua condenação. aparece como o perfeito e impessoal herói trágico que Lang sempre buscou representar. que não pode escapar à sua condição. Na primeira visão. A partir de um romance. mesmo quando não mais trabalhava. seu melhor filme. perfurado por orifícios mais sombrios ( as janelas do imóvel defronte) que se assemelham aos destroços que ela observa. Criador solitário e exigente. e é um peso ainda mais difícil de carregar.de colecionar. Trata-se de um mundo em ruínas do qual até mesmo nos esquecemos que ele se encontra em ruínas. Um dos ápices de sua carreira. mas sobretudo de narrativas de diversos fatos découpados nos jornais e que ele tinha o hábito -conservado até o fim de sua vida.exemplo que o mostram oprimido na sua cela. que não apenas exprimem com uma precisão implacável as diferentes atmosferas dos lugares representados como valorizam com um relevo tremendo os gestos dos protagonistas. o culpado. Estamos mergulhados aqui num universo à la Metrópolis. . quer isto lhe agrade ou não. aparece de súbito como a vítima de uma espécie de maldição trágica e universal. . Lang não é contudo o mais inovador do cinema americano. em nossa opinião. da violência contida de Dan Seymour ou do comportamento meio frígido de Joan Fontaine. inevitavelmente justo e injusto. Ida Lupino. este plano onde Fontaine examina as fotos calcinadas diante de um cenário de fachada cinzenta. Lang Penúltimo filme americano de Lang. Thomas Mitchell. Este universo nem ao menos possui esta monstruosidade espetacular e escandalosa que poderia nos advertir de seu horror. eis o seu tema. Assim. Lang quer dar a ver um panorama muito vasto da sociedade americana. No silêncio de uma cidade integra e interioriza de alguma forma a revolução trazida no ano precedente à narrativa policial por A morte num beijo. ele carrega o peso de sua inocência não reconhecida. banalizado e contudo completamente asfixiado. Lang chegou a este ponto de domínio onde a descrição de cada personagem. Preparação não menos minuciosa da filmagem que vai permitir utilizar. Rhonda Fleming) apenas por quatro ou cinco dias cada um. na segunda. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. A ambição do filme é imensa. Em um universo revelado sem inocentes. Toda ação do filme se desenrola em cenários voluntariamente neutros ( há gênio nesta neutralidade). de tal forma o cenário e a ação que nele transcorre são integrados perfeitamente entre si.sendo o orçamento do filme médio. de onde decorrem as características de seu estilo. e este será um dos mais sofisticados de sua carreira. obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou tão longe. depois da revelação da morte de seu patrão. intrigar. a fim de obterem um posto. ou então. a cada etapa de sua carreira. separam os personagens. resultante da imobilidade da câmera.o que é pior ainda. o microcosmo expressionista reaparece aqui. uma vez que O tigre de Bengala e O túmulo indiano são uma nova versão do roteiro escrito em 1921 com Thea Von Harbou e que Lang não pudera realizar então. nada de extraordinário). captadas em uma permanente interação. dramáticas em seguida. É preciso sem dúvida colocar a crédito de Lang essas polêmicas. embora mantendo sobre todas as coisas o ponto de vista de Sirius. Como é usual em Lang. . sob o olhar de um cineasta que não quer nada senão ver bem e “dar a ver” bem o real. e pouco a pouco o filme adquiriu o status de clássico. quando em realidade não são mais que a conseqüência das iniciativas entrecruzadas de cada um dos protagonistas. no interior dos escritórios do jornal. com cintilações gélidas. No seu lançamento. as seqüências se encadeiam umas às outras segundo um ritmo e uma progressão lógica que parecem obedecer a algum Fatum. É uma pequena porção do inferno onde as criaturas se agitam . geográficas primeiro. o criminoso que os jornalistas procuram tão ardentemente . permitindo-lhes ver-se mutuamente. ou mesmo desorientar e desencorajar seus próprios fãs. no grau zero da moral e da consideração pelo outro.não há bons nem maus na intriga. Lang conduz aqui a um grau de perfeição absoluta sua arte das ligações necessárias ou mesmo fatais entre as seqüências. e que dão à narrativa a possibilidade de desenrolar várias seqüências frontalmente ( de front).lavado de todas as suas escoriações. Se examinarmos com uma lupa ( o que faz o filme) o comportamento de cada um dos personagens implicados na ação. torna-se não apenas sua presa mas seu espelho. Ela foi atacada não apenas pelos adversários permanentes de Lang ( até aí. a substância do filme se desenvolve a partir de uma série de contradições internas que só podem se resolver na última perfeição estética da obra acabada: depuração obtida a partir de uma extraordinária riqueza de meios e de uma proliferação de peripécias. Apenas uma minoria de admiradores o defendeu com fervor. que sempre teve o dom de. utilizar ou aniquilar o outro. dotado de uma pureza expressiva cuja abstração e concentração fascinam. Depois de muitos avatares e metamorfoses.vasta teia de aranha onde finalmente todos se encontram presos. acreditando-se livres e ativas. A partir disso. devendo contrariado passar a realização às mãos de Joe May. A fidelidade que ele manifesta aqui a seu próprio universo é a mesmo tempo formal e filosófica. Refinamento supremo da mise em scéne: estes compartimentos vidrados que. Lang Vinte e seis anos depois de sua partida da Alemanha. ver-se-á que nenhum deles tem a mínima idéia do que lhes poderia servir de base moral. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior Postado por Júnior às 20:26 0 comentários O túmulo indiano. A ferocidade da competição colocou todas as individualidades no mesmo nível. mensagem filosófica destilada com o auxílio de uma trama desenho animado. ocupados a suplantar.talvez pela última vez. Este entrelaçamento magistral é visto na luz soberba de uma fotografia metálica. encontrando-se repensado através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e genial.que sacrificam às suas ambições os poucos escrúpulos que poderiam ter. mas também por uma grande parte dos defensores do cineasta. dinamismo perpétuo. Quer seja por um elemento visual. esta nova versão suscitou numerosas polêmicas. Lang retorna para dirigir esta obra testamentária que se beneficiou de um importante orçamento ( mais de quatro milhões de marcos). espantar. É um duplo retorno às fontes. do diálogo ou pelo efeito de uma causa dramática particular. comportamento considerado normal na sociedade onde evoluem. Este é de alguma forma mais digno de piedade que eles. semelhante. o gênero e o tema tirados do cinema hollywoodiano. o assassinato e a fatalidade. o que chocou os primeiros detratores do Tigre de Bengala. quando as paixões se aniquilarão na renúncia. jorra a trajetória da narrativa. brutal. tinha com certeza necessidade de um banho de Juvência ( Juventude). entidade vaga e disseminada. O silêncio e o vazio”. A maioria dentre estes é movida por um objetivo único ( amor e fascinação erótica em Chandra. Ás vezes. etc). escreve Morurlet. Mas este trop plein ( plenitude. dirão os detratores. a sede de poder prenhe da destruição. de absolutamente convencional). que preenche suas almas e seus corações até a plenitude ( trop-plein). No plano visual. seu estilo “rascunho” ( brouillon). fade out) vai aparecer como a própria imagem da juventude cinematográfica. Esta paz é vista “ como que do fundo da morte”. Aqui. como que do fundo da morte. atolado na ditadura de seus metteurs em scéne quinquagenários e sexagenários ( geralmente talentosos). só distinguimos isso. Dicionário de Filmes Tradução: Luiz Soares Júnior. é uma certa maneira de olhar de muito distante. a fim de que sobrevenha uma paz que possui algo de sepulcral ( ou. não se capta nada. Se não se capta este tom de eternidade. Jacques Lourcelles. ele a destilou de forma nua e sem álibis. Mas sem dúvida o remédio foi pior que o mal. personagem-pivot do filme ( de fato. o fato de que tenha custado três ou quatro vezes menos que um filme médio e feito um sucesso imediato e considerável lhe valeu uma corte de imitadores. desejo de vingança em Padhu. sede de poder em Ramigani.as ligações tradicionais da narrativa cinematográfica ( ouverture au noir. A bem dizer. segundo a expressão de Michel Mourlet. é talvez exatamente a mesma coisa ( e seria esta algo bem languiano) que seus fãs admiraram: uma “genial inatualidade” que reduz o universo a alguns desejos monstruosos e contraditórios do homem. retomada tal e qual no Bom dia tristeza. No plano material e financeiro. fade in. preenchimento total) é igualmente um vazio.Nos personagens. Claro. Godard Tudo ou quase é tomado de empréstimo neste pálido decalque do filme noir americano:o assunto. que suprime. Lang exprimiu esta visão por meio de narrativas com alcance social ou político. e que eles detestaram ou até mesmo desprezaram na obra.mas fascinante. a abolição das paixões. Em relação ao assunto. é quando a plenitude ( trop-plein) será aceita como vazio. em sua rigidez sindical e profissional. Acossado. pois implica a supressão do desejo. Apesar disso. que a serenidade poderá enfim fazer sua aparição. os “jovens”. paralisado) da época. Mensagem que só aparentemente é positiva. o amor prenhe do crime ( ou da vontade do crime) . ele é o único herói da história). ou seja. Do choque destas vontades múltiplas. e talvez tudo não passasse de um engodo. A ausência de preparação e construção no roteiro vai debilitar todas as histórias ( a de Acossado. em um serial. A filmagem sistemática em . é exangue). as mulheres. os homens. Nestes quatro ou cinco últimos filmes. e a filosofia tornando-se ao fim esta inútil. Todos os elementos constitutivos da mise em scéne foram afetados. triunfa a mesma dialética. em seu rigor. o filme será considerado uma revolução no cinema francês ankylosé ( enrijecido. vão se tornar por um longo tempo o tema principal das ficções do cinema francês. Em Chandra. a um teorema matemático.contemplação do Nada. por exemplo. forma que representava para ele o alpha e o ômega de toda ficção. pois esta retira de seu ser não apenas o resto da humanidade como também toda e qualquer forma de realidade que não aquela tomada por seu desejo. de Preminger. que são como obsessões.é esta sua principal inovação.a atriz Jean Seberg. o cinema francês. simplicidade e sua absoluta lógica. “ O que há de mais profundo nos filmes de Lang. Belomondo preparará o caminho para um tipo de ator polivalente. ampla matéria a dezenas de filmes. Duvivier e Carné. Enquanto que agora. Com o mesmo approach agressivo e glacial do real. A única razão pela qual Acossado merece ser mencionado hoje em dia é que ele marca. Eu um dia vi Dellanoy entrar no estúdio de Billancourt com sua sacolinha: parecia que ele estava entrando numa companhia de seguros”. com uma poesia dilacerante. não sem complacência. “a arrogância fascista” da Nouvelle Vague.externas vai aniquilar.. evidentemente.dos cineastas que não pertenciam à Nouvelle Vague. a superioridade melancólica do sonho sobre a realidade. La belle equipe de Duvivier e La bête humaine de Renoir. Nada disso. O Fantasma Apaixonado oferece uma mistura rara. Passando em seguida e sem esforço do filme “de autor” ao cinema comercial. preferimos. Eles estavam distantes de tudo ( coupés de tout). quase única. 22 de janeiro de 2009 O fantasma apaixonado. mais consciente de si mesmo. qualquer que fosse. no Cahiers du Cinema 138 ( 1962). mas apenas de qualidade. será mais triste. há realmente uma diferença de natureza”. Nota: Uma grande parte da História da Nouvele Vague está ligada ao progresso da credulidade entre o público de cinema e no público em geral. o . refinando (peaufinant) notadamente o personagem de Miles Fairley. Mankiewicz se expressa tão profundamente quanto nas obras que ele tirou dos seus próprios scripts.esta sim incontestável. quebrando as divisões e categorias convencionais. as desilusões da existência. ( Pessoalmente. para o qual Dépardieu fornece hoje o modelo. Apenas a chegada como “vedette” de Jean Paul Belmondo pode ser considerado um elemento inovador. Remake americano Breathless ( 83) por Jim McBride. entre um de meus filmes e um de Verneuil. A foto de estilo “reportagem” tornará caduca. demorando-se sobre as decepções. Postado por Júnior às 20:18 0 comentários quinta-feira.por um certo tempo. “ Sempre se acreditou que a Nouvelle vague era o filme barato contra o filme caro. entre a expressão de uma inteligência solta (deliée) e satírica (caustique) e um gosto romântico pelo devaneio. entre.self-conscious.(. Era simplesmente o bom filme. menos criativo.. Estas afirmnações de Godard ilustram o que Freddy Buache chamou. entre milhares. havia uma diferença. e em seguida saíram repetindo por aí. “O seu cinema. a confusão geral de sua geração. Neste terceiro filme realizado para a Fox. mas apenas corrigido. Entrada esta da qual um único filme não poderia ser tido como responsável.era a total irrealidade. como que ferido de morte. por exemplo. com o caráter de um marco limiar. “Antes da guerra. com um pouco de exagero. Godard consagrar-se-á em seguida a pintar. Eles não viviam o seu cinema. Muitos se puseram a acreditar no que os cineastas diziam de seus filmes. Delannoy.dos cineastas da Nouvelle Vague é que ninguém antes deles ousou falar tão bem de si e tão mal dos outros.Ora. a originalidade maior. cujo roteiro não foi escrito por ele. Depois de Acossado. contra o mau cinema”. a entrada do cinema na era da perda de sua inocência e de sua magia natural. Joseph Mankiewicz Uma das obras-primas de Mankiewicz e um dos mais belos filmes hollywodianos.). com a vida dos estúdios. com Richard Gere e Valérie Kaprisky. Alguns exemplos.toda pesquisa nesse domínio. O filme não pertence a qualquer gênero conhecido e cria ele mesmo o seu gênero para contar. pouco a pouco. a “sacolinha” de Dellanoy e alguns de seus filmes à toda obra de Godard). o cinema. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. com um certo recuo e mesmo sem nenhum recuo. como dizem os ingleses com uma discreta nuance pejorativa. os dois mestres do gênero (Cottafavi e Freda). dos atores ao cenário. os caminhos da aventura (Le Géant de Thessalie. Seu Japão é um mundo bárbaro. ao longo de uma narrativa entrecortada e ziguezagueante. É igualmente um filme sobre a solidão. que só foram reconhecidos como tal após seu desaparecimento. como aqui. Jacques Lourcelles Tradução: Matheus Cartaxo Minha vingança. por exemplo. 1962). são soberbos e marcantes do selo da perfeição.de sondar. sobre essas almas insatisfeitas e sonhadoras para as quais a solidão abre o caminho em direção a natureza. Cottafavi Apesar da sua popularidade. que se vinga de estar vivo naqueles que transmitem a vida ( seu pai. à sociologia. ela sublinha às vezes até o limite da explosão o contido lirismo da obra. A história de Enokizu. Por isso. no interior do cinema japonês. inútil. um entomologista que só acredita no behavorismo. no entanto. a astúcia. Imamura desconfia de toda explicação referente à psicanálise. Sob esta ótica. é uma história de sexo e de sangue. que reatava com as origens do pépum. descrita. Freda preferiu reencontrar. Jacques Lourcelles Tradução: Matheus Cartaxo Hércules na conquista da Atlântida. Ele adora contar a história ( ou a contra-história) do Japão ao longo de várias décadas. com uma certa verve vingativa. no interior do gênero. na época do cinema mudo. a um nível de brutalidade. impenetráveis e opacos quanto o próprio universo.triunfo daquilo que poderia ter sido sobre aquilo que foi. Acompanhando a meditação do autor. As causas. onde cada personagem tenta sobreviver através do comércio de corpos e de bens.particularmente Minha vingançasejam tão obscuros. até mesmo massacrado pela pobreza dos orçamentos e pelo descuido técnico da realização. não é exclusividade sua. bizarro e compósito (composite) (Maciste em enfer.e portanto. impossível . intensidade e impassibilidade impressionantes. Minha vingança é um dos poucos filmes da história do cinema que se poderia qualificar de faulknerianos. O período do pós-guerra fascina-o particularmente. a uma forma quase imaterial de felicidade. Todos os elementos da mise em scène. o humor e a piscadelas de olho ( clins d’oeil) das histórias em quadrinhos. grávida dele). na mise-en-scéne. sua amante. Sua temática. Imamura pinta a emergência das pulsões e dos instintos mais primitivos nos seres pertencentes às sociedades ditas civilizadas. Sublime composição de Bernard Herrmann. os planos de gaivotas e de ondas ou aqueles onde Gene Tierney caminha ao longo da praia e que indicam a passagem dos tempos figuram entre os mais belos do filme. 1960) ou um certo barroquismo (ou un certain baroque). Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. por um clínico. mas ele a eleva. o herói de Minha vingança. dos diálogos à fotografia. embora seus filmes estejam repletos de fatos suscetíveis de enriquecer estes diversos domínios. Shoei Imamura Em seus filmes. onde alguns quiseram ver uma forma de distanciamento brechtiano. o péplum italiano dos anos 60 foi um gênero sacrificado. poderiam passar como momentos dos mais banais. Cottafavi utilizou. a violência. . Graças a ela. Ele busca sobretudo que seus filmes. tiveram que recorrer à astúcia para fazer uma obra pessoal e criativa. as intenções que se poderiam descobrir sob cada ato humano são para ele um abismo. em forma de balada melancólica.O homem errado. Isto tornou-se cada vez mais corrente em seu cinema desde The asphalt jungle. reduzidas aqui a uma fascinante nudez. contemporânea e diferente daquela de Lang. O que lhe interessa são os personagens. Lang chegou. Henry Fonda à altura de si mesmo. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior Fat City. mas para fazer a economia da verossimilhança. possui pouquíssima intriga. suas ligações amorosas. e Huston manifesta em relação a ela uma quase total indiferença. Seu maniqueísmo quer que a metade inocente da humanidade não possa “lavar as mãos” da culpabilidade da outra metade e deva. em Cahiers du Cinema. toda revolta e iniciativa inúteis. no lançamento do filme. do fracasso aqui é completamente interiorizado nos dois personagens principais. ainda mais erráticas que seus deslocamentos no espaço ( aqui Huston quase vence seu “irmão caçula” neste domínio. Como na maioria de seus filmes. Robert Brucks e Bernard Herrmann fizeram prodígios para colocar seu talento e sobriedade a serviço do gênio de Hitchcock. É relacionado a ele por uma ligação profunda que faz o mistério do filme. Hitchcock adere aqui a uma visão cristã do mundo. utilizando genialmente a câmera subjetiva e os cenários reais. pode no entanto ser-lhe comparada. Biblio: importante artigo de Jean-Luc Godard ( sua melhor contribuição ao cinema) aparecido . resumo impressionante e sem dúvida invertido da história espiritual do século 20. perturbado pelo que lhe sucede. é claro. nutrem o suspense veiculado pelo filme. John Huston Primeiro filme rodado por Houston nos Estados Unidos depois de Os desajustados ( 1961). Suas .a atmosfera social na qual eles se situam. na última parte de sua obra. e. E a especificidade de O homem errado vem finalmente do fato de ser um filme kafkiano originado por um filme cristão. 1968. cedendo e depois recusando-se a ceder ( é aí que sua mulher assume a situação) à idéia que o destino fatal sofrido foi especialmente preparado para ele e torna. o filme. Hitchcock A liminar declaração de Hitchcock é clara: ele não usou o realismo de um fato qualquer para obter um grau suplementar de verdade. uma vez que ela realmente aconteceu. sua solidão. Hitchcock é mais maniqueísta e menos desesperado. Esta reflexão. que nunca foi tão evidente e empolgante como aqui ( salvo talvez em Murder). e em 10 Rillinghton Place. da qual o pecado original é a pedra angular. é como o monólogo interior de um indivíduo médio. camaradagem. O sentido da obra. Em um segundo nível. de qualquer maneira. Cassavetes). a ser assombrado pela noção de indiferenciação ( pelo caráter intercambiável) da inocência e da culpabilidade do indivíduo. Neste nível. de todo autor de ficção). este aqui. Em um primeiro nível. com freqüência ingrato. Somos mergulhados em uma história cuja verossimilhança não precisa ser demonstrada ( o que é o papel. O tema. o filme desenvolve uma reflexão sobre a culpabilidade do homem: esta é mostrada como cúmplice de sua inocência. número 62. pois de qualquer maneira a inocência não poderia deixar de lhe sentir os efeitos. suas conversações. tanto quanto as peripécias da intriga. responsabilizar-se por ela. 1971. tão corrompida que a inocência ou a culpabilidade de um indivíduo tornava-se algo de imponderável e finalmente indiferente na economia geral do mundo. hustoniano por excelência. O homem errado é o mais belo filme kafkiano da história do cinema. Beyond a reasonable doubt) que a humanidade é tão culpada. O sósia de Manyy é também seu duplo. desprovido de cólera. Richard Fleischer vai utilizar o mesmo procedimento em O estrangulador de Boston. suas errâncias. em consequência. Ele pensava ( vide While the city sleeps. em dez anos. O dever de todo dramaturgo é preencher as lacunas entre esses fatos. como os fanáticos e os obcecados religiosos de Wise Blood. Interpretação fantástica. dando ao maravilhamento (ou maravilhoso) cristão uma nova juventude expressiva.. com efeito. como se Huston tivesse enfim encontrado. assim como vários intérpretes não profissionais. a atualidade da mensagem bíblica que conduz DeMille a empreender. um cheque em branco. mas do olhar. A partir dos anos 70.mas será tão acessória assim?-. um conhecimento íntimo do assunto mas também uma certa distância crítica. a obra de Huston encontra uma nova juventude. apesar de terem apenas dez anos de diferença. Noerdlinger em um volume que faz um apanhado do caráter polivalente e aprofundado das diferentes investigações efetuadas antes das filmagens.O que nos parece mais valioso nesta evolução não é uma renovação dos temas ou dos assuntos. Jacques Lourcelles. para se consolar por haver bebido. que alia o realismo a uma sutil sofisticação crepuscular para iluminar os lugares e as pessoas que Huston conheceu. permitem mensurar o abismo que separa a adaptação desvairada ao fracasso ( Tully) de sua descoberta ainda matizada de esperança ( em Ernie). O mais espantoso neste olhar é que ele seja absolutamente o mesmo quando Huston pousa os olhos sobre personagens. por assim dizer. a dramatização da intriga. ele escolheu contar a história do indivíduo Moisés. A Paramount assinou. diversos personagens . Contudo.reações. Dicionário de Filmes. A escrita do roteiro se estendeu sobre três anos e uma preparação extremamente estimulada (poussé) e meticulosa precedeu em dois as filmagens propriamente ditas. O destino quis que DeMille assinasse ali o seu testamento. no meio dos anos 50. que mescla amizade e ironia. De forma acessória. a odisséia alegórica do combate da Liberdade contra todas as formas de autoritarismo. Fotografia soberba de Conrad Hall. de um cineasta clássico que entra em seu período pós-clássico e testamentário. Um resumo das pesquisas e da documentação reunida foi publicado por Henry S. Os Dez Mandamentos conta. até 13. ou quando ele examina “bonshommes” cuja experiência se encontra a anos luz da sua. DeMille procurou sintetizar os aspectos desconjuntados da primeira versão: a força ditatorial. Tradução: Luiz Soares Júnior Os dez mandamentos. estará na mesma exatamente na mesma situação de Tully. depois de tantas tentativas. Um dos grandes filmes em cores dos anos 70. uma tranqüilidade de espírito tão grandes como em nenhum de seus outros filmes. sem problemas. a busca pelo épico e pelo espetacular. é mais ou menos certo que Ernie. » Uma parte da imaginação entrava assim no filme. encontramos muito de compaixão viril ( o contrário de miserabilismo). Neste olhar. situados em algum lugar entre O’Neil e Steinbeck. a estilização plástica da imagem. DeMille 1956 É. o filme fala também do alcoolismo. quer formulando outras para o filme. estranhamente sereno. É o olhar. « O dever de todo historiador é de fazer um relato exato de fatos conhecidos e comprovados. Estimado em 8 milhões de dólares. elaborado com mais cuidado ainda e numa liberdade de manobra. que são como irmãos para ele ( Huston praticou boxe com 18 anos em lugares semelhantes aos descritos aqui). No que concerne à dramatização. em uma época em que este havia empobrecido terrivelmente. o orçamento subiu. Inventados de todas as peças ou tirados da História e reinterpretados. Instintivamente. quer retomando algumas teorias feitas por historiadores para preencher as lacunas biográficas da Bíblia. segundo suas declarações. o ângulo justo ( justo de seu ponto de vista) de onde observar a condição humana. e vai se tornar uma das mais tocantes do cinema americano. um remake do seu primeiro filme bíblico de 1923. os personagens bebem para se consolar da realidade e em seguida falam interminavelmente. mas não o coração”. o personagem de Nefertiri). Sendo um dos mais sóbrios e menos delirantes de seus filmes. escreve Michel Mourlet ( Cahiers du Cinema. Reconhecemos enfim a dimensão mais preciosa de seu estilo nesta arte de estriar de detalhes familiares e tocantes uma trama histórica e religiosa que. 97) fazem de seus planos. Cat people representa no cinema uma destas datas essenciais e secretas.a verdadeira história. que a história . DeMille pôde ir ao lugar e beneficiou o filme com recursos (moyens) mais colossais ainda. Ele julga que os monstros do pré-guerra ( vampiros. e que as datas essenciais podem também permanecer por longo tempo secretas”. na história do gênero fantástico mas também e sobretudo na evolução do cinema como um todo. Se isto é verdadeiro em relação à história política e social. The Reality of Terror”. Os dez mandamentos manifesta também a aptidão única de DeMille em manipular. em suma. arriscaria desabar sob o peso do gigantismo e da desumanidade. em Présence du Cinema número 22-23 e Films in Review. em seu notável “Val Lewton. pede a Val Lewton para realizar um filme a partir do título Cat people. no entanto. ou mesmo uma ambigüidade inesperada (cf. Tourneur Antes de tudo. sem estes detalhes. Charles Koerner . Mas. Nota: O prólogo ( cerca de 2 minutos) no qual DeMille vem apresentar seu filme ao público diante de uma cortina de teatro é geralmente omitido das cópias de relançamento e das que passaram na televisão.ganharam então uma sutileza. palmas ao vento.). não esquecer que se trata aqui de um filme essencial. por que DeMille preocupou-se tanto com o espaço? Um homem e uma mulher . dos quais a perspectiva está ausente. Esta vez.33 dezenas de milhares de figurantes e de animais ( 20 000 figurantes e 15 000 animais) com a precisão maníaca de um miniaturista. Cat people. “ A disposição dos volumes e de sua apreensão (. já que Jacques Tourneur e o roteirista DeWitt Bodeen a contaram ( respectivamente. não apenas na carreira de seus dois principais artesãos ( o produtor Val Lewton e o realizador Jacques Tourneur).. lobisomens) já tiveram sua época e que é preciso buscar alguma coisa nova e insólita.. uma pintura plana. integrar no formato 1. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma novela de Algernon Blackwood. Cada um dos três autores trará sua . Ele figura em uma tiragem do filme em vídeos americanos. na ordem dos gestos. é mais pudica. o é ainda mais em se tratando da estética. com frequência. a mostrar que as datas mais importantes da história não são forçosamente as mais espetaculares. Inultrapassável no plano do espetacular ( a partida dos Hebreus do Egito é sem dúvida a sequência mais “povoada” de toda a história do cinema). um equivalente aos afrescos egípcios. contrariamente ao que se tinha passado em 1923. Borges consagrou uma de suas enquètes “. recolheu os testemunhos mais próximos do produtor. ‘Veio-me a suspeita . permanece fiel no plano plástico ao estilo voluntariamente arcaico de DeMille e à sua visão de um espaço de duas dimensões. que lhe parece suficientemente excitante e atrativo. A gênese do filme é demasiado conhecida. o novo responsável pela RKO. inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos carregados por manequins com cabeças de gatos. uma paixão simples lhe seriam suficientes para estabelecer. desnudos “à antiga”. depois decide contar uma história contemporânea. Os dez mandamentos. O pudor da História”. Mas a história propriamente será pensada a três. 1963) e que Joel Siegel. escreve ele. dispor. Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Jacques Lourcelles Tradução: Matheus Cartaxo e Luiz Soares Júnior. embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto. o primeiro no qual ele se tornou verdadeiramente ele mesmo. que quase tinha se afogado. graças à influência ultra-criativa de seu produtor. em uma “poesia da qual ele tinha muita necessidade” ( vide sua entrevista televisionada para FR3 por Jean Ricaud e Jacques Manley. por exemplo. Cat people será o primeiro de uma série de quatorze filmes produzidos por Lewton ( dos quais 11 para a RKO) e. Pode-se resumi-la com uma única palavra: é a revolução do intimismo. Cat people teve mais sucesso que seu ilustre predecessor. se situa a revolução radical do filme. O recuo agora é suficiente para que Cat people e os primeiros filmes de Rossellini depois da guerra apareçam. ao menos em Rossellini.do espectador com os personagens. O que o cinema vai ganhar é uma maior proximidade. disse Tourneur. que dará em seguida na mesma linha duas obras ainda mais perfeitas ( I walked with a zombie e Leopard man). explorados nas profundidades de seus medos. A riqueza do trabalho sobre a luz sobretudo vai contribuir para interiorizar o conteúdo do filme nos personagens e a provocar uma identificação mais sutil e marcante do espectador com os personagens.pedra à construção do filme e. Cat people permitiu a Val Lewton produzir entre 1942 e 1946. Com o passar dos anos. Sua maldição está de tal maneira engastada na profundidade de seu ser que apenas uma investigação aprofundada pode permitir entrevê-la. na carreira de Tourneur. Antes desse filme. por assim dizer. suas angústias. Lewton aprecia particularmente estes momentos de angústia. mais a contribuição do filme parece incalculável.e vai sair como “tapa buraco” no Hawai Cinema de Los Angeles . Uma vez terminado. como na cena em que Alicem se sente perseguida por uma presença invisível. maio 1977). O caso de Cat people é particularmente estranho. como os filmes mais fecundos destes últimos cinqüenta anos. Lewton. que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera cada vez mais irrespirável. pela sábia progressão das cenas que exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na tela. Ela delineia. o filme foi muito pouco apreciado pelos chefões da RKO . seu inconsciente.que se poderia quase qualificar de psíquica. Esta contribuição não é contraditória. o fantástico. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo. com os personagens. uma linha de fratura entre o cinema do préguerra e o cinema moderno.-longe disso. É aí que.que nunca será como antes. atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com eles. um dos mais extraordinários conjuntos de filmes fantásticos do cinema hollywoodiano ( dentre os quais se destacam particularmente o sublime A sétima vítima e Bedlam.000 dólares.os outros de maneira espetacular e talvez um tanto quanto tonitruante. Com ele. ano muito difícil para a empresa.com o neo-realismo . Rodado em 21 dias e ao custo de um orçamento bem modesto de 130. Este o inicia. antes de impor um olhar extremamente inovador sobre os outros gêneros hollywoodianos que ele ilustra. pela sugestão. de forma pudica. que fecha a série). um secreta e subterraneamente. o cinema era um espelho mais ou menos fiel .descobre que pode retirar sua máxima eficácia da discrição. Cat people lança também a verdadeira carreira de Tourneur . sozinho numa piscina. uma vez que ele nos leva a privar de mais intimidade com uma personagem ( aquela de Simone Smon) que não pode ser íntima de ninguém. sempre com orçamentos muito reduzidos que lhe asseguraram uma total liberdade de concepção e execução. atravessado . a intensificar a intimidade do espectador. no estágio da escritura do roteiro como na realização. e seu triunfo tirou da lama a RKO em 1941. Tudo passará. que tinha acabado de terminar sua exibição de Cidadão Kane. que pode inventar novos meios de empolgar o espectador dirigindo-se à sua imaginação. que vai chegar igualmente. sob o plano social e em seguida espiritual. a cena da piscina será suscitada por uma lembrança de Tourneur. uma maior intimidade. A cena mais celebrada é também a melhor: é a do interrogatório de Doinel por um psicólogo de quem se ouve somente a voz. que tem mais a ver com o maravilhoso do que com o horror. Durante os anos que se seguiram. e Tourneur vai permanecer na América um dos cineastas mais estrangeiros a este país. distendida e carente de invenção no detalhe das cenas. com uma menor atenção ao contexto social. arrivista e perfeccionista. primeiro longa-metragem de François Truffaut. e se assemelha muito mais a David Selznick. Jacques Lourcelles. o filme transpassa o neo-realismo para encontrar o estilo de reportagem televisiva. aliás muito bem realizado. com uma parte dos atores e personagens de Cat People. Sua narrativa. Nota: a filmagem de Cat people é evocada sob forma de referência nos primeiro dos três flash-backs que constituem a trama de Assim estava escrito. Le beau Serge (fevereiro 1959) e Acossado (março 1960) um dos principais filmes na origem do movimento da Nouvelle Vague. Remake homônimo de Cat people sem nenhuma magia por Paul Schrader ( 1982) com Nastassja Kinski. Toda realidade é da ordem do mistério. o filme noir vai reforçar esta evolução. O olhar que penetra mais profundamente nela tem todas as possibilidades de ser o olhar de um estrangeiro. sob uma forma atual e contemporânea. Está ligada por um lado à Zero de Conduta . Os Incompreendidos é a primeira parte de um ciclo Doinel que continua em Antoine e . no mês anterior. François Truffaut 1959 Lançado em Paris em junho de 1959. Os Incompreendidos não é. Uma continuação bem distanciada foi dada a Cat people em The curse of the cat people ( saído na França em 1971). Cat people estabelece o que será o credo dessa obra e seu modo de abordagem da realidade. que ele pretendia relativamente não-dramatizada (dédramatisé). colocando a seu serviço. casadas à uma descoberta recente e com freqüência rudimentar da psicanálise. como co-realizador. Os Incompreendidos. ou mesmo inovadora. pela sugestão e pela imaginação. Vítimas da Tormenta). Ele foi começado por Gunther Von Fritsch e terminado por Robert Wise. O personagem do produtor Jonathan Shields ( Kirk Douglas). a obscuridade e mostrando o menos possível. é. aberto a uma contínua surpresa. não tem quase nada a ver com Val Lewton. Seu principal mérito é chegar a suscitar. Ponto de partida da obra real de Tourneur. é frequëntemente frouxa. Truffaut procura romper com os estereótipos do melodrama tradicional. É preciso apreendê-la do interior. O filme é um conto de fadas. nas últimas sequências. uma emoção não solicitada e até mesmo se apoiando sobre uma certa frieza de tom. dando ao seu filme o ritmo de uma crônica. as aquisições distantes do expressionismo. seu primeiro trabalho de direção. Tradução: Luiz Soares Júnior Os incompreendidos. Nessa sequência. é este personagem que decide que será preciso criar a atmosfera fantástica pela sugestão. ele tende a se tornar este instrumento de mergulho que penetra no mais profundo dos personagens como em um poço. filme demasiado brilhante mas um tanto convencional que queria ser para Hollywood o que A malvada de Mankiewicz foi para a Broadway. pela discrição. onde triunfa a espontaneidade de Jean-Pierre Léaud. tendência De Sica (cf. do estranho e do inefável.ao longo do caminho. No entanto. um explorador radical de vários territórios diante ( e antes) do mundo. que assina aí. entretanto. Nota-se que ele obteve uma fama imediata graças ao prêmio pela direção no Festival de Cannes. Elas vão fazer dele o pioneiro secreto. com Ascensor para o Cadafalso (janeiro 1958). uma obra revolucionária. A partir de Cat people. a uma engenhosa e total engenhosidade.de Vigo (revolta da infância e da adolescência contra o mundo dos adultos) e por outro às aquisições do neo-realismo. por assim dizer. que aqui é sobretudo questão de luz. Tradução: Matheus Cartaxo.Colette. a parte. Blackbeard. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. do criador de caracteres. ele desenha no movimento fugitivos tableaux de mestres dignos. demonstra isso admiravelmente). nunca foi tão bem descrito em sua vitalidade. prends garde! de Georges Lamplin. o ciclo constitui. rico e ardente de um intenso fogo interior. Dicionário de filmes.a língua pura. que aparentemente não lhe custa nenhum esforço.Dicionário de Filmes. N. sua truculência. sketch de O Amor aos Vinte Anos (1962). de todos seus personagens ulteriores. que nesta época está longe de ser um teórico. espécime de humanidade como que vinda de outro planeta. filmado no verão de 1957. por seu esplendor. Anne-Marie e o jovem padre são o testemunho desta juventude eterna. o único representante. se sobressai( sort) admiravelmente. Jacques Lourcelles . Com apenas alguns elementos de cenário. Beijos Proibidos (1968). Aqui. um mastro. uma vela. sua amoralidade. mas também com a beleza de Linda Darnell. notadamente por causa de seu caráter autobiográfico e da presença do mesmo intérprete em todos os filmes durante vinte anos.Giraudoux. alma agitada. Domicílio Conjugal (1970). assim como uma intriga fina mas fortemente dramatizada permitem ao cineasta realizar esta ascese visual em direção à qual ele tende. Cocteau. dos grandes pintores espanhóis. sem isso. Esboço também. já que nele o caráter é como se fosse a “casca” ( écorce) da alma dos personagens. O cineasta. e como todos os dons de Deus. o herói de Diário de um padre. Anjos do pecado. de certa maneira. sente instintivamente que sua obra tem necessidade para se realizar de um material forte. Este monstro alegre e feroz. esta se despojaria? Se o teatro está presente no filme pela construção da narrativa. e sim em La Tour.B. límpida e no entanto rutilante do autor da Ondina ( em um de seus últimos textos antes de morrer). um pedaço de céu. orgulhosa. ainda mais importante. sua desmesura.: Contrariamente à opinião geralmente aceita. se aplica lógicamente a uma matéria rica. não se deve negligenciar. Criatura solitária. mas levados a uma dimensão sobre-humana que claramente fascina e entusiasma de alegria nosso cineasta. a parte mais original da obra de Truffaut. em sua interpretação. Bresson nos dá neste filme um esboço do personagem do cura de Ambricourt. ele pertence a uma raça da qual ele seria. a partir de uma série de episódios confusos e sem grande interesse. orçamento insuficiente) e apesar disso indispensável à sua filmografia. de que. Com Anne-Marie. em relação a Bresson. Walsh o pinta em uma atmosfera plástica refinada. the pirate. É que a figura do Barba Negra. Bernanos lhe fornecerão. O Amor em Fuga (1978). a importância dos diálogos e dos monólogos. a respeito da qual Bernanos escreveu: “Eu me digo também que a juventude é um dom de Deus. obstinada. Possui todos os vícios e todos os apetites do homem. ainda próxima da infância ( Renée Faure . do romancista. que sua sede de Absoluto conduzirá a se destroçar contra os obstáculos do mundo. O despojamento. Robert Bresson 1943 Primeiro longa-metragem de Robert Bresson. Raul Walsh Obra totalmente menor de Walsh ( roteiro complicado e confuso. esse não é o filme em que Jean-Pierre Léaud faz sua primeira aparição no cinema. Junto com O Quarto Verde. ele é sem . a zoofilia. ao invés de amar um corpo. tremo de alegria”. distante e ainda mais distante. No primeiro. ao invés de devorar os porcos. E agora? Tremo. os dois lados da alegoria se iluminam um pouco. no momento. Condenado e prestes a morrer. 1. O escândalo não está tanto na gravidade ou no horror dos temas abordados. o que teria de humano? Para além de tudo. aqueles que Ele designou para não sobreviver à sua juventude”. Refrão conhecido demais para que nos demoremos nele. em Pocilga.entre Porcos e Corpos? São objetos de prazer: os corpos são feitos para serem amados e os porcos devorados. em um momento magnífico. Sétima viagem de Sinbad. atento ao nascimento obrigatório de ( ao menos) um sentido. duas distribuições diferentes das mesmas letras. por esta razão. A razão disso é que eles se enganaram de palavra. Oras. mas em que eles(o canibalismo. assim como Pocilga se coloca como a dupla narrativa de um mesmo evento. à beira de um vazio. Tradução: Luiz Soares Júnior. devora-os. tela de fundo de toda obra pasoliniana. Léaud afirma sua submissão ao pai ( nazista). é que. Mas sob uma condição: que eles sejam. por jogo. o próprio sujeito em êxtase. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Sua transgressão é em primeiro lugar o resultado fortuito de uma inversão dos termos. não é interdito a ninguém ver no personagem de Clementi o Cristo se recusando a ser o filho de Deus: ao invés de se oferecer em repasto aos fiéis ( eucaristia). ao contrário. “ Eu disse: Deus.arrependimento. que faz do ressentimento a condição do prazer. nenhuma parte do corpo que não seja ( mais ou menos) comestível. um jovem. portanto. um outro. a logorréia triunfam. Nathan Jura 1958 . Sobretudo se são . no filme de Léaud. Serge Daney Cahiers du Cinema 217. logo. de uma má leitura.como é o caso aquiinteiramente votados ao prazer. despenteado) se imbuísse desta idéia até os seus limites . se soubesse. novembro 1969. comi carne humana. de filme. Também ele será devorado. Só são jovens. mas em sentido inverso. de uma mesma Letra ( veremos qual é). desprezados. é ele quem come os outros ( inclusive alguns discípulos)."( Georges Battaille). ama-os. diz: “Matei meu pai. de um erro de distribuição. 3. Se aceitarmos ver por detrás dos Corpos e dos Porcos a imagem única do Pai. dos quais Pasolini assume todas as conseqüências. de uma única depreciação: escondidos. ele estivesse mal lavado. negados. Aliás. Pier Paolo Pasolini Esta nova “máquina de sentido” é o pôr em obra de um jogo de palavras muito simples: as palavras corpos e porcos entretém uma ligação anagramática . o pai de Léaud voluntariamente se compara a um porco. O que há de comum – tirando as letras. Reconhecemos aí a moral cristã. ) tenham sido suscitados sem necessidade . Estranha reconciliação entre o Crucificado e Dionísius. O logos. daí o silêncio de um filme sem Palavra. por seu amor aos porcos. os discursos. Pocilga. humilhados. Clementi. Aquele que ( suponho que. Corpos e porcos serão. seria um porco. 4. verdadeiramente jovens. objetos de uma mesma ocultação. 2. “prostituídos”: nenhuma parte do corpo que não seja (mais ou menos) erógena. À morte do Pai corresponde a morte do Logos. censurados. estabelecidos pelos críticos e cinéfilos do mundo inteiro. a miniaturização da princesa Parisa é sabiamente utilizada tanto sobre o plano visual quanto no dramático (Parisa libera os prisioneiros da jaula. nunca foi ultrapassado. onde alguns se aventuraram a reconhecer elementos autobiográficos. Foi na sua época um filme único e que. outro filme inglês de Sam Wanamaker. se exprime através de lamentos. filme inglês de Gondon Hessler. Junto com Jasão e os Argonautas. Um equilíbrio raramente atingido existe aqui. O amor. desde cerca de 20 anos. esse é o melhor êxito (meilleure réussite) do maior criador de efeitos especiais dos últimos trinta anos. Ford e Borzage realizarão alguns filmes importantes. entre a invenção tão rica e. de questões. 1977. mais à vontade no insólito e no maravilhoso que no horror. ela desce na lâmpada). realizado cinco anos mais tarde. de falsas confissões encadeados em diálogos soberbos e tornados célebres com justiça. 1972. por exemplo. mas também que os dois protagonistas mais determinantes e ativos na intriga sejam mulheres. muito mais decepcionante. New York. 1974 (com bons efeitos especiais) e em Sinbad and the Eye of the Tiger. só Dwan conseguiu se exprimir de forma constante . empregado . onde ele comenta todos os seus filmes) pela serpente-dançarina com quatro braços em que o mágico Sokurah transforma o servo da princesa. Podemos nos espantar que um filme tão original e pessoal como este tenha saído dos estúdios da Republic. Nicholas Ray É uma destas obras-primas do cinema americano que. e é necessário colocar à crédito da companhia a distribuição de House by the river. nenhum autor da nova geração encontrou aí lugar. vide Silver Lode de Dwan) dá lugar a cenas de uma melancolia comovente. O duelo com o esqueleto é um primeiro esboço da célebre sequência de Jasão. ele escolhe utilizá-lo para contar uma história sentimental. Assim. tudo é excepcional neste western mítico frequentemente colocado. a firma americana mais pobre em matéria de autores (Praticamente. N. Ray Harryhausen ilustra novamente as aventuras de Sinbad em The Golden Voyage of Sinbad. com frequência. na frente da lista de melhores filmes do gênero. Segundo filme de Harryhausen em cores. entre 1946 e 1954. A atmosfera de um conto de «As Mil e Uma Noites» (conflito de mitologia grega!) convém perfeitamente a Harryhausen. Não menos surpreendente é o fato de que o personagem principal seja uma mulher ( o filme foi concebido para Joan Crawford). Quanto à Nicholas Ray. presente em diversos westerns do período. a qualidade da cor e da música. No entanto. Todos os personagens. Jacques Lourcelles – Dicionário de Filmes. plena do humor do cenário. em seu domínio. de Lang). Tradução: Matheus Cartaxo Johnny Guitar. longe de buscar no western uma especificidade que os cineastas de sua geração vão encontrar frequentemente no aspecto histórico ou moral do gênero. Dos antigos. este “desvio” do gênero ( que inclui também uma parábola antimaccarthysta . lírica e desencantada. mesmo os mais modestos. a vivacidade visual extraordinária dos efeitos especiais e do emprego de técnicas de animação das mais sofisticadas. parecem só ter sido compreendidos na França. 1964).B. ligadas entre si por um ódio visceral.Segundo de três filmes de Nathan Juran realizados com Ray Harryhausen (entre 20 Million Miles to Earth. Harryhausen guarda um carinho especial (cf. seu album «Film Fantasy Scrapbook». em seu lançamento. vivido como uma reminiscência. 1957 e First Men in the Moon. uma memorável interpretação (Torin Thatcer e Kathryn Grant estão excelentes). De qualquer modo. possuem um grande relevo ( vide o papel de John Carradine. já que o realizador tivera com sua estrela um caso alguns anos antes. um ciúme freudiano que se pode qualificar de único nos anais do western. para acentuar. relativos sobretudo ao cenário no qual se movem os personagens. apocalíptico de Anjo vermelho se situa em algum lugar entre Goya e Céline. Vários dentre eles servem à temática habitual do autor: um violento que tenta recalcar sua violência ( Sterling Hayden ). semelhante a uma caverna. que o sistema reproduzia mal. Ao estreitamento clássico do tempo e dos espaço se opõem um conjunto de elementos barrocos.fenômeno paradoxal num filme em cores. Os temas languianos da vingança. solidão. Anjo vermelho. Compassiva em diversas circunstâncias. barroco em si mesmo. apesar de atentos à carreira americana de Lang. nem benéfico nem maléfico. Três tipos de tempo existem no filme: o tempo da narrativa propriamente dita. A pureza impassível dos traços da heroína imprime à sua composição e a seu jogo uma poderosa fascinação. A utilização extremamente trabalhada do scope preto e branco. Rancho Notorius. aquele. falando propriamente. um personagem inteiramente condiconado por seu passado ( o que vale também para a própria atriz. Mesmo o Cahiers du Cinema. para além do Bem e do mal. o tempo dos três flash-backs que recompõem a figura mítica da aventureira Altar Keane. Ray se esforça por eliminar ao máximo o azul. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior.as tonalidades de preto e branco. E este contraste. violência. o tempo é objeto de uma utilização extremamente variada. a companhia das últimas obras-primas de Mizoguchi ( de quem ele foi assistente) até sua falência em 1971. é o único onde o cineasta integra completamente os dados do gênero a seu universo íntimo. embora ela se insira admiravelmente no cadre tradicional do western. Eles testemunham a extrema liberdade de um poeta que evolui no seio de um gênero ao mesmo tempo extremamente codificado e aberto a toda inovação. Masumura trabalhou para Daiei. O branco do robe de Joan Crawford tocando piano em seu saloon. é um elemento a mais para a fascinação e originalidade provocantes do filme. Sobre o plano formal. enfim. temos também o uso do Trucolor.de Joan Crawford). Fritz Lang Este filme sublime passa completamente desapercebido em sua saída. unindo o sexo e a morte. não lhe consagraram nenhuma crítica. entre os quais ela evolui como um espectro. que resume a longa busca de indícios empreendida por Vern. ela é um ser mais sutil: uma espécie de emanação atroz e lógica dos horrores da guerra.No plano do sentido. das sociedades secretas encontram aqui uma expressão ao mesmo tempo renovada e exótica.concentrado. notadamente nas cenas de horror coletivo ( onde centenas de feridos uivam no hospital) confere à intriga uma grandeza trágica. Jacques Lourcelles. este tempo é contudo absolutamente . mas que suscita aqui interessantes pesquisas plásticas. 1956). Dicionário de filmes. Seu personagem não é. Dietrich). Ele explora novos territórios na audácia e violência. Masumura Representante prolífico e eclético de uma certa nouvelle vague japonesa ( vide também Paixões juvenis de Ko Nakahira. Enfim. por exemplo nas cenas entre a enfermeira e o cirurgião. que foi rapidamente abandonado devido a seus defeitos. O universo paroxístico. Último dos 3 westerns de Lang. sensível também nos diálogos. Tradução: Luiz Soares Júnior.da sequência acompanhada pela baladaleitmotiv do filme. um adolescente vítima desta mesma violência que havia começado a praticá-la sem saber direito o que fazia ( Ben Cooper no papel de Tucker). O negro das roupas da multidão em fúria. uniforme, congelado, privado de projeto e liberdade: é o tempo da vingança e de um mundo reduzido às dimensões de uma obsessão e de uma idéia fixa. O espaço do filme reflete a mesma dualidade. Variado e rico no plano formal, suntuoso , pesado, exuberante, quase barroco, é também um espaço fechado, morto, que não leva a nada senão à repetição cíclica, fatal, sangrenta dos fatos que deram origem à narrativa. A morte de Altar Keane no fim é um eco, entre outros, da morte da jovem assassinada na segunda seqüência. O cenário de estúdio ultrajosamente artificial, que marca a fronteira entre o mundo exterior e o rancho, foi objeto de discussões e polêmicas entre os cinéfilos.Sem dúvida, Lang , se estivesse mais livre em relação a seus meios, teria escolhido um cenário natural. Mas tal como está, este cenário só faz reforçar, talvez de uma maneira um tanto quanto demonstrativa, a estrutura asfixiante, fechada desta história “de ódio, assassinato e vingança”, o caráter de absoluta impermeabilidade deste western pessimista e, até certo ponto, expressionista. Pesa, com efeito, sobre os personagens uma maldição mais pesada que a que resulta do pecado original nos filmes de Hitchcock. Estes personagens, quer sejam animados de boas ou más intenções, se reencontram do mesmo lado da fronteira- o mau lado. Ao longo de seu périplo, Vern Haskell pode apenas se destruir e destruir aqueles que o circundam; mas ele também não pode deixar de se vingar. Pertence a uma humanidade decaída, para a qual a noção de perdão não tem mais sentido ou mesmo existência. Ele pertence, como todos os homens, a uma raça maldita. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Madrugada da traição, Edgar Ulmer Tudo o que o cinema pode exprimir se encontra neste “pequeno” filme, meio-western, meio-filme de aventuras, de uma limpidez e riqueza de sentido que se aproxima do sublime. Em vinte e cinco anos de carreira, Ulmer teve tempo de digerir as influências mais distantes e mais fecundas ( o Kammerspiel pela expressividade dos cenários reduzidos, Murnau pela universalidade e densidade cósmicas do tema). Pressionado pelas circunstâncias, ele cultivou igualmente, até os limites da genialidade, seu sentido de economia dramática; na verdade, senso de economia em todos os sentidos. Madrugada da traição representa a súmula de sua obra, mas ao mesmo tempo é um filme tão simples, tão acessível que pode lhe servir de introdução. É uma “morality play” ( fábula de dimensão moral, anterior à Renascença), gênero tão amado por seu autor, que conta a história de um homem cheio de defeitos mas ainda maleável que entra, graças a um irmão mais velho, por um caminho no qual ele tenha talvez a chance de se aperfeiçoar. Seu mentor é um ladrão, personagem não-respeitável por excelência, mas que tem a seu favor a experiência e a lucidez.Ao contrário do jovem, este não é um falastrão e não se utiliza de “máscaras” na convivência social. Isto é apenas a trama da obra, que contém também uma parábola de diversos níveis e oferece uma série muito rica de variações sobre a errância e a vida sedentária, a dilapidação e a acumulação de bens, a exclusão, a participação,a lucidez e a hipocrisia. Toda verdade, nesta narrativa de diálogos literários e plenos de sentido, é nuançada por seu contrário. Formalmente, o filme reflete esta dualidade. Para seu segundo filme em cores ( o primeiro, Babes in Bagdad, 1952, era uma farsa onde a cor era utilizada de forma burlesca), Ulmer confere às aparências uma doçura, uma luminosidade, uma redondez, uma riqueza de pátina que poder-se-ia chamar de renoiriana ( ver com efeito sua pintura do personagem de Betta St. John). Ao mesmo tempo, através do personagem de Arthur Kennedy, o filme destila uma melancolia pungente, que facilmente se alça ao nível do trágico. O talento único do cineasta está completamente contido na primeira seqüência ( um aventureiro ajuda seu companheiro morrer). Aqui, a emoção atinge seu auge, já se mostra uma emoção de fim de filme, embora a história mal tenha começado. O grande Herschel Burke Gilbert ( Carmen jones, While the city sleeps, Beyond a reasonable doubt) compôs a música do filme. Nota: Nina e Herman Schneider: estes dois nomes nos créditos do filem durante muito tempo constiruíram um enigma para os cinéfilos. Eles são de fato o pseudônimo de Julian Harvey, roteirista posto na Lista Negra do qual o verdadeiro nome aparecerá mais tarde nos créditos de Circus World ( Henry Hathaway, 1964) e de Custer of the West ( Robert Siodmak, 1957). Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior Josey Wales, fora da lei, Eastwood A maioria dos filmes realizados por Eastwood são interessantes, e ele se revelou, desde seu primeiro filme ( Play Misty for fire, 1971) como um dos maiores metteurs em scéne americanos contemporâneos. The outlaw Josey Wales é até aqui o seu filme mais rico e bem acabado- obra marcante da década de 70. Ela possui a dupla dimensão de uma aventura individual e de um afresco cativante dando a ver, na desordem pós-Guerra Civil, o fluxo inumerável de emigrados do interior que passam de um Estado a outro, traficantes de todos os gêneros, desempregados e miseráveis improvisando expedientes para ganhar seu pão. No centro desta afresco, Josey Wales, camponês vítima da guerra, que se tornou um fora da lei lendário. Contra sua vontade, ele se encontra à frente de um pequeno grupo de losers, desclassificados, de Índios e desenraizados que obtém rapidamente, graças à vontade do metteur em scène, a simpatia infalível do público. Um tom único de crueldade e humanismo mesclados percorre este filme comovente e ao mesmo tempo despido de toda sentimentalismo. O ponto de partida da intriga apresenta uma analogia provisória com Run of the arrow ( Fuller, 1956). Desgostoso com os vencedores, um vencido da Guerra Civil se imiscui nos territórios indígenas. Mas o que era fascinação pelo impossível, tentativa suicida e tragicamente patética para mudar de identidade da parte de Rod Steiger, o herói de Fuller, torna-se em Josey Wales projeto de vingança, eliminação dos fantasmas do passado e reconversão inteiramente bem-sucedidas. É que a personalidade de Josey Wales é feita de realismo e justa apreciação do possível. Solitário na alma, individualista absoluto, buscando não se aliar a nenhum grupo racial ou social definido, ele consegue, contra sua vontade, fazer adeptos que reconhecem neste homem um companheiro seguro e um protetor. Este realismo, no entanto, só representa uma pequena parte do personagem, pois no tocante ao resto, tanto por sua força física, que beira a invulnerabilidade, quanto por sua força moral, que beira a infalibilidade, o mítico Josey Wales possui qualquer coisa de um deus. Característica habitual dos personagens encarnados por Clint Eastwood e que os faz ultrapassar os limites do racional. ( Este salto qualitativo fora do racional é o próprio tema de outro western seu, High Plains Drifter, 1973). Formalmente, Clint Eastwood observou bem seus mestres. A Sergio Leone , que o “inventou” mas que não vale um décimo dele, ele assimila esta dilatação do tempo nos momentos de violência , através qual o personagem adquire uma dimensão quase sobrenatural. De Don Siegel,ele aprendeu o gosto da meticulosidade e esta busca pela tensão que progride de forma contínua de uma sequência à outra. Estas qualidades lhe permitem dar a unidade a um filme no qual as peripécias, os personagens se assemelham a um patchwork. Eles encarnam, com efeito, os fragmentos esparsos de uma América em farrapos, que apenas poderia reconstituir e retomar seu tecido vital se assimilasse todos seus excluídos. A dramaturgia e a mise em scène do filme estão, assim como suas intenções, em busca de uma unidade perdida. Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior. No future. Fuga de Los Angeles . Escape from Los Angeles pertence à veia mais iconoclasta do cinema de Carpenter e marca seu retorno a uma forma voluntariamente mais rica, depois do rigor classicista de Village of the damned. Esta continuação do seu Escape from New York ( 1980) toma algumas distâncias em relação ao original: para utilizar a analogia de Bill Krohn sobre Scorsese, Escape from L. A. é para Escape from New York o que El Dorado é para Rio Bravo. Onde a Manhattan de New York 1997 representava uma figura alegórica, , a Los Angeles de 2013 imaginada por Carpenter se distancia pouco da realidade. Como diz Snake Plissken, o herói do filme, “the future is now”: o futuro é agora. Snake Plissken ( Kurt Russel), sobrevivente de Escape from New York, é chamado a cumprir uma missão quase similar à precedente. Este processo de retomada, de repetição, inerente a todo filme seqüência, torna-se para Caepenter uma metáfora de sua própria situação de cineasta a quem se encomenda repetir seu grande sucesso. Escape from Los Angeles retoma a estrutura de New York 1997, a da aventura picaresca, pontuada de etapas e encontros: ocasião para Carpenter de zombar dos clichês do modo de vida californiano, do culto ao corpo ao surf. Sucedem-se assim uma série de episódios irresistíveis, que conduzem Snake pelos quatro cantos da cidade: um centro cirúgico estético povoado de zumbis, uma Disneyland transformada em campo de batalha. A América mudou, portanto e, em 2013, mostra-se mais moralista e puritana que nunca. Escape from los Angeles visa à ditadura do “politicamente correto”, a fim de imaginar os seus efeitos desastrosos sobre a sociedade americana. A personagem de Snake tornase então mais que um herói de filme de ação; ele é o porta-voz de um discurso virulento, niilista que é o de Carpenter diretor: não se trata aqui de se conformar às regras arbitrárias que poderiam lhe ser impostas pelo projeto do filme. O filme pode também ser visto como um anti-Independence Day, uma vez que o medo do Outro não é simbolizado por extraterrestes maléficos, mas por uma oposição flagrante entre terceiro mundo e capitalismo. A América transformou los Angeles em centro de deportação que as nações mais desmunidas utilizam para preparar a invasão do país, graças à ajuda da filha do presidente, que se juntou aos rebeldes. Em uma das mais belas seqüências do filme, os líderes da missão suicida de Plissken projetam-lhe uma gravação em três dimensões da fuga da jovem: Snake é quase um prisioneiro da imagem, assim como já aprisionado em uma ficção à qual ele está longe de desconhecer ( être le dupe). Snake Plissken está em um “entre-deux” ( entre duas dimensões, dois mundos, no meio de), tão desgostoso da hipocrisia dos políticos conservadores quanto do oportunismo de ditadores de pacotilha. O que poderia se mostrar como uma contradição ideológica de Carpenter , ao invés disso deve ser interpretado como uma espécie de manifesto político impossível, aquele de uma sociedade ideal onde todos os indivíduos poderiam coabitar , para além das ideologias: não é por acaso que o personagem mais positivo do filme, a filha do presidente, se chama Utopia. Cineasta hawksiano ( mais pela aproximação dos temas que pelo estilo), Carpenter presta talvez homenagem aqui à poderosa mensagem de Hawks em The big sky, filme onde os indivíduos se revelam mais fortes que os modelos de sociedade de onde vieram. Em seu caminho, Plissken faz aliança com os excluídos, ladrões, vigaristas, traficantes de todos os gêneros, até um transexual especialista em guerrilha urbana. Carpenter toma deliberadamente o partido destes “perdedores”, estes losers, no fundo mais envolventes que o presidente e seus conselheiros, situados em uma base militar. Carpenter faz prova aqui de um humor negro já presente em In the Mouth of Madness ( À beira da loucura, 1995), e opta por um estilo por instantes exuberante, em total adequação com a virulência de suas intenções. Escape nos mostra um universo caótico, quase carnavalesco, nas antípodas do bom gosto e do aspecto excessivamente “suave”( lisse) das novas tecnologias do cinema de ficção científica. Los Angeles é descrita como uma espécie de corte dos milagres, anunciadora de uma nova Idade Média , prestes a se abater sobre o planeta. Escape aliás pode ser visto como uma versão moderna da Ópera dos três vintéms, com seu desfile variado de personagens ricos em cores, interpretados por atores magníficos ( Kurt Russel, Valeria Golino, Cliff Robertson, Stacy Keach e Steve Buscemi). Sem dúvida, uma das grandes forças do filme é nos tornar quase familiar esta visão de Apocalipse, como se este já estivesse às nossas portas; basta ver o admirável prólogo, que mostra a destruição de Los Angeles por um tremor de terra titânico. Os planos são filmados como arquivos, reforçados por uma voz-off feminina, quase neutra, que descreve o fim de um mundo. Carpenter consegue criar um sentimento de conivência entre o espectador e este imaginário pessimista, à maneira de Hyeronimus Bosch, no qual o filme faz pensar às vezes. Mas Escape é também uma espécie de western urbano, que progride com um ritmo regular, sem jamais se perder em demonstrações pesadas ou precipitadas. É neste equilíbrio constante entre o aspecto lúdico do gênero e o pessimismo da mensagem que Escape consegue se reconciliar com uma energia destrutiva à qual o cinema americano parecia ter renunciado. Sabia-se desde alguns anos que Carpenter estava prestes a se tornar um dos metteurs-enscène mais apaixonantes de sua geração. Sabe-se agora que ele é também um dos mais importantes. Certo, Escape from Los Angeles é talvez menos “sustentado” ( tenu) formalmente que alguns de seus últimos filmes, mas suas imagens são tão singulares e poéticas quanto: um ballet de helicópteros em plena noite, uma corrida de surf nas ruínas, uma viagem submarina nos destroços de uma cidade submersa... Os efeitos especiais, com frequência utilizados de forma exagerada nas grandes produções, servem aqui a colocar em relevo um mundo dominado pela mentira e pela ausência total de comunicação entre os seres. Nesse sentido, a cena final do filme, que repousa sobre um jogo de “faux-semblants” e de hologramas, é um modelo de inteligência e economia. Mas com os anos Carpenter tornou-se um cineasta mais grave, mais lúcido, portanto mais insolente. Snake encontra, ao longo de seu périplo, Taslima, uma jovem aventureira que o salva das garras de um espantoso agressor. Ao curso de um curto monólogo, Taslima descreve sua existência em Los Angeles , explicando que, apesar da guerra e da violência, é-se mesmo assim livre. Sob os olhos de Snake, ela se deixa subitamente matar por uma bala perdida. Cena trágica, dirigida sem pathos, e que nos confronta com qualquer coisa de fugitivo, brutal e absurdo que é simplesmente a própria vida. Esta breve sequência é o espelho do filme, de uma invenção e simplicidade prodigiosas. Saímos de Escape com o sentimento inesperado de que o cinema pode ainda ser febril, livre e jubilatório. Pois sob seus dilúvios de explosões e ruídos, penetra paradoxalmente uma força e uma imaginação extraordinárias, aquelas de um dos maiores cineastas de sua geração. Nicolas Saada sobre Fuga de Los Angeles Tradução Luiz Soares Júnior. O cinema e a memória da água [Le Grand Bleu (Imensidão Azul) de Luc Besson e Palombella Rossa de Nanni Moretti] Quando durante os anos noventa nos debruçarmos sobre as metáforas de sucesso dos anos oitenta, veremos que eram aquáticas. “Só água, só água”, dir-se-á, lembrando tudo o que, em todos os sentidos do termo, flutuava. Da cotação das moedas ao fluxo das imagens televisivas (o tema da "torneira de imagens"), do regresso olímpico da natação sincronizada à promoção da "glisse"1, e, para acabar em beleza, da liquidação (a Leste) do comunismo, sobre fundo de liquefação (a Oeste) do sujeito, é a mesma mensagem que passa: o indivíduo novo, esse anti-herói das sociedades democráticas massificadas, esse "átomo flutuante esvaziado pela circulação dos modelos e por isso continuamente reciclável" (Lipovetsky) é, fundamentalmente, alguém que tem de saber nadar. Como de resto fazer de outro modo num mundo onde um Baudrillard, de longe o melhor jornalista da década, lhe descreveu freqüentemente a “ultra-fluidez”. Mas as metáforas populares (“ça baigne”2) dizem também o espanto de não ir ao fundo, e, apesar da água engolida, a euforia resignada de se manter, graças a alguns movimentos limitados, à tona de água, longe das praias e das pedras da calçada dos anos setenta. A cultura, doravante, merece a designação de “caldo”, é aí que a mercadoria flutua como uma rainha e a sopa (não apenas a Campbell de Andy Warhol) tem mais comerciantes do que nunca.Como é que o cinema terá sobrenadado neste caldo? Não muito bem. Duas “histórias”, no entanto, a de um mergulhador em apnéia apolítica e a de um jogador de pólo aquático comunista, terão marcado estes últimos anos. Uma, a do Grand Bleu (1988), terá tido um sucesso meteórico junto do que resta do grande público e a outra, a de Palombella Rossa (1989), terá permitido aos que ainda precisam de cinema contarem quantos eram3.Os dois filmes não têm nada em comum a não ser o facto de falarem de formas muito diferentes da mesma coisa. Nos dois casos, há um herói aquático e sedutor, um “banho” ao qual o primeiro escapa “afundando-se” e o segundo ocupando a superfície. Nos dois casos existe uma dificuldade de comunicar que torna o primeiro quase afásico e o segundo doente da linguagem. Do lado de Édipo, o papá está no fundo do oceano e a mamã à beira da piscina, não há mulheres nem ligação sexual e, mesmo quanto às relações com outros homens, apenas uma ligação distante com a competição. Um é imbatível, o outro é um derrotado-nato, mas cada um deles tem apenas um “outro” a dominar que é ele próprio. Estes heróis, confrontados com o que Eric Conan chamava aqui mesmo o “grau zero da alteridade”, são bem do nosso tempo. Desde a sua saída, Le Grand Bleu incomodou os profissionais da cinefilia. Demasiado inconsistente do ponto de vista estético, o filme tornou-se esta coisa triste: um fenômeno social. Não é portanto o fenômeno que foi analisado mas sim o que revelava do seu público jovem que, radiante, o via, a ele, dez vezes4. Ora Le Grand Bleu não é, como Jean de Florette ou Camille Claudel, o lifting acadêmico de um cinema cujo prazo acabou há muito, nem um enorme sintoma cujas falhas estéticas obrigam a abandoná-lo aos sociólogos. Se deu a tal ponto a sensação de “acertar” foi precisamente porque tinha qualquer coisa a ver com a estética. A única questão é saber se se trata ainda da do cinema. Voltemos à água e mergulhemos mais à frente. O que é desarmante em Le Grand Bleu é a forma como Besson parece contentar-se com o look que o mar há muito tempo tem em todo e qualquer spot publicitário (lembremo-nos do aterrorizador UltraBrite). Menos por inaptidão a filmá-lo do que porque o mar, para ele, é isso: um “grande azul” de síntese no qual se “hidrodesliza” sem fazer ondas. Enquanto que Beneix tem ainda um super-ego de artista que o faz sofrer imenso, Besson já utiliza a roupagem do cinema para produzir esses “seres de síntese” que são os indivíduos pós-modernos. É, neste sentido, o primeiro verdadeiro cineasta pós-publicitário, aquele que herda em completa inocência todos os “conceitos visuais” da publicidade e que, por isso, já não sofre com não ser “pessoal” e com alinhar apenas “lugares comuns”. É verdade que rodar um filme continua a ser uma aventura e um desafio desportivos, mas já não é uma aventura do olhar. A água é lisa e o seu fundo está vazio: já não há nada para ver5.O que é que nos diz a publicidade? Que as coisas já foram olhadas, que os olhares são com o jornalismo. para declarar guerra ao Mal (do clip antidroga ao negócio da telecaridade) e a unificar o público do lado do “lado bom”. Le Grand Bleu não representa forçosamente uma enésima “nova vaga” na história do cinema francês. espera-se). novas vagas). fora da linguagem. O início dos anos oitenta terá visto a legitimação cultural e depois estética da publicidade. É. É perfeitamente possível imaginar que o parque de salas de cinema só possa ser “salvo” do naufrágio por produtos audiovisuais como este (nem filmes de autor nem filmes de produtor. É do fundo do oceano que. não se “afunda” (flutua). Resposta minoritária porque o “cinema” passou doravante para a minoria (ativa. Esta água já não mitológica mas social. o laço social é agora um efeito de superfícies e. jogador e jogado. surgiu o elo que faltava. Pequeno celacanto botticelliano. também ele. O filme de Besson “acerta” porque propõe a um vasto público o espetáculo de um indivíduo autônomo. Palombella Rossa é. Neste aspecto é o contemporâneo exato do actual vitalismo ecológico. O erro seria pensar que estes produtos não têm conteúdo nem estética. dos dois. mas filmes de “promautores”). para o fazer. com a política. a água sobrepovoada de uma piscina onde se ajusta ao mesmo tempo um grande número de contas: com a infância. também eles. É com tudo isto na cabeça que é preciso repetir.Le Grand Bleu (com uma candura muitas vezes tocante que o astuto Ours [O Urso] de facto não tem) deriva desta fabricação. estorvante e estorvado. de interfaces. com a memória. um italiano (ou mesmo uns peruanos). o “corpo” de síntese dos cavaleiros brancos. mas pertence também àquela outra tradição que – de Keaton a Tati – renunciou a salvar o mundo. falante e falado. O indivíduo contemporâneo já não é pensável através das velhas categorias de “pessoa” (pós-guerra. num certo sentido. Se os indivíduos animais têm. “direitos”. que Palombella Rossa é um grande filme e Nanni Moretti o mais precioso dos cineastas. com o cinema. têm certamente o de serem mitologicamente pais dos indivíduos humanos. durante muito tempo estimulante ainda que turva. uma mulher. Besson sabe de uma vez por todas com que se parece um mar. ter-se-á começado a assistir à sua aplicação propagandista. para surpresa geral. fazer-nos admitir que a vizinhança. fora do sexo. pela boa razão que o mundo. o filme “superficial” que é mais profundo porque vivemos num mundo onde este todo que é privado aflora à superfície e se torna “público” (a publicidade é precisamente o agente estético e econômico deste “afloramento”). ao passo que o de Moretti “visa com verdade” porque fala a um público modesto de um indivíduo plural. nem esse elemento gag onde se cai facilmente com um grande pluf: é o habitat doravante natural das sociedades . Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade demasiado forte. Com um robô sedutor. um golfinho. com a última energia. um mergulhador. Onde a fundação mitológica exigia um efeito de profundidade. quer dizer. novamente. simpático e regenerado. por seu turno.Voltemos então à água e mergulhemos de novo. neo-realismo) ou de “sujeito” (pós-1968. cada vez mais. entre “cinema” e “publicidade” não tem já talvez razão de ser. exige. O interesse do Grand Bleu é. um mito fundador e é lógico que este. o mergulhador órfão tem como pai essa coisa simpaticamente lisa que é o golfinho.É verdade que Moretti pertence à família dos cômicos que – de Chaplin a Jerry Lewis – tomam tudo (e tudo é demais) a “seu cargo”. Por mais que custe aos media. E a fabricar. com as palavras. programado para efetuar um único movimento. fora do desejo. A água de Palombella Rossa não é nem a grande coisa amniótica de que se sai como de uma câmara de descompressão. insuportavelmente ligado aos outros. um autômato auto-legitimado. São os cânones publicitários que servem doravante para tratar os “grandes temas”. Tal como sabe intuitivamente com que se parecerá o “herói” do individualismo democrático massificado: com um corpo sem órgãos. Mas no fim desta mesma década.arquivados e que o mundo é já visto. situados a meio-caminho entre a Disneylândia americana e os “sons et lumières” da cultura européia reciclada. a resposta do cinema ao audiovisual. tenha algo a ver com a água. pelo contrário. com a outra equipa. Cada um em suspenso. ao mesmo tempo. Nikita. como arte de apagar o adversário).. o movimento reconquistado e a liberdade da cria humana (que não tem nada a ver com a autonomia do mergulhador publicitário). onde rosna a guerra econômica. móvel e deslizante? Da água bessoniana surge um mutante demasiado liso e um autômato demasiado perfeito para não inquietar. parece dizer Moretti. pp.“É aqui que estamos”. Custar-lhe-á. O cinema está aqui. o ski. A cena era sublime porque.No seu filme precedente (La Messa è finita). nem do cinema. a aplicação das leis de mercado a todas as esferas da atividade humana e a difícil “subjetivação” de um indivíduo multifacetado. estava nos antípodas do que caracteriza o mergulho em apnéia: reter o fôlego. Lyon. Porque flutuar ainda é trabalho. information (1988-1991). Aléas Editeur. podemos ver nesta necessidade de “criar vazio” uma vontade bem firme de não herdar nada. télévision. Besson inventa uma curiosa personagem. 161-165. Ele atravessa portanto o filme como um exaltado. (NdT)3 Estranho sentimento. 29 de Dezembro de 1989. à saída do filme. um certo desejo asfixiante de dizer tudo. Notas 1 Denominação reunindo esportes que implicam deslizar. Serge Daney. Di-lo a crianças que não confundem as gesticulações dos mortos na televisão ou dos filmes gore com a morte. esse desporto onde se nada menos do que se flutua. apetece acrescentar. Texto recolhido em Devant la recrudescence des vols de sacs à main. (NdT)2 Está tudo a correr bem. Moretti filmava como David Hockney soube pintar: a materialidade da água. .desreguladas. A função do Limpador é fazer de modo a que não sobre rigorosamente nenhum rasto material de uma operação de espionagem que acabe mal. 4 O psicanalista Jean-Jacques Moskowitz confiava ao autor que o seu jovem filho não parava de ver e rever o filme para o compreender melhor. Na água morettiana é toda uma população (italiana.. como o surf. Mas o que é que há de tão difícil de compreender nesta história tão simples? A resposta pode ser esta: Le Grand Bleu diz que a morte existe. dos interfaces cintilantes e dos encontros aleatórios (o “drible” como figura do laço social. Nem do mundo. “à antiga”. Libération. com o seu banho de ácido debaixo do braço. louvava a nova fórmula dos Cahiers du Cinéma: “já não nos masturbamos”. das economias e das atenções flutuantes. Do mesmo modo. à imagem do pólo aquático. não respirar mais. certamente enganador mas talvez mais “forte”7. à força de idas e vindas. Podemos ver no Limpador um herdeiro dos “Senhores Limpinhos” da publicidade. 6 Alusão furiosa à campanha publicitária que. Sentimo-nos de novo prontos a zangarmo-nos com o nosso melhor amigo caso ele não gostasse de Palombella Rossa. aquela cujo espectáculo lhes é cada vez mais cuidadosamente escondido. o snowboard. européia) que se agita entre a nostalgia da História e a fuga em frente. Sociedade dos Poetas Mortos. 1991. E. outro filme-culto para os adolescentes. nos interstícios do social. custe embora a alguns. A ponto de passar por cima dos defeitos que o filme tem: um certo voluntarismo teórico. na mesma altura. ele próprio nadador. “se masturba”6 enquanto desliza. a ideia democrática triunfa sob os nossos olhos (“cosa significa oggi essere communista?”). à falta de combatentes. de um regresso de cinefilia grupal. interpretada por Jean Réno e chamada “o Limpador”. Mais forte porque poroso. É hoje o nosso único fio condutor e a nossa única memória neste banho pós-moderno onde. 5 Isto ainda vai mais longe. Daí os gags anatômicos bastante divertidos. Não irá mais além. — cinéma. A cena “respirava”. começa com uma cena onde é significado aos alunos que morrerão um dia. Moretti filmava um rapaz muito novo que não se cansava de atravessar a piscina de um lado ao outro: não o filho do golfinho que regressa do fundo matricial mas o pequeno peixe (pescellino) que. No seu terceiro filme. a verdadeira. Jacques Lourcelles Dicionário de Filmes. fosse embora ao preço de uma certa mediocridade e de uma desqualificação progressiva do sagrado (pela secularização). sob os efeitos conjugados de sua lucidez e de uma vontade perversa de agir e de triunfar. Tradução: Luiz Soares Júnior.7 É evidentemente a questão central da época e nada seria mais temerário do que responder aqui. o apagamento dos referentes não permitirão a uma sociedade de indivíduos resistir mais eficazmente a tudo o que a ameaça. seu conteúdo emocional e moral. ele não se deixou desanimar pelo insucesso monumental de Santa Joana. A história de Bom dia tristeza é a de um paraíso perdido para sempre para a heroína. Raoul Walsh . Bom dia tristeza é. do universo livre e descuidado da adolescência e de sua conivência com seu pai. Junta-se a isso um desejo mais secreto de imobilizar o tempo a seu belprazer. Não é o único. um filme tanto de artista plástico quanto de dramaturgo. A fim de bem demarcar a dupla natureza. Preminger rodou em preto e branco as sequências atinentes ao presente da ação. ainda mais nitidamente que os outros filmes de Preminger. Ele projeta a heroína e o filme em uma espécie de eternidade gélida. 1953. Bom dia tristeza. sem dúvida irremediavelmente. todas as outras relações que possam unir dois seres. É o único onde o autor deu a um tema pequeno. apesar de excitante para o espectador. mas terá por isso razão? Os apoiantes do “pensamento fraco” (do pensiero debole segundo Vattimo) não terão razão? A circulação dos significantes. Os dois tipos de sequência ( o passado em cores. de caráter intimista e trágico ( caráter este que figura em geral na primeira parte de sua obra). onde a narradora revê e retoma indefinidamente uma história que a fez sair . Objective Burma!. pois ele orienta ao mesmo tempo sua estrutura. a natureza um pouco híbrida do filme. Angel face.os rostos. do trágico (pelo “segundo grau”). Uma influência discreta da pintura abstrata (que Preminger adorava colecionar) faz-se presente na mise-en-scéne do filme. os atributos – o scope. e retomou a parceria com a atriz que descobrira.de Jean Seberg se entrecortam. O autor sente bem que faz parte daqueles a quem a porosidade do social pós-industrial mergulha numa certa soturnidade. já que a intriga do romance se assemelha muito à de um de seus primeiros filmes. o filme ocupa um lugar à parte na obra de Preminger. Cécile procura prolongar até os limites da saciedade o conforto de uma célula familiar reduzida à sua mais simples expressão. Jean Seberg. da arte (pelo mercado da arte) ou mesmo da cultura (pelo turismo)? Os “roubos de malas de mão” serão um mal menor? E o “fim da história” não será apenas o começo das aventuras do “mal menor”? Vertiginoso. O rosto. a flutuação dos significados. ao sabor das sequências. segundo uma dinâmica plástica que ressona tanto sobre o caráter único e autônomo de cada sequência quanto sobre a adesão e confrontação contrastadas das mesmas no conjunto da narrativa. com uma perfeição interdita. Preminger No interstício entre dois períodos. a corque ele reserva com frequência ao tratamento dos grandes temas políticos e sociais. aquela de uma relação pai-filha que inclui em si mesma. uma carreira que desejaríamos ter sido mais rica e mais feliz). sobre fundos unitários e coloridos. Ele descobriu e forjou em Seberg uma personalidade física. Sendo a obstinação uma de suas virtudes principais. A intenção de Preminger de adaptar o romance de Sagan não deve surpreender. o presente em preto e branco) são unificados por um comentário em off muito importante no filme. um talento inteiramente novo e fascinante ( Santa Joana e Bom dia tristeza foram os únicos grandes filmes de Jean Seberg. na solidariedade profunda. pôde captar o instante com um imenso recuo. outra de realismo ( uma parte igualmente de sobrenatural cósmico. a urgência. Embora demarque cada personagem com características próprias. desânimo ou a uma renovação de esperança e energia. foi frequentemente amputado. Jacques Lourcelles Tradução: Luiz Soares Júnior. Uma parte de esperança. tudo nela jorra e se transforma alegremente em seu . Excelente restituição da foto de James Wong Howe. atinge imediatamente ao intemporal. Ver-se-á esta obra em cinqüenta anos com a mesma admiração que ela inspira hoje. À beira do mar azul guarda ainda um pé no mudo e permite aos personagens se exprimir ora pelo silêncio. o emprego dos closes e dos planos gerais. reações imunitárias contra os riscos de destruição interna e reações de agressividade contra o inimigo externo. realizada com urgência” ( à chaud) em um contexto e com fins militares precisos. tanto por vontade própria quanto por necessidade visceral de sobrevivência. das diversas atitudes dos soldados confrontados à fadiga. é o espelho destas intenções. original legendada ( sob o título Objective burma!). e mais que em germe. ora pelo canto. nervosismo ou ansiedade dos pára-quedistas antes do salto. Com uma espantosa sobriedade ( e que contrasta com o tom um tanto pomposo dos filmes de guerra da época). pintor e poeta épico. tangível dos membros da equipe e de seu chefe. e conferir a uma página da História imediata os acentos da Eternidade.a descrição analítica e sintética da realidade. em ambos os casos.Uma das grandes obras-primas de Walsh e a obra-prima do filme de guerra americano (com The naked and the dead do próprio Walsh e Merril’s Marauders de Fuller). O jogo interpretativo de Flyn. sensível na maneira de filmar e de apreender a Natureza) animam também esta obra onde Walsh. Walsh opera uma síntese da realidade que engloba todos os seus aspectos. Cada homem. Nota: O filme.Quer se trate das múltiplas atividades do campo interrompidas pelo anúncio de um briefing em certa hora. O vídeo comercial Warner Home vídeo apresenta a duração original do filme em v. a coragem suscitam. em seus diversos relançamentos. Ele quer mostrar também que. O filme não esconde que é a descrição de uma vitória ainda não totalmente conquistada. da calma. É aqui o triunfo absoluto da arte clássica. ao perigo. o “subentendido” ( litote) e o espetacular se harmonizam com perfeição e dão lugar a uma obra que. Walsh mostranos esta vitória em germe. se funde no grupo e no processo da ação a realizar. Em dois filmes precedentes com Errol Flyn. ele intenta testemunhar que o perigo. À beira do mar azul. sem privilegiar artificialmente nenhum. Obra dionisíaca. estas reações são suficientemente poderosas para obterem a vitória. dando uma visão global desta ação e da atitude física e mental dos combatentes. ora pela palavra ( poucas palavras). na célula sã que ele escolheu para examinar. a vontade de sobrevivência. No coração do combate levado por seu país. O filme é fascinante pelo gênio com o qual Walsh decompõe constantemente as diferentes fases de uma ação. Walsh foge do pitoresco fordiano. do próprio salto. assim como destas observações neuróticas que abundam nos filmes de guerra hollywoodianos dos anos 50. Primeiro filme falado do realizador. graças a seus talentos de cronista. onde o concreto e o abstrato. a fim de recompô-las quase em seguida. como uma ocasião insólita e inesperada de redenção individual ( Uncertain Glory). Barnet 1935 Soberbo pedaço de poesia do mais inspirado e “artista” dos cineastas russos. sem arabescos nem ironia. Ele a mostra em Objective Burma! como uma aventura coletiva grave e que mobiliza de todas as energias. Walsh havia pintado a Guerra como um jogo (Desperate Journey). as diversas reações dos que as realizam. felicidade e reconhecimento para com a vida. Pois não há obra mais original. tanto àquele que conta a história quanto ao que a escuta. Estes últimos são pobres diabos desprovidos de tudo. Na Universal dos anos 40. foi quantitativamente pouco importante. em uma narrativa não-fantástica. entrecortada. A crítica russa da época foi violenta ( vide os documentos reunidos na excelente publicação do Festival de Locarno. imponderáveis. mais livre de todos os cânones estéticos e ideológicos. fantasistas e coloridos. John Rawlins. tão raramente lúcida. no que é sem dúvida o melhor filme de sua carreira. As aventuras de Hadji representa uma tentativa de certa forma única. Boris Barnet. de A star is born a The Chapman Report) foi realmente determinante. esta corrente deu lugar por exemplo a todo tipo de narrativas espetaculares para a apreciação das crianças. seu artifício. Don Weis. ou Ali Baba e os quarenta ladrões. A quem se interessasse por abordar o imenso continente cinematográfico russo. o célebre fotógrafo George Hoyningen-Huene ( colaborador de Cukor em todos os seus filmes em cores. a dimensão adulta. Don Weis permite ao espectador respirar o ar da grande aventura. os personagens dão-nos a impressão de viverem uma grande aventura. com efeito. mais intimamente próxima do seu autor e mais de acordo com esta infinita vitalidade cósmica do universo que os melhores filmes russos sempre tentaram restituir. seu formalismo. um distante primo de Fabrício Del Dongo. favorecido por efeitos especiais especialmente atraentes ( A sétima viagem de Sinbad. Situado entre estes dois períodos. espécies de clowns próximos dos heróis de Gosho ou de Jacques Rozier. Um dos críticos ( Herrman Khokholov) lamenta que o mar constitua de qualquer maneira o personagem principal do filme”. devido ao interesse equilibrado que o autor dispensa às paisagens e aos personagens. na verdade ( tout court). A maioria das sequências utiliza uma montagem curta. Desprovido de mensagemn política. uma certa insolência é aqui necessária . Don Weiss 1954 No cinema hollywoodiano do pós-guerra. e no entanto dão verdadeiras lições de vida. Nathan Juran. na beleza elegante de seus intérpretes: soberbas Elaine Stewart e Rosemarie Bowe. 1944). falta de imaginação. o conto oriental reencontra seu caráter fantástico. sabiamente abstratos . O leve sorriso do contador de histórias também acrescenta constantemente a nota irônica sem a qual uma obra deste gênero seria incompleta. 1985). ingenuidade. a corrente do filme de aventuras orientais. mas que ao fim possui uma grande amplidão lírica. Jacques Lourcelles. e.contrário. ignora como sempre este filme. Reprovou-se sobretudo seu vazio. O filme manifesta. aliás com freqüência improvisados no estúdio. Tradução: Luiz Soares Júnior. A intriga é composta por eventos minúsculos. 1942. purificada tanto de toda grandiloqüência quanto destas facilidades burlescas que são frequentemente pecados do gênero. Com muita arte e leveza. no entanto.um refinamento simplesmente. John Derek não está mal também. adaptadas menos ou mais das Mil e uma noites.absolutamente extraordinário. mas ele lamenta que “este personagem não possua nenhuma simpatia particular”. o filme transmite uma mensagem de alegria. demonstra um refinamento plástico. de uma perfeita unidade de estilo. nos figurinos. Nota: A Crítica americana. mas se ilustra por tendências variadas. elegante e discretamente erótica do conto oriental. 1958). uma soberba qualidade em todos os seus níveis: na natureza luxuriante dos cenários. As aventuras de Hadji. que ela .de valorizar.ao menos por sua qualidade. onde a contribuição do “color consultant”. Arthur Lubin. não haveria melhor conselho a dar que o de começar por À beira do mar azul. o que em certo sentido não é falso. No fim dos anos 50. onde a inovação recente da cor foi particularmente valorizada ( Arabian nights. que nos informa onde estão o possível e o impossível. Como se o mundo não passasse de um imenso repertório de lições de coisas. uma verdade a pôr em evidência. uma ordem a descobrir. logo.ou seja: encarnada. melhor assimilado por eles. A mesma coisa com os personagens: para que lhes seja consentido “ver” alguma coisa. Fritz Lang A opressão exercida em 1941 pelos nazistas sobre Praga e a resistência de seus habitantes são o assunto desse filme realizado em 1942 por Fritz Lang. No Signo do leão. longe de excluir os tempos mortos e os detalhes. ou seja: ela. a beleza de um raciocínio e o caráter inelutável de toda experiência. buscando esgotar o primeiro. onde Rohmer reencontra a paixão da precisão. graças ao cinema. só que num registro menos grave em La Boulangère de Monceau. para que nasça a emoção mais simples. Bosley Crowther. o ódio do “flou” e da entropia. 1966 Tradução: Luiz Soares Júnior. tudo o que pode oferecer esta resistência impessoal que torna as aventuras humanas mais exemplares. por Serge Daney Primeira qualidade do cinema de Rohmer: a paciência. e ainda menos privilegiado. as pedras.uma lição a merecer. pois nascida unicamente da exatidão. repertório este do qual nunca se fez realmente o inventário. Eric Rohmer. muitos escrúpulos e meticulosidade. Esta lenta maturação constituirá o próprio tempo do filme. aprender a ver. Os carrascos também morrem. A experiência é para Rohmer um pouco o que foi para Hawks: a única realidade. Tradução: Luiz Soares Júnior. é-lhes necessário um périplo. o crítico do The New York Times. apenas será possível por meio destes. em particular dos Mac-Mahonistas. A ficção. recusando o segundo. O filme deveu sua reputação apenas à clarividência de certos cinéfilos franceses . É justamente o contrário que ocorre com os filmes pedagógicos. ambas as atitudes são. A experiência exige a maior honestidade possível.deveria incensar. Jacques Lourcelles. uma única e mesma coisa. Nos Cabinets de physique au XVIII siècle.não existe. O princípio é simples então: catapultar idéias contra experiências. A música é de Hanns Eisler e a foto é de James Wong Howe. é-lhe suficiente filmar uma experiência de Física. gerir seus efeitos. observar escrupulosamente e ver o que resulta daí. O primeiro olhar não ensina nada. que é talvez sua obra-prima. Mas também em uma obra onde tudo nos leva a esta virtude primordial: saber esperar. Dictionnaire du cinema.como um dos “grandes” do jovem cinema francês. contudo. Éditions universitaires. Toda idéia que não foi experimentada. nada é sublinhado. as cidades. Mas há por detrás da neutralidade das aparências – em Rohmer. A mesma situação.ao termo de um longa-metragem e de alguns filmes pedagógicos. fotógrafo de Sua Única Saída e Um Punhado de Bravos de Raoul Walsh que . revela seu obsceno mau gosto ao declarar que preferia Bob Hope no papel de John Derek. é sempre uma fraude. os mapas. Não somente no caso de um homem seguro de si o suficiente para se impor. a ver melhor. uma iniciação. uma prova ao termo da qual eles terão merecido o que já possuíam. passo a passo. é preciso merecer a riqueza por meio de um teste de pobreza que o obriga a redescobrir tudo. adaptado de um roteiro original de Bertolt Brecht. E a mais estranha também. é preciso dissimular. Mas Rohmer é o cineasta assombrado pela geografia. filmada. mas que deveria tornar-se mais interior ( devenir plus intérieur). » Um policial não se expressaria de outra forma e exigiria: a verdade deve ser estabelecida com exatidão. que exponha as implicações sociais. até 1942. quais são as qualidades requisitadas? Uma boa memória e um exercício razoável dos sentidos. Um plano mal iluminado é imediatamente esvaziado de seu sangue.. Após sua chegada nos E. a mise en scène de Lang. Da mesma forma. Carrascos não é mais que uma visão um pouco mais exata das coisas. que a cada momento precisa onde está a responsabilidade de cada personagem. o diálogo de Brecht. elimina todo o mistério e precipita a ação. janeiro de 1962 Tradução: Bruno Andrade. A situação de um grande filme é sempre de ir contra a cegueira de seus contemporâneos. sentimentais. Da mesma forma. Edward Cronjager e Arthur Miller. representa uma colaboração entre Lang e Wong Howe. Eis um desejo que é ao mesmo tempo o mais humilde e o mais pungente. Lembremonos de Joseph Losey falando de Bertolt Brecht: « A verdade não é absoluta mas ela é precisa. Insistiremos portanto quanto ao fato de que Carrascos. Quem são esses e como reconhecer suas vozes. em Carrascos e em outros filmes. foram. ao menos elas estão longe de lhes serem alheias (o crítico brechtiano Louis Marcorelles escreveu o contrário) e até mesmo se reencontram no que tange essa questão. Bernard Présence du Cinéma n° 10. entre os primeiros filmes americanos de grande importância. Ora. são brutais. Nós somos portanto persuadidos que se. estudaremos. ou « La Corrida » de Michel Déon. Trata-se de fazer com que a verdade se instaure sobre uma questão. a coragem também de ler meu livro. basta se ter refletido pouco sobre o que deve ser e o que pode ser a mise en scène para se pressentir a necessidade dessa brutalidade. na linha das produções Gainsborough. sexuais e familiares. pois apenas o trabalho conta (o trabalho do artesão e do técnico).. econômicas. Carrascos prova a que ponto os problemas de luz são integrados à mise en scène. « Bon pied bon œil » de Roger Vailland. dos impulsos e dos sentimentos. Espetáculo excepcional e todavia natural a quaisquer uns. The Gipsy and the Gentleman. é necessário citar Georges Bataille: « Se você tiver a paciência. .A. a questão está alhures. Marc C. de uma maneira geral. Joseph Losey 1957 Terceiro longa-metragem de Losey em seu exílio londrino. soluções para problemas políticos procedentes de uma sabedoria tradicional. de uma colaboração íntima em vista das metas a se alcançar. é se engajar na brutalidade em relação a si mesmo e ao mundo. as intenções de Fritz Lang não coincidem inteiramente com as de Bertolt Brecht. mas encontraremos igualmente essa afirmação: que o ato sexual é no tempo aquilo que o tigre é no espaço » Para concluir. diretores de fotografia de seus filmes: Joseph Ruttenberg. Aqueles que conhecem a foto de Wong Howe para A Embriaguez do Sucesso (The Sweet Smell of Success) de Alexander Mackendrick sabem que ela permite imagens de uma grande brutalidade. George Barnes.. Nesse sentido. e como eles podem estimular a força dessa mise en scène.estão. Este filme extravagante e barroco. não é falso crer que o talento ou o gênio não existem. A superioridade de Wong Howe determina diretamente uma melhor expressão das intenções de Lang. Charles Lang Jr. Como alcançar a mise en scène de Carrascos e a de O Tigre de Bengala. diremos que a brutalidade é um método e a própria honestidade. Leon Shamroy. tipo The man in grey e The Wicket lady. conforme as regras de uma razão que não descansa. elimina todo o mistério e precipita a ação. Não existe a possibilidade de um trabalho completo sobre um ator fora de uma certa comunhão de idéias entre o realizador e o fotógrafo. Visto que tudo está no método. Todos os grandes romances. isto quer dizer que se propague. de consagrar a duração do espetáculo à exposição dos fatos. encenar. Durante cento e trinta minutos de projeção. Daí o caráter próprio a cada filme de Lang como a cada filme de Losey de ser teatral.U. junto a Os Carrascos Também Morrem. Em suma. amor este que conduzirá à sua recíproca destruição. resultado ao mesmo tempo da situação de uma classe na sociedade e da evolução individual de um personagem pertencente a esta classe (aqui. Em seguida. No entanto. e sem dúvida precipitadamente. passividade e uma espécie de maldição social os impede de participar. a ópera é a referência estética maior que acompanha suas trajetórias. Jacques Lourcelles. A partir da segunda parte. São os representantes impotentes mas lúcidos de um mundo prestes a desaparecer. Gipsy tem tantas qualidades que pode-se mesmo chegar a considerar que é o último “verdadeiro” filme de Losey. sem dúvida pela última vez. ele arrefece um pouco para readquirir vigor ao final. tal como exigido pela intriga. um pretexto para arabescos e figuras de retórica mais ou menos vãs. é um pontos altos de sua obra menos conhecidos e mal amados. A decadência. que se entediou com o filme.ambos de Leslie Arliss. Construído desde o princípio. em razão das péssimas condições de filmagem (desentendimento com o produtor Maurice Cowan. em curtas seqüências secas e incisivas. cortes prejudiciais praticados pela produção após este abandono). uma atração mórbida pela destruição. abandono do filme antes do mixagem e a montagem final. bem o sabemos. Mas em seu conjunto. (Ver por exemplo a cena. desejava fazer de seu primeiro filme de época uma narrativa de caráter walshiano (veine walshienne). que constitui um dos mais belos finais da história do cinema. Visconti pousa sobre seus personagens um olhar . o equilíbrio psicológico e moral de um indivíduo. A intriga de Senso mostra o naufrágio de dois personagens em seu amor. seu talento mais autêntico e precioso. pelo naufrágio e pela morte. de uma secreta oposição ao fascismo nos últimos anos do regime (e do qual Malombra é o filmechave). Poder-se-ia mesmo afirmar que se trata do único filme “caligrafista” (calligraphique) italiano em cores. Mal amado em primeiro lugar pelo próprio Losey. Toda sua aventura se desenrola “à parte” (à coté) da História. como será o caso frequentemente nas obras ulteriores de Losey. o seu verdadeiro universo de artista. muito mais que o neo-realismo. mas ela age à semelhança de um réquiem. todas as seqüências caracterizadas pela irrupção de um elemento violento na ação e pela valorização deste elemento na dimensão plástica do filme atingem o gênio: a atmosfera do filme eleva-se em grau na tensão. Certo. e eis a razão pela qual aqui é difícil falar-se em melodrama ou de ópera. aquele em todo caso onde se exprime. sua vontade de viver vão se abismar com ele em uma vertigem. elegância e fascinação trágicas. Tradução: Luiz Soares Júnior. é designada por Losey como o momento a partir do qual os fortes tornam-se fracos e são incapazes neste estado de sobrepujar influências que em outros tempos eles teriam rejeitado ou digerido sem nenhuma dificuldade. no entanto pouco importante na economia geral da história. O tema da decadência aparece pela primeira vez claramente na obra de Losey (encontraremos as premissas em Time without pity) e se inscreve concretamente nos aspectos visuais e dramáticos do filme. A decadência não é um tema de discurso. no seu desenrolar a narrativa não consegue acelerar o ritmo. Gipsy não consegue evitar certos defeitos de ritmo. mal amado pelo público inglês. da qual sua fraqueza. O positivo está morto neles. Paul Deverill). Sedução da Carne. seu gosto do risco. Em particular. Eles são um para o outro sua prisão e seu carrasco. da vandalização da propriedade pelo cigano selvagem). segundo disse. do qual o lirismo gélido e fúnebre não nos permite experimentar por eles a menor piedade. o projeto não havia começado mal: foi na época o maior orçamento de Losey que. Visconti retorna a este movimento estético e a esta inspiração nascidas. Luchino Visconti 1954 A breve novela de Camilo Boito (1883) forneceu a Visconti a matéria de seu melhor filme e de uma das obras-primas do cinema italiano. Eles constituem. A partir deste ponto. qualificado por eles mesmos como triste e vergonhoso. 1943 e 45. começará para Lang a fase mais errática de sua carreira.Depois ele parava. Sob o plano estético. Visconti teve de suprimir algumas cenas. permite aqui justificar sem artifício a confusão. Ele se embrenhou pouco a pouco no academicismo e. A psicanálise. descreve-os em longas cenas anti-dinâmicas onde abundam os planos gerais. muito jovem. Contudo. Vejam a descrição dada por ele nos Cahiers du Cinema (número 93) a respeito da seqüência que ele havia filmado para terminar o filme. comparado ao rigor e à plenitude estética deste filme. serve sobretudo de suporte concreto à revelação da obsessão criminal do herói. mas não reencontrou jamais o gênio que manifesta aqui. é apenas um “pensum” extremamente cansativo. É sob pressão que ele filma. Walter Wanger . e o fim mostrava um pequeno soldado austríaco.. foi-lhe proibido chamar o filme de Custoza. “Somos todos filhos de Caim”. (Diana era o nome da filha de Bennett e de seu primeiro marido). Visconti foi sem dúvida mais livre. mas assombrado pela idéia do crime. Ele a filmou no castelo Santo Ângelo em Roma e não em Verona. o “ponto de vista de Fabrício”. mais barroco . esta frase poderia ser posta como princípio em todos os filmes de Lang. Nos vinte anos que se seguiram a Senso. que a equipe já tinha deixado para trás. Ele acresceu ao filme alguns dos planos mais significativos do estilo de Visconti. O fato de o personagem não ser um criminoso literal. Aldo morreu em um acidente de automóvel no decorrer das filmagens. Estes últimos figuram entre os mais belos de um gênero que o cinema hesitava na época tratar em cores.frio e distanciado. Na parte consagrada à batalha de Custoza. mais cheio de poesia de todos os seus filmes americanos. mas o que conhecemos é perfeitamente lógico e admirável. evidentemente. plásticamente soberba. O segredo da Porta Fechada. diz o personagem interpretado por Redgrave quando de seu processo imaginário. e Alida Valli prolonga com uma coerência profunda o papel que desempenhara no Piccolo mondo Antico. O mesmo refinamento caracteriza as cenas intimistas do filme e os “tableaux” de guerra. Depois do fracasso deste filme e do fim da Diana. no máximo 16 anos. Lang era intimamente convencido de que cada homem é um criminoso em . que se liga de maneira central ao universo languiano. a morte de Mahler. Nota: o diretor de fotografia G. das quais a ausência prejudica a clareza da narração (exemplo: aquela em que Ussoni recusa a seus partidários o apoio às tropas regulares). Os dois intérpretes principais são inesquecíveis. torna-o ainda mais languiano. A produção e a censura tiveram uma influência conjunta para tirar do filme todo o lado negativo desejado por Visconti. seu tão elogiado Leopardo. Tradução: Luiz Soares Júnior. completamente bêbado. ao invés da execução do tenente: “ Vemos Lívia passar por entre grupos de soldados bêbados. sua mulher Joan Bennett e Dudley Nichols. assim como aqueles de Isa Miranda na época do caligrafismo. como era o seu desejo. cantando uma canção de vitória como as que se ouve na cidade. o sucesso do filme (apesar das dificuldades e obstáculos encontrados por Visconti) aproxima-se da perfeição. julgar a respeito da qualidade deste final. Jacques Lourcelles. tão frequentemente de forma vã chamado em defesa. nome da célebre derrota italiana. chorava e gritava: Viva a Áustria!” Não podemos. O segredo da porta fechada é o mais onírico. onde ele tentou vulgarizar sua temática e seu universo. que aqui não é aprofundada enquanto método científico e terapêutico. sociedade fundada por Lang. R. Aliás. desta parte da narrativa. apoiado contra o muro. Fritz Lang 1948 Segundo e último filme da Diana Productions. execução que julgava inútil mostrar. que colocam entre eles e os espectadores o máximo de recuo permitido pela mise-en-scéne. a título de desenlace. amor. do enigma e do segredo que ainda a separam de sua felicidade. da realidade: o teatro ou a metafísica preferida do Ocidental. utilização refinada e sábia da profundidade de campo no teatro. Entre ambas. com uma intensidade avassaladora. o apelo da exuberância da vida. os quais serão sempre mesclados intimamente à presença do amor. francês e inglês. o découpage. Síntese de arte plástica e de arte dramática. os cenários. com o propósito de atingir aos limites de seu medo.mínima que seja . Renoir presta uma homenagem ao teatro. como realidade concreta (Renoir não exprime nada que não passe em primeiro lugar pelo concreto). Tradução: Luiz Soares Júnior. perguntava a algum de seus interlocutores. mas seria um erro reduzir o sentido do filme à esta homenagem.potencial. Pois O segredo da porta fechada é. esplendor harmonioso das cores. Certo. No interior da visão da heroína (que existe no filme enquanto “sujeito”). o personagem masculino é considerado sucessivamente como objeto de fascinação. especialmente graças a um dos mais belos comentários off jamais ouvidos em um filme. O teatro representa uma ultrapassagem. Uma das particularidades do filme (que engendra aliás seu poder poético) é sua construção profundamente subjetiva. este remédio à melancolia e à todas as frustrações. na cronologia da obra de Lang. há o teatro. É muito mais fácil amar este filme que lhe penetrar os segredos. Uma vida é muito pouco. evidentemente. A foto. minuciosamente pensados préviamente por Lang com a ajuda de Stanley Cortez. embora real. A resposta negativa suscitava nele um ceticismo completo. música e confissão íntima. Camille sente com plenitude. ao mesmo tempo ameaçador e fascinante. Nota: O filme existe em três versões: italiano. e o exprimia frequentemente em conversações privadas. é o espelho da alma sensível e ávida da heroína e de seu autor. Jean Renoir 1953 A obra-prima absoluta de Renoir. do obstáculo. A extrema liberdade da dramaturgia permite a este “objeto” tornar-se. em sua genial simplicidade. A versão inglesa deve ser considerada a oficial. ou melhor. já que nela se ouve o som direto da filmagem. A Carruagem de Ouro. de suas aspirações e visão de mundo. para além de ambas. mas ela lhe experimenta também a frustração. O mais civilizado e o mais europeu de todos os filmes. à plenitude. Ela deve percorrê-lo integralmente. A carruagem de ouro é um desses filmes que permitem crer na superioridade do cinema sobre todas as outras artes. se este jamais desejara matar alguém. com um tom falsamente interrogativo. dão ao menor interior uma intensidade expressiva próxima do fantástico. na única e célebre seqüência do processo imaginário que o herói intenta contra si mesmo. retrato ao mesmo tempo da condição humana segundo Renoir. por fim de estupor e terror. Jacques Lourcelles. e esta luz dourada e clara que desde então não mais se viu na tela. Às vezes. Ele é o receptáculo de todas as aspirações humanas à totalidade. O plano típico do filme é o da heroína atravessando algum corredor ou vestíbulo. no palácio do rei e sobretudo no apartamento de Camilla.de felicidade. Proteu: símbolo e encarnação do desejo faustiano de viver várias vidas. do próprio autor. O teatro aparece aqui. estes se encontram no caráter proteiforme de Camilla. “sujeito”. transformado pelas zonas de sombra e de luz em um lugar perigoso. Os motivos de admiração aqui são inumeráveis: construção em atos ainda mais hábil. mas sobretudo como metáfora. que a de A regra do jogo. por seu turno. No entanto . esta miragem encarnada. Todas as vidas é impossível. Sem dúvida. que nos permite penetrar nos pensamentos e sentimentos da heroína. o último filme onde o autor ainda deixa a seus personagens uma chance . que compreende ao menos três elementos novos. é horrivelmente mal dublado. 1989. de William K. Música: Bernard Herrmann. Thatcher. 1939. RKO/Mercury Theatre Production ( Orson Welles). pois este procedimento aparece com força na história do cinema com The Power and the glory . Agnes Moorehead ( Mrs. algumas se repetem e dão-nos diferentes pontos de vista sobre o mesmo evento: a primeira sequência de Salambô. Ainda muito recentemente. Bernstein). Gettys). mas nós o vemos em carne e osso em outro trecho do filme. CIDADÃO KANE. originalidade absoluta: em nosso conhecimento. ela parece menos colorida e variada que a francesa. enquanto versão dublada. USA ( 119’) Prod. Terceiro elemento novo: embora a maioria das seqüências contidas nos flashbacks se completem. uma vez provado. Londres.entre os 10 melhores filmes da história do cinema em listas feitas pelos historiadores. como é normal ocorrer. Darrell Silvera. nenhum outro filme comportou até então este tipo de introdução. Richard Baer ( Hillman). Ela diz respeito à construção do filme. o flashback também fora usado em Trágico amanhecer. Cidadão Kane chega em primeiro lugar. de lista de temas do filme aparece no cine jornal que resume no começo o filme da vida e a carreira de Kane. Dec: Van Nest Polglase. Esta indica os principais pontos a serem desenvolvidos pela intriga. Roteiro: Herman J. Embora não fosse o primeiro filme a utilizar o flashback . Uma grande parte. Howard sobre um roteiro de Preston Sturges. em relação aos eventos que relatam. mais pitorescas. que reúne quatrocentas listas de filmes de todos os países. ela apresenta o mérito de fazer na Magnani falar em sua língua original. Dicionário de filmes.Os atores que dublam a si mesmos (Magnani. Paul Stewart ( Raymond).e ainda o é. Um desses narradores. é narrada sucessivamente por Leland ( quarto . Dotothy Comingore ( Susan Alexander Kane). Orson Welles. por exemplo. a princípio só nos aparece como autor de memórias lidas pelo jornalista. Quanto à versão italiana. Intérpretes: Orson Welles ( Charles Foster Kane). No entanto. Odoardo Spadaro) estão ainda melhores na dublagem que no idioma original. Ruth Warrick ( Emily Norton Kane). Elas acrescentam à elegância e ironia medidas do diálogo um elemento picaresco do qual não se consegue abrir mão. mais concretas. Estes flashbacks emanam de cinco narradores diferentes. aliás. Joseph Cotten ( Jedediah Leland). Mankiewicz. Everett Sloane ( Mr. de 1933.longe disso. revivendo com virtuosismo a curiosidade do espectador: o primeiro narrador encontrado pelo jornalista ( Susan Alexander) recusara-se a falar então. Por outro lado. Perry Ferguson. As vozes são mais variadas. Foto: Gregg Toland. de Carné-. Kane). mais engraçadas e. e seu testemunho só aparece em quinta posição no conjunto de 6 flashbacks. Tradução: Luiz Soares Júnior. 1941. Ray Collins ( James W.da originalidade do filme já existia “no papel”. William Alland ( Jerry Thompson). antes mesmo do primeiro dia de filmagem. filme que apresenta analogias de estrutura e conteúdo com Cidadão Kane. críticos e cinéfilos. contactados pelo jornalistainquiridor. Desvio imprevisto. o tutor de Kane. Realização: Orson Welles.e sem dúvida parte essencial. que está na origem do primeiro dos flashbacks. Thomas Garner. Georges Coulouris ( Walter Parks Thatcher). na versão inglesa. Tamanho foi o impacto de Cidadão Kane em seu lançamento e no imediato pós-guerra que desde então ele foi sempre citado. no “The top 100 movies” de John Kobal. se pudermos falar assim. Em primeiro lugar uma espécie de sumário. Segundo elemento novo: a utilização sistemática e múltipla de flashbacks confere a Cidadão Kane a estrutura de conjunto de um filme-investigação (enquéte).-pois tudo é paradoxo em Renoir-. Jean Debucourt. Erskine Sanford ( Herbert Carter). a versão dublada em francês nos parece muito superior. o filme de Welles marca uma data muito importante na utilização deste meio. além disso. Aqui. Jacques Lourcelles. Pavilion Books. criticaram o filme como intelectualizante e estetizante. Kane. Toda força do personagem reside em seu mito. Este tipo de repetição ou variação de pontos de vista sobre um mesmo evento passado aparece. plongés e contra-plongés. De qualquer modo. (A notar que o próprio filme. perdeu muito dinheiro em seu lançamento. Esta construção extremamente inovadora de Kane. o próprio Welles renega este procedimento e torna-se novamente um verdadeiro “narrador-deus”. na última sequência e por meio de uma narração direta. já que Hearst é um magnata da imprensa e manipulador da opinião pública americana. tanto no plano da coerência quanto em relação ao equilíbrio das partes. e que lhe dá. a importância acordada à descrição de Kane como um Pigmaleão fracassado ( em suas relações com sua segunda esposa) parece muito excessiva. como Sartre em seu célebre artigo no “Écran Français” ( de 1 de agosto de 1945). apresenta falhas. objetos em primeiríssimo plano. e A condessa descalça de Mankiewicz ( 1954). . um certo valor sociológico. Kane é. Cidadão Kane é um filme revolucionário? Um filme moderno? Os lugares comuns que circulam através da maioria das histórias do cinema impõem-nos de responder afirmativamente. o personagem. vontade constante de se afirmar diante de si mesmo ou do mundo. O primeiro é a relação que mantém com sua “figura chave” ( William Randolph Hearst). o mais belo acerto de Welles foi suscitar para este vencedor a compaixão que o público habitualmente experimenta diante dos perdedores ( loosers). O segundo elemento exterior é a semelhança que Kane entretém com o próprio Welles: megalomania. mas dos quais ele fez as figuras de uma retórica barroca que lhe pertence plenamente de direito. com efeito. Cidadão Kane contém uma série de procedimentos ( curtas focais.cita-se também Basil Zaharoff. Mas isto talvez seja incorrer em precipitação. cine jornais. etc. No plano dramático. Se certos autores. um envelope vazio de onde a principal realidade provém de dois elementos exteriores. presença dos tetos dos cenários no quadro. no sentido mais negativo da expressão: um verdadeiro balão inflado. em relação a todos os outros aspectos da vida de Kane. quase que totalmente desprovido de espessura romanesca ou psicológica.Ao longo de sua carreira. que faz dele um colosso com pés de barro. Howard Hughes. É aí que o filme parece muito inferior à sua reputação.-. Welles vai criar e interpretar personagens mais ricos. etc) que Welles não inventou. etc. com o propósito de revelar ao espectador. Depois de ter mostrado seus personagens unicamente através de testemunhos. esta construção impressionou muito tanto o público quanto a crítica. como Arkadin em Grilhões do passado e o policial Quinlan em A marca da maldade. De outro lado. no entanto. O relevo adquirido pela estrutura do filme se deu provavelmente ao fato de que o personagem que esta se encarregara de retratar não estava à altura da sutileza estrutural do filme. e só tornou-se lucrativo ao longo dos relançamentos). apesar do sucesso. No plano visual.flashback) e por Susan ( quinto flashback). sem dúvida. tentação e fascinação do inacabado. em parte renegado pelo próprio. Mesmo que Hearst não seja a única inspiração para Kane. onde este procedimento constituirá a própria base do filme. que este carecia singularmente de substância. A posteridade deste procedimento será relativamente abundante: citemos as célebres seqüências de Rashomon de Kurosawa ( 1951) . é sem dúvida o mais belo “albergue espanhol” da história do cinema. a reação destes deve ser relacionada com o caráter paradoxalmente inconsistente de Kane “enquanto herói de ficção”. a sua biografia e a de Kane são suficientemente próximas e ricas em similitudes para que Kane possa ser considerado uma tradução cinematográfica de Hearst. pela primeira vez em um filme. o significado de “Rosebud”. Este é o lugar de colocar duas questões. à imagem de Kane. escritos. Cidadão Kane. embora tornados necessários pelo fato de que ele encarna com vinte e cinco anos um homem entre vinte e seis e setenta. a qual não é jamais totalmente determinada a priori” ( Em André Bazin: Orson Welles. “Realismo sob qualquer aspecto ontológico. Mas nele a profundidade de campo é empregada de maneira tão demonstrativa. Resta a questão da profundidade de campo e do emprego do planosequência. tão “visionária”( voyante) que ela chama a atenção mais para si do que para a sucessão de planos do découpage tradicional ( sem ser por isso mais rica de sentido). É aliás uma espécie de aberração falar de realismo. e ainda mais ontológico. figuras que Welles utiliza e que são as bases do cinema moderno. da maquiagem e dos elementos postiços. O plano foi primeiro filmado com o foco sobre o primeiro plano iluminado. influência do cinema russo na fragmentação analítica e voluntária da construção ( jamais radicalizada desta forma antes) e do découpage ( corte) propriamente dito. mesmo se ignorarmos o modo como o plano foi fabricado. A revolução wellesiana só tem sentido. estão excelentes). seu peso de presença. enquanto que o plano de fundo estava escurecido e invisível. uma corrente única).. No que se refere ao célebre plano em que Kane descobre a tentativa de suicídio de Susan ( com o copo em primeiro plano). dissecado. como Kane.. parece justamente o contrário de um filme moderno. global. a respeito de Welles. o extremo artifício. a dívida de Welles com o passado é considerável: influência do expressionismo nos cenários. este dito realismo não é nada mais que o produto das manipulações de Welles. sua vocação de prestidigitador e de mestre dos artifícios. agora com o primeiro plano no escuro e o foco sobre o plano de fundo iluminado. Nos três domínios onde Bazin o situa. iluminação e até mesmo no esquematismo de certos personagens secundários. procurando fazer esquecer ao máximo a presença e o papel da montagem. depois voltaram a película para trás para refilmar o plano novamente. realismo dramático que se recusa a separar o ator do cenário. considerado como exemplo perfeito do planosequência usado com profundidade de campo. reforçado pela mediocridade na direção das atrizes ( os atores masculinos. e as principais vítimas de sua manipulação foram seus asseclas. Sob este aspecto.Estilísticamente. somos constantemente atropelados por essas imagens excessivamente rígidas. Preminger. pelo retorno às fontes russas. o primeiro plano dos planos dos fundos.de um truque no interior da câmera. que restitui ao objeto e ao cenário sua densidade de ser. Welles aqui se revela.). Há admiráveis fotos (. ao contrário. Bazin fala do “realismo” deste découpage em profundidade. o caráter coercitivo e congelado saltam aos olhos. apresentado na ordem intelectual. que dele se distancia tão radicalmente. totalizante do espaço cinematográfico. longe de corresponder a um emprego realista. seu gosto do disfarce. na primeira linha dos quais figura André Bazin. Estes últimos aliás são frequentemente detestáveis no Cidadão Kane.sabe-se hoje em dia. em uma falsa desordem que é apenas a subordinação da ordem dos eventos à ordem das causas: tudo é morto. que tem por objetivo aprisionar a realidade em um cadre do qual a rigidez.caracterizando-se ao contrário como sintético e “ d’une seule couleé” ( de um fôlego só. Éditions du Cerf. Mizoguchi. Depois de ter julgado “natural” a mise-em-scéne deste plano. então. tem-se a impressão freqüente de que a imagem “prefere a ela mesma” ( se prèfere). Como um romance no qual o estilo foi radicalizado e levado . neste desejo irrealizável de um filme composto por um único plano longo e perfeitamente deslizante ( lisse). em relação a certos hábitos hollywoodianos. por sua natureza barroca. No entanto. 1972. sintético. ele é resultado. realismo psicológico que recoloca o espectador nas verdadeiras condições da percepção. o cinema moderno Lang. mascaradas por excesso de cálculo (grimaçantes à force d’être travaillées). um manipulador e um prestidigitador sem igual. Ramsay). As invenções técnicas do filme não são feitas para restituir a vida. Sartre escrevia: “Tudo é analisado. escreve ele. . já era uma bomba. que já tinha detrás de si as carreiras de pintor. e por fim o neorealismo italiano). coloca Cidadão Kane entre os oito fatores principais que determinaram o nascimento do gênero noir ( depois do expressionismo alemão. Contrariamente aos que pensam que Welles modificou profundamente com este filme o . ops. Paul Wendkos). pertencem a Herman J. que beira o delírio. antes mesmo do primeiro dia de filmagem. durante mais de 30 anos. mesmo que o trabalho deste aqui seja apenas um pálido esboço do que realizará mais tarde para Hitchcock ou Mankiewicz). uma grande parte da substância e da construção do filme. e alguns de uma forma exagerada. Evidentemente. inclusive o controle. De qualquer forma.. a influência de Welles foi forçosamente muito limitada. o uso das externas como elemento de economia no cinema do pós-guerra. Sob este prisma. Welles marca. Welles era justamente o contrário de uma eminência parda.. o romance policial “hardboiled”. É com razão que Robert Ottoson. que ofuscava tanto o brilho de seu irmão diretor que este declarou um dia: “ Eu sei o que vão inscrever no meu túmulo. passou a olhar o cinema e o lugar do metteur-em-scéne no interior da criação cinematográfica. assim como o imortal “Rosebud”. Última questão: Cidadão Kane teve uma influência preponderante sobre a evolução da mise-em-scéne cinematográfica? Aí também a maioria dos historiadores respondem afirmativamente. Cidadão Kane ensinou muitos espectadores a ver melhor os filmes e a melhor julgar a respeito da importância do metteur-em-scéne no interior desta criação coletiva que é a realização de um filme. buscando sempre provar aos outros o seu próprio gênio. O gênio publicitário e auto-publicitário de Welles. A tal ponto que se esqueceu. que escreveu sozinho os dois primeiros esboços do roteiro. Fora sua influência sobre alguns pequenos mestres que viveram em sua órbita (Richard Wilson. ( Não podemos minimizar igualmente o papel do operador Gregg Toland e do músico Bernard Herrmann. Estéticamente. os barrocos tendo sempre representado uma ínfima minoria no cinema de Holywood e outros. Mankiewicz. Nicholas Ray e Fuller. Cidadão Kane. embora fosse um homem empreendedor .. o interesse pela Psicanálise e por Freud . diretor de troupe teatral. a geração de novos cineastas americanos dos anos 50: Aldrich ( sobretudo em A morte num beijo). homem de teatro e de rádio. o clima de desespero engendrado pela guerra e pela dificuldade dos antigos soldados de se readaptarem socialmente. Mas onde Cidadão Kane teve o papel mais determinante foi na forma através da qual o público. enquanto os personagens foram esquecidos “ ( Este texto figura na excelente obra de Olivier Barrot: “L’écran français Reunis. e sobretudo os cinéfilos e cineastas iniciantes. ator.sobre a montagem final. 1979). Tratando-se de um cineasta essencialmente barroco. o realismo poético francês. bem resumido pela palavra-chave Rosebud. acabou por representar o emblema espetacular do metteur-em-scéne-autor. Seria ele considerado assim se não tivesse também representado no filme o papel principal? Para o primeiro filme deste jovem de 25 anos. do paraíso perdido. a RKO confiou um grande orçamento e uma total liberdade. por meio de sua construção de “filme-inquérito” e por sua temática da nostalgia da infância.. jornalista. Joe Mankiewicz”. fez o resto. a influência concreta do filme deve ser relegada ao filme noir. poder-se-ia quase dizer que Cidadão Kane foi mais importante para a história da crítica cinematográfica que para a arte do cinema propriamente dita. Em conclusão. no prefácio a seu “Reference Guide to the American Film Noir 1940-1950”. aqui jaz Herm. em uma certa medida.privilégio supremo. que impressionou tantos cineastas da Nouvelle Vague francesa.. eles teriam chegado a esse estágio de apreensão dos filmes sem ele. irmão mais velho brilhante de Joseph L. a contribuição essencial do coroteirista Herman Mankiewicz.para o primeiro plano. Saint-Saens. desde então. Derrière la façade) ou Duvivier ( Um carnet de bal). Vincent Scotto. Música: Roger Désrormières. pertence. os cinéfilos do pósguerra haviam descoberto o filme. sob todos os tons. Foto: Jean Bachelet. unindo a indignação pública do censor ao truísmo de um La Palice. a maioria dos grandes metteurs-em-scéne hollywoodianos ( Lang. Não apenas o público não o compreendeu e amou durante anos. Bardèche fala de “estranha miscelânia”. Johan Strauss. em seus comentários sobre o filme. Vinte anos mais tarde. Piewrre Nay ( Saint-Aubin). Lise Elina ( a repórter). Odette Talazac ( Charlotte de la Plante). Jean Renoir ( Octave). Quer se tratassem de filmes em formato de sketches. Jacques Lourcelles. Yves Mirande ( Café de Paris. André Zwobada ( o engenheiro de Caudron).status do realizador em Hollywood. Monsigny. Realização: JEAN RENOIR. como Charles Charensol.E. Assim como Welles. Nesse ínterim.Prod: N. Pierre Magnier ( o general). longe de ser uma exceção na produção da época. Em 1945. ou fossem eles assinados por Guitry ( Ils etaient neuf célibataires). tão influentes na época. é sem dúvida o filme de Renoir que foi sucessivamente mais atacado e louvado. quando o filme foi relançado. Mila Parely ( Geneviéve de Marrast). Gaston Modot ( Schumacher). Nicolas Amato ( o sul-americano). Tourneur. Walsh. excetuando-se Ford. Por que necessitariam eles de Welles para se afirmar? Dicionário de Filmes. pertencentes a todas as classes. Mozart. Richard Francoeur ( La Bruyère). antes e depois de Kane. declinando. Intérpretes: Marcel Dalio ( marques Robert de la Chesnaye). Roland Toutain ( André Jurieu). mas até os anos 50 os principais historiadores . Este é um dos numerosos exemplos de reputação criada pelos cinéfilos contra a crítica estabelecida oficial dos “profissionais” e dos historiadores. completamente errado. e até lamentavam a reaparição do filme: “A regra do jogo foi realizado às vésperas da guerra e hoje em dia estaria esquecido se não tivessem a infeliz iniciativa de ressuscitá-lo”. Eddy Debray ( o mordomo). a uma longa e rica linha de filmes que descrevem a sociedade do tempo segundo uma visão crítica e panorâmica. aliás. A partir dos anos 70. Paulette Dubost ( Lisette). E para a maioria deles. este cinema é redescoberto. Roger Forster ( o homossexual). Insucesso comercial notório quando de seu lançamento e de seu primeiro relançamento em 1945. o filme é frequentemente amado e descrito como um meteoro caído do céu no meio da produção corrente da época. o seu pessimismo. Este ponto de vista. etc. Hitchcock e 2 ou 3 diretores. ainda não tinham se desarmado de suas invectivas de antes da guerra. apoiando-se sobre uma série de personagens. apercebemo-nos de que A regra do jogo. deve ser colocado em relação com os preconceitos nutridos pelos cinéfilos do pósguerra e dos anos 50 em relação ao cinema francês. Charles Ford de “glória um pouco usurpada”. Sadoul de “incoerência”. haviam-no visto e revisto nos cine clubs. Traduzido por Luiz Soares Júnior. produção esta com a qual ele não teria nenhuma relação. “obra desigual”. semelhança nem medida comum. re-estimado e. com uma lucidez mais ou . Dec: Eugène Lourié. Corteggiani (Berthelin). Nesta época.F. pelo contrário. que eles conheciam muito mal aliás. Roteiro: Jean Renoir. esta discrição lhes era conveniente. A regra do jogo será quase que unanimemente considerado como o melhor Renoir e um dos maiores filmes franceses. Nora Gregor ( Christine). Larive ( o cozinheiro). Sirk) permaneceu relativamente na sombra. A REGRA DO JOGO 1939 ( França) ( cópia restaurada: 110’). Julien Carette ( Marceau). mesclaram aos elogios gerais o seu veneno. e todos. alguns. Chopin. Claire Gerard ( Mademoiselle de la Bruyére). estes filmes mesclavam o humor à crueldade. escreve Charensol. Anne Mayen ( Jackie). têm a consciência de descrever o crepúsculo de um mundo. Privado desta distância. que embora pudesse seduzir a crítica. variada mas muito insólita e às vezes discordante. sinceros de Jurieu e Octave. se estabelece um paralelismo entre o mundo dos patrões e dos empregados. deve ter assustado o público ( aliás. Longe de lamentar que este vaudeville. Então. dos planos longos. De uma maneira geral.em uma tragédia grotesca e razoavelmente . Quanto às causas internas para o insucesso. um dos primeiros títulos do filme seria Os caprichos de Marianne). longe de se mostrar desorientado. Mas a semelhança de ambos os panoramas diz muito acerca do pertencimento de Renoir a um filão em voga na época. Como explicar então o insucesso total de Renoir no interior deste gênero? Alguns consideraram para este fracasso causas externas. inocentes. E o público. como em uma mascarada. eram parte integrante do seu prazer.no plano criativo. ela organizara uma partida de caça. estes filmes tiveram grande sucesso. Entre elas. Distância e cinismo que. Mas certamente o fator de maior rejeição do público foi esta gravidade de tom que progressivamente se instala na intriga e pouco a pouco recobre suas peripécias burlescas e “guignolesques”. Em seguida. dos movimentos de câmera. insensível à sábia construção da intriga. financista. personagem que contém em filigrana fantasmas de ordem autobiográfica. esta comédia de erros se transforme -e se congele. suas rupturas de tom. Trata-se. há esta distribuição de atores . 1936) uma fonte possível para o roteiro de A regra do jogo: uma jovem e rica viúva reúne em sua mansão sete pretendentes ( artistas. antes de aparecer pela primeira vez aqui em um filme francês.. da cupidez e vulgaridade dos pretendentes. elas são tão numerosas que hesitaríamos em enumerá-las. e o filme contém planos quase idênticos aos de Renoir. é bom que se diga. às vésperas da guerra. em um só movimento. apreciava sua profusão dramática. o de Renoir para seu irmão Pierre. pode-se citar em primeiro lugar este parentesco tão profundo com uma tradição literária que vai de Marivaux a Beaumarchais e Musset. toda uma sociedade... às suas referências permanentes a uma tradição literária. que transformam um décor teatral em uma seqüência contínua de espaços por onde desfila. indecisa de Nora Gregor. Podemos mesmo encontrar no argumento de um desses filmes ( Sept hommes. o de Dalio para Claude Dauphin. como o lançamento excessivamente tardio do filme. Antes disso. complexos e fluidos. ela vai rejeitar a todos. aristocratas ociosos. à Regra do jogo. a distância e o recuo que o público apreciava nos afrescos irônicos de Mirande. louvar-se-á sem reserva esta virtuosidade espantosa no uso da profundidade de campo. vulneráveis. Constantemente. o cinismo. une femme. Cansada das mentiras. Com os personagens incongruentes. empresário. de um dos filmes mais preguiçosos e mal-sucedidos de Mirande. para o espectador da época. As qualidades formais do filme só serão apreciadas no pós-guerra. o público aderiu ainda menos ao filme ao perceber neste a atmosfera de uma confissão íntima. seu niilismo mais ou menos envolto em piada. A melancolia desfalecente. caso o gênio específico do filme não fosse melhor explicado por algumas. assim como a volubilidade desajeitada e estranha de Renoir no papel de Octave. sobretudo quando esta exprime a impotência de certos seres ( Octave. o de Roland Toutain para Gabin e o papel de Modot para Fernand Ledoux. Jurieu) para se inserir no jogo do mundo. etc) para escolher aquele com quem ela se casará. de Yves Mirande. este elenco sofreu várias modificações: o papel de Nora Grégor estava previsto para Simone Simon. Será que foi esta discordância que impediu o público de aplaudir as interpretações mais clássicas de um Carette ou de uma Paulette Dubost? Durante a preparação do filme.princesa austríaca que havia interpretado no Michael de Dreyer e em numerosos filmes alemães e austríacos . Renoir abolia. e aqui não se trata de compará-lo. para diverti-los.certamente decepcionou o público. tão deslocados na universal mentira social que estigmatiza o filme.menos aguda. Por exemplo. uma vez que confundem três elementos bastante diferentes: filme. também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano. Jacques Lourcelles. 85 e 80 minutos. Procès de Jeanne). Não é este tipo de passividade que um ataque de nervos dramático estimula em você. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas salas. Sua atitude é injustificada. estabelecida desde 1958-9 por Jean Gaborit. quase todo mundo tem condenado La Punition como um tipo de cinema mentira. negligenciam sua correspondência.o sucesso. seria igualmente atrativo. cujas inúteis digressões. Jacques Marechal e Jacques Durand a partir de uma cópia excessivamente longa. La Guerre des boutons). ou por seu diretor ou. ao invés de um cinema simples. Aqui temos um filme excitante. perdemos o sentido do filme. reencontrada em 1946 e de um vasto stock de cortes. A verdade de La Punition não se torna aparente sem a participação ativa do espectador. Durante mais de 10 anos circularão cópias de 90. Em 1945. Em vista das reações do público. É possível ver La Punition três ou quatro vezes sem que uma única vez aparente ser o mesmo filme. A história das cópias de A regra do jogo testemunha a vicissitude das recepções do filme. Em 1965. Adieu Philippine. Tradução: Luiz Soares Júnior. Mesmo que tivesse oito horas de duração. como um escritor que fosse capaz de escrever ao mesmo tempo Os Miseráveis e A Cartuxa de Parma. Luc Moullet. não teríamos o direito de dizer que La Punition é ruim por ser inexato (os documentários de Rossif são verdadeiros. relança-se sem sucesso uma cópia curta. verdade. Traduzido por Felipe Medeiros de Morais A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa. direto (La Punition. Se ele nos espanta por ser o autor de A grande ilusão ou da Regra do jogo. em 1942. seu produtor (e a quem nós poderíamos dar crédito mediante um desacordo?) pudessem incorretamente associá-lo a tal. em cada um de seus filmes. Se a nossa atenção for lassa. corta-se ainda uma dezena de minutos do filme e o papel de Octave é amplamente amputado. La Grande Evasion. mas vejam só o resultado). La Punition. caso o Francês não preferisse. em sua confrontação. todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas – se poderia . permite hoje uma análise mais confiável. e cinema verdade. Nota complementar: Renoir é por excelência um “autor de obra”: seu gênio brilha. que faria quebrar todos os recordes de bilheteria. ou por não ser um real exemplar do cinema verdade (The Rules of the Game também não o é). o maneirismo do cinema indireto (Melodie en sous-sol. Dicionário de filmes. aridez e repetição. em seus aspectos igualmente visuais e literários. ele nos causa ainda maior admiração por ter realizado ambos os filmes e de ter desta forma tocado a todas as camadas do público. refletem valores puramente comerciais. um novo público de cinéfilos. mais precisamente.inquietante. é claro. e o filme conhece -enfim. O público tem de interpretar o filme ativamente para compreender a que nível de verdade ele se situa. apoteose da reavaliação cinefílica do filme. O esforço beneficiou-se dos conselhos do próprio Renoir. isento de erotismo e acessível a todos. no final das contas. sai uma cópia de 113 minutos. Jean Rouch Dos espectadores da televisão francesa aos especialistas em cinema verdade. lança-se. de amadores passionais e de cineastas aprendizes verá em A regra do jogo a síntese genial de um artista que utiliza a fundo a escritura cinematográfica. aos cuidados da Sociedade de Grandes Filmes Clássicos. enquanto tentam assistir ao filme. que em conversações paralelas ou diante de seus pratos. uma cópia bem completa de 3000 m ( 110 minutos). O negativo original foi destruído em um bombardeio em Bolonha. já reduzida a 100 minutos. Em 1939. mas ainda mais na reunião dos filmes. nem por que pode surgir o perigo.Dois gêneros. Reação frente à inverossimilhança das situações. o fantástico e o terror. por sinal – nem ao sentido. Se fosse preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neorealismo. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1.3.Na verdade. inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas. e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nello spazzio (O Planeta dos Vampiros). a cada assassinato diferentes uma das outras. Pode-se temer. nem às ações – nada compreensíveis. Cottafavi e Bava. além do medo pontual que mencionei (causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si. Leone ou Jacopetti. que se situa na realidade contemporânea. e. Bebê. de distanciamento em relação à acumulação macabra.. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no assassinato. nem ao sobrenatural. principalmente. sem pegar emprestado nem ao passado. n. e também Banho de Sangue. Em Banho de Sangue. Dois filmes. a marca do Fantástico não se encaixando nem em La ragazza che sapeva troppo (Olhos Diabólicos).e. nem em Banho de Sangue. colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil.O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. já que o hábito ajuda). da qual não se encontra equivalente na arte fílmica. realmente no encontro? As ações se revelam inverossímeis demais. aliás.pensar que Bava.. Ou ainda. traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata. uma impressão de mal-estar e de enjôo contínuos. situada no quadro realista. à qual não podemos nos identificar. durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980). Banho de Sangue aparece. nem aos atores.2. e que mergulha o público no estupor admirativo.. que sabemos inevitável. Operazione paura ["as três faces do medo". então. Presença de um humor que decorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão.Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. no entanto. que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos: I tre volti della paura. a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai. e que remete ao cinema mais puro. e que ele era homem de um só gênero. Mata. Expressão de uma necessidade de recuo. se ele existe. nem ao futuro. nem como. que realmente só se sentiam à vontade no melodrama. Um cinema. com mais intensidade ainda quando o crime é atroz."4. assim como Matarazzo.Mas estará o medo. que deixam a identificação impossível. raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores. à exceção de alguns westerns ruinzinhos. seria a reflexão em cima do zoom. pela vida de personagens inconsistentes. O medo. A marca do Terror. Em O Planeta dos Vampiros. por causa da impossibilidade de não sabermos nem de onde. no western ou no documentário-espetáculo. a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso. com polpa no rosto: "Mas é meu pai. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas. na medida em que não deve nada. uma lógica que funciona unicamente por ela mesma.d. de certa forma. Com . nem ao roteiro. onde se ri a cada clímax sangrento. procuram uma angústia quase contínua: Olhos Diabólicos. só podendo ser atribuída a Perigo: Diabolik. Tem nesse riso ao menos quatro razões:1. como a obraprima de Bava. por causa da protagonista perseguida permanentemente. fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia). intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror. pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos em todo o filme cria. "operação medo". aparece unicamente durante aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. e que não se podem distinguir uns dos outros.. tivesse sempre realizado o mesmo filme. sem muletas. dissimulados atrás de suas roupas de astronautas. da qual fazem parte.]). portanto. esses dois filmes. nem aos personagens. são utilizados alternativamente. 3. Curiosamente. o oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres peninsulares. brega. Luc Moullet Publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario Bava na Cinemateca Francesa. no sentido de conservação e preservação. mais os encontro. de peso existencial. E Bava se diverte em nos enganar. que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram.Rossellini. Gallone ou Bolognoni. parece. a justa (a injusta) medida que não funciona.. ficamos com medo. como por exemplo em Una donna libera2. se serve dele até o abuso. em nos orientar com pistas falsas. Esse desprezo deságua numa metafísica do diretor de fotografia. de fluidez. o zoom se revela criador. Bava insere uma manchete de jornal francês carregada de erros de ortografia. se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor. criador de vida. uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos arrasta. Uma reavaliação do cinema3. para quem o intérprete não tem muito o que fazer. Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados. o efeito é muito raro – o cineasta se permite usá-lo não mais do que duas ou três vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua natureza contraditória. Tradução de Bolívar Torres. mas deve ter mais de cem no espantoso Lisa e o Diabo. ainda assim justificados e eficazes. e ao mesmo tempo a sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme. o ator e a boneca. Camerini. por ele mesmo. Eu não contei. . que deixa o resultado envelhecido. Chegamos a um delírio. como se ele quisesse se proteger do fracasso: o que eu poderia fazer com uma matéria-prima tão chinfrim? O desprezo pelo ator (e do personagem) corresponde a uma atitude assaz freqüente nos diretores de fotografia – função que Bava exerceu durante quarenta anos –. enquanto que com Cottafavi. logo que entra um zoom. mas que parece. rebaixando o homem ao seu nível mais insignificante. que tinham duas ou três vezes menos. Mas. mostrados por difusores quebrados ou pouco exigentes. Enquanto que. não de vida. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém. O enorme trabalho de Bava. e um plano de Paris ridículo. onde a cor é essencial. se tornando até um rival em matéria de interesse concedido pelo diretor a seus colaboradores. mesmo que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoom cottafaviano.Aqui. talvez não fosse zoom. 2. É o meio-termo. por sua vez. como as de Genina. É o procedimento técnico que. o travelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly. Eu gosto quando tem um ou dois por filme. como se estivesse troçando de um produtor que lhe teria imposto referências francesas que o desagradasse. mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que. Bava. Porém. Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. o sonho e a realidade. Em Il rosso segno della follia. Em 1954. de respiração interna. que conseguia fazer esquecer a falta de recursos. mencionada no início do texto. o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos rápido. 1. quanto mais eu avanço na carreira de Bava. suscita medo. e que periga desaparecer insidiosamente da memória. a uma orgia. Eu suspeito que Bava procurava os maus roteiros e os atores impossíveis. pobre. O zoom é sua imagem de marca mais do que a escolha de um gênero. como um reflexo pavloviano. e mais percebo que funcionam.. ou um duplo zoom. não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela obra de Bava. as cópias dos Bavas são reduzidas a uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. infinitamente mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta. ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso. sem dúvida. as obras de Cassavetes se arriscam a não serem. "Sorrisos de uma noite de amor" trata da guerra dos sexos de maneira a pôr em questão as diferenças psicológicas que separam os homens das mulheres. lúdica. Feydeau. a inexistência de qualquer inserção em um contexto concreto e harmonioso. os três heróis vêem repentina e claramente sua própria imaturidade. Foram claramente citados: Anouilh. notadamente pela violência. sobre a qual dorme sua bem-amada. seu desequilíbrio. as maquinações conscientes ou inconscientes. quinze anos apenas após seu lançamento. Husbands. Beaumarchais. ou mesmo simplesmente atenuada. Mais uma vez crianças e adolescentes. do instante. contém também um dos mais belos quartetos de atrizes da história do cinema: Eva Dahlbeck. picaresca e absurda. mais que uma simples etapa. Husbands já parece muito mais como um documento sobre uma certa maneira de filmar que como uma obra viva e eventualmente durável. Ulla Jacobsson. Em momentos privilegiados. o impasse e o momento de bloqueio em que se encontram suas vidas. Nota: Poucos roteiros originais suscitaram da parte da crítica a identificação de tantas referências literárias. etc. a dilatação extrema do detalhe.Sorrisos de uma Noite de Amor. acerba. Tradução feita por José Roberto Rocha. Margit Carlquist. Como a maioria dos filmes feitos contra um estilo ou um sistema (neste caso o sistema hollywoodiano clássico). o malsucedido enforcamento de Henrik que dispara. Musset. a variedade de tons e de reviravoltas.Shakespeare. em breve. À mulher. em sua queda. Trata-se de um vaudeville ao mesmo tempo sério e irônico. Laclos. Uma vez esvaída. a dramatização. Ele faz uso sistemático do close. esta potência de choque e de ruptura. Jacques Lourcelles Texto contido nas páginas 1390-1391 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut. O entrelaçar dos personagens. da cena. um momento significativo no desenvolvimento cinematográfico de uma época. não é certo que os filmes de Cassavetes prezem pela durabilidade. estas diferenças irreconciliáveis se pulverizam entre os jogos do prazer e do amor. a conivência com a vida e finalmente. nada mais que um parêntese no curso de suas existências. a sabedoria. Pirandello. encarregado de exprimir o desarranjo dos personagens. Ingmar Bergman Filme que revela Bergman a imprensa internacional durante o Festival de Cannes de 1956. a condução natural e clássica da narrativa. uma dignidade constantemente ameaçada pelo ridículo. trivial. o mecanismo da cama móvel. a qualidade literária e o humor dos diálogos. Cassavetes recusa a construção. Trata-se de uma espécie de serão fúnebre que toma progressivamente ares de reviravolta pueril. o intelectualismo e as pretensões metafísicas do autor. ele utiliza. a leveza. como Jacques Rozier. atingem aqui uma plenitude que Bergman jamais encontrará novamente. o mais fecundo e rico (dezesseis filmes em dez anos filmados por um diretor de trinta e sete anos). Marivaux. uma vontade de afirmar. Algumas semanas mais tarde. É necessário apreciá-la uma última vez antes que ela seja estragada pelo pathos. e se volta à pesquisa de uma nova autenticidade. salvo talvez por Harry.: Jacques Lourcelles). o filme é lançado em Paris com grande sucesso. E. Este filme que fecha o primeiro período da carreira de Bergman. vinda do quarto vizinho. onde os episódios mais dramáticos acabam desembocando em reviravoltas cômicas: por exemplo.. Estas poucas horas de lucidez serão. Ao homem pertencem o egoísmo. Kafka. Strindberg. John Cassavetes O filme mais característico de John Cassavetes. o clima de erotismo e de sensualidade unido à poesia do momento e do lugar. Harriet Andersson. o pesar impostado ou despropositado. . deveríamos nos contentar em aguardar. era preciso recriá-lo em uma matéria indireta. Imaginemos o espectador ideal à beira da tela. ou seja. ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares. virgem de hábitos e de leis. pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais. flexibilidade. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo. separando o joio do trigo. tais como a literatura.. Tradução feita por José Roberto Rocha. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma centena de gênios. de um golpe preciso. enquanto o apreciador de Música ou de Poemas. aquela cujo deus adorado no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte.: Jacques Lourcelles). e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope. uma maioria sobressai. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da evidência. Sobre uma arte ignorada Há um mal-entendido sobre o cinema. ele se forma e amadurece só em contato com as obras. porquanto contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato. A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho. Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume. ele se procura e nós o procuramos. na impossibilidade de uma possessão imediata. não há trapaça possível. essas implicações aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema. essa cultura ao contrário entrava sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios deve necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o modelo. que os séculos liberaram da tarefa de julgar. Estes são os mais perigosos. onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma potência de voz. Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de elaborar ou de compreender a arte. monstro de inocência e de rigor. no entanto. O cinema começa com o sonoro. Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e sob os pressupostos que a mascaram. seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes. Essa arte é a que mais exige disponibilidades. O cinema nasce com esforço. transpô-lo. Entretanto. desenham-se linhas de partilha. jogado nu em sua poltrona. sonoridades. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez. Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Ele não é mais levado pela cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou.Jacques Lourcelles . e a descobrir uma obra importante por semana. como eles persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto as artes milenares dispõem de um termômetro pouco a pouco ajustado pelos consumidores ativos. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus trabalhos.. Já que. O cinema é um potente revelador. Não tendo idéia do que buscam. caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo . reinventar as tabelas de valores. o espectador de cinema está entregue a si mesmo. Linguagem. proceder por alusões e convenções.Texto contido nas páginas 717-718 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas obscuras. segundo os desejos do homem. deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. minoria que acaba impondo seu gosto sobre a passividade da maioria – donde um acordo estatístico sobre os fins e sua realização –. tela e cores. sem procurar defini-lo. mármore. uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar. sem essas convenções cuja necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem. ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real. A primeira. e não a uma finalidade interna. que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som. um evento considerável vem bagunçar esses dados. e por conseguinte sua realização ideal. um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. como Griffith ou Stroheim. Dito de outro modo. Assim. o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo. das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. O meio de captar a realidade diretamente. o olho registrador. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser. divergem. Quanto menos esses sentidos estão afinados. conforme vimos. suscetível de progresso. portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro. ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos. múltiplos vieses de garagem – plástico. mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. e todos esses filmes sofríveis. Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. Stroheim. Seu primeiro princípio. e das sobre-impressões. Aquilo a que costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um .cambiava sua forma contra sua verdade. O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. a renovação desta não engendrando um progresso. que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. sem mediação. igualavam as mais refinadas. incompleto. mas a simples exploração de um domínio novo. trucagens surrealistas. ditos de “vanguarda” ou “experimentais”. pictórico. A segunda. no fim do século XIX. Nessas condições. noção incompatível com a concepção tradicional da arte. a segunda. indica sua vocação de posicionar o homem diante do mundo. o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo. que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. e as obras mais primitivas. Que. a arte criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento. Dessa via que passa por Griffith. em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo. fora descoberto. sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder. muito pelo contrário. uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera. Ora. por esse fato. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema. que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna. ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho. mas a metáfora do mundo. Murnau. expressionismo alemão. uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da palavra se acha. eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas. que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é. é um cinema ao qual falta a palavra. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira. pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis. a obra se media em valor absoluto independentemente de sua técnica. por definição. das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda.desabrochamento. Uma outra razão dessa superstição é que. acarreta uma conseqüência irritante: à medida que o cinema progride. a despeito da evidência. A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria. se eu planto minha câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro. o virariam a seu favor. somada à faculdade de aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real. de qual teria sido o gênio de seus autores. propõem-lhe um duplo que ele não reconhece. O que poderia ser poesia nas palavras. Esse mesmo painel. esquecendo o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. porque a linguagem está apta a refletir as combinações ilimitadas do espírito. as obras antigas se desvalorizam em proveito das novas. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com giz. O painel elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. como se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. é apenas trucagem nos limites do olhar. Esse gênio não está em causa. Desse esquecimento resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado. O primeiro. Em outros termos. o imenso poder de credibilidade da fotografia se volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança. Mozart inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. que excederia o propósito desse estudo. ao introduzir à força o espectador no espetáculo. filmado. Mas isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas era da humanidade. eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia. Mas não há linguagem a inventar com o olho irrefutável. E mesmo assim. Eu não o coloco em contato direto com o mundo. pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da objetividade da câmera. mas os meios a seu serviço. Assim os ensaios de câmera subjetiva que. o espectador sente confusamente que esse olho congelado. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido. será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. objetiva-as. mas seqüestrando-lhe a motivação. para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício. despe-as de seu valor de linguagem. se revela como mentira. ou Mozart diante de seu tam-tam. Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os amadores ainda veneram. põe a nu sua mentira que não procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e o objeto. mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões). aproximativa. eu não “faço cinema”. por sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. Haveria uma análise a fazer. não há convenções a estabelecer de partida. e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. duas concepções do mundo . multiplicado pela aparência do verdadeiro. condição das artes tradicionais. toda deformação da realidade com fins de expressão. eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe beneficente vem fazer uma representação. ele o é por meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. não admitimos a diferença o cinema e as outras artes. posto sobre essas formas. trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or). o ritual. Com efeito. mudo. Apertado por um nó . Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. em um universo onde a alma se dilata. seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir. de “temas”. que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo real presente. antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador. o movimento de um desequilíbrio rumo ao equilíbrio. donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier. prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana. é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. que cobre uma tela. para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”. Documentário ou Féerie? A arte se insere em uma falha. Quando Lênin profetiza que os povos felizes não mais terão arte. mas lá permanecer. se rasga e ganha a medida de seus possíveis. como a partir de um pretexto ou de um trampolim. uma proximidade à beira do idêntico. eis o jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer. depois em possessão de todas as suas faculdades. O artista faz obra de arte para se livrar. Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador. Toda atividade é o produto de uma falta. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo que de alguma forma exorciza o artista. conforme vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz Lang. Mais ou menos absorvidos. O homem terá sempre necessidade da arte porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz respeito ao Eu mais íntimo em suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto. O inquietante não é começar por lá. Não se pode debochar demais.se exprimindo através de meios invariáveis. Enfim. A energia misteriosa que suporta com alegrias diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se chama mise en scène. Um retângulo de luz vibra em sua presença diante de nós. enquanto na outra temos o mesmo homem. A cortina se abre. A arte é a religião da lucidez. É sobre ela que repousa nossa atenção. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? É preciso. uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito. ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade. ela. no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas. Tudo está na mise en scène. uma absorção da consciência pelo espetáculo. Nós estamos absorvidos por esse espaço e esse tempo irreais. para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo. raça estranha. atingindo perturbações visuais. dócil nos modos. O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano. antes paralisado. A partir de um assunto. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à satisfação imóvel. para apaziguar suas contradições. e mesmo do último tratamento do roteiro. A mise en place dos atores e dos objetos. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. e nenhuma outra. espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. de uma história. A noite se faz na sala. Podemos entender. em divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição. se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo. e é logo invadido por gestos e sons. para se agradar e se seduzir. Como a correnteza das notas de uma peça musical. por uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio de assombrações comuns. estagnação onde se compraz a maior parte dos “cinéfilos”. evidentemente. pastora. mas a enfraquece numa aplicação que só dá conta de sua parte mais superficial. Como o escoamento das palavras de um poema. reconciliar. ela que organiza um universo. . o documentário de uma mediocridade. ou pelo movimento do prazer. inútil e sem interesse. Desse modo os pleonasmos do realismo. se houvesse necessidade. 90 minutos para nada. isto é. Zavattini representa esse projeto em seu estado de absurdidade explícita. com seus crescendos. o seqüestra em uma vertigem onde ele se reconquista em sua totalidade. engendrando uma direção de gestos raros. pois não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o que a rua nos oferece com o mérito de ser real. assim como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade.de angústia e de exaltação. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação. as ações e reações de um homem em um cenário. esse caráter poderia espessar ainda. Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências. uma sentença. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera exorcizar por meio dessa imagem (do contrário. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo. suas irrupções. porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène. o documentário e a feérie. que toda arte que não é exclusivamente íntima e passional. Vertigens e cintilações. de um equilíbrio. projetado fora de si rumo a um eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica. um universo carnal – noturno ou ensolarado. se o documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a Feérie autoriza a mentira. é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte. o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto. se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível. a trucagem e os artifícios de estetas. o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e apaziguada. mas sim. É toda a vocação do trágico na arte. – Seja por uma negação do inferno. portanto. que não pode. O afrontamento. um olhar impassível sobre o mundo. suas pausas. enquanto essa existência é suscitada por uma falta na realidade. sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo. aristocrática. como esta será em si beleza. portanto. E. seja frívola e derrisória. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução. A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feérie. não há necessidade de imagem. uma emergência simultânea na alegria. exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências. portanto de um aquiescimento. Mas inversamente. tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável. o ser é revelado a si mesmo. Não uma demonstração. o mundo basta) é o projeto contraditório do “realismo”[5]. dedicada ao excesso. preciosa. de se reconciliar com ela. A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades particulares do cinema. que a alça ao sagrado de uma necessidade. mas a linha melódica. o mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral. enquanto precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la. na calma. a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo. onde tendo sido percorrido o círculo completo. a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. nem em um direcionamento rumo ao impossível ou ao falso. de uma paz. uma arte da epiderme e das entonações de voz. mas em suas possibilidades de equilíbrio entre o mundo e o homem. ao mesmo tempo. nem em sua proliferação casual e banal. Dito de outro modo. na luz. ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe integrando – encarada. toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel definido por sua existência mesma. Que. Lang. como estrangeiros a nossa ação. movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado. sugerem-lhe a idéia mais baixa. de modo a submeter a consciência espectatorial a uma arquitetura determinada.movimentos secretos do ser. de ínfimos movimentos do rosto e do corpo. após conhecer tais transportes. nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O erro dessas teorias (erro de toda teoria preexistente a uma obra) é quebrar o natural. abandonando ao acaso ou a uma repetição de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre. As teorias sobre montagem que outrora apareceram ilustram seu peso. No limite. atingido em raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey. A Fascinação. as de Eisenstein. em uma presença ausente. pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção cinematográfica nos parece inexistente. como as notas de uma melodia se põem mutuamente em valor. miserável e sem relação com o cinema. As primeiras pesquisas de Gance. uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Esse erro é devido. aqui ao colocar o espectador diante da contradição de uma apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: não é a lógica dramática da cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma continuidade onde o descontínuo dos planos se dissolve por essa lógica mesma. no seio de um universo de objetos radiantes. venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse sublime. de transparente. não sabemos mais nada da história que desfila diante de nós. puramente mediador que deveria ser. traduzem essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por sua disposição em um organismo calculado. A paixão exclui a indulgência. Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica reencontrada. A montagem transparente. abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. até restabelecer entre o espectador e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. ficamos fora de nós mesmos. de seu passado. parâmetros que substituíssem uma necessidade interna pelo acaso. onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido. a uma identificação abusiva do cinema com as artes . que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” numa confusão dos meios e do fim. Tratava-se de imprimir à sucessão das imagens um ritmo análogo ao ritmo musical. domínio específico de nossa arte. em uma coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário. mas a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este. inteiramente requisitados pelo exterior. de inflexões vocais. deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. O ponto de chegada do cinema. impondo-lhe linhas de força. de seu porvir possível. as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música inelutável e imprevista. Suas divergências provêm simplesmente das diversas concepções que eles têm dos seus meios. O acesso a essa mise en scène de vertigens e de cintilações. em certas circunstâncias excepcionais da vida. lúcido e apaziguado. se opacifica. Em decorrência. Assim. Preminger e Cottafavi –. consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos. de olhares. se embaralha. conforme já destacamos em uma outra ocasião. ou a polivisão que é uma montagem espacial perpendicular à montagem temporal. Recriando a cada instante nossa expectativa. não surpreenderia senão aqueles que se satisfazem com pouco e que. injuriantes ou benéficos. A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens. crendo defender uma arte. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta. o movimento. portanto. A obra de Eisenstein nos faz inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que. ou ainda a um certo plano de O Homem Errado. todo o arsenal revelador de impotência. Assim. ou seja. Eisenstein: “O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano. obtemos essa franqueza. graças à docilidade. em função do intérprete. Para bem compreender. diante do mundo. exato. justo à identidade completa. . o mais próximo do mundo. como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento. a fragilidade da mise en scène de Eisenstein. de tudo aquilo que está fora dele. não desliza como uma serpente. motivado. A única montagem (ou decupagem. procedem da mesma impotência diante do ator. as provocações. desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica. Eu diria que o melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. ele imagina o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de modos diferentes e ao decidir. equilibrado. ele está diante do espetáculo. basta se referir ao recente Vertigo de Hitchcock. por seleção e justaposição de planos essenciais. colosso de pés de argila. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva.. se consideramos a operação em sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere. situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com este último. em tornar os cortes efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível. as posições da câmera”. toda ruptura de sua impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. galeria de monstros pitorescos. O redemoinho da câmera em torno do rosto de Henry Fonda para exprimir sua angústia. que se confunde então com a decupagem[6]. ao desenvolvimento de uma série dramática dada. o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo. deixando à câmera a tarefa de adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes.. DeMille superior a Hitchcock. Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos. ou essas metáforas intercaladas. essa lealdade sobre o corpo do ator que é o único segredo da mise en scène. ignora as curvas. ela desenvolve um baixoalívio atormentado e fingido. consiste. ao suplantar uma incapacidade de revelar suas virtualidades passionais – do interior – por uma crispação de tudo aquilo que não é o ator. da mesma forma que os escritores medíocres forçam o estilo e brutalizam as palavras para tentar dar a sentir o que eles não sentem. Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa. à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade. Como em Welles. Agora que o prazer do jogo novo desapareceu. ele não salta. barroca se o barroco se define por uma abundância ornamental do signo sufocando a significação.tradicionais. cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita recobrem um expressionismo velho de um quarto de século. como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. Ele é clássico ao extremo.). A arte da montagem. Pudemos verificar graças à segunda parte de Ivan. ou de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção. o Terrível. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock. os movimentos de câmera gratuitos. ou as colorações sucessivas de James Stewart em meio ao pesadelo da vertigem. em suma. É aliás interessante escutar da boca de Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na maior parte do tempo pedimos (ao ator) que atue com calma e naturalidade (. E eis a razão dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. como exemplos do que não se deve fazer. as quedas. Não saberíamos mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa maneira de mostrar o que não há. não sabendo desenhar um homem. os enquadramentos bizarros. tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. como suportar esses choques de planos. tema exterior à mise en scène. aldeias à beira mar. por uma espécie de simpatia direta e fulgurante. enquanto pessoa. como espera a maior parte dos cineastas. como em Rossellini. voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11]. (Enquanto a literatura oferece um terreno favorável às florações mais cerebrais do amor-sentimento. mas que estando dada sua dupla condição de arte e de olhar sobre a carne. robes entreabertos. ele nos colocará sobre rostos. A escolha dos atores é portanto capital. Porque o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos. E é de fato o reflexo do divino. é mais atraente que um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. portanto. parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la. Preminger. Hino à glória dos corpos. donde deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos. Um ator essencial é aquele cujo rosto. Cecil B. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes. se ele comporta um ator essencial (exemplo: O Egípcio. exclamando: “Ah! Isso é divino!”. brecha aberta bruscamente na superfície das coisas e nos arrebatando. robes esvoaçantes. Don Weis. de uma raça eleita que. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame Bovary. refinado – jóias gravadas em fogo sobre peles foscas. ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função de suas virtualidades. Eu devo lhes oferecer minha ajuda. Mizoguchi [10]. Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio. Walsh. Hitchcock. Renoir. meus conselhos. possessão perfeita do mundo e de si mesmo. Não. assim como seus métodos.. pela revelação de seus poderes. mas o homem tornado deus na mise en scène. e explica o prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila. Cottafavi. como cada pintor é atraído por . carros riscando o espaço com traços flamejantes. ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem preço. Losey.. a aproximação tateante da criatura rumo a um criador. DeMille. na admiração tranqüila do prazer. ele estava dotado ao erotismo como reconciliação do homem com sua carne. casacos rasgados sobre o peito do herói – o objeto privilegiado é. dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original. jardins em flor. a imagem de nós mesmos. Fuller. as palavras residindo por natureza no coração da fascinação dos psiquismos. com embriaguez. Lang. portanto seu melhor filme). e no fim das contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição. devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e compreensão. corpos radiantes ou feridos mas sempre belos. o cinema reconhece o erotismo como sua motivação suprema. o que ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator. Ludwig. reconhecemos nossa. Queremos dizer com isso que o cinema não escolheu o erotismo dentre outras vias possíveis. e que Hawks. último avanço da vida rumo a deus. Preeminência do ator Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiriam um catálogo precioso.”[9]. choques de armas. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie. banhado de sol. Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais. como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a outros. somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa empreitada sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim. navios longilíneos. enquanto Eisenstein.Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha. na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres. momento comparável a uma água pura desposando os contornos do vaso.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos equilibrados de uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga em que o amante se estende sobre a relva. Quanto a Bresson. mas se revelando signos muito mais pálidos da fascinação dos corpos. ou ainda. o ator. em que Bella Darvi está sublime). numa outra série. tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção do “autor de filmes” inadmissível e sem cabimento. pela anedota e pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os atores e os objetos. seu classicismo cósmico. sobre aquilo que a tela nos oferece. sedutoras. Crer que basta a um cineasta escrever seu roteiro e seus diálogos. Se nessas linhas eu me faço entender. para ser “autor de filmes” é um dos erros de base que forjam autoridade ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e cega à luz lancinante da tela[12]. recentemente. mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não saem de moda. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade. que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan. por sua ausência de justificação.uma cor. e orientar segundo temas definidos e repetidos os atos de seus personagens. O Mal-entendido. ainda ele. ao menos no caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte. acrescentemos: precisamente porque elas foram consagradas por uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith. quanto a Bergman. antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era démodé. Visconti. Da mesma forma podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles. A derrota dos intelectuais diante dos filmes que não propõem à incerteza de seu julgamento a armadura de uma temática preexistente se verifica graças ao cinema de aventura. Jean Simmons. de mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a cegueira de uma ignorância. Kazan. mas Murnau. outra de panteras convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. suas vitórias ou sua morte. logo seus filmes são grotescos. o fato bruto. do cinema enquanto tal. reencontrada ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg. sumário e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. e O Ladrão de Bagdá. enquanto ao redor dele tudo caiu. fazem eles perderem o chão e chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. seus amores. A noção de autor de filmes se define. sobre . Georges Sadoul. no nível do roteiro e das idéias gerais. Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais sensíveis). amparadas de todos os prestígios da cor. sua gratuidade dionisíaca[13]. O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza. provocou-me querela a propósito de algumas frases sobre Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em aparência tão diversos quanto Angel Face. O que seria preciso demonstrar. Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto). filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks. Gene Tierney. de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina. que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo. permanece visível. afirmar que as “obras-primas” da tela grande estão saindo de moda. poderíamos dizer ontológica. portanto. uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de calma e de pudor. secretas e refugiadas em um mundo de infância. do espaço e dos sentimentos fortes. mulheres feridas. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria dos cineastas. a partir da qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o caráter débil. das quais Walsh permanece o mestre incontestável (muito mais solar que Hawks). Saint Joan ou Bonjour Tristesse. de razão e de ternura. das quais o único tema é o herói. São cegueiras desse tipo que permitem a René Clair. Essas obras arejadas. ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres. idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes. pelo império que o cineasta exerce ou não exerce sobre a matéria mesma de sua arte. “reportagem vivida”. Compreende-se. seu epítome. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène. por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. [6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem. sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa. o brilho do suor. transcendentes à obra e comuns a toda forma de arte. o ódio. [1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade. mas não vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hadji de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte. Como ele desvela o desejo. nesse sentido. o tempo. as árvores ou o mar. a quasetotalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é bela. compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis. podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. O tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência. mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. os jogos tênues da epiderme. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de seres estéticos novos. o espaço. [5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio. [2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin. [4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial. O cinema é um fenômeno idealista. o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Enquanto isso. a presença insistente dos objetos. que o cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar. ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário. o meio de fazer aceitar o fim que é a beleza. como olha a cidade. o abismo de um olhar. é ou não é capaz de nos fascinar. por exemplo. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro. ele é. a violência. contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.. o medo. [3] Cf. Michel Mourlet Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Jr. É preciso concluir. se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação. a elegância de um gesto. a ternura. a espessura de um cabelo. à exceção – totalmente .. como no céu platoniano. a definição de Valéry. e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e fabrique. que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”. nessa perspectiva. Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne. Assim.a luz. o grão da luz. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes. que responde a essas idéias e mesmo as provoca. Somente importa a altura do salto. e se confunde com a simples alegria de filmar um momento raro do universo. e do mundo. o cineasta o definiu colocando o princípio de que há apenas uma forma de pôr em cena um dado personagem em uma dada situação. e a gratuidade que eu reprovava em Welles por exemplo. Que uma dessas três condições apresente falha. Isso equivale a dizer que a organização ideal da matéria visível e sonora em função das premissas livremente estabelecidas pelo roteiro possuiria um caráter de necessidade incontornável análogo à ebulição da água a cem graus. [7] Grifos meus. Quanto ao método. Uma Lucidez Viril Sabemos que há muito tempo alguns amadores tenazes. ainda assim é preciso a ele se ater. [11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”. 66. A mise en scène se funda sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma revelação do ator. que sobretudo com Éric Rohmer. a mise en scène será uma tensão rumo a esse acordo. ele é simples. e a obra carecerá do equilíbrio indispensável à sua função e à sua eficácia. a descoberta dessa solidez dos fenômenos no seio de sua própria criação. é um dos principais criadores de uma arte cuja novidade não favorece o entendimento. [9] Cahiers du Cinéma n° 66. olhar puro. um orgulho sem o qual nada de vasto é concebido ou sequer tentado e um grande respeito pelo verdadeiro. exige do artista a liberdade e a clareza de espírito totais: as chances de erro. em vista da única verdade. Da produção imensa e sem igual de Walsh. é a sabedoria do classicismo e o segredo de uma juventude inalterada. [12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas. afirmam que Raoul Walsh. p. ou a utilização. sem esquecer Allan Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer. primeiramente. Não mostrar de uma cadeia de eventos senão o indispensável a seu desenvolvimento e sua compreensão. mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas. daí três condições necessárias: um método rigoroso. 69. Colorado Territory. esse “tão-somente” representando a forma da mais alta ambição de um artista. são infinitas. assim os contraplongées sistemáticos e inúteis. que pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro. Compreendemos que o reconhecimento. Se o acordo de um gesto e de um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo. segundo seus próprios dizeres. A arte é uma conquista de si mesmo. Fazer-se completa transparência. Pursued ou The Naked and the Dead. ainda que muito pouco conhecidos. que constituem tão-somente o exercício da nobreza e do natural. ou sua imediata expressão. se possível. La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm. mas é a humildade que a encontra. de tal objetivo porque seus colegas não o empregam. [10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer. poroso aos fenômenos. velho cineasta lotado de obras. gratuidade esta de mise en scène. [8] Cahiers du Cinéma n° 66. todos colaboradores ou simpatizantes desta revista[1]. O orgulho está na busca dessa verdade. . Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o terreno. um certo número de filmes se destaca. [13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation.material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica. p. ter visto com os olhos da maior exigência e igualmente da maior simplicidade filmes como Gentleman Jim. É por isso que falo de trampolim. para compreender as razões de um tal julgamento. É preciso. Seu respeito da realidade. Os céus negros. O Rio Sagrado é representativo da dupla ambição que anima os maiores cineastas do pós-guerra: ir ao mais profundo da intimidade dos seus personagens e ressituá-los . Michel Mourlet [1] Présence du Cinéma Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Júnior.e sobretudo Judith Anderson. como aqui Raoul Walsh. por exemplo. quando se encontra nas mãos de um artista genial. é que precisarão triunfar não somente sobre a hostilidade bem concreta de seus inimigos. sobre a qual não se esquiva de exprimir um olhar de ocidental. que contém também um lirismo secreto. se sacrificam a uma ênfase teatral. Ele faz um atalho pela Índia. Robert Mitchum tem o olhar impenetrável daqueles que não conseguiram decifrar o enigma de seus destinos. poema e afresco cósmicos de outro. tal como é descrita aqui. A trajetória da sina de um personagem atormentado pelo peso de seu passado (tema walshiano por excelência) permite a Walsh estabelecer e explorar um universo que começa nas profundezas do coração de um homem e vai se perder em algum lugar no infinito. E a tragédia do herói e da heroína. uma noiva vestida de branco sonha cumprir. Tradução: Bruno Andrade. de um ódio mais denso que a pedra (o de Grant Callum pela família dos Rand). por instantes. Em Sua Única Saída. como também de seus próprios sonhos. os interiores precariamente iluminados por James Wong Howe são gravuras diante das quais. a uma solenidade vinda do fundo dos tempos.um punhado . quase ilimitados. Teresa Wright . para um diretor. uma arquitetura cuja beleza global nasce da exatidão do papel atribuído a suas partes. um improvável projeto de vingança contra aquele com quem acabou de casar. da raça. os rochedos. a virtude de uma impassibilidade soberana invisivelmente atrelada aos reflexos da elegância. e nos confia esse filme magnífico que marca a um só tempo uma pausa na sua obra e uma dilatação filosófica de suas perspectivas. que não constituem sob o plano criativo um período crucial de sua obra. grandiosa. ao seu redor. mas. para além de toda crispação. Jean Renoir Após vários anos passados na América.numa visão global e planetária da realidade. física. Dicionário de filmes.mostrá-lo da forma mais direta. reinventadas pelo cinema. Jacques Lourcelles. de uma continuidade profunda da aristocracia do coração. Quanto aos atores. desfrutar de gênio. Sob esse ponto de vista. em outros termos. de seus pesadelos e de todas as obsessões que conduzem seus imaginários. A arte de Walsh é clássica naquilo que ela manifesta e impõe. O Rio Sagrado é o mais rosselliniano dos filmes de . Sua Única Saída é também uma imaterial história de fantasmas onde. sempre permanecer ligado ao centro. diferentemente. mas que se encontram tanto uma quanto outra rejuvenescidas. De um lado western psicanalítico. Narração concreta. da nobreza física e moral. o território e a ambição do filme são imensos.que demonstram de maneira definitiva os poderes do cinema. Sua Única Saída. Max Steiner nos dá a quintessência de suas partituras: uma música soturna. No cinema. épica.eles e suas experiências . a arte plástica de um Dreyer se assemelha a um esboço de debutante. A lucidez viril de seu propósito não é do domínio dos conformismos demagógicos. Construir. Raul Walsh Sua Única Saída é um dos poucos filmes . é antes de tudo e principalmente ser capaz de o partilhar com os outros. na noite de suas núpcias. O Rio Sagrado. Renoir não retorna diretamente à Europa (onde realizará os quaisquer filmes essenciais que encerrarão sua carreira). ela encarna nas suas nuances e na sua riqueza o propósito do autor. Por sempre ter feito referência quase direta aos mitos do grande cinema americano. elementos que substituíam de forma desajeitada a essência de seu cinema. Mas por trás destas referências imediatas. ambos tendo se tornado o ponto de referência último de certos grandes cineastas americanos. Em todos esses aspectos. Jacques Lourcelles. a gratidão que sente em relação ao universo e a perfeita serenidade que se propõe a atingir. e sua influência mais surda. Dictionnaire du cinéma . Melville é talvez o mais americano dos cineastas franceses: do cinema noir. Nicolas Saada Desde os anos 60. impalpável. redescobriu-se um elo perdido que. as beiras do rio e o próprio rio. marcava uma transição histórica no cinema francês entre a tradição de antes da guerra e a Nouvelle Vague. aos olhos de Renoir. à sabedoria da vida e à unidade do grande Todo. o indivíduo. espiritual e metafísico. o interesse de Holywood e do mundo pelo cinema francês parecia ter se fixado principalmente sobre Godard e Truffaut: Godard era o moderno. é realmente. familiar. Seu estilo com o tempo tornou-se cada vez mais misterioso. distante. Quanto à foto de Claude Renoir. ao consentimento à ordem natural das coisas e à coerência do universo. dissimula-se uma relação muito particular ao cenário. com uma figura nostálgica. a música e sobretudo uma certa “pose”.Renoir. tudo a priori é clarividente: jazz. É por isso que pálidos imitadores focalizaram-se essencialmente sobre detalhes menores. A ambição filosófica do filme encontra seu correlato no minucioso êxito estético de sua realização. a lógica quase fratricida da guerra de gangs e da lei do meio. Da mesma forma. que não cessaram de citá-los em seus filmes. Os percursos de Melville sempre o encaminharam em direção a um crescente perfeccionismo. Franju e Bresson. indiferentes ao tempo que passa e à sociedade. o todo. no seu foro interior. . a Índia e o mundo. A distância entre os atores (profissionais ou não-profissionais) e os personagens que interpretam se encontra em O Rio Sagrado por assim dizer reduzida a zero. e essa convicção se reforça no decurso de sua estadia na Índia. filosófico. Melville foi confundido. social. o filme instala seu objetivo numa série de níveis: sentimental. racial. tais como as roupas. do fato que no universo a parte é tão importante quanto o todo.Les films Tradução: Bruno Andrade Melville e seus discípulos. os espaços onde se situa a história vão do mais íntimo ao mais cósmico: o coração de Harriet. Seus personagens parecem evoluir em um mundo paralelo. Com relação a essa unidade. enquanto seu projeto tendia na verdade a deslocar os signos do filme noir no contexto depressivo do cinema de gênero à francesa Nos filmes policiais de Melville. na sua história pessoal. A consolação suprema vem. mas esta é uma ilusão perigosa que deve desaparecer e dar lugar ao reconhecimento do equilíbrio superior dos ciclos vitais. uma precisão de todos os instantes na progressão narrativa. Truffaut o sensível. ele reteve o fetichismo das armas e das roupas. impermeáveis e stetsons. na sua humilde proporção. de forma equivocada. considerada a justo título com a de A Carruagem de Ouro como uma das mais memoráveis da história do cinema. Com Melville. ao quadro ( cadre) e à encenação. o filme é uma homenagem ao esplendor das aparências. pode se sentir separado. a família inglesa. Graças a um roteiro refinado e sólido que une com uma maravilhosa fluidez um grande número de elementos díspares. Não seria esse o sonho de todo diretor? O documentário e o ficcional aliam-se na história e recriam ao nível formal esta unidade que o filme defende no nível metafísico. que acaba por aprisioná-los e matá-los. com Becker. de sua geografia e de seus personagens. presa ao passado. exilado. É o caso do Assassino. entre eles Denis Manuel. único meio de quebrar os estreitos limites desta cidade-mundo que é Hong Kong. como em Better tomorrow. Minuciosamente. avenidas desérticas filmadas na aurora. Bickle e Jeff Costelo ( Alain Delon) possuem em comum o desejo de não deixar nada nas mãos do acaso: vejamos como Bickle esconde cuidadosamente nas mangas de sua roupa revólveres e punhais. a influência de Melville permaneceu muito parcial. um personagem inspeciona cuidadosamente a situação de um cômodo onde perigosos gângsters. marcaram um encontro com ele. os heróis de John Woo são feitos da mesma matéria dos desenraizados de Melville. tanto pelo tema quanto pela forma. ligados a ideais absolutamente ultrapassados. com o propósito de desvelar a identidade dos traidores que gravitam em torno de seu melhor . ele se fecha em um apartamento deserto. assinalado. extremamente contida. Esta ligação radical à forma parte de uma mesma constatação de fracasso. Em seguida. Assim como em Técnica de um delator. Mas se Melville colcoava seus heróis em paisagens urbanas. interpretado por Gabriel Byrne. personagem tão excepcional quanto ultrapassado. filme profundamente mellviliano. Espremidos entre a tradição sufocante de uma China que os rejeita e o absurdo de uma megalópole que reproduz freneticamente o funcionamento das grandes capitais ocidentais. a fim de ser utilizado em caso de confronto. do qual o quarto-caverna de Jeff em O samurai é uma imagem marcante. Denis Manuel fará o mesmo e descobrirá o revólver escondido. John Woo abole o espaço através da montagem. com Travis Bickle em Táxi driver. O herói do filme. oferece uma variação em torno do personagem abandonado e solitário do Samurai.profundamente insolente e melancólico. No Estados Unidos. o espaço é cuidadosamente esquadrinhado pelos personagens. John Woo também reteve de Melville a extrema inteligência de seus dispositivos geográficos: em uma das mais belas seqüências de Os profissionais do Crime. ele nos faz acreditar em sua traição. mais visível em cineastas cinéfilos como Scorsese que. Em John Woo. onde Chow-Yun Fat esconde um revólver em um corredor que o conduz diretamente para um covil de gângsters. ele busca um lugar onde poderia dissimular uma arma sem que eles saibam. Melville manifestava a impossibilidade da existência do gênero através de personagens isolados e perdidos. e se isolam em uma visão romântica do mundo que os conduz à sua perdição. vazias e desencarnadas. verdadeiros lençóis se estendendo a perder de vista ( imóveis com corredores infinitos.Esta idéia de errância. e possibilita uma espécie de cumplicidade com o espectador. de perdição se reencontra nas cenas filmadas na floresta em Os profissionais do Crime ( Le deuxième souffle) ou O círculo vermelho: sequências de fuga para frente ( dianteira. os recintos das escadarias abandonadas). A sombra de Melville está mais presente nas seqüências rodadas no apartamento de Bickle: como Jeff Costello. Não é por acaso que o cinema de Hong-Kong foi um dos raros a integrar de forma excelente o universo dos filmes de Melville. ele se isola numa espécie de covil separado do mundo. dos Irmãos Coen. aquele da impossibilidade de inscrever no tecido social a presença de silhuetas quase anacrônicas. que se torna pura projeção de seu espírito. Esta idéia está presente quase 15 anos mais tarde. Eles não pertencem a nenhuma verdadeira História. em Ajuste final (Miller’s Crossing). Como Jeff. é um cruzamento entre o Delon do Samurai e o Belmondo de Técnica de um delator. consciente de seu isolamento. O território é marcado. Estes últimos só parecem encontrar seu lugar num mundo desértico ou mental. “fuite em avant”) dos personagens. Tarantino parece ter se concentrado sobre os detalhes mais imediatos do cinema de Melville. Real: Andrei Tarkovsky. Foto: Vadim Youssov (Sovscope. ou mesmo o jovem construtor de sinos). às suas pesquisas de ambiências apocalípticas e extra-temporais. verdadeiro uniforme de gângester. em Melville. Da mesma forma. no quadro. Intérpretes: Anatoli Solonitzine (André ublev). mas antes de tudo bestial. única trincheira contra a barbárie. Andrei Mikhalkov Kontchalovski. a da imensa floresta.lhe permite mergulhar nesta Idade Média indiferenciada onde se banha a maioria de seus filmes. Ele se inscreveu em uma tradição profundamente francesa. Sob o Signo de Capricórnio . Roteiro: Andrei Tarkovsky. os quatro cúmplices marchando lado a lado em direção à caminhonete blindada. O tema abordado . a visão do gênero torna-se uma espécie de meditação. à vista dos quadros de Nicolas Poussin. a fim de que ele alcance um dia a consciência moral. Iouri Nazarov (o duque). dos quais ele é ao mesmo tempo o pastor. o homem parece estar em gestação. o intérprete e a emanação suprema. do qual é preciso arrancá-lo . transmitido sem dúvida à sua geração pelo intermédio de John Woo. dizia. Nikolai Sergeev (Teophane).a procura tateante de um humanismo espiritual. Tradução de Luiz Soares Júnior. Com Cães de aluguel. principalmente a roupa preta.. Irma Raouch (a louca). alguns planos em cores). que este pintava “ dali. designando com o dedo a testa. Nicolai Bourliaiev (Boriska). Jacques Lourcelles. Ivan Lapikov (Kyril). e tentou reinterpretar uma idade de ouro ( âge d’or) desaparecida. Tarkovski se interessa antes de tudo por estes impressionantes movimentos de câmera que petrificam o espaço de uma maneira sólida e surpreendente. Nikolai Bourliaiev (Boris). Le Bernin. Música: Vjatcheslav Outchinnikov. Talvez por este motivo muitos tenham confundido em seu cinema a melancolia com a nostalgia. Sos Sarkissian (o cristo). repetindo o plano fulgurante da fuga de Gian Maria Volonté no início de Círculo vermelho. filmado em pleno dia por Melville nos Profissionais do crime: vemos. Traduzido por Luiz Soares Júnior. que arrasta atrás de si uma multidão de fantasmas. Neste espaço fantasmagórico que é uma espécie de “berço do Ser”. Na vanguarda deste esforço humano e sobre-humano se encontra o artista (Andrei Roublev. daquele ponto ali” ( de là). que inspirou Tarantino. o desejo de reencontrar os laços profundos que unem o presente ao passado (linha Kontchalovsky e Mikhalkov).e esta tarefa parece infinita . Assumindo o risco do esoterismo e mesmo da complacência esotérica. indiferente à violência dos homens. Ajuste final retoma uma das imagens preferidas de Melville. Uma das mais belas sequências do filme é aquela em que Gabriel Byrne deixa John Turturro viver: os Coen o filmam correndo freneticamente no meio das árvores.URSS (175’).amigo. o paganismo e os excessos da religião . A consciência tão somente. Foi um dos aspectos mais decorativos do cinema de Melville. Tarantino certamente deve ter se lembrado do belíssimo plano da autoestrada. criatura embrionária e ainda aprisionada no limo original. Andrei Roublev 1967 . O extremo formalismo do estilo de Tarkovski prolonga a tradição eisensteiniana e se separa radicalmente das duas principais tendências do cinema russo nos anos 60 e 70: a representação analítica e realista do presente (linha Panfilov). Traduzido por Luiz Soares Júnior. Warner Bros. e uma série de sacrifícios recíprocos encadeia uns aos outros de forma mais sólida que em um complot.Under Capricorn . uma dramatização mais discreta que de hábito. Primeiro filme de Nicholas Ray.técnica retomada do seu Festim diabólico. uma elipse quase total das cenas de ação. quem. Real. Diskant. pergunta Domarchi. Por um emprego sistemático e admiravelmente fluido dos planos longos e dos movimentos de câmera . às vezes a coloca ao nível dos outros personagens. Flippen (T. um destes devaneios românticos de Hitchcock onde um retrato feminino constitui o fundo da intriga. uma vez que o falso culpado o é voluntariamente e o conteúdo da confissão repousa na verdade sobre a revelação de um sacrifício do qual o beneficiário não deseja mais ser o único conhecedor. é uma das jóias de sua obra. Roteiro: Charles Scheene. Bibliografia: deve-se ler o admirável artigo de Jean Domarchi consagrado ao filme. Nicholas Ray. onde a palavra tem uma extrema importância. a partir de R.1949. Margaret Leighton (Milly). Jacques Lourcelles. quem se encarregará de narrar ao homem a sua própria história?”. Transatlantic Pictures (Sydney Bernstein e Alfred Hitchcock). Real. sem de forma alguma absolvê-la. Intérpretes: Ingrid Bergman (Lady Henrietta Flusky). Int: Cathy O’Donnel (Keechie). a partir de “Thieves Like Us”. o compositor de Sea devils. primeiro panorama publicado sobre o cineasta. Prod. USA (112’). Joseph Cotten (Sam Flusky).Incompreendido pelo público e pela crítica (com a exceção dos redatores da Cahiers du Cinéma). Ian Wolfe (Hawkins). O que se passa no interior de seus corações é a verdadeira matéria do filme. publicado no número 39 de Cahiers du Cinema (outubro de 1954. Todos os personagens vivenciam seus grandes sentimentos até o limite. que viu no insucesso do filme um grande motivo de vergonha (o que demonstra. C. de Edward Anderson. Roteiro: James Bridie. Jay. de Helen Simpson. Will Wright (Mobley). Denis O’Dea (Corrigan). Soberba música de Richard Addinsell. detestado naquele momento por Hitchcock. Jack Watling (Winter). Música: Leigh Harline. Foto: Jack Cardiff (Technicolor). Entre Rebecca e Vertigo. este filme. especialmente como uma forma de exorcismo do passado. reeditado em 1980). Os temas hithcockianos do falso culpado e da confissão salvadora adquirem um papel muito insólito na economia da intriga. RKO (John Houseman). Mesmo o anjo negro do filme (a governante Milly) age levada por um sentimento de amor profundo que.Usa (95’). Michael Wilding (Charles Adare). Dub). Helen Craig (Mattie). Farley Granger (Bowie). uma das vedetes holywoodianas mais incensadas da época. Prod. Hume Cronyn. Howard da Silva (Chickmaw). Cecil Parker (Sir Richard). Sob o signo de Capricórnio é também um dos mais belos Technicolor da história do cinema. “A obra-prima desconhecida”. por uma lentidão e uma solenidade desejadas da intriga. They Live by Night 1949 . mas aqui com uma outra finalidade -. muita humildade de sua parte). afinal. inscrito no campo ao mesmo tempo estrito e aberto a . Alfred Hitchcock. O roteiro foi escolhido por Hitchcock por agradar a Ingrid Bergman. “Se a literatura moderna não tem mais o tempo de contar uma história e se o mito do antiherói é um pretexto cômodo para resolver problemas que interessam unicamente aos técnicos. Foto: George F. Nicholas Ray. Hitchcock dá a seus personagens e às relações que se encadeiam entre eles uma estranha espessura romanesca. Música: Richard Addinsell. onde cada ato é realizado como se fosse em praça pública. o finito não encontram lugar. composto quase unicamente de lugares de passagem (motel. Para ele. É preciso acrescentar que. onde a ordem assim estabelecida tende a eliminar toda vida privada e liberdade. e de uma forma quase espontânea. Renji Mizoguchi. trata-se aqui essencialmente de uma obra poética. e só foi realmente conhecido bem mais tarde. Matsutaro Mawaguchi. Haruo Tanaka (Doki). A desorientação. que em si mesmos interessam pouco a Nicholas Ray. onde se esvaem a melancolia e a angústia dos personagens que os atravessam. É uma liberdade trágica que recria. They live by night foi completamente ignorado em sua primeira estréia americana como um filme B. tiraram estes filmes dos arquivos e os colocaram no mercado”. ou seja. Intensamente felizes e infelizes. a inadaptação ao meio (a um meio degradado. Sakae Ozawa (Sukeemon). graças à TV. em um mundo noturno e violento. No plano estético. deveres e um respeito que tornam irrisórios os determinados pela ordem social. Eitaro Shindo (Ishun). Roteiro: Yoshikata Yoda. a partir de Daikyoji Sekireki. Prod. 143) que o filme foi conservado 3 anos nos arquivos da firma. sala de espera. Remake sob o título Thieves like us por Robert Altman em 1974. apodrecido) que caracteriza os dois heróis representa a melhor imagem que Ray encontrou para exprimir o exílio interior do homem e este sentimento de estranhamento (étrangeté) a tudo . Kyoko Kagawa (Osan). e em primeiro lugar a eles mesmos. Yoko Imanmida (Otama). Foto: Kazuo Miyagawa. 1948). o filme não tem nada a ver com You only live once (que Ray não tinha ainda visto na época) nem com Gun crazy (Joseph Lewis. que na RKO deu a primeira chance a Nicholas Ray e foi um dos produtores mais criativos de Hollywood recorda (em Cahiers du Cinema. de Chikamatsu Monzaemon. Os Amantes Crucificados Chikamatsu Monogatari 1954 (Japão. Kyoto (Masaichi Nagata). o “ser” dos personagens só pode existir na intensidade e na tragédia. Mas esta reaparece no amor e no jogo imprevisto das paixões. ainda mais que Huston em The asphalt jungle. porém. tanto em seus desenvolvimentos quanto em seus parênteses. semelhante universo convém idealmente a Mizoguchi. O que lhe interessa é mergulhar seu casal de jovens inocentes. “Finalmente. quando Hughes decidiu vender a companhia. descritos com este tom de lirismo terno e empolgante que nunca teve tanta força quanto em seu estilo. Música: Fumio hayasaka. 102’). Neste ínterim. Chickamaw o cego. Int: Kazuo Hasegawa (Mohei). Bowie e Keechie. onde o anedótico. Desde sua primeira obra. apesar de algumas superficiais semelhanças de roteiro. entre os amantes. Real. Chieko Naniwam (Oko). auto-estrada). que sentem certos seres ao longo de sua vida. escamoteia várias cenas espetaculares e passa de lado pela briga onde Howard da Silva (Chickamaw) encontra a morte. Daiei. assim como The set-up de Robert Wise. os amantes crucificados transgridem . a ação propriamente dita. lhe servirá para exaltar a juventude e a vulnerabilidade dos dois heróis. cada sentimento dos dois heróis surge em um presente que é a Eternidade. Nota: John Houseman. O relevo selvagem dos personagens secundários. o superficial. Ray torna-se um expert na transgressão de gêneros. Cada gesto e entonação. a Europa havia descoberto o filme e Nicholas Ray. Jacques Lourcelles. Ele negligencia. O feudalismo descrito por Mizoguchi: um universo onde cada um tem seu lugar fixado na hierarquia dos deveres e do respeito.todas as transgressões do filme noir. uma obra na qual a figura da metáfora orienta toda intriga do filme. Traduzido por Luiz Soares Júnior. Como em muitos de seus filmes. Mattie a delatora. aliás. ela se deixa assassinar. a velha Moe (interpretada pela perfeita Thelma Ritter. Podemos julgar a respeito de seu talento. clamando pela morte como uma libertação. o cineasta por excelência: uma espécie de igual. ou seja: é um filme que utiliza diversas externas e descreve uma investigação que poderia dar um excelente artigo de jornal.maladresse. Milburn Stone (Winoki). 1951. cujas composições foram inesquecíveis em Lettres to three wives. o barroco de Fuller privilegia sempre os planos muito comprimidos ou muito largos. a certeza (dir-se-ia que toda “falta de jeito”. corajosa e íntegra à sua maneira. a determinação tranqüila com os quais Mizoguchi põe em obra esta fascinação nos enquadramentos. de contemporâneo na eternidade de um Goethe ou Shakespeare. exercem fascinação tanto sobre os outros personagens quanto sobre o espectador. Fox (Jules Schermer). ela vende Widmark à polícia. Jacques Lourcelles. Usa (83’). Murvyn Vye (Capt. aos quais. Fuller. em detrimento dos planos médios). um certo humor sardônico e insolente que não é exclusividade de Fuller (ver os filmes de Don Siegel) e que tem um duplo efeito contraditório. Fuller com frequência andou pelos meios marginais aqui representados. o material literário aqui utilizado poderia ser comparado. sacudidos ainda pelo frêmito elétrico que Fuller impõe a todas as suas histórias: caracterização aguda dos protagonistas secundários. aliás. segundo seus hábitos “profissionais”. A arte. e mesmo das "pontas" (o homem se empanturrando de arroz que vende informações para Jean Peters e cata com pauzinhos as notas que ela põe sobre a mesa). Prod. este humor distancia o espectador do filme. velha mulher fatigada. a partir de uma história de Dwight Taylor. Thelma Ritter (Moe). ou seja. ao menos em seu último período. solicitando sua cumplicidade. (Aliás. Real. Mas ao mesmo tempo liga este espectador de modo mais eficaz à ação. Não esqueçamos também o humor. Int: Richard Widmark (Skip Mccoy). Bouchey (Zara).as leis de seu universo social e estão para além de todo e qualquer julgamento. no meio da história. tempo vivo e às vezes ofegante. Roteiro: Samuel fuller. no grão da foto ou no jogo dos intérpretes fazem dele. Dan Tiger). sábia utilização da profundidade de campo e de longos movimentos de câmera. sob este título. The mating season de Mitchell Leisen. Jean Peters (Candy). virtuosidade e controle do filme pelo fato de que a cena mais engraçada e a seqüência mais trágica da intriga tenham por protagonista o mesmo personagem. Eles nos aparecem como os únicos verdadeiros seres vivos do filme e.lhe é desconhecida). Música: Leigh Harline. Anjo do mal é ao mesmo tempo o mais impessoal e mais autoral de seus filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior. Admirável lição de cinema da qual cada plano é marcado pela sensibilidade vibrante de Fuller. Os méritos de Pick up são aqueles de um bom filme de ação. num certo grau. Ele se inscreve na veia documentária do filme noir. Na segunda seqüência. muito freqüente no cinema hollywoodiano do pós-guerra. deixa de lado este humor quando lhe parece adequado. . Samuel Fuller. Richard Kiley (Joey). O Anjo do Mal Pick up on south street 1953. Na primeira destas sequências. Quando era jornalista. Willis B. e Janela indiscreta. Foto: Joe Macdonald. com o fim de dar à ação sua dose justa de pimenta e realismo. etc). dois personagens que “de nada valem”. Mas por que Hawks assinaria este . constantemente em desequilíbrio entre o universo dos bons e dos maus e sem pertencer propriamente a nenhum desses. técnica. Jacques Lourcelles. como o batedor de carteiras interpretado por Widmark. contra toda espectativa. Quando são tentados a fazê-lo. lirismo. eles não vão parar de “se pegar” ao longo do filme). Rio Bravo é também basicamente antagônico a um Johnny Guitar. embora o fim que resulte seja um tipo de poesia. mas jamais ultrapassam esta tênue fronteira. dinamismo e vitalidade poderosos. em especial. A discreta direção do filme está preocupada com algo além de si mesma – problemas pessoais. o batedor de carteiras (passado suspeito. as regras do jogo são respeitadas. cenários construídos no estúdio. Como sempre ocorre em Hawks.os mais tocantes. quase sempre baseiam-se em princípios. Não há nada intrinsicamente poético a par do filme. Toda a ação é vista segundo a perspectiva de dois exluídos socialmente. no seio de seu pessimismo explosivo. O gênero me aborrece porque. Tradução de Luiz Soares Júnior. Ela nega o espírito do verdadeiro western e toma partido de seu inverso: ênfase. desorientados. E traz à mente a lembrança de um thriller como To Have and Not Have ou de um melodrama como Barbary Coast. Rio Bravo é um filme extremamente original. uma visão moral e anti-convencional do mundo. seu anjo bom os impede (cena onde Jean Peters arrasta Richard Widmark). Nota: Em uma sequência de emissão televisiva Cinéma Cinémas. embora os sentimetos que ele retrate sejam admiráveis. Talvez por serem estes personagens os mais “superexpostos”. Personagens deslocados. se postam no limite do mal absoluto. Aqueles aos quais Fuller particularmente se identifica. (Aliás. políticos. pelo menos até o ponto definido por Hawks como suficiente.Passemos ao aspecto mais estritamente “fulleriano” do filme. uma certa integridade entre estes personagens marginais. O anti-comunismo tratado no filme serve de critério de julgamento acerca da relativa putrefação dos personagens. O ponto de vista de Fuller é o de mostrar uma certa solidariedade.que eles. que a estação do metrô e a cabine são. paisagens ou cenas de perseguição. entre uma porrada e outra . assumindo mais ou menos sua condição e adeptos semi-conscientes de uma moral que eles poderiam facilmente voltar contra os pilares sociais. são também . portanto. vistos. a aventureira e Richard Widmark. eles permitem ao autor exprimir. passam a sentir um pelo outro. situação precária de sobrevivência na selva das cidades) torna crível a paixão fulminante – “coup de foudre”. como traidores destes mesmos valores. Fuller comenta na moviola os primeiros planos de seus filmes e indica. não em fatos. segundo os valores burgueses da sociedade. decoro.dramática e moralmente . Eis a razão de adorar Rio Bravo. A semelhança profunda que existe entre Jean Peters. Rio Bravo Eu detesto westerns. Ele realiza algo raro na redescoberta da essência do gênero. um faroeste sobre confinamento em que não há índios. e o faz a partir de um caminho fora do comum (considerando que Red River e Big Sky chegam ao mesmo resultado sem romper com a tradição). para Carpenter. pela natureza de seres fora do padrão. “Eles Vivem” ilustra. “reproduzam-se”. por alguma razão imediatamente fixa a extensão de possíveis conseqüências. “submetam-se”. Eu não sou um xerife. “consumam”. mas nenhum deles real. que Carpenter recomeça. É assim. é recebido por uma pequena comunidade de desempregados e vagabundos. E a inteligência blasé de Wayne. com nada. . “não reflitam”. a Los Angeles para encontrar um emprego. eu estou dentro do sistema”. localizada próxima a uma igreja. “o dinheiro é seu Deus”). desde seu grande fracasso comercial. e eles eliminam todo suspense. afinal? Porque permitiria ao diretor apresentar ações que não são ordinariamente vistas todo dia no mundo. ou Angie Dickinson. Luc Moullet. evidentemente. Nada é ao início bastante ingênuo. nenhum deles apresenta qualquer valor dramático verdadeiro. voltou à produção B após seu purgatório em diferentes majors hollywoodianas. ou um faraó. Os incessantes disparos acabam somente por se tornarem monótonos. Há vários disparos em Rio Bravo. Mostrar: o próprio tema de “Eles Vivem” (e a função de seu herói). o extraordinário). bolsa nas costas. é porque Carpenter seguiu um trajeto (produção B-televisão-majors-produção B) comparável ao de seu personagem em “Eles Vivem”. graças aos óculos escuros fabricados pela resistência (a produção B). de John Carpenter) O filme se abre num clima de errância que caracteriza o cinema de Carpenter e sua filiação ao western e aos seus heróis solitários. espécies de “decodificadores portáteis”. Em 1982. Ao contrário. nem mesmo alguns de vocês. o velho adágio languiano segundo o qual a aparência não é a realidade.western. Apocalypse Now (Eles Vivem. até mesmo ignorando-os em The Thing. “Aventureiros do Bairro Proibido”. Se é possível arriscar esta analogia. a propósito de seus primeiros passos com as majors: “Uma parte do charme de Assalto a 13ª DP ou de Halloween devia-se ao fato de que não havia dinheiro suficiente para mostrar as coisas. Cada gesto repetido anula seu predecessor. Nada. Depois. satirizou-os. John Nada é. uma preocupação moral que o aproxima de Fritz Lang. Este horror da realidade é mostrado bastante curiosamente através de imagens em preto e branco. onde entrará em contato com resistentes que lutam impetuosamente contra invasores misteriosos que controlam a população. crédulo (como poderia ter sido Carpenter no início dos anos 80 antes de seu fracasso nas majors): “Eu acredito na América. hoje me dão dinheiro para mostrá-las. aceita igualmente o trivial: um homem é um xerife do mesmo modo que é um peão ou um condutor de metrô. então é necessário fazê-lo”. mas também. longe de contemplar o ato. Cahiers du cinema. Contudo. Julho de 1959. O herói é John Nada (interpretado por Rodney Piper. O Hawks classicista sempre rejeitou estes valores. certamente um tema cinematográfico. Hawks ainda nos mostra que o atrativo de tais indivíduos não está relacionado com aquilo que seria de se esperar (o mundo da aventura. declara ao início do filme. Tradução de Felipe Medeiros de Morais. o próprio John Carpenter que. ex-lutador) que chega. similar ao modo prévio dos heróis hawkianos possuírem olhos atrás de suas cabeças. o visível não é a verdade. conduziu-os ao ridículo. Carpenter declarou a Cahiers du Cinéma (nº 339). Provocação de Carpenter ao espectador que não consegue mais fazer a triagem das imagens que lhe são enviadas cotidianamente. na verdade. Como Wayne o faz é uma questão de telepatia. sem abrigo nem trabalho. Nada terá a prova de que não se pode confiar no sistema: este que rege a América de hoje é nada mais que o fruto de um vasto complô fomentado por extraterrestres (auxiliados por humanos sem escrúpulos) que embrutecem a população lhes transmitindo mensagens subliminares primárias (“não pensem”. hitchcockiano. que se podia dar por desaparecidos: isto é excepcional. Música:Franco Casavola. Em total adequação com seu tema. Todas estas batalhas são dominadas por uma distância plástica que as transforma em verdadeiros ballets. Rina Morelli (Irene). . magnífico. uma briga de mais de dez minutos entre John Nada e seu colega Frank (que ele obriga a usar os famosos óculos) ilustra dois princípios hitchcock-hawksianos. digna do melhor cinema soviético: um insert. com perspectivas de profundidade limitada (ruelas. em outra medida. Harry Feist (Serge Ivanovitch) Paollo Stoppa (um bandido). O segundo. O Águia negra participa do renascimento do gênero. felizmente. ritmados por uma montagem. arte na qual ele se tornou mestre (assim como na utilização da trilha. Itália (106'). realização: RICCARDO FREDA. de sofrer a dor a fim de melhor ver. A cena pivô do filme. a estação televisiva. Gino Cervi (Kirilla petrovitch). através de longas seqüências quase mudas. para Frank. tão opressora quanto possível). Tradução de José Roberto Rocha.que revelam esta visão decodificada do mundo. A fonte de emissão destas mensagens é naturalmente a televisão e seus programas (outro câncer do cinema americano) que a resistência tenta sabotar. “Eles Vivem” é também a história de uma mini-insurreição que se pode interpretar ao mesmo tempo como política e. fuzis às mãos. ele não faz com que Carpenter caia nas armadilhas do filme de gênero (filme de ação). depois da adaptação de Clarence Brown com Valentino (1925) e do russo Alex Ivanovsky (1937). é menos uma homenagem que uma necessidade: trata-se. em certos instantes. é que tudo deve ser utilizado para as necessidades de uma cena (como o avião de “Intriga Internacional” que fumiga Cary Grant). a extensão do mal ao criar um sentimento de inquietude e agonia constante. “Eles Vivem” soube reencontrar esta beleza e este discurso da produção B americana. o negro. é um ex-lutador: e nesta lógica ele deve. e também o é para aqueles de Carpenter. Carpenter prefere mostrar. Carpenter poderia ter recorrido a outros estratagemas visuais: na verdade. citado por Carpenter como um pai em sua cinefilia) que joga nova luz sobre a face absolutamente inumana da América deste fim de anos 80. Cahiers du Cinéma. acentuando este efeito ao fimá-los em espaços fechados. O primeiro. a partir da novela Doubrovski. formato ingrato que Carpenter emprega para isolar os personagens alienando-os no quadro. este mal é necessário: já o era para o herói de “Comando Assassino” de Romero. Diante da papa em que se tornou o cinema comercial americano. Irasema Dilian (Mascha Petrovitch). abril de 1989. explicitada verbalmente no filme. Nicolas Saada. herdado das brigas iniciáticas dos filmes de Hawks ou Ford. notadamente em seu controle do scope. Terceira adaptação da novela de Pushkin “Doubrovski”. Prod: CDI/Lux Film. O intérprete de Nada. Aquila Nera. brigar. Rodney Piper. Roteiro: Mario Monicelli. como de cinefilia. a um momento ou outro. corredores. Stefano Vanzina e Riccardo FREDA. Inga Gort (Maria). Int: Rossano Brazzi (Vladimir Doubrovski). foto: Rodolfo Lombardi. Quanto ao aspecto “guéguerre” que alguns censuram no filme (a luta a mão armada entre os resistentes e os invasores). O resultado de “Eles Vivem” é deslumbrante. Assim. Riccardo Freda 1946. becos). este preto e branco pertence a um cinema de ontem (Hawks. dos canos das metralhadoras marca a maioria destas seqüências. Esta gravidade da proposta de Carpenter nunca é. em vão. de Alexandre Pushkin. Segundo filme de capa e espada de Freda. através de transmissões clandestinas: John Nada e seu colega negro Frank vão destruir. primeiro ano no qual a Itália retoma uma produção quantitativamente normal. Robert Warwick ( Phillip). o espírito e o dinamismo da mise-en-scéne de Freda abrem caminho a uma renovação triunfal do filme de aventuras. e para a evolução de uma parte do cinema italiano. Nisso também ele se encontra na contra-corrente. assim como à sua prodigiosa faculdade de atenção ao presente. Música:Maurice Stoloff.adaptados em seguida pelo mesmo diretor-. de May Edington. Jacques Lourcelles. ao contrário dos cantos fúnebres do caligrafismo (basta comparar seu filme a Um colpo di pistola. Daí vem sua dupla importância para a obra de Freda. Foto: Henry Freulich. com seu Don Cesare de Bazan. cenas de ação coletiva. Este realizador tentou provar que a velha Europa. sugerida por “Purple and Fine Linen”. Harry Sauber. Edward Ludwig 1936. Traduzido por Luiz Soares Júnior. Reginald Owen (Blackton Gregory). cujas preferências e tomadas de posição vão frequentemente no sentido do gosto do grande público. outra adaptação de Pushkin. consubstancial a toda história do cinema italiano. USA (73’). estilização esplêndida da reconstituição plástica. assim como ao caligrafismo moribundo de Soldati e Castellani. Jack kirkland.renascimento iniciado pelo diretor antes mesmo da queda do fascismo. Roteiro: Sidney Buchman. à sua resignação mais ou menos confessa. duelos e perseguições com um frenético brio. Nota: Cinco anos mais tarde. Sábio ritmo do découpage. mesmo recém-saída de um conflito mundial que em muitos sentidos a desvitalizou. Freda vai dirigir uma continuação extremamente brilhante para este filme. Ele vira as costas ao acinzentado (grisaille) unanimista do neo-realismo. se rebela contra esta idéia. Realização: Edward Ludwig. Antes de tudo. O filme é um imenso sucesso comercial: esteve em primeiro lugar no circuito italiano de 1946. o rapaz do café). importância esta confirmada por suas escolhas. Diametralmente oposto ao neo-realismo nascente. Columbia. Intérpretes: Jean Arthur ( Claire Peyton). Freda se serve do filme de aventuras para exaltar as forças da vida. seguindo diretamente o fio desta tradição heróica e espetacular. chamada La vendetta di Aquila Nera (1951). Dicionário de filmes. Joel McCRea ( George Melville). Freda se interessa também a dar todo o relevo possível a personagens de heróis individualistas. sua obra é a de um estilista de qualidades múltiplas. Victor Kilian (Marc Gibbs). forjando seus destinos com as próprias mãos e contra todos os obstáculos. Prod. ADVENTURE IN MANHATTAN. possuía ainda uma fonte ardente. baseado em uma história de Joseph Krumgold. lhe pertence de direito. desde suas origens. . dirigida por Castellani). fantasia e poder: por que estas qualidades seriam exclusividade do cinema americano? Toda a obra de Freda. Dante e Hugo . Herman Bing (Tim. que ela era capaz de ilustrar de maneira criativa e vigorosa uma história que. tais como as de Dumas. com 46 longas-metragens. Femmes. Vamos reencontrar algo deste orgulho aristocrático nos personagens de aventureiros criados mais tarde por Ludwig. Fascinado por estes temas ao ponto de neles submergir. o espectador é constantemente surpreendido por uma intriga rica em sequências de fundo duplo. se enfrentando por meio de ficções e estratagemas interpostos: um melodrama mórbido oculta uma farsa e uma pequena vingança. Roteiro: Vecchiali . Aqui. De 1932 a 1944. Ludwig avança a passos largos em sua narração. sem se importar de uma verossimilhança imediata. ou The man who lost himself. em enigmas engenhosamente construídos e resolvidos. femmes representa uma síntese improvável e insólita entre estas duas tendências. 1934. assim . da velhice. Noel Simsolo (Ferdinand).Antes de encontrar seu domínio de eleição . Edward Ludwig.entre uma nostalgia por um cinema popular. Paul Vecchiali 1974. Foto: Georges Strouvé. do fracasso. Michel Delahaye (o médium). mutuamente respeitosos. explorados até a náusea. irônica e insolente para o segundo. Jacques Lourcelles. A obra de Paul Vecchiali se encontra repartida . uma representação teatral extremamente dramática facilita um assalto. Nöel Simsolo. assim como sua indecisão sobre o tipo de filme que melhor lhe convinha. Huguette Forge (a cliente). altiva e criminal para um. Stephan Films (Jean Feixe t Paul Vecchiali). ou mesmo na imagem. hesitou longamente entre diversos gêneros. vários de seus filmes (The man who reclaimed his head.tão caro à Columbia dos anos 30. o filme. o que lhes aumenta a eficácia.(120’). Paul Vecchiali. France . tal como o que se praticava na França dos anos 30. atmosfera constantemente lúgubre e mórbida. Traduzido por Luiz Soares Júnior. 1941) testemunham seu gosto vivíssimo pelo insólito.Intérpretes: Hélene Surgère (Hélène). Adventure in Manhattan é a mais bem realizada obra desta época que conhecemos dele. irrealismo exagerado dos personagens secundários. um cadre) este meio de jornalistas exuberantes e tagarelas . Ludwig toma como campo da ação (mas não é nada além de um campo. O gosto de afirmar sua superioridade conduz cada um dos protagonistas à solidão. Música: Roland Vincent. FEMMES. da decadência e da morte. incongruência dos números musicais ( às vezes muito bem realizados). esta estranha sobriedade de grande contador de histórias. Réal. unificadas no roteiro. Michel Duchaussoy (Lucien). lentidão e ausência de ação. um dos grandes diretores desconhecidos do cinema hollywoodiano.ou talvez fosse melhor dizer “dividida”. Excessivamente distanciado e ao mesmo tempo voltado sobre si mesmo. artifício do jogo e da dicção. Unité Trois. Ele despreza igualmente sublinhar seus jogos de prestidigitador. Prod. Tudo isto num universo fechado (huisclos) que se quer expressamente "à la Cocteau”.o filme de aventuras exóticas e solares onde triunfará nos anos 50. e desenha as premissas de uma falsa comédia americana que é também uma falsa comédia policial. FEMMES. Sonia Saviange (Sonia). e pesquisas resolutamente experimentais e de vanguarda. pelos temas. O tema real da intriga é o combate sem misericórdia entre dois estetas. Ludwig arrasta atrás de si um espectador intrigado e maravilhado por esta facilidade. Vecchiali acumula aqui uma série de elementos que parecem reunidos com o propósito de afastar o público: preto e branco sujo e débil. esta não tinha necessidade de ninguém para chegar sã e salva em Los Angeles. O que acontece em The narrow margin antes e durante a viagem de trem se assemelha com efeito a uma terrificante tragicomédia de erros. Neil. e constitui assim uma espécie de compêndio (précis) da mise-en-scéne hollywoodiana. Rot: Earl Fenton. através da qual Fleischer afirma suas escolhas e o tom de gravidade que ele pretende dar à sua história. e é justamente seu encontro (fortuito) com o policial que põe em perigo sua vida! Diante desta impossibilidade real de agir. David Clarke ( Joseph Kemp) Peter Virgo (Densel). morre por nada. vive da nostalgia do passado. Foto: George E. Jacques Lourcelles. USA (71’). o parceiro do herói. The narrow margin é. Prod: RKO (Stanley Rubin). No que diz respeito a The narrow margin. Ele é a prova de que. que teria dado sua vida para testar a honestidade de seu colega.como seus personagens. Quanto à verdadeira Sra. The narrow margin mostra estranhas semelhanças com obras muito posteriores de seu autor. The happy time). baseado em uma história de Martin Goldsmith e Jack Leonard. seu último filme para a RKO. o filme está longe de ser um puro exercício de estilo. tensão. Neil). improvável e suicida da condição policial que é designado. como The new centurions (1972). Apesar de seu brilhantismo. Jacqueline White (Ann Sinclair). eficácia. Marie Windsor (Mrs. no cinema. Int: Charles Mcgraw (Walter Brown). (onde ele realizou o essencial de seus primeiros filmes). sobretudo por esta ausência voluntária de humor e de ambigüidade moral no herói. Real: Richard Fleischer. Paul Maxey (Sam Jennings). é impossível ressuscitar aos mortos. É também um completo filme de autor. mal-estar. de uma grave crise moral da civilização . com efeito. THE NARROW MARGIN. tal como a que se praticou em seu mais alto nível no filme noir e nos filmes B. Diskant. assim como na vida real. o policial interpretado por Charles McGraw tenta sobreviver e realizar seu trabalho com esta obstinação taciturna e petulante que encontraremos com frequência nos heróis de Fleischer. Laconismo. especialmente devido à exigüidade do cenário do trem. e o anti-penúltimo filme em preto e branco em formato normal desta companhia (antes da deliciosa comédia realizada por Stanley Cramer. Gordon Gebert (Tommy Sinclair). Troll). assim como a mulher policial (Marie Windsor). Peter Brocco (Vincent Yost). Queenie Leonard (Mrs. Dicionário de filmes. embora tratado de forma menor e com uma grande modéstia estética. Richard Fleischer 1952. Gus Forbes. este pessimismo não é apenas a característica convencional e estrutural de um gênero mas o índice certo. Don Beddoe (Gus Forbes). Por outro lado. ação incessante e sem tempos mortos: The narrow margin leva todas estas noções ao seu limite extremo de virtuosismo. notadamente nos personagens interpretados por George C. A espantosa perfeição formal do filme marca o fim do longo aprendizado (uma dezena de filmes em cinco anos) sofrido por este superdotado da mise-em-scéne que já à época era Richard Fleischer. é o mesmo aspecto trágico. absurdo. Scott em The new centurions e The last run. Traduzido por Luiz Soares Júnior. onde se desenrolam três quartos da ação. Nos dois filmes. ao invés de simplesmente viver. levado e escondido ao hospital real de Londres. Traduzido por Luiz Soares Júnior. acometido de um pesadelo. Deste modo.urbana americana. Nós nunca sabemos como uma cena pode terminar. Ele presta-se (ainda do mesmo modo que Treves) a ver uma aberração (1): este homem elefante sucessivamente exibido e ignorado. entre outros. funciona um pouco por assim dizer a exemplo de uma armadilha. o homem elefante. E primeiramente por causa daquilo que David Lynch realiza a partir da idéia de medo: o medo do espectador (nossos) e aqueles pertencentes às personagens. o medo dele em se ver no olhar de outro. David Lynch Por Serge Daney O monstro é quem teme Este filme é singular em vários sentidos. o que lhe custou um imenso atraso no lançamento do filme. sumariamente visto em uma espelunca. incluindo o de John Merrick (o homem elefante). um compêndio (précis) de decomposição. e obteve um imenso sucesso. O espectador o vê – realmente – pela primeira vez. Jacques Lourcelles. então chefe da RKO. mas o que ele também vê é que aquele monstro o qual espera-se temer é quem sente medo. algumas divertidas (a visita da princesa ao hospital como uma “dea ex machina”). nuvens movendo-se rapidamente em um céu carregado. são os perturbadores espelhos. uma “excentricidade” para os cientistas. corredores desertos de hospitais. como se Lynch estivesse dizendo: você não é aquele que importa. ele é tão desapontador que Lynch simula praticar o jogo do filme de horror clássico: noite. até a chegada ao hospital. O espectador é induzido a pensar que mais cedo ou mais tarde ele terá que testemunhar algo insurpotável ao defrontar-se com o monstro. propôs refazê-lo a Fleischer com um orçamento muito maior. não é o teu medo de vir a se chocar que eu quero manipular mas o medo dele de assustar. também e sobretudo. É neste momento que David Lynch liberta seu espectador da armadilha primeiramente estabelecida (a armadilha do “algo a ser visto”. é ele. a partir do ângulo do voyerismo. abrigado e agredido. Nota suplementar: Impressionado pelo filme. O salmo é um espelho O Homem Elefante é uma série de ações bem-sucedidas de théâtre. Realizado em 13 dias em 1950. Dicionário de filmes. crise esta da qual os filmes de Fleischer . Isto não interessou a Fleischer. o filme só foi lançado na primavera de 1952. e repentinamente neste ponto surge a tomada de John Merrick levantado em sua cama. outras mais transtornantes. este compêndio de miseem-scéne é. de que Johm Merrick não é um incurável. a primeira parte do filme.Como em muitos filmes de Fleischer. tendo como stars Robert Mitchum e Jane Russell. E quando o espectador o vê afinal. Howard Hughes. A vertigem toma outro partido. o diretor do hospital (magnificamente vivido por John Gielgud). O espectador é conduzido ao filme à maneira de Traves. Um grosseiro saco com um buraco para olhar é tudo que o separa do horror que ele conjetura. pede a este que memorize e venha a recitar em seguida o início de um salmo: mas tão logo os dois médicos deixam o . não é o teu medo que me interessa mas o dele. Quando Treves deseja convencer Carr Gomm. O Monstro é quem Teme: The Elephant Man. Sobre uma mão. Ele irá realizá-los na mesma noite. clássica. O homem elefante cultiva dois sonhos: dormir sobre suas costas e ir ao teatro. Merrick ao menos pôde ver no olhar do outro algo totalmente diferente do reflexo da aversão que ele inspira. Kendal. No teatro. Merrick não pára de surpreendê-los ao mostrar o retrato de sua própria mãe (ela é lindíssima) e por ser o primeiro a oferecer um lenço à esposa de Treves. mórbido erotismo e epistemologia. Então há o olhar moderno. Treves se resguarda: é a primeira luta do humanista (à la Kurosawa). há somente corpos tratados com somenos importância. É deste modo que o homem elefante é o espelho deles. Três olhares para três eras de cinema: burlesca. Eles vêem menos e menos. é a Sra. eles viriam o reflexo dentro dos olhos de Merrick. Há primeiramente o olhar inferior. coup de théâtre: este homem o qual o próprio Treves considera um cretino sabe a bíblia de cor. como a estrela convidada. Lynch conduz assim a remição de . Impacto. uma máscara de cortesia que dissimula aquilo que eles sentem a respeito de sua visão. Eles vão ver John Merrick para pôr à prova esta máscara: se seus medos os traíssem. Mas o que exatamente? O fim do salmo. O ciclo se fecha. a quem fala como se fosse um velho amigo. tornar-se amiga do homem-elefante. uma observação precisa. moderna. quando lê um jornal. e a aspereza de lynch. eles ouvem Merrick recitar o final do salmo. Ele compreende o cúmulo do artifício pela verdade e claro que ele não está errado . a observação das pessoas humildes. que repentinamente derrama-se em lágrimas. quando Merrick se esforça de sua cabine para conferir quem lhe dirige aplausos por vê-lo. Há um bocado de carnaval na cena onde Merrick é embriagado e raptado. quando Treves o apresenta a sua esposa. o único que marca a tela. indo tão longe naquela que até o beija. há o terceiro olhar. não há nenhuma essência humana a ser representada (equiparado com a face de um monstro). Ele é somente algo que esta sociedade precisa. Finalmente. o olhar fascinado do doutor (um notável Anthony Hopkins): respeito ao próximo e má consciência. Há um discreto humor na forma de posicionar o homem elefante como o único que sempre preenche a foto na qual se configura. o lenço. No carnaval. o hospital. Numa cena bastante desconfortável. vitoriana e puritana. havia a abjeta promiscuidade entre a aberração e o homem a exibi-lo (Bytes). pela qual ele torna-se uma atração obrigatória. Mais tarde. sobre este olhar. sobre a outra mão. No começo do filme. dissimular. sem o qual ela não pode ser completa. Assim John Merrick encontra seu lugar no painel da (alta) sociedade inglesa. Depois de cuidar do homem elefante. mas eles mesmo se vêem mais e mais em seu olhar. o retrato. que decide. Merrick pode morrer e o filme pode terminar. O final do filme é bastante comovente. a estrela do teatro de Londres. mentir e até mesmo mais. nós não sabemos aquilo que ambos vêem.recinto. vence uma aposta pessoal: nenhum músculo de sua face estremece quando é apresentada a Merrick. Quanto mais o homem elefante é popular e celebrado. O quê? Ele não poderia dizer. até que Treves fica mudo. sem afabilidade. John Merick é o objeto de três olhares. nós realmente não temos a mínima idéia do que se passa em seu olhar.desde que nós não estejamos no teatro. Ou: a funfair. Anne Bancroft. um pouco antes de morrer. quanto mais outras pessoas lhe visitam têm tempo para cobrirem-se numa máscara. mais claro fica para aqueles ao redor dele: o homem elefante é um espelho. É também um modo bastante literal e de nada psicológico de conduzir a história: com dois saltos e uma lógica significante. a máscara social foi inteiramente reconstituída. No fim. o teatro. não um espelho onde eles pudessem ver e reconhecer a si mesmos mas um espelho para aprender a atuar. Os três olhares No curso do filme. o que eles são no fim das contas? Quanto mais o filme progride. extático horror no ambiente. cada vez mais. Tradução de Felipe Medeiros de Morais. dizer seu nome. de Caligari. monstro e sociedade. a deformação das aparências é exigida. nós já não temos a lamentar? No entanto. Eu não acredito na penetração da câmera no mundo mental. ela é em si admirável. dito isto. Hiroshima. fará um mau filme. (1) Em inglês no texto. 1981. Em Marienbad. e seu objetivo que é de explorar as regiões misteriosas do imaginário. De forma similar. de uma extrema beleza.. os procedimentos e as trucagens. por outro eu confesso ser. O ano passado em Marienbad. freak Cahiers du cinéma. Hawks. interpretada e entregue segundo uma lógica objetiva..) foi dominado muito claramente por O ano passado em Marienbad. Não haverá outra representação. violentamente contra o princípio que preside sua concepção.) Se por um lado eu reconheço a perfeição do trabalho de Resnais. e suas obras permanecem abertas. Tradução feita por José Roberto Rocha. ao passo que o filme de Resnais se fecha e limita-se a si mesmo. Alain Resnais Veneza 61 (.. idiotas e monstruosos. (. certamente. meu amor . O "Tout-Cinéma 1925" parece ter se encontrado voluntariamente neste hotel frio. eu acredito que é principalmente no cinema que se deve aplicar este programa que Baudelaire assinava na pintura: trazer a tona o que há dentro pelo que há fora. Ora. No fundo.. Só falta o cinema-olho. e tudo mais o que se queira. Mas em si somente. mas isto não impede que se trate de um cinema inteiramente fundado sobre a deformação. Por que milagre. ele. n° 322. inteligente. na falta dos personagens. abandonado para Jean Rouch. dialeticamente. Marienbad não é nada mais que uma versão moderna. os erros do passado se tornariam hoje virtude única? A via de Resnais é aquela dos "grandes à margem" do cinema: Eisenstein ou Welles. Walsh. mas visível. Paris. esta deformação toma corpo.. Nada é mais inquietante que ver desenrolar-se diante de si a representação da consciência vivida. se inspirado nos princípios cinematográficos de Lang. Aí está a fonte de todas as arbitrariedades. e é justo que o filme de Resnais tenha obtido o grande prêmio. talentosa. O pior dos cineastas. Ainda que somente no teatro e por uma única noite. e a montagem por atração à la Eisenstein. Ao contrário. Quantos filhos de Hiroshima. estes serão anjos de beleza em comparação com os filhos de Marienbad. sinistro. JEAN DOUCHET (Trecho da cobertura do festival de Veneza de 1961) Texto contido nas páginas 198-200 do volume 78 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". que faz de cada plano um bloco estático.um pelo outro. Estimo que um Mizoguchi ou um Lang tenham indo mais longe no imaginário que todos os Maffenbad do mundo. mais sobre o tempo que sobre o espaço. por onde circulam fantasmas: o expressionismo caligaresco margeia um surrealismo que ousa. corteja o cinema puro onde os movimentos de aparelho são desprovidos de qualquer função que não aquela da sensação que procuram. e porque nos é necessário penetrar no mundo mental. um filme influenciado por Resnais tem toda a chance de ser invisível e insuportável. Assim que ela atinge tal nível. lúgubre. etc. Há aí uma contradição interna entre a forma do filme que se apresenta como um jogo puramente espirituoso. E suas lembranças lhe são arrancadas na ordem afetiva. Assiste-se. envenena este presente. Ora. A era de ouro clássica é este momento privilegiado onde uma arte cobre a extensão completa de suas virtualidades. Alain Resnais tira o cinema do século XVII para o mergulhar. cada escola moderna se tornando clássica para a seguinte. Ela. meu amor. veio a Hiroshima como atriz contratada para trabalhar em um filme internacional sobre a paz. Com Hiroshima. é um pouco o que acaba de se produzir.Pode-se imaginar Vélasquez alcançando a duras penas seu "Las Meninas" e Picasso de pronto já bordando por cima suas espantosas variações? Certamente que não.se fixar como objetivo agradar imediatamente. Alain Resnais coloca em termos de cinema as preocupações estéticas modernas das outras artes. meu amor. pelo feliz casamento entre a forma e o fundo. depois o abstrato. o drama do artista moderno consiste em tentar reencontrar a plenitude e a totalidade de sua arte partindo apenas de fragmentos. mas de alcançar isto. Não por vocação ou por privilégio especial. ele nos convida ao jogo do espelho. Picasso e Braque. depois o cubismo. O cinema. Enfim. à dissociação progressiva destes dois seres. Ela encontrou este japonês e o que devia ser apenas passageiro torna-se amor violento. Segundo esta tese. oferecer-se o luxo de . (Se nós quisermos confirmar a tese inicial pré-citada. em nossa época de formalismo rei. Pouco a pouco. O filme começa com a imagem de dois seres abraçados e nós iremos assistir à sua dolorosa separação. uma francesa e um japonês. Nós somos convidados a assistir à tomada de consciência deste amor. Resnais se une aos trabalhos literários mais recentes de um Klossowsky ou de um Borges: ele nos oferece a reflexão num segundo grau. seu claustro na casa de seus pais. Ele rompe com a moldura do relato narrativo e introduz a técnica romanesca cara à Faulkner: o passado dos personagens ressurge em lufadas na superfície do presente. . a uma série de fragmentações mais e mais encadeadas. sem transição. onde cada um de seus fragmentos se cimenta naturalmente em um todo. e também assim. descobrir minas que a era de ouro clássica se contentava em guardar sem explorar. pela sua maneira de conceber o segundo tomo de Don Quixote já esboçava este jogo de espelho. tendo atingido a maturidade de sua técnica. esgotar todo campo possível de sua forma e. por um alemão. este aí desperta em Emmanuelle Riva a lembrança de um outro amor. porque não tem nome no filme. mas não o inverso. Emmanuelle Riva. então. meu amor. um musicista poderia se deliciar encontrando no ritmo e na montagem dos planos de Hiroshima. sua própria humilhação em praça pública. as mais penosas só vindo por último. aprisionada um inverno inteiro no porão ou em seu quarto. que o impressionismo. Por outro lado. se encontram já implicados na obra de Titien ou de Vélasquez. poder-se-ia dizer que Cervantes. para continuar no terreno da pintura. que em Nevers ela experimentara. a influência de Stravinsky. introduzindo o cinema dentro do cinema. Seu objetivo não é mais então o de agradar. durante a guerra. Ora.) Da mesma forma. Mas é o apropriado para uma arte virgem. permanecia o último refúgio do classicismo. pictoricamente este filme evoca o cubismo. custe o que custar. Isto é dizer. se desabrochar na plenitude de seu modo de expressão. ela evoca a história deste amor: a morte de seu amante logo antes da Liberação. O modernismo começa a partir do instante em que os artistas se vêem constrangidos a exprimir novas maneiras de pensar. também violento. em pleno coração do século XX. Com Hiroshima. Não se vê nada além de dois corpos abraçados. que ele está esquecido. nós revivemos a sensação de embriaguez e de comunhão que toma nossa heroína e. Como em Picasso (não esqueçamos seu curta-metragem sobre Guernica). Os fragmentos do passado de Emmanuelle Riva formaram um bloco cada vez mais compacto que separa irresistivelmente os dois amantes. Assim este marcante travelling de recuo. assim que Emmanuelle Riva vê a mão do japonês menear-se enquanto ele dorme. o filme se organiza seguindo a figura geométrica de um cone cuja base será a distância que separa o japonês e a francesa e que se traduz de uma forma puramente espacial pela corrida de um em direção ao outro através de Hiroshima. Ainda dialética esta proposta poética de Resnais acerca da doçura terrível. já que Resnais como Eisenstein baseiam suas estéticas na dialética marxista. da dissociação. ao mesmo tempo. Este é talvez o símbolo profundo da primeira imagem do filme. É impossível ser totalmente um. que percorre Hiroshima durante o comentário de Emmanuelle Riva. a imagem da distância percorrida desperta em nosso espírito a idéia de fuga que a arrebata então. dois termos que formam algo como uma mistura destoante. esta imagem faz surgir com força a imagem da agonia do alemão. Resnais se obrigaria em exprimi-la na forma. este amor atual entre ela e o japonês é também destinado ao esquecimento. que ele está morto nela. à morte. pois nós vivemos no instante e cada instante nos condena ao nascimento. Trata-se da vitória do despedaçamento. quer dizer. Esta cinza. que se encontra incluída no próprio título. Ora. meu amor o é ainda pelo seu tema. Pela velocidade deste travelling. A montagem de Resnais. "Eu sei que eu te esquecerei. do fragmentário. Estando seu filme baseado na dialética. mas mesmo sendo uma imagem que nasce com incômodo. Assim sendo. Hiroshima. mesmo podendo evocar as teorias musicais de Stravinsky. Hiroshima. Revivendo este passado. meu amor. eu sinto que eu já te esqueço" grita ela ao fim do filme para o japonês. seu sucesso é total. prolonga sobretudo as teorias de Eisenstein sobre montagem atrativa. o duplo movimento de negação e afirmação. Resnais insiste mais sobre seu duplo movimento simultâneo e contrário. a cinza deste fogo. Portanto. Por exemplo. Mas eu prefiro ver aí o símbolo desta dialética do instante: no mesmo momento em que estes seres "se incendeiam um pelo outro" (como é dito em certo momento no texto). meu amor é um filme dez anos à frente. nos faz compreender que ele corresponde ao tempo mesmo do ato de amor. pela própria perfeição de seu aspecto inovador. a cinza do esquecimento já os recobre. ao contrário. mas também à morte de uma parte de nós mesmos. ele condena antecipadamente . Qual será sua influência sobre o cinema? É o fim do classicismo cinematográfico? Ou. Ele o atinge tão bem em seus movimentos de aparelho quanto em sua montagem. é de pronto rejeitada. A partir desta imagem-chave. Tragédia da impossibilidade da união e da plenitude de si. Hiroshima. Resnais adora mostrar simultaneamente a face do terrível com seu perfil de doçura. Porém. Emmanuelle Riva toma consciência de que ele não é mais que uma lembrança. ele é irremediavelmente condenado. como aquela dos vestígios da guerra que ainda recaem no presente e o contaminam. e o imiscuindo no presente. indistintos um do outro e cobertos pouco a pouco por uma chuva de cinzas. podemos imaginar como aquela mesmo da bomba atômica. Ele desencoraja toda crítica. Nada aqui de muito impressionante. estas imagens horríveis de feridos radiativos acompanhadas por um comentário lírico e bucólico sobre a primavera e o renascimento das flores em Hiroshima.Moderno. toda veleidade em perseguir este caminho? Tantas questões que só o tempo poderá responder. Tradução feita por José Roberto Rocha. junho de 1959) Texto contido nas páginas 278-282 do volume 78 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". JEAN DOUCHET (Arts nº 727. .
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