Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Economica - VERSÃO WEB II

April 3, 2018 | Author: Lorenzo Juan | Category: Sociology, Brazil, Ethnicity, Race & Gender, Feminism, Economics


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SUMÁRIOApresentação 05 Parte I Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica na 07 Perspectiva das Mulheres Brasileiras Maria Betânia Ávila, Verônica Ferreira, Rivane Arantes Parte II Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: 222 Mudanças e Permanências das Práticas Sociais de Cuidado Mariana Mazzini Marcondes, Maria do Carmo Meirelles Toledo Cruz, Patrícia da Silva Rodrigues Qualificação Profissional das Mulheres na Indústria da 269 Construção Civil da RMSP Entre 2009 e2013 Juliana Bacelar De Araújo Milena A. P. Prado O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária 304 dos Microempreendedores Individuais – MEI Juliana Bacelar De Araújo, Milena A. P. Prado APRESENTAÇÃO Esta publicação contém o relatório dos resultados da pesquisa qualitativa e três estudos sobre políticas públicas realizados no âmbito do projeto Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica na Perspectiva das Mulheres Brasileiras, desenvolvido no período de setembro de 2013 a outubro de 2015. Este projeto teve como organização proponente e realizadora o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e como organização apoiadora o IDRC – Centro Internacional de Desenvolvimento e Pesquisa do Canadá. Integraram este projeto, na condição de instituições parceiras, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e a Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH. Constam deste projeto a realização de uma pesquisa qualitativa com mulheres trabalhadoras inseridas no trabalho precário em três contextos considerados de intenso desenvolvimento – Polo Industrial de Barcarena, no Pará, região Norte do Brasil; Polo de Confecções de Toritama, Pernambuco, Nordeste do Brasil, e Setor da Construção Civil, na região Metropolitana de São Paulo, região Sudeste do Brasil – e a elaboração de três estudos sobre políticas públicas de qualificação profissional, de creches e de promoção de formalização e proteção social. Foram também levantados dados secundários quantitativos para a construção de um panorama sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho, considerando as relações sociais de gênero e raça que constituem o capítulo I da parte I desta publicação. PARTE I DESENVOLVIMENTO, TRABALHO E AUTONOMIA ECONÔMICA NA PERSPECTIVA DAS MULHERES BRASILEIRAS DESENVOLVIMENTO, TRABALHO E AUTONOMIA ECONÔMICA NA PERSPECTIVA DAS MULHERES BRASILEIRAS Maria Betânia Ávila Verônica Ferreira Rivane Arantes APRESENTAÇÃO Este relatório apresenta os resultados da pesquisa qualitativa realizada no âmbito do projeto Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica na Perspectiva das Mulheres Brasileiras, desenvolvido no período de setembro de 2013 a outubro de 2015. Este projeto teve como organização proponente e realizadora o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e como organização apoiadora o IDRC – Centro Internacional de Desenvolvimento e Pesquisa do Canadá. Integraram este projeto, na condição de instituições parceiras, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e a Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH. Constam deste projeto a realização de uma pesquisa qualitativa com mulheres trabalhadoras inseridas no trabalho precário em três contextos considerados de intenso desenvolvimento – Polo Industrial de Barcarena, no Pará, região Norte do Brasil; Polo de Confecções de Toritama, Pernambuco, Nordeste do Brasil, e Setor da Construção Civil, na região Metropolitana de São Paulo, região Sudeste do Brasil – e a elaboração de três estudos sobre políticas públicas de qualificação profissional, de creches e de promoção de formalização e proteção social. Foram também levantados dados secundários quantitativos para a construção de um panorama sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho, considerando as relações sociais de gênero e raça. Este relatório está estruturado em seis capítulos, organizados da seguinte forma: o capítulo I apresenta um panorama geral da inserção das mulheres no mercado de trabalho, efetuado a partir dos dados secundários de fontes oficiais com a elaboração de novos cruzamentos realizada por pesquisadores(as) do IPEA especificamente para este projeto; o capítulo II trata dos contextos onde as pesquisas de campo foram realizadas; o capítulo III traz uma reflexão geral sobre a metodologia da pesquisa; e os capítulos IV, V e VI apresentam as análises dos resultados da pesquisa. O objetivo geral desta pesq uisa qualitativa foi investigar a inserção e as condições de trabalho das mulheres no mercado informal e as possibilidades e limites para a construção de sua autonomia econômica. No processo de desenvolvimento desta pesquisa contamos ainda com a interlocução de pesquisadoras e pesquisadores de outras instituições públicas de pesquisa e de ativistas dos movimentos feminista e de organizações de mulheres trabalhadoras, que integraram um Comitê Consultivo instituído no início dos trabalhos, cuja composição está apresentada nas especificações sobre as/os participantes desse processo. No âmbito da pesquisa foi desenvolvido também um programa de formação e incentivo para estudantes de universidades públicas, por meio de estágio. Este processo incluiu ainda a participação da equipe de pesquisadoras em seminários nacionais e internacionais relacionados aos temas da pesquisa. Como parte de um compromisso ético-político, os resultados da pesquisa qualitativa serão divulgados nos contextos onde a pesquisa foi realizada, por meio de encontros locais. Ademais, estes resultados serão disseminados em espaços de debate no âmbito acadêmico e dos movimentos feminista e de mulheres, na mídia eletrônica do SOS Corpo e nos fóruns de debate sobre políticas públicas. Uma cartilha sobre direitos trabalhistas e autonomia econômica foi elaborada com vistas a subsidiar processos de educação para a cidadania com mulheres trabalhadoras. Por fim, queremos reforçar que a elaboração e a disseminação dos resultados desta pesquisa e dos estudos terão como finalidade contribuir para subsidiar a ação dos movimentos de mulheres e o avanço nas políticas públicas voltadas para a autonomia econômica das mulheres. Agradecemos a todas as organizações parceiras, em especial ao IDRC, sem o apoio do qual não poderíamos realizar este projeto; ao IPEA e à REDEH, pela parceria extremamente contributiva e solidária; a todos os membros do Comitê Consultivo e a todas as pesquisadoras que neste processo estiveram envolvidas na realização desta pesquisa. CAPÍTULO I - PANORAMA DO TRABALHO DAS MULHERES NO BRASIL Os dados demográficos apontam que em 2013 a população brasileira somava mais de 200 milhões de habitantes, dos quais mais da metade (51,4%) eram mulheres. Na população feminina, por sua vez, a maioria era de mulheres negras (51,8%), e apenas 0,34% era indígena (IPEA/DISOC). Segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher 2014 (Raseam/2014), 85% dos brasileiros e brasileiras vivem nas áreas urbanas. A maioria da população que mora nas cidades são mulheres (52%). Entre as transformações verificadas nas últimas décadas na situação das mulheres brasileiras, destacam-se a ampliação de sua escolarização e a participação no mercado de trabalho, a queda da taxa de fecundidade e as transformações nos arranjos familiares. Entretanto, elas são, ainda, a maioria da população desocupada, enfrentam a desigualdade salarial em relação aos homens e possuem as maiores jornadas de trabalho reprodutivo. Os movimentos das mulheres entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado são marcados pela permanência da divisão sexual e racial do trabalho, dimensões que estruturam a divisão social do trabalho no capitalismo patriarcal e racista. No Brasil, se a participação das mulheres no mercado de trabalho se ampliou consideravelmente nas últimas décadas, este movimento não foi acompanhado pela ruptura das rígidas fronteiras da divisão do trabalho na esfera familiar. As mulheres ampliaram sua participação no trabalho remunerado, carregando consigo as tarefas domésticas e de cuidado, enfrentando no cotidiano uma tensão permanente. Se há variações na participação das mulheres no mercado de trabalho, a participação no trabalho doméstico permanece invariável. Não se trata, como querem as análises funcionalistas, de uma difícil conciliação de papéis, mas de um antagonismo que está no âmago da conformação das relações sociais de sexo em uma sociedade patriarcal e que é agravado pela desigualdade racial e pela desigualdade econômica. Em uma elaboração em torno do “paradoxo das relações sociais de sexo”, Kergoat afirma que no caso da divisão sexual do trabalho “... não se pode argumentar no âmbito de uma única relação social. O suposto paradoxo aponta para a imbricação, na própria gênese da divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo, de diferentes relações sociais, e de relações sociais que não podem ser abordadas da mesma maneira” (KERGOAT, 2009, p. 94). Um exemplo desse “paradoxo” citado pela autora é que “a participação das mulheres no mercado de trabalho aumenta, mas as segmentações, horizontais e verticais, entre empregos masculinos e femininos, perduram. As desigualdades de salário persistem, e as mulheres continuam a assumir o trabalho doméstico” (Id., ibid.). As desigualdades raciais devem ser analisadas como um campo de relações sociais que conformam as tensões e as contradições presentes no mercado de trabalho e, mais além, na realidade social. Ao trazer a questão racial como relação de desigualdade, as contradições e antagonismos da vida social ganham também uma nova dimensão. Consideramos um desafio avançar nessa teorização para que as análises dos dados sobre presenças, ausências e condições nas quais as sujeitas se encontram no mundo do trabalho possam avançar, no sentido de revelar as dinâmicas das práticas sociais que levam à sua reprodução e os movimentos que tensionam e alteram essa reprodução. Um panorama da desigualdade é sem dúvida fundamental para conhecermos uma dimensão do problema, mas não suficiente, pois não mostra as contradições que o constroem. 11 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica A inserção das mulheres no mercado de trabalho está dada por uma tensão entre autonomia econômica e desigualdade. A perspectiva feminista, na qual nos referenciamos, traz a crítica a uma visão sobre inserção no mercado de trabalho como um processo progressivo da chamada “equidade de gênero”, sem considerar as contradições dessa inserção. Nessa visão, inserção e alinhamento ao modelo da ordem econômica e social vigente se confundem. O mercado de trabalho é também um locus de lutas e tensões entre inserção desigual e transformação social. Nesse sentido, a autonomia é um processo de construção das sujeitas individuais e coletivas. Com base nestas premissas teórico-políticas, este capítulo apresenta um panorama da situação das mulheres no mercado de trabalho no Brasil no contexto de crescimento econômico experimentado pelo país na última década. Tal situação contribuiu para que o país se inserisse de forma mais autônoma na geopolítica mundial, embora sua perspectiva de desenvolvimento se mantivesse estruturada a partir de relações sociais antagônicas, de exploração, opressão e apropriação de sexo/gênero, raça e classe social. Nessa abordagem utilizaremos dados já produzidos sobre as mulheres no mercado de trabalho combinados com informações que situam o contexto das mulheres no país. Tomaremos os levantamentos realizados por instituições oficiais de pesquisa, particularmente o IBGE, a partir de microdados levantados nas pesquisas nacionais de amostras domiciliares (Pnad/2013) e no último Censo Nacional (2010). Porém, daremos relevância aos cruzamentos de variáveis a partir dessas mesmas fontes, e até então disponibilizadas e analisadas em separado, que foram elaborados pelo IPEA no âmbito desta pesquisa, com o fim de contribuir para a produção de novas análises sobre mercado de trabalho e autonomia econômica das mulheres. Por fim, também utilizaremos informações do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam/2014), elaborado pela Secretaria de Política para as Mulheres (SPM). Em 2014 o Brasil já era a 7ª economia do mundo e considerado um país de alto desenvolvimento humano, com IDH 0,744, subindo para a 79ª posição no ranking mundial¹; no entanto, mantivemo-nos como um dos lugares mais desiguais do planeta. O índice de Gini em 2013 foi de 0,495, voltando ao patamar de 2011²; o Nordeste foi a região do país que apresentou o maior nível de desigualdade na distribuição dos rendimentos do trabalho³. Os dados do último Censo Demográfico, realizado em 2010, apontam mudanças particularmente relevantes para analisar a situação e as perspectivas das mulheres brasileiras. Uma dessas significativas modificações diz respeito às reconfigurações nos arranjos familiares brasileiros verificados entre o último censo (2000) e o mais recente (2010). Os arranjos familiares formados por casais heterossexuais com filhos correspondiam, em 1980, a 66% das famílias; em 2010, reduziu-se à metade (50%), embora se mantenha como arranjo majoritário. Outra significativa mudança verificada foi a ampliação do arranjo formado por casais sem filhos (de 12% em 1980 para 15% em 2010). A terceira mudança diz respeito à maior participação dos arranjos monoparentais femininos (mulheres com filhos), que passaram de 11,5% (1980) para 15,3% (2010). 1 PORTAL BRASIL. Relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômi- co (OCDE). Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/05/relatorio-aponta- reducao-da-desigualdade-de-renda-no-brasil Acessado em 2.10.15>. Acesso em: 02/10/2015. 2 PORTAL BRASIL. Relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômi- co (OCDE). Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/05/relatorio-aponta- reducao-da-desigualdade-de-renda-no-brasil>. Acesso em: 02.10.15. 3 AGÊNCIA BRASIL DE COMUNICAÇÃO. Índice que mede desigualdade de renda fica estável, aponta IBGE. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-09/indice-que- 12 mede-desigualdade-de-renda-fica-estavel-aponta-ibge>. Acesso em: 02.10.15. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras São as mulheres, nesses arranjos monoparentais, as responsáveis pelo provimento de renda e pelo trabalho doméstico, o que prejudica e limita suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho ou as submete, sobretudo as mais pobres, a inserirem-se nos postos mais precários e de mais baixos rendimentos. As mudanças nas configurações familiares ocorrem no contexto em que o cuidado com as pessoas, em particular com crianças, é ainda provido, quase que exclusivamente, no âmbito familiar. Nessa realidade, a inserção das mulheres no mercado de trabalho já se dá em condições francamente desiguais. Nos últimos anos, temos observado uma ampliação daqueles domicílios que tinham mulheres como pessoa de referência. Estima-se que este seja o caso de 38,8% dos domicílios brasileiros, a maioria localizada na região Nordeste (40%) e na região Norte (38,8%). Destes, pelo menos 53% eram de famílias com filhos de até 17 anos de idade, residentes no meio urbano (41,4%), e em 55,3% deles, esta mulher de referência tinha até oito anos de estudo (IPEA/DISOC). Proporção de Famílias Chefiadas por Mulheres, segundo Cor/Raça da Chefe de Família e Localização do Domicílio – Brasil e Regiões, 1995 a 2013 1995 2004 2013 % N % n % n Mulheres total 22,9 9.555.110 29,4 16.460.011 38,8 26.333.750 Homens total 77,1 32.137.774 70,6 39.614.449 61,2 41.454.430 Mulheres brancas 22 5.194.349 28,9 8.579.900 46,3 12.216.365 Mulheres negras 24,2 4.360.761 29,9 7.880.111 53,6 14.117.385 Homens brancos 78,0 18.447.787 71,1 21.132.244 61,5 19.474.537 Homens negros 75,8 13.689.987 70,1 18.482.205 60,9 21.979.893 Mulheres em 15.026.528 meio urbano 24,8 8.366.853 31,7 41,4 24.085.083 Mulheres em 1.188.257 1.433.483 2.248.667 meio rural 15 16,4 23,3 Homens em meio 75,2 25.416.308 68,3 32.328.229 58,6 urbano 34.072.187 Homens em meio 85,0 6.721.466 83,6 7.286.220 76,7 rural 7.382.243 Fonte: IBGE/PNAD Elaboração: IPEA/DISOC * a PNAD não foi realizada nos anos de 2000 a 2010 ** em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá *** a população negra é composta por pretos e pardos Das famílias chefiadas por mulheres, 46,3% eram sustentadas por mulheres brancas, e a maioria, 53,6%, por mulheres negras. Todavia, parte significativa das famílias negras (67,1%) sobrevivia com até um salário mínimo, percentual muito maior se comparado ao das brancas, que era de 42,3% (IPEA/DISOC). 13 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Distribuição Percentual das Famílias Chefiadas por Mulheres, segundo Cor/ Raça da Chefe de Família e Faixa de Renda Familiar per capita – Brasil, 1995 a 2013 Ano Cor/Raça Renda Familiar per capita 1995 2004 2013 Até 1 SM 62,2 60,6 42,3 Acima de 1 a 3 SM 26,2 29,2 42,1 Acima de 3 a 5 SM 6,1 5,6 8 Branca Acima de 5 a 8 SM 2,9 2,5 4,2 Acima de 8 SM 2,6 2 3,4 Até 1 SM 87,2 85 67,1 Acima de 1 a 3 SM 10,9 12,7 28,4 Negra Acima de 3 a 5 SM 1,2 1,4 2,7 Acima de 5 a 8 SM 0,4 0,6 1,1 Acima de 8 SM 0,2 0,3 0,6 Fonte: IBGE/PNAD Elaboração: IPEA/DISOC * a PNAD não foi realizada nos anos de 2000 a 2010 ** em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá *** a população negra é composta por pretos e pardos 14 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Destaca-se que nessa variável a desigualdade é possível de ser observada nos dois extremos, ou seja, no percentual das famílias que sobrevivem com até um salário mínimo, cujas referências já foram informadas, e no que vive com rendimentos acima de oito salários mínimos. Há o equivalente a 3,4% de famílias brancas nesse patamar, e em bem menor proporção, 0,6% de famílias negras (IPEA/DISOC). A renda per capita dessas mulheres de referência nas famílias por raça/cor era bastante desigual: R$ 721,10 era a renda das mulheres negras chefes de família, quase metade da renda das mulheres brancas, que era de R$ 1.370,40; esta também era inferior à dos homens brancos, que tinham maior renda entre todos/as (R$ 1.516,90) (IPEA/DISOC). Fonte: IBGE/PNAD Elaboração: IPEA/DISOC * a PNAD não foi realizada nos anos de 2000 a 2010 ** em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá *** a população negra é composta por pretos e pardos Outro importante indicador de vulnerabilidade diz respeito à escolaridade das mulheres que são a principal referência no domicílio: 9,5% das mulheres brancas chefes de família tinham menos de um ano de estudo, enquanto entre as mulheres negras este percentual era de 16,5% em 2013. Das mulheres negras chefes de família, 61,2% tinham até oito anos de estudo, e entre as brancas este percentual era de 48,6% (IPEA/DISOC, 2015). 15 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Distribuição Percentual das Famílias Chefiadas por Mulheres, segundo Cor/Raça e Faixa de Anos de Estudo da Chefe de Família – Brasil, 1995 a 2013  Ano Cor/Raça Anos de Estudo 1995 2004 2013 Menos de 1 ano 19,4 13,6 9,5 1 a 4 anos 33,4 26,4 19,6 Branca 5 a 8 anos 20,7 20,6 19,5 15,4 23,8 9 a 11 anos 27,9 11,1 15,6 23,5 12 anos ou mais Menos de 1 ano 34,7 22,8 16,5 1 a 4 anos 32,9 27,5 21,1 Negra 5 a 8 anos 19,9 23,5 23,6 9 a 11 anos 9,6 20,8 28,0 12 anos ou mais 2,8 5,4 10,8 Fonte: IBGE/PNAD Elaboração: IPEA/DISOC * a PNAD não foi realizada nos anos de 2000 a 2010 ** em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá *** a população negra é composta por pretos e pardos Desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho No que se refere ao mercado de trabalho, 156,6 milhões de pessoas constituíam a população em idade ativa (PIA) em 2013 no Brasil, das quais 102,5 milhões (65,5%) compunham a População Economicamente Ativa (PEA). Os homens eram a maior parte da PEA, com percentual de 56,5%, enquanto as mulheres totalizavam 43,5% da População Economicamente Ativa – PEA (Síntese de Indicadores Sociais/Pnad/2013). A taxa de atividade no Brasil, que é o percentual de pessoas em idade ativa que estão trabalhando ou procurando trabalho, era de 65,4% em 2013. Todavia, as mulheres de 16 a 59 anos apresentavam menor taxa de atividade (64,2%) que os homens (86,2%); entre as mulheres, menor era a taxa das negras (62,2%) e maior a das brancas (86,5%) (Raseam/2014). 16 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Em 2013 houve um leve aumento no número de pessoas ocupadas em relação a 2012 no país (como se vê na tabela abaixo, produzida pelo IPEA/DISOC, 2015). Com isso, percebe- se que houve uma leve redução na taxa de desocupação feminina, mas ainda assim as mulheres registravam patamares de desocupação elevados: somavam 3,7 milhões de pessoas, ampliando-se esse número quando considerados os grupos de cor. Nesse caso, as mulheres negras apresentavam maior taxa de desocupação (10,2%) que os demais trabalhadores. Taxa de Desocupação da População de 16 anos ou mais de idade, por Sexo, segundo Cor/Raça e Situação de Pobreza(1) – Brasil e Regiões, 1995 a 2013 Masculino Feminino Situação de Cor/Raça Pobreza 1995 2004 2013 1995 2004 2013 Total 4,7 6 4,2 6,6 10,2 6,8 Extremamente 23,3 29,9 51,5 15,9 29,8 51,2 Pobres Branca Pobres 8,9 10,5 12,3 10,8 21,8 19,8 Vulneráveis 4,7 6,4 6,3 7,6 11,9 11,9 Não Pobres 2,3 3,1 2 3,9 5,1 3,3 Total 5,5 7,4 5,5 8,1 13,4 10,2 Extremamente 13,8 18,2 34,4 11,5 24,2 39,9 Pobres Pobres 6,3 9,6 9,5 9,2 20,1 16,9 Negra Vulneráveis 4,5 6,4 6,2 8 12,4 12,7 Não Pobres 2,4 3,7 2 5,2 5,5 3,9 Fonte: IBGE/PNAD Elaboração: IPEA/DISOC * a PNAD não foi realizada nos anos de 2000 a 2010 ** em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá *** a população negra é composta por pretos e pardos 17 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Um indicador do mercado de trabalho amplamente discutido no período recente, no Brasil, diz respeito à taxa de ocupação. Com efeito, houve uma ampliação significativa do percentual de pessoas ocupadas no país e, nesse contexto, ganhou visibilidade um debate controverso em torno de uma possível situação de “pleno emprego”. Se, de um lado, as taxas de ocupação ampliaram-se significativamente, por outro lado questiona- se, a partir de outros indicadores, como nível de formalização, cobertura previdenciária e rendimentos, a qualidade dos postos de trabalho gerados. Nesse sentido, os indicadores relacionados à precarização do trabalho e, notadamente, quando considerados segundo o recorte de gênero e raça, são extremamente relevantes para apreender a situação geral de trabalho das mulheres e para ancorar as análises sobre a possibilidade de sua autonomia econômica, no atual contexto de desenvolvimento do país. Uma nova variável foi produzida para a análise da precariedade no mundo do trabalho, pelo Ipea, para esta pesquisa – a taxa de precarização do trabalho feminino. Estão abrangidas entre as trabalhadoras precarizadas as empregadas sem carteira de trabalho assinada, as trabalhadoras por conta própria, não remuneradas, trabalhadoras na produção para o próprio consumo e empregadoras com até cinco empregados. Nesse sentido, observa-se que a taxa de precarização feminina no Brasil é de alta magnitude, chegando a 41,2% da População Economicamente Ativa. As mais altas taxas de precarização são encontradas nos estados das regiões Norte e Nordeste do país. Pernambuco, cuja economia cresceu 3,5% em 2013, se comparado a 2012, apresentando naquele ano um PIB acima da média nacional, e o Pará estão entre os cinco estados com maior taxa de precarização das relações de trabalho, 49,1% e 51,1%, respectivamente. São Paulo, por sua vez, que tem o maior PIB do país, está entre os cinco estados com menor taxa de precarização. Taxa de precarização da população feminina ocupada 60,0 53,5 53,4 51,8 51,1 49,7 49,1 48,7 48,2 48,2 47,5 47,0 47,6 50,0 46,3 46,1 44,5 44,0 43,6 42,8 41,6 41,2 39,0 38,6 39,0 40,0 36,3 36,1 34,2 33,9 29,5 30,0 20,0 10,0 0 Sã ane to az cre b a o iro M can pá l ag o M so o S a ôn l Am A ia ra s P a Am ará Es inas Ba e Ri rit e a de Sa is M io G nta Pa ulo o n at ná at do ul o l rit G sso de s an s o uí N rá rn r te rg s ra nd asi Gr u Se oa Ro na Fe iá ar tin am aíb os d in im pí G hi ip Al uc hã o o ra o S ia a Pe P or J n at ra C ra To a o o Gr de ar do e Pa Ro Br o P C a de M st R Sa an Di Gr o Ri 18 Fonte: Censo Demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras A tabela abaixo apresenta a composição interna das trabalhadoras precarizadas, por unidade da federação. Os maiores contingentes de trabalhadoras precárias encontram-se na condição de empregadas sem carteira de trabalho assinada e trabalhadoras por conta própria. Composição interna das trabalhadoras precarizadas Empregadas Conta Não Trabalhadoras na Empregadoras   sem carteira própria remuneradas produção para o com até 5 de trabalho próprio consumo empregados assinada Brasil 56,5 34,6 3,9 2,6 2,4 Rondônia 58,0 32,5 3,8 3,5 2,2 Acre 66,1 25,7 3,7 3,2 1,3 Amazonas 55,5 32,5 4,9 6,0 1,1 Roraima 63,4 27,1 4,5 3,3 1,7 Pará 57,7 33,2 4,6 3,3 1,2 Amapá 57,8 32,6 5,0 3,2 1,4 Tocantins 62,8 27,0 3,9 4,5 1,8 Maranhão 61,7 27,3 4,0 6,1 1,0 Piauí 62,9 27,3 3,3 5,5 1,0 Ceará 62,7 29,0 3,8 3,2 1,3 Rio Grande do Norte 59,2 31,0 4,4 3,5 1,9 Paraíba 61,2 27,6 3,9 5,8 1,6 Pernambuco 58,5 32,4 3,3 4,3 1,5 Alagoas 61,0 29,6 3,4 4,4 1,6 Sergipe 56,6 33,7 3,9 4,1 1,7 Bahia 62,3 28,5 3,5 4,1 1,6 Minas Gerais 58,6 32,9 3,3 2,8 2,5 Espírito Santo 58,9 34,1 3,0 1,4 2,7 Rio de Janeiro 53,6 39,5 4,0 0,7 2,3 São Paulo 53,0 39,1 4,2 0,7 3,0 Paraná 54,5 35,2 4,1 2,3 3,8 Santa Catarina 46,8 40,0 4,0 3,6 5,5 Rio Grande do Sul 49,6 39,4 3,7 3,4 3,9 Mato Grosso do Sul 56,7 34,2 4,3 1,8 3,0 Mato Grosso 57,9 32,0 5,3 2,6 2,2 Goiás 57,4 34,9 3,8 1,7 2,2 Distrito Federal 55,1 37,9 3,5 0,9 2,6 Fonte: Censo demográfico 2010 19 Elaboração: Ipea/DISOC Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica A tabela abaixo apresenta dados que nos permitem analisar o peso das desigualdades de gênero e raça na composição do universo do trabalho precário no Brasil. Os dados informam que entre as mulheres negras ocupadas se verificam os maiores níveis de inserção precária: 38,3% das mulheres negras ocupadas são trabalhadoras precárias. Entre as mulheres brancas ocupadas, 26,4% são trabalhadoras precárias. Entre os homens negros ocupados, 31,5% estão inseridos em trabalho precário encontram 20% dos homens brancos se encontram na mesma situação (IBGE/PNAD, 2013). É esse quadro da precarização, no qual a inserção precária das mulheres em geral e das mulheres negras em particular apresenta-se em toda a sua magnitude, que estrutura os contextos de inserção no mercado de trabalho que a pesquisa qualitativa buscou investigar. Percentual de pessoas ocupadas com 10 anos ou mais por posição na ocupação e cor/raça, segundo sexo - Brasil 1995, 2003 e 2013 Total Brancos Negros Sexo Posição na ocupação 1995 2003 2013 1995 2003 2013 1995 2003 2013 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Trabalhador precarizado 37,5 41,3 28,8 32,0 35,3 22,9 44,7 48,2 34,3 Trabalhador com carteira assinada 28,3 29,9 39,8 32,4 34,0 43,6 23,3 25,2 36,6 Total Militar 0,4 0,3 0,4 0,5 0,3 0,4 0,4 0,3 0,4 Funcionário público ou 6,2 6,3 7,0 7,1 7,1 8,0 5,2 5,4 6,2 estatutário Trabalhador doméstico com carteira 1,4 2,1 2,2 1,3 1,9 1,9 1,6 2,3 2,5 Outros 26,1 20,2 21,8 26,9 21,4 23,4 24,8 18,7 20,1 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Trabalhador precarizado 34,8 39,3 26,2 28,0 32,6 20,0 43,1 46,8 31,5 Trabalhador com carteira assinada 32,0 32,9 42,5 36,3 36,6 45,3 27,0 28,9 40,2 Militar 0,7 0,5 0,6 0,8 0,6 0,6 0,6 0,5 0,6 Homens Funcionário público ou estatutário 4,3 4,5 4,8 4,7 5,0 5,5 3,9 4,0 4,2 Trabalhador doméstico com carteira 0,3 0,4 0,4 0,3 0,3 0,3 0,3 0,4 0,4 Outros 27,9 22,4 25,6 29,9 24,9 28,3 25,1 19,5 23,1 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Trabalhadora precarizada 41,7 44,0 32,3 37,7 39,0 26,4 47,3 50,3 38,3 Trabalhadora com carteira assinada 22,7 25,6 36,3 26,8 30,6 41,4 17,4 19,5 31,3 Mulheres Funcionário público ou estatutário 9,1 8,9 10,1 10,5 9,9 11,1 7,2 7,6 9,0 Trabalhadora doméstica com carteira 3,1 4,5 4,6 2,6 4,0 3,8 3,7 5,2 5,6 Outros 23,4 17,0 16,6 22,4 16,6 17,3 24,4 17,4 15,8 Fonte: IBGE/PNAD 1995, 2003 e 2013.       Elaboração:IPEA/DISOC/NINSOC - Núcleo de Informações Sociais     Nota: Foram classificados como trabalhador precarizado os trabalhadores com renda de 2 salários mínimos ou menos e com posições na ocupação: sem carteira assinada, construção para próprio consumo,conta-própria(urbano), construção para próprio uso(urbano), não- remunerados(urbano) e empregador com até 5 empregados (urbano). 20 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras A política econômica em curso no Brasil nessa última década, caracterizada pelo chamado “neodesenvolvimentismo”, que articula crescimento econômico e fortalecimento de políticas sociais, resultou numa ampliação dos empregos formais e da renda. Todavia, com um aumento do número de empregados/as com carteira assinada em relação a 2012, o patamar de formalização em 2013 foi maior para os homens, de modo que, da PEA ocupada nesse ano, aqueles eram maioria dos empregados com carteira assinada (42,9%), enquanto as mulheres estavam num percentual bem inferior: o número de empregadas com carteira de trabalho assinada ficou em torno de 36,5% (Síntese de Indicadores Sociais/Pnad/2013). Distribuição percentual da população ocupada com mais de 16 anos de idade por posição na ocupação Homens brancos 45,8 1995 2004 2013 37,9 38,3 27,1 25,9 24 17,3 15,5 13,4 7,7 7,5 6,9 5,3 5,8 5,6 6,1 4,6 3,2 0,70 ,7 0,7 ta / ria or s ad m ad m a ico ro tic sin o sin se ad óp a a ut rte reg r as o c és bl eg as o O Pr m Pú ira gad ili ira ad pr Do M a rio nt Em rte re Co a ná ca p p ad Em Em io eg nc ca pr Fu Em Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC Homens negros 1995 2004 2013 40,9 27,6 29,4 31,1 25 25,3 29,2 25,4 19,2 7,2 4,944,7 ,9 2,9 3,1 2,8 0,9 1,1 1 7,1 5,8 ta / ria or s ad m ad m a M ico ro tic sin o sin se ad óp a a ut r as o c és bl eg as o O Pr m Pú ira gad ili ira ad pr Do a rte reg rio nt Em rte re Co a ná ca p p ad Em Em cio eg n ca pr Fu Em Fonte: Censo demográfico 2010 21 Elaboração: Ipea/DISOC Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Do conjunto da PEA feminina, apenas 36,7% tinham carteira assinada; as trabalhadoras negras apresentavam menor proporção de registro entre toda a força de trabalho do país, com apenas 31,6% delas formalizadas, enquanto para as mulheres brancas esse percentual se ampliava sensivelmente, chegando a 41,6% (IPEA/DISOC). Mulheres negras 1995 2004 2013 31,6 22,1 19,9 21,5 21,9 18,2 17,6 18,7 14,2 18,6 17,6 15,9 10,4 12,5 7,8 7,8 9,2 10,9 0,9 1,31 ,3 / ria or ad m s ad m a ico ro tic sin o sin se ad óp a a ut r as o c és bl ta eg as o O Pr m Pú ira gad ili ira ad pr Do M a rte eg rio nt Em rte re Co a pr ná ca p ad Em Em io eg nc ca pr Fu Em Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC Mulheres brancas 1995 2004 2013 41,6 31,4 27,8 16,9 19 11,2 13,6 13,4 12,4 15,6 14,8 13 11 10 11,3 10,6 9,5 3,7 6,7 2,8 3,6 ili o/ ria r s ad m ad m a do ro tic sin o sin se ic óp a a ut r as o c ga és bl ta as o O Pr m Pú e ira gad ira ad pr Do M a rte reg io nt Em rte re r Co a ná ca p p ad Em Em io eg nc ca pr Fu Em Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC 22 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Além disso, dos homens ocupados, 4,7% eram empregadores e 0,9% empregados domésticos, situação bastante diferente das mulheres: apenas 2,5% eram empregadoras e um maior percentual delas, 14,6%, ocupava-se do trabalho doméstico (Síntese de Indicadores Sociais/Pnad/2013). Quando se considera a relação racial, verifica-se que das mulheres negras ocupadas, somente 1,3% era empregadora, mas 18,6% se ocupavam no trabalho doméstico, enquanto para as trabalhadoras brancas esses percentuais eram de 3,7% e 10,6%, respectivamente (IPEA/DISOC). Nesse período, os homens se ocupavam majoritariamente no comércio (18%), seguido do setor agrícola (17,1%), construção civil (15,7%) e indústria (15,1%). O menor registro foi observado nos serviços sociais: apenas 5,1% dos homens trabalhavam nestas atividades, ainda que esta cifra tenha sido a maior já registrada para este grupo desde 1995. Outra era a situação das mulheres, em que o peso da divisão sexual e racial do trabalho parecia bastante evidente. Grande parte delas trabalhava no comércio (17,4%) e, em menor quantidade, na indústria (11,3%) ou desempenhando outras atividades (14,4%). Todavia, diferentemente dos homens, elas ocupavam majoritariamente o chamado setor dos serviços sociais, onde pelo menos 33,2% da PEA feminina estava ocupada. De todos os setores, foi na construção civil que estavam mais sub-representadas (0,7%) (IPEA/DISOC, 2015). Cruzando essas estatísticas por raça/cor, teremos um quadro em que as mulheres negras estão em bem menor quantidade nos setores da administração pública, indústria, construção civil, outras atividades e até no comércio. Elas têm maior presença no setor de serviços sociais (34,9%). Das mulheres negras ocupadas, 12,6% delas estavam na agricultura, enquanto apenas 7,2% das brancas estavam nesta atividade (IPEA/DISOC, 2015). Apesar do aumento da formalização, em 2013 ainda havia 40 milhões de pessoas no Brasil ocupadas em trabalhos informais, significando 42% da população ocupada no país. Das mulheres ocupadas, 42,7% estavam na informalidade, quase metade dessa população ocupada, assim como 45% dos jovens de 16 a 24 anos. Outro grupo que compõe esse indicador é a população negra: quase metade das pessoas de 16 anos ou mais de idade de cor preta ou parda ocupadas também estavam em trabalhos informais; na população branca esse percentual era um pouco menor, 34,7% (Síntese de Indicadores sociais, IBGE 2014). Nas áreas rurais, a condição de trabalho das mulheres era ainda mais precária. Segundo Raseam/2014, 9,8% das mulheres ocupadas se dedicavam a atividades agrícolas, das quais 72,6% trabalhavam para consumo próprio ou em atividades não remuneradas. Destas últimas, 61,5% eram negras. Apenas 6% delas tinham carteira assinada, 6% estavam na informalidade, 15% trabalhavam por conta própria e menos de 1% declarou ser empregadora. Dos trabalhadores e trabalhadoras aposentados/as por tempo de serviço, apenas 7% eram mulheres, havendo um maior percentual de mulheres aposentadas por idade nessas áreas. Segundo o IPEA (2015), estima-se que existam aproximadamente 14,3 milhões de trabalhadores e trabalhadoras terceirizados, representando 32,5% dos trabalhadores/as com carteira de trabalho. Além disso, calcula-se que as mulheres sejam 40% do universo desses trabalhadores terceirizados. Outro importante indicador relacionado à análise da precarização do mundo do trabalho diz respeito à cobertura da previdência social. No Brasil, um número relevante de trabalhadores e trabalhadoras permanece desprotegido socialmente. Das pessoas em idade ativa com 15 anos ou mais de idade ocupadas em 2013, ainda havia pelo menos 38,5% que não contribuíam para a previdência social (Síntese de Indicadores Sociais/PNAD/2013). Pelos gráficos abaixo é possível observar que a população branca estava em uma situação 23 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica sensivelmente melhor que a negra. Entre as mulheres em idade ativa, 70,1% tinham cobertura direta ou indireta da previdência social, enquanto para as negras esse percentual era bem menor: apenas 60,4% tinham algum tipo de proteção da previdência social. Vale destacar a importância da cobertura da previdência social direta, que viabiliza a proteção social no presente e a perspectiva de uma renda assegurada no futuro ou diante de qualquer contingência que inviabilize a realização de uma atividade remunerada. O acesso à proteção social é, neste sentido, um indicador crucial para analisar as condições de autonomia econômica das mulheres inseridas no mercado de trabalho. Ademais, a política de previdência social no Brasil tem altos impactos redistributivos e é reconhecida como uma das políticas que mais contribuem para a redução na desigualdade de renda no país (Ipea, 2010). Cobertura direta e indireta da previdência pública na população em idade ativa 1995 2004 2013 71,3 73 67 67,2 70,1 64,1 63,3 60,8 57,2 56,2 60,4 53,1 Homens brancos Mulheres brancas Homens negros Mulheres negras Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC Com relação à renda, verificamos que da população ocupada com 16 anos ou mais de idade em 2013, 33% se concentravam na faixa salarial de até um salário mínimo e apenas 3,5% recebiam mais de oito salários mínimos. Para as mulheres essa situação era mais aguda: em torno de 40,6% delas viviam com até um salário mínimo e apenas 2,3% estavam na faixa de mais de oito salários mínimos. Esses registros evidenciam um hiato ainda maior quando articulamos os dados raciais aos de gênero. Com isso, a porcentagem de mulheres negras na faixa salarial de até um salário mínimo salta para 51,1% e as que recebem mais de oito salários mínimos caem para 0,8%; já para as mulheres brancas essas percentagens são de 30,1% e 3,7%, respectivamente (IPEA/DISOC). 24 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Distribuição percentual da população ocupada de 16 anos ou mais de idade por sexo, segundo raça/cor e faixa de rendimento no trabalho principal – Brasil PNAD/2013 COR/ FAIXA DE TOTAL MASCULINO FEMININO RAÇA RENDIMENTO Até 1 SM 33 27,3 40,6 Mais de 1 a 3 SM 51,6 54,3 47,9 TOTAL Mais de 3 a 5 SM 7,6 9,0 5,8 Mais de 5 a 8 SM 4,3 5,0 3,4 Mais de 8 SM 3,5 4,4 2,3 Total 100,0 100,0 100,0 Até 1 SM 23,6 18,2 30,1 Mais de 1 a 3 SM 54,0 54,9 53,0 BRANCA Mais de 3 a 5 SM 10,2 11,9 8,2 Mais de 5 a 8 SM 6,4 7,5 5,0 Mais de 8 SM 5,8 7,5 3,7 Total 100,0 100,0 100,0 Até 1 SM 41,5 34,9 51,1 Mais de 1 a 3 SM 49,3 53,8 42,9 Mais de 3 a 5 SM 5,3 6,6 3,5 NEGRA Mais de 5 a 8 SM 2,4 2,9 1,8 Mais de 8 SM 1,4 1,8 0,8 Total 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE/PNAD Elaboração: IPEA/DISOC * a PNAD não foi realizada nos anos de 2000 a 2010 ** em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá *** a população negra é composta por pretos e pardos **** rendimento do trabalho principal deflacionado com base no INPC, período de referência set/2013 O rendimento médio é outro elemento importante e que, analisado por uma perspectiva de gênero e raça, evidencia o tamanho das desigualdades entre os trabalhadores e trabalhadoras. Em 2013, a renda média mensal de todas as fontes da população ocupada era maior entre os trabalhadores brancos (R$ 2.479,80) e menor entre as trabalhadoras negras, que chegaram a receber menos da metade do que receberam aqueles (R$ 1.027,50). Esses dados eram ainda mais díspares conforme as regiões do país. Os rendimentos maiores estavam no Centro-Oeste e nas áreas urbanas, e os menores no Nordeste e na zona rural. 25 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Rendimento Médio Mensal de Todas as Fontes da População Ocupada de 16 anos ou mais de idade, por Sexo, segundo Cor/Raça e Localização do Domicílio – Brasil e Regiões, 1995 a 2013 Região e Masculino Feminino Cor/Raça Localização do Domicílio 1995 2004 2013 1995 2004 2013 Brasil 2.165,60 1.773,40 2.479,80 1.138,80 1.115,30 1.716,00 Norte 1.948,10 1.489,30 1.871,90 1.290,00 952,4 1.506,00 Branca Nordeste 1.347,80 1.095,80 1.670,50 776,5 770,4 1.335,30 Sudeste 2.498,30 1.984,90 2.772,10 1.358,30 1.273,30 1.865,70 Sul 1.908,40 1.726,90 2.354,60 898,7 977,7 1.553,60 Centro-Oeste 2.140,80 2.091,60 3.000,20 1.209,70 1.380,60 2.156,70 Brasil 985,6 878,3 1.366,40 564,5 600,8 1.027,50 Norte 1.243,00 876,2 1.224,50 801,1 572,4 1.017,30 Negra Nordeste 721,6 642,2 1.018,00 397,2 468,5 857,6 Sudeste 1.220,00 1.065,90 1.602,00 719 708,8 1.126,00 Sul 1.024,30 964,2 1.517,30 532,2 619,4 1.069,50 Centro-Oeste 1.193,70 1.187,00 1.859,30 687,7 785,2 1.267,30 Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC O rendimento mensal domiciliar per capita é ainda mais explícito quanto a isso. Os trabalhadores e trabalhadoras negras estão numa condição de mais fragilidade que os/as trabalhadores/as brancos nesse indicador. O rendimento mensal dos negros/as chega a ser quase metade do rendimento dos trabalhadores/as brancos, sendo a região Nordeste aquela onde se praticam os mais baixos rendimentos do país. 26 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Rendimento Mensal Domiciliar per capita médio, por Sexo, segundo Cor/Raça e Localização do Domicílio – Brasil e Regiões, 1995 a 2013 Região e Masculino Feminino Cor/Raça Localização do Domicílio 1995 2004 2013 1995 2004 2013 Brasil 887,8 835,3 1.270,70 870 828,3 1.236,70 Norte 735,4 651,6 894,5 708 611,3 849,1 Nordeste 540,1 509,5 823,8 539,8 513,8 815 Branca Sudeste 1.032,30 933,3 1.421,80 1.008,40 933,8 1.377,00 Sul 803,1 845,2 1.269,10 795,6 828,7 1.241,10 Centro-Oeste 842,9 972,5 1.529,40 856,2 951,7 1.520,50 Brasil 375,7 392,8 682,8 361,8 379,9 645,8 Norte 446,7 361,4 575,7 418,8 347,3 547 Nordeste 271,4 292,4 520,6 266,2 288,6 511 Negra Sudeste 479,8 479,2 808,4 460,1 463,4 757,5 Sul 393 468,3 815 374,5 438,3 758,2 Centro-Oeste 477,5 543,9 947,3 455,9 506,4 858,2 Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISO Os homens brancos eram a maioria dos trabalhadores/as ocupados/as que estavam sindicalizados em 2013 (18%), enquanto as mulheres negras eram as que estavam em menor proporção na sindicalização entre todos os/as trabalhadores/as (14,8%) (IPEA/DISOC, 2015). Havia uma variação quanto aos setores com maior sindicalização entre homens e mulheres e brancos e negros. Entre os trabalhadores, a maioria dos sindicalizados em 2013 estava ocupada nos setores agrícolas, da administração pública e da indústria, com variações do ponto de vista da raça. Já entre as mulheres, a proporção da sindicalização era maior entre as brancas (16,2%) que entre as negras (14,8%). Entre as trabalhadoras brancas, os setores com maior nível de sindicalização eram o agrícola, a administração pública, os serviços sociais e a indústria. Já entre as trabalhadoras negras, a maioria das sindicalizadas estava ocupada nos setores agrícola, com uma proporção de 32,3%, acima de todos/as os outros/as trabalhadores/as, seguido da administração pública, construção civil e serviços sociais (IPEA/DISOC, 2015). Entre homens e mulheres, brancos/as e negros/as, é no setor agrícola onde se constatam as maiores proporções de sindicalizados/as. Vale destacar que entre as mulheres, brancas e negras, verifica-se um movimento ascendente de sindicalização neste setor: entre as mulheres brancas, salta de 12% em 1995 para 29,8% em 2013 27 o percentual de ocupadas sindicalizadas; entre as mulheres negras, esse percentual Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica aumenta de 11% em 1995 para 32,3% em 2013 (Ipea/DISOC, 2015). O movimento sindical rural tem uma estrutura organizativa bastante capilarizada no país. É importante destacar que, no Brasil, o acesso à previdência social pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais está condicionado à sindicalização, o que deve também ser considerado como um elemento importante na análise dos percentuais de sindicalização no setor. Proporção de Ocupados/as Sindicalizados/as de 16 anos ou mais de idade, por Sexo, segundo Cor/Raça e Setor de Atividade – Brasil, 1995 a 2013 Branca Negra Sexo Setor de Atividade 1995 2004 2013 1995 2004 2013 Total 22,2 21,6 18 16,5 17,4 15,6 Administração 22,2 27,1 24,1 19,3 23,9 20,4 Pública Agrícola 21,1 26,6 27,3 15,6 20,8 22,7 Comércio 12,2 11,9 10,1 10 9 8,2 Masculino Indústria 34,2 28,9 23,1 25,6 23,3 20,8 Construção Civil 8,9 7,9 8,1 7,6 6,5 7,1 Serviços Auxiliares 27,7 21 16,6 27,9 19,8 17,2 Serviços Sociais 37,5 31,4 22,6 27,4 19,8 19,8 Total 15,9 18,7 16,2 10,8 15,2 14,8 Administração 27,5 29,7 23,5 22,3 24,4 22,1 Pública Agrícola 12 26,5 29,8 11,1 27,6 32,3 Comércio 10,5 13,9 11,2 7,7 9,9 8,9 Feminino Indústria 22,9 18,3 15 19,1 13,6 13,1 Construção Civil 21,1 15,7 12,1 9,8 10 15,5 Serviços Auxiliares 19,8 14,1 10,5 23,1 11 9,2 Serviços Sociais 30,3 18,5 17,9 22,2 11,4 13,4 Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC O trabalho doméstico e de cuidados, importantes atividades de sustentação das vidas de todas as pessoas e de sustentação também dos demais trabalhos, segue majoritariamente realizado pelas mulheres, de forma remunerada e não remunerada. Nos anos recentes, verifica-se uma tendência de redução da proporção de mulheres inseridas no emprego doméstico. Entre 2011 e 2012 reduziu de 15,5% para 14,7%, ainda que se tenha mantido como um trabalho majoritariamente feminino e negro. Dos mais de 6 milhões de pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas no trabalho doméstico, mais de 92% eram mulheres e 64,4% eram negras, com grande percentual delas com menos de quatro anos de estudo (20,1%), segundo o Raseam/2014. Vale ressaltar que o número global de mulheres empregadas no trabalho doméstico reduziu-se, porém ampliou-se o percentual de mulheres negras que compõem esse universo (em 2006, as mulheres negras eram 57% da categoria de trabalhadoras domésticas; em 2013, este percentual aumentou para 64,4%), o que indica que são as mulheres brancas aquelas 28 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras que mais têm acessado outros postos de trabalho no período recente, no país, e o peso da imbricação entre divisão sexual e racial no trabalho na composição desta ocupação. O fato de as mulheres negras serem majoritárias na categoria e minoritárias entre aquelas com carteira assinada revela como esse campo de trabalho está estruturado pela coextensividade das relações de raça, de gênero e de classe. Um outro aspecto da importância do trabalho doméstico é o seu peso na sustentação do trabalho assalariado, isto é, na sustentação da reprodução da força de trabalho no mercado. As políticas públicas de bem-estar social que, segundo Oliveira (1998), sustentam a reprodução da força de trabalho na parte não coberta pelo capitalista no trabalho pago, gera o que ele chama de “direitos de antivalor”. Portanto, ao tempo socialmente necessário para a reprodução, somam-se, segundo ele, essas políticas públicas. Consideramos que se deve acrescentar, ainda, o trabalho doméstico não remunerado e remunerado como parte dessa sustentação. É também o trabalho doméstico remunerado que possibilita, em grande medida, a liberação do tempo das mulheres para garantir sua presença e estabilidade no mercado de trabalho (ÁVILA, 2009). Nesse caso é estabelecida uma relação de contradição entre mulheres, na qual o trabalho doméstico gratuito e o trabalho doméstico remunerado permanecem como atribuição das mulheres. Essa relação entre mulheres reproduz a divisão sexual do trabalho e está marcada por relações de classe e de raça. Apesar dos avanços observados a partir da regulamentação da Emenda Constitucional 72/2013, que ampliou os direitos das trabalhadoras domésticas, a informalidade ainda é de alta magnitude na categoria. Somente 31,8% das mulheres ocupadas no emprego doméstico tinham registros em carteira de trabalho; para as brancas esse percentual era mais elevado, chegando a 35,3%, enquanto para as negras era de 29,8%. O Nordeste é a região de menor formalização (IPEA/DISOC, 2015). O rendimento médio dessas trabalhadoras no país era de R$ 626,00. Eis os valores médios pagos nas diferentes regiões: Norte, R$ 495,70; Nordeste, R$ 409,80, e Sudeste, R$ 730,00; já conforme a condição racial, as mulheres brancas recebiam em média R$ 685,00, acima da média nacional, e as mulheres negras, R$ 592,20, chegando a ser menor nas regiões Norte (R$ 490,00) e Nordeste (R$ 407,30) (IPEA/DISOC, 2015). Isso tornava essa ocupação um lugar de cada vez maior desigualdade para as trabalhadoras negras. Os dados sobre rendimentos indicam que as mulheres são, de maneira geral, portadoras de uma força de trabalho que vale menos no mercado. A relação entre mulher corpo/reprodução e trabalho está na fundação da dimensão discursiva da dominação capitalista/patriarcal que se materializa na divisão sexual do trabalho. De um ponto de vista prático, essa associação se faz a partir da capacidade reprodutiva associada à responsabilidade com a reprodução social no cotidiano. A questão racial também determina o valor da força de trabalho e as oportunidades de emprego. No Brasil, a estética branca, europeizada ou de herança europeia é mais valorizada no mercado de trabalho. Nos desafios colocados por Suely Carneiro “para enegrecer o movimento feminista brasileiro” (Carneiro, 2005, p. 23), está incluído aquele de introduzir na crítica “aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho o critério de boa presença, como um mecanismo que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras” (Carneiro, 2005, p. 23). 29 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Divisão sexual do trabalho e desigualdades nas jornadas de trabalho reprodutivo A divisão sexual do trabalho é um mecanismo constitutivo do mundo do trabalho que sobrecarrega as mulheres com os afazeres domésticos e de cuidados e, entre outras circunstâncias, dificulta o acesso, a permanência e as possibilidades de ascensão profissional delas no universo do trabalho produtivo. Associam-se a ele outros dispositivos que dificultam ainda mais a inserção, com mais qualidade, das mulheres negras, como a divisão racial do trabalho, o diferencial de salários entre trabalhadores/ as negros e brancos, o desemprego desigual por grupos raciais e a reprodução precária da força de trabalho negra. Nesse sentido, verificamos grande diferença nas jornadas de trabalho de homens e mulheres em 2013. A jornada média total da população ocupada com 16 anos ou mais de idade no país, somando-se as jornadas de trabalho na ocupação principal e os afazeres domésticos, era de 49,6 horas. Mas as desigualdades entre homens e mulheres permanecem muito significativas. Para as mulheres essa jornada era muito mais elevada (54 horas) que a dos homens (46,4 horas) em razão do menor número de horas despendido por estes no trabalho reprodutivo (IPEA/DISOC, 2015). Esse indicador é um dos que apresentam grandes evidências da articulação entre as relações de sexo/gênero, raça e classe social no Brasil. Observamos que em 2013 o número de mulheres ocupadas que realizavam trabalhos domésticos e cuidavam da família era quase o dobro do número de homens ocupados que faziam o mesmo serviço. Entre as mulheres havia um pequeno diferencial por grupos de cor, pois um maior número de negras realizava os afazeres domésticos que as brancas, aumentando esta proporção quanto menor era a renda no trabalho produtivo. Proporção da População Ocupada de 16 anos ou mais de idade que cuida de Afazeres Domésticos, por Sexo, segundo Cor/Raça, Localização do Domicílio e Faixa de Renda no Trabalho Principal – Brasil, 1995 a 2013 Masculino Feminino Cor/Raça e Localização Faixa de Renda do Domicílio 1995 2004 2013 1995 2004 2013 Total 46,2 46,3 46,5 94,1 91,5 88,2 Até 1 SM 45,8 44,9 43,0 94,8 93,5 91,7 Mais de 1 a 3 SM 46,7 48,4 47,4 93,1 88,8 87,2 Total Mais de 3 a 5 SM 46,5 45,9 49,5 91,8 83,8 82,4 Mais de 5 a 8 SM 48,2 47,4 50,1 89,9 79,6 79,4 Mais de 8 SM 44,3 45,6 47,0 87,7 72,3 73,0 Total 47,7 47,6 47,3 93,9 90,1 86,7 Até 1 SM 47,4 46,1 44,9 94,9 92,8 91,6 Mais de 1 a 3 SM 48,3 49,6 47,4 93,1 88,0 86,4 Branca Mais de 3 a 5 SM 47,5 46,4 50,0 91,8 83,7 82,1 Mais de 5 a 8 SM 48,9 46,8 49,3 89,6 79,6 78,7 Mais de 8 SM 45,3 46,3 46,8 88,4 73,4 72,6 30 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Total 44,4 44,9 45,8 94,2 93,1 89,7 Até 1 SM 44,6 44,1 42,2 94,6 94,1 91,8 Mais de 1 a 3 SM 44,2 46,6 47,4 93,0 90,4 88,3 Negra Mais de 3 a 5 SM 44,0 44,5 48,7 91,7 83,9 83,1 Mais de 5 a 8 SM 45,7 49,4 51,7 91,4 79,7 81,4 Mais de 8 SM 38,1 41,6 47,7 82,2 66,1 74,6 Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC A média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos por esses trabalhadores e trabalhadoras em 2013 era 9,8 horas para os homens e 20,8 horas para as mulheres, mais que o dobro do tempo destinado pelos homens. Os/as trabalhadores/as negros/as, por sua vez, despendiam também mais tempo que os brancos; as mulheres negras eram as que dedicavam mais horas de trabalho na reprodução. Para todos os trabalhadores e trabalhadoras, essas horas aumentavam quanto menor era sua faixa de renda. Média de Horas Semanais Dedicadas a Afazeres Domésticos pela População Ocupada de 16 anos ou mais de idade, por Sexo, segundo Cor/Raça, Localização do Domicílio e Faixa de Renda no Trabalho Principal – Brasil, 2004 a 2013 Cor/Raça e Masculino Feminino Localização do Faixa de Renda Domicílio 2004 2013 2004 2013 Total 10,0 9,8 22,3 20,8 Até 1 SM 10,6 10,4 24,1 24,0 Mais de 1 a 3 SM 9,7 9,9 18,8 19,0 Total Mais de 3 a 5 SM 8,9 9,4 16,3 17,0 Mais de 5 a 8 SM 8,2 8,8 14,1 15,7 Mais de 8 SM 7,6 8,0 12,9 13,4 Total 9,7 9,5 21,6 19,9 Até 1 SM 10,4 10,2 24,0 23,6 Mais de 1 a 3 SM 9,6 9,7 18,8 18,8 Branca Mais de 3 a 5 SM 8,7 9,2 16,1 16,7 Mais de 5 a 8 SM 8,0 8,7 14,4 15,5 Mais de 8 SM 7,6 7,8 12,9 13,5 Total 10,3 10,1 23,2 21,6 Até 1 SM 10,7 10,5 24,3 24,2 Mais de 1 a 3 SM 9,8 10,1 18,8 19,1 Negra Mais de 3 a 5 SM 9,4 9,6 16,9 17,7 Mais de 5 a 8 SM 9,0 8,9 12,9 16,3 Mais de 8 SM 7,9 8,8 13,1 13,0 Fonte: Censo demográfico 2010 Elaboração: Ipea/DISOC 31 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Ademais, as mulheres no Brasil ainda enfrentam sérias dificuldades no que se refere ao trabalho reprodutivo, não somente pelo não compartilhamento das tarefas e cuidados domésticos com os homens, como pela cobertura deficitária de educação infantil por parte do Estado. Verificamos que em 2013 apenas 23,2% das crianças de 0 a 3 anos eram atendidas em creches; as crianças brancas (26,1%) tinham mais acesso que as negras (20,3%). Já as crianças de 4 a 6 anos tinham cobertura maior: 86,7% delas estavam na pré-escola, e as brancas (88,3%) acessavam mais que as crianças negras (85,3%) (IPEA/DISOC, 2015). Creches e pré-escolas, além de ser direitos das crianças, são importantes equipamentos que possibilitam às mulheres trabalhadoras lidar com o peso do trabalho reprodutivo. Análise do Raseam/2014 revela que entre as mulheres com todos os filhos de 0 a 3 anos em creches, 72,9% delas estavam ocupadas, enquanto somente 42,6% daquelas sem nenhum filho na creche tinham ocupação. No contexto atual, as mulheres estão cada vez mais inseridas no mercado de trabalho, sem que isso signifique uma transformação na sua relação com o trabalho doméstico. Acesso à escolarização e inserção no mundo do trabalho As mulheres continuam maioria no sistema de ensino, no entanto as desigualdades de gênero e raça estão presentes em todos os níveis da educação. Contraditoriamente, quanto mais escolaridade, maior a desigualdade entre homens e mulheres e brancos e negros. Segundo Raseam/2014, aumentou o número de pessoas de mais de dez anos alfabetizados/as no país (84%). Ainda assim, a taxa de analfabetismo das mulheres em 2013 foi 7,6%, menor que a dos homens, que foi 8,2% (IPEA/DISOC). As mulheres alcançaram o índice de 84,8% de alfabetização entre as mais jovens, contudo, as mulheres negras tiveram média inferior às brancas, especialmente nas faixas etárias mais altas (Raseam/2014). Observamos ainda que a maior taxa de escolarização no Brasil está no ensino fundamental (96,3%), e as menores, na educação infantil, particularmente de 0 a 3 anos (23,3%) e no ensino superior (16,5%), onde a cobertura ainda é muito deficitária. No caso das mulheres, essa situação diferencia-se um pouco para melhor nos níveis médio (60,2%) e superior (19%) na relação com os homens, onde elas estão em maioria. Todavia, as desigualdades raciais repercutem em quase todos os níveis de ensino para as mulheres negras. Elas têm as taxas de escolarização mais baixas quando comparadas aos homens e mulheres brancas em todas as faixas de ensino, só ficando atrás dos homens negros na taxa de ensino fundamental. Para essas mulheres, o gargalo permanece principalmente na faixa de 0 a 3 anos, onde a taxa de escolarização é de 20,5%, e nos níveis médio (55,3%) e superior (12,8%), nesta última, representando menos da metade da verificada para as mulheres brancas (IPEA/DISOC). Dados do Raseam/2014 informam que as mulheres são maioria das matriculadas e concluintes nos cursos de graduação e profissionalização, todavia, elas se concentravam nas áreas de estudo tradicionalmente femininas conforme a divisão sexual do trabalho, ou seja, nas áreas de educação e saúde principalmente, circunstância que tem impacto na sua inserção no mercado de trabalho. Nesse sentido, observa-se que em 2013 as mulheres tinham presença significativa em cargos de direção nessas áreas (educação, saúde e assistência social), em torno de 65,6%. No setor de alojamento e alimentação era de 44%, todavia, as mulheres eram bem menos na direção de áreas do setor agrícola, apesar de elas estarem em 32 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras maioria, e na construção, área tradicionalmente masculina. Ademais, as mulheres brancas ocupavam pelo menos 25,4% dos cargos de maior poder disponíveis, enquanto as mulheres negras ocupavam metade deles (10,8%) (Raseam/2014). As realidades por trás desses dados somadas à histórica situação de desigualdade entre homens e mulheres, ricos e pobres, brancos e negros no Brasil, parecem apontar que o crescimento econômico, associado ao fortalecimento das políticas sociais experimentadas pelo país na última década, contribuiu para melhorar indicadores como participação na ocupação e níveis de rendimentos de mulheres e negros, setores mais pauperizados da classe trabalhadora, favorecendo o acesso a direitos; todavia, também parecem indicar que não foram suficientes para modificar desigualdades estruturantes do mercado de trabalho, o que levanta a pertinência de questionarmos com mais acuidade a relação entre desenvolvimento econômico e enfrentamento das desigualdades, problematizando também os seus mecanismos e estratégias para além da dimensão meramente econômica. 33 CAPÍTULO II – OS CONTEXTOS DE PESQUISA: PROCESSOS HISTÓRICOS DE ESTRUTURAÇÃO E CONFIGURAÇÕES ATUAIS Neste capítulo, trataremos dos contextos abrangidos nesta pesquisa, situando-os a partir de sua inserção na dinâmica do desenvolvimento capitalista, patriarcal e racista em escala global e em suas configurações locais. Para tanto, recuperamos os elementos históricos que configuram os contextos de desenvolvimento abarcados nesta pesquisa, conformados pelas relações sociais de classe, sexo e raciais, que nos permitirão apreender as particularidades do desenvolvimento do capitalismo patriarcal e racista nessas terras e, notadamente, nos territórios e setor em que a inserção das mulheres é pesquisada. Essa contextualização nos exige, entretanto, abordar, ainda que brevemente, algumas questões cruciais sobre desenvolvimento em uma perspectiva crítica feminista. Na última década, o Brasil vem redefinindo seu lugar na economia mundial e ampliando seus níveis de crescimento econômico e perspectivas de desenvolvimento. Dentre os indicadores deste processo encontra-se a ampliação do Produto Interno Bruto – PIB, o crescimento do emprego formal, a ampliação da renda e uma significativa redução da pobreza. Estes fatores, aliados a uma política externa fortalecida, permitiram ao país ingressar no contexto de desenvolvimento globalizado de modo mais autônomo e estratégico. Segundo Oliveira (2011), assistimos na última década a um reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial, na medida em que o país assumiu definitivamente o papel de nação economicamente estratégica no continente latino- americano e se fez ouvir nos grandes fóruns internacionais. Em que pese o acelerado processo de crescimento, permaneceu o gap entre este processo e a superação da desigualdade social, de gênero e raça. Embora tenha havido uma sensível redução na desigualdade de renda, o Brasil ainda é um dos países mais desiguais na América Latina e no mundo (Gini 0,495, segundo PNUD, 2013). A desigualdade de gênero e raça, marca das relações sociais no País herdeiras do processo colonial, agrava esta situação para as mulheres e a população negra, os grupos sociais mais vulneráveis, maioria em situação de pobreza e em condição desigual em relação a vários indicadores socioeconômicos. A dinâmica entre crescimento econômico e superação das desigualdades estava e está colocada, dessa maneira, como uma atualíssima e premente questão na agenda pública do país, estratégica para incidir sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro. O primeiro Governo da Presidenta Dilma Rousseff aprofundou a política de desenvolvimento econômico, na qual o Estado assumiu papel de protagonismo na geração de infraestrutura para o crescimento, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, combinado com o enfrentamento da pobreza extrema, por meio do Programa Brasil sem Miséria e de outras políticas sociais. Estudos no campo do desenvolvimento propõem a categoria “neodesenvolvimentismo” para analisar o modelo implementado nos governos Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que pretendeu articular o crescimento econômico, ancorado na retomada do papel do Estado nos investimentos para subsidiar o capital produtivo, com o fortalecimento e a ampliação de políticas sociais. No campo do trabalho, este processo orientou-se para a ampliação do emprego formal e pela política de valorização do salário mínimo. Foi acompanhado, também, por um processo de reestruturação dos serviços públicos, com a realização de concursos e políticas de expansão de políticas e de acesso, dentre as quais se destacam as promovidas no campo da educação e da assistência social. 34 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Nesse contexto, recolocou-se a questão central, instaurada pelos estudos tributários dos movimentos de mulheres e feministas, acerca da relação entre mulheres e desenvolvimento (Boserup, 1970), ou, em uma perspectiva mais crítica, sobre em que medida o processo de crescimento econômico inserido em um modelo de desenvolvimento hegemônico enfrenta ou reproduz a desigual situação das mulheres nas sociedades. A perspectiva feminista sobre desenvolvimento “critica as bases do discurso hegemônico de desenvolvimento, questionando seus pressupostos e propondo um novo modelo para a superação dos problemas nos países do chamado Terceiro Mundo” (FRANCH, BATISTA & CAMURÇA, 2001, p. 86). Segundo Lautier (2009, p. 58), a conscientização do papel das mulheres no processo de desenvolvimento, ou melhor, na resistência à crise que ele gera, permite fundar uma crítica da teoria e das modalidades do fenômeno. Mas ela não permitiu, até hoje, propor um modo alternativo de desenvolvimento. A exclusão das mulheres do campo político e dos mecanismos de poder permanece quase geral. A “valorização” do trabalho feminino deve consistir no seu entendimento estritamente econômico e limitado ao trabalho subqualificado e mal remunerado. A heterogeneidade crescente entre os polos de modernidade e o resto das sociedades desses países acentua o banimento das mulheres para uma “economia de sobrevivência” para a qual ninguém possui nenhum projeto, a não ser uma navegação sem radar entre a anomia e a exclusão social. De acordo com Rodriguez (2010), “justamente por sua condição desigual nas sociedades, as mulheres, em particular as pobres, enfrentaram com maiores dificuldades os processos de globalização e de liberalização econômica e, por isso, em muitos países elas estão entre os principais “perdedores”. A análise sobre crescimento econômico e geração de postos de trabalho do ponto de vista da inserção das mulheres e da população negra, ou, mais além, de como as desigualdades de gênero e raciais determinam e são enfrentadas nesse processo, tem sido crucial para revelar os limites e os paradoxos entre crescimento e desenvolvimento econômico, participação no mercado de trabalho e superação das desigualdades nas relações sociais. No contexto de elaboração deste projeto de pesquisa, o Brasil experimentava um momento histórico do ponto de vista de seu desenvolvimento econômico e de sua inserção com liderança na dinâmica econômica e política global. No atual momento, de elaboração deste relatório, assistimos a múltiplas inflexões nesse processo, nucleadas pela emergência de uma crise econômica de fortes proporções que se expressa na estagnação da economia e que coloca em questão os limites do modelo de desenvolvimento que orientou o crescimento econômico, sustentado na produção de commodities para exportação e na ampliação do mercado de consumo interno. Conforme aponta o documento “Por um Brasil Justo e Democrático”2, O quadriênio (2011/2014) foi marcado pelo agravamento do cenário internacional, com a desaceleração da produção industrial da China, as dificuldades de recuperação das economias europeias e a redução da capacidade de importação 2 Iniciativa integrada por um conjunto de organizações da sociedade civil brasileiras para incidir no debate sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro no contexto de aguçamento da crise econômica e política, para a qual o Governo Federal vem apresentando como resposta um duro pro- cesso de ajuste fiscal. O documento “Por um Brasil Justo e Democrático: alternativas para o Brasil Sair da Crise e Voltar a Crescer” foi lançado em setembro de 2015. Produziram o documento: Brasil em 35 Debate, Centro Internacional Celso Furtado, Fórum 21, Fundação Perseu Abramo, Le Monde Diploma- tique, Plataforma Política Social e Rede Desenvolvimentista (POR UM BRASIL JUSTO E DEMOCRÁTI- CO, 2015). Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica de alguns de nossos principais parceiros comerciais na América Latina. Essa situação impactou negativamente os fluxos de comércio e os preços internacionais das commodities e dos produtos manufaturados. As tentativas de retomar o crescimento, preservar o nível de emprego e renda da população, e elevar a competitividade das exportações – que abrangeram, entre outras medidas, a redução das taxas internas de juros, a correção da taxa de câmbio e o expressivo aumento das desonerações fiscais – não produziram os efeitos esperados, o que se traduziu, no final do período, na perda de dinamismo da economia (2015, p. 20). O Brasil encontra-se novamente em uma encruzilhada, e o debate sobre os rumos do desenvolvimento nacional ganha centralidade na agenda política dos movimentos sociais e intelectuais progressistas. Nesse cenário, os resultados desta pesquisa ganham relevância porquanto, a partir da pesquisa empírica qualitativa, contribuem para uma análise sobre os limites do modelo de desenvolvimento no enfrentamento de desigualdades de gênero e raciais, dimensões tratadas de maneira ainda subordinada e marginal no debate teórico e político, mesmo no campo progressista. II.1 Barcarena, Pará: território cindido pelo desenvolvimento predador A cidade de Barcarena está localizada a 40 quilômetros da capital do estado do Pará, Belém. Este município pertence à microrregião de Belém, tem uma área de 1.310,33 km² e 99.859 habitantes (IBGE, 2010), das quais 49.513 são mulheres. Quanto à raça/cor, 79,48% da população do município é negra (40,32% homens negros e 39,16% mulheres negras), 19,39% branca (9,62% homens brancos e 9,77% mulheres brancas) e 1,14% consta como outra raça/cor (IBGE, 2010; Elaboração IPEA/DISOC/MINSOC 2015). O território de Barcarena é entrecortado por dezenas de pequenas ilhas, como Trambioca, Mucura, Arapari, Onças, Arapirangas, entre outras. O acesso para Barcarena, saindo de Belém, é feito através de embarcações que atracam na Vila de São Francisco e no Cafezal, ou via terrestre, pelas rodovias PA481 e 483. A sua vegetação é de floresta densa, mas também possui vegetação de várzea e florestas de regeneração natural – consequência da devastação. Barcarena também é entrecortada por muitos rios (Barcarena, Arariponga, Mucurupi, entre outros) e por igarapés. O contexto econômico e social de Barcarena está profundamente ligado à inserção da Amazônia na dinâmica capitalista global, na qual a cidade ocupa, desde os anos 1970, uma posição estratégica. Segundo Gomes, a Amazônia se insere no processo de desenvolvimento brasileiro, no bojo da divisão internacional do trabalho, como “tradicional fornecedora de commodities no mercado internacional, e a dinâmica das exportações desses produtos apresenta-se revigorada com o crescimento dos países asiáticos, especialmente da China, no primeiro decênio do século XX” (RIVERO; Jayme Júnior; 2008, p. 10 apud GOMES, 2012, p. 145). A ideia de desenvolvimento na Amazônia brasileira parte do entendimento de que sua condição de subordinação e de região periférica em relação às demais regiões do país é consequência do modelo de desenvolvimento baseado em métodos predatórios de ocupação e exploração destrutiva, não somente de seus recursos naturais, mas, sobretudo, de sua diversidade sociocultural representada pela existência das 36 múltiplas etnias originais, pois, ao longo da história, vive-se Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras uma regressão no que diz respeito à existência de espaços reais para as diferentes populações nativas da região (GOMES, 2012, p. 148). Barcarena é conhecida como um importante polo industrial de beneficiamento e exportação de caulim, alumina, alumínio – realizados por multinacionais como o complexo Albrás-Alunorte. Mas sua economia também tem base na agricultura, com o plantio de abacaxi, e no turismo. A cidade possui o maior porto do Pará, o porto de Vila do Conde, de onde sai toda a produção para exportação (cerca de US$ 2,9 bilhões anualmente3), para cerca de 30 países. De acordo com o Observatorio de la Economía Latinoamericana, Barcarena já vivenciou diversas atividades que movimentaram a economia do local. Durante muitas décadas, a agricultura tradicional foi a base econômica da cidade. Com a chegada dos grandes projetos amazônicos, nos anos de 1970, outras atividades começaram a ganhar destaque, principalmente as atividades industriais. A instalação do complexo Albrás-Alunorte foi um dos fatores responsáveis por essa mudança. Barcarena possui localização estratégica: situa-se na foz do Rio Amazonas, próximo da capital paraense, e está integrada à bacia Araguaia-Tocantins. Em função disso, Barcarena tornou-se, e tende a se tornar, cada vez mais relevante do ponto de vista econômico para a região. A instalação do Polo Industrial foi resultado de um acordo entre o governo do Brasil e o do Japão, em 1976, no contexto de crise mundial de petróleo, que levou o Japão, grande consumidor de alumínio, a buscar novos territórios de exploração com condições “favoráveis”: mão de obra barata, infraestrutura e farta abundância dos minérios. Essas condições foram garantidas pelo governo brasileiro, por meio desse acordo. Para aproveitar a infraestrutura de gestão de portos e terminais, também se instalaram em Barcarena algumas empresas produtoras de cimento, adubo e de fabricação de obras de caldeiraria pesada (PENA; SANTOS e OLIVEIRA, 2014, s/p). O processo de crescimento impulsionado pelos projetos de desenvolvimento para a região, na ditadura militar, que no caso de Barcarena tomou a forma de implantação de um complexo de extração mineral, configurou o território de Barcarena ao promover uma verdadeira “transformação territorial”. A cidade transformou-se de um pequeno vilarejo em que predominava a agricultura, o extrativismo e a pesca voltada para a subsistência e para o fornecimento destes itens para a capital, Belém, em uma cidade industrial cindida e marcada por profundas contradições. Esse processo constitui uma verdadeira “acumulação primitiva” do capital com seus corolários: amplos processos de expropriação das propriedades das populações nativas, “longos, brutais e dolorosos” (Harvey, 2013, p. 287). O acordo assinado entre o governo brasileiro e o governo japonês para a implantação do Polo Industrial foi assinado em 1982. A partir de então, diversas iniciativas foram mobilizadas pelo estado para assegurar a infraestrutura necessária à implantação do Polo. Em 1982, um decreto assinado pelo governo paraense autorizou a desapropriação de 40 mil hectares de terra para a implantação do Distrito Industrial. Em 1984, foi construída a Usina de Tucuruí, em região próxima, para prover a energia necessária ao abastecimento do Polo Industrial de Barcarena. A implantação do Polo Industrial em Barcarena foi, portanto, realizada pela intervenção e com subsídio do Estado. Para garantir a exploração econômica dos abundantes recursos naturais da região, houve a apropriação, muitas vezes ilegal, de terras públicas e principalmente a expropriação do 37 3 Cf. ENVOLVERDE JORNALISMO E SUSTENTABILIDADE. Disponível em: <www.envolverde. com.br>. Acesso em: 18/11/2015. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica direito à terra de grandes contingentes da população nativa. Além disso, a intensa utilização dos recursos naturais por essas atividades econômico-produtivas (mineração, hidroenergia, madeireiras, agronegócio etc.) acabou por gerar, ao longo dos anos, impactos socioambientais negativos (danos ao meio ambiente, doenças e pobreza), que desorganizam e, por vezes, inviabilizam a permanência dos agrupamentos humanos nesses territórios, assim como dificultam sua convivência com a natureza (GOMES, 2012, p. 152). Os projetos de desenvolvimento que se sucedem na região Amazônica e em Barcarena, em particular, mantêm e reatualizam a relação colonial de exploração dos bens naturais e a superexploração da força de trabalho local. Barcarena é, nesse sentido, inteiramente (re)criada para o capital internacional pela mediação do Estado nacional. No contexto atual, com a perspectiva neodesenvolvimentista implementada pelos governos Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, em que o estado reassume um papel protagonista no desenvolvimento, especialmente no investimento para a criação da infraestrutura, Barcarena reassume um lugar estratégico como via de integração e escoamento das commodities produzidas ou exploradas na região. Um novo impulso ao desenvolvimento local foi gerado com o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e pela Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana/Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (IIRSA/COSIPLAN), nos quais estão inseridas ações como a construção de Belo Monte no rio Xingu, do complexo de barragens Tapajós, no estado do Pará. Por sua localização geográfica estratégica e por abrigar o maior porto da região (porto de Vila do Conde), Barcarena está no coração desses processos e os projetos em curso para a cidade pretendem consolidá-la como um “entroncamento logístico”, ao permitir a integração de diferentes vias de transporte e escoamento, especialmente a rodoviária, aérea, marítima e fluvial. Integra esse projeto a ampliação de vias rodoviárias e ferroviárias que pretendem integrar diversos pontos do território ao município. Segundo estudo organizado por Silva e Moraes (2012), as obras de infraestrutura estão sendo efetuadas em alta velocidade – velocidade que tem acirrado os conflitos socioambientais, haja vista a condução autoritária dos processos, sem a efetivação de canais de diálogo e participação social em torno dos rumos do desenvolvimento para a região4. Além dos impactos sociais, o avanço deste modelo tem como consequência a perda definitiva e irreparável de diversos ecossistemas e bens comuns. Segundo informações de lideranças locais consultadas durante o processo de visitas locais, etapa preliminar à pesquisa qualitativa de campo por nós realizada, constitui também hoje um dos braços do desenvolvimento na região a expansão do agronegócio de biocombustíveis, como o dendê. Segundo Silva e Moraes (2012), estudos vêm sendo realizados na região pela Petrobrás com vistas a identificar as possibilidades de exploração de petróleo e gás na região. São poucas as informações disponíveis sobre os impactos deste processo sobre as desigualdades de gênero. Menos ainda, sobre como as relações sociais de sexo e raça conformam esse processo. Estudo pioneiro de Moura e Maia (1983) sobre o processo de reorganização do espaço de trabalho com a implantação do grande projeto Albrás- Alunorte indica que um dos grandes impactos foi a reorganização da reprodução social pelas famílias. Assim, as informações disponíveis apontam para a baixa incorporação 4 Faz parte desse processo a flexibilização da legislação ambiental, a exemplo do novo Código 38 Florestal, aprovado pelo Congresso Nacional em 2014. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras das mulheres nos postos de trabalho formais gerados pelo Polo Industrial – dimensão que aprofundaremos a partir da pesquisa qualitativa realizada – além da emergência de redes de exploração sexual de mulheres no município e, ainda, o agravamento da violência contra as mulheres. Segundo dados do Mapa dos Homicídios, Barcarena encontra-se entre os 100 municípios brasileiros com maiores taxas de homicídios de mulheres, situando-se, precisamente, na 65ª posição, com uma taxa de 10,1, enquanto a taxa nacional é de 4,4 (CEBELA/FLACSO Brasil, Mapa dos Homicídios de Mulheres 2012, fonte SIM/SVS/MS). Deste processo depreende-se que o desenvolvimento econômico na região segue avançando em um modelo baseado no desapossamento (Harvey, 2005) para produção de commodities com altos impactos sociais e ambientais. As organizações da sociedade civil e os movimentos sociais que atuam na região têm chamado atenção para os impactos já evidentes da expansão do agronegócio na região, dentre os quais se destacam comunidades rurais e modos de vida tradicionais, aumento do preço da terra e dos conflitos pela posse, expulsão de famílias, concentração da terra, contaminação de rios, igarapés e lençóis freáticos por conta do uso abusivo de agrotóxicos, recrudescimento do tráfico de drogas e de diferentes modalidades de violência (contra mulheres e crianças, por exemplo), aumento da pressão sobre as terras dos(as) agricultores(as) familiares e comunidades quilombolas, entre outros (SILVA & MORAES, 2012, p. 14). Uma das mais expressivas consequências do modelo de desenvolvimento imposto à região é a emergência de conflitos socioambientais por todo o território amazônico, em face dos projetos de infraestrutura energética (construção e expansão de hidrelétricas), da expansão do agronegócio com consequente desterritorialização de populações nativas e, mais recentemente, das estratégias voltadas para a mercantilização da natureza via, por exemplo, o mercado de créditos de carbono: ... este espaço geográfico, nas décadas de 1980 e 1990, passou a constituir o lócus de operação de inúmeros projetos de impacto, no setor de mineração e eletricidade, dentre os quais: Projeto Trombetas, pela Companhia Vale do Rio Doce (exploração de bauxita); projeto Grande Carajás (exploração de minério de ferro) (…); Projeto Albrás-Alunorte, em Vila do Conde-Barcarena, Pará (produção de alumina e alumínio metálico); Projeto Tucuruí (construção de hidrelétrica) etc. (NASCIMENTO, 2009 apud GOMES, 2012, p. 156). Em Barcarena, a atividade industrial provocou impactos ambientais profundos: devastação das florestas, os desvios de cursos dos rios e poluição da água e dos lençóis freáticos pela atividade industrial. Diversos episódios de acidentes ambientais graves ocorreram no município, o mais grave deles no ano de 2007, quando se verificou um grande vazamento de caulim proveniente da empresa Imerys, que contaminou os igarapés Curuperê e Dendê, chegando ao rio Pará, matando peixes e levando à retirada de 500 famílias que viviam nestas áreas e sobreviviam da pesca. Em 2013, um novo vazamento de caulim gerado pela mesma empresa voltou a ocorrer na região, atingindo o igarapé Curuperé5. 5 Disponível em: <http://diariodopara.diarioonline.com.br/N-170793-CAULIM+DA+IMERYS+ VAZA+PARA+IGARAPE+EM+BARCARENA.html>. Acesso em: 10/09/2015. 39 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Uma das mais profundas contradições vivenciadas na cidade diz respeito à questão da água. Segundo estudo realizado pelo Instituto Evandro Chagas (Brasil, 2011 apud SILVA & MORAES, 2012), 92,8% de águas coletadas nos municípios e 90% da água subterrânea (poços) de uma área significativa de Barcarena (distrito industrial, Vila do Conde, ilha São João e comunidades Laranjal, Curuperê e Vila Nova Itupanema) foram consideradas inadequadas para o consumo humano. O modelo de desenvolvimento implantado no território é profundamente desigual na sua forma de absorção da força de trabalho, na reorganização territorial que produz, nos resultados da produção (alta concentração de renda versus altas taxas de pobreza) e nos impactos ambientais e sociais. Uma primeira contradição que marca o contexto é o alto nível de concentração de renda: em que pese a riqueza produzida pela região (exportações anuais que atingem cerca de 3 bilhões), grande parte da população local vive em condição de pobreza e a melhoria na desigualdade de renda no município só foi verificada a partir do programa Bolsa Família. Este dado evidencia que o processo de crescimento local não produziu efeitos redistributivos. Barcarena está entre os quatro municípios do Pará com maior Produto Interno Bruto – PIB, porém 46% da população encontra-se em situação de pobreza (SILVA & MORAES, 2012). As mudanças verificadas na desigualdade de renda no município, em particular no que se refere à redução dos níveis de pobreza, estão relacionadas às políticas de transferência de renda implementadas pelo Governo Federal, notadamente o Bolsa Família. Do ponto de vista da geração de trabalho produtivo, pode-se dizer que a implantação do polo Albrás-Alunorte promoveu formas de assalariamento restritas e de curta duração. Restritas, porque em grande medida a mão de obra incorporada, dadas as exigências de qualificação para a inserção no Complexo, pouco absorveu a força de trabalho local, e o fez em atividades secundárias e pouco especializadas, portanto, com menores rendimentos. De fato, segundo relato de lideranças locais entrevistadas, grande parte do contingente de pessoas que chegaram a Barcarena em busca de emprego no Polo Industrial, ainda nos anos 1970, inseriu-se com efeito no setor de serviços e no comércio. Entre as mulheres, o emprego doméstico para as famílias empregadas no Polo foi uma das principais vias de acesso à renda gerada na região. Nesse processo, “as mulheres buscam o trabalho fora de casa como serventes ou domésticas (...) o recurso ao trabalho doméstico na cidade pelas filhas e o trabalho assalariado dos filhos temporariamente na cidade tornam-se necessários à sobrevivência da família” (MOURA e SÁ, 1983, p. 89). Criaram-se nichos de assalariamento em meio a uma imensa massa de trabalho informal. De curta duração, porque em duas décadas, a reestruturação produtiva chegou ao Polo e este contingente de trabalhadores e trabalhadoras foi “transferido”: de uma relação direta de assalariamento nas empresas, passou ao trabalho em firmas terceirizadas para, em seguida, inserir-se no trabalho associado, por meio das cooperativas. Conforme expressa Gomes (2012): O compromisso do Estado na defesa dos interesses do grande capital nacional e internacional, expresso na “invisibilidade dos sujeitos sociais amazônicas e na visibilidade de planos econômicos e empresarias em crise” (Nascimento, 2009, p. 44) tem contribuído para a consolidação do papel da Amazônia na divisão nacional e internacional do capital e do trabalho como fornecedora de matéria-prima e espaço de reprodução da força de trabalho, ao transformar segmentos de trabalhadores sem experiência de assalariados (pescadores, extrativistas, agricultores etc.) em “assalariados secundários” (Nascimento, 40 2009; p. 44), em geral, sem qualificação profissional, recebendo Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras salários irrisórios, incompatíveis com o atendimento às suas necessidades básicas, além dos trabalhadores desempregados (GOMES, 2012, p. 157). Segundo dados do último Censo (2010), 30% da população ocupada em Barcarena era composta de trabalhadores(as) por conta própria. O Polo Industrial, que vem se desenvolvendo desde os anos 1980, tem como carros-chefe sete megaindústrias do setor minero-metalúrgico, sendo o maior complexo da América Latina no beneficiamento de alumina e produção de alumínio. Sua instalação gradativa modificou completamente a paisagem regional, transformando o município no segundo PIB e na segunda arrecadação do estado do Pará. Suas sucessivas expansões receberam financiamento público e estão conectadas com o processo de reestruturação produtiva global, que deslocou a produção de diversos setores para países “semi-industrializados”. Conforme explica Barbosa (2010), “dentro deste novo cenário, o setor industrial do alumínio primário sofreu consideráveis mudanças. Um exemplo disto é o caso da indústria japonesa, que devido ao virtual fechamento de sua capacidade produtiva passou a incentivar o desenvolvimento de fontes alternativas de abastecimento (…) em países com abundância de energia barata e reservas de bauxita, como é o caso do Brasil e, mais especificamente o estado do Pará” (2010, p. 281). A economia informal desenvolveu-se a partir do processo de industrialização da região, com a terceirização de determinadas atividades vinculadas à indústria de alumínio, assim como em função do crescimento econômico no território e da vinda de trabalhadores(as), que geraram mercado para outros serviços. A presença de cooperativas responde por parte substancial do setor informal na região, com significativa presença das mulheres. Entre as atividades que compõem a informalidade na região encontram- se o extrativismo e o beneficiamento de açaí, cooperativas de confecção e moda e cooperativas de serviços (estas últimas, em geral, vinculadas às indústrias de alumínio, como a Albrás e Alunorte). As grandes indústrias têm impulsionado também a formação de cooperativas, tanto como estratégia de responsabilidade social como – e sobretudo – para ampliar as possibilidades de barateamento da força de trabalho por meio da terceirização de serviços. Na percepção das sujeitas de pesquisa, Barcarena também enfrenta um contexto de desemprego crescente, o que se revela nos seguintes depoimentos: “Perder esse emprego daqui eu num tenho muito medo, mas tenho de ficar desempregada porque aqui, aqui na região de Barcarena, eu acho que tá muito difícil emprego. Conheço muitas famílias que foram embora, até meu irmão com a mulher, foram tudo embora porque aqui num tinha, num tava conseguindo emprego pra ele, tá um pouco baixo aqui, tá difícil. Eu acho que num é só aqui em Barcarena não, é em todo lugar emprego”. “Tem muito muita gente desempregada, tanto é que muita gente procura (lugar) fora pra trabalhar, né? Onde meu filho mora hoje em dia, que ele tem dezoito ano, trabalha, começou a trabalhar com dezoito ano, meu irmão conseguiu um emprego pra ele, mora e trabalha em Porto Velho ele, e ele diz pra mim: “Mãe, aqui em Porto Velho tem tanta gente que a senhora nem imagina, que a senhora pensa que tá em Barcarena, mas tá aqui; são homens e são mulheres, e esse trabalho era pra ser em Barcarena. Pessoas tão procurando muito trabalho fora, por 41 causa dificuldade de trabalho, que aqui é muita”. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Bom, na minha opinião, eu acho que antes quando tinha a expansão da Alunorte, abriu muita frente de serviço, e depois deu uma parada. A Cape não andou, que era a oportunidade que as pessoas tavam esperando, né? Veio a crise mundial, e aí eu acho que tudo isso foi acarretando essa falta de emprego, né?”. A desigualdade ganha contornos espaciais sob a face de uma cidade cindida em dois territórios com situações francamente díspares: a velha Barcarena ou Barcarena Velha, região próxima ao Porto de embarque e desembarque de passageiros/as, onde predominam aglomerados de casebres de madeira ou de alvenaria, com pouca infraestrutura social e uma ampla gama de pequenos serviços, informais. Destaque- se, nesse cenário, o expressivo número de igrejas, de diferentes matizes, existentes na região (Diários de Campo, Pesquisa SOS Corpo, 2013-2014); e a nova Barcarena, mais conhecida como Vila dos Cabanos, onde estão situadas as empresas e os domicílios de funcionários do Polo Industrial Albrás-Alunorte (hoje ligados à transnacional Hydro), com domicílios estruturados, grandes lojas de automotivos, redes de supermercados e hotéis (Diários de Campo, 2014). Estudos locais e relatos das entrevistadas apontam que, ainda hoje, mesmo os serviços públicos são implantados de maneira desigual no território da cidade: “e ainda de forma mais seletiva, somente algumas frações territoriais do município-sede desses empreendimentos são aquinhoadas com obras, serviços e outros benefícios, apesar de, muitas vezes, os dados estatísticos colhidos e divulgados de modo genérico não revelarem as diferenciações internas existentes” (SILVA & MORAES, 2012, p. 26). A intensa urbanização não foi acompanhada pela garantia das condições de infraestrutura urbana. Segundo dados do mesmo estudo, a população de Barcarena cresceu, do período de implantação do Polo aos dias de hoje, cerca de 470%. Nas visitas exploratórias realizadas na preparação ao campo da pesquisa, entre o final de 2013 e os primeiros meses de 2014, foi possível vislumbrar o cenário de precariedade das condições de infraestrutura da cidade, assim como nos relatos de moradores(as) e trabalhadores(as). As desigualdades e contradições engendradas neste processo se refletem na paisagem: entre a grandiosidade e a imponência da floresta Amazônica e a aridez das áreas devastadas pela expansão do complexo de alumínio e pela infraestrutura para o escoamento da produção. A maioria das trabalhadoras entrevistadas refere-se aos bairros onde vivem como de situação precária em infraestrutura e equipamentos sociais. Quanto ao lazer, em geral as entrevistadas falam da ida a bares, aos igarapés e, ocasionalmente, a viagens para vista de familiares. As relações na vizinhança são diretamente influenciadas pelas condições de moradia. Há entrevistadas que residem em bairros que foram ocupados antes da chegada do polo, em geral na região da cidade chamada de “Barcarena Velha”, onde já vivem há muito tempo e onde familiares já residiam; e aquelas que moram em quitinetes, construídos mais recentemente e em função da estruturação do polo, na assim chamada Vila dos Cabanos. No relato das primeiras, há referência a uma sociabilidade marcada pelas relações de vizinhança e construída ao longo deste longo período de permanência. Entre aquelas que vivem nas quitinetes, há referência a uma “alta rotatividade” que parece criar maiores impedimentos para a construção de relações de vizinhança no bairro. Sociabilidade e relações no bairro onde moram são limitadas pela falta de tempo. Nas narrativas, prevalece o relato de pouca relação com vizinhos e vizinhas, uma vez que elas, praticamente, saem durante a madrugada e voltam ao anoitecer, restando-lhes pouco tempo de convivência. O espaço da sociabilidade é, 42 além da família, o ambiente de trabalho remunerado. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Moro em uma quitinete (de aluguel), e tem aqueles contratempos de barulho. O bairro é péssimo, não chegou infraestrutura, saúde é de baixa qualidade, educação também. Tem uma pessoa de péssima qualidade que prometeu mundos e fundos, mas até agora, nada; tudo é de péssima qualidade”. “Eu nasci nessa rua aqui, me criei aqui, né? Então as pessoas que moram aqui, os vizinhos mais antigos têm uns setenta anos aqui, que moram aqui e não tinha muita rotatividade... Uns três ou quatro espaços aqui, terrenos, já foram vendidos. Aí já vêm pessoas de fora, que aí essas pessoas a gente observa que são mais reservados, né? Já aqui no meu caso, no caso da minha mãe aqui do lado... que elas já moram aqui há mais de setenta anos, que também nasceram e se criaram aqui, a gente tem uma boa relação com os vizinhos mais antigos, e tem também aqui do lado, do outro lado. Uma vila de quitinete, que também tem uma rotatividade muito grande, né?, de inquilinos, e aí não dá tempo de ter esse contato, entendeu?!”. Segundo Palheta (2004), que pesquisou sobre a história dos movimentos sociais em Barcarena, a origem destes movimentos está intrinsecamente ligada à instalação da indústria de transformação mineração na região. Criaram-se, nesse período, associações comunitárias e movimentos de resistência em face das desapropriações e de denúncias das falsas promessas de melhoria com a implantação do Polo Industrial (Diário de Campo, Barcarena, 2013). Segundo esse estudo, existiam em Barcarena 39 associações comunitárias, grande parte delas criadas nesse período. Em síntese, o contexto social e ambiental de Barcarena, com suas disparidades e contradições, reflete os impactos devastadores “dessa tempestade chamada progresso”, nas palavras de Walter Benjamin (2012, p. 246), que, como as tempestades tropicais oriundas da floresta Amazônica, segue avançando com fúria sobre a região. II.2 O Polo de Confecção de Toritama, Agreste de Pernambuco O município de Toritama está situado no Agreste de Pernambuco, distante cerca de 170 quilômetros da capital do estado, Recife. A população de Toritama, segundo o último censo nacional realizado (IBGE, 2010), era de 35.554 pessoas6, das quais 17.421 são homens e 18.133 são mulheres. A maior parte da população feminina é formada por mulheres negras, 51,6%, enquanto 47,6% são brancas (IBGE, 2010). Na população total do município, 54% são negros/as e 45% brancos/as (IBGE, 2010). A grande maioria da população vive na área urbana, 34.125 pessoas; dessas, 17.384 são mulheres –, e uma pequena parcela vive na área rural, 1.429 pessoas; dessas, 749 são mulheres. Entre 2000 e 2010, a população de Toritama cresceu a uma taxa média anual de 5,01%, enquanto no Brasil a taxa foi de 1,17%, no mesmo período. Nesta década, a taxa de urbanização do município passou de 92,33% para 95,98% (Atlas IDHM Pnud, 2013). Ao longo das últimas décadas, verifica-se um aumento na população e uma intensificação do processo de urbanização da cidade, que está diretamente vinculado à consolidação do município como um polo produtor de confecções. O processo de desenvolvimento econômico em Toritama foi historicamente constituído a partir dos anos 1950 e movido pela busca das populações locais, 6 Em 2014 o IBGE registrou que a população estimada já era de pouco mais de 41 mil pessoas 43 residentes no município. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica especialmente das mulheres, de criar “estratégias de sobrevivência” ao declínio da principal atividade econômica que sustentava a região, a produção algodoeira. Aquele(a) que, nas grandes cidades, teve a possibilidade de em algum momento assistir à criação de mundos de informalidade ao redor de grandes eventos ou nos centros das cidades, e ver como, com uma velocidade impressionante, se estabelece uma miríade de serviços, pode ter um “instantâneo” do processo que ocorreu no Agreste pernambucano ao longo de mais de meio século. No caso de Toritama, na periferia de uma região historicamente submetida a um desenvolvimento desigual e sustentado na produção e no consumo popular, estruturou-se o que é hoje um polo conectado ao mercado nacional e, mesmo, mundial. O município responde pela produção de 17% do jeans fabricado em solo brasileiro (Dieese, 2014). A atividade produtiva de confecção desenvolve-se e ganha força, no Agreste pernambucano, sem a mediação do Estado ou a intervenção do capital, mas pela iniciativa de mulheres e homens que viviam em situação de pobreza e que encontraram na confecção de roupas e artigos de cama, mesa e banho, tendo como base a “sulanca”, uma estratégia de sobrevivência. O termo “sulanca” deriva de uma junção entre “sul” e “helanca” e designa os retalhos de malhas utilizados para produzir pequenas peças de vestuário e artigos de cama, naquele período. Os artigos produzidos a baixo custo são vendidos no próprio mercado local e dão origem às chamadas “feiras da sulanca”. Conforme afirma Araújo (2011), aquela região sustentada no “velho complexo gado/ algodão/policultura alimentar”, no contexto de declínio da atividade algodoeira, “vê se instalar e se desenvolver uma aglomeração especializada na produção de vestuário destinada, especialmente, ao amplo mercado de consumo popular brasileiro” (p. 9). As feiras locais, dentre as quais se destaca a feira de Caruaru, tornaram-se os principais pontos de comercialização. Diversos autores que estudaram a região são consensuais em afirmar que o desenvolvimento e a consolidação do aglomerado produtivo da sulanca só se tornaram possíveis devido à prática das feiras, que são parte do cotidiano naquela região. Vale ressaltar que as feiras da “sulanca”, como ficaram conhecidas, se desenvolveram no mesmo período em que ganhava impulso, sob a intervenção do Estado, o processo de industrialização no sul do país. O polo de confecções do Agreste se desenvolveu à margem desse processo e é expressão da desigualdade regional que caracterizou o desenvolvimento econômico brasileiro no século passado. Também se desenvolveu à margem das iniciativas desenvolvimentistas implantadas na região Nordeste a partir da década de 1960, impulsionadas pela criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, sediada no estado de Pernambuco. Em Toritama, as atividades desenvolvidas a partir dos “rejeitos” da produção da indústria têxtil na região Sudeste do país ganharam tal força que hoje é um foco que compete, em termos produtivos, com aquela região. A costura de confecções de “sulanca” começa com as mulheres produzindo roupas em casa, com suas máquinas domésticas, para vender em feiras e para o consumo da própria família. Essas roupas eram feitas com retalhos que os mascates adquiriam no Recife a preços muito baixos. A produção foi aumentando com o tempo, até que nos anos 1960, o Banco do Brasil financiou 2.500 máquinas industriais de baixa rotação que incrementaram a produção, dando mais qualidade às peças. Nesse mesmo período, instalaram-se na região os primeiros fornecedores de tecidos e aviamentos, e a qualidade da produção começa a melhorar. Pode-se afirmar que a própria história de desenvolvimento das atividades produtivas no polo de confecções do Agreste expressa um esforço coletivo não organizado empreendido pelas mulheres, a partir de uma atividade inscrita na divisão sexual do trabalho como um “trabalho de mulher”, a 44 costura, para garantir algum patamar de autonomia econômica. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Nesse processo, que tem como base o trabalho das mulheres, ocorre uma ampla massa de trabalho informal com alta capacidade de produção e comercialização, que se expande de Santa Cruz do Capibaribe a vários municípios do entorno, sem nenhum apoio ou regulação do poder público. Além da iniciativa do Banco do Brasil nos anos 1960, só muito recentemente, no início dos anos 2000, têm lugar iniciativas do poder público voltadas para o território, no bojo de políticas de incentivo aos Arranjos Produtivos Locais – APL, voltadas para transformar a região em um polo produtivo sustentados no incentivo ao “empreendedorismo” local (Barbosa, 2010). O município do Toritama especializou-se na produção de jeans e responde, hoje, por grande parte da produção nacional. A partir de 2002, sob a influência do Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado de Pernambuco – Sindvest, e do Sebrae, a região passou a ser conhecida como Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco, ou Polo da Moda. Em 2011, o Sindvest e o Sebrae mobilizaram fortes campanhas de mídia com o objetivo de firmar a ideia de polo e desconstruir a marca da “sulanca”. O desenvolvimento econômico gerado pelo polo transformou o município em um “território de informalidade” (VÉRAS DE OLIVEIRA, 2013) que vai redefinindo a relação urbano-rural, pelo acelerado processo de urbanização que a atividade gera, ao passo que promove a atração de grandes contingentes de pessoas em busca de trabalho remunerado. Inicia-se, assim, um intenso fluxo de migração do meio rural para o urbano, do Sertão para o Agreste, e do Sudeste para o Nordeste – em um movimento de reversão do fluxo migratório histórico que marcou a região. Neste momento, gerações descendentes de emigrantes chegam à cidade como imigrantes em busca de trabalho, diante da grande oferta com baixa exigência de qualificação. Entre 2000 e 2010, a população de Toritama cresceu 63,1%. Segundo dados do IBGE (2010), a taxa de urbanização alcançou 96%. Hoje, o município detém altas taxas de ocupação na PEA, com 96,78% da população ocupada, mas com graus de informalidade também altíssimos, que denunciam “o profundo enraizamento do caráter informal das atividades econômicas e do trabalho na região” (VÉRAS DE OLIVEIRA, 2013, p. 257). Segundo os dados do Sebrae (2013), 83,79% da população ocupada encontrava-se em situação de informalidade. De acordo com Véras de Oliveira (2013, p. 234), o que é particularmente intrigante no contexto de desenvolvimento de Toritama, no contexto atual, são “os novos processos envolvendo essa dualidade de situações, algo que podemos tratar como novas formas e dinâmicas de informalização-precarização”. Ainda segundo esse autor, os nexos que a partir daí foram se estabelecendo entre as dinâmicas constitutivas do aglomerado de confecções e diversos padrões de acumulação capitalista, os graus de articulação quanto a isso alcançados, se constituem, ao nosso ver, como um dos aspectos mais instigantes da abordagem sobre a experiência em questão (p. 243). Atualmente, o Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco está conformado como um aglomerado de iniciativas produtivas e comerciais relacionadas ao setor de confecções, com foco em roupa casual (masculina e feminina), brim (jeans, bermudas, saias, shorts e camisas), malharia (camisetas, tops, blusas, vestidos), outras vestimentas (calças, saias, camisas e blusas), moda infantil e lingerie (VÉRAS DE OLIVEIRA, 2013). De acordo com o Sebrae (2013), a estimativa do número para os dez principais municípios do Polo de Confecções do Agreste é de 18.803 unidades produtivas dedicadas à atividade de confecção. A estimativa de Toritama é de 2.818, correspondendo a 15% das unidades produtivas do polo, ficando 45 atrás de Santa Cruz do Capibaribe, com 7.169 (38,1%), e Caruaru, com 4.530 (24,1%). Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Os arranjos produtivos iniciais tiveram por base o trabalho em domicílio de mulheres nas costuras. Atualmente, há uma diversificação nestes arranjos, que abrangem pequenas e médias empresas, fabricos e facções. De acordo com Véras de Oliveira (2013, p. 240), fabrico é a denominação local para as unidades produtivas familiares, com funcionamento em geral domiciliar, que podem ter diferentes dimensões, com vários trabalhadores contratados, nenhum ou dezenas (em geral informais). Recentemente, os fabricos ganharam mais estrutura, formalizaram-se e alguns têm marca própria. As facções são unidades produtivas mais precárias, em geral informais e domiciliares, que produzem como subcontratadas para fabricos e fábricas, realizando uma ou mais tarefas do processo produtivo. Destacam-se entre as atividades produzidas pelas facções a costura, o corte, o bordado, o travete (para peças de jeans), dentre outras (VÉRAS DE OLIVEIRA, 2013, p. 241). Nestas unidades, são produzidas desde peças para comercialização nas feiras populares locais a marcas que se tornaram famosas e prestigiadas. Das unidades produtivas de Toritama, entretanto, as facções correspondem a 66% (Sebrae, 2013). É o trabalho em domicílio, informal, precário e realizado, caracterizado pelo desvalor, na divisão sexual do trabalho, que sustenta grande parte da produção local. Conforme Bezerra, os territórios produtivos do polo das confecções constroem-se como “um amálgama que envolve velhas e novas dinâmicas produtivas e sociais” (2013, p. 334). Os resultados da pesquisa realizada pela autora sobre divisão sexual do trabalho nos arranjos produtivos do polo do Agreste apontam que “o processo produtivo no polo se constitui alicerçado em uma tríade composta por trabalho domiciliar (informal), por uma divisão sexual do trabalho e por uma dinâmica rural-urbana” (Bezerra, 2013, p. 335). O que se constituiu, a partir da década de 1970, como um processo local de confecção a partir de rejeitos de tecidos das regiões Sul e Sudeste e como uma estratégia de sobrevivência de pessoas, especialmente mulheres, em situação de pobreza, é hoje uma atividade profundamente conectada com as cadeias e dinâmicas nacionais, e mesmo internacionais de produção capitalista. Os dados sobre a capacidade produtiva local são impressionantes: segundo o Dieese, o polo registra, hoje, uma produção anual de 842,5 milhões de peças confeccionadas por cerca de 18 mil unidades produtivas que “empregam” algo em torno de 130 mil pessoas. O faturamento das empresas da região alcança 1,1 bilhão de reais (Dieese, 2014). Ao se fazer uma caminhada pela cidade, você é conduzida pelo sonoro e frenético som das máquinas de costura que de casa em casa vão costurando a vida deste lugar. As pilhas de jeans nas calçadas ao longo das vias indicam exatamente onde se encontram estas trabalhadoras e trabalhadores incansáveis que veem o nascer e o pôr do sol através das tramas e recortes transformados em sustento no vai e vem de calças, bermudas e shorts (MEIRA, 2014). Os discursos das autoridades locais reforçam uma ideologia que atribui à informalidade – e sua manutenção – a força motriz que impulsiona a riqueza e o crescimento dos municípios do Polo, o que se traduz no reforço a uma cultura dos médios e pequenos empregadores(as) de rechaço a qualquer perspectiva de regulação da atividade (Registros de Campo, Toritama, Novembro de 2013). Essa constante “elegia da informalidade” é um aspecto ideológico a ser tratado como uma dimensão não 46 menos relevante nas análises sobre as relações de trabalho e da precariedade na região. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras A expansão da produção foi acompanhada de mudanças nos circuitos de comercialização, que se expandiram, sofisticaram e diversificaram. Embora as feiras permaneçam como importantes espaços de comercialização, estas se tornaram insuficientes e, nos últimos anos, começaram a ser construídos centros comerciais de grande porte nas cidades de Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e em Toritama, chamados de Parque das Feiras, que possuem 875 pontos de venda diferenciados. Inserida no polo de confecções do Agreste pernambucano, Toritama movimenta um montante considerável de recursos na região e no próprio Estado de Pernambuco. Entre 2000 e 2009, o crescimento de 101% do PIB de Toritama se destacou, juntamente com os outros nove municípios do Polo. No entanto, alerta Véras de Oliveira (2013), todo esse crescimento populacional e do PIB é contrastante com as condições sociais da região. O crescimento econômico da região não impactou na desigualdade de renda. Em que pese o peso do PIB em relação aos demais municípios de Pernambuco, 35% da população do município encontra-se em situação de pobreza (IBGE, 2010). Os indicadores de renda também apontam para uma situação flagrante de desigualdade: os 80% mais pobres da população apropriam-se de 51,63% da renda, enquanto os 20% mais ricos apropriam-se de 48,37% da renda gerada no município (Pnud, 2013). Toritama apresenta baixos indicadores relacionados à educação, com taxas de analfabetismo muito superiores às médias do estado e do país. Em 2010, considerando- se a população municipal de 25 anos ou mais de idade, 26,56% eram analfabetos, 25,53% tinham o ensino fundamental completo, 14,33% possuíam o ensino médio completo e 2,42%, o superior completo (Atlas Pnud, 2013). São poucos os indicadores disponíveis desagregados por sexo no plano municipal e, especialmente, relacionados à esfera da reprodução social. Entre os dados disponíveis, o Pnud 2013, com base no censo de 2010, aponta que em Toritama, 71,46% das mães chefes de família com filho menor não possuem o ensino fundamental. Os impactos ambientais da atividade produtiva também vêm sendo motivo de grande preocupação nos estudos realizados no município. A cidade tem como principal manancial de água o rio Capibaribe, que percorre a margem de seu território em 14 km, seguido pelo riacho da Bica e pelo riacho Canudos, que recebem as águas servidas da aglomeração de Toritama e parte dos efluentes industriais (Oliveira, 2007). Em Toritama, a escassez de água é um dos principais problemas enfrentados pela população. Os esgotos domésticos, associados aos dejetos da produção da indústria de confecção do polo e, principalmente, as lavanderias industriais de jeans, contribuem com o comprometimento da qualidade da água do rio, conforme comprovam dados de análises laboratoriais (Oliveira, 2007). Até 2005, as lavanderias descartavam os efluentes no rio Capibaribe, sem nenhum tipo de tratamento, o que chegou a alterar a cor das suas águas. As denúncias da população local levaram o Ministério Público de Pernambuco a notificar as lavanderias com termos de ajuste de conduta que resultaram na posterior regularização de 56 lavanderias que, hoje, fazem o tratamento dos efluentes, mitigando os impactos ambientais da atividade. No entanto, estudos apontam que os principais rios que abastecem a cidade estão comprometidos, e este é um dos principais problemas ambientais do município e da região abrangida pelo polo de confecções do Agreste. A riqueza produzida no município contrasta com a precariedade social e de infraestrutura, que salta aos olhos quando percorremos suas ruas e observamos as condições de moradia das entrevistadas, e que ficam patentes nos depoimentos destas. Neles se destaca a ausência de políticas públicas de apoio à reprodução social, como as creches, fundamentais para a garantia de autonomia sobre seu tempo no contexto da divisão sexual do trabalho que mantém sobre as mulheres – e retira do tempo da vida 47 das mulheres (ÁVILA, 2009) – a jornada extensiva e extenuante no trabalho reprodutivo. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Destacam-se, nas condições dos bairros onde vivem, problemas como violência, falta de equipamentos de lazer e dificuldades no acesso à água. Os depoimentos a seguir, de mulheres entrevistadas no município, expressam as condições precárias de vida na cidade: “Eu acho bom, só é violento. Ali pra baixo é muita morte; nessa rua aqui, não, mas nessa rua aqui é muita morte. Sempre tem tiroteio ali embaixo. Eu já tô enjoada daqui. Tem hora que dá vontade de ir me embora”. “Gostava de onde morava antes, que lá a rua era calçada, tinha energia e água. É distante do centro. Não tem água encanada”. Conforme afirma Véras de Oliveira (2013, p. 269), apoiado no pioneiro estudo realizado por Bezerra (2013): As mudanças trazidas com a constituição e desenvolvimento do Polo vêm trazendo implicações importantes também quanto às relações de gênero. São expressões disso a configuração de novas relações entre: as esferas doméstica e produtiva; trabalho “de homem” e trabalho “de mulher”; atividades rural e urbana. Entretanto, se tais relações se alteraram, tendo como uma de suas mais evidentes expressões a incorporação de amplas parcelas das mulheres às atividades remuneradas, não se direcionaram, no entanto, no sentido da superação de um dos principais elementos diferenciadores da divisão sexual do trabalho: a distinção, em prejuízo das mulheres, das funções na esfera da produção e da reprodução, que se traduz, nos contextos em que as mulheres ingressam em massa nas atividades remuneradas (como aqui tem sido o caso), em destinar a essas a responsabilidade pela dupla jornada. Em que pese o contexto marcado pela “superexploração do trabalho” (MARINI, 2000), altas taxas de informalidade, desproteção social e precariedade das condições de vida, não se identifica, em Toritama, a existência de movimentações políticas organizadas para o enfrentamento desses problemas. Existe um Sindicato de Costureiras de Toritama, que no momento de realização da pesquisa estava engajado no processo de Diálogo Social para Redução da Informalidade, promovido pelo Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos – Dieese. Como veremos no capítulo seguinte, as percepções sobre melhoria das condições de vida com perspectiva de alcance de uma autonomia como capacidade de serem sujeitas nas relações sociais é vista, pelas trabalhadoras, como o resultado possível de um esforço individual, e por não enxergarem nelas mesmas e em suas próprias vidas as condições para empreendê-lo, tornam esse resultado possível algo improvável, na visão delas mesmas. 2.3 “Selva de Pedra”: a Construção Civil na Grande São Paulo O terceiro contexto de pesquisa abrangeu um setor da economia em franco crescimento no país, nos anos recentes: a construção civil, tendo como territorialidade uma das regiões onde se verificavam as maiores taxas de expansão: a região Metropolitana 48 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras de São Paulo7, no Sudeste do país. A região, conhecida como Grande São Paulo, abrange 39 municípios; a pesquisa qualitativa foi realizada com trabalhadoras de dois municípios, um deles, a própria capital, São Paulo, e Guarulhos, cidade vizinha. Apresentamos, aqui, uma breve contextualização sobre a expansão do setor da construção nesta região e, notadamente, nas duas cidades, situando-a em relação ao modelo de desenvolvimento implementado no país, para então situar alguns indicadores sociais gerais e da situação das mulheres, em particular. O contexto de crescimento e de ampliação da inserção das mulheres na construção civil deve ser compreendido à luz do lugar que as cidades passaram a ocupar no modelo de desenvolvimento no plano global (Harvey, 2013) e na política de desenvolvimento do país, em particular, que na última década subsidiou a expansão do capital imobiliário como estratégia para ampliar empregos, gerando, por contradição, o acirramento da questão urbana. É também por esse fio que procuraremos situar o contexto de vida das mulheres na região Metropolitana de Saúde, tendo em que vista que o contexto do maior centro urbano do país é profundamente determinado pelos impactos do padrão de desenvolvimento sobre a vida nas cidades. Os dados recuperados por Maricato (2013) oferecem uma síntese das iniciativas que promoveram a expansão do setor no país, a partir de meados da década de 2000: o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, em 2007, que tinha como objetivo alavancar o emprego na construção das grandes obras de infraestrutura econômica e social; o PAC II, em 2009, e o programa Minha Casa, Minha Vida, também neste mesmo ano. Com estes programas, o Governo Federal impulsionou um boom imobiliário nas grandes cidades e estimulou o crescimento do setor da construção civil, até então negativo. Conforme afirma Maricato (2013), “o investimento de capitais privados no mercado residencial cresceu 45 vezes, passando de R$ 1,8 bilhão em 2002 para R$ 79,9 bilhões em 2011, e os subsídios governamentais (em escala inédita no país) cresceram de R$ 784.727 para mais de R$ 5,3 bilhões em 2011” (2013, p. 25). Os impactos do modelo de desenvolvimento nas condições de vida das populações na cidade, manifestos sobretudo no problema da mobilidade e nos processos de desapossamento urbano, estiveram no epicentro das manifestações que varreram o país em junho e julho de 2013, tendo como ponto de partida a cidade de São Paulo, e que marcaram um ponto de mutação na correlação de forças política no país. Segundo Maricato, “a disputa por terras [urbanas] entre o capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram expulsos para a periferia da periferia [...] Mas é com a condição dos transportes que as cidades acabam cobrando a maior dose de sacrifícios por parte de seus moradores. E embora a piora de mobilidade seja geral (...) é das camadas de rendas mais baixas que ela vai cobrar o maior preço em imobilidade” (MARICATO, 2013, p. 24). A mobilidade é um dos principais problemas enfrentados pela população na cidade de São Paulo, sendo, evidentemente, agravada pela desigualdade na ocupação do espaço urbano que, no caso brasileiro, é expressão de uma formação social patriarcal e racista. Nesse processo, a população negra foi historicamente alijada do acesso à terra urbana, passando a ocupar o solo urbano de menor qualidade e mais periféricos, como áreas 7 A RM de São Paulo é constituída por 39 municípios, sendo eles: Arujá, Barueri, Biritiba- Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuíba, Cotia, Diadema, Embu, Embu-Guaçu, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Mairiporã, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Poá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Santa Isabel, Santana de Parnaíba, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São Lourenço da Serra, São Paulo, Suzano, Taboão da Serra, Vargem Grande Paulista, de acordo com a configuração territorial de 1º de agosto 49 de 2012 (Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM, Pnud). Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica ribeirinhas e morros (o que faz com que os momentos de desastres naturais provocados por chuvas, por exemplo, expressem de maneira enfática o racismo ambiental); e está sujeita, ainda hoje, aos processos violentos de desapossamento, quando as áreas que ocupa tornam-se de interesse do capital imobiliário. As mulheres negras e da classe trabalhadora, por sua vez, enfrentam o problema de grandes deslocamentos no duplo trabalho que realizam: na produção e na reprodução social, assim como são elas que arcam com a sobrecarga gerada pelos problemas ambientais urbanos, como a falta ou poluição das águas e a precariedade do saneamento. Vale ressaltar que no momento de realização da pesquisa, a cidade de São Paulo começava a enfrentar uma das maiores crises hídricas de sua história. Outro grave problema social enfrentado nos dois municípios refere-se à violência, destacando- se os altos índices de violência contra as mulheres e contra a juventude negra. Esta problemática emerge na percepção das mulheres entrevistadas sobre o contexto, como se vê no depoimento a seguir: “Não tem problema com ninguém, mas não é um ambiente muito agradável. O que eu falo é de meninos jovens na rua, mexendo com droga. A gente tem filhos. É coisa que já tá assim alastrada em todo lugar que você vai, você tá vendo isso. E a minha rua inclusive é uma rua de lazer, só que virou funk e tem essas coisas que não é muito bom”. Em relação à mobilidade, os dados de pesquisa realizada pelo IPEA apontam que São Paulo é a capital brasileira com maiores tempos de deslocamento entre casa e trabalho, o que vai repercutir dramaticamente na carência de tempo e no esgotamento da força física das trabalhadoras entrevistados nesta pesquisa, como veremos no capítulo III. Em 2007, o tempo médio das viagens em São Paulo era de 2 horas e 42 minutos (COMPANHIA METROPOLITANA DE SÃO PAULO – METRÔ, 2007). O panorama do mercado de trabalho na região Metropolitana de São Paulo é marcado por desigualdades de gênero e raça. Sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho na RMSP, observamos que as mulheres correspondem a 46,6% da PEA (homens 53,4%), sendo que as mulheres continuaram como a menor proporção dos trabalhadores/as ocupados/as (45,9% em 2013 e 45,7% em 2014, enquanto os homens são 54,1% e 54,3% respectivamente) e a maioria dos/as desempregados/as (52,7%, enquanto os homens são 47,3%) em 2013. Segundo o estudo da Fundação Seade e Dieese8, 35,2% dos ocupados na RMSP eram negros; desses, 16,4% eram mulheres e 18,9% eram homens. Mantendo o movimento de redução observado nos anos anteriores, em 2013 a taxa de desemprego das mulheres chegou a 11,7% (voltando a crescer em 2014, para 12,2%). A taxa de participação das mulheres também continua inferior à dos homens, caindo de 56,1% em 2012 para 55,1% em 2013 e mantendo-se no mesmo patamar em 2014. Quanto à forma de inserção feminina no mercado de trabalho, observamos que em 2013 houve uma sensível diminuição de relações desprotegidas. As mulheres assalariadas no setor privado com carteira de trabalho assinada eram 50,3% em 2013, elevando-se para 51,1% em 2014, e também de empregadas no setor público (10,2% em 2013 e 10,8% em 2014). Seguindo a tendência nacional, as ocupadas no serviço doméstico diminuíram de 14% em 2013 para 13,7% em 2014. O rendimento das mulheres foi outro indicador do mercado de trabalho que manteve trajetória de crescimento, mas ainda assim a desigualdade entre os rendimentos dos 8 SEADE. Os negros no mercado de trabalho da região Metropolitana de São Paulo. Novem- 50 bro 2014. Disponível em: <https://www.seade.gov.br/produtos/midia/pop-negra/ipnmt_estudo_ nov2014_RMSP.pdf>. Acesso em: 15/10/2015. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras trabalhadores e trabalhadoras era uma realidade na RMSP. Esse aumento se refletiu em todos os setores de atividade, apresentando uma proximidade do rendimento médio por hora entre homens e mulheres no setor de serviço. Ainda assim, de maneira geral, em 2013 as mulheres recebiam 77,1% do que recebiam os homens, diminuindo esse hiato em 2014, mas mantendo-se desigual, quando então as mulheres passaram a receber 81,4%9. No setor da construção civil e do comércio, os negros/as sofriam os maiores diferenciais nos rendimentos médios em relação aos brancos/as, tendo havido uma redução de 79,6% em 2012 para 71,5% em 2013 no caso da construção civil e 66,7% em 2012 para 70,8% em 2013. De todos os trabalhadores e trabalhadoras, as mulheres negras eram as que recebiam os menores rendimentos médios por hora em 2014, nos setores da indústria (R$ 6,55), comércio (R$ 5,79) e serviços (R$ 7,19). As mulheres brancas recebiam R$ 9,83, R$ 7,50 e R$ 11,54 e os homens brancos, R$ 13,80, R$ 10,71 e R$ 14,96, respectivamente. Na região Metropolitana de São Paulo, o setor da construção civil responde por 13% da ocupação; do contingente de empregados(as) no setor, 39,4% estão na informalidade. A desigualdade de remuneração entre trabalhadores formais e informais é uma das maiores: na região Metropolitana de São Paulo, o rendimento dos informais corresponde a 67,2% do rendimento dos formais. Marcam o setor, ainda, longas jornadas de trabalho e os maiores índices de desproteção social: em São Paulo, apenas 43,3% dos ocupados no setor contribuem para a Previdência Social; entre os informais, este percentual é de apenas 11,4% (IBGE, 2013). Conforme analisam Araújo e Prado (2015), A indústria da construção civil também segue esse movimento, apresentando forte expansão de sua atividade, especialmente entre 2004 e 2008, e sofrendo retração em 2009. Em 2010, com a implementação de um conjunto de políticas e incentivos, o setor recupera-se, mas a partir de 2011 vem perdendo dinamismo. O setor da construção civil apresentou as maiores taxas de crescimento da ocupação nos anos 2000, com expressivo incremento do emprego formal e melhorias no nível de escolaridade e rendimento médio de seus trabalhadores, especialmente entre as mulheres. Contudo, a construção ainda é um setor marcado pela predominância do trabalho masculino, com baixo nível de escolaridade, alto grau de rotatividade e grande peso do trabalho por conta própria. A ampliação da inserção das mulheres neste setor é bastante recente, embora venha crescendo nos últimos anos a partir do incentivo das políticas públicas desenhadas nos governos Lula e Dilma Rousseff. A participação das mulheres cresceu mais de 65% entre 2000 e 2010 (MTE, 2011). Dados da Rais de 2011 (apenas os vínculos formais são considerados) indicam um contingente de 240.905 vínculos femininos, dos quais 45,4% estão na Construção de Edifícios; 33,0% na Construção de Obras de Infraestrutura e 21,5% nos Serviços Especializados para a Construção. Ainda segundo Araújo e Prado (2015), “a região Sudeste segue tendência de ampliação da participação relativa da construção civil, chegando a 9,3% do total de ocupados dessa região em 2013 e respondendo por 43,7% do total de ocupados no setor da construção civil no país”. Na RMSP, contexto no qual foi realizada a pesquisa qualitativa com mulheres 9 DIEESE. A inserção da mulher no mercado de trabalho na região Metropolitana de São Paulo. Março de 2015. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analiseped/2015/2015pedmulhers 51 ao.pdf>. Acesso em: 15/10/2015. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica trabalhando remuneradamente na construção civil, os dados apontam “uma predominância da ocupação masculina, mas com maior média de crescimento das mulheres ocupadas no período recente (10,7% ao ano). Destaca-se, ainda, o fato de 50% das mulheres ocupadas, em 2013, nesse setor, estarem trabalhando no Sudeste” (Idem). A participação das mulheres no setor da construção civil, na RMSP, está bem acima da média da região Sudeste e da média nacional: em 2013, a participação feminina no setor foi de 4,5%. A construção civil é hoje um dos setores mais dinâmicos da acumulação capitalista, mas sua dinâmica mantém os traços do desenvolvimento econômico no país: “a incapacidade de o núcleo mais dinâmico da economia incorporar, de maneira adequada, a maioria da força de trabalho nacional. Dessa forma, além do assalariamento consolidaram-se, no país, diversas formas de inserção ocupacional (com destaque para o trabalho por conta própria) em setores econômicos também bastante diversos em termos de produtividade” (DIEESE, 2011). Segundo Vieira (2006 apud SILVA, 2013), a indústria da construção civil está dividida em três subsetores: o de edificações, responsável pela construção de edifícios residenciais, comerciais e industriais, públicos ou privados, cujas obras são realizadas por empresas de pequeno, médio ou grande porte; o de construção pesada, que objetiva a construção de infraestrutura de transportes, energia, telecomunicações e saneamento; e o setor de montagem industrial, relacionado à montagem de estruturas metálicas nos vários setores industriais, sistemas de geração de energia, de comunicações e de exploração de recursos naturais. Há ainda o setor de construção leve e reformas, onde está mais presente a informalidade. O trabalho por conta própria é a principal face da informalidade na construção civil, ao longo da história e nos dias de hoje. Na região Metropolitana de São Paulo, 40% dos ocupados no setor são trabalhadores por conta própria (DIEESE, 2011). Este contingente inclui aqueles(as) que prestam serviço para uma ou mais empresas e para o público em geral, como também os donos de negócios familiares. Portanto, o trabalhador e a trabalhadora por conta própria podem se inserir na cadeia produtiva do setor como terceirizados(as). Já em relação às mulheres, a configuração é distinta: elas estão mais presentes no emprego com carteira (dada a presença nos postos administrativos) e 6,5% são trabalhadoras por conta própria. Um percentual significativo, porém, trabalha para o próprio uso, 10%. É, no entanto, no trabalho por conta própria que a participação das mulheres mais vem crescendo nos últimos anos, segundo o próprio MTE. Outra característica da ocupação no setor é a alta rotatividade de mão de obra, sobretudo nas grandes obras. O setor emprega um grande contingente de pessoas a cada ano, mas também desemprega no mesmo patamar. A cada obra concluída, tem-se um grande contingente de desempregados(as). Os dados do MTE (2011) ilustram essa situação: em 2010, foram contratados 2,4 milhões de trabalhadores(as); em contrapartida, outros 2,2 milhões perderam o emprego. Isto tem a ver com as características do processo produtivo: o tempo de trabalho na construção se dá por contrato temporal ou empreitada, consequentemente, o contrato de trabalho dos empregados neste segmento se encerra de acordo com o término da obra. Na região Metropolitana de São Paulo, a taxa de rotatividade no setor alcançou, em 2013, 49,3%; entre as mulheres, chegou a 36,3%. Explica esse menor patamar o fato de as mulheres estarem mais presentes nas atividades ligadas à administração, menos vulneráveis à precarização. Entretanto, aquelas inseridas nos canteiros de obra convivem mais 52 diretamente com a instabilidade e a insegurança na ocupação. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras A rotatividade se reflete na imprevisibilidade dos rendimentos, que já são baixos e, além disso, instáveis. A desproteção social é grave entre este segmento: na região Metropolitana de São Paulo, em 2009, apenas 11% dos ocupados por conta própria na construção civil contribuíam para a Previdência Social. Alguns dados nos permitem traçar um breve contexto da inserção das mulheres no setor da construção civil, na região Metropolitana de São Paulo. Do ponto de vista da inserção na ocupação, os dados da Pnad apontam que 85% das mulheres eram ocupadas com carteira e 5,7% eram trabalhadoras por conta própria (PNAD, 2013 apud ARAÚJO e PRADO, 2015). Embora se encontrem em melhores condições globais em termos de formalização, elas constituíam apenas 8% dos empregados no setor inseridos nos canteiros de obra, o que indica uma explícita fronteira traçada pela divisão sexual do trabalho nestes contextos. Dados produzidos por Araújo e Prado (2015), a partir de dados da Pnad/IBGE (2013), permitem configurar a jornada de trabalho das mulheres inseridas no setor, na RMSP: 73% delas detinham jornadas de trabalho de 40 a 44 horas, 8,1%, de 45 a 49 horas; 5,4%, de 49 horas ou mais; 2,7%, de 15 a 39 horas; e 10,8%, até 14 horas. Quando considerada a jornada de trabalho reprodutivo, largamente assumida pelas mulheres em função da divisão sexual do trabalho, essas jornadas se estendem significativamente. As mulheres inseridas neste setor apresentam níveis de escolaridade maiores do que os homens na mesma ocupação, na RMSP: 85,7% delas detêm pelo menos o ensino médio completo e, dentre estas, 31,4% possuem ensino superior completo. 53 CAPÍTULO III - REFLEXÕES METODOLÓGICAS E CONCEITUAIS A motivação para a realização deste projeto de produção de conhecimento foi contribuir para o aprofundamento do conhecimento crítico sobre relações de trabalho, tomando as mulheres como sujeitas dessas relações, e tomando como base para a construção desta elaboração as trajetórias e o cotidiano das trabalhadoras que formam o universo desta pesquisa qualitativa. Esperamos que os resultados desta pesquisa possam servir como sustentação à ação política do movimento feminista e de mulheres trabalhadoras, e como contribuição para a formulação e implantação de públicas que visem efetivar os direitos e promover a igualdade para as mulheres no mundo do trabalho, considerando que este é formado pelo trabalho produtivo e pelo trabalho reprodutivo. Queremos destacar que as análises e informações apresentadas neste trabalho são fruto de um trabalho coletivo empreendido por pesquisadoras feministas que partem de pressupostos teóricos comuns e que acessaram, viram e reviram os dados de forma individual e de forma coletiva. As escrituras refletem um trabalho tecido a várias mãos, com os ritmos e as formas próprias de cada uma trabalhar. Por isso, mesmo se as análises encontram um sentido comum, o estilo é tributário das especificidades das formas de cada uma desenvolver o seu pensamento e por isso, para alcançar sua forma final, foi sendo feito e refeito como método dialógico de um processo coletivo de produção do conhecimento. Portanto, esta produção é fruto da práxis coletiva de uma equipe de pesquisadoras que fazem parte de um coletivo maior de trabalho em uma instituição feminista de pesquisa, educação popular, comunicação e de militância política, a qual está diretamente vinculada ao movimento feminista antirracista e comprometida com o movimento de mulheres trabalhadoras em suas lutas por igualdade e transformação social. Nesse coletivo de trabalho e militância, a pesquisa é desenvolvida com a finalidade de contribuir para o projeto emancipatório do feminismo e tem como prioridade o conhecimento da realidade das sujeitas apropriadas (GUILLAUMIN, 1978; 2005), dominadas e exploradas nas relações sociais de classe, raça e sexo. Um dos desafios do feminismo no contexto atual é certamente expandir a capacidade de uma produção do conhecimento criativa que ofereça permanentemente a sustentação de um projeto político emancipatório para as mulheres e para a transformação social, e que contribua para o fortalecimento de perspectivas teóricas e metodológicas críticas amplamente combatidas e deslegitimadas pela hegemonia do pensamento neoliberal. Nesse sentido, o fortalecimento de uma abordagem feminista situada e materialista nos parece ser uma tarefa histórica nesse movimento dialético da práxis do feminismo. A produção do conhecimento é uma dimensão central na práxis feminista. Realizada em relação dialética com a militância política, é, ela própria, parte dessa ação de disputa de contra hegemonia na produção do saber. A produção do conhecimento é realizada, portanto, como uma prática coletiva de resistência e subversão e com um sentido emancipatório. Ela é própria da constituição do feminismo como um movimento de auto emancipação das mulheres e de sua construção histórica, processo no qual “as oprimidas não somente lutam contra a opressão, como também a definem” (DELPHY, 2004). 54 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Sobre o pertencimento político, muitas vezes interpretado como um viés a priori de qualquer prática de produção de conhecimento, podemos interrogar onde está a neutralidade da sujeita produtora de conhecimento e se ela existe. E se ela existe, se exige uma neutralidade política, e por fim, se não é a metodologia e, nela, o referencial teórico, que irá capacitar um trabalho de pesquisa, bem como se a escolha desse instrumental já não está determinada, em todos os casos, por uma tomada de posição dentro de um mar de teorias. Segundo Harding, ao questionar justamente a existência de uma neutralidade na produção do conhecimento científico e criticar as vozes que se enunciam como as “vozes universais”, essas vozes “emergem de uma tradição histórica particular” (HARDING, 2014) e estão situadas em um determinado contexto, que é o Ocidente. O feminismo como movimento político e pensamento crítico nasce questionando a teoria social. Ao trazer as questões relativas à desigualdade das mulheres para a esfera política, trouxe também um desafio para novas leituras da realidade, as quais devem incorporar as mulheres como sujeitas das relações sociais. O movimento feminista contemporâneo levou, e leva de maneira persistente, a crítica a qualquer forma de naturalização das desigualdades das mulheres e entre as mulheres. Quando um movimento social constata que há opressão ou exploração e propõe a transformação dessas relações, estabelece a dimensão sócio histórica do problema. Neste projeto de pesquisa não tivemos como pressuposto metodológico trabalhar a questão da autonomia econômica das mulheres a partir da sua dupla inserção: como trabalhadoras, inseridas no mercado de trabalho, e como ativistas, inseridas em coletivos para a ação política. O que definiu o universo desta pesquisa foi a inserção no mercado de trabalho. Nossa proposição consiste em realizar um estudo crítico sobre processos e relações de trabalho de mulheres inseridas nos espaços precários de trabalho produtivo e reprodutivo e em contextos considerados de desenvolvimento econômico que sobressaem como de grande potencialidade e ao mesmo tempo sujeitas a crises sistêmicas, como parte inextricável desse processo de desenvolvimento. Sobre a pesquisa qualitativa A metodologia de pesquisa utilizada neste estudo foi concebida a partir da abordagem crítica que considera as sujeitas nas relações sociais, a articulação entre dimensão objetiva e subjetiva, a relação entre cotidiano e história e a perspectiva de um conhecimento materialista, situado e emancipatório. A proposição de um conhecimento situado nos leva mais uma vez a questionar o pressuposto da neutralidade na produção do conhecimento, e nesse sentido queremos nos remeter ao que diz Heloísa Martins: Quero deixar claro que para mim, como para autores como Thiollent (1980) e Becker (1977), no trabalho de pesquisa sociológica, a neutralidade não existe e a objetividade é relativa, diferentemente do que ocorre no positivismo – do qual, aliás, partem muitas das críticas feitas à metodologia qualitativa (MARTINS, 2004, p. 292). Consideramos que os estudos qualitativos são um meio importante para uma abordagem dialética da realidade ao propiciarem, metodologicamente, o emprego de técnicas para o trabalho de campo que permitem o estabelecimento de várias formas de aproximação e relação com as sujeitas da pesquisa e com a realidade social na qual estão inseridas, que tanto podem garantir uma produção do conhecimento baseada nas percepções dessas sujeitas sobre sua experiência e sobre a realidade social, como 55 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica garantir a possibilidade de situar a perspectiva dessas sujeitas dentro dos seus contextos concretos de ação e das relações sociais nas quais estão inseridas. A isso se agrega uma dimensão de coleta de dados que contempla questões objetivas dessa experiência relatada pelos sujeitas e que possibilita à sujeita que pesquisa uma apreensão, através da observação das práticas sociais e dos contextos sociais nos quais as sujeitas da pesquisa estão inseridas. Na relação entre pesquisadoras e pesquisadas de acordo com a perspectiva teórica utilizada, que pressupõe em primeiro lugar a aceitação das sujeitas envolvidas no processo, a pesquisa pode não só trazer a percepção desses sujeitas na vivência do momento presente, como também as narrativas das trajetórias individuais estendidas no tempo, como experiências individuais, mas sempre relacionadas a um coletivo e a um contexto social. Dessa forma, as experiências das sujeitas da pesquisa são apreendidas não só a partir das narrativas das práticas sociais materializadas no espaço/tempo do cotidiano, mas, também, no tempo como construção de um processo, que no caso desta pesquisa estamos tratando como trajetória de vida profissional. As narrativas expressam uma vivência do tempo como duração interna (BERGSON, 2006), isto é, como memória, como tempo subjetivado. Algumas técnicas de pesquisa qualitativa podem possibilitar – como a história de vida, mas não só essa – que o relato do vivido seja uma forma de rememoração interpretativa da trajetória que expressa de maneira sintética uma experiência, com os fatos, e os processos que a conformam. Na escuta e nas leituras das narrativas das sujeitas é possível apreender as imbricações das relações sociais nas quais essas sujeitas estão inseridos e como vão se dando as tensões, nas práticas sociais concretas de suas trajetórias e nas suas conformações. A pesquisa qualitativa pode, também, oferecer os meios para a construção de um conhecimento que leve em consideração as contradições enfrentadas pelos sujeitas na tensão entre sua capacidade de agir e os limites impostos pelas estruturas e relações sociais que conformam a vida social. Pode, neste sentido, desvendar a relação entre desejos, planos individuais e vida concreta e possibilidades reais de mudanças construídas e impossibilidades que se produzem e se reproduzem como bloqueios e tensões pela inserção concreta nas relações sociais. Considerando que a realidade social se estrutura e se reproduz com base em relações de desigualdade, hierarquia, dominação, exploração e antagonismo, a pesquisa qualitativa oferece ainda a possibilidade de trabalhar a relação entre resistência e dominação a partir tanto da experiência individual como da participação das sujeitas em processos coletivos de resistência e confronto com a ordem estabelecida, isto é, a ordem social que prevalece em determinado período histórico, no movimento contraditório do desenvolvimento do sistema capitalista, patriarcal e racista. Nesta pesquisa, as noções de trajetória e de vida cotidiana constituíram caminhos metodológicos para organizar as questões contidas nos instrumentos da coleta de dados, e evidentemente se constituem também como uma referência para o trabalho de análise dos dados que será apresentado mais adiante. Consideramos as trajetórias das sujeitas pesquisadas como percursos individuais que representam a capacidade delas de agir situados em contextos e relações sociais num determinado tempo histórico. Neste sentido, a experiência que emerge como um relato da sujeita individual está sempre relacionada a uma vivência coletiva ou a uma vivência em comum nos espaços da comunidade onde vive, do trabalho, de outros espaços sociais e ainda nos espaços das sujeitas coletivos da organização política quando se trata de sujeitas que estão engajados em processos de luta e resistência políticas. 56 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras No movimento da vida cotidiana, a experiência de cada sujeita individual, com suas possibilidades e seus limites, está diretamente relacionada e confrontada com a força das estruturas sociais através da dinâmica (e das tensões) das relações sociais, e é nesse movimento também que se dão (ou não) as possibilidades de mudança. Consideramos que o cotidiano tem uma relação direta com a construção da trajetória, a qual não se realiza como um somatório do que se vive no dia a dia ou como uma consequência direta e mecânica, como se as trajetórias de vida fossem um desenrolar da vida em linha reta, numa sequência de acontecimentos formada de causas e efeitos. Pensamos que essa relação se faz ao longo do tempo de vida, marcada por possibilidades e limites, acomodações e rupturas, sendo tributária das condições concretas nas quais as sujeitas estão inseridas. As experiências cotidianas impactam decisivamente as trajetórias de vida das sujeitas, ao tempo que são dialeticamente momentos sintéticos destas. É no cotidiano que as relações sociais e as contradições que as constituem tomam a forma concreta através das práticas sociais na vida das sujeitas. O estudo que tem a vida cotidiana como referência oferece a possibilidade de perceber a relação entre as estruturas sociais e as práticas sociais mediante as quais elas se reproduzem. Ao trabalhar sobre vida cotidiana, as tensões que constroem as relações sociais ganham formas mais visíveis, isto é, concretude. A vida cotidiana aparece como o “cenário analítico” de que nos fala Tereza Torns (2001), a partir do qual podemos observar como se desenrola essa dinâmica e por meio do qual tem sido possível delimitar as presenças e as ausências masculinas e femininas, de maneira estrita, e reconhecer, a partir daí, a hierarquia que as preside (TORNS, 2001). É importante ressaltar que tal cenário, em Torns, de acordo com nossa leitura, é pensado a partir de contradições e conflitos, podendo-se, talvez, analisá-lo como constituído por um movimento dialético. Neste sentido, essa abordagem metodológica possibilita uma reflexão crítica da autonomia econômica nas suas gradações e contradições a partir do ponto de vista feminista e baseada na experiência de mulheres trabalhadoras que vivenciam no mundo do trabalho uma experiência de trabalho precário, a qual é uma experiência majoritariamente vivida pelas mulheres e, sobretudo, pelas mulheres negras. Isso pode ser constatado no capítulo que apresenta uma análise, a partir de dados quantitativos secundários, sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Para Harding, enfocando o lugar da experiência na produção do conhecimento a partir da teoria do ponto de vista feminista e propondo uma alternativa ao uso tradicional da experiência nos escritos da ciência como um termo altamente abstrato, a experiência, que aqui estamos considerando em analogia ao “vivido”, “não é o fundamento do conhecimento naquele sentido tradicional, nem é irrelevante para o conhecimento. Ela é relevante de muitas maneiras, mas principalmente como geradora de perspectivas críticas” (2014, s/p). O vivido está inserido na historicidade do social e, por isso, a análise sociológica do vivido deve considerar o sistema ideológico e as condições materiais que impactam sobre este vivido. As percepções das mulheres sobre suas experiências de trabalho, produtivo e reprodutivo, estão ancoradas, portanto, em práticas de trabalho que constituem integralmente as formas de trabalho que asseguram a reprodução social, as quais têm, por isso, do nosso ponto de vista, um maior potencial de revelar a dinâmica do processo de exploração da força de trabalho e as contradições que as constituem como um movimento de tensões permanente que constituem a organização da vida social. 57 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica A nossa elaboração parte do pressuposto de que as jornadas de trabalho, remunerado e não remunerado, que caracterizam a experiência de trabalho da grande maioria das mulheres trabalhadoras produz uma sobrecarga de trabalho que, no cotidiano, afeta a forma de inserção no mercado de trabalho, a participação política cidadã, o lazer, as condições para o estudo e o desenvolvimento da profissionalização, e ainda, a possibilidade do tempo para si. Esses elementos devem ser considerados quando temos como questão a produção do conhecimento sobre o trabalho das mulheres e, nesse caso, sobre a autonomia econômica das mulheres. As metodologias de pesquisas qualitativas não se constituem como um contraponto às metodologias quantitativas e tampouco como um complemento. Podem ser associadas, ou métodos distintos; o que nos parece fundamental é dentro de qual perspectiva teórica se constroem essas metodologias, as quais se constituem como formas diferentes de abordagens da realidade social e com finalidades distintas. Sobre essa questão, Minayo diz o seguinte; A diferença entre abordagem quantitativa e qualitativa da realidade social é de natureza e não de escala hierárquica. Enquanto os cientistas sociais que trabalham com estatística visam a criar modelos abstratos ou a descrever fenômenos que produzem regularidades, são recorrentes e exteriores aos sujeitos, a abordagem qualitativa se aprofunda no mundo dos significados. Esse nível de realidade não é visível, precisa ser exposto e interpretado, em primeira instância, pelos próprios pesquisados (MINAYO, 2009, p. 22). Os estudos qualitativos contribuem com a análise de problemáticas que revelam as especificidades e a diversidade de práticas sociais nos diferentes contextos e dimensões, em geral não apreendidas pelos estudos quantitativos, e assim possibilitam instaurar questionamentos sobre as abordagens generalizantes da realidade social. Sobre a análise de dados na pesquisa qualitativa, recorremos aqui a Heloísa Martins: Outra característica importante da metodologia qualitativa consiste na heterodoxia no momento da análise dos dados. A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que, por sua vez, depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva. A maior dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de pesquisa está na dificuldade de ensinar como se analisam os dados – isto é, como se atribui a eles significados –, sendo mais fácil ensinar a coletá-los ou a realizar trabalho de campo. A intuição aqui mencionada não é um dom, mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador (MARTINS, p. 292). Numa elaboração sobre pesquisa qualitativa, Heloísa Martins afirma que “a metodologia é, pois, uma disciplina instrumental a serviço da pesquisa; nela, toda questão técnica implica uma discussão teórica” (MARTINS, 2004, p. 291). Antes de passarmos a uma breve apresentação do trabalho de campo e das técnicas de pesquisas utilizadas como instrumentos para a coleta de dados, queremos dizer que consideramos as técnicas empregadas nesse processo como instrumentos que orientam a mediação de uma relação entre sujeitas, pesquisadores(as) e pesquisados(as), uma etapa da 58 produção do conhecimento que se realiza a partir do ponto de vista das sujeitas da pesquisa. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras A pesquisa qualitativa deve ser um processo no qual a produção do conhecimento está diretamente ligada ao estabelecimento de relações horizontais e à capacidade sensível de compreender, respeitar e acolher as narrativas sobre a realidade social e as experiências das sujeitas, que constituem seus pontos de vista, e de retraçar caminhos metodológicos quando necessário. A experiência do campo Sobre o trabalho de campo, queremos iniciar com uma citação de um pequeno trecho da abordagem de Minayo sobre a questão, por considerá-lo muito relevante: “... o trabalho de campo, além de ser uma etapa importantíssima da pesquisa, é o contraponto dialético da teoria social” (MINAYO, 2009, p. 76). Nesta pesquisa, para o trabalho de campo foram utilizadas e combinadas técnicas de coleta de dados próprias de um estudo em profundidade. São elas: entrevistas, histórias de vida, observação e pesquisa documental. Consideramos importante o que diz Bourdieu (1989), para quem a pesquisa é uma coisa demasiado séria e demasiado difícil para se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor, e se ficar privado deste ou daquele recurso, entre os vários que podem ser oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais das disciplinas vizinhas: etnologia, economia, história (BOURDIEU, 1986, p. 26). A primeira atividade de pesquisa de campo realizada nos três contextos foi uma visita inicial de aproximação com os territórios definidos para pesquisa de campo e com sujeitas locais, as quais constituíram as fontes iniciais de informações sobre os contextos, e através das quais foram estabelecidas as conexões com as mulheres trabalhadoras com que foram feitas as primeiras discussões sobre as possibilidades de participação no processo de pesquisa e de estabelecimento de contatos com outras trabalhadoras, com este mesmo objetivo. A essa primeira etapa se seguiu o período dos encontros iniciais – individuais e coletivos – para a definição das agendas de diálogo. Os diálogos que constituem um momento fundamental do trabalho de campo se deram mediante entrevistas semiestruturadas, histórias de vida e pequenas conversas “fora de roteiro” que vão se dando como parte da vivência e convivência nos contextos da pesquisa. Minayo, ao tratar desse processo que implica a colocação de questões por parte das(os) pesquisadoras(es), afirma que “... as perguntas que fazemos sempre nos remetem a algo desconhecido, ao que permanece oculto para nós, ao que nos é estranho na linguagem, na cultura, nas relações ou nas estruturas” (MINAYO, 2009, p. 76). Nesse processo também se considerou as possibilidades de realizar observação nos locais de trabalho e/ou de moradia, a qual incluiu como uma de suas formas um dia de observação de uma jornada de trabalho integral de uma sujeita da pesquisa em cada um dos locais onde foi realizado o trabalho de campo. Foram feitas 20 entrevistas semiestruturadas com mulheres inseridas de forma precária no mercado de trabalho, nos três territórios e nos setores produtivos definidos no escopo da pesquisa, totalizando 60 entrevistadas. Um roteiro de questões foi elaborado como fio condutor do diálogo, a partir do qual as sujeitas expuseram livremente suas narrativas. Foram coletadas também quatro histórias de vida com trabalhadoras, em cada campo da pesquisa, totalizando doze histórias de vida que permitem, através da narrativa de suas trajetórias, captar os fatores que as levaram a esses contextos de 59 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica trabalho, levando em consideração que essas trajetórias revelam também as vivências nos coletivos familiar, comunitário e de trabalho, uma vez que a história individual é parte da vida coletiva, propiciando dessa forma conhecimento de aspectos, não só da história particular, mas também da realidade social de inserção dessas sujeitas, com suas determinações e tensões que revelam as mudanças e as permanências nos processos que marcam o movimento entre cotidiano e trajetória de vida. A história de vida consiste numa técnica apropriada para um estudo que pretende apreender a visão das sujeitas, bem como as práticas e as relações sociais que se estabelecem no tempo da vida cotidiana e no tempo como trajetória profissional dessas sujeitas. Deve-se levar em consideração que a história de vida foi utilizada em conjunto com outros meios de coleta de informações. Porém, segundo Queiroz (1988), “mesmo que o cientista social registre somente uma história de vida, seu objetivo é captar o grupo, a sociedade de que é parte; busca encontrar a coletividade a partir do indivíduo” (QUEIROZ, 1988, p. 26). A história de vida, segundo Haguette (1987), oferece, entre outras contribuições específicas, uma que parece central: a de “dar sentido à noção de processo” (HAGUETTE, 1987, p. 72). A observação nos locais de trabalho, e em outros espaços coletivos e de moradia, se estendeu por todo o período do trabalho de campo, o que propiciou às pesquisadoras uma aproximação com o contexto de vida das sujeitas da pesquisa. O acompanhamento de uma jornada de trabalho integral (trabalho produtivo e trabalho reprodutivo) foi um mecanismo de observação que se mostrou muito útil para o adensamento dessa observação, sendo criado em pleno processo da coleta de dados no campo, em decorrência da impossibilidade de utilizar uma outra técnica prevista inicialmente: o grupo de discussão com participantes da pesquisa. As jornadas e as dinâmicas de trabalho desses sujeitas mostraram-se, desde as primeiras abordagens do trabalho de campo, de alta intensidade, com suas intermitências e extensividades (Ávila, 2010). Ressaltaram para nós, pesquisadoras, a necessidade de abdicar da realização dos grupos de discussão, pois estes se mostravam como uma atividade improvável para a realidade da vida cotidiana das mulheres trabalhadoras que fizeram parte da pesquisa. Para a aplicação de todos os instrumentos de coleta de dados, promoveram-se diálogos com as sujeitas de pesquisa, no sentido de obter o seu consentimento. A confidencialidade da participação foi garantida como uma condição básica da metodologia desta pesquisa, assegurando o total sigilo sobre a identidade individual das sujeitas pesquisadas, o que nos levou, nas análises, a usar apenas uma identificação geral como participante da pesquisa, a fim de marcar a reprodução literal de trechos de suas narrativas. A combinação de técnicas é necessária para uma investigação que trata das dimensões subjetivas correlacionadas aos fatores objetivos. Os fatores subjetivos, nesta pesquisa, dizem respeito à percepção sobre: poder de decisão sobre a renda; satisfação ou insatisfação no trabalho; sofrimento no trabalho; percepção sobre as dificuldades no cotidiano em face dos deslocamentos e tarefas no trabalho produtivo e reprodutivo; percepção sobre discriminações de gênero e raça no trabalho; desejo de profissionalização e planos de mudança; anseios profissionais e percepção sobre as possibilidades de concretizá-los; percepção sobre o país, a política e o desenvolvimento econômico e o que gostariam no trabalho e em suas vidas; sentimentos de segurança e insegurança em relação ao futuro; percepção sobre tempo de trabalho e lazer; percepção sobre o sentido do trabalho em suas vidas. Em relação ao trabalho reprodutivo, os fatores subjetivos envolvem sentimentos afetivos, desejos e preocupação com o trabalho reprodutivo; percepção sobre responsabilidades e divisão de 60 tarefas; as possibilidades e os limites do tempo para o lazer e do tempo livre para si. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras As questões que servem como referência para os processos de diálogo na realização do trabalho de campo buscam identificar as condições objetivas e as percepções das mulheres acerca de sua inserção no mercado de trabalho. Ademais, buscam aferir as tensões cotidianas que marcam sua participação na dinâmica econômica dos locais onde vivem e os caminhos que trilharam na sua trajetória profissional: o que as encoraja e o que as desmobiliza; as relações e condições de trabalho; as implicações dessa inserção sobre seu tempo; mobilidade, participação política, subjetividade e corporeidade; o conhecimento e a vivência de direitos. Através dos instrumentos de pesquisa de campo, obtivemos informações objetivas e subjetivas relativas à percepção das sujeitas sobre as questões pesquisadas, pois, como afirma Martins (2002), “a sociologia não pode ser uma boa sociologia se não incorporar à sua análise a consciência social, enquanto dado que a vítima das situações sociais adversas tem da adversidade e de si mesma” (MARTINS, 2002, p. 26). Os fatores objetivos considerados foram: perfil das trabalhadoras (idade, escolaridade, estado civil, número de filhos(as), renda, renda familiar, raça/cor, qualificação, moradia); experiências no trabalho remunerado; tarefas no trabalho remunerado; jornada de trabalho; formas de pagamento; condições de trabalho; acesso a direitos trabalhistas; acesso à proteção social; acesso à política de qualificação, crédito ou financiamento governamental; conhecimento de direitos; regulamentos e sanções na organização do trabalho; descrição do processo de trabalho individual e coletivo; doenças/agravos relacionados ao trabalho; distância entre moradia e trabalho e meios de transporte utilizados. No trabalho reprodutivo, os fatores objetivos envolvem as tarefas realizadas; a jornada diária, o horário de acordar e dormir; se dividem ou se contam com ajuda e apoio na realização das tarefas. Esta pesquisa foi realizada em contextos que são considerados como polos dinâmicos da economia no país, em três regiões distintas: na região Nordeste, o Polo de Confecções do Agreste Pernambucano; na região Norte, o Polo Industrial do Alumínio, em Barcarena, no estado do Pará; e na região Sudeste, o setor de Construção Civil, na região Metropolitana de São Paulo – SP. Escolhemos esses territórios porque foram estruturados a partir de processos de desenvolvimento distintos, mas que estão, hoje, profundamente articulados ao processo de crescimento em curso nos estados e no país e ao plano global. Nesta abordagem, o contexto é tomado como uma noção teórico-metodológica relevante que orientou o processo de pesquisa. O contexto não se confunde com o entorno ou com o território, mas define-se como um espaço-tempo no qual as relações sociais tomam lugar e expressam suas particularidades através de práticas sociais concretas. Expressa um processo histórico de conformação das relações sociais de sexo, classe e raça, que se forjam de maneira imbricada e consubstancial e expressam uma dinâmica entre presente e passado, local e global. Por fim, estes contextos que são denominados como de desenvolvimento estão profundamente conectados pela relação entre desenvolvimento local, nacional e global. Nesta pesquisa, tomamos contextos de desenvolvimento econômico da realidade brasileira, conformados a partir de diferentes processos históricos estruturados pela divisão social, sexual, racial e internacional do trabalho, mas com contornos particulares. Em síntese, os contextos expressam peculiaridades do processo de desenvolvimento brasileiro que buscamos analisar nesta pesquisa, ao tempo que consistem numa dimensão constitutiva desse processo geral. No percurso dos trabalhos de campo, modificações foram feitas no sentido de 61 buscar o aprimoramento da coleta de dados, tomando como base para isso as primeiras Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica apreciações sobre o cotidiano das sujeitas de pesquisa, suas possibilidades e seus impedimentos para participar desse processo. Do nosso ponto de vista, a possibilidade de redefinição das etapas e dos instrumentos de coleta de dados na pesquisa qualitativa é uma prática que potencializa as possibilidades de apreensão dos dados e de produção do conhecimento empírico que se realizam através da relação entre as(os) pesquisadoras(es) e as sujeitas da pesquisa. Dois aspectos são centrais nesta metodologia: considerar o cotidiano e as trajetórias das sujeitas como referências da pesquisa de campo e analíticas; e relacionar a questão da autonomia econômica ao trabalho produtivo e reprodutivo. Conceitos e questões As análises feitas na apresentação dos resultados de pesquisa ancoram-se, do ponto de vista teórico, nos estudos já produzidos no âmbito da teoria crítica e dentro desse escopo mais geral da teoria feminista sobre a questão do trabalho das mulheres. O conceito de autonomia econômica nesse processo de pesquisa é tanto um tema de investigação quanto um conceito analítico a ser tomado como referência para a análise dos dados. A própria formulação que dá título ao projeto de pesquisa se faz em torno desse conceito em associação com o conceito de desenvolvimento. Nossa motivação foi trazer mais uma contribuição a partir de uma pesquisa empírica com mulheres trabalhadoras inseridas em relações de trabalho precárias, para contribuir na sua problematização e para a formulação de ideias críticas em torno da sua concepção. Podemos reafirmar que esse conceito está em debate, e que tratar a inserção das mulheres no mercado de trabalho a partir da questão da autonomia econômica, como dimensão de pesquisa empírica, oferece elementos para um vasto e fecundo campo de reflexão que pode contribuir com o avanço teórico e político relacionado com o crescimento econômico e a cidadania. Lançamos como proposição que a autonomia econômica deve ser pensada como um processo diretamente relacionado a transformações da vida social produzidas pela ação coletiva e não como um estado que pode ser alcançado por uma sujeita individual em definitivo e em um determinado momento. Outra dimensão que deve ser considerada para a construção do conceito de autonomia econômica é a dimensão subjetiva, pois além dos fatores objetivos a autonomia em qualquer aspecto compreende também um processo interior de aquisições e superação dos efeitos da dominação e da exploração de classe, de raça e de gênero. Os documentos oficiais dos organismos internacionais e de governos nacionais têm, de maneira cada vez mais frequente, tratado desse tema sempre em uma relação direta com a inserção no mercado de trabalho e o desenvolvimento. Segundo Talihite, (2010, p. 43), A inscrição da promoção da igualdade de gênero e autonomização das mulheres no terceiro dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio faz do acesso das mulheres ao mercado de trabalho uma prioridade na agenda das Nações Unidas e abre a porta para muitos estudos sobre a participação econômica, incluindo o acesso ao trabalho remunerado, considerado um sinal de autonomização (2010, p. 43). 62 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Essa autora acrescenta ainda que o “O Banco Mundial e o PNUD ligam a autonomia das mulheres à aquisição de uma renda monetária e considera o trabalho remunerado como um passo na direção dessa autonomização” (TALIHITE, 2010, p. 44). O problema é que esta afirmação não pode ser tomada como um processo acumulativo de possibilidades, mas deve ser tomado criticamente a partir da análise das condições reais de inserção das mulheres no mercado de trabalho, visando desvendar as desigualdades, os limites e as possibilidades, e ainda as contradições contidas, mas invisibilizadas nas equações simplicadas feitas por esses organismos oficiais entre renda e autonomia econômica. Nas situações precárias de trabalho tornam-se necessárias análises acuradas que poossam dar conta da real possibilidade de autonomia no plano financeiro ou econômico e em que condições o alcance dela se faz possível. Ainda segundo Talihite, o indicador mais amplamente utilizado, a taxa de participação das mulheres na população ativa, engloba todas as formas de emprego, como também o desemprego. Ele não visa dar conta do grau de autonomização das mulheres, mas a eficácia de utilização da mão de obra feminina (TALIHITE, 2010, p. 45). A Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SPM) no Brasil tem usado a expressão autonomia econômica das mulheres no sentido de afirmar a finalidade de determinadas políticas públicas. Em documento oficial da SPM encontramos a seguinte consideração a respeito de autonomia econômica das mulheres: A autonomia econômica das mulheres constitui fator de suma importância na busca da igualdade entre mulheres e homens, sejam elas das cidades, do campo ou da floresta. A autonomia econômica das mulheres é a condição que elas têm de prover o seu próprio sustento, decidindo por elas mesmas a melhor forma de fazê-lo. Isso envolve também as pessoas que delas dependem. Assim, ela é mais do que autonomia financeira, uma vez que inclui uma perspectiva de vida de longo prazo, com acesso a previdência social e a serviços públicos. Para isso, a SPM vem desenvolvendo políticas públicas voltadas para a inserção e a permanência das mulheres no mundo do trabalho e a ampliação dos seus direitos sociais (SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA MULHERES, 2015). Autoras feministas e documentos do movimento feminista que utilizam esse conceito expressam de forma categórica a necessidade de pensar essa autonomia relacionada aos contextos econômicos locais e globais, às políticas de emprego e renda e à proteção social. Além disso, fica patente, nessas abordagens, a necessidade de pensar esse problema para além da questão da renda ou da remuneração, mesmo que estas se constituam em um elemento importante para um determinado grau de autonomia (RODRIGUEZ, 2010; ARTICULAÇÃO DE MULHERES BRASILEIRAS, 2011). A autonomia econômica ocupa lugar central na agenda do movimento feminista brasileiro e latino-americano, devido ao contexto de desigualdade e pobreza produzido historicamente, que remonta a as relações coloniais de exploração e dominação, que se reestrutura, permanece e nos anos recentes ganhou força a partir dos impactos dos processos de ajuste estrutural levado a termo nos anos 1990. Perpassa esse debate, como uma questão central, a articulação entre gênero e raça na reprodução de desigualdade (XAVIER, 2010). 63 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Quando se trata de uma análise sobre trabalho e autonomia econômica das mulheres é fundamental tomarmos o trabalho remunerado e o trabalho reprodutivo não remunerado como referências no sentido de construir uma interpretação materialista e dialética da questão, uma vez que são, majoritariamente, as mulheres que continuam a responder pelos encargos do trabalho reprodutivo, nesse sistema capitalista, patriarcal e racista. A forma de desenvolvimento capitalista produziu historicamente uma vida cotidiana em que o tempo social que conta – o uso do tempo que tem valor – é aquele empregado na produção de mercadoria, gerador de mais-valia, porque a noção de valor está diretamente vinculada ao valor de troca que caracteriza a mercadoria. O cotidiano não está apartado do tempo histórico, mas, justamente ao contrário, é uma forma de organização e uma dinâmica de vida social materializada nos processos do dia a dia tributários da história e dos contextos sociais, econômicos e culturais específicos. A noção de vida cotidiana é algo que emerge como parte das construções conceituais desse período histórico, em geral denominado de modernidade, para designar e organizar um modo de vida dentro de padrões adequados às exigências de funcionamento do sistema capitalista/patriarcal/racista. A partir da noção de vida cotidiana, podemos observar os movimentos contraditórios que formam esta esfera da vida em comum. A análise crítica sobre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo tendo como referência a noção de vida cotidiana é fundamental no sentido de tornar visíveis as relações de exploração e dominação que tomam forma concreta na vida das mulheres através das práticas sociais nas quais elas estão inseridas. Isto é fundamental para pensar a questão da autonomia das mulheres como um processo que está diretamente relacionado à transformação da concepção de vida cotidiana e do que ela significa, na vida real, como espaço/tempo da vida em comum. De acordo com José de Souza Martins, a sociologia da vida cotidiana não deve ser confundida com uma Sociologia minimalista e redutiva dos processos sociais aos componentes fenomênicos da vida social. Ao contrário, ela se propõe a investigar o visível e o aparente das ações e relações sociais cotidianas na mediação das estruturas sociais e dos processos históricos que lhes dão sentido, não raro o sentido do inesperado (MARTINS, 2014, p. 10). Podemos também dizer que a reinvenção e a reestruturação da vida cotidiana passam pelo conflito que transforma as relações e as estruturas sociais, e para tomar parte ativa nesse conflito é necessário fazer a passagem da sujeita individual com suas angústias, seus sofrimentos e seus sentimentos de frustação, para a sujeita coletiva, na qual estes sentimentos podem tomar a forma de consciência crítica que leva ao engajamento nos movimentos de transformação social. Na vida cotidiana está a tensão entre a alienação e a desalienação; há também tensões de natureza prática entre as atividades produtivas, reprodutivas e as possibilidades de deslocamento para outras esferas da vida social. Segundo Antunes (2002), “a referência à vida cotidiana e as suas conexões com o mundo do trabalho e da reprodução social é imprescindível, quando se pretende apreender algumas das dimensões mais importantes do ser social” (ANTUNES, 2005, p. 170). Deve-se, no entanto, considerar que mesmo quando a alocação do uso do tempo das pessoas é feita sob um constrangimento social, podem-se adquirir graus diferenciados de autonomia para lidar com este constrangimento e também para tentar transformá- 64 lo. O constrangimento está relacionado à dominação ideológica e à subjetivação da Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras dominação, à falta de meios materiais, à coerção pela violência etc. Partindo da elaboração sobre vida cotidiana em Lefebvre (1958, 1972), Martins (2008, 2014) cogita que o significado de pobreza alcança contornos mais alargados, como podemos observar na citação abaixo: A pobreza é pobreza de realização das possibilidades criadas pelo próprio homem para sua libertação das carências que o colocam aquém do possível. Numa sociedade e num tempo de abundâncias possíveis, inclusive e especialmente abundância de tempo para desfrute das condições de humanização do homem, em que a necessidade de tempo de trabalho é imensamente menor do que era há um século, uma das grandes pobrezas é a pobreza de tempo (MARTINS, 2008, p. 104). Sobre essa citação queremos acrescentar que o uso do conceito de homem no singular, do nosso ponto de vista, não pode estender-se para todos os homens e muito menos para as mulheres; portanto, para falarmos sobre pobreza do tempo, na sua relação com o tempo do trabalho, temos de falar das mulheres e do trabalho produtivo e reprodutivo. Seguindo a visão de Lefebvre (1972), o cotidiano é um momento formado de momentos, nos quais estão presentes a necessidade, o trabalho, o gozo, os produtos e as obras, a passividade e a criatividade, os meios e as finalidades, em uma interação dialética. Ainda conforme Lefebvre, “... gentes nascem, vivem e morrem. Vivem bem ou mal. No cotidiano ganham a vida ou não ganham sua vida, em um duplo sentido: não sobreviver ou sobreviver, tão-somente, ou viver plenamente. Onde se sofre e se goza é no cotidiano” (LEFEBVRE, 1972, p 39). Na nossa visão, no cotidiano estão presentes os bloqueios e interdições que afetam a liberdade, e as carências resultantes das desigualdades. A vivência do cotidiano pode oferecer os elementos concretos para a construção da consciência crítica nesse confronto real com as necessidades objetivas e subjetivas, materiais e simbólicas, o que, no entanto, só poderá ocorrer quando a sujeita se insere nos coletivos que visam à transformação das desigualdades e passa a experimentar o movimento dialético entre a vivência individual do cotidiano e a experiência no coletivo político. O conceito de desenvolvimento, já problematizado no capítulo sobre os contextos da pesquisa, foi utilizado criticamente nesta pesquisa no sentido de avançarmos no debate sobre sua relação com a autonomia econômica das mulheres, que tem sido amplamente tratada, na nossa visão, de maneira mecânica, como se os chamados processos de desenvolvimento econômico fossem em si mesmos, e de maneira automática, indutores dessa autonomia. Essa equação feita de maneira tão simplificada, carrega ou esconde por trás de si uma realidade complexa sobre a qual já nos tínhamos detido, através de outras análises (RODRIGUEZ, 2010, FRANCH et. Al., 2001, SILVA et al., 2013) e dos processos de diálogo com as organizações de mulheres trabalhadoras, bem como de outras fontes de informações críticas que mostravam tanto a existência de problemas como a necessidade de avançar no conhecimento empírico e nas reflexões teóricas sobre o sentido e as dinâmicas presentes no processo de inserção nos chamados processos de desenvolvimento através da sua inserção no mercado de trabalho. Estas questões estão na pauta do movimento feminista e de pesquisa das pesquisadoras feministas desde a década de 1970 (BOSERUP, 1970) e têm sido tratadas a partir de diferentes correntes teóricas dos estudos feministas, mantendo- se como um tema extremamente e que necessita cada vez mais ser explorado por 65 estudos que tornem mais visível a pluralidade de experiências vividas pelas mulheres Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica trabalhadoras. No atual contexto brasileiro, recoloca-se a questão central, instaurada pelos estudos tributários dos movimentos de mulheres e feministas, acerca da relação entre mulheres e desenvolvimento, ou sobre em que medida e em que condições o processo de crescimento econômico inserido em um processo globalizado do chamado desenvolvimento econômico, sob a hegemonia do neoliberalismo, propicia o crescimento da inserção das mulheres no mercado de trabalho e como esse processo afeta a vida cotidiana e os modos de vida das populações locais, e em particular, das mulheres. Parecem-nos muito fecundas as questões trazidas por Cristiane Faustino da Silva, e aqui reproduzimos um extrato do seu pensamento: Desenvolvimento é uma prerrogativa do capital e da racionalidade moderna ocidentalista europeia, que é, ao mesmo tempo, racista e patriarcal. Não temos, a meu ver, como redimi- lo de seu cerne uniformizante, urbanizante, evolucionista, higienista. Não temos como libertá-lo de sua face ardilosa, que concebe a história em um caminho linear. Um caminho que vai sempre para cima e para frente, numa racionalidade marcada pela acumulação ou desprovimento de mercadorias, estas sempre entendidas como as coisas que trazem a felicidade e medeiam as relações entre as pessoas e os grupos sociais (SILVA, 2011, p. 115). Consideramos que as análises críticas sobre as relações de trabalho nos levam ao cerne do debate sobre desenvolvimento. Partimos do suposto de que os conceitos são historicamente construídos, e são definidos e redefinidos de acordo com o contexto e as perspectivas das sujeitas, que tanto podem ser críticos como legitimadores da ordem social. Do ponto de vista de quem detém o poder nessa sociedade, os conceitos são criados ou reestruturados para responder à necessidade de novas explicações que justifiquem as relações sociais que vigoram em cada contexto social e histórico, as quais são determinadas pelas estruturas de poder. Se o modo de produção “se altera em consequência dos resultados acumulados do trabalho da atividade humana, as relações sociais necessárias para levar a efeito a produção também se alteram, assim como as concepções que justificam essas relações” (FORACCHI e MARTINS, 2006, p. 4). O conceito de trabalho produtivo esteve sempre associado à dominação da natureza. Essa visão levada ao extremo na sociedade capitalista se expressa hoje em modelos produtivos que causam danos irreparáveis ao meio ambiente, em todo o planeta, que ameaça a reprodução da vida cotidianamente e que tem levado a uma tentativa cada vez maior de mercantilização dos bens comuns da humanidade e de todas as fontes naturais de riqueza. A lógica do mercado está assentada a uma lógica produtivista e à produção incessante de novas necessidades. Evidente que como cada vez se produz mais, cada vez mais tem de se vender. O acesso ao consumo é moldado de acordo com as possiblidades das sujeitas consumidoras e a partir dos seus pertencimentos de classe, raça e gênero, no sentido de manter e reproduzir as desigualdades e a hierarquia nas quais estão inseridos. Nesse processo histórico, as teorias sobre o trabalho e as construções ideológicas forjadas na Europa foram trazidas como parte da dominação colonial, estabelecendo modelos de organização familiar, de práticas e relações de trabalho reestruturadas a partir das relações de poder entre o colonizador e o país colonizado. No que toca ao mundo do trabalho para as mulheres, tanto o produtivo como o reprodutivo, a experiência das mulheres negras e das mulheres brancas estão marcadas por diferenças e desigualdades dadas pelas relações sociais de raça. Segundo Lugones – tratando da 66 questão do poder colonial e capitalismo –, “a divisão do trabalho se fez completamente Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras racializada assim como geograficamente diferenciada. Vemos aqui a colonialidade do trabalho como um cuidadoso entrecruzamento do trabalho e raça” (LUGONES, 2008, p. 80). O desenvolvimento das relações sociais no mundo do trabalho como elemento estruturante da formação social do país e a forma como se expressam no contexto atual requer que as análises a esse respeito tenham como referência um arcabouço conceitual e teórico que contemple as questões de gênero, de raça e de classe. No Brasil, a questão das mulheres como trabalhadoras e como parte da classe trabalhadora se constituiu como um problema, desde o início marcado pela negação das mulheres como sujeita. O processo histórico de inserção social das mulheres como trabalhadoras, no entanto, não é o mesmo para as mulheres brancas e negras. Para as mulheres negras, a sua exclusão como classe trabalhadora era marcada tanto pelas relações de sexo/gênero como pela desigualdade de raça. As mulheres negras como sujeitas históricas aportaram e aportam formas próprias de resistências e visões do mundo do trabalho que criam uma alteridade de experiências ao longo do tempo. Avançar na construção de aparatos conceituais que desnaturalizem a relação entre mulheres negras e pobreza é um desafio teórico-metodológico para superar uma visão persistente na qual a pobreza é o único elemento discriminador e a questão racial apenas um atributo natural desta. Nessa visão a questão racial é descartada como uma dimensão que estrutura as relações sociais e as desigualdades. Como têm insistido as pesquisadoras e militantes do movimento de mulheres negras, o racismo não se restringe à pobreza, mas é um elemento estruturador de pobreza para a população negra. As desigualdades raciais devem, portanto, ser analisadas como um campo de relações sociais que conformam as tensões e as contradições presentes no mercado de trabalho e, mais além, na realidade social. Ao trazer a questão racial como relação de desigualdade, as contradições e antagonismos da vida social ganham também uma nova dimensão. Essa teorização possibilita que as análises dos dados sobre presenças, ausências e condições nas quais as sujeitas se encontram no mundo do trabalho avancem e revelem as dinâmicas das práticas sociais que levam à sua reprodução e os movimentos que tensionam e alteram tal reprodução. Um panorama da desigualdade é sem dúvida fundamental para conhecermos uma dimensão do problema, mas não suficiente, pois não mostra as contradições que o constroem. As análises feministas sobre as mulheres no mundo do trabalho têm contribuído para alargar e aprofundar as problematizações em torno dessa dimensão estruturante da organização da vida social e têm trazido muitos desafios para a formulação teórica e metodológica das pesquisas nessa área. Consideramos importante trazer aqui questões apresentadas por Danièle Kergoat a esse respeito. Essa autora afirma que recusou a referência “permanente ao discurso do modelo masculino” (KERGOAT, 2004, p. 242) por esta não ser operacional para explicar as diferenças entre as práticas de homens e mulheres de uma mesma classe. Mas propôs uma questão: como poderia tratar essas diferenças na ausência de aparato conceitual para organizá-las? Um problema, então, apresentou-se para ela, porquanto a impossibilidade de relacionar “essas diferenças de atitudes e comportamentos observáveis a uma análise materialista da exploração e dominação, poderia deixar o ‘campo livre’ para interpretações que buscassem explicar essas diferenças a partir de uma ‘natureza feminina” (KERGOAT, 2001, p. 242). A autora teve, então, “de retomar uma análise material (materialista) da condição operária, mas desta vez sexuada: ‘trabalhadora não é o feminino de trabalhador’” (id., ibid.). A ideia contida nessa síntese final da autora, na nossa visão, supera de maneira radical – no sentido de alterar os seus fundamentos 67 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica – uma concepção do masculino como a referência do feminino, numa relação dialética entre dimensão material e simbólica, e evidencia a visão de construção de subjetividades diferentes a partir das diferentes práticas de trabalho de mulheres e de homens. Traz, por fim, na nossa compreensão, a questão da sujeita sexuada. Uma das formas de confrontar essa ideologia e esse sistema de dominação é visibilizar o trabalho e as relações sociais que engendram e são engendrados na sua dinâmica. Como afirma Antunes (2005), o trabalho é uma questão central dos nossos dias. As teóricas e pesquisadoras feministas desse campo não só insistem na centralidade do trabalho nesta sociedade como também produziram uma reestruturação desse conceito. O conceito de trabalho ao longo do tempo referia-se apenas ao trabalho produtivo. Assim foi tratado pelas ciências sociais, e pela economia, nos planos de desenvolvimento das políticas nacionais e dos organismos internacionais. O trabalho reprodutivo ou trabalho doméstico, assim definido no contexto da sociedade capitalista patriarcal, esteve fora do conteúdo que dava significado ao conceito de trabalho até muito recentemente. A reestruturação desse conceito para alcançar as duas esferas do trabalho é parte de um processo político e de uma prática de produção do conhecimento que se constroem a partir do movimento feminista em uma relação dialética. A reestruturação do conceito de trabalho implica considerar mulheres brancas, negras e de diversas etnias, e homens brancos e negros e de diversas etnias, como sujeitas do trabalho, rompendo com uma representação da sujeita universal do trabalho baseada na particularidade do trabalhador homem e branco. Ao considerar essa pluralidade das sujeitas do trabalho e as relações sociais nas quais estão inseridos, deve-se considerar que as experiências coletivas e individuais, e a produção das subjetividades, no mundo do trabalho, são forjadas nas imbricações dessas relações. A dimensão subjetiva é um aspecto muito importante a ser explorado nas pesquisas sobre trabalho. Segundo Alves, o processo de precarização do trabalho no capitalismo global atinge a “objetividade” e a “subjetividade” da classe dos trabalhadores assalariados. O eixo central dos dispositivos organizacionais (e institucionais) das inovações organizacionais do novo complexo de reestruturação produtiva é a “captura” da subjetividade do trabalho pela lógica do capital (ALVES, 2013, p. 111). Queremos ressaltar que ao se referir aos assalariados apenas no masculino, o autor está tomando, ou reafirmando, como referência generalizante a subjetividade do trabalhador homem, o que indica que as experiências das mulheres trabalhadoras, que não se enquadram nas dos homens, não são consideradas; dessa forma, a análise da subjetividade se refere apenas a uma parte da classe trabalhadora, a dos homens. Com base nas considerações desse autor, as cadeias produtivas globais estão formadas por uma imensa variação de organizações e de relações de trabalho, o que significa que os espaços de trabalho mais precarizados dessa cadeia, que estão diretamente relacionados com o que se processa nos espaços mais qualificados e valorizados da sua hierarquia, nos quais as inovações organizacionais tomam forma, estão regidos pela mesma lógica da acumulação de riqueza e sustentados pela mesma ideologia. É esse complexo movimento de reestruturação da organização do mundo do trabalho produtivo e reprodutivo que faz com que as práticas e as relações de 68 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras trabalho que formam essa cadeia apareçam como temporalmente desencontradas e espacialmente desconectadas, quando concretamente estão inteiramente conectadas e expressam a organização atual do sistema de trabalho que sustenta a globalização econômica neoliberal. A reestruturação produtiva no plano global não está dissociada de uma reestruturação do trabalho reprodutivo. A migração de mulheres dos países do Sul para os países do Norte, a fim de se ocuparem como trabalhadoras domésticas, em condições de trabalho precário, é uma dimensão fundamental dessa reestruturação e da sustentação de uma divisão internacional do trabalho. Nessa migração, a dimensão racial e étnica é central. São essas trabalhadoras precarizadas, desenraizadas e discriminadas que nesse contexto de desestruturação do Estado de Bem-Estar nos países do Norte provêm a sustentação do trabalho reprodutivo nos domicílios de outras mulheres; estas, como trabalhadoras nativas e/ou cidadãs desses países chamados centrais, têm condições de pagar para delegar a outras o trabalho doméstico e assim garantir, no cotidiano, a liberação do tempo para responder às exigências do mercado de trabalho no qual estão inseridas. A divisão sexual do trabalho tem como princípios organizadores a hierarquia e a separação entre trabalho produtivo/homens e trabalho reprodutivo/mulheres, princípios esses que segundo Kergoat “se encontram em todas as sociedades conhecidas e são legitimados pela ideologia naturalista”. A autora acrescenta que isso não quer dizer “... que a divisão sexual do trabalho seja um dado imutável. Ao contrário, essas modalidades concretas variam fortemente no tempo e no espaço, como o demonstraram abundantemente etnólogos/as e historiadores/as” (KERGOAT, 2001, p. 89). Ressaltamos aqui o que Curiel e Falquet (2005) anotam sobre a posição teórica de Nicole Claude Mathieu: que tratar das hierarquias entre homens e mulheres não é acreditar na binaridade essencial e natural dos corpos sexuados – e concordamos com essa visão. Para Mathieu, segundo as autoras já citadas, (...) enquanto perdurar a exploração material de uma classe social de sexo por outra, já que é precisamente a exploração que cria a binaridade das classes de sexo, e quaisquer que sejam as transgressões de gênero e da sexualidade que cada sociedade organiza ou permite, existe um gênero e, sobretudo, um sexo que está sempre abaixo na hierarquia social: o das mulheres (CURIEL E FALQUET, 2005, p. 14). Essas autoras acrescentam ainda que, de acordo com Mathieu, a “dita binaridade não se origina na biologia e tampouco na natureza, menos ainda em uma vontade divina, senão que simples e completamente na organização do trabalho e na sua exploração, a que, sim, parece bastante universal, ainda que possua numerosas variantes” (CURIEL E FALQUET, 2005, p. 15). Como afirma Mackintosh (1984), “a divisão sexual do trabalho não está limitada à esfera do trabalho assalariado... é também um fato contínuo e, frequentemente, age em detrimento das mulheres” (MACKINTOSH, 1984, p. 5). Kergoat considera a divisão sexual do trabalho como o elemento estruturante das relações sociais de sexo/gênero. A divisão racial do trabalho e a divisão sexual do trabalho constituem dimensões fundamentais da divisão social do trabalho como um todo, o que nos leva à questão da imbricação das relações de classe, raça e gênero; estas, segundo Daniele Kergoat, são relações consubstanciais e coextensivas. 69 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Consideramos fundamental para a perspectiva crítica em que nos inserimos a abordagem ancorada nos conceitos de consubstancialidade e coextensividade das relações sociais elaborada por Kergoat (2009). Segundo a autora, as relações sociais são consubstanciais; elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica; e as relações sociais são coextensivas: ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e “raça” se reproduzem e se coproduzem mutuamente (KERGOAT, Danièle, 2009, p. 99). A teórica brasileira Heleieth Saffioti – cuja obra também está assentada em uma perspectiva materialista histórica – recorreu também à ideia de nó para abordar a imbricação entre as contradições de gênero, classe e raça. Para ela, patriarcado, capitalismo e racismo produzem desigualdades que se reforçam mutuamente em determinados períodos históricos. O conceito de relações sociais de sexo e de raça altera a concepção marxista de classe como a única relação social que expressa a contradição, o conflito e o antagonismo principais da vida social. Consideramos relevante o que afirma Kergoat sobre relações sociais, no sentido de que se tomarmos em conta apenas as estruturas, isso nos levará a um raciocínio que negaria a possibilidade da existência das sujeitas, como se os indivíduos agissem somente a partir da ação das formas exteriores. Para ela, é contra a visão solidificada de estrutura social “que se insere o raciocínio em termos de relações sociais (com seu corolário: as práticas sociais): relação significa contradição, antagonismo, luta pelo poder, recusa de considerar que os sistemas dominantes... sejam totalmente determinantes” (KERGOAT, 2002, p. 244). Ainda segundo esta autora, “as relações sociais não tomam a forma de um movimento circular fechado, mas sim de um movimento circular em espiral, o que significa que não é possível a previsibilidade dos seus desdobramentos futuros” (KERGOAT, 2002). A divisão sexual do trabalho que atribui trabalho produtivo aos homens e trabalho reprodutivo às mulheres dá significado às práticas de trabalho no interior de cada uma dessas esferas. Na esfera produtiva, há uma representação simbólica do trabalho de homens e do trabalho de mulheres, e há uma divisão de tarefas que respondem a essa representação. O mesmo ocorre na esfera do trabalho reprodutivo. Essa divisão incide também sobre o valor do trabalho de homem e de mulher, expresso no valor diferenciado de salários e no desvalor do trabalho doméstico. Além disso, no trabalho produtivo dá-se uma captura das habilidades desenvolvidas no trabalho doméstico, que dessa forma, além de ser apropriado para uma maior exploração do trabalho das mulheres, pode funcionar também como um meio de reafirmar a naturalização das habilidades das mulheres desenvolvidas na prática concreta do trabalho doméstico como uma habilidade natural feminina. No trabalho reprodutivo, que permanece, majoritariamente, de responsabilidade das mulheres, quando os homens executam tarefas no trabalho doméstico diretamente relacionadas a necessidades do cuidado, da manutenção da casa e da alimentação, estão em princípio fazendo um trabalho de mulheres. Há tarefas no interior do espaço doméstico que são consideradas como pequenos trabalhos masculinos, ligados à sua habilitação como trabalhador da esfera produtiva, como, por exemplo, os consertos na estrutura física das casas, serviços elétricos e outras. Foi essa concepção que nos levou a considerar nesta pesquisa as duas esferas do 70 trabalho: a produtiva e a reprodutiva. Deve-se considerar que as mulheres vão para o Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras mercado de trabalho levando consigo a responsabilidade do trabalho reprodutivo doméstico, o que as coloca cada vez mais em conflito com a forma hegemônica de organização do tempo social: ... com a crescente participação feminina no mercado de trabalho e a nula resposta social e masculina ante esta mudança de cultura e comportamento das mulheres, estas últimas assumiram a dupla jornada e o duplo trabalho, deslocando- se continuamente de um espaço ao outro, solapando e intensificando seus tempos de trabalho. Tempos que vêm determinados, por um lado, pelas exigências da produção mercantil e, por outro, pelos requerimentos naturais da vida humana (CARRASCO, 2005, p. 53). Esse tempo de trabalho reprodutivo, que não é, no geral, percebido como parte da organização do tempo social, é retirado do tempo que forma o dia a dia das mulheres como parte das atribuições femininas, determinadas por relações de poder que se entrelaçam pela dominação e exploração patriarcal, racial e capitalista. Para a maioria das mulheres que estão no mercado de trabalho, formal e informal, o tempo de trabalho para a realização das tarefas domésticas é aquele que sobra da sua inserção formal ou informal nesse mercado. É justamente aí que se produz uma jornada extensiva de trabalho. Essa forma de organização social baseada na jornada de trabalho das mulheres, formada por trabalho gratuito e trabalho remunerado, é fundamental para a acumulação do capital e para a manutenção do poder patriarcal, uma vez que reduz os custos da reprodução social e mantém os homens fora da responsabilidade com o trabalho reprodutivo. As análises sobre desigualdade no mercado de trabalho são importantes, mas só mediante uma análise que contemple mercado de trabalho e trabalho doméstico é possível aprofundar a compreensão da relação de desigualdade das mulheres na divisão sexual do trabalho. Os estudos sobre as mulheres no mundo do trabalho ou em qualquer outra temática devem, sempre, considerar as relações sociais nas quais elas estão inseridas. Porque, concordando com Maruani, “nós estudamos as relações sociais, não como um estado ou ‘condição’.” (MARUANI, 2003, p. 21). Por isso é crucial estudar os processos com suas contradições, pois no mercado de trabalho “as fronteiras se deslocam mais do que se apagam, e são esses movimentos que é necessário observar” (Id., ibid.). Continua sendo hegemônica a concepção de trabalho como trabalho produtivo e, em consonância com isso, os homens como os sujeitos universais do trabalho; daí que as experiências masculinas estudadas são generalizadas como a experiência de trabalho para todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras. Os estudos e pesquisas sobre as experiências das mulheres não têm como finalidade apresentar as mulheres como uma sujeita referencial para estabelecer uma nova generalização, mas, bem ao contrário, trata-se de mostrar uma parte da experiência social que não está visível na produção hegemônica do conhecimento, uma experiência que é plural, uma vez que as mulheres não se constituem como um grupo homogêneo. Trata-se, portanto, de aprofundar o conhecimento sobre a realidade social a partir da pluralidade das sujeitas e das relações sociais nas suas imbricações. As mulheres ainda permanecem muito invisibilizadas em grande parte das pesquisas nas correntes centrais que hegemonizam as pesquisas sobre o mundo do trabalho, ou são tratadas como fragmentos de uma diversidade em torno da ação da sujeita central do mundo do trabalho, isto é, dos homens. 71 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Para Abbott & Wallace (1997), “é necessário desenvolver perspectivas sociológicas feministas que possibilitem a total integração das mulheres no conhecimento sociológico” (ABOTT & WALLACE, 1997, p. 21), questão que considero relevante, pois, como afirma Cavalcanti (2007): A sociologia, por sua vez, se estabeleceu como a disciplina das sociedades modernas, avançadas, industriais, capitalistas, cuidando do domínio das fábricas, das organizações como também dos seus impactos na construção do processo de urbanização, e segundo suas perspectivas teóricas, definiu seu campo de observação segundo a divisão de espaços nos quais transitavam os que controlavam o capital ou aqueles que ofereciam o seu labor para a produção. Esses espaços emergiam como essencialmente ocupados por homens e na ausência de uma pergunta sobre o porquê, foram delineados como naturalmente masculinos (CAVALCANTI, 2007, p. 122). Discutir as dinâmicas que configuram o processo de precarização, considerando a realidade das mulheres e em particular das mulheres negras que são sujeitas do trabalho que estão no âmago desse processo, abordando diferentes dimensões e realidades e numa perspectiva que articula o trabalho produtivo e reprodutivo, mostra- se de fundamental relevância para responder aos desafios colocados à produção do conhecimento sociológico sobre o trabalho no Brasil. Por fim, como forma de ressaltar uma dimensão fundamental da nossa elaboração metodológica sobre três categorias com as quais trabalhamos: mulheres, trabalhadoras e sujeitas, queremos fazer um breve aporte. Consideramos que a experiência sócio- histórica, dada pela divisão sexual do trabalho e pelo controle da sexualidade, está marcada nos corpos e nas consciências (como unidade inextricável) das mulheres; é o que nos constitui como um grupo humano, ou como uma classe, e não o fato biológico, e não a anatomia, como nos quiseram fazer crer, através das formas de exploração, dominação e apropriação, materiais e simbólicas, desenvolvidas pelo sistema patriarcal/ racista/capitalista e heteronormativo. Consideramos também que a experiência das mulheres como trabalhadoras, a qual está historicamente, nesse sistema, relacionada ao trabalho produtivo e reprodutivo, faz do fato de ser trabalhadora uma experiência própria, marcada pelas relações sociais de classe e de raça. Daí considerarmos que o conceito de sujeita é, do ponto de vista ontológico bem como epistemológico, o mais apropriado para nos referirmos às mulheres. 72 CAPÍTULO IV – SUJEITAS DA PESQUISA E SUAS TRAJETÓRIAS DE TRABALHO 4.1 Trajetórias de trabalho remunerado e reprodutivo Barcarena “Ah, minha história tem muita história.” (entrevistada, Barcarena) Em Barcarena, o universo de mulheres sujeitas da pesquisa encontrava-se na faixa etária entre 25 e 64 anos. Do ponto de vista da escolarização, grande parte das trabalhadoras havia concluído ou estava cursando o ensino médio. A realidade comum a todas é a baixa escolarização e o acesso deficitário a cursos de qualificação profissional. Metade dessas mulheres nasceu no próprio município de Barcarena e a outra metade é de mulheres nascidas em outros municípios do próprio Pará ou capitais da região Norte. A trajetória, como percursos da vida, é marcada pelos movimentos migratórios. A vinda para Barcarena, para muitas das sujeitas da pesquisa, foi motivada pela busca de melhores condições de vida por meio das possibilidades de trabalho que eram apontadas como existentes no lugar, especialmente no momento de implantação do Polo Industrial, na década de 1980. Entre as migrantes, as mais jovens narram ter vindo para Barcarena oriundas de cidades ou estados vizinhos, ainda crianças, com pais e mães; aquelas mais idosas relatam ter vindo acompanhando maridos ou parentes. “Fui estudar em Belém, casei e voltei há 25 anos para trabalhar em Barcarena. Surgiu uma vaga, fiz um teste e fui selecionada. Resolvi ficar. Minhas filhas tão em Barcarena e eu me separei.” “Mudei pra Barcarena pra ficar independente. Em Belém, morava com a minha mãe. Meu primeiro emprego foi na CATA, em Belém, por dois anos. Fui pro Rio de Janeiro, mas num me dei bem; passei sete meses e vim embora. Trabalhei na IDAE Madeiras do Brasil em Parati, Rio de Janeiro... tinha que pegar na madeira e eu tinha alergia. Meu sobrinho disse: ‘Bora lá pra Barcarena que tem muita firma. Nesse tempo tinha muita firma.” “Mora em Barcarena faz 20 anos. Meu pai arrumou emprego e veio para cá. Comprou casa e a gente se mudou pra Barcarena.” A migração para a cidade está inequivocamente ligada à instalação do Polo Industrial, tomando parte dos movimentos migratórios intrarregionais que caracterizam o processo de desenvolvimento na região Amazônica, alavancado pelos projetos estatais especialmente a partir da década de 1970. Conforme aponta Gomes (2012), Esses projetos propiciaram a elevação das taxas de crescimento econômico, visto que eram orientados de forma exclusiva para o mercado extrarregional. Acrescenta-se a isso a atratividade causada por esses projetos aos movimentos migratórios intrarregionais, os quais, motivados pela busca de oportunidade de emprego, acabaram por transformar as principais cidades em vastos depositórios de força de trabalho e de baixa qualificação, disseminando a proliferação 73 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica da pobreza urbana, dentre outras mazelas sociais que expressam as contradições e os conflitos causados pelas leis do desenvolvimento capitalista na região Amazônica (GOMES, 2012, p. 156). Algumas trabalhadoras referem-se a trajetórias marcadas por inúmeras mudanças, de cidade em cidade dentro do próprio estado do Pará, definidas pelo movimento dos projetos de desenvolvimento na região. Nas narrativas daquelas que partiram para Barcarena já adultas, apreende-se que elas se encontravam, geralmente, em condição marginal e dependente: marginal ou periférica no que diz respeito às possibilidades de inserção profissional, uma vez que as narrativas apontam que, embora a razão da mudança fosse a busca de trabalho, os homens da família, pais ou maridos é que aparecem como aqueles a quem se destinavam as possibilidades de trabalho, mais ou menos garantida, no Polo Industrial. Estas narrativas evidenciam que o Polo Industrial absorvia de maneira desigual homens e mulheres, sendo os primeiros os sujeitos privilegiados dos postos de emprego gerados. Em certa medida, aquelas que chegaram à cidade vindas de outros lugares, já adultas, tiveram de construir e fazer desta uma possibilidade de busca de autonomia econômica para si mesmas, de construção de uma rota própria de inserção no trabalho produtivo. Uma das sujeitas da pesquisa esteve inserida, ao longo de sua trajetória de vida, em três dos maiores projetos de infraestrutura e crescimento da região: a construção da rodovia Transamazônica, da barragem e usina de energia de Tucuruí e, finalmente, do Polo Industrial, em Barcarena. “... quando ele foi trabalhá numa empresa... que contratava no tempo da Belém-Brasil inda tava em construção... aí trabalhava, fazia os metro daqueles meio-fio... aí passava o tempo num lugar, aí depois arrumava o barraco noutro lugar... trabalhava às vez com cinco seis pessoas junto com ele... e eu lavava rôpa pra essas pessoa, fazia comida pra essas pessoas, e a gente dormia em barraco, e assim a gente foi, vários e vários quilômetros andando, né? Quando a gente chegô lá em Tucuruí, a gente chegô sem nada, não tinha nada... Aí tinha uma área de terra lá que tavam dando e a gente pegou um pedaço, foi fazê uma casa. Aí perto tinha uma balsa que o pessoal tavam chegando, num tinha alojamento, não tinha nada... Então a gente formou um restorante, né? pra vender comida pra essas pessoas, e a gente vendia comida, vendia café, e com isso a gente foi crescendo, né?”. Para muitas, o primeiro movimento migratório ocorreu ainda na infância, também motivado pelas condições de extrema pobreza de suas famílias. Algumas mulheres sujeitas da pesquisa referem-se ao fato de terem mudado de cidade com suas famílias e outras, também, de terem deixado a família materna ainda crianças, para viver com familiares em outras partes do estado, principalmente na capital, Belém. A partida viria a significar o início de sua trajetória como trabalhadoras e a experiência do primeiro trabalho remunerado: o emprego doméstico. Mas também aquelas que viviam no local e ali permaneceram vivenciaram situações de exploração do trabalho infantil doméstico remunerado. Com efeito, durante séculos e até poucas décadas atrás, o trabalho infantil doméstico possuía uma alta magnitude no Brasil, constituindo uma das mais fortes 74 expressões das desigualdades de gênero, raça e classe no país. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Comecei a trabalhar com o pai, na roça. Depois trabalhei como empregada doméstica.” “Emprego doméstico foi meu primeiro emprego e já aí já... bem atrasado, mas tive... Porque foi assim, quando eu me separei dele a gente vivia há quatorze anos junto, aí eu me separei dele, aí foi que eu fui procurar um serviço, porque ele sempre era contra... Ele falou que ele não queria que eu trabalhava, aí... eu ficava braba porque eu queria trabalhar, porque eu num queria depender dele.” “... antes de vim pra cá eu trabalhava como babá e trabalhava como empregada doméstica.” “O meu primeiro emprego foi em casa de família, aos 11 anos de idade.” “Meu primeiro emprego foi em casa de família. Eu tinha nove anos, aí geralmente as pessoas de Belém pega as meninas no interior e diz: ‘ah, deixa eu levar pra ser babá... Vou dar estudo e tudo e tal’. Aí eu tinha uns nove anos quando eu fui. Aí quando eu comecei a trabalhar mesmo, em empresa, eu tinha uns vinte e um anos já, que eu já tinha até separado, vinte e um pra vinte e dois anos. Mas eu comecei com nove em casa de família servindo de babá.” A inserção no trabalho remunerado deu-se ainda na infância, no trabalho doméstico para outras famílias, de forma remunerada ou mesmo sem rendimentos, e no trabalho no campo, no interior das famílias. Essa experiência é narrada como uma condição inescapável a que foram submetidas por sua situação de pobreza. O emprego doméstico também está presente na inserção no trabalho remunerado quando adultas. As narrativas expressam que o emprego doméstico e outras atividades informais em serviços também relacionados ao trabalho reprodutivo foram as possibilidades de trabalho remunerado que surgiram para essas mulheres como a alternativa possível em decorrência de sua baixa escolarização e para enfrentar situações de dependência econômica e pobreza extrema em que se encontravam. No caso de algumas, a inserção neste trabalho foi a estratégia possível para romper com os vínculos de opressão e violência nas relações afetivo-conjugais. Em seus relatos, revelam que a busca de trabalho remunerado representa um esforço de busca de autonomia para superar opressão em relações marcadas pela opressão e dominação patriarcais. A primeira possibilidade de trabalho para parte das sujeitas da pesquisa foi o emprego doméstico nas casas das famílias residentes na Vila dos Cabanos, onde viviam os/as funcionários/ as do Polo Industrial. Quando perguntadas sobre receio de desemprego, as sujeitas da pesquisa apontam que o emprego doméstico segue como esse esteio de trabalho remunerado, como se vê nos depoimentos a seguir: “... os meus filhos não vão passar fome, eu vou dar um jeito de criar meus filhos. Eu só tinha dezessete anos, né? Então foi aí que eu comecei, né? Eu comecei, eu peguei uma bicicleta, vim aqui pra vila dos cabanos, né? E falei com uma vizinha minha – que hoje em dia essa vizinha minha foi uma segunda mãe pra mim, ela já faleceu –, falei com ela se ela podia olhar meus filhos, que precisava vir ganhar o pão dos meus filhos... ‘Mas 75 minha filha, o que tu sabe fazer?’. Eu falei: ‘Olhe, eu sei tomar Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica conta de uma casa, eu sei cuidar de uma casa, eu sei limpar uma casa, eu sei lavar uma roupa’. Ela falou: ‘Tu vai procurar emprego em casa de família?’. Eu falei: ‘Eu vou’. E vim pra cá, pra vila dos Cabangas, chegou numa casa, bati nessa porta, aí a mulher me via, era muito magrinha, né? Muito. Passava necessidade mermo. E aí a mulher ficou me olhando... Aí eu perguntei se ela tava precisando de uma pessoa pra tomar conta da casa dela. Ela falou assim mesmo pra mim, me olhou assim, né?: ‘Olha eu tô precisando sim, mas você dá conta do serviço?’. Eu falei pra ela: ‘Olha, bora fazer um teste. Eu trabalho pra você uma semana de graça, se você vê que eu dô conta você, me dá o emprego; se você vê que num dô conta, aí tudo bem, eu volto pra casa, eu vou pra casa. Eu tenho dois filhos, meu marido foi embora e eu preciso sustentar essas duas crianças, porque eu não vou abrir mão dos meus filhos, né?’ Ela ficou me olhando e falou assim mesmo: ‘Então tá’. Aí me contratou. No primeiro dia ela já gostou muito de mim, me deu oportunidade, né?” “Por causa que agora, se eu saísse aqui da Coopsai, eu num podia me empregá em casa de família... purque já em casa de família tem que fazer limpeza e eu num posso mai fazer limpeza nenhuma... Aí já ia sentir muito, né?”. Por meio das narrativas, depreende-se que a trajetória no trabalho remunerado é permeada pela inserção em atividades informais, sobretudo na prestação de serviços ligados ao trabalho reprodutivo (alimentação, hospitais, emprego doméstico), até o ingresso em firmas prestadoras de serviços para as empresas do Polo Industrial e, finalmente, nas cooperativas de trabalho ligadas também ao Polo Industrial. O fio condutor dessas trajetórias no trabalho remunerado é a precariedade das relações e as condições de trabalho. As narrativas indicam que entre as mulheres com faixa etária acima dos 40 e 50 anos, a prestação de serviços para a Albrás e a Alunorte, por meio de diferentes firmas, atravessou longos períodos. Nas décadas de 1990, elas localizam um ponto de inflexão e mutação na relação de trabalho, quando passam da relação de prestação de serviços nas firmas prestadoras de serviços para as empresas para a categoria de cooperadas. Podemos localizar na trajetória das sujeitas de pesquisa o processo de reestruturação produtiva, nos anos 1990, como as faces locais do projeto de reorganização capitalista em escala global. Na vida dessas trabalhadoras, o processo de flexibilização das relações de trabalho evidencia-se no momento da trajetória em que passam de empregadas de firmas que prestam serviços para o polo na condição de terceirizadas para cooperadas. Quando trabalhavam nas firmas, tinham registro em carteira profissional e eram regidas pela CLT. Ao passarem para cooperadas, sua condição no trabalho se precariza ainda mais, uma vez que não há mais vínculo formal de trabalho; os direitos só voltam a ser adquiridos em 2012, quando da sanção da nova lei do cooperativismo. Nas firmas, tinham contrato celetista, porém temporário de trabalho – a precariedade configurava- se pela intermitência nos contratos e pela insegurança na manutenção do vínculo. As cooperativas são, elas mesmas, criadas com o apoio das empresas transnacionais instaladas no território. Do ponto de vista da relação com as empresas, pode-se dizer que se mantém a terceirização de atividades, porém a cooperativa parece conduzir a uma redução ainda maior dos custos dos contratos justamente pela redução dos custos com a força de trabalho, por meio de uma maior exploração do trabalho dessas mulheres, como veremos adiante. 76 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Aí eu trabalhava lá, prestava serviço lá pra fábrica, né?, que é do Polo Industrial. Depois que eu vim pra cá, que acabou meu contrato pra lá, aí eu vim designada pra cá, que aqui tinha uma vaga. Aí quer dizer que eu num passei assim duas semana desempregada, já arrumaram outra vaga logo pra mim, e eu tô até hoje, eu vim pra cá em 2009 pra esse setor, mas na Coopsai eu já tô o quê? Vou fazer vinte anos”. “Meu sobrinho chegou lá em casa e disse: ‘Naza, bora lá pra Barcarena que tem muita firma’. Nesse tempo tinha muita firma. Não tinha essas casa, era mato isso aqui. Barcarena cresceu foi muito. Esse laranjal daí direto era só mato; agora você vê é cheio de casa pra tudo quanto é canto, né? Aí foi quando eu me empreguei na firma de construção civil, na.... Passei quase dois anos também lá na Sac Engenharia... Trabalhava mais ou menos, trabalhava na limpeza, né? Aí ela saiu, ficaram sentindo, porque num puderam me levar porque gostava muito de mim... Foi quando conheci uma menina através de um colega meu, que ela falou justamente dessa lavanderia aqui: ‘Olha, tem uma vaga’. Nesse tempo, era a Belseve que tava aqui, pra você ver. Isso aqui era contrato. É contrato, né? Aí trabalhei na Bel, aí ela veio, me trouxe. Até hoje eu tô aqui... entrei aqui em 86, né? E eu tô desde essa época aqui. Mas trabalhando pra uma firma e pra outra. Era Belseve. Aí a Belseve ficou seis anos aqui, saiu, entrou a Tíquiti, que era GR Tíquiti, né? Foram mais dois ano. Aí modernizaro a gente, aí a gente passou pra outro que foi a Norsergel. Mai dois ano ficamo na Nosegel, eu acho que a empresa botô mais dinheiro. Foi quando entrou essa construção, que eu tô há dezoito ano, que já é antiga aqui. Dezoito ano, e de lá, já veio o homem e disse que era uma cooperativa. Eu não entendia bem o que era uma cooperativa, aí foi expricando, expricando, até hoje a gente tá aí né?, nessa cooperativa, dezoito ano”. A trajetória narrada no depoimento acima é exemplar desse processo. As empresas tiveram um papel determinante na organização das cooperativas, estimulando seu surgimento. Na percepção da trabalhadora, isto emerge como uma “sorte”, pois não ficou desempregada. Na verdade, era parte do processo de migração de uma forma de contrato com direitos, direta, para uma relação da empresa com a cooperativa. Na trajetória das sujeitas da pesquisa no trabalho remunerado podemos apreender as diferentes estratégias acionadas pelas empresas para reconfigurar as relações de trabalho, tornando-as ainda mais periféricas e precárias e nas quais as mulheres são os sujeitos diretamente concernidos. A precariedade não é uma situação estática dada pela natureza do vínculo estabelecido: ela é um movimento permanente estruturado por processos materiais e ideológicos que podemos apreender nas trajetórias laborais das entrevistas. O ideário cooperativista é disseminado como estratégia de convencimento e criação de consensos que esfumam o vínculo de subordinação às empresas do complexo industrial. “Eu, por meio dessa outra empresa, né?, que eu vim fazer o teste primeiro, pra tirar uma licença de uma jovem lá que ficou grávida e precisava tirar licença. Aí de lá fui passando e duas empresa aí que montou cooperativa; aí nos se associamo tudinho. Até hoje eu sou sócia da cooperativa, né?”. “Até hoje eu tô aqui. Entrei aqui em 86, né? E eu tô desde 77 essa época aqui. Mas trabalhando pra uma firma e pra outra. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Nós passamo de outra firma... que a gente ia passando de uma pra outra, porque a Albrás ficava com a gente, com esse nosso trabalho que já conhecia, já tem conhecimento, tá entendendo? Que conhecimento é isso. Aí a gente passa de outra pra outra... mas ela tá com dezoito ano, eu tô dezoito ano nela”. “Eu tenho uma faixa de oito anos de cooperativa. Aí quando eu entrei, entrei assim só mesmo por um projeto. Aí pintou essa vaga, foi que me colocaram, me chamaram, né? Me empreguei. Hoje em dia trabalho aqui, quase seis anos aqui na lavanderia. Meu marido já trabalhava, trabalhava em empresa, né? Aí as empresa foram perdente pra concorrência, aí foi que entrou a cooperativa, né? Aí da cooperativa ele, chamaram ele pra trabalha, passaram ele pra trabalhá na cooperativa, e através dele pintou essa vaga e eles me incluíram. Aí eu num tinha documento. Daí, até hoje continuo trabalhando, né?”. As empresas do Polo Industrial estabelecem em Barcarena, até onde pudemos apreender na narrativa das mulheres, diferentes modalidades de relações de trabalho, e as sujeitas dessa pesquisa estão inseridas, justamente, naquelas mais precárias e permanentemente precarizadas. Nas suas trajetórias no trabalho remunerado revelam-se o movimento mesmo de precarização e as formas que vão tomando ao longo de mais de duas décadas. Dito de outro modo, essas mulheres vivenciam no que diz respeito à relação com o Polo Industrial uma experiência de precarização progressiva. Forjam-se diferentes estatutos de trabalhadoras que atestam uma inserção desigual dessas mulheres, em sua maioria de ascendência indígena ou negras, nos processos de desenvolvimento local, protagonizados pelas empresas e com frágil ou inexpressiva regulação estatal. A inércia da ação do Estado no que diz respeito à garantia de direitos revela-se tanto na precariedade do trabalho como na precarização social que caracteriza o contexto de Barcarena. A única iniciativa de regulação para a garantia de direitos citada nas narrativas é a nova lei do cooperativismo, sancionada em 2012, a qual, com efeito, passou a garantir direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal a estas trabalhadoras. Essa desigualdade se materializa em situações de discriminação vividas no ambiente de trabalho. A externalidade territorial no exercício das atividades termina por esmaecer, ainda mais, os vínculos de subsunção e a relação de trabalho com as empresas. A estratégia de precarização toma também contornos espaciais quando se externalizam atividades antes realizadas no interior das empresas. Segundo as narrativas das trabalhadoras da cooperativa que compuseram o universo da pesquisa, foi a própria empresa que financiou a instalação e é a ela que pertence a sede da cooperativa de serviços de higienização. Concordando com a argumentação de Barbosa (2010, p. 271), em estudo realizado com cooperativas locais em Barcarena, “os estatutos mais precários que fundamentam a condição dos terceirizados não se encerram em uma relação técnica; eles se estendem por toda a constituição da vida social destes na região próxima ao município de Barcarena”. Pelos relatos das sujeitas da pesquisa e pelas observações das pesquisadoras no trabalho de campo, esse estatuto diferenciado está inscrito nas condições desiguais de vida entre aquelas que moram na Vila dos Cabanos e quem vive e sobrevive na Barcarena Velha ou em outras regiões da periferia da cidade (cf. capítulo sobre contextos). No caso das mulheres, essas fronteiras ganham ainda maior fixidez em função da divisão sexual do trabalho e como expressão do desvalor das atividades 78 realizadas pelas mulheres. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “... às vezes depende de conhecimento, depende de sorte, é muita coisa envolvida aí, né? Às vezes tem gente que num tem aquela qualificação, às vezes a pessoas pensa em te chamar, mas aí quando chega na hora a pessoa num se sai tão bem quanto deveria, né? Então é um monte de coisa, né?” “Não. Eu acho que existe uma diferença, uma discriminação até, eu acho, eu vejo, entendeu? Tem muita gente que, ah, porque trabalha na Albrás trata bem e tal, e tem aquela aí terceirizada já trata assim, já, discrimina. Então a gente percebe muito essa discriminação. Pelo que a gente observa, às vezes tu vai num canto, tu é uma terceirizada, tem um funcionário Albrás... aí ele é mais bem tratado do que você,.. que já aconteceu comigo de um dia eu ir lá no hospital, tava passando mal lá da fábrica, entendeu? Então, como, eu até falei, eu falei assim: ‘Vem cá, só porque eu num tenho uniforme Albrás, mas eu tô doente. E aí? Por que essa discriminação? Aí eu falei um monte de coisa... foi uma enfermeira, ela até saiu da fábrica, porque não pode proceder isso, isso eu sei que não pode. Entendeu? Essas discriminações assim, você é tirada, se souberem de alguma coisa. Ah, eu fiquei injuriada da vida. Porque eu num aceito isso, ninguém é melhor do que ninguém, independente de estar vestida de uniforme Albrás ou não, eu tô fazendo o meu trabalho, eu mereço respeito, então eu não aceito. Mas eu falei, falei lá mesmo.” O ingresso nas cooperativas deu-se por duas vias: 1) entre aquelas que eram trabalhadoras nas empresas do Polo Industrial, o ingresso se dá pela indicação feita pelas próprias empresas, o que, como vimos, significa um remanejamento de força de trabalho das relações assalariadas para a condição de cooperadas que prestam serviço para as empresas; 2) naquelas que se inserem quando as cooperativas já estão consolidadas, o ingresso se dá pela indicação de parentes que já estão inseridas como cooperadas. A inserção a partir de processos de qualificação profissional é, no contexto das mulheres sujeitas da pesquisa, uma via excepcional. “A Coopsai não, a Coopsai ela apoia essas pessoas, tipo assim, ela abriga, a cooperativa ela abriga essas pessoas que não tiveram oportunidade de ter um estudo melhor, se profissionalizar melhor. Então o mercado de trabalho lá fora ele é cruel... é como se interessasse pra eles somente papéis assinado, certificado e tudo.” “A Coopsai ela é uma empresa assim que eu acho que veio assim pra ajudar muitas pessoas, assim porque tinha na época que ela foi formada, que ela surgiu, é as empresas, as outras empresas exigiu muito, e aqui na Coopsai já não, por ser uma cooperativa não exigia tanto estudo que a pessoa tivesse, né?, e também experiência de trabalho, que nas outras você tem que ter anos, é vários, assim pelo menos já passar por alguma experiência profissional”. 79 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica As condições de pobreza da família que levaram a situações precoces de trabalho, ainda na infância, seja na roça ou no emprego doméstico, são narradas por uma parte significativa das mulheres como a razão para a interrupção dos estudos ainda na infância. As narrativas apontam para situações de carência de condições básicas para garantir o estudo, como falta de recursos para compra de materiais fundamentais. Outras tiveram de interromper seu processo de escolarização em razão da gravidez e do nascimento dos(as) filhos(as). O tempo da escola foi tomado pelos trabalhos de cuidado das crianças pequenas. Esse relato emerge nas narrativas daquelas mulheres com filhos(as) já adultos(as) assim como na das mulheres mais jovens sujeitas da pesquisa, como bloqueio para a continuidade dos estudos e da qualificação profissional. A existência desse relato na narrativa de mulheres de diferentes gerações indica a permanência da divisão sexual do trabalho e, sobretudo, a permanência do trabalho reprodutivo como uma jornada vivida pelas mulheres e que, em diversos momentos da vida e no cotidiano, coloca-se em antagonismo com suas trajetórias de estudo e também de trabalho remunerado, como se poderá constatar nas análises do próximo capítulo. Indicam, ainda, a permanência de um déficit de equipamentos sociais voltados para apoiar a reprodução social, especialmente no contexto em que vivem essas mulheres. Um forte sentido de importância do trabalho remunerado apontado nas narrativas é a necessidade de garantir a sustentação dos(as) filhos(as), sua permanência na escola e o avanço nos estudos. As mulheres inseridas no trabalho nas cooperativas não relatam, de maneira geral, nenhum acesso a qualificação profissional e apontam esse déficit de qualificação e escolarização como razão para o não acesso a postos de trabalho nas empresas, antes e hoje. Elas se referem a um processo de qualificação advindo da própria prática de trabalho remunerado e a um processo de aprendizagem profissional que se dá no exercício das próprias atividades. “Não tive oportunidade pra estudar, que na época era muito difícil a gente ir pra uma escola... Aí eu passei um pouco a minha vida assim, entendeu? Então por isso que eu falei que eu tô feliz de tá trabalhando lá porque... quando eu era mais nova, meu pai e minha mãe sempre trabalharam em negóço de roça aí... Às vezes eu ia pra escola, queria um lápis, uma caneta, eles não tinham pra me dá... Eu entendia eles, eu sempre falo pra minhas filha hoje: ‘Vocês tem o que vocês querem, eu não tive isso’. Falei: ‘Olha, eu quero que vocês estude, que vocês aprenda o que eu não aprendi’. Eu aprendi muito pôco, mas aprendi... Falei pra ela: ‘Mas se depender de mim, eu quero ver um dia vocês formada, trabalhando, num serviço melhor’. Minha filha mais velha tá fazendo segundo ano já... porém não é fácil. Quando nós crescemo, a gente não tivemo a oportunidade de estudar que hoje em dia eles têm, né? Hoje é tudo mais fácil, olhe, o ônibus passa aqui, a gente morava pr’ali, a gente ia de bicicleta pra escola, às vezes chegava tudo molhado... Mas hoje em dia só não aprende quem não quer mesmo, né? Sempre tô falando isso pra ela.” “Eu venho trabalhando porque antigamente num era exigido se você entrasse numa empresa como é exigido hoje em dia. Estudo, ter segundo grau, ter tudo, não. Bastava você fazê o nome, naquele tempo era primário, né? Fazê o nome e lê, como eu fiz, o teste era só isso e muitas perguntas. Agora não. Você 80 tem mais dificuldade de ingressar numa empresa, que você vai Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras ter que ter o curso. Faz curso disso, né? Curso de computação, né? Computacão, isso mesmo. E eu num tenho nada disso aí. De lá mesmo eu já vim do serviço braçal mesmo, trabalhando pesado...” “Olha, eu não sou, eu não tenho nenhuma profissão. Não tenho curso de nada, mas, vamos supor assim, se me derem alguma coisa, eu posso aprender.” “Parei de estudar por causa dos filhos. Aí eu parei na sétima série. Até hoje até eles me cobram: ‘Mãe, como é que você parou de estudá? pra senhora terminá seus estudo, né?’. Mas eu acho que com a idade que eu tô eu já num quero mais. Mas as pessoa me dão conselho, mas nunca é tarde pra desistir, né? Aí eu penso, tô pensando até hoje que quero continuar.” “A minha formação... o que eu sei fazê, digamos assim? Bom, eu sei custurar, já custurei várias vêze, já tive restorante, já trabalhei em restorante e... mas, profissão é essa daqui mermo, de profissão mesmo, como se diz que a gente tem, eu num tive nenhuma.” “Parei de estudar quando começou um relacionamento e engravidei. Quando eu me meti com ele, eu ainda era nova, ainda era muito nova. Aí veio logo a gravidez, eu num me cuidei, aí veio a primeira filha, que é essa minha mais velha. Aí depois eu fiquei pensando: como é que eu vou estudá e cuidá de uma criança ao mesmo tempo?” “Tento investir nos meus filho, e invisto, tô investindo neles, que o investimento que eu faço neles quando eu tiver com uma certa idade eu acredito que eles vão fazê alguma coisa por mim. porque se num fosse, sem o estudo a gente tem um pouco de dificuldade, né?” “Eu entendo de classificação. Eu aprendi conforme o tempo, trabalhando, né? Eu entrei como passadeira, aprendi a passá direitinho, aí depois me colocaram pra ser classificadora, aprendi também, aí aprendi a classificá roupa limpa ali, que tem a roupa suja que classifica e tem a roupa limpa. Eu aprendi a classifcá roupa limpa.” As narrativas indindicam períodos de desemprego nos quais as trabalhadoras mobilizaram diversas formas para manter alguma renda, sobretudo recorrendo a pequenos serviços como vendas, na informalidade. Esses períodos são narrados como momentos de muitas dificuldades e angústia, geradas pela insegurança e pela dependência econômica. “Olha, todo dia a gente vê isso, vê uma queixa de alguém, às vezes até de um bom profissional, mas que tá desempregado por conta de alguma coisa... É, durante um ano todo que eu passei desempregada, digamos assim mesmo, então eu busquei outras fontes de tá me mantendo com a minha família que hoje são os meus filhos, então eu busquei fazê alguma venda, eu coloquei alguma venda aqui em casa mesmo, pra tá entrando 81 algum ganho, pra minhas crianças elas não sentirem o padrão Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica baixar, né? Então eu fiquei muito preocupada com isso, de onde eu podia dar, e eu busquei outras formas de vender cosmético e lingerie, de certa forma tá trabalhando... Mas eu sei que nem todo mundo é dinâmico assim, e quando a pessoa não tem essa disponibilidade, o sofrimento vem... porque começa as dificuldade... É complicado, você pede um dia, tudo bem, mas a partir do segundo dia que você vai pedir já fica complicado. Então eu nem vou falar de outras pessoas, é de mim mermo, o que eu senti quando tava desempregada, e o medo, a incerteza, a preocupação, isso daí vem tudo junto, né? A gente fica muito assim, é, impotente quando a gente tá desempregada, quando alguém que sempre trabalhou, que sempre se manteve, que eu sempre me manti com o fruto do meu trabalho desde os dezessete anos.” Vida reprodutiva e impactos nas trajetórias de trabalho As mulheres que integraram o universo da pesquisa qualitativa realizada em Barcarena são, em sua maioria, solteiras, com um número inexpressivo vivendo em situação de conjugalidade. Grande parte delas relatam terem vivido relações conjugais, algumas iniciadas ainda na adolescência, e que em sua maioria são consideradas como experiências de opressão, dependência econômica e, em algumas situações, de violência doméstica. Essas mulheres são, em sua maioria, mães de, no máximo, três filhos. As narrativas sobre as trajetórias de vida são atravessadas pelas tensões entre trabalho produtivo e reprodutivo e pelos acontecimentos que marcaram sua vida reprodutiva, que se inicia ainda muito cedo para parte significativa das sujeitas da pesquisa. A experiência da maternidade vivida na adolescência foi um fator determinante na trajetória das mulheres como um momento de sujeição e dependência nas relações conjugais com homens, para cuja superação a busca por um trabalho remunerado foi a estratégia fundamental. Entre as mais idosas, há relatos de perda de filhos recém-nascidos ou na primeira infância, situação que marcava o cotidiano das famílias mais pauperizadas no país, nos anos 1980, quando os patamares de mortalidade infantil eram altíssimos. “O momento difícil foi quando eu não trabalhava, né?, que eu não tive trabalho, eu dependia de os ôtro me darem as coisa. Isso aí foi de uma época muito difícil pra mim... Na época que eu morava em Castanhal, foi a época mais difícil pra mim, porque eu não trabalhava, eu tinha dois filhos.” “Quando o rapaz chega, promete mundos e fundos. Eu tinha doze anos, né? E me prometeu alugar uma casa pra mim, né? E aí eu fui morar com ele, fui morar com ele, aí com doze anos eu já engravidei, doze pra treze anos eu engravidei dele, minha primeira filha. Hoje em dia ela teria vinte oito anos, a minha primeira filha, né? E engravidei muito nova, e aí tive essa filha. Infelizmente num foi da vontade de Deus, Deus levou ela, né? E aí foi que eu disse que pra casa da minha mãe eu não voltaria, não voltaria.” No contexto marcado por uma situação de pauperismo e de desigualdade e dominação patriarcal nas relações conjugais, a necessidade de “doar os filhos” recém- nascidos ou pequenos para outras famílias ou para familiares em melhores condições de os criarem aparece nas narrativas de algumas mulheres como um marco na sua trajetória de vida reprodutiva. Entre elas, encontramos mães que narram terem “entregado” filhos 82 para outras famílias com melhores condições, assim como filhas que foram “dadas” por Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras suas mães e pais a outros familiares, residentes na capital do estado, para que tivessem acesso à educação. Essa experiência irá conformar, no caso dessas últimas, uma situação de exploração no trabalho reprodutivo no cuidado das crianças desses familiares. Para essas mulheres, essa foi a primeira experiência de migração, ainda crianças. No caso de uma delas, foi uma experiência marcada pelo bloqueio da possibilidade de escolarização e violência sexual. “Que a gente batalha todo dia pelo nosso sustento, né? Então a mãe colocava uns na casa duns, uns na casa doutros, né? E eu, eu assim, quando chegou na minha vez assim, eu era uma filha, assim, que ela vivia dando, dando pra uma irmã, dando pra outra, pra tomar conta dos filhos das irmãs, né? Então até que, que chegou uma hora que ela me deu pra uma irmã minha que morava em Belém, e eu tinha o quê? Tinha uma faixa de sete anos, né? Fui morar em Belém com a minha irmã, essa minha irmã me prometeu estudo, né? Prometeu que quando eu voltasse de lá seria uma mulher formada, tudo, e a minha mãe acreditou, porque a minha irmã morava em Belém já há um certo tempo com uma família, tomava conta dos filhos dessa família, né? E minha mãe me deu pra essa minha irmã pra tomar conta do filho dessa minha irmã. Eu fui pra lá, e chegou lá a realidade era totalmente diferente, né? Uma realidade diferente, que a minha mãe, nem a minha mãe mesmo sabia o que minha irmã passava pra lá, né? Porque, assim, quando uma moça vai do interior pra cidade, ela é abusada pelos patrões, né? Então logo ela engravidou do patrão dela mesmo, teve um filho do patrão dela e o patrão montou casa, então, mas a minha mãe não sabia do que a minha irmã passava pra se formar, que ela foi pra se formar de enfermeira, né? E a minha mãe pensava que a minha irmã tinha mais condições do que ela. Só que quando chegou lá, num era isso não. A gente passando muita dificuldade, né? Até que eu vivi com essa minha irmã assim, dos sete anos até os onze, doze anos, por quê? Eu tinha um cunhado e esse cunhado, uma noite eu acordei e esse cunhado em cima de mim me estuprando. Então, naquele tempo, né?, era muito assim, a família, a minha mãe ela não aceitava que falasse nisso. A minha irmã me devolveu pra Barcarena, né?” “Quando eu tava grávida dele, devido à situação, eu dei ele... Pra você vê, tava com quatro meses, eu dei ele pro médico; aí o médico disse que eu, que menino, e quando eu tivesse menino, ele levava, né? Aí quando eu fui pra maternidade, fazê cesariana, justamente era o médico que tava lá, de plantão... aí ele fez meu cesáro, tudinho... Quando foi notro dia, ele foi comigo e disse assim: ‘O menino é meu’. Eu disse “Não! Eu não lhe dou o meu filho’. ‘Você não vai dá o menino?’. Eu disse: ‘Não’. ‘Mas o menino é meu, que você me deu’. Eu disse: “É, eu dei mas não dô mais... Ele disse: “É, tá bom, se você não deu, então tudo bem.” O apoio para o cuidado dos filhos pequenos emerge, nesse momento da trajetória, das redes de solidariedade de mulheres da família e da vizinhança. Em algumas situações, os filhos mais velhos cuidam dos menores. 83 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Olha, era assim, um cuidava do outro, né? Um cuidava do outro, e eu contava muito, assim, eu sou uma pessoa que eu peço muito ajuda, eu sou uma pessoa de pedir ajuda, de pedir socorro mesmo, sabe? Então eu tive pessoas que não eram da minha família que me ajudaram mais do que as pessoas da minha família mermo. Eu conversava com o meu filho mais velho, né? Olha, toma conta do teu irmão, sabe? E tive, graças a Deus, o apoio do meu filho mais velho tomando conta, um tomava conta do outro, né? Porque assim é que a gente faz, né? Quando a gente num pode pagar alguém, a gente conta muito com ajuda dos filhos, né? E eles me ajudaram muito, graças a Deus, né? Eu sempre fui uma mulher que eu saía de casa, até hoje eu sou assim... num tem hora pra voltar, sabe?” “Olha, é, assim, hoje em dia eu olho assim, pra trás, assim. Eu num tive assim uma infância, sabe? Que nem hoje em dia, eu busco dar pra minha filha assim, eu quero dar pra minha filha o que eu não tive, né? Vejam, minha casa é pequena, é humilde, não é minha casa, eu pago aqui, mas é minha casa porque a gente diz assim “Minha casa”, né? O casamento ou a decisão de viver com um homem aparece no relato de algumas trabalhadoras como a forma encontrada em um determinado momento de suas vidas de garantir a própria sobrevivência e a dos filhos, e diante da impossibilidade – seja pelas questões objetivas, seja por elas considerarem como uma espécie de impedimento moral – de voltar à casa dos pais ou mães. “Os vizinho me dizia assim pra mim: “Maria, fica com ele, ele tem uma casa, tu tá precisando, tá longe da tua família”. Aí eu fui... eu num gostava dele não... mas cê sabe que a necessidade às vezes faz a gente fazê coisas que a gente não quer, né?” O fato de assumirem a condição de “provedoras” de seus filhos, sem dependência de pais ou familiares, além de uma necessidade objetiva, revela um forte valor subjetivo, que indica, na percepção das mulheres, uma capacidade de autonomia na vida reprodutiva, sem, porém, a percepção da desigualdade que essa responsabilização solitária produz. A possibilidade de garantirem condições objetivas para a permanência na escola e o avanço nos estudos de seus filhos e filhas emergem como uma necessidade incontornável e como uma expressão de uma transferência para os/as filhos/as dos seus anseios de realização profissional que não se concretizaram e/ou não se mostram possíveis de ser concretizados nas suas próprias vidas profissionais. “Pra mim é muito importante porque, no caso, foi o meu primeiro trabalho, né? Foi em cooperativa, iniciei o meu trabalho e desse trabalho eu pude educá meus filhos. Hoje em dia eu tenho filha, meus filho todo grande, tenho três filhos. A minha mais velha, consegui pagá os estudo pra ela, né? Ela se formou o segundo grau completo e paguei, consegui pagá o curso pra ela com o trabalho na cooperativa, né?. E um outro filho também que trabalha, tem dezoito ano e trabalha viajando. E eu tenho só um caçula em casa comigo. Então pra mim é muito importante, né? Eu desse trabalho eu consegui minha casa junto com meu marido, e eu amo essas coisa que hoje em dia nós temo. Nós temos algumas coisas que é tudo fruto desse 84 trabalho, né? E pra mim é muito importante.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “A importância do trabalho na minha vida é muito importante, porque eu tive tenho meus quatro filho e num tive marido, né? E sempre trabalhei, desde os dezoito anos... Eu tive meu primeiro filho ia fazê vinte e um. Desde aí sempre trabalhei, sustentei sozinha, criei só eu, mas é muito importante trabalhar na vida da pessoa.” As narrativas sobre as trajetórias de trabalho revelam também as conquistas e aquisições que são marcos e estão profundamente ligadas ao fato de terem um trabalho remunerado, como também a importância que conferem a esse trabalho nas suas vidas e no seu processo de construção de autonomia. A aquisição da casa própria é, sem dúvida, a principal dessas conquistas, revelam as narrativas. Para além de uma melhoria nas condições de renda, dada pela saída do aluguel, e da segurança que a aquisição deste espaço lhes garante, a casa própria emerge, na percepção das sujeitas da pesquisa, como a materialização dos esforços mobilizados durante toda sua trajetória e como um espaço para a existência própria, onde podem tomar suas decisões e viver com maior autonomia. No caso de uma das mulheres, que vivia uma relação homoafetiva, trabalho remunerado e casa própria foram condições para que, na sua percepção, pudesse viver com liberdade e autonomia sua sexualidade. “Todo mundo lembra da minha história lá porque era assim uma casinha de madeira. A gente construiu, eu construí essa casa; era uma casa de madeira e quando chovia a gente tinha que colocar as coisas tudo em cima da mesa. Tudo em cima da mesa porque alagava todo o quintal, né? Mas a gente, era uma conquista, foi uma conquista pra gente porque a gente saiu do aluguel, né? Era uma conquista, e essa conquista foi graças a minha determinação e os dois empregos, né? Tinha dia que eu não dormia, eu vinha de um emprego pro outro, meus colegas viam que eu tava cansada mermo, mas eles viam minha vontade de crescer, de criar meus filhos, de ter alguma coisa, né? Olha, nessa época, deixa eu ver, eu tava com, eu tinha o quê? Eu tinha vinte e três anos.” “Eu sou uma mulher, não sei, igual as outra, né? Eu sou diferente, eu sou... como diz assim... relacionada com outra mulher... eu sou mulher, mas me relacionava com outra mulher, né? Inclusive ela é que é minha companheira... essa menina aí, que mora aqui... eu conheci ela aqui em Barcarena mermo. Ela é de Abaetetuba. Depois, ela começou a vir aqui, né? Çomeçou a vir aqui em casa, fomos nos conhecendo, aí eu disse assim: ‘Você que sabe. Se quiser, esse relacionamento, a gente fica aqui na minha casa’. E ela ficou. E mora aqui comigo.” Relações de trabalho e direitos: os fios invisíveis do trabalho produtivo Em Barcarena, as sujeitas da pesquisa foram mulheres trabalhadoras de duas cooperativas: uma dedicada a serviços agroflorestais e industriais, notadamente de lavanderia, a Coopsai; a segunda, dedicada a serviços especializados de pintura industrial. Não obstante, o núcleo de atividades central do universo da pesquisa em Barcarena foi conformado por trabalhadoras da cooperativa dedicada aos serviços de lavanderia e jardinagem, sediada em terreno situado fora do Polo Industrial e composta, majoritariamente, por mulheres. Trabalham na cooperativa homens e mulheres, mas a 85 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica composição majoritária é feminina. Embora atuem também na área de jardinagem, é a lavanderia a atividade forte da cooperativa, e é essa a atividade em que estão inseridas as sujeitas da pesquisa. A cooperativa possui um espaço próprio de trabalho onde as cooperadas realizam as atividades de higienização. Essa cooperativa presta serviços para a Albrás e a Alunorte, e eventualmente para outras empresas. As narrativas indicam que a análise das relações de trabalho, no caso das trabalhadoras de Barcarena, deve considerá-las em dois níveis, absolutamente imbricados: no nível da própria unidade produtiva, ou seja, no interior e na particularidade de uma cooperativa de prestação de serviços, que nos permite caracterizar se há algum nível de regulação do trabalho e os direitos concernidos ou não nesta forma de organização; o segundo nível, na relação entre a unidade produtiva e as empresas para as quais prestam serviço, que nos permitirá configurar qual a natureza das relações de trabalho estabelecidas entre as cooperativas e as empresas a quem prestam serviços. No que diz respeito à relação das cooperativas com as empresas do Polo Industrial, a quem prestam serviços, a cooperativa mantém contratos com as empresas. As narrativas informam, ainda que por vezes imprecisamente, que estes contratos estabelecem os valores e o volume de serviços a serem repassados para a cooperativa, regras relativas ao processo de trabalho – como, por exemplo, uso dos Equipamentos de Proteção Individual – EPIs – e realização diária dos Diálogos sobre Segurança – DDS – e valores firmados de pagamento. A relação de algumas cooperadas com as empresas, conforme vimos ao analisar as trajetórias no trabalho remunerado, é anterior à sua entrada na cooperativa, à qual chegaram, em alguns casos, pela indicação da própria empresa. Neste momento, esta relação assume a forma de uma relação com a cooperativa em que trabalham, a Coopsai. “Contrato? É, quando a gente entra realmente a gente tem que assinar umas cláusulas, umas normas, né? Isso daí eles falam que é contrato também. Por exemplo, é normal de toda empresa ter as normas, ter as leis, né?, que a gente não pode fazer certas coisa, não é permitido fazer certas coisa porque aqui a gente tá num local de trabalho; por exemplo, aqui a gente tem que usar os EPIs, isso é uma norma e tem que obedecer, porque é pra nossa segurança, né?” “Da lavanderia, nós temos contrato com duas empresas grandes aqui do Polo Industrial, né? Aí, por meio desse contrato, que eu tô incluída no contrato, entendeu?” “É desse da cooperativa, né?, que nós trabalhamos, prestando serviço pr’aí pra AluNorte, Albrás e outras impreitêra... que é na lavagem dessas de rôpa, né?, peças de rôpa, no caso, nós vendemo nosso serviço, né? E é esse o nosso ramo aqui.” As sujeitas da pesquisa em Barcarena definem-se como sócias, cooperadas e, muito frequentemente, como “donas” da cooperativa. Como integrantes de uma cooperativa de prestação de serviços, têm suas relações de trabalho regidas pela nova lei das cooperativas de trabalho, promulgada em 2012 (Lei 12.690/2012). Essa legislação estabelece e regula direitos estabelecidos no capítulo 7º da Constituição Federal e 86 assegura os seguintes direitos à trabalhadora de cooperativas: Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário mínimo, calculadas de forma proporcional às horas trabalhadas ou às atividades desenvolvidas; duração do trabalho normal não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, exceto quando a atividade, por sua natureza, demandar a prestação de trabalho por meio de plantões ou escalas, facultada a compensação de horários; repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; repouso anual remunerado; retirada para o trabalho noturno superior à do diurno; adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas; seguro acidente de trabalho. (OCB, 2013) Nas narrativas, as sujeitas da pesquisa informam que para se tornarem sócias da cooperativa quitaram uma “cota-parte”, que consiste, segundo os relatos, no pagamento de um salário mínimo vigente no momento da entrada. Além disso, elas contribuem mensalmente com a manutenção da cooperativa. O pagamento da “cota-parte” lhes confere o estatuto de “sócia” que lhes assegura formalmente, além dos direitos acima mencionados, a participação no fundo capital da cooperativa, que é mantido por contribuições mensais descontadas diretamente do seu salário. Caso se desvinculem da cooperativa, podem aceder à parte proporcional deste fundo. “Eles falaram assim que a gente tem o direito na cota- parte. A cota- parte quando a gente entra é um salário que a gente paga, né? Quando a gente sai, a gente tem o direito de receber esse salário que a gente pagou, né? E o fundo capital, que agora eu num sei bem quanto é por mês, que antes era setenta, sessenta reais por mês que era tirado de cada pessoa por mês, era mensal. Aí vai, a pessoa ficou muito tempo, vai dar uma somatória; se ficou dez anos, vai dar aquela somatória do tempo que a pessoa ficou até o final. Quando saiu aí tem que entregar, mas só que às vezes a pessoa sai e não recebe o dinheiro desse fundo capital.” Do ponto de vista interno, as relações de trabalho no cooperativismo são reguladas pela legislação acima citada. No caso da cooperativa de trabalho em que estão inseridas as trabalhadoras sujeitas desta pesquisa, os principais elementos que configuram esta relação estão analisados abaixo. Vale ressaltar que todos estes elementos caracterizam a subsunção do trabalho das cooperadas às empresas contratantes de seus serviços, no caso, a Albrás e a Alunorte, como poderemos identificar a partir das narrativas sobre remuneração e formas de pagamento, direitos do trabalho, relações de poder no trabalho e organização e gestão do processo de trabalho no interior das cooperativas. Renda mensal e formas de pagamento Nas cooperativas de prestação de serviço, em Barcarena, segundo o relato das sujeitas da pesquisa, a renda mensal de cada uma é definida pela razão entre o resultado da produção coletiva total da cooperativa e a produção individual. O resultado da produção coletiva é o número de peças higienizadas que, em geral, é definido pelas 87 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica empresas quando destinam um determinado volume de material para a cooperativa, que deve ser higienizado em determinado período de tempo. Há um contrato de prestação de serviço estabelecido entre a cooperativa e as empresas que define que o pagamento é feito a partir do cumprimento do serviço na sua totalidade. O salário de cada trabalhadora é definido com base na hora-produção. O valor da hora-produção é dado pela partilha da renda total paga pela empresa à cooperativa e, por sua vez, pela divisão entre o valor total da produção pelas 44 horas semanais trabalhadas por cada cooperada. Do valor total auferido, são subtraídos os custos de infraestrutura e manutenção, pagamentos do setor administrativo e contribuições sociais e trabalhistas. Assim, o valor da hora de trabalho pode variar em função do resultado total da produção coletiva. No entanto, são remuneradas pela jornada estabelecida de 44 horas mensais, ainda que tenham de fazer “horas extras” para garantir a produção total estabelecida e o cumprimento do contrato. O volume de serviço pode variar, assim como pode ser prejudicado em decorrência de incidentes, como quebra de maquinário, o que irá repercutir na variação da renda, identificada pelas trabalhadoras que participaram da pesquisa. O que se apreende dos relatos das sujeitas da pesquisa é que o elemento constante de garantia de melhores patamares de renda para essas trabalhadoras é a intensificação de seus ritmos e jornadas de trabalho. Do que dependem também, como veremos adiante, os direitos assegurados nesta relação de trabalho. Vale ressaltar que pela legislação que rege as cooperativas de trabalho, o salário é definido como uma “retirada”, definida como “a remuneração do sócio por sua produção no exercício de suas atividades laborais exercidas por meio da cooperativa” (OCB, 2013). No entanto, nenhuma das sujeitas da pesquisa refere-se a esse termo para definir sua remuneração. Elas relatam de maneira vaga como é feito o cálculo do salário individual, assim como dos descontos efetuados e o modo como alguns dos seus direitos trabalhistas fundamentais são assegurados, sobretudo no que diz respeito à cobertura previdenciária. De uma maneira geral, prevalece um desconhecimento da categoria em que estão inseridas. Relatam que os descontos mensais são feitos de seu “salário”. “Antigamente nós sabíamos as datas; agora mudou todo o processo desse novo contrato, né?, mudou o processo, porque antigamente nós recebíamos dia quinze, depois vinte. Agora a gente num tem mais data pra receber; aí dificulta, porque a gente tem dívida no banco, tem dívida em loja, aí se torna difícil essa parte pra gente né? Uma cooperativa tira assim o que é do escritório, que a gente mantém o escritório, que é o núcleo técnico, tira assim as despesas, os discontos das coisas é por lei que é descontado. Aí a sobra que a gente fala é que vai dividir entre nós. Aí quem ganha mais é mais, quem ganha menos é menos, pra divisão, né? Aí quando a despesa é muita, a gente faz tudo pra não ter muito essa despesa, mas num tem como numa lavanderia num ter despesa: tem despesa de saco, despesa de sabão, amaciante, gráfica, entendeu? É, papelaria, tudo nós temos despesa aqui.” “... até abaixo de quatrocentos, quinhentos, seiscentos, setecentos. Esse mês retrasado, deu mil e tanto pra cada um, mas eles fizeram uma embolada lá, que eu não sei quanto é que vai ficar esse mês. Esse mês eu acho que num vai dá não.” “Eu sou passadeira. Aqui nós trabalha na produção. Hora produção. Não tem dia certo atualmente.” 88 “A gente produz pra receber no final do mês, e tá entrando Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras num processo que a gente vai receber por hora, né? Mas só que ainda não ficou certo quanto é que vale a nossa hora de trabalho, que ainda tão estipulando lá pra ver quanto é... Varia, varia muito. Teve uma vez que a gente ficou três meses sem receber. O valor varia muito... Vamos dizer que eu recebi no mês oitocentos, no outro eu recebi, é, quatrocentos, aí trezentos e cinquenta. Varia muito... Porque eles dizem que a despesa aumenta, né?: sabão, saco plástico, energia.” “Logo no início que eu vim pra cá, em 2004, eu considerava uma renda boa, é, porque a gente tinha assim uns descontos, porque tem uns descontos, né? A gente paga décimo terceiro, que é abono natalino, é descontado, abono natalino, INSS, e fundo capital. A gente é descontado tudinho; Vamo dizer que eu receba mil e trezentos reais; desses mil e trezentos reais é tirado todinho esses valores; aí quando chega lá no resultado final, dá uns quatrocentos reais por mês, vamos dizer assim...” As narrativas sobre os direitos e remuneração revelam um grande nível de desconhecimento por parte das trabalhadoras sobre os mecanismos que regem a cooperativa, que definem seus salários, as despesas gerais e, ainda, como são estabelecidos os contratos com as empresas. Segundo os relatos, todas essas definições são tomadas no nível da coordenação, o que revela uma estrutura vertical e hierarquizada. Os contratos com as empresas também são negociados diretamente pela coordenação e pela área administrativa da cooperativa, que mantém uma relação permanente de troca de informações com as empresas. Predominam relatos sobre a crescente irregularidade nos dias de pagamento e na própria renda, mas elas não sabem explicar o porquê dessa situação. Entre algumas cooperadas, há a percepção de que a renda vem sofrendo queda, o que impacta diretamente na capacidade de planejarem sua vida financeira e emerge como um fator de instabilidade da sua condição de trabalho que afeta diretamente as possibilidades de elas manterem uma autonomia econômica sustentada. A impossibilidade de planejar as despesas é uma fonte permanente de insegurança e instabilidade entre as mulheres trabalhadoras na “linha de produção” das cooperativas. A renda média mensal apontada pelas trabalhadoras, no momento da pesquisa, variava entre R$ 600,00 e R$ 800,00 (o salário mínimo nacional vigente era de R$ 724,00 no momento de realização da pesquisa). Uma delas relata que chegou a perceber, em determinado mês, R$ 400,00. Pelas informações das sujeitas da pesquisa, o salário mensal chega, em alguns momentos, a não alcançar o patamar do salário mínimo que, pela legislação que rege as cooperativas, deve ser assegurado às trabalhadoras. Os relatos apontam que a renda também se reduz em razão de descontos pelos “adiantamentos” feitos pela cooperativa às trabalhadoras, na forma de vales de compra que são aceitos por estabelecimentos locais. As narrativas apontam para a existência de um sistema de crédito local, estabelecido entre as cooperativas e o comércio, que remonta como prática aos antigos sistemas de barracões comuns nas fazendas e que se constituíam em fatores de dependência e subordinação de trabalhadores e trabalhadoras ao(à) empregador(a). Poucas mulheres manifestam uma percepção crítica sobre o salário que auferem mensalmente e o consideram injusto diante das jornadas, do ritmo de trabalho e da produção gerada pela cooperativa. Essas trabalhadoras, em que pese afirmarem que são as “donas” da unidade produtiva, estão alienadas dos processos que definem sua renda, não tendo condições de projetar ou estimar as rendas que irão auferir ao final de cada mês, definições essas que são tomadas no setor administrativo e na coordenação da cooperativa, em diálogo com as empresas contratantes. Estes relatos apontam que 89 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica um dos princípios fundamentais do cooperativismo, a “autogestão”, não é vivenciado no cotidiano de trabalho das mulheres, que não se referem a nenhum tipo de tomada de decisão sobre os processos de trabalho ou de conhecimento sobre as decisões tomadas. A autonomia sobre a renda e a possibilidade de tomar definições são limitadas devido à situação desigual e subordinada que vivenciam na hierarquia da cooperativa. O desconhecimento do valor total gerado e da sua renda mensal pode ser considerado como uma expressão da alienação do trabalho das mulheres nessas cooperativas de prestação de serviço. “Um salário mínimo... que eles colocam que a gente não pode ganhar menos que um salário mínimo. Então eles fazem uma média de salário mínimo pra gente. Acho péssimo, porque a gente trabalha muito ali e não ganha. Não é o que a gente espera, eles não dão valor ao trabalho da gente. O dinheiro tem, que entra muito ali.” “Acho que devia melhorar mais, né?, pelo esforço que a gente tem, pelo trabalho que a gente tem aqui dentro, é pouco.” “Muito pouco, muito, injusto.” As narrativas revelam que a irregularidade acaba por repercutir e acirrar a redução da renda das trabalhadoras, na medida em que os atrasos nos pagamentos levam a que paguem juros de prestações no comércio e empréstimos bancários, situação relatada por parte significativa das sujeitas da pesquisa. Em algumas narrativas, a aquisição de bens por meio do crédito é uma forma de as trabalhadoras garantirem a melhoria das condições de habitação e, inclusive, os meios para o deslocamento ao trabalho (especialmente a aquisição de motocicletas). Há um duplo movimento de redução dos rendimentos das trabalhadoras: pela queda do valor das “retiradas” salariais mensais e pelo comprometimento dessa renda reduzida para pagamento de juros de dívidas contraídas em decorrência dos atrasos no calendário de pagamentos. Em que pese terem uma renda garantida, a irregularidade no montante e no dia de pagamento é um fator de instabilidade e uma condição precária de trabalho. As narrativas revelam que a melhoria de condições de vida e trabalho se dá pela mediação do endividamento, o que revela uma patente financeirização, que é expressão, no cotidiano, do padrão de acumulação movido pelo capital rentista. “... tem que falar a verdade, num é? Tem diminuído, né? Por quê?, num sei dizer pra você. Aí eu num sei, é só lá no administrativo. Num sei dizer. Dizem que dá conta, quando dá, tem muito acho que conta pra pagar. Esse mês passado deu onze mil de energia, deu menos, né? ... A gente fica assim na esperança, contando pro outro mês que venha melhor e melhor. A quantidade de roupa que vem aí esse lucro dá dividido, assim. Aí vai pra pagar despesa, tem energia que paga, tem sabão caro... Energia quando dá baixo um pouco, dá nove mil, sabe?” “Olha, pra nós aqui era pra ser mais, entendeu?, porque o que a gente faz aqui dentro, como eu te falei, de segunda a sábado, a renda daqui do nosso trabalho aqui tem vez que dá cento e quinze mil, cento e cinco mil; então era pra ser boa a nossa renda aqui, entendeu? Isso, todo mundo questiona isso, que a gente trabalha, aqui você num para, você chega às 90 seis e meia, é trabalhar mesmo, só para na hora de merendar, Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras ou almoçar, ou vim no banheiro, porque por data que a gente trabalha. Então... então a gente merecíamos ganhar realmente mais de mil reais, por causa dessa produção que dá aqui.” São as mulheres que, inseridas nas atividades de lavanderia, percebem os menores rendimentos. As narrativas apontam desigualdade salarial entre homens e mulheres na cooperativa, uma vez que as atividades em que os homens trabalham são mais valorizadas e percebem remunerações maiores, segundo o relato das sujeitas da pesquisa. Os mecanismos que sustentam a divisão sexual do trabalho – divisão e hierarquia (KERGOAT, 2010) – expressam-se de maneira concreta no trabalho na cooperativa e produzem desigualdade salarial entre homens e mulheres. A desigualdade salarial se expressa também entre as atividades de produção propriamente ditas e as funções administrativas, com valores de rendimento mensal indicados nestas últimas funções muito superiores aos das primeiras. “Existe... tem pessoas que tiram mais, otras menos, às vez até a gente reclama assim: ‘Poxa, eu trabalhei tanto tanto e recebi menos; a pessoa que falta recebe às vez mais do que quem trabalha’. Aí eu num entendo, é isso que eu num entendo às vez. Acontece muito lá, muita diferença assim... de salário.” Quando perguntadas sobre os direitos trabalhistas garantidos nessa relação de trabalho, as sujeitas da pesquisa referem-se basicamente ao direito a um salário mínimo, às férias e à previdência social. São direitos recentemente conquistados (pela legislação acima mencionada), e algumas mulheres, no momento da pesquisa, relataram que iriam vivenciar o direito a férias de 30 dias pela primeira vez deste a entrada na cooperativa. Em relação ao salário, conforme vimos antes ao analisar as formas de pagamento, os relatos apontam além das variações e algumas situações de pagamento de valores inferiores ao salário. Em relação à previdência social, de maneira geral elas desconhecem em que categoria são contribuintes, mas referem que os descontos correspondentes à contribuição mensal ao INSS são realizados todos os meses. Algumas delas afirmam que já tiveram acesso a benefícios previdenciários, especialmente licença maternidade e auxílio doença. Os relatos também evidenciam que as jornadas de trabalho, quando considerado o momento da chegada ao local de trabalho para a realização dos diálogos sobre segurança (DDS) exigidos pelas empresas contratantes, estendem-se para além das 44 horas semanais, como veremos no capítulo seguinte. “... porque ao longo de doze meses a gente tem que deixar lá aqueles valores que quando completa os doze meses tem que entregar pra cada operário que depositou, né? Tem INSS todo mês, valor que é retirado do salário. Todo mês tem que tirar aquela quantia. Já fiquei de licença pelo INSS, quando tive dengue, quando tive hepatite e quando tive tendinite.” “O nosso num é carteira assinada, né? Direito a FGTS num temos. Se eu me desligar da cooperativa, eu vou receber tudo que eu deixei lá, né?: minha cota-parte, o fundo capital, tudo isso vai de retorno pra mim quando eu sair, caso eu me desligar, né? Temos, agora a Dilma permitiu que as cooperativas que trabalham tivessem trinta dias de férias, que nós tirava só quinze, agora é trinta, por lei. Agora, esse ano de 2014 é trinta 91 dias. Eu vou tirar em outubro, mas a gente tirava só quinze.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Direito assim, acredito que eu tenho, que é o meu emprego, né? Como cooperativa, nós não temos vínculos empregatício; então tipo direito de FGTS, indenização, essas coisas não temos, quando saímos, né? Mas nós temos os direitos que são equiparados ao de uma empresa privada: o fundo natalino, o fundo de reserva pessoal, temos o FDA, que é o fundo de descanso anual, né? Que é como se fosse as férias, mas é um descanso que nós temos, não é férias, que férias é na empresa... Mas são equiparados ao da empresa, né?” “Hoje a lei, ela mudou do cooperativismo, né? Ano passado, então eu tenho o direito não é bem às férias, né?, é descanso remunerado, né?, que não é bem o FGTS, mas a gente fala fundo natalino... que é no final do ano, entendeu? A questão também da maternidade, né? Se eu tiver filho, eu tenho o direito de me ausentar, agora, acho que mudou a lei, que é cinco meses, num é? Temos os mesmo direito, só que quem banca esses direitos sou eu mesma, né? Que não é o empregador que banca todo mês; se eu quiser sair no final do ano, ter um descanso, ter umas férias, todo mês vem descontado uma porcentagem da pró-laboro, entendeu? Que é feito uma caixinha, um fundo, e quando eu for sair, no final do ano, de férias, aquele pedacinho que mês a mês foi descontado, eu vou receber... É um fundo... é dessa forma que funciona, que na CLT é a empresa que banca.” As narrativas das mulheres também se referem a direitos específicos assegurados pela particularidade da sua condição de associadas de uma cooperativa. Dentre estes direitos, referem-se ao abono natalino, uma espécie de bônus recebido ao final do ano, para o qual contribuem todo mês e formam um fundo coletivo que no final do ano é compartilhado entre elas. As trabalhadoras referem-se aos direitos que possuem na condição de associadas, muitas vezes, comparando-os àqueles a que teriam – ou que já tiveram – se inseridas em relações de trabalho com vínculo empregatício, regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Algumas das sujeitas da pesquisa referem-se a direitos que elas não possuem, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS. Essas narrativas indicam, em algum nível, uma percepção sobre a situação diferenciada que possuem em relação aos direitos trabalhistas ante os demais trabalhadores e trabalhadoras que possuem a carteira de trabalho assinada. “Veja bem, você trabalhando numa empresa de carteira assinada como eu já trabalhei, eu tenho duas carteira cheia. Então, eu acho muita diferença desde o tempo em que passei pra cá, porque tem diferença da carteira assinada. Por exemplo, você com a carteira assinada, você sabe que recebe uma quantia. Tem o seguro desemprego, tem PIS, PASEP, recebe do salário. Hoje em dia eu só tiro o juro do PIS. Por que num tô com a carteira assinada. É isso. Fundo de Garantia, tudo isso... é, a diferença é que tem. Por exemplo, eu tô dezoito ano nela, se eu saí, num sei, tem um fundo capital que a gente recebe, né? Fundo capital que deve tá mais ou menos assim. Teve uma menina que saiu aí, acho que foi três mil dela, o fundo capital. É tipo fundo de garantia... que a pessoa recebe.” 92 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Tenho direito ao INSS, contribuo. E a férias de 30 dias. Antes eram só 15 dias, agora mudou. Já tenho 28 anos de contribuição para o INSS.” “Já tivemos plano de saúde, agora não tem mais.” A subordinação às empresas do complexo, no caso da Coopsai, à Albrás, fica evidente nas narrativas que apontam que o próprio terreno e a sede onde funciona a cooperativa pertencem e estão sob a responsabilidade da empresa. Essa situação configura uma contradição, não evidenciada na narrativa das sujeitas, entre a percepção de si mesmas como trabalhadoras que são donas da cooperativa, uma vez que grande parte dos instrumentos de trabalho, incluindo-se aí o prédio, não lhes pertence, e já que não têm poder de decisão sobre o volume dos serviços, tendo em vista, ainda, que as próprias regras do processo de trabalho, por exemplo, em relação à segurança, são definidas pela Albrás. Esses evidentes elos com a empresa são transmutados em “fios invisíveis” pela mediação da ideologia do cooperativismo. Interessante notar que o conteúdo dos diálogos sobre segurança no trabalho e sua condução é de responsabilidade das próprias trabalhadoras, que se revezam na sua realização diariamente. Esta prática expressa um aspecto particularmente perverso da relação de trabalho estabelecida entre empresas contratantes e cooperativas: a combinação entre subordinação e transferência de responsabilidades para o/a trabalhador/a: o contratante se afirma ao mesmo tempo que se esconde, se impõe e se retira; retira-se se impondo. Eis o ardil. As trabalhadoras devem seguir um conjunto de exigências da empresa contratante, como, por exemplo, o DDS – Diálogo sobre Segurança no Trabalho. São, no entanto, as próprias trabalhadoras as responsáveis pelo “conteúdo do dia” e por parte significativa dos seus equipamentos de segurança, o que reforça uma visão dos acidentes como resultado da ação individual, apagando-se as condições de trabalho que as vulnerabilizam em situações insalubres e periculosas. As empresas operam uma “transferência de riscos para os trabalhadores” (Antunes, 2011), que passam a se sentir responsáveis pelos possíveis “infortúnios” que venham a sofrer no local de trabalho. A individualização ganha contornos extremos: da capacidade de empregar-se (empregabilidade) à de manter-se produtivo, saudável e vivo, a responsabilidade é da trabalhadora. São elas que estão em permanente débito com a empresa e consigo mesmas. Processo de trabalho individual e coletivo A finalidade do trabalho remunerado em que estão inseridas as mulheres na cooperativa em que realizamos a pesquisa é a higienização de uniformes e também de equipamentos de proteção individual (EPIs), como botas, capacetes e óculos de proteção, de funcionários das empresas Albrás e Alunorte. O processo de trabalho envolve cinco etapas, pelo que pudemos identificar nas narrativas das sujeitas da pesquisa e também na observação de campo realizadas pelas pesquisadoras, com visitas e descrição do processo de trabalho in loco. São elas: 1) descarga do material (uniformes e equipamentos); 2) triagem e preparação do material para lavagem; 3) lavagem, centrifugação e secagem; 4) “passação” e dobra; 5) classificação. As trabalhadoras que compuseram o universo da pesquisa estavam envolvidas nas etapas de triar, passar, dobrar e classificar. Pelas narrativas e registros da observação de campo, estas são as atividades realizadas pelas mulheres, majoritariamente, embora 93 alguns homens participem delas. As atividades de transporte, descarga e lavagem Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica das roupas são realizadas exclusivamente pelos homens que trabalham no interior da cooperativa. Algumas trabalhadoras relatam que o processo de trabalho teve início nas próprias empresas, a Albrás e a Alunorte, que conta com um setor chamado “rouparia”, onde são deixados os uniformes sujos que são ulteriormente transportados pela empresa até a cooperativa. Há um continuum na organização do processo de trabalho que liga cooperativa e empresa e que é expresso na percepção das próprias trabalhadoras. A tarefa de triagem corresponde a examinar as vestimentas e materiais, um a um, verificar se não existe nenhum objeto pessoal dos/as trabalhadores/as a quem pertencem, checar as peças recebidas com o que consta no rol (lista de peças, com número enviado e identificação), conferindo e registrando o número de peças efetivamente recebidas. Há, no entanto, uniformes diferenciados, que nas narrativas as sujeitas da pesquisa classificam como “leves, pesados e elétricos”. Estes uniformes são triados conforme o tipo, pois exigirão outro processo de lavagem, com produtos diferenciados. “... aí chega rôpa suja nesse saco grande branco e vem o rol, no caso rol é a listagi da rôpa, né? Aí consta lá, vamos supor, dois pares de roupa, numeração cento e treze, vamo supor cento e quatorze, aí eu teria que pegar o rol que é a lista da rôpa, vê se realmente aqui existe dois pares, consta aquela mesma numeração. Aí, se não constá, se outro for um for quatorze e outro for treze, eu tenho que colocar uma camisa trocada, ou uma calça trocada, aí separo, aí vem a rôpa suja, a mais suja, né? A mais pesada, leve, e a elétrica, nós não podemu misturar isso, por quê? Cada rôpa é um procedimento. A pesada você vai ter que acrescentar mais produto, a leve, menos produto né?, e a elétrica, por ser da elétrica, você tem que colocar outro tipo de produto. Então nós tem que ter.. tem que ter bastante atenção na hora de separar cada rôpa, e vê se realmente a quantidade de peça tá certa, porque se nós fazemo o trabalho errado, quando chega lá na classificação, que nós somo da triage, na classificação ela vai juntá toda essa rôpa que a gente fez aqui, aí se consta quatro, e se consta três, eu não observei, que veio, consta três, aí eu não observei: olha, não tem três, veio apenas duas. Quando chega lá pras menina formarem juntar essa rôpa toda, no caso, elas vão ter o maior trabalho, simplesmente por uma falta de atenção minha. Eu observei que não tinha três peças, e sim duas peça... É assim que é a separação.” A atividade de lavar as roupas consiste em colocá-las e retirá-las da máquina de lavar que existe no interior da cooperativa. As narrativas revelam que estas duas primeiras etapas são as que exigem maior cuidado, uma vez que os materiais chegam sujos ou, dito melhor, contaminados pelas substâncias a que estão expostos os trabalhadores das empresas. Em seguida, vem a atividade de passar a roupa e dobrá-las, que é feita com a utilização de ferros de passar e realizada em salas com mesas de madeira, nas quais as mulheres trabalham em pé, juntas, numa mesma sala. Os uniformes são dobrados e levados para classificação, que consiste em identificar cada peça com o registro do trabalhador e embalá-las para a devolução. Nessa atividade, utilizam como EPIs a farda e botas de borracha, que as protegem de possíveis descargas de energia elétrica. Conforme relato de pesquisadora na observação do local de trabalho, “a dinâmica do trabalho se assemelha (ou tem inspiração) fordista; as tarefas são divididas de modo que uma se sucede à outra, cada uma realizando uma parte do processo todo, com um diferencial de que algumas tinham consciência do processo todo, ou porque já o 94 fizeram, seja por causa do regime de produção, em que todas são convocadas a fazer as Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras outras tarefas também para dar conta do serviço todo” (Registro de Campo, Barcarena, 2013). Algumas narrativas explicitam uma síntese deste processo de trabalho, como podemos ver nos depoimentos a seguir: “Nosso trabalho, ele tem todo um processo, né? Desde o início que é lá na rouparia tanto da Albrás como da Alunorte. O início é lá na rouparia, das duas refinaria da Albrás e da Alunorte; então, as pessoas colocam lá essas roupa suja, né? Pra vim pra cá pra lavanderia, pra higienizar elas, e com isso tem que ter um motorista à disposição pra trazer também essas roupas, que a gente precisa de um motorista. Ele traz essas roupas, e o primeiro processo que é feito aqui na lavanderia é a separação dessas roupa suja, né?” “... aí depois da separação, né?, que é a classificação de roupa suja, vem pra lavagem, né?, pras máquina de lavar, que são dois operadores de máquina lá na máquina de lavar, e tem a centrífuga também, que essas duas pessoas que cuidam da lavagem e pra espremer essa roupa que é a centrifugação, né? Depois da centrifugação ela vai pra secagem; são duas pessoas também que têm que ficar lá na secagem. Termina esse processo, eles tem que arrumar e trazer pras menina passarem esses uniformes; e o último processo que eu vejo, que é a classificação de roupa limpa, que é esse que eu faço, que tem que colocar na embalagem pra ir de volta pro cliente pras duas refinarias Albrás e Alunorte; sendo que são cinco mil peças que sai por dia, né?, entre Albrás e Alunorte, juntando as duas dá cinco mil peças... diária.” “Eu trabalho na higienização, né? Então a gente cuida das peças que vêm. Se for camisa, tem que passar, camisa tem que passar, bota tem que lavar, botar pra, depende da natureza, né?, no sol pra secar. Tem que engraxar, higienizar primeiro, que é o álcool, né?, pra depois engraxar. Então a higienização é isso: tem óculos pra higienizar, tem parte que tem que lavar, então é assim, ó: o capacete tem que deixar de molho, tem que lavar o capacete com sabão de coco. Tudo isso é um processo assim aonde eu trabalho, que é o setor de higienização. As camisa cada uma tem que ir no saquinho com a numeração, o setor da pessoa de quem mandou. A camisa tem que ter todo esse cuidado pra num ir roupa trocada, nem nada.” No processo de higienização de botas, as etapas de trabalho são triagem, primeira higienização com álcool, lavagem com sabão de coco – os itens permanecem de molho – e classificação para devolução. O mesmo processo se dá com os óculos, conforme pudemos apreender das narrativas. As botas, por sua vez, são triadas, higienizadas com álcool e posteriormente engraxadas. As sujeitas da pesquisa, porém, trabalhavam sobretudo na higienização dos uniformes e, em sua maioria, na atividade de passar e dobrar as roupas. Os instrumentos de trabalho utilizados nas tarefas realizadas por elas são caneta e papel para registro na triagem e na classificação, e ferro de passar. Esses instrumentos são de propriedade da cooperativa. O processo de higienização dos uniformes é extremamente rigoroso e exige uma série de qualificações e cuidados para que os materiais não sejam danificados. A higienização dos uniformes acarreta a exposição das trabalhadoras da cooperativa a riscos de contaminação química e intoxicação. Isto revela uma face da precariedade da 95 Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica sua condição de trabalho: elas estão expostas, no processo de higienização, exatamente àquelas substâncias das quais os trabalhadores do Polo estão protegidos pela mediação desse instrumento. Estão inseridas no último elo da cadeia produtiva, lidando com os rejeitos da atividade final do Polo, que é a extração e beneficiamento de minerais. Embora disponham de EPIs para realizar suas tarefas, existem relatos de contaminação, adoecimento e processos alérgicos que parecem estar diretamente relacionados com a exposição a esses agentes. Aquelas que trabalham diretamente na triagem da roupa imediatamente após sua chegada às instalações da lavanderia são as que, no processo de trabalho, estão mais expostas ao risco de intoxicação e contaminação. O fato de ser uma tarefa associada ao trabalho doméstico parece, neste caso, contribuir para uma invisibilização do caráter insalubre e da periculosidade desta atividade: o que aparece nas narrativas como “roupa suja” é, na verdade, roupa contaminada. “E é as pessoa lá trás, elas tem um cuidado maior, né? Assim, por exemplo, tem que ter os EPIs, tem que usar os EPIs apropriado pra que eles não se contaminem, porque a gente sabe que a bauxita, ela tem um monte de produto como a soda cáustica, mas mesmo assim tem pessoas que têm alergia que pode dar problema. Aí tem que ter todo um cuidado também.” “A gente fica nessa parte lá de trás, né?, que é trabalho com rôpa suja, com a triagi. Mas quando as colega daqui da frente da passação precisam ou então se o nosso acabou, a gente vai apoiá elas; igualmente elas, se termina, elas vão apoiá. Então, tipo um apoia o outro.” As trabalhadoras informam que a definição das tarefas é realizada pelo coordenador da cooperativa. Algumas dessas trabalhadoras, inclusive aquelas que lá estão desde a sua fundação, já realizaram diferentes tarefas. Elas mencionam que há deslocamentos nas tarefas realizadas pelas mulheres, pois também realizam tarefas das outras, para agilizar o trabalho e como parte do processo de trabalho no cotidiano. “Meu trabalho é compartilhado. Às vezes eu pego aqui, a gente se ajuda; aí às vezes a gente, quando tá maneiro, aí as menina ajuda nós aqui. A dinâmica é como eu já falei: a gente recebe o produto, bota pra lavar, limpar, higienizar e depois pra ensacar. O último processo é passar, ensacar e entregar aos cliente. Tudo com qualidade, né? A entrega do cliente. Acho que isso aí cada um exerce uma função, mas quando tá precisando a gente se ajuda, um ajuda o outro.” “Mas a gente entende, já se divide, vai pra lá e tem vez mesmo que tem muito, tem pouca roupa pra gente passa, e a gente vai procurá ajudá a colega, a gente num vai ficá sentada esperando, né? Aí a gente já vai ajudá a colega, a gente sempre aprendeu assim, né?, porque eu sou uma pessoa assim, eu num sei ficá parada... Eu vou tentá ajudá, o que é melhó pra todos nós. Somo seis passaderas, nós vamo passá essas roupas, organizá tudinho, sem misturá aqueles montes. Aí traz pras classificadoras, né? Elas vão classificá, mas quando nós tamos precisando, quando tem pouca roupa lá na classificação, na passação, aí sai uma ou duas e vai ajudar a colega que tá com muito pra classificação... Porque tem que classificá com cuidado pra num misturá as roupa, né? Então a tarefa é assim: cada um tem a sua tarefa sim, mas se eu puder ajudá a colega que eu tô 96 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras vendo que ela tá precisando de uma força, aí a gente sai, uma ou duas, vai ajudar ela, né?” “Cada uma de nós, se for preciso fazer qualquer função aqui, a gente somo habilitada a fazer, porque cada uma de nós conhece cada parte, tipo assim a gente não chegou e ficou só no nosso canto. Quando nós chegamos aqui a gente fomos pra todas as áreas, que é pra justamente se um dia precisar, a gente saber de tudo um pouco.” Além de expressar uma solidariedade mútua que emerge no processo coletivo de trabalho no interior da cooperativa, a partilha ou apoio na tarefa das companheiras é mais ou menos acionada a depender do volume de produção imposto pelo contrato estabelecido com a empresa, do qual, por sua vez, dependerá o salário de todas. A partilha coletivizada da renda impõe a necessidade de um processo coletivo de produção, ainda que todas tenham atribuições e processos de trabalho individuais bem definidos. Os homens envolvidos nas atividades de lavanderia estão inseridos nas atividades de descarga dos fardos e em colocar e retirar a roupa da máquina de lavar e centrifugar, ou seja, de operar este equipamento, que parece ser a mais complexa tecnologia existente na cooperativa. A divisão do trabalho entre homens e mulheres revela a existência de uma divisão sexual das tarefas que se expressa na interdição dos deslocamentos, quando se trata das tarefas “consideradas masculinas”. Nas narrativas das sujeitas da pesquisa, aquelas tarefas realizadas majoritariamente pelas mulheres são referidas como atividades que podem ser também realizadas pelos homens; o contrário, não. “Olha, aqui nas máquina só com os homens mermo, porque é força mesmo que eles fazem pra tirar roupa da máquina, pra secagem ali, é a quentura, né? Então as mulher num vão lá não, só se precisar de ajuda assim na secagem, pra ajudar a gente a abrir as roupa e tudo mais. Aqui, na de lavar, é mais homem, porque é peso, são duzentas peça, é muito peso, só eles mermo.” “No caso, tem os meninos, né?, que trabalham na máquina de lavar, tem os menino que trabalha na máquina secar, tem o motorista, aí tem as classificadoras, e tem as passadeira.” “Existe. Aqui na lavanderia, existe. Porque eles trabalham mais pesado, tão secando e lavando na quentura também. Acho que porque eles trabalham em coisa de máquina no barulho. Porque tem duas mulher que trabalha lá pra trás, também trabalha no barulho, mas só que elas utilizam os protetores.” “Eu faço de tudo... sei fazê de tudo... aprendi fazê de tudo... Só ainda não fui pra máquina de lavar, mas já fui na secadora, já fui pra classificação de roupa suja, já fui pra classificação de roupa limpa, passar roupa, custurar, já fui pra Albrás, já fui pra Alunorte, já andei, já fiz... durante esse tempo tudinho.” “Existe, porque tem quem lava a rôpa na máquina, nós num vamo fazê, são eles que fazem, né? Máquina de secar, máquina de lavar, espremer, carregar, o motorista carrega a Kombi. São serviço pros homens, nós não vamos fazê, que fica pesado pra nós. Qual o trabalho das mulheres? É passar roupa, dobrar, carregá, varrer, limpar, que a gente faz isso... O serviço mais leve de carregar, carrega depois de passada.” 97 “Aqui, a diferença é que nós não mexemos com as máquina, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica que é a parte pesada, né? Então é os homens, então a diferença é só essa daí, tipo assim: nós ficamos com a parte mais leve, e eles fica com a pesada.” Quando perguntadas sobre a razão da divisão de tarefas entre homens e mulheres, as sujeitas da pesquisa afirmam que isto se deve a que o “trabalho pesado” é realizado pelos homens, enquanto as mulheres ficam com o “serviço mais leve”. O trabalho pesado, nas narrativas, é aquele que envolve o manuseio de muitas peças ao mesmo tempo, inclusive molhadas, para e desde o interior das máquinas. O que se apreende das narrativas é uma naturalização das tarefas realizadas por elas mesmas como “mais leves”, quando, na prática, por exemplo, manuseiam um ferro de passar extremamente pesado, por uma longa jornada diária, em pé, o que gera, conforme as narrativas sobre como se sentem após a jornada de trabalho, profunda exaustão. A organização do processo produtivo da cooperativa reproduz o que Hirata (2002) identificou em pesquisas nas fábricas de três países como uma divisão sexual do trabalho, em que as mulheres estão inseridas nas atividades de trabalho “intensivo”, no qual utilizam sobretudo a habilidade de seu próprio corpo, enquanto os homens estão inseridos nas atividades de trabalho “extensivo”, com a utilização de máquinas como força motriz (TABET, 2005). As narrativas expressam uma relação de cordialidade entre homens e mulheres no local de trabalho, sem registros de discriminação ou conflitos. Relações de poder no trabalho As narrativas das sujeitas da pesquisa inseridas na cooperativa de trabalho revelam uma contradição entre a inserção em uma forma de organização definida em seu ideário pela autonomia e a autogestão e as manifestações objetivas que desconhecem, pois não participam das definições tomadas em seu interior, o que revela uma dimensão que compromete a sua autonomia como trabalhadoras. Na cooperativa em que realizamos a pesquisa, as narrativas expressam decisões centralizadas na presidência, em diálogo com as empresas, e que se manifesta no domínio das definições sobre salário, gestão do capital da cooperativa e, consequentemente, dos salários, direitos e das atribuições no processo de trabalho. “Eu vim procurar ele, que eu ia fazer uma cirurgia, eu fiz uma cirurgia, um tratamento longo de três meses, de três anos, e ele disse que eu num tinha mais nada a ver com a cooperativa, que ele já tinha me tirado, né?, e eu num tinha mais nada a ver com a cooperativa.” Nas narrativas pudemos desvelar uma única situação que expressa uma organização coletiva no enfrentamento a uma decisão arbitrária tomada pelo coordenador, que se deu quando uma associada foi desligada e as demais questionaram a decisão em assembleia e o processo foi revertido. No entanto, os relatos sobre o cotidiano de trabalho expressam diferentes práticas de solidariedade entre as trabalhadoras, como as práticas de partilha da alimentação e do apoio mútuo na realização de tarefas entre elas, como vimos, ao analisarmos o processo de trabalho no interior da cooperativa. 98 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Toritama: trajetórias de vida entre costuras Em Toritama – PE, as sujeitas da pesquisa foram mulheres trabalhadoras com idade entre 16 e 48 anos, sendo a maioria delas mulheres jovens, com idade entre 32 e 38 anos, inseridas no trabalho remunerado nas confecções em facções e fabricos. Quase todas as mulheres sujeitas da pesquisa nasceram em Pernambuco, exceto duas que nasceram no estado vizinho de Alagoas. A maioria das sujeitas é migrante, oriundas de outros municípios próximos a Toritama, como Caruaru, Taquaritinga do Norte e Vertentes; ou em outros municípios pernambucanos não muito distantes de Toritama. A possibilidade de emprego foi o que motivou a maioria delas a residir em Toritama, sobretudo vindo da zona rural da própria cidade ou de cidades vizinhas para a área urbana onde estavam situados os fabricos e as facções em que poderiam exercer a atividade de costura. O universo significativo de sujeitas da pesquisa afirma possuir casa própria, que referem ter adquirido através de “muito trabalho”. “A casa é minha mesmo. Paguei onze anos de aluguel, que é a idade do meu menino mais velho.” “Moro em Toritama há dez anos. Morava num sítio. Saí de lá porque não tinha trabalho.” “Morei em São Paulo. Há dez anos moro em Toritama. Casei, fui pra São Paulo, onde morei onze anos. Voltei por causa do desemprego. Voltei pra Pernambuco, passei por Amaragi, Carpina, em busca de trabalho. Por meio de uma colega, conheci uma moça, fui morar na casa dela em Toritama. Meu marido foi com as crianças. Eu vim pra cá, eu me arrumei, arrumei serviço, comecei a trabalhar, depois eu batalhei, que casa é muito difícil de arrumar. Aí eu consegui arrumar uma casa e trouxe todo mundo.” “Me mudei por conta do serviço, que é a única coisa que eu sabia fazer era brincar na máquina, desde criança, e lá é muito pouco serviço de costura. Aí eu vim pra cá.” Um forte sentido que o trabalho adquire na trajetória é o de conquista de uma profissão, no caso das sujeitas da pesquisa em Toritama, a de costureira. A profissionalização na atividade de costura é relatada nas narrativas das sujeitas da pesquisa como um aprendizado que é parte da socialização no espaço doméstico, transmitida de mães para filhas, entre irmãs ou entre vizinhas. Algumas mulheres utilizam a expressão “brincar com a máquina” para se referir ao momento em que começaram a aprender a costurar. Esse aprendizado ocorreu, para grande parte delas, ainda na infância ou no início da adolescência, quando também se inicia, para a maioria, a trajetória no trabalho remunerado. O trabalho na costura emerge dos relatos como o primeiro emprego, por volta dos 13 anos de idade, para grande parte das sujeitas da pesquisa qualitativa realizada no município, atividade na qual se mantêm ainda hoje. “Porque assim, porque se eu num subesse costurar, ia fazer o quê? Ia ficar em casa sem ganhar nada, e hoje eu agradeço porque eu tenho minha profissão. Se eu num tivesse essa profissão, ia viver de quê? Só esperando pelo marido? Pá quando o marido quisé dá uma ropa, um calçado, tá pedindo a ele? Não. As mulé tem que trabalhar, tem que trabalhar, né? 99 As muleres. Ajudar o homi, o homi ajudar a mulé. Eu sou muito Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica feliz, que eu tenho minha profissão…” “Com doze anos minha mãe me ensinou a costurar, tá entendendo? Aí eu já fui trabalhando costurando. Primeiro emprego foi costurando, com 13 anos.” “Aprendi com minha mãe. Minha mãe era costureira, costurava pra fora roupa assim social, aí eu já costurava mais ela. Aí eu fui pra São Paulo, minha tia comprou as máquina. Lá eu também costurava pra ela, porque ela costurava lá pra os coreano no Bom Retiro em São Paulo, costurando, trabalhando com os japonês... Trabalhamo com roupa pra Aeronáutica também. Comecei a trabalhar criança, na agricultura, no sítio. Depois fui auxiliar de serviços gerais num restaurante. Depois, costura.” “Eu cheguei acompanhando minha irmã. Eu pequenininha, me interessei, ela costurando, achei bonito, aí comecei a brincar e gostei. E não me interessava por outra coisa, só pela costura. Estudando, mas não tinha nenhum plano de seguir uma profissão, só a costura. Trabalho na costura há oito anos. Sempre trabalhei na costura. Comecei com treze anos. Nessa facção tô há quatro anos.” “Comecei a costurar eu era muito pequena, acho que eu tinha uns doze anos, com a minha avó. Eu trabalhava com a minha avó pra ajudar já nas despesas de casa já. Aí fui aprendendo com ela.” Em uma das narrativas, a sujeita da pesquisa relata ter se tornado costureira ao “observar” as mulheres trabalhando na atividade na casa em que prestava serviços como empregada doméstica. É por meio dessa observação recíproca, de uma sociabilidade doméstica forjada, para a maioria, já na constância da presença de costureiras de gerações anteriores, que elas se tornam costureiras. O que se depreende das narrativas, como também da observação feita no trabalho de campo, é que há máquinas de costura, e mulheres costurando, em praticamente todas as casas que se convertem em verdadeiras unidades de produção-reprodução. Essa qualificação que se forja no espaço da socialização entre mulheres, no interior dos domicílios, explicita-se nas narrativas seguintes. Nas narrativas de outras sujeitas da pesquisa, é o emprego doméstico a primeira experiência de trabalho remunerado, na esfera reprodutiva. Quando as trajetórias no trabalho remunerado se iniciam no emprego doméstico, as narrativas mostram uma inserção ainda mais precoce, na infância, como no caso de uma das sujeitas da pesquisa que começou a trabalhar como empregada doméstica ainda criança, com sete anos de idade. Essa trabalhadora afirma ter aprendido a costurar na própria casa dos(as) empregadores(as), o que constituiu uma estratégia mobilizada por ela para inserir-se na atividade. “Aí foi o tempo que eu vim mim’bora. Chego aqui em Toritama, o emprego que tem é esse e em casa de famia. Em casa de famia eu num vô ser homilhada, que eu num sei fazer nada em casa de famia. Eu era muito pequena nesse tempo. Aí meu marido disse que pagava um curso pra eu aprender a costurar.” “Comecei a trabalhar com sete ano, como trabalhadora 100 doméstica, em duas casas. Eu comecei a costurar eu tinha treze anos, aí era na época que eu trabalhava em casa de Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras família. Sempre quando as mulher saía eu começava sentar na máquina, pedir pra ajudar... Aí depois comecei pedir a algumas vizinha pra me ensinar mais. E assim foi indo. Faz um ano que montei a facção. Mas passei quatro meses parada porque não tinha freguês nem costureira. No último serviço tinha carteira assinada.” “Meu primeiro emprego foi de empregada doméstica, com treze anos, depois foi quebrando fumo, e depois costureira. Nunca tive carteira assinada.” “Eu não sabia costurar não, eu limpava peça. Aí o pessoal disse: ‘Óia, aprende a costurar, que é melhor, ganha mais’. Aprendi com a menina ali, que mora lá na rua Caleiteira. Aprendi com ela.” “Melhorou, que eu morava no Recife, trabalhava em casa de família. Agora melhorou dez por cento, melhorou muito.” Algumas trabalhadoras migraram da atividade rural, do trabalho no roçado, para o trabalho como costureira. Suas trajetórias ilustram essa migração que caracterizou a reconfiguração produtiva e a dinâmica rural-urbano em Toritama. A inserção na atividade de costura foi uma forma de assegurar melhores rendimentos do que aqueles da agricultura e, na percepção delas, com menores níveis de intensidade no trabalho. Recorrer ao trabalho infantil, dos próprios filhos, foi também uma estratégia acionada para ampliar a produção e melhorar os rendimentos, situações que caracterizam o trabalho em domicílio pago por peça nas pequenas manufaturas. “Antes da costura, trabalhava na enxada. Eu gosto do meu serviço porque saí, bem dizer, da agricultura. Porque eu trabalhava, saía de cinco horas da manhã, mais meu esposo, nós chegava meio-dia, saía uma hora, chegava de noite, aí era muito ruim, no sol quente, no suor, tá doido! Trabalhei demais... Ia pro roçado, quando tinha peça eu não sabia... aprendi. Aí começou vindo umas pecinhas pra cá, foi trazendo, aí a gente foi trabalhar na rua, depois da rua vim pra aqui, aí fiquei. É, aí fui botando meus meninos na costura, porque não tinha outra, botar os bichinhos na agricultura pra não morrer de fome mesmo.” A maior parte das sujeitas de pesquisa iniciou sua trajetória de trabalho remunerado na costura. No decurso da trajetória no trabalho remunerado, em que pesem as mudanças na condição de inserção – para algumas, sempre em facções de outrem; outras, passando por firmas e fabricos; outras, ainda, tendo passado por facções como trabalhadoras e sendo hoje empregadoras e trabalhadoras –, o que permanece como fio condutor são relações de trabalho marcadas pela informalidade e desproteção social, com alguns interstícios de formalização. “E se você num sober costurar em Toritama, você num vevi não dentro de Toritama, não… Porque costurera ganha dinheiro, quem ganha dinheiro aqui é costurera…”. Algumas trabalhadoras montaram suas próprias facções, sozinhas ou, em geral, em parceria com companheiros, e no momento atual são trabalhadoras e empregadoras. O processo de se tornar uma trabalhadora-empregadora, dona de facção, implica adquirir 101 os meios de produção, notadamente as máquinas de costura, e na disponibilização Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica de um espaço, na própria casa, para organizar a unidade produtiva. O processo de aquisição das máquinas de costura, nas narrativas, deu-se por meio de recursos advindos de multas rescisórias delas ou dos companheiros, ou sendo as máquinas delas mesmas, doadas por ex-patrões no momento do encerramento do “vínculo”. A forma mais comum, no entanto, foi a da aquisição por meio do pagamento parcelado dos equipamentos. Nesse caso, o mais comum foi o relato de que adquiriram a máquina de costura por intermédio do próprio empregador, que utilizou seu crédito para comprá- las e a quem as trabalhadoras pagavam as prestações. O processo de adquirir a própria máquina, seja para trabalhar individualmente na própria casa prestando serviços a uma facção, seja para empregar outras mulheres, montando uma facção domiciliar e, na maioria das vezes, familiar, é uma forma de ampliar os rendimentos. Este mecanismo parece indicar que a passagem de trabalhadora a empregadora é um processo bastante comum nos arranjos produtivos e que não gera conflitos, dada a ampla disponibilidade de mão de obra a ser empregada no território e a grande demanda por serviços pelas empresas e marcas contratantes. Nos relatos, não encontramos elementos que configurem alguma disputa por trabalhadores(as) ou clientes (contratantes). “Eu trabalhava com outra pessoa, aí depois ele saiu da firma, aí tirou um dinheirinho, que ele trabalha fichado, o patrão dele pagou a ele, aí ele disse: ‘Eu já tô cansado de trabalhar pros outro, vamos botar uma facçãozinha pra gente?”. Aí meu irmão disse: “Eu arrumo uns freguês pra vocês fazer as peça”. Aí ele arrumô e aí gente comecemo. Na época ele fabricava, ele começou a botar serviço aqui pra gente, aí a gente comecemo, aí tá cum dois ano que a gente tá com essa facçãozinha. Já trabalhei em outras fábricas, mas nunca trabalhei fichada.” “Porque a gente já trabalhava junta, que passei quatro ano trabalhando em outro fabrico. E ela trabalhava mais eu junto. É, igual eu, costureira. Aí os dono do fabrico se separaro, aí ela pegou, butou, comprou uma máquina e butou a facção pra ela. Aí ela trouxe peça pra mim.” Montar a própria facção e “trabalhar para si mesma” emerge nas narrativas como um anseio perseguido por uma parte significativa das trabalhadoras que permanece ao longo das trajetórias e se configura como uma perspectiva que leva à extensão das suas jornadas de trabalho para garantir, pelos esforços individuais ou do núcleo familiar, um patamar de “acumulação primitiva”, nos termos de Marx, como veremos no capítulo sobre ritmos e jornadas e na análise sobre as relações de trabalho, mais adiante, neste mesmo capítulo. Trabalho remunerado e vida reprodutiva: uma contradição viva nas trajetórias das mulheres Em Toritama, parte substantiva das sujeitas da pesquisa são mães com filhos/as pequenos/as, de maneira que a tensão entre trabalho remunerado e vida reprodutiva pode ser apreendida na trajetória como também no momento atual (o que será explorado no capítulo sobre dinâmicas e ritmos de trabalho). A maior parte das sujeitas 102 da pesquisa já estava inserida no trabalho remunerado, a maioria delas na costura em firmas ou facções, no momento em que engravidaram. Mas também encontramos Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras relatos em que a gravidez motivou a busca de um trabalho remunerado, diante da falta de apoio de pais e mães e, também, em alguns casos, dos homens de quem engravidaram. “Moro faz quatorze anos em Toritama. Engravidei e fui morar em Toritama. A minha mãe num queria eu dentro de casa porque eu tava grávida. Ele engravidou eu e disse que não era filho dele. Eu vim atrás dele. Aqui eu fiz o curso de costureira e hoje eu costuro.” Nos relatos, afirmam que se mantiveram no trabalho produtivo até os momentos finais da gravidez, tendo interrompido o trabalho produtivo praticamente na véspera do momento de parir, em função da necessidade de garantir renda para suprir as necessidades e encargos materiais trazidos pela chegada dos bebês, e da manutenção nos breves períodos de afastamento do trabalho, vividos sem renda, já que a grande maioria se encontrava em situação de desproteção social e, portanto, sem acesso a direitos como a licença maternidade. Alguns relatos expressam uma intensificação dos ritmos de trabalho no período da gravidez para suprir as necessidades materiais. Os relatos referem-se ao período da gestação como marcado por uma intensificação do cansaço. Esta expressão de cansaço relatado nas narrativas das sujeitas da pesquisa é radicalmente particular da experiência das mulheres no mundo do trabalho. Podemos afirmar que a gravidez é o momento da trajetória em que os encargos da produção e da reprodução confluem e se expressam de maneira inextricável e irredutível na materialidade corpórea das trabalhadoras: nesse período, elas, e somente elas, são um corpo que a um só tempo produz e reproduz. No trabalho produtivo em que empregam grande esforço físico e no processo reprodutivo da gestação de um outro corpo. Na materialidade do corpo toma lugar essa síntese contraditória que tem como corolário o cansaço extremo. O cansaço, nesse período, ganha uma conotação única e uma condição singular só vivida pelas trabalhadoras. “Já fiquei grávida seis vez. Só num trabalhei no primeiro filho. Nos outros cinco trabalhei até os nove meses. Foi tudo normal.” “Já engravidei quatro vezes. Numa gravidez tava trabalhando. Trabalhei até o dia de parir. Não nasceu no metrô porque não era pra nascer normal... Me senti, eu me senti muito mal, porque eu era hipertensa, eu tinha problema. Eu fiquei muito inchada. Foi problema de saúde a gravidez todinha. Até na alimentação o médico tirou tudo que tinha sal, ele tirou quase tudo que tinha açúcar, eu não podia comer. Era assim, foi uma gravidez que foi pela misericórdia.” “Tenho um filho. Engravidei uma vez. Trabalhei até a semana de ter ele, eu não era fichada nesse tempo. Eu me sentia cansada, muito cansada, mas eu não conseguia parar. Eu tinha as coisas dele pra comprar. Ai eu trabalhei a semana e falei pro meu patrão: ‘Olha, sábado eu encerro, que é o dia do pagamento. Sábado eu não trabalho mais’. Aí foi quando eu viajei pra Vicência; na quinta-feira a médica me encaminhou e 103 na sexta eu já tive ele.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Eu trabalhei até uns oitos meses. Cansativo, os pés superinchado, mas pra poder eu comprar tudo que eu precisava, pagar, que eu num tenho – como é que diz? – ... plano de saúde, eu não tenho condição de pagar ainda plano de saúde pra nenhum deles, foi feito pelo SUS. Aí não pagava; então tive que trabalhar, porque o SUS ele é assim, ele deixa você morrer primeiro, pra poder ele lhe operar, entendeu? Então eu tive que trabalhar pra poder guardar o dinheiro da cirurgia dos meus dois filhos. Eu tive todos três cesariana, nenhum foi normal. Todos três foi pra o hospital, só que eu tive que pagar. Paguei. Paguei dos três, e foi em hospital municipal, do estado, né? Do estado e paguei... Foi em Vertente. Todos eu paguei.” “Aí é que eu trabalhava mais aindia. Só parava quando ia ter elas. Tinha que trabalhar, porque tinha que comprar fralda, tinha que comprar tudo. É, pagava aluguel, aí tinha que trabalhar mais. Que você pudesse ou que não pudesse, se tivesse doente você tinha que trabalhar, ou em fabrico ou em casa, tinha que trabalhar. Aí quando tinha, aí ficava uns dia em casa, um mês só. Aí voltava a trabalhar de novo. Quando eu tive esse, voltei a trabalhar tava c’os ponto ainda. Tinha que trabalhar. Tudo pequeninin. Graças a Deus não sentia nada.” O fato de a renda depender da manutenção em atividade fica claro em algumas narrativas nas experiências de retorno ao trabalho produtivo no período mesmo do puerpério. Além da condição precária de trabalho, o contexto de limites do acesso aos direitos sociais, como o direito à saúde, repercute nas trajetórias da vida reprodutiva na necessidade de se descolar para outros municípios, no momento do parto, ou mesmo de pagar pelo atendimento, em situações flagrantes de violação de direitos no interior do Sistema Único de Saúde – SUS. O déficit de direitos relacionados à reprodução social se expressa já no momento do parto e se manterá ao longo da trajetória, na ausência de equipamentos para cuidados dos filhos pequenos, situação que irá incidir diretamente nas trajetórias de trabalho produtivo como limitações e, em alguns casos, como fator que empurra as mulheres para a inserção mais precária, no caso de Toritama, no trabalho em domicílio nas facções ou como costureira autônoma prestando serviços a estas. Algumas sujeitas da pesquisa afirmam ter deixado de trabalhar remuneradamente quando os filhos e filhas eram pequenos(as), período no qual ficaram dependentes da renda dos(as) companheiros(as). “Eu trabalhava, mas cum sete mês eu num aguentei mais. Mas também não fiz questão, que nesse tempo num tinha esses negócios de fichamento, essas coisas. Aí era fabrico. Só que quando eu tava de resguardo, que meus mininu tudo foi cesária, aí quando eu fiquei de resguardo três mês, eles mandavam… Toda, toda semana eles mandava cinquenta, sessenta reais. Há quatorze anos atrás...” “Eu saí foi quando a minha filha nasceu, a primeira. Aí eu ia trabalhar, ela ficava com a minha mãe; aí ela não queria saber de mim, só queria saber da minha mãe, porque a minha mãe era que cuidava dela. Aí eu saí, minha primeira filha eu fiquei 104 com medo de perder ela pra minha mãe, resolvi trabalhar em Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras casa e saí da fábrica. Fui trabalhar em casa e cuidar dela.” “Tive três filhos. Trabalhei durante as gravidezes. Na primeira, tive licença maternidade, porque trabalhava com carteira assinada. Depois que eu tive ele, aí eu parei de ir pro fabrico porque eu não tinha com quem deixar, porque o trabalho que eu ganhava num dava pr’eu manter uma pessoa com ele, pra cuidar dos meus filho. Então eu tive que revezar com meu esposo”. “Que quando elas era pequena, elas dava menos trabalho; agora elas dá o dobro. Porque eu não posso tá em fabrico, tem que ficar em casa. Mesmo ganhando pouquinho, mas tenho que ficar em casa.” No caso de uma das trabalhadoras, a tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo e, especialmente, o cuidado dos filhos pequenos atuou como um bloqueio para sua permanência no trabalho formalizado e com direitos. Essa trabalhadora foi denunciada ao Conselho Tutelar, na sua percepção, pela vizinhança, pelo fato de deixar os filhos sozinhos em casa, durante parte do dia, para poder cumprir os horários do trabalho produtivo. A inserção em uma facção, no próprio domicílio e em condições precárias de trabalho, foi a forma de enfrentar o antagonismo entre trabalho produtivo e reprodutivo. Aqui fica patente como a ausência de políticas de amparo e apoio à reprodução social, especialmente os serviços de cuidado infantil, repercute nas trajetórias de trabalho, no acesso aos direitos, e emerge como um fator objetivo que empurra as mulheres para a precariedade no trabalho remunerado. Nessa narrativa emerge um aspecto frequentemente invisibilizado nas pesquisas que abordam esta questão, que são as redes de vigilância social que, claramente ancoradas numa visão conservadora, atuam como mecanismos de reprodução da divisão sexual do trabalho em prejuízo das mulheres. No caso dessa trabalhadora, a vizinhança e um mecanismo de Estado, o Conselho Tutelar. “Quando eu saí do curso eu fui direto pr’uma firma… que é máquina também, de costurera. Aí eu fui direto pra essa firma, aí eu passei cinco anos nessa firma costurando, aí me entragaro ao conselho tutelar, porque meus dois filhos tavam sozinhos, me entregaro. Aí eu fiz acordo com o meu patrão e saí da empresa, tá entendendo? Saí da empresa, aí agora eu tô nessa facção, uma facção assim, uma casinha pequena, com três máquina, quatro. Aí foi tudo que eu vim pr’aqui me entregaro o Conselho Tutelar. Eu morava no centro, pagava aluguel, ninguém nunca me entregou o Conselho Tutelar. Aí eu vim morar aqui, teve uma mulher i me entregaro o Conselho Tutelar… Aí eu tive de sair da empresa, porque na empresa é assim, se você entra de sete e meia tem de saí de doze hora, entra de uma e meia tem de sair de seis, eu num podia, porque se acontecesse qualquer coisa, como é que eu vô sair de lá pra resolver coisas com esses meninos? E numa facção tem como você sair, porque não é carteira fichada, carteira assinada, né?” Em alguns casos, levam as trabalhadoras a se inserir nos postos de menores rendimentos dentro da própria configuração informal, como no caso de uma trabalhadora que afirmou ter permanecido no trabalho em domicílio e não na sede do fabrico, onde 105 a possibilidade de rendimento seria maior, para cuidar dos(as) filhos(as) pequenos(as): Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Eu não posso trabalhar no fabrico na rua mode elas, as criança. Aí tenho que trabalhar em casa, porque eu num posso trabalhar no fabrico pra deixar elas o dia todo... aí elas estudam de manhã, de tarde tá mais eu. É uma facção onde eu trabalho. Ganho por peça. Sempre trabalhei pra facção sem carteira assinada. Passei sete anos trabalhando no fabrico, sem carteira assinada. Trabalho só pra essa pessoa. Ganho cerca de 300 a 400 reais por semana. Que assim, que tá trabalhando em casa num ganha muito. Agora, no fabrico você ganha mais, né? Mas em casa num ganha porque você fica esperando peça. Tem semana que tem e tem semana que não tem.” Estudos e qualificação profissional Entre as mulheres que compuseram o universo da pesquisa, grande parte delas ainda muito jovem, com vimos anteriormente, os níveis de escolarização são muito baixos. A grande maioria possui fundamental completo ou incompleto, e as trajetórias revelam interrupção dos estudos, que se forja como impedimento produzido pela imbricação entre as desigualdades de classe e de gênero. As trajetórias no trabalho produtivo, iniciadas ainda muito cedo para muitas, na infância e na adolescência, emergem das narrativas como o principal fator desmobilizador. As trabalhadoras que abandonaram os estudos, e mesmo aquelas que ainda se referem ao desejo de retomar o seu processo de escolarização, expressam uma visão de impossibilidade de concretização em função das exigências de tempo do trabalho produtivo. Na percepção dessas mulheres, há um antagonismo de difícil superação entre tempo do trabalho produtivo e tempo para escolarização, estudo ou qualificação. Parte das sujeitas da pesquisa também menciona a interrupção dos estudos diante do impedimento expresso de homens da família, como pais, ou da falta de suporte de companheiros; a vivência do casamento é também narrada como um momento de interdição à continuidade dos estudos, o que implica um bloqueio – que na trajetória delas não se reverte em conflito – produzido pelas relações de apropriação (GUILLAUMIN, 2005). O nascimento dos filhos e as consequências que levam a uma conformação do tempo da vida para responder às exigências do trabalho reprodutivo e do trabalho produtivo também são narradas como um fator objetivo que repercute na interrupção dos estudos, como se vê nos depoimentos abaixo. “Porque na época eu morava no sítio, lá só tinha até a quarta série. Aí tinha a oportunidade de vim estudar aqui em Toritama ou em Vertentes, mas só que o meu pai num deixou. Eu tinha treze, quatorze anos, num lembro, e ele num deixou eu vir estudar. Aí depois, quando eu vim pra cá podia até ter voltado a estudar, mas só que eu tinha que trabalhar também. E na época o pessoal num dava a oportunidade que dá hoje; na época a pessoa escolhia, ou trabalho, porque tinha que fazer serão, ou estudo. Aí tinha que escolher. Atrapalhou. Aí não tive mais como. Vontade de estudar eu tive bastante, um sonho meu que foi por água abaixo.” “É porque ficava difícil, nós num morava num canto que tinha escola. A escola pra mim tinha que ser à noite, que depois 106 que a gente casa, essas coisas, tinha que ser à noite. A noite não Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras tinha, se tivesse era muito longe, quem ia me levar? O esposo não levava. Aí desisti.” “Eu parei de estudar porque eu trabalhava em casa de família, é tinha padrasto. É eu preferia ficar na casa dos outros do que tá em casa. Aí como eu tava na casa dos outros, eu tinha que tentar ser útil ali. Eu cuidava da casa da mulher e ela criava bicho na época; eu cuidava dos bichos, aí não sobrava tempo pra mim estudar.” “Eu parei porque eu era muito jovem, eu inventei de me casar e tive que parar os estudos. Também eu acho que se fosse pra voltar eu nem queria mais. O pouco que eu tenho já tá bom... Se for pra fazer trabalho, administrar, isso aí vai dar, é só você saber, só ter dinheiro...”. “Eu tinha vontade de voltar a estudar, se eu num trabalhasse.” “Porque eu achava muito cansativo trabalhar e estudar ao mesmo tempo; aí eu peguei e desisti de estudar, num quis mais não. Eu tinha que desistir de estudar ou de trabalhar, só que quem ia me manter, se eu num parasse de trabalhar? Aí eu tive que desistir de estudar, tive que escolher um dos dois, aí teve que ser o estudo mermo.” “Aqui a gente namora, noiva e casa; não é de tá estudando muito.” São minoritárias, no universo das sujeitas da pesquisa, aquelas que referem ter passado por algum processo de qualificação para o exercício da atividade de costureira. Apenas uma das sujeitas da pesquisa, que exerce ao mesmo tempo as atividades de professora na rede pública e costureira, refere em sua narrativa um processo sistemático de formação e qualificação que está relacionada ao exercício da primeira profissão e melhorias nas condições nesse trabalho. Essa entrevistada encontrava-se, no momento da pesquisa, cursando o ensino superior. Já entre aquelas que estão totalmente inseridas na atividade de costura, identificamos apenas um relato de acesso à qualificação profissional via iniciativa pública, realizado pela Prefeitura Municipal. “Curso é assim, o prefeito butô um, assim num galpão cheio de máquina. Aí ele bota um gerente pra ensinar você a aprender a costurar. Aprender a costurar o quê? Um bom bolso duma calça, uma boca de bolso, uma berguilha, uma cabeça de cós, um abanhado, tudo isso você vai aprender. Aí quando você aprende você já vai direto pro fabrico. O prefeito que colocou, porque se for pago a gente não tem condições de pagar um curso, que a gente tem de aprender a costurar, aí ele butou esse curso. Anunciou na rádio. Aí eu escutava a rádio, fui direto e me matriculei. Hoje em dia eu num tenho diproma não, que era pra gente pegar o diproma, eu num peguei o diproma de costurera.” Relações de trabalho e direitos: os fios invisíveis do trabalho produtivo O arranjo produtivo mais comum entre as sujeitas da pesquisa foi a de costureiras que prestavam serviços para facções no próprio domicílio ou trabalhavam como empregadas de facções montadas no domicílio das empregadoras. Os espaços 107 produtivos são as residências das próprias trabalhadoras, no caso daquelas que Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica trabalham em domicílio para uma facção ou para um atravessador, e no caso daquelas que são donas da facção; estas últimas, por sua vez, empregam outras mulheres também no espaço de suas próprias casas ou na vizinhança, alargando uma cadeia produtiva que, a cada subcontratação, vai apagando os fios que a ligam com as marcas e as empresas a quem se destinam finalmente as peças produzidas. Algumas trabalhadoras fazem referência aos contratantes finais do serviço; em geral, é a relação mais imediata a que prevalece nas narrativas sobre relações de trabalho. Nas facções, elas trabalham como subcontratadas para as marcas locais; no caso de algumas, para marcas famosas, mas sem nenhum direito garantido. Conforme se depreende das narrativas das trabalhadoras, as relações de trabalho são majoritariamente informais, sem existência de contrato entre empregador(a) e trabalhadora, seja ela inserida em facção ou trabalhando diretamente para um fabrico ou marca própria, em uma relação de trabalho plenamente desprovida de direitos. Apenas uma das trabalhadoras sujeitas da pesquisa referiu-se a ter sua carteira de trabalho registrada na facção onde trabalha que, por sua vez, é também registrada. “Eu num trabalho em empresa, trabalho aqui mesmo em casa, pego peça de fora, das pessoas que fabricam, pra mim costurar na minha casa mesmo.” “A gente tem um patrão, tem um rapaz que ele corta a mercadoria e traz pra ajudar a gente, e traz um modelo. Aí a gente entrega pronta, a gente entrega uma peça pronta. Ele traz só cortada; no caso, a gente trabalha pra ele. Só as máquinas que é da gente, mas a mercadoria é toda desse rapaz. Trabalho pra três pessoa … Agora, que as peça não é minha, é do rapaz; ele traz, eu faço e entrego ela pronta. As máquina é responsabilidade da gente; agora as peça é de outra pessoa... gente que num tem carteira assinada não. A gente trabalha prestando serviço normal, eles traz, a gente entrega pronta, eles paga a gente, mas a gente não tem carteira assinada não, com eles não.” “Costuro como autônoma. Eu fico pegando peça de um, de outro, tá entendendo? Eu num trabalho pra uma pessoa fixa assim não... Que eu costuro logo, eu costuro logo em casa...” “... assim, é três pessoas que traz serviço pra mim, aí eu não sei que tipo de empresa é. Assim, eu sei que eu tenho um patrão, que as peças é da irmã dele, é uma pessoa até bem de vida, tem peça direto. Aí eu pego dele, pego das pessoas, sabe? Pegando de um e de outro.” “É assim, como eu tenho a máquina em casa, né?, eu saio pegando peça dos outros pra fazer em casa. Eles vêm atrás de mim oferecer, aí eu pego. É assim.” “Eu trabalho pra um homem em Toritama, pra um freguês em Toritama; ele compra lá a mercadoria, já traz cortadinha pra gente fazer. Já traz quase pronta, né? Aí a gente faz. Eu num trabalho pra mim não, trabalho pra os outros. Pronto, quando termina de fazer a peça, nós liga pra ele, ele vem buscar.” “Trabalho pra Escala, a empresa mais forte. Num sei quem é o dono. Assim, é porque ele passa pra o meu patrão. Tá entendendo? O dono da facção.” 108 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras As trabalhadoras que são também donas da facção referem não possuir contrato de trabalho com as empresas para quem prestam os serviços. No universo das sujeitas da pesquisa, essas trabalhadoras que se definem também como “patroas” e que poderíamos caracterizar como “trabalhadoras-empregadoras” realizam jornadas igualmente extensas de trabalho para garantir a produção. Elas relatam ter montado a facção em parceria com companheiros, alguns dos quais também realizam atividades na unidade produtiva. Elas empregam mulheres que realizam a atividade no espaço produtivo montado no seu domicílio como um espaço de trabalho coletivo (que possui de duas a até dez trabalhadoras, no universo que entrevistamos) e também enviam peças para costureiras que realizam suas atividades nas próprias casas. Os dois arranjos são possíveis e comuns. De maneira geral, também não são garantidos direitos na relação de trabalho estabelecida entre as trabalhadoras que são também donas de facção e as costureiras que prestam serviços. Aquelas que estão na condição de donas de facção são, a um só tempo, trabalhadoras subordinadas à exploração pelas empresas e marcas contratantes e empregadoras que exigem e impõem um ritmo de produção àquelas que estão, nessa cadeia de relações precárias, submetidas a elas. Essas trabalhadoras-empregadoras também relatam longas jornadas próprias de trabalho para ampliar os rendimentos e expandir a facção. Nos relatos das trabalhadoras, o anseio de converter-se em dona de facção mobiliza um esforço individual de acumulação que leva as trabalhadoras-empregadoras das facções a estender e intensificar suas jornadas de trabalho, em um processo que atravessa os limites de tempo e do corpo, para tornarem-se “empresárias de si mesmas” (HAN, 2015) ou “empreendedoras”, no discurso de modernização amplamente disseminado no local. Algumas costureiras sujeitas da pesquisa trabalham em facções dos próprios familiares e são também donas de facção que prestam serviços a familiares. “Aqui a gente somos os patrão... Aí outras pessoas que têm as peça mandam as peças cortadas pra gente e a gente entrega e elas pronta. Tenho funcionárias minhas. Não têm carteira assinada. Num tenho contrato com as pessoas que traz as peças pra costurar. O prazo para fazer o trabalho é de oito a quinze dias. Trabalha pra duas pessoas. Num dá pra dizer qual é a renda mensal.” “Aqui comigo eu tô com duas só, que as outras trabalham tudo em casa. Eu tenho mais quatro, mas trabalham na casa delas, não trabalham aqui comigo, que elas têm criança pequena e aí trabalha tudo em casa.” “Tem, nada, nenhum contrato que... se a gente trabalhasse num fabrico dele, né? Dentro do estabelecimento dele, aí sim, que ia ser fichado, tá entendendo? Aí, como é a gente é autônomo, a gente costura em casa. Eu sei que ele tem cinco facção porque eu conheço as pessoas. Agora, na onde ele trabalha eu sou a pequenininha. Pra outros são muitas facção grande, formada de vinte, trinta funcionário. Quinze funcionário ou mais”. “Só não pros fabricantes, quem é fabricante é empresário! A gente não, a gente pega a roupa, pega a peça pra fazer. Os fabricantes é, porque ele fabrica a roupa dele, a marca dele, ele tem. E a gente não, a gente pega só pra sobreviver, como se diz. Pego peça de fabricante, tem cinco pessoas que trabalha comigo. Ninguém tem carteira assinada nem um contrato da 109 facção com o fabricante. Trabalho por produção; a renda varia, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica mas não chega a dois salários mínimos. Produzo duas mil peças por mês.” “É facção, é familiar, própria. Da minha cunhada. É uma facção de quatro pessoas. Trabalho em casa. Recebo por semana, por produção. Não tenho contrato. A gente num se estabilizou ainda não, a gente tá começando agora.” “É, é da gente mesmo, eu e ele, meu marido. A gente procuremos, procuremos. O primo tem uma confecção e contrata o trabalho da facção da gente.” “Faço assim, cada uma peça que eu fizer, anoto no caderno, fiz tanto, aí por aquilo ali a gente faz. Paga uma a dez centavos, paga outra a quinze, paga outra a quarenta centavos, a vinte. Quem fazer mais por aquilo ali vai fazendo a conta. Aí num é comigo a conta, é com minha menina, que eu não sei ler.” Aí não tem lucro, o lucro que a gente tem é hoje, e aí a gente paga uma máquina. Aí é a manutenção da máquina. Aí tá naquele processo ainda se iniciando. Meu esposo decide. Ele é quem gerencia essa parte do dinheiro.” “Os fabricantes têm lucro e a gente não, a gente trabalha só pra se manter.” Na narrativa de uma das sujeitas da pesquisa, que é dona de facção e tem funcionárias trabalhando no seu próprio domicílio (que se converte, assim, numa unidade de produção-reprodução), a avaliação sobre a variação de sua própria renda denota uma explícita relação de exploração como apropriação do maior tempo de trabalho produtivo possível das empregadas. Essas situações trazem à luz a cadeia de relações de exploração envolvidas no processo produtivo das confecções em Toritama: “Eu tô naquela coisa assim, tentando. Chega a dois salários porque sou eu e meu esposo trabalhando, entendeu? A gente não tem aquela renda certa ainda. A gente não tá ainda naquele controle de saber o lucro. Vai sair mil peças hoje, essa semana tá saindo quinhentas. Aí eu não sei quanto vai deixar de lucro. Se tiver costureira que trabalhe mermo, aí tem variação... Porque tem costureira que senta e trabalha com vontade de trabalhar, de terminar o serviço. E tem umas que senta aí, se levanta, vai conversar, tem aquele negócio de bater papo, lanchar. Num dá uma produção... Marca aquele horário, oito horas.” Uma espécie de acordo que existe entre as donas da facção e aquelas que trabalham para elas é manter a divisão das peças independentemente do volume que chega das fábricas ou marcas. Isto mantém um rendimento para todas, ainda que baixo, em função da variação no montante de serviço, isto é, de peças a serem produzidas. Mesmo quando o volume de serviço é baixo, as donas de facção relatam que distribuem o serviço entre todas: todas ganham pouco, mas ganham. Essa também é uma forma de manter a relação de trabalho com as funcionárias, isto é, a perenidade de um vínculo precário que é condição para a manutenção dos rendimentos nos períodos de produção intensa. Essa prática denota claramente essa ambiguidade trabalhadora-empregadora, ou seja, a experiência nos dois polos da relação, como trabalhadora (na relação com a marca ou a fábrica que a subcontrata) e como empregadora (na relação com as costureiras 110 empregadas na facção): ela depende do próprio trabalho para sobreviver, nas épocas de baixa produção, e depende da exploração do trabalho das demais, nas épocas de Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras grande demanda por serviços. As margens de lucro das empregadoras e donas de facção não são reveladas, e mesmo os rendimentos que auferem mensalmente são, em geral, expressos de maneira nebulosa. “Distribuo, porque tem que distribuir, porque como elas trabalha comigo, sendo pouco ou muito eu tenho que colocar pra elas também, porque se tendo pouco eu não colocar, quando tiver mais produção aí elas num vai querer pegar, aí eu tenho que dividir pra todo mundo direitinho.” Por fim, vale ressaltar que ao transferir a produção para os domicílios, além da superexploração da força de trabalho a baixo custo, sem direitos e com longas jornadas garantidas pelo mecanismo secular do salário por peça, as empresas transferem outros custos da produção para as próprias trabalhadoras, como os custos com energia elétrica e o uso do próprio espaço da residência, do qual são, em maior ou menor medida, expropriadas para realizar a produção. A relação de exploração no trabalho em domicílio configura-se como uma apropriação do espaço-tempo das trabalhadoras que confere uma particularidade ao processo de produção do mais-valor nesta relação de trabalho produtivo. Formas de pagamento e rendimentos no trabalho atual A forma de pagamento predominante nos arranjos produtivos pesquisados em Toritama, seja entre aquelas que trabalham nos próprios domicílios para facções ou fabricos, seja entre aquelas que são trabalhadoras em uma facção e que trabalham fora do domicílio, seja ainda entre aquelas que são trabalhadoras e donas das próprias facções, é o pagamento por peça ou por produção. Os pagamentos são feitos semanalmente, em geral aos sábados – pelo empregador direto (dono da marca), pelo atravessador ou pela dona da facção, com base no valor total de peças produzidas pela trabalhadora durante a semana. Cada peça, de acordo com a “complexidade da tarefa”, é remunerada com um valor. Nos processos de trabalho partidos, que caracterizam em geral as facções, isto é, em que se produzem etapas do processo de produção da peça (costurar a cabeça de cós, bolsos ou braguilhas) até a produção da peça completa, mais comum nos pequenos fabricos. As trabalhadoras que compuseram o universo da pesquisa estão majoritariamente inseridas nas atividades de produção parcelares. O valor por peça produzida variava, no momento da realização da pesquisa, entre R$ 0,10 e R$ 0,40. Não foi possível, no entanto, apreender os valores de rendimentos mensais, pela imprecisão dos relatos sobre salários. “Uma cabeça de cós aqui na minha casa é quinze centavos, dezesseis; aí como elas trabalham em casa, é dezoito, vinte centavos, dependendo do modelo. Aí vareia de preço as coisa: um abanhado aqui na minha casa é dez centavo, na casa delas é doze, vareia o preço das coisa... É, também, eu entro no valor do mesmo jeito das meninas, do jeito que eu pago uma coisa as menina é uma coisa pra mim, do mesmo jeito; é que nem eu disse aí: vareia pelo modelo que elas tão fazendo. Tem modelo que é mais simples, uma boca de bolso eu pago a doze centavo, a quinze; é pelo modelo: o modelo mais difícil sempre é mais 111 caro; mais normal é mais barato.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Varia, às vezes é menos… Pronto, esse mês mesmo, que é bem mais fraco, aí foi bem menos… logo esse começo de ano também que meu minino fez uma cirurgia, eu não trabalhei muito, aí fui bem mais devagar. Eu num fico direto, tá entendendo? Eu sempre tenho que fazer alguma coisa lá em cima, em casa, eu não fico só na máquina, faço coisa, as coisas de casa, né? Que a pessoa também tem que fazer almoço, essas coisas.” “Tem pessoas que ganham mais e pessoas que ganham menos. Tem serviços que são mais caros. Outros são mais baratos. Traseira, cabeça de cós e abanhado paga mais. Revel e boca de bolso, paga menos.” Há variações nos rendimentos em função da produção alcançada por cada trabalhadora, do volume de material disponibilizado pelos empregadores(as), que, por sua vez, possui oscilações em função dos períodos de maior ou menor demanda no mercado local e do próprio valor da peça produzida. Quem produz a peça completa, em geral uma trabalhadora mais especializada, tem um rendimento maior. Como já explicitado por Marx, a forma de assalariamento por peça é a que mais eleva os níveis de mais-valia absoluta, isto é, pela extensão da jornada; no caso das sujeitas da pesquisa, também pela intensificação dos ritmos de trabalho produtivo. O que se vê, nos depoimentos, são relatos de jornadas que se estendem no dia e na semana para garantir patamares de rendimento mensal que lhes assegurem condições de sobrevivência, o pagamento das contas mensais, e, por conseguinte, uma autonomia econômica sempre relativa. “Varia porque tem semana que tem pouca mercadoria, tem semana que é melhor. Recebo aos sábados.” “Sabe por que existe? Porque assim muita gente num sabe fazer uma peça compreta. Você ganha mais se você souber fazer a peça compreta; craro que você vai ganhar mais, você vai ganhar mais de que aquela ota pessoa. Porque se eu, em comparação, se eu sei fazer uma peça compreta, craro que eu vou ganhar mais, né? E tem gente que tá aprendendo fazer, aí num vai ganhar o mermo que outo ganha. Tem gente que ganha cento e cinquenta, duzento… É mais devagar, num é tão ligeira; tem otas pessoas que é mais ligeira.” “Quando a gente entrega as peça ele paga a gente, aí a gente paga aos trabalhadô da gente. Aí o que sobra é da gente, dependendo do tanto da produção por semana quando as peça sair e dependendo do modelo, que cada modelo é um preço. Aí ele paga a gente, a gente paga os funcionários, e o que sobrar é da gente. A gente recebe no sábado, todo sábado, num tem horário não, sei que é no sábado, é semanal, toda semana, todo sábado, quanto as meninas que trabalha comigo aqui e trabalham em casa, tudo, recebe tudo no sábado. Tem semana que a gente recebe mais, tem semana que recebe menos, é variado, não tem um total certo não. Porque tem semana que tem muito serviço, e tem semana que já tem mais pouco, aí por isso que tem essa variação...” “Aqui é por causa assim de costureira, né? Que às vezes num tem, às vezes elas saem, e fica só a gente, aí vai saindo pouco. Uma 112 semana sai mais, outra sai menos, e assim vai. É, vem hoje e só deixa pra vir depois, e assim vai. Tá entendendo como é? Num vem certo.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Aqui, é tipo assim, é temporário. Tem uma época do ano que o trabalho aqui é mais, e outra é menos. Tipo, perto de final de ano o trabalho é mais, e agora nessa época de São João, porque o comércio melhora, vende mais, mas tem uns meses aqui que é bem difícil.” “Tem gente que ganha mais, tem gente que ganha menos, depende da costureira também, sabe? Tem patrão que sai tirando centavo da costureira, quer pagar mixaria mesmo, ainda trabalha clandestino, ainda paga mixaria.” A renda varia em função do volume de peças produzidas e do valor de cada peça. As narrativas expressam a existência de uma certa sazonalidade na produção, que se intensifica em algumas épocas do ano a partir das demandas do mercado local e nacional. As épocas de maior intensidade produtiva são as de festas de final de ano, carnaval e período junino. Como sintetiza poeticamente umas das trabalhadoras sujeitas da pesquisa, existem na cidade as “estações do jeans”. “É pelo tempo, porque a gente depende aqui dos compradores de fora. Aí temporariamente, tem tempo que tá bom. Em junho e em julho é um mês bom, que vende muito jeans. A gente fabrica só jeans, só mexe com jeans. Aí tem tempo que ninguém quer jeans, é um brim, é uma malha. É a estação do jeans”. “Há diferença. Porque é o seguinte, a gente aqui, a gente trabalha por produção, num é tipo salário, ganhar aquele salário, entendeu? Aquele valor fixo, é produção, então aí vai do meu esforço, do esforço de cada um. Se a pessoa se esforçar mais ganha mais, se a pessoa também não se esforçar também não ganha. É de acordo com o que a pessoa trabalha. Porque é assim, é centavos que a gente ganha por cada coisa que a gente faz; dependendo do que a gente faz, é dez centavos, é quinze, é vinte, é trinta. Depende do trabalho que aquilo ali dá, né? Aí assim, a gente vai trabalhando e juntando cada centavo pra dar aquele valor. Aí quem se esforçar pra fazer mais, ganha mais, e quem não se esforçar, ganha menos. Eu trabalho o dia a todo.” “Não ganho a mesma coisa sempre. Setembro a dezembro ganho mais. Nesses meses fazemo serão até uma hora da manhã e sábados e domingos para dar conta da produção. Trabalho no sábado, se for possível trabalho até no domingo, se for possível.... Aí no mês de janeiro, fevereiro e março são os piores meses, aí a minha renda baixa muito...”. Diante da instabilidade dos rendimentos, as sujeitas da pesquisa relatam algumas estratégias que mobilizam para enfrentar os períodos sem serviço e, portanto, sem renda, dentre as quais a mais comumente relatada é a intensificação no ritmo da produção, que lhes permite fazer economias para atravessar os períodos difíceis. É, aqui também, o esforço individual e a intensificação dos níveis de exploração que lhes asseguram as mínimas condições para lidar com a precariedade da sua inserção produtiva. “Se a gente trabalhar, a gente tem dinheiro; a semana que a gente não trabalhou, a gente não recebe, que a gente trabalha com produção. Tem que juntar o dinheirinho pra quando tiver 113 parada ter o dinheirinho pra não faltar, que a gente não recebe, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica que a gente trabalha com produção; aí a gente não recebe não, nem eu nem as meninas.” A necessidade de, em algum momento, para garantir um determinado nível de produção e renda, “pegar serviço” de várias marcas ou fábricas, gera momentos de grande pressão como parte do cotidiano de trabalho e da configuração instável da relação de trabalho. No caso de uma das sujeitas da pesquisa, esse foi um fator que a levou a desistir de manter uma facção própria. “Já, já trabalhei. Era ruim, porque assim, uma pessoa só não colocava pra mim o serviço que eu precisava pra ganhar o dinheiro que eu sou capaz, num tinha aquele serviço pra mim trabalhar a semana toda. Aí eu pegava de várias pessoas, aí tinha momento que o pessoal queria na mesma hora e eu não tinha condições, era complicado. Dessa forma que eu tô fazendo agora é melhor porque eu atinjo o mesmo valor em questão de dinheiro e trabalho só pra uma pessoa só, não tem aquela pressão que tinha em cima de mim. Tem que trabalhar mais quando tem a peça, quando não tem eu fico parada.” “Tem que trabalhar mais. Não, é por causa do freguês, que eu pegava do meu irmão, aí ele tinha muita peça, dava muita peça pra gente, botava mil e quatrocentas, mil e quinhentas. Aí ele parou de botar, eu pego do meu primo. Aí o modelo é muito difícil e se pegar muita peça não sai; aí a gente sempre pega mais pouco, pra sair as peças, porque senão num entrega não...” Direitos No universo das sujeitas da pesquisa, apenas uma trabalhadora possuía registro em carteira de trabalho no emprego atual, como trabalhadora em domicílio de uma facção registrada. As demais trabalhadoras no universo de sujeitas da pesquisa, empregadas ou trabalhadoras-empregadoras, encontravam-se em situação de informalidade e desproteção social. Outra trabalhadora manifestou a impossibilidade de trabalhar com carteira assinada para a manutenção do benefício de transferência de renda, Bolsa Família, das duas filhas menores. No contexto de baixos rendimentos auferidos no trabalho remunerado, a renda transferida pelo Governo se mostrava fundamental para a manutenção de um orçamento familiar em um patamar razoável. Isto se faz, entretanto, à custa da perda de direitos trabalhistas e da manutenção em situação de desproteção social. “Eu trabalho pra uma pessoa que pega da empresa. Trabalho em casa. Até dois meses atrás, eu trabalhava clandestina, mas agora tô fichada. Trabalho em casa, mas com carteira assinada.” “No momento eu não posso trabalhar de carteira assinada por causa do Bolsa Família.” Os relatos expressam a não vivência e um absoluto desconhecimento sobre os direitos trabalhistas. Quando perguntadas sobre férias, as mulheres que integram o universo da pesquisa referem-se ao período de recesso informal entre Natal e Ano Novo e os primeiros dias do ano e o período do carnaval como os intervalos de descanso de que dispõem ao longo do ano e que são dados mais pelo ritmo da produção do que propriamente por uma definição autônoma baseada em alguma noção de direito ou de limite ao processo 114 incessante de exploração no trabalho produtivo e reprodutivo que marca sua experiência. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Eu vejo aqui o povo falar muito em carteira fichada, os direito que os trabalhador de carteira fichada tem, mas eu conheço muito pouco, porque é que nem eu disse: eu trabalho em casa, quase não saio, eu conheço muito pouco. Férias aqui é só duas vezes por ano, final de ano e carnaval, somente. (...) A gente trabalha o ano todinho, aí na primeira semana de janeiro a gente para, a gente só para na primeira semana de janeiro; carnaval também, na semana do carnaval a gente para uma semana; aí quando tem feriado a gente para só um dia dos feriados, que nem agora Semana Santa; pelo certo é pra gente não trabalhar a semana toda, mas a gente trabalha até quarta- feira ainda; aí no caso só folga quinta e sexta...” “No caso na empresa tem, mas como eu trabalho em casa... O direito é sair e tchau… tchau pro louro, né, nego? Não, tenho conhecimento assim que o povo fala, mas num lembro agora bem não. Mas eu sei que tem direito, trabalhando, né?” “Nessa facção ninguém tem férias não, é direto, só para os dias necessário mermo… Num dia de feriado, você tem que parar, né? Mas não, tira direto.” “Direito assim de alguma coisa? Tem não. Se parar agora, parou. Não ganha nenhum real. Tem futuro nenhum, só a costura mesmo dá o dinheiro da pessoa.” “Não tem garantia de nada. O que tem é de pedir as contas, e a pessoa dá.” “Não, eu não tenho um contrato com eles. Pelo menos até o momento não, porque também faz pouco tempo. Eu já fiz o microempreendedor, mas só que eu trabalhava pra outra pessoa, aí eu cancelei; mas eu pretendo fazer de novo, porque me dá uma garantia, entendeu? Microempreendedor. Aí eu pretendo fazer.” “Mas eu não tenho esse direito, não tenho direito nenhum.” “Começou agora, a gente não tem estabilidade financeira. Mas tudo que ela pode fazer, ela ajuda a gente. Ela é muito, como é que eu posso dizer?, consciente das coisas. Sabe a necessidade da gente, ela sempre ajuda.” “Eu conheço, conheço todos os direitos, só que eu sei que é bem claro, nós temos todos os direito a partir do momento que nós trabalha dentro do estabelecimento do fornecedor. Só como eu sou autônoma, a responsabilidade é minha, entendeu agora?” Na percepção das sujeitas da pesquisa, o direito que a inserção assegura é a própria renda e alguns dias de feriado e férias, os quais, no entanto, têm de ser assumidos por elas mesmas. Algumas sujeitas da pesquisa referem-se à ocupação na costura com “sem garantias” ou “sem futuro”, do que se depreende que a inserção neste contexto precário de trabalho forja um instável processo de autonomia econômica que se mantém no presente pelos ritmos e jornadas intensas de trabalho que resultam, quando somados ao tempo do trabalho produtivo gerado pela divisão sexual do trabalho, numa carência de tempo para outras atividades e para si mesmas – e que, dificilmente, pela situação de desproteção 115 social em que se inserem, pode ser sustentada no tempo e, especialmente, no futuro. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Tem costureira que sai, vai trabalhar em outra facção. Num tem nada a ver, não. Ela sai, diz: ‘Num vou vim mais e pronto”. Vai pra outra. Aí também não recebe nada, pode trabalhar o tanto que for, o tanto de ano que for. Depende, se ela quiser botar na Justiça pra frente, mai é muito, aqui é muito difícil o povo fazer isso. O povo num fái, praticamente sai sem nada, com a mão abanando. Aqui o povo num tem coragem de colocar a pessoa na Justiça. Pronto, que nem eu trabaei lá, já faz mais de três ano que eu trabaei lá, eu num tinha coragem de colocar. Eu saía com a mão abanando, sem nada. Ia pra outra facção amanhã, num ganhava nada.” “Porque a pessoa trabalhar sem ter nada, você pode trabalhar mil ano, né?, e nunca tem nada. E de carteira assinada também eu não posso trabalhar, porque tem que ter aqueles horários; sempre que você atrasa, aí não pode. Tem não! Quem trabalha assim num tem férias não.” O fato de estarem inseridas em relações de trabalho para os próprios familiares ou conhecidos atua como um impedimento para que movam processos na Justiça em defesa de seus direitos. Como a cidade é pequena e prevalece, na cultura local, uma forte defesa da informalidade como motor da riqueza produzida, levar um processo à Justiça do Trabalho pode resultar em dificuldades para conseguir outro emprego em uma outra facção, posteriormente. Processo de trabalho individual e coletivo Conforme já mencionamos acima, o arranjo produtivo que configurou o universo desta pesquisa foi o de trabalhadoras inseridas no trabalho em domicílio – seja nas suas próprias residências ou na residência das donas das facções. De início, é importante ressaltar que o que caracteriza as facções é a produção de etapas do processo produtivo de uma peça de vestuário. Raramente as costureiras inseridas nesse arranjo produzem peças completas, condição que é mais característica dos chamados fabricos (ver contexto). Com efeito, as trabalhadoras que compuseram o universo desta pesquisa realizam etapas do processo produtivo de peças do vestuário, sendo as mais comuns: fazer a “cabeça do cós” (parte superior de peças como shorts, calças e saias), costurar as braguilhas, pregação de bolsos e outras atividades bem específicas. Quando o processo de trabalho dá-se no interior da facção, em conjunto com outras trabalhadoras, os relatos apontam para uma sucessão de pequenas etapas realizadas por cada trabalhadora no interior da atividade produtiva, inclusive com atividades delimitadas entre mulheres e homens. “Numa peça eu faço tudo: colar bolso traseiro, fazê frente, cabeça de cós, abanhado. Antigamente o pessoal levava as peças pra casa da pessoa, aí era pra fazer, aí entregava a peça toda pronta. Fazia as calças todinha, aí hoje não. Hoje um faz, vamos supô, hoje uma pessoa faz, cola um bolso traseiro, o outro já cola a pala, outro cola essa costurinha aqui do bolso da frente, que é essa costurinha, outro faz riata, outro faz berguilha, tá entendendo? É melhor, porque hoje tem máquina pra tudo, pra colocar cós, pra fechar, fazer berguilha.” “Pronto… essas peças, que a gente faz, tá entendendo? Aí 116 outras pessoas faz já pra dar o acabamento final... pra faze a traveti, por exemplo isso é tudo da traveti, isso é tudo final.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “A gente num tem uma pessoa, cada um que faça um serviço não; todo mundo faz o serviço lá, tá entendendo? Se for pra dividir o serviço, em comparação, eu só faço cabeça de cós direto. Eu num tenho condição de fazê cabeça de cós direto porque num vai ter direto pra mim, eu tenho que fazê trasera, tenho que fazê abanhado, tenho que fazê cabeça de cós, fazê detalho. Tem que fazê tudo dento de uma firma. Dento de uma facção a gente tem que fazê tudo que manda.” “Tem várias coisas, mas eu só faço mais cabeça de cóis. Tem berguilha, tem abanhado, bolso traseiro; eu faço mais cabeça de cóis. Quem decide é o dono lá das peça, tá entendendo? Aí ele pega, aí é várias costureira. Aí ele divide, uma faz um serviço, outra faz outro, entendeu? Aí sai dividindo, cada um faz o seu. Eu uso a máquina, é, a tesoura, né? Tem o banquinho de sentar e as peça. É dos outro. É do dono das peça.” “Eu mesmo assim, eu decidi fazer as cabeças de cóis, aí a pessoa bota cabeça de cóis, e os abanhado, a pessoa bota os abanhado, eu faço.” “Divido não. As vezes divido assim com a minha menina, quando tem muito, eu divido com ela.” Aquelas que trabalham sozinhas, no interior de suas próprias casas, também realizam em geral essas mesmas atividades, havendo algum nível de variação, de acordo com as encomendas, com a habilidade (saber fazer) e com as máquinas que possuem: numa semana, elas podem fazer “cabeça de cós”, noutra, “pregar bolso”. Apenas uma trabalhadora afirmou produzir a peça completa a partir do “corte” trazido pelo dono da facção. “Toda pronta. Ele traz pra mim só o corte, aí eu faço toda pronta de zíper, pronta, pronta, aí ele leva pra lavanderia e pra feira. Eu dou conta assim, é por isso que eu não sei dizer pra você porque é que nós só faz assim não pode dizer o total se não tem como. Que às vezes sai, quebra uma máquina, aí aqui não tem consertador, tem que ligar, aí atrasou, uma costureira adoece.” “Na segunda, eu colo revel e forro da peça. Na terça-feira, já vem travamento, que é outro serviço. E no final de semana, eu já pego cabeça de cós, fecho a cabecinha de cós. Quem decide é a dona da facção, de acordo com a aptidão. Por exemplo, abanhado, são duas pessoas. Cabeça de cós é só minha. Aprontar zíper é só de uma menina que tem lá. E tem uma outra menina da máquina de duas agulhas, porque a minha máquina só tem uma agulha. Ela sempre trabalhou como costureira.” “Nós somos quatro. A cabeça e o zíper é meu. A traseira é de outra pessoa, porque é muita. Abanhado e etiqueta já é de outra pessoa. E a berguilha é da minha patroa. A gente divide assim. Quem faz a divisão é a patroa da gente. Cada um pega o que sabe fazer mais rápido, o que se dá melhor. Aí só eu que sei fazer isso.” “A dona decide e divide o serviço. Já vêm já as fichas, o total da empresa que corta, que manda, vem tudo cortado. Aí, por exemplo, vem uns pacotes de cento e vinte, de noventa e cinco, 117 de cento e cinquenta, de cento e quarenta. Aí cada um pega uma ficha já com aquele total. Trabalho em casa sozinha.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Se eu trabalhasse lá, eu fazia mais coisa traseira, mas como eu trabalho em casa, aí ela só bota as frente.” Quem define as tarefas a serem realizadas são as donas da facção ou dos fabricos contratantes. Aquelas trabalhadoras que são também empregadoras incluem, na descrição do seu processo de trabalho, essas atividades relacionadas à “administração” da facção: disponibilização das peças e definição do que cada trabalhadora vai realizar, registro da produção, realização dos pagamentos e, em alguns relatos, expressam também uma certa função de “vigilância” e controle do tempo e dos horários daquelas que lhes prestam serviços. Elas também relatam que podem vir a realizar diferentes etapas do processo de trabalho, dividindo o serviço com outras costureiras ou assumindo etapas quando preciso, para assim fechar o “ciclo da produção” e garantir o cumprimento da encomenda. Ou seja, elas auxiliam ou assumem as tarefas das trabalhadoras, para garantir o cumprimento da encomenda. “Ela bota uma coisa pra mim, outra pros outros, e por aí vai. Trabalho no aprontamento do zíper. Quem decide a tarefa é a patroa.” “Minhas tarefas é todas. De costureira a fechar a peça, faço de tudo. Berguilha, boca, tudo tudo. Entre a reta e a de fechar, todas as máquina eu mexo. A minha máquina que eu sento pra trabalhar é duas agulha, eu faço berguilha e boca de bolso... Quando não, não venço, não dá pra me botar, pra mim fazer esse serviço. Tem alguém que vem só pra fechar as peças. Quando ele não vem, quem fecha sou eu.” “Ói, tu vai fazer isso e eu vou fazer aquilo. Tá entendendo? A primeira divisão, de que serviço será feito na facção deles, é a gerente. Ela e o esposo subdividem as tarefas, a partir da primeira divisão feita pela gerente.” Os relatos sobre as atividades realizadas pelos homens referem-se, em geral, “ao fechamento da peça”, que é uma das últimas etapas do processo de trabalho. Essas atividades são remuneradas pelo dia de serviço e não por produção. Há uma divisão sexual do trabalho bem delimitada, na qual os homens predominam em algumas tarefas, como rebater. “A tarefa de rebater é feita sempre por um homem. Tem mulé aqui em Toritama que já trabalha com isso aqui, mas a maioria é homem.” “Tem, o que a gente faz, os homem não faz assim a mesma coisa que a gente faz. Tem uns que trabalha só no salão, lá, só ajudante de salão. As mulher trabalha costurando, não ganha o mesmo tanto que eles. Eles ganham mais pouco do que a pessoa, porque a gente trabalha por produção e eles não. Eles trabalha, pronto, vamos supor, ganha cento e cinquenta por semana; é aquele tanto se trabalhar pouco ou muito. Lá num tem a mulher ajudante de salão não, é só costureira mesmo.” “... tem uma máquina que ela é mais cansativa, que é a traverna, que é onde dá aqueles pontinho da riata, porque ela é na de pressão. Qualquer coisa ela é acidental, é mais home trabalhando nela justamente por causa disso. Porque ela é pesada.” 118 “Tem homem e mulher na facção onde trabalho. Tem diferença no trabalho de homens e no das mulher. Tem dois Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras homens na facção que não costura. Mesmo os que costuram, costuram coisas diferentes daquelas que as mulher costuram. Os que não costuram trabalham no salão. Juntam as peças. Fazem aviamento. Tem pessoas pardas, brancas, por aí vai.” Outro fator que vem modificando os processos de trabalho e interferindo nos rendimentos, segundo as sujeitas da pesquisa, é a sofisticação das peças e dos modelos, que possuem mais detalhes e cujo tempo de produção termina por se estender. As costureiras estão inseridas na ponta da cadeia produtiva e não possuem nenhum poder para definir o processo de designer; este já foi definido no interior das empresas e segundo as tendências da moda. Há uma diversificação também das máquinas e nas técnicas de costura que cria novas especializações no processo de trabalho. “É diferente, mudou muito. Porque há um tempo atrás não tinha tanto modelo, era uma roupa mais simples; agora já é mais trabalhosa e mudou muito. Agora é mais trabalho. A peça é mais trabalhada.” “Antigamente era só máquina reta, que era pra fazer isso tudinho. Hoje a peça saí bem mais trabalhada, né? Bem mais industrializada...” “Faz cabeça de cós, pregar revel, fazer abanhado e fazer detalhes. Os detalhes da peça, que tem muito detalhe e a gente tem que aprontar, que fazer tudo isso.” Os equipamentos de trabalho, que em geral são máquinas e tesouras, pertencem às próprias trabalhadoras ou às donas e donos das facções. Existem diferentes máquinas especializadas em determinados tipos de costura (costura reta, duas agulhas etc.). Quando trabalham em seu próprio domicílio os equipamentos de trabalho são, via de regra, de propriedade da própria trabalhadora. Quando trabalham na casa das donas de facção ou nos fabricos, os instrumentos são também do/a proprietário/a do negócio. Nesses casos, há em geral diversos tipos de máquinas destinados à confecção de peças específicas. “As da casa delas são delas, as minhas é as que tá aqui na minha casa. Aí é tudo minha; agora, as da casa delas são delas.” Relações de poder no trabalho e discriminação A maior parte das sujeitas da pesquisa não estabelece relações no cotidiano de trabalho produtivo, uma vez que exercem sua atividade remunerada no interior dos domicílios. Esse confinamento é apontado como um fator de descontentamento por algumas entrevistadas, uma das quais expressa o desejo de trabalhar remuneradamente em alguma atividade que envolva o contato com o público. Entre aquelas que trabalham nos pequenos coletivos organizados no interior das donas das facções, o que ganha força nas narrativas são as relações das trabalhadoras com as donas e o dono da facção, e reciprocamente. Esses relatos são reveladores de uma relação de trabalho em que os dois polos encontram-se, ao mesmo tempo, próximos e distantes, e em que a particularidade da relação de exploração se manifesta nos gestos, atitudes e comentários que, no relato daquelas que estão subordinadas na 119 relação, produzem insatisfação e sofrimento no cotidiano. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Não, assim, às vez tem uma discussãozinha, porque às vez, assim, também, a patroa tá muito nervosa. Aí a pessoa...” “Umas são discriminadas, justamente por causa disso. Porque às vez também tem muitos preguiçosa também, né? E como você ganha por produção, tem que ter responsabilidade e amor ao que você faz. Se você sabe fazer bem feito, então faça bem feito. Muitas faz mal feito, entendeu?” “Olhe, é estressante viu? Muito estressante. Complicado. Além de tudo, tenho que agradar tudinho e tá sempre de cara bonita. Num posso ficar chateada. É complicado envolve muita coisinha, e principalmente aqui que é dentro de casa. Problema com meus filhos... tudo aí...” “Eu num gosto não, eu gosto de trabalhar em casa, porque facção só dá muita fofoca e briga.” Os depoimentos acima revelam as tensões nas relações interpessoais que são geradas por uma relação de trabalho de intensa exploração realizada no interior de um espaço produtivo que é também o espaço da vida privada, em condições de trabalho absolutamente precárias e sem nenhum instrumento formal ou direito estabelecido. Construção civil na Grande São Paulo Menina, eu já nasci trabalhando! (Entrevistada, São Paulo) Trajetórias de trabalho remunerado e reprodutivo As sujeitas da pesquisa, na região Metropolitana de Guarulhos, foram trabalhadoras da construção civil inseridas nesta atividade em duas relações predominantes de trabalho: como trabalhadoras por conta própria e como trabalhadoras contratadas de empreiteiras ou terceirizadas no canteiro de grandes obras. Essas trabalhadoras tinham entre 25 e 56 anos. Um universo significativo nasceu no estado de São Paulo e algumas eram oriundas de outros estados do país. Para boa parte dessas mulheres, a mudança para São Paulo e Guarulhos esteve relacionada a questões familiares ou problemas nas relações conjugais heterossexuais narradas como relações de dominação e, em algumas situações, de violência doméstica. “Fui pra São Paulo morar com meu irmão, buscar melhores condições. Morava na roça com minha a mãe. Eu não tinha muita opção, né?” “Minha mãe me abandonou com nove anos, e eu reencontrei ela com catorze anos; ela estava vindo pra cá e eu vim junto com ela. Mas daí acabou a gente se separando de novo. Eu comecei a trabalhar em casa de família, sem estudo.” As trajetórias no trabalho produtivo, para a maioria das sujeitas da pesquisa, se iniciam muito cedo, na infância, em atividades familiares, com ou sem remuneração, 120 no setor de serviços: elas relatam ter sido ambulantes, trabalhado em lanchonetes e Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras em outros serviços informais até ingressarem no setor atual, a construção civil. Essas trabalhadoras estiveram inseridas em uma miríade de serviços ao longo da maior parte de sua trajetória no trabalho remunerado. O emprego doméstico também emerge nas narrativas de parte das sujeitas da pesquisa como a primeira experiência de trabalho remunerado, na adolescência. Algumas sujeitas da pesquisa referem-se a períodos de trabalho formalizado, especialmente no comércio. Nesse percurso, as narrativas também revelam o peso do trabalho reprodutivo, nas famílias paternas e maternas e nas relações conjugais, na trajetória de trabalho remunerado. “Menina, nasci trabalhando, viu? Praticamente. Praticamente. Ah, trabalhava com meu pai. Vendia maçã do amor. Acordava três horas da manhã pra fazer maçã do amor, aí de manhã umas sete horas, saía pra vender, voltava umas cinco, seis horas da tarde... Aí eu tinha uns doze anos, por aí. E eu trabalhava por conta do meu pai. Ah, trabalhei, vamo supor uns dois, três anos. Não sei de tempo assim, eu num sei te explicar. Mas trabalhei com isso, aí depois meu pai começou a vender cândida. Também trabalhei com ele, pra vender cândida, desinfetante, essas coisa. Aí depois começou a vender fruta, tudo que cê imaginar de fruta. Sempre na rua, sempre na rua. Aí também teve uma época que ele matava porco, ele ia trabalhar na feira. Trabalhava na feira, quando ele matava porco. A gente acordava também, na madrugada, três horas da manhã... Aí depois das frutas, aí comecei a trabalhar pra outras pessoas, né? Pra outra mulher que morava de frente à minha casa. Que ela trabalhava cum alimentação, fazia marmitex. Aí comecei a trabalhar pra ela devia ter já uns quinze anos, por aí, né? Aí trabalhei com ela um bom tempo da minha vida. Ajudava a preparar a alimentação. Tava na cozinha. Ia trabalhar com ela, tudo direitinho também, pagava eu direitinho. Meu pai me pagava. É, me dava todas as moedas. Aí até que ela arrumou uma barraca na praia, que é pra onde eu fui morar. Fui com ela pra praia, pra trabalhá lá. Fiquei uns três meses assim, indo final de semana pra casa. Aí até que teve um dia que eu num voltei mais.... arrumei otro serviço. Numa lanchonete... trabalhei acho que uns três, quatro anos na lanchonete. Aí depois trabalhei pra mesma pessoa numa casa noturna, numa balada. Aí depois disso, minha mãe adoeceu, vim embora pra São Paulo. Aí fiquei trabalhando lá na lanchonete. Aí até que minha mãe veio a falecer, entregamo a lanchonete e tudo. E depois disso... Nossa, trabalhei com tanta coisa, que meu Deus!” “Comecei a trabalhar aos doze anos, trabalhando com meu pai que tinha um bar. Meu primeiro emprego remunerado foi por volta de vinte ano.” “Meu primeiro emprego foi como trabalhadora doméstica, quando tinha quinze anos. Fui trabalhar para poder comprar roupa. Trabalhei como empregada doméstica dos quinze até os dezenove anos. Depois trabalhei de costureira, numa oficina de costura. Voltei pra trabalhar como diarista. Que é diferente de ser empregada doméstica. Quando voltei pra São Paulo, trabalhei de costureira, nos empregos temporário. Depois fui trabalhar com uma mulher, sem registro. Depois foi fazer o 121 curso e fui pra construção civil.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Eu já vendi rosas, eu já vendi coroa, eu já vendi limão na rua, eu já empacotei biscoito, eu fui ser empregada doméstica, mas não me adaptei muito porque eu achava uma injustiça eu ser empregada doméstica... aí eu fui galgando, fui buscando, saí da roça, falei: ‘Não vou ser empregada doméstica’ . Fui estudar.” A inserção na construção civil marca uma inflexão nas trajetórias de trabalho produtivo que ganha força nas narrativas com o momento de aquisição de uma profissionalização que é ainda mais valorizada por ser um campo de trabalho com pouca presença das mulheres. Os relatos sobre a trajetória, muitas vezes, trazem uma expressão do interesse pelas atividades próprias da profissão que vem da infância. Algumas sujeitas da pesquisa relatam que ao manifestar esse interesse foram desmobilizadas por familiares; nesse sentido, a realização do curso e a profissionalização na área, em si, já é uma expressão de autonomia em relação à definição dos rumos de sua vida profissional e de autonomia nas relações de sexo no interior da família. “... a minha infância, ela foi uma verdadeira construção, né? Porque o meu pai ele, ele construiu dois cômodos, eu inda nem tinha nascido. Que ele tinha muitos filhos, né? Ele foi construindo... Então eu cresci, assim, no meio da construção mesmo. E a gente fazia a parte do ajudante na obra lá em casa, né? Piquenas ainda, né? Não só eu como eu e minhas irmãs também, né? A gente ajudava ele. Acho que eu me identifiquei com a profissão. E eu gosto muito da construção em si. Eu sempre comentava com meu marido, eu falava assim: ‘Olha, se eu pudesse, eu ia trabalhar de pedrêra’. Meu sogro é pedrêro e eu tenho uma admiração muito grande por ele, eu acho assim, as coisa que ele faz maravilhosa. Ele, ele falava assim: ‘Você é louca! Pedrêro é coisa de homem, num é coisa de mulher...’ Aí eu falava: ‘Eu gostaria mesmo. Se eu, tivesse uma oportunidade de trabalhar nessa área e de aprender, eu ia aprender e ia seguir essa carreira mesmo’. Aí ele num dava muito importância. Ele falava que era loucura da minha cabeça.” Algumas também informam que o interesse inicial em realizar uma qualificação na área era o consumo próprio, isto é, para realização de serviços de manutenção da casa onde viviam e como uma estratégia de melhorar suas condições de moradia diante da impossibilidade de pagar por um serviço de alto custo na cidade. Nesse sentido, podemos afirmar que o interesse dessas mulheres era o de adquirir qualificação para o trabalho reprodutivo no interior de suas casas, compreendendo-se aqui a moradia como uma condição fundamental da reprodução social (VÉRAS DE OLIVEIRA, 2012). “Primeiramente quando eu entrei no projeto, quando eu procurei o Instituto Construa, eh, o meu interesse era eu saber pra mim. Pra não ter que pagar ninguém ir lá fazer uma porcaria e jogar o meu dinheiro fora. Então eu achei muito interessante, era eu saber pra mim. É na casa da minha mãe. É um casarão antigo, e pra todo lado que você olha, precisa de reforma. Do teto, tudo. Então eu falei assim: ‘Poxa vida, como vai ficar caro pagar um profissional pra fazer isso’. Num tem aquele profissional mesmo, todo profissional, pedreiro, pintor, qualquer um que cê chama faz do jeito dele, você paga bem que eu acredito que eles ganham bem e não fica do jeito que 122 você quer. Então, se eu fizer eu vou gastar só com o material que eu vou comprar, entendeu?” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “... quando eu estava lá na escola fazendo curso comentavam sobre esses projetos e tal, de inserir a mulher no mercado de trabalho, que eu fui estudando a proposta, eu fui achando interessante... Falei: ‘Ah, que legal’. Eu fui me interessando pela proposta e me envolvi; meu interesse era nos projetos das casinhas de PVC. Não é um serviço pesado, a gente num ia se matar, e era legal, era interessante, tinha toda uma proposta a ver com a Caixa Econômica Federal, com o Minha Casa, Minha Vida, e eu queria me envolver com isso. Mas num deu certo, acho que por questões políticas, acredito.” As narrativas também apontam para períodos intermitentes de desemprego vividos como momentos de insegurança e realização de pequenos serviços informais, com renda instável e ínfima. A narrativa de uma das sujeitas da pesquisa sobre sua trajetória, casada desde os 20 anos, expressa como a realização de um trabalho que lhe garantisse alguma renda foi um processo de resistência individual que mobilizou, no contexto de uma relação conjugal de controle, dominação e violência patrimonial. Essa trajetória expressa como a possibilidade de ter um trabalho remunerado foi uma condição fundamental para romper com relações de opressão e subordinação nas relações de sexo. “Meu ex-marido saía pra trabalhar, eu ia escondido pra casa das vizinha fazer a unha das vizinha e ganhava um dinheirinho aqui, um dinheirinho ali. Nossa! Quando ele descobriu ele foi na casa do vizinho, gritar no meio da rua, gritando e me ofendendo no meio da rua, falando que eu tava me envolvendo com o vizinho, me infiando na casa do vizinho. Depois trabalhei com uma prima do meu ex-marido num salão, ele também não sabia, ela me chamou. E aí eu comecei a escovar uns cabelo, aí fui aprendendo, fui desenvolvendo aquele negócio; daí a pouquinho eu tava fazendo cabelo também de todo mundo, das vizinha, de todo mundo. De uma maneira ou de outra, eu arrumava um dinheirinho, não conseguia era ficar sem. ... E o meu pai começou a trabalhar numa empresa de cosmética, e um certo dia me levou pra ajudar ele, porque precisava de uma produção que tava atrasada, num final de semana, num sábado... Então era uma coisa mais assim debaixo dus pano, e eu aprendi, eu fui vendo aquilo e eu aprendi que manipulava a coisa do creme de cabelo, num sei quê, e aprendi a fazer aquilo lá; acabou que no final eu desenvolvi uma receita própria e acabei fazendo e fazia em casa mesmo... O pessoal começou a passar no cabelo e adorava e vinha... nunca precisei ir de porta em porta pra vender, vinham na porta. Aquilo começou a dar um dinheirinho bom, até uma prima dele usô, gostô e quis entrar em sociedade comigo, e eu passava a receita pra ela, que era secreta, eu sabia minha receitinha... O meu ex- marido que se tornou alcólatra e tava viciado, queria entrar na sociedade; ele tinha todo o direito, ele era meu marido. Só que eu conversei com ela e falei: ‘Não vai dar certo’. Eu já tava com depressão profunda nessa época. Eu tava lá com o negócio e o dinheiro entrando. Aí o que foi que ele começou a fazê? Ele fazia dívidas em todos os bares da região, e aí o que que ele fazia? Ele começou a pagar as dívidas dele nos botecos, nos 123 bares, com os produtos.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Comecei a me revoltar. Coloquei minha filha na escola tempo integral e foi trabalhar de babá na casa da vizinha. Nessa casa havia uma minifacção, aprendi a costurar.” “Eu fui casada seis anos. Eu fazia bicos pequenos, era babá aqui, lavava roupa pra uma pessoa ali, porque ele não deixava eu trabalhar. Era porque ele era machista. Ele era um homem bem machista, então, pra ele mulher tem que ficar em casa cozinhando, passando e não faz mais nada.” “Olha, esse foi o meu primeiro trabalho. Eu trabalhava de babá, de faxineira, nessas coisas assim, mas nunca tive um salário assim como eu tenho hoje. Babá foi o primeiro emprego que eu tive. Trabalhei numa gráfica, mas assim, nada registrado. Com doze anos eu já trabalhava, já fui cuidando de criança, eu e minhas irmã, né? E comecei a trabalhar de faxina.” “Primeiro trabalho foi na infância, com nove anos. Eu cuidava de crianças. Meu pai trabalhava na roça, era lavrador. Pra ir pra roça era demais pra uma criança ir pra roça, então o que a gente fazia? Começava a cuidar de criança, cuidava da criança pra mãe trabalhar... Quando eu comecei a trabalhar tinha uns nove anos. Cuidando de criança. A mulher trabalhava na roça e eu cuidava do menininho dela.” “Meu primeiro trabalho, eu tinha nove anos de idade. Eu saí de casa porque minha mãe tinha bastante filho, então fui trabalhar numa casa. E lá eu limpava e cuidava de uma menininha, lá na Bahia. Aí a mulher não me dava um real. Aí no dia que ela foi passear no mesmo interior que o meu pai morava, ela me levou e eu fiquei. Aí, depois eu fui trabalhar em Salvador, numa outra casa de família; saí porque a mulher também tinha parente na mesma cidade do meu pai, Num ganhava nada, ela ia passear na casa da mãe dela, e fiquei. Num quis voltar mais com ela. Aí, depois de um tempinho, me levaram de novo pra trabalhar lá. Trabalhei. Mesma coisa. Voltei de novo pra casa do meu pai. Que essa mulher também tinha parente lá. Já tava mais ou menos com uns doze anos. Aí depois aconteceu isso. Aconteceu a mesma coisa, aí eu voltei pra casa, depois eu fui pra Feira de Santana, a mulher me pagava muito pouco. Acho que não dava pra comprar nem uma calcinha com o dinheiro que ela me dava. Aí acabei voltando pro interior do meu pai, daí eu já sabia pegar ônibus. Fui trabalhar numa empresa chamada Estética, no Bairro do Limão, fazia o quê? Faxina, também. Minha vida foi sempre trabalhar. Quando eu tava desempregada, eu fui vender bijuteria; outras vezes eu fui vender café na Feirinha da Madrugada. Eu nunca fiquei parada assim, sabe? De me encostar.” O processo de inserção na área de construção civil para grande parte das entrevistadas deu-se a partir da realização de processos de qualificação profissional. As trabalhadoras sujeitas da pesquisa em Guarulhos haviam participado de um processo de qualificação realizado pela Prefeitura, com apoio do Governo Federal, nos anos de 2012 e 2013. Parte das trabalhadoras de São Paulo havia participado de curso realizado por um instituto de qualificação profissional ligado ao movimento sindical, também realizado em período recente (a partir de 2011). Este instituto também atuava com intermediação 124 de mão de obra para as empresas do setor, mediante convênios, e foi desta forma que Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras as mulheres que passaram pela qualificação profissional, sujeitas da pesquisa, inseriram- se no mercado de trabalho nessa área. Outras trabalhadoras realizaram cursos de qualificação em outros estados, como foi o caso de uma trabalhadora especialista em solda, oriunda de uma cidade do sul do país. “Depois do curso, foi encaminhada para a Gafisa. Trabalhei na empresa Gafisa, depois fui pro projeto de construção de casas de PVC do Instituto Construa. Como o projeto não deu certo, fiquei por conta própria, fazendo bicos. Ai, a Gafisa ofereceu dez vagas pra mulheres e colocou dez mulheres lá na obra, né? Eles colocaram uma em cada obra. Eles escolheram de acordo com a localidade de trajeto da gente, por causa dos endereços mesmo.” As narrativas mostram que as sujeitas da pesquisa tomaram conhecimento dos cursos de qualificação e das possibilidades de trabalho por meio de anúncios em jornais. Vale destacar, aqui, que as sujeitas da pesquisa que compuseram o universo da pesquisa, na RMSP, referem ter tido acesso a cursos de qualificação oferecidos pelo poder público neste e em outros setores, assim como possuem melhores níveis de escolarização. “Fui indo e fiz o curso dentro do curso. Saindo do treinamento dele, fui dar aula. Para o polo naval do Rio Grande do Sul. Formei assim, lá eu fui muito bem recebida por todos os homens, que eu tinha conhecimento da causa. Os homens me trataram muito bem; tive turmas enormes com mais de cem alunos, com cento e setenta e quatro homens, foi minha maior turma. Eu dei aula em todo o Rio Grande do Sul na parte de solda, que se diz uma profissão totalmente masculina, né? E tem gente que não sabe nem o quê que é solda; não é só abrir um arco elétrico e soldar; solda é uma arte, uma habilidade. Se ficar sem soldar três meses, tu perde a mão. Tu perde o jeito de soldar.” “Ah, tava desempregada ia fazer um bom tempo, tipo uns dois anos, por aí, né? Um pouco perdida, que eu trabalhava numa área que eu não queria mais trabalhar – que eu trabalhava com alimentação –, trabalhava em lanchonete, restaurante. Até um certo momento eu curtia; depois, já começou a ficar ruim pra mim. Comecei a não curtir mais, queria meus finais de semana... E outra coisa boa também de você trabalhar na construção civil é isso: que eles não trabalham sábado, nem no domingo; dificilmente cê vai trabalhar um sábado. Então acho que isso ... é bom que cê pode tá com sua família, com seus amigos, se dedicar um pouquinho a você. Fiquei desempregada aí um tempo, aí comprei aquele jornalzinho amarelinho, né? E vi lá: precisa-se de pintora, ajudante de pintor, feminino ou masculino. ‘Ensinamos a profissão’. Tava bem assim no jornalzinho. Aí eu falei assim: ‘Ah, né, tô aí, vou lá, né? Quem sabe?’ Aí resolvi ir lá conhecer tudo. Aí fiz uma entrevista, né? Preenchi lá uma ficha. Aí passou nem uma semana, me ligaro, perguntando se eu queria fazer um teste, né? Eu nunca tinha trabalhado, né? Em obra, essas coisa. Aí perguntaro se eu tinha outras meninas também. Eles queriam dar oportunidade pra mulher, né?” “Eu cheguei ver uma reportagem que aqui em São Paulo 125 eles tavam dando cursos, pra mulher, na, na área da construção Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica civil... É, eu tava lá ainda. E lá, quando eu vi, eu falei: nossa, como eu gostaria de tá lá agora pra fazer esses cursos, né? Porque é minha paixão. Então a gente viu o curso aqui em São Paulo na televisão. A gente tava junto. Aí falei pra ele: ‘Ó, lá tá vendo? Lá em São Paulo tem curso pra mulher... Eu vou ir pra lá e vou fazer esses cursos’. Mas aí ficou só na conversa mesmo. Mas aí a gente teve uns problemas e realmente eu tive que voltar pra São Paulo. Quando eu cheguei eu num procurei, porque eu tinha feito um curso de costureira, né? Lá em, lá em Araçoiaba mesmo. Aí eu cheguei em São Paulo e fiquei procurando serviço de costureira; aí eu trabalhei um pouco de costureira, tudo, mas assim não, não fazia minha cabeça, minha mente. Não é pra mim ficar sentada numa máquina, costurando, sem poder olhar pro lado assim, sem você... Trabalhei numas fábricas e trabalhei em casa também, numa senhora que eu ajudava a fazer os trabalhos dela. Aí eu vi o negócio do curso, né? No posto, de saúde. Eu fui ao posto e acabei vendo lá que elas iam dar curso pras mulheres que se interessassem. Eu falei assim: ‘Olha, é isso que eu quero, é isso que eu vou fazer’.” É interessante notar, no depoimento acima, a tensão que se estabelece na trajetória de qualificação e perspectivas de trabalho da entrevistada, entre a costura e a construção civil, entre uma profissão inscrita na divisão sexual do trabalho como “trabalho de mulher” e outra ainda vista com um campo de trabalho masculino por definição. A forma de divulgação do curso chama atenção: o cartaz estava fixado em um posto de saúde, local de grande circulação de mulheres em razão do trabalho reprodutivo de cuidado com a saúde. Aquele cartaz, fixado na parede de um posto de saúde, instaura e simboliza uma contradição em um espaço da vida cotidiana. Os relatos sobre a inserção neste setor revelam obstáculos e dificuldades pelo fato de serem mulheres que ingressavam em um campo de trabalho fortemente dominado pelos homens. A inserção representava uma ruptura com as fronteiras estabelecidas por uma rígida divisão sexual do trabalho que mantém esse campo e, notadamente, as atividades no canteiro de obras como um domínio masculino. Ainda quando rompem a primeira fronteira, da entrada, seguem sendo submetidas a novas divisões e hierarquias que estruturam a divisão sexual do trabalho: enfrentam situações de desvio de função e inserem-se em cargos de menor rendimento e sem carreira. “A dificuldade é de ser mulher, entendeu? Porque esse trabalho, ele é masculino, né? Ele é totalmente masculino. E a dificuldade é entrar nele, entrar, conquistar o espaço, entendeu? Essa é a dificuldade... Não existe uma dificuldade no trabalho, a dificuldade é entrar.” “Mas eles sempre colocaram aquele medo, né? ‘Ai, obra é coisa pra hômi’. E na verdade, num é verdade. Eles falam dentro da obra, na casa deles, né? Eles põe na cabeça das mulheres que obra é coisa de hômi, que é tudo muito pesado, que é tudo muito exaustivo, que é tudo muito... E num é verdade, entendeu? Num é. Tem muitas coisas lá dentro que até uma criança faria, entendeu? Então não acho que é, assim, eu não acho que é uma coisa impossível duma mulher fazer, num tem quem não possa fazer, entendeu? A não ser criança, porque 126 criança não pode trabalhar. Pra mulher tá difícil.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Porque não tem espaço, eles não dão. Eles não colocam lá... Eu liguei pra várias... Minha carteira tá lá, que eu sou ajudante de construção. Eu tenho dois registros, mas eu ligo e eles falam: ‘Ah, mas essa vaga num tá disponível pra mulher’. Entendeu? Aí, se eu ligo pruma vaga de pintor, também. Eles falam: ‘Não, é só masculino’. Entendeu? Essa é a dificuldade. É você entrar.” “Eu, particularmente, na obra que eu fui a principio, foi um pouco conturbado, assim, né? Porque quando eu entrei lá eles, eles começaram a me perguntar o que que eu fui fazer. Aí eu falei: ‘Olha, eu estou à disposição’. E eles me colocavam muito pra varrer, aí eu varria muito, né? Eu pegava muito entulho, mas não ligava não. Eu fazia mesmo o serviço, tudo que eles mandavam eu fazer, eu fazia. Daí, só que aí eu já num tava gostando muito, falei: ‘Não, se for pra mim continuar aqui eu vou sair porque eu num entrei aqui pra varrer. Eu quero pôr em prática aquilo que eu aprendi’. Mas aí conversando, entre eles... e me perguntavam que que realmente eu sabia fazer e tal. ‘Ah, mas eu sei fazer muita coisa, gente. Eu fiz curso disso, curso daquilo’, e falava pra eles. Aí um dia, um dos mestres tava precisando que fizesse um gesso, o gesso tinha quebrado, né? Uma parede, precisava entregar esse apartamento e ele falou: ‘Chama a Maria lá, vamo ver se ela faz esse gesso aqui, né, pra mim’. E aí ele pegou e me chamou, o encarregado do gesso, que era responsável por todo o gesso da obra, e aí me deu lá o negóço, me deu o gesso. Aí falou: ‘Cê sabe, cê tem como arrumar isso daqui pra mim?’ Falei: ‘Tenho sim’. ‘Cê sabe arrumar, cê tem certeza que você arruma?’. Falei: ‘Tenho sim’. Aí eu fui lá, peguei uma machadinha, quebrei, fiz o gesso, fui lá arrumei, deixei tudo bonitinho. Aí nunca mais eu parei, entendeu? Eu trabalhei assim na obra inteira, nas duas torres, de baixo em cima, de cima em baixo, eu fazia praticamente tudo que eles mandavam. Um ano e dois meses.” “Já tinha feito o curso de mestre de obras... Já estava procurando já e eu não conseguia me ingressar na profissão. Eles me deram oportunidade. Claro que eu tive preconceitos do engenheiro, qual ele me colocou em algumas situações realmente pra mulher. ‘Não vai conseguir, quinze dias ela vai sair dessa obra’. Me colocou em altura. Assim, serviços em altura, serviços que precisava ter um certo estômago, vamos se dizer, assim porque senão... Entendi aquilo como um um teste. Ao passar nesse teste o engenheiro começou a ver que eu não era só uma funcionária, que ele poderia contar comigo pra muito mais. Então ele era o engenheiro da empresa Metacon. E a empresa que eu trabalhava prestava serviços pra Metacon. Era empreiteira que prestava serviços pra Metacon. Então ele começou a ver as qualidades que eu tinha pra atuar. Então ele como profissional começou a me passar muita coisa, então ele me ajudou muito nesse sentido. Então é o que justamente eu entendo, enquanto o profissional não é capaz de vê que você é capaz... a capacidade que você tem, o profissionalismo que você tem, eles criam barreiras. Então depois que eu passei a primeira barreira com ele. parece que as portas em relação a eu e ele, engenheiro profissional, abriu. Porque ele começou a me passar todo o conhecimento que ele tinha e aí eu me senti mais 127 segura naquela obra. Mas aí acabou o contrato.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Eu quis atuar dentro do Corinthians, né?, no Itaquerão, mas eu também não consegui entrar.. Fui lá, né?, muitas vezes. Ficava lá na porta tentando, como todos os outros profissionais, mas infelizmente eu não consegui.” “Eu cheguei como ajudante geral. Eu cheguei após um vizinho meu. Eu estava desempregada, aí ele chegou para mim: ‘Cê tá trabalhando?’. Aí eu falei: ‘Não’. Ele: ‘Ah, me dá um currículo’. Ele falava: ‘Lá na firma está pegando’, mas eu achava que era na limpeza. Aí eu fiquei. Aí ele falou: ’Você encara?’. Eu falei: ‘Eu encaro. Desde que não seja roubar, pra mim todo serviço é digno’. Aí ele falou: ‘Cê vai mesmo?’. Ele ria, mas eu: ‘Vou, se me chamarem, eu vou’. Aí quando eu fui chamada, quando eu cheguei na empresa, eles falaram: ‘Você vai ser ajudante de eletricista’. Fiquei três meses e meio na elétrica. Ah, eu quero ficar na elétrica. Aí fui para a hidráulica. Fui ajudante na hidráulica e hoje sou encanadora.” Vale destacar que nas narrativas de profissionais altamente qualificadas e especializadas, as barreiras permanecem. No universo das sujeitas da pesquisa, o relato uma trabalhadora especialista em solda e que já havia trabalhado como instrutora em um polo naval é revelador desta dificuldade estrutural forjada pela divisão sexual do trabalho. “Na solda é difícil trabalhar, é difícil tu chegar lá, entendeu? É difícil de chegar lá. Eu levei currículo aqui pra tudo quanto é lugar... Os metrô que tá construindo, eu corto com plasma, eu corto com maçarico; eu ensinei na empresa dele a cortarem com maçarico. Tem coisas que os cara não sabiam, ensinei o cara a cortar com eletrodo, coisa que o cara não sabia.” Algumas entrevistadas ingressaram na atividade de construção propriamente dita a partir da indicação de parentes ou deslocando-se de atividades gerais no interior da obra para aquelas mais específicas da construção, propriamente. Essa forma de ingresso é também reveladora das dificuldades de inserção das mulheres no setor. “É meu primeiro emprego na construção civil, estou na fase de contrato de experiência com a empresa. Meu afilhado veio morar agora comigo, e ele já tá com uns vinte anos e veio morar comigo, aí precisa trabalhar, né? Veio tentar a vida aqui, aí meu pai arrumou pra ele na empresa e eu fui com ele que não sabe andar aqui em São Paulo, eu fui levar ele pra fazer as entrevista, pra fazer os exame... Tava de licença maternidade e depois acabou meu seguro, aí eu fui começar a procurar emprego, aí fui lá, levei ele e perguntei se eles não pegava mulher. Aí eles falou assim: ‘Cê tem certeza que você quer trabalhar em obras? Nós já pegamo doze mulheres, só tem duas... As outras saíram... Eu entrei agora porque elas desistiram. Aí ele disse: ‘Cê tem certeza que cê quer isso?’, ‘Tenho’. ‘Então me traz o currículo’. Aí eu tava com minha pasta de currículo, aí dei o currículo e fiz a ficha e fiz exame e comecei a trabalhar.” “Na Engemave eu tô dois anos e três meses nessa parte. Eu já trabalhava, né, mas na faxina, mas trabalhava na construção civil, mas em outra área. Vai fazer seis anos como eu já conhecia, eu trabalhando na limpeza já conhecia os pessoal, que a gente 128 conhece várias pessoas, né?” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras As dificuldades de inserção estavam também relacionadas à ausência de condições de trabalho que considerassem a existência de trabalhadoras no canteiro de obras. Algumas mulheres sujeitas da pesquisa, ao falarem de sua chegada neste campo, referem-se à ausência de banheiros e de espaços para troca de roupa em todo o canteiro de construção. “Que nem eu já trabalhei na outra empresa que eu trabalhava, tinha obra que não tinha um banheiro só meu... Um banheiro pra hômi também, às vez não tinha um lugar pra você se trocar. Aí entrava dentro dum barraco, né?, que eles chamam na obra de um quartinho, né? Aí os menino saía e as menina entravam pra se trocar. Tinha umas sete meninas. Meio que é meio constrangedor, né? Tá trocando de roupa, dentro duma casinha, um barraco de madeira, cheio de buraco, com um monte de hômi em volta.” Como a inserção das sujeitas da pesquisa no setor é, em geral, recente, as dificuldades apontadas na trajetória, assim como as condições de trabalho, podem ser vistas com dimensões atuais que caracterizam a experiência das mulheres no ramo da construção. Trajetórias revelam a fragilidade da inserção no setor e processos de precarização e desemprego recentes, como no caso das trabalhadoras que deixaram o emprego em uma empresa de construção para inserir-se em um projeto com apoio governamental e que, por razões que desconhecem, não se concretizou. “Na Gafisa, tinha carteira assinada, ganhava salário de ajudante e o que aumentava o salário era as horas extras. Tinha almoço na obra, vale transporte. No projeto das casas, tinha vale-alimentação, transporte e seguro. Eu troquei assim meio que o certo pelo duvidoso e acabei ficando sem trabalho, né? Qui nem eu tô agora, sem trabalho. Entendeu? Aí eu... eu me arrependi de ter saído de lá e...” “Aí eles convidaram a gente pra tá indo pruma obra. Aí a gente ia durante uma semana, ia trabalhar sem recebê. Só pra aprender, né? Ver se é aquilo mesmo. Eles iam pagar condução e alimentação durante essa uma semana. Aí, quem quisesse, poderia continuar. quem num quisesse, tchau. Aí eu me identifiquei. Era um salário bom, né? Fiquei trabalhando, trabalhei dois ano e oito meses. Trabalhei nessa empresa, depois eu trabalhei uns dois anos por mim mesma, né? Aí depois, aí como apareceu esse projeto aí das casinha, aí eu cresci o olho e vim. Por causa do projeto das casas. Porque o que eu faço aqui hoje é coisa que eu já fazia na primeira empresa que eu trabalhei, então meio que deu uma regredida. E eu num queria isso. Queria ir adiante, né? Não queria voltar pra trás.” Tensões entre trabalho remunerado e vida reprodutiva As trajetórias no trabalho remunerado são também influenciadas pelas demandas da vida reprodutiva e familiar, no caso do universo das sujeitas da pesquisa em São Paulo. Há relatos de afastamento de atividades remuneradas no momento em que os filhos eram pequenos ou recém-nascidos, o que repercutiu, no caso de uma trabalhadora, na dificuldade de reinserção e a obrigou a realizar atividades informais como forma de garantir renda. Encontramos relatos, ainda, de vivências de discriminação e assédio moral no local de trabalho em função da maternidade que terminaram por levar as 129 trabalhadoras a desistirem de permanecer no emprego. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “A família sempre precisou muito de mim... Tenho coração mole, sempre corri pra socorrê-los. No sentido emocional mesmo, né? Problemas familiares, eu tive uma irmã com HIV, que faleceu aos quarenta e dois anos e eu tive que dar suporte. Eu tive que largar minha vida várias vezes. É isso. Entre um trabalho e outro. Corria pra socorrer a família.” “Trabalhava na fábrica, fiquei de licença maternidade quatro meses e voltei a trabalhar; trabalhei quinze dias e pedi pra me mandarem embora. Eu sofri muito na gravidez com o meu supervisor. Porque ele assim, não aceitava assim, é porque assim, na fábrica, pro patrão, funcionário só é bom quando tá trabalhando; quando tá doente, funcionário não serve de nada. Ele me perseguia assim, me botava pra fazer as coisa que eu não podia, não podia sentar pra trabalhar. Só depois que eu trouxe uma carta da minha médica, sendo que ele sabia que eu tava grávida. Pegou muito no meu pé! Queria fazer eu assinar advertência por chegar atrasada, falou que eu tava chegando atrasada, falou que eu tava indo pro banheiro mais cedo me trocar, pegou muito no meu pé, sabe? Aí eu desanimei. E também a fábrica que eu trabalhava foi vendida.” “Aí eu casei e fiquei parada. Depois de um ano eu engravidei. Aí tive o meu filho e fiquei com aquela coisa de proteger o primeiro filho, fiquei com dó. Aí fiquei muito tempo sem trabalhar. Quando eu quis voltar eu tive dificuldade pra trabalhar. Eu terminei vendendo Yakult na rua.” A maternidade e o casamento são apontados, por algumas trabalhadoras sujeitas da pesquisa, como uma condição que dificulta a inserção de maneira plena no setor da construção civil e naquelas atividades que exigem longos períodos de afastamento do domicílio. O relato de uma das sujeitas da pesquisa expressa como o casamento produz um limite e uma tensão que se acentuam e que, nesse caso, foi um fator que levou ao abandono do emprego. A experiência narrada por essa entrevistada traz à tona uma dupla tensão enfrentada pelas mulheres trabalhadoras, produzida pelas relações sociais de sexo e sua base material, a divisão sexual do trabalho: elas são duplamente “afastadas” do trabalho no setor pelas fronteiras que estabelece este como um campo de trabalho masculino e, por outro, pelas exigências de permanência e ampla disponibilidade para o trabalho reprodutivo no interior das famílias. “Pelos problemas de ser mãe, né? Eu digo que se eu não fosse casada eu seria uma trecheira, que a gente diz trecheira. É uma mulher que trabalha em obras e em estradas. Então uma hora tá em São Paulo, uma hora tá no Rio. Tem muito a ver com minha personalidade. Mas eu sou casada, tenho dois filhos, mais um adotado. Então com o esposo dificulta muito essa vida de viajar muito, né? Então respeito esse lado do meu marido de falar que é melhor eu ficar mais em São Paulo. Então as obras continuaram nessa empresa depois, mas isso fora de São Paulo. E aí, como eu não podia acompanhar, a gente conversou e entramos num acordo que seria melhor eu me desligar da empresa.” 130 Relações de trabalho e direitos Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Os sujeitos que compuseram o núcleo central do universo da pesquisa na construção civil são trabalhadoras contratadas de empresas terceirizadas que prestam serviços às construtoras nos canteiros de obras de construção civil, em diferentes tipos de obras. A relação de trabalho predominante é a do contrato em regime celetista, porém por tempo determinado. O vínculo com as empresas contratadas permanece durante os períodos de construção de obras e a inserção no mercado de trabalho remunerado é marcada por intermitências permanentes. Nestes interstícios, essas trabalhadoras, em geral, prestam serviços como autônomas, também de maneira informal, até conseguir uma reinserção no setor com registro em carteira. No universo da pesquisa, não encontramos vínculos de trabalho no emprego atual superiores a dois anos de duração. A precariedade no trabalho configura-se, no caso dessas trabalhadoras, pela intermitência nos vínculos empregatícios, o que gera uma permanente condição de insegurança que, no caso delas, se agrava pelas desigualdades de gênero vivenciadas no interior do espaço de trabalho que as torna as mais vulneráveis, numa situação já precária, a perder o posto de trabalho, por sua condição de “fora do lugar”. “Eu fiquei oito meses, aí terminou o contrato, né?, que a empreiteira, eles trabalham com contrato. A empreiteira trabalha muito dessa forma: terminou o contrato, eles mandam embora, aí já pega outra equipe, pra outro setor, pra outras obras. Então eu fui dispensada, mas eu fiquei em contato com esse engenheiro que me indicou pra outras obras... daqui de São Paulo.” “Ah, hoje não tem nada, fica aí sentada. Então tá meio que assim. Tão num tá muito bom devido a essas coisa... Hoje não tem nada, ah, hoje passa uma vassoura aí no chão. Porque do jeito que a gente tá assim, num tem como você caminhar, né? Tá muito inseguro, tudo muito inseguro, intendeu?” “Trabalho na Gafisa, com carteira assinada, terceirizada. A minha empresa é terceirizada pela construtora. Há diferença de remuneração entre quem é terceirizado e quem é da construtora... Nós entramos, na época, dez meninas, dez mulheres na Gafisa, somente essas dez que entrou e não entrou mais ninguém: nem homem, ninguém mais mesmo... Na primeira obra que eu cheguei tinha um carpinteiro, gente fina o senhor, sabe: trabalhava, chegava no seu horário e tal, dedicadinho e tal, e mandaram ele ir embora. Mandaram férias pra ele; quando ele voltou, tem um tempo, eles mandaram ele ir embora. Eles não têm mão de obra. Eles não, é tudo terceirizado.” “Eu trabalhava na obra, então a obra ela é responsável pra contratar várias empresas, cê vê que são várias empresas, não é uma só. Então ó, aí tem limpeza, aí tem isso, tem aquilo, tem um monte de coisa. É isso, é assim, entendeu? São firmas contratada pra trabalhar, que nem aqui, a empresa Vitra, né? Então a Vitra ela contrata as empresa pra trabalhar dentro desse estabelecimento. Isso são muitas empresa, não é uma só”. “Ah, ela é multinacional. Uma das melhores empresa. Contratada. 131 Era um contrato de dois anos, mas agora... Eu vou continuar.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica As intermitências nos contratos de trabalho que caracterizam o setor da construção repercutem de maneira negativa na trajetória de trabalho individual registrado em carteira. As entradas e saídas sucessivas registradas em carteira aparecem como “queimação” da vida de trabalho, como um déficit da trabalhadora e não como uma dimensão da precariedade da inserção no mercado de trabalho. A brevidade das contratações, especialmente nos setores de alta especialização que fazem contratações para momentos específicos da etapa de construção, implica o não acesso a direitos trabalhistas que exigem um período de carência de vínculo, como o seguro desemprego. O que é uma condição estrutural das relações de trabalho no setor converte-se em um déficit da trabalhadora. É o que revela o depoimento de uma das entrevistadas que exerce a função de soldadora e que, no momento da pesquisa, havia sido recentemente demitida de emprego na construção civil. A narrativa dessa trabalhadora expressa de maneira contundente essa dimensão da precariedade vivida no setor e que não é apreensível pelas análises que tomam a relação formal e informal puramente em termos de registro ou não em carteira de trabalho, de maneira estática e apartada do contexto geral de configuração das relações de trabalho em um sistema capitalista, patriarcal e racista. O esforço de autonomia, da busca de qualificação e inserção profissional ao longo de sua trajetória e o forte sentido de realização existencial no exercício dessa atividade, expresso nas suas narrativas sobre trabalho, esbarram nas condições estruturais do mundo do trabalho que geram um desalento desmobilizador. “Estou desempregada há um mês, mas não tive direito a seguro desemprego. Eu fiquei só três meses com ele. Tô desempregada ainda, ainda não fui bater em porta nenhuma, tô criando coragem. Tô com medo de me decepcionar aqui... Não sei se vale a pena, porque aqui queima muito a minha carteira.” Salário e formas de pagamento As funções em que estão inseridas as trabalhadoras sujeitas da pesquisa nos canteiros de obra em São Paulo e Guarulhos são a de ajudante geral ou ajudante de pintor. Nessas funções, o salário médio fixado estava em torno de R$ 1.040,00. Segundo os relatos das sujeitas da pesquisa, variações na renda poderiam ocorrer em função da necessidade de realizarem horas extras, mas esta não se mostrou uma situação sistemática no cotidiano do trabalho remunerado das sujeitas da pesquisa. Uma das sujeitas da pesquisa era encarregada de obra e percebia rendimento médio de R$ 2.100,00, e outra, que exerce a função de soldadora, rendimento em torno de R$ 1.600,00. Segundo esta última, seu salário estava muito abaixo do piso salarial para um patamar de qualificação muito inferior ao dela, especializada em diversos tipos de solda. Os salários, de maneira geral, são pagos em dia fixo, mensalmente, por meio de conta bancária. Não identificamos relatos de atrasos no pagamento. “Eu recebia mil duzentos e oitenta reais, era direto na minha conta, tinha uma conta bancária, salário baixo pro que a gente vive lá, né? Aqui não tem salário pra soldador. Nem pra mim, nem pra soldador experiente de boa qualificação, assim realmente atuante, entendeu? Aqui em São Paulo não tem bancada, tu entende? Soldador trabalha em bancada, em produção, a gente trabalha em produção. Aqui não existe isso. Aqui existe aquele soldador que vai te dar um ponto, faz um cordão, deixar uma coisa em pé, entendeu?, dar estabilidade num pilar, vai pro 132 outro, entendeu? O nosso piso salarial é altíssimo, é dois mil quinhentos e oitenta. Mas não paga, São Paulo não paga...” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Ajudante geral. Agora a gente estamos como ajudante geral; quando passar um período na empresa aí muda depois de um ano.” “Tenho vinte e cinco anos no mercado. Presto manutenção, hidráulica e elétrica, faço as duas coisas ao mesmo tempo. Sou registrada. O pagamento é dia cinco e dia vinte. Acho que dá mil trezentos e pouco. Varia, porque se eu fizer extra, eu ganho mais.” “Trabalho na Gemave, que é uma terceirizada de elétrica e hidráulica. Tenho contrato CLT. O rendimento é de mil e quarenta reais. Tenho dia certo pra receber. Não atrasa. Sempre tem um vale e o pagamento. Não, vareia às vezes vareia. Às vezes cê dá extra, né?, vareia. Se você fazer extra, você ganha um pouco a mais. Se você não faltar também, é lógico, cê tem um pouquinho a mais também. Se faltar, se você faltou e num trouxe um atestado, num trouxe nada, com certeza tem um desconto, né? Mas eu não tenho o que recramar.” As trabalhadoras que compuseram o universo da pesquisa relatam situações sistemáticas de desigualdade salarial em relação aos homens, geradas principalmente pelo desvio de função, ou seja, entre a atribuição registrada na carteira de trabalho e a que de fato realizam na obra. Essas situações são expressões flagrantes de discriminação de gênero no local de trabalho e expõem o princípio do desvalor que estrutura a divisão sexual do trabalho. As trabalhadoras revelam que, de uma maneira geral, estão sempre inseridas na condição de “ajudantes gerais” ou “ajudantes”, o que implica os mais baixos rendimentos da cadeia de produção. Asseveram, nas suas narrativas, que o fator que explica essa desigualdade é o fato de serem mulheres. “Eu pedi pra sair porque eu tava exercendo funções que não tava na minha carteira. Na minha carteira eu tava registrada como oficial de pintor e eu tava exercendo já função de pintora, num era mais ajudante, nem nada disso. Já tava exercendo a função de pintora. Só que o salário não era de pintor, era de ajudante, né? Aí, algumas vezes, eles me davam alguma tarefa, que era onde eu conseguia tirar mais. O pessoal já antigo de casa, que é onde eles dão os melhores serviço, né? E aquele que ninguém quer fazê, dava pra mim. Pra pintor e pra ajudante ou pra meio oficial é outro. Aí essa parte foi uma das parte que eu saí da empresa, foi isso. Que exercia a função que num convinha com meu salário, né? Cê vai ficando desanimado, cê fala: ‘Não, peraí. Tem alguma coisa errada’. E cê tem também que se dar seu valor também, né? Se você sabe que você sabe fazer aquilo ali, tão cê quer ganhar por aquele serviço que cê tá fazendo, né? Não ganhar pruma coisa, e fazer outra”. “Lá, eu tava fazendo um trabalho de profissional, mas na minha carteira e o que eu ganhava era de ajudante. Então pra mim num tava muito legal, porque num é o que eu queria. O que eu quero é reconhecimento. É uma profissão, na minha 133 carteira, assim, do que eu sou, do que eu realmente faço.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Direitos Os direitos referidos pelas trabalhadoras sujeitas da pesquisa em relação ao seu vínculo de trabalho atual são, com efeito, aqueles garantidos pelo regime de trabalho celetista, a exemplo de férias, seguro desemprego e proteção previdenciária. O acesso formal, porém, não se expressa em uma vivência real desses direitos na experiência de trabalho, o que configura uma dimensão da precariedade que conforma esse campo de trabalho. A modalidade de contratação por tempo determinado, em empresas terceirizadas, é um fator objetivo que interdita a vivência de direitos como férias, sobretudo em função de o tempo exigido para ter acesso ao direito em geral não ser efetivado, para muitas, ou pelas exigências de permanência em função de obras seguidas em curso, para outras. “Direitos, eu sei que eu tenho direitos. Se um dia eu for mandada embora, tem que receber todos os meus direitos: é férias, é isso, né?, um monte de coisa. Já tirei férias já. É minha primeira férias. Quase três anos, nunca tirei férias pra nada, o meu negócio era trabalhar. Ou eu vendia as férias ou eles num me dava.” “Seguro desemprego, querendo ou não é uma garantia. Dá pra cê segurar até cê arrumar outra coisa, né? Tem fundo de garantia? Cê tem, né?, umas coisinha. Tão, dá pra segurar. Ah, tenho cesta básica, né? É vale-alimentação, na verdade, nem é cesta básica. Tem mais o quê? Eh, vale-transporte. Tem férias remuneradas, mas não teve ainda, porque não tem um ano de serviço.” “Tenho carteira assinada e os direitos. Tenho vale-alimentação, café e almoço. Devia ter adicional por periculosidade, mas não tem.” Um fator subjetivo que se apreende da fala das sujeitas da pesquisa é o receio de perder o emprego caso se afastem do local de trabalho, o que relatam ter ocorrido em outras situações. Este fato está diretamente relacionado à sua condição de “fora do lugar”, que gera nas sujeitas da pesquisa uma maior sensação de insegurança. Conforme vimos acima, as intermitências no vínculo também atuam como impedimento, em muitos casos narrados de trabalhadoras que passaram por períodos de desemprego, para acessar o seguro desemprego, direito também condicionado ao cumprimento de carência. Em relação a este último direito, as recentes mudanças nas regras de acesso, que expandiram o tempo de carência de no mínimo dois anos de vínculo empregatício, atingem diretamente esse universo de trabalhadoras, agravando a situação de precariedade no mercado de trabalho. Processo de trabalho individual e coletivo Os relatos sobre processo de trabalho expressam duas situações contraditórias no conjunto das sujeitas da pesquisa: há aquelas que, como ajudantes gerais, afirmam realizar diferentes atividades no interior do canteiro de obras, sem nenhuma definição mais precisa, em um processo sem rotina definida; estas realizam atividades difusas, sem uma rotina definida, utilizando diferentes ferramentas. Referem-se, também, a 134 constantes “desvios de função”, como se vê nos relatos a seguir: Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Minhas tarefas é que a gente tá meio perdida. Aqui a gente anda fazendo meio o que aparece, entendeu? Tem que organizar um bloco aqui. A gente vai ali, arruma os bloco. Tem que pôr essas cadeira pra lá, a gente põe. Tão tá meio que um faz-tudo. Um ajudante mesmo, né? Que é o que tá na minha carteira: ajudante. Tão sou mermo ajudante. Faço de tudo um pouco.. Precisa arrumar um cano, um pouco de elétrica, de tudo um pouco. Pintura, piso. Tudo eu manjo um pouco. O que eu realmente manjo de olhos fechado em fazer é uma pintura, né? Que é minha profissão mesmo, minha especialidade, né?” “Na primeira obra eu fiz um pouco de tudo, tudo na parte de acabamento, né?, tipo janela, se tá torta, tem que soltar, janela que não foi chumbada ou porta que tá com diferença. Chega mais adiante aí tem um azulejo, tem um piso, tem não sei o quê... Tudo que é tipo de servicinhos assim, no geral. Se é um gesso que não foi acabado, foi quebrado lá e que precisa refazer. Então eu fiz de tudo, um pouco de tudo lá, entendeu? É engraçado e foi bom, que quando eu entrei na empresa eu não sabia fazer remate nem piso e nem de azulejo. Aí eu fui, voltei para a escola e o mestre me deu oportunidade. Aí eu voltei para a escola, para pegar legalzinho. Aí fui melhorando. Hoje em dia eu fiz remate de piso. Se precisar pintar, eu pinto. Se precisar fazer a massa toda, eu faço. Se precisar fazer uma alvenaria, eu faço. Eu só não mexo com elétrica e hidráulica. Hoje minha tarefa foi um remate de textura para fazer, aí tive umas remate de rejunto para fazer e tinha uns remates de alvenaria para fazer. Ai foi isso, e amanhã eu vou dar continuidade, entendeu? ... Tinha uma escada. Aí o último degrau tava torto. Aí eu fui lá e quebrei, dei pavimento, aí fiz o acabamento, essas coisas. A parede tava furada. Fui lá e fechei, e assim nós vai indo. Então toda parte de acabamentozinho, geralzinho, eu tô pegando.” “Pior que eu nem sei descrever o que eu faço. Porque eu só ajudo o menino, eu só sou ajudante. Eu monto as peças que ele me pede, no caso, corto tubo, De encanamento, isso. Eu ajudo o encanador. Sempre a mesma pessoa, desde que eu entrei até agora, sempre a mesma pessoa. O encarregado da hidráulica é que define as tarefas.” O relato de uma trabalhadora revela essa não integração nos processos de trabalho coletivo no interior da produção. Ela “vagueia” pelo canteiro de obras fazendo pequenos reparos, consertando os defeitos na construção de um prédio, andar por andar. Na sua própria percepção, vê-se ocupando um patamar inferior na cadeia produtiva da obra. Depois de tudo realizado, ela faz pequenos reparos. Não tem ajuda, pois já ocupa a função de ajudante; mas tampouco ajuda, diretamente, pois não se relaciona com outros colegas no processo de construção propriamente. A solidão a que se refere não é um dado subjetivo, mas uma expressão objetiva do lugar que ocupa no processo de trabalho; é a expressão concreta da dificuldade de se inserir no processo produtivo no interior do canteiro de obras. São “ajudantes gerais”, ocupação que, conforme define uma das sujeitas da pesquisa, é tudo e nada ao mesmo tempo. Tudo pela imprecisão de 135 tarefas, nada pelo desvalor. Não existem outros níveis de ascensão nesta função. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Eu sou sempre solitária. Aí eu mesmo pego meus materiais, pego sempre o que eu preciso. Mas é bom, eu gosto, até acostumei. Então assim, não tenho ajudante, o ajudante sou eu; mas não tem problema não, eu chego lá. Hoje mesmo, eu tinha esse serviço para fazer, já peguei o material. Fui lá, busquei textura, fui procurar uma vasilha para colocar a textura, um pincel. Aí peguei a chave, fui para o andar, quer dizer, meu serviço é assim, sempre faço minhas coisinhas tudo assim, de boa. Não tem esse negócio não, até porque sou só eu. Eu sou a que tá na cadeia lá embaixo. A mais baixinha sou eu, entendeu?”. O segundo grupo, minoritário, refere-se a processos de trabalho extremamente especializados. Entre essas trabalhadoras estão uma encarregada de obras e uma soldadora. A primeira ocupa um lugar estratégico no processo de trabalho, liderando processos e equipes, distribuindo tarefas, organizando e respondendo às atividades permanentes, assim como às imprevistas, no setor. A soldadora descreve seu processo de trabalho de maneira precisa, como um processo singular de interação com os materiais transformados e com o instrumento de trabalho. “O instrumento do soldador é a máquina... e a habilidade dele, né? Soldador é a máquina, a máscara dele, os ZPIs dele, é o que ele vai trabalhar aquilo ali. Ele tem que ter conhecimento na máquina; aqui não tem, aqui tem máquinas digitalizadas, da Bauer... máquinas eletrônicas, cê vai lá e põe o dedinho pra tal coisa e tal... Vai te dar velocidade, tempo ao que é correto... Aqui não, aqui tem que regular no dedo, que a máquina fala contigo, o barulho dela vai te dizer se a solda tá boa ou não.” As trabalhadoras sujeitas da pesquisa que são funcionárias de empresas terceirizadas no canteiro de obras relatam que as empresas não disponibilizam os equipamentos de proteção individual, de modo que elas mesmas têm de “se virar” para viabilizá-los, seja adquirindo-os elas mesmas ou pedindo emprestado dos trabalhadores de outras construtoras, também trabalhadores precarizados. Dá-se o mesmo em relação aos instrumentos de trabalho. “EPIs... uma máscara, a empresa não fornece. Vou num, vou no outro, vou pedindo máscara: ‘Tem máscara? Você tem óculos aí? Você tem não sei o quê?’ e vou indo. Eles não se importam, é tudo: ‘Pega aí’. Tudo é terceirizado. Eles não têm essa preocupação porque, assim, o mestre de obras não vai precisar de EPIs na cabeça deles. É uma falha. Uma falha que existe neles, nesse terceirizado. Aí eles têm essa falha. É uma falha dentro da empresa, mas não vou falar alguma coisa para eles, não vou, né?” “Os instrumentos, o certo seria a empresa dar, só que a empresa não tem almoxarifado mais porque a mão de obra da empresa é toda terceirizada. Aí o que é que a gente faz? A gente pega sempre de alguém emprestado, entendeu? Eu tenho minhas ferramentas, porém eu não vou pegar o meu salário e buscar uma ferramenta para o uso deles, até porque a empresa, no caso, deveria me fornecer, já que quer que eu trabalhe. Só que uma vez eu fui falar, o cara disse: ‘Não, não sei o quê, blá-blá-blá... eu não sou o mestre, fala com ele’. Já 136 tirou o corpo fora. Pô, meu, a empresa, um porte desse grande, miguelando para comprar uma ferramenta.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Hoje mesmo, eu precisava de uma colher de pedreiro. A minha colher de pedreiro sumiu. Como tem um cara prestando serviço lá, eu fui lá e: ‘Empresta pra mim a colher?’, e ele sempre empresta, não tem problema. Aí eu falei: ‘Só que vai demorar um pouco”, e ele falou: ‘Tem problema não’. Então eu não passo apertado. Se eu preciso de uma serra, eu vou lá tomar emprestado de alguém, assim: ‘Moço, tem uma serra aí?’, aí ele ‘Tenho’, e eu: ‘Então me empresta aí, por favor’.” “As ferramentas que nós costumamos usar é a trena, a serra, a chave de boca. São nossos. É meu porque eu levei; a Engemave ela não fornece pra gente, ela fornece poucas coisas, então trena, chave de boca, essas coisas a gente tem que ter. Assim, eu adquiri através do meu pai, que eu peguei dele. Assim, quer dizer, tô pegando pra começar, mas na verdade não tenho lá. Assim, ninguém ainda chegou pra mim e me falou: ‘Cê tem que comprar suas ferramenta’, mas sei porque as menina compra, aí as menina fala o que a gente tem que comprar.” “A gente tem que comprar pra gente poder efetuar o serviço. A empresa, ela dá os material pra você, pra você, pra o serviço, mas você tem que ter sua ferramenta, né?, porque não é certo ter nossa ferramenta e ficarem toda hora pegano sua, e pegano de fulano e de ciclano, ciclano também precisa usar. Então fica chato você ficar pegando as coisas dos outros, né? Você tem que ter o seu. Pra você começar, é uma chave, um alicate, coisa básica. Você tá aprendendo, você vai aumentando. Vai enchendo a tua mala.” “Só minha máscara que eu levo, porque eu tenho uma máscara minha da cor lilás. Eu optei por pintar ela, pra ficar mais feminina.” Os depoimentos acima revelam que existem separações e hierarquias entre tarefas realizadas pelos homens e pelas mulheres no local de trabalho. Quando falam sobre sua percepção em relação a essa divisão do trabalho e às diferenças existentes, as narrativas expressam concepções essencialistas que relacionam a tarefa masculina ao emprego de “força física”, ao passo que atribuem a si mesmas uma maior habilidade para acabamento, pela atenção aos detalhes. Uma das sujeitas da pesquisa, no entanto, refere-se a essa diferença como sendo produzida pelo acesso que os homens tiveram ao conhecimento nesse campo, transmitido ao longo de gerações entre homens. “Ah, eu não sei, como é que eu posso falar se existe diferença? Eu acho que a única coisa que diferencia a mulher do homem é a força bruta, ou seja, se você não exigir a força bruta de uma mulher, outros serviços, ela faz normalmente... De boa. Faz até melhor que muito homem. Que os homens são meios assim, meios desleixados, a natureza, entendeu? Mas tirando o esforço físico, não tem essa coisa não.” “Olha as duas obras que eu estou. Eles falaram que a gente fez um serviço melhor na solda. Que era eu e a outra menina que saiu... que a gente fizemo. Eu fui arrumar um serviço malfeito dum terceirizado. Eu, uma mulher, fui conferir o serviço terceirizado. Então para eles: ‘Nossa, chama aquela menina, que ela faz melhor, ela solda melhor’. Mulher é mais prestativa, tem 137 mais atenção com as coisas que faz.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Ah, os homens são mais relaxados. Pode tá fazendo, não importa se tá bom, se tá do jeito que era pra tá. Eu acho que a mulher é mais atenciosa.” “Num existe diferença no trabalho de homens e mulheres... porque a mulher são muito mais capaz do que os homens. Em tudo que faz, faz bem-feito, as mulheres. Então não tem diferença. Eles que se acha que, que é o melhor, porque é homem; mas eu acho que não tem diferença nenhuma. Só tem discriminação mesmo. Deles. Da parte deles.” “Mas um conteúdo que ele traz de um conhecimento que vem de ancestrais, de pais e foi que geralmente essa profissão vem de mais antigamente, vinha com os pais, né?, eles trabalhavam com o pai, pegavam o conhecimento e traziam o conhecimento. É uma coisa que nenhuma faculdade tem. Então eu meu sinto dentro de uma obra aluna dos pedreiros, né?” “Eu acho que eles podem trabalhar no mesmo ambiente, que eu acredito que a mulher ela pode ajudar o homem. Tem coisas que o homem não enxerga e que a mulher enxerga. E tem que coisa que o homem pode fazer e que a mulher não pode. Acho que tem que trabalhar unido os dois. Porque as mulheres são mais detalhistas, né? Homem não se preocupa com essas coisas não. Pra eles tá tudo bem. A mulher já não, né? Mas agora eu falo assim de questão de força.” Relações de poder no trabalho Embora refiram relatos de solidariedade na relação com os homens no local de trabalho, por exemplo, no empréstimo de ferramentas de trabalho, as narrativas também explicitam situações de tensão, especialmente na relação com homens que estão em posições superiores na hierarquia e no momento da entrada no canteiro de obras, assim como práticas de dominação, como assédio sexual, tal qual se vê nos depoimentos abaixo, nos quais se apreendem os movimentos de resistência. Uma das trabalhadoras, que chegou a ocupar a posição de encarregada de obras no local de trabalho, relata ter sofrido assédio moral de um engenheiro, movido explicitamente, na sua percepção, pelo fato de ela ser uma mulher, o que acabou levando-a a sair do emprego. Estes relatos revelam o conflito nas relações sociais de sexo instaurado no local de trabalho pela ruptura de fronteiras rígidas estabelecidas pela divisão sexual do trabalho e evidenciam, portanto, o antagonismo inerente a estas relações. “Nunca sofri assédio fora do normal... O normal é o assédio assim, de todo mundo falar, cê chegar na obra, daí todo mundo fala: ‘Nossa, como cê tá bonita hoje’. ‘Ô Maria, e aí, comé que foi?’... Coisa normal. É elogios, que você leva, ganha muitos elogios. Eles chamam a gente pra sair, lógico. Eu acho que assim, até coisa normal. Eu acho que lá ou em qualquer outro lugar a gente vai sofrer esse tipo de, de assédio. Que é chamar a gente pra sair. Eu fiquei sabendo, inclusive era uma amiga minha que entrou com a gente junto, e ela contou que sofreu um assédio sexual e por isso ela saiu. Ela sofreu esse assédio por parte dum mestre de obra, e aí não fizero nada.” 138 “Era isso que o engenheiro queria, realmente ele me deu o problema pra mim solucionar o problema, ele não queria que Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras eu ficasse na inércia? ‘Ó, o problema tá aqui, resolva’. Consegui. Segunda obra que eu fui, projeto de mapeamento... dos apartamentos, completamente diferente daquilo que eu tava trabalhando. Me enfiei de novo nos estudos, então comecei a trabalhar sobre bloco estrutural, colocação, aplicação, tratamento. Foi dentro de um mês, porque eu só fiquei nessa obra um mês, por conta dos conflitos com o engenheiro. Por quê? Porque a minha empresa era terceirizada, dentro dessa obra. O conflito com ele era uma mulher na obra, então ele, tudo que ele pudesse fazer pra mim tirar da obra, ele ia fazer; eu tinha que usar o espaço deles, porque eu era mulher... E os assessores sempre me tratavam bem, porque tavam vendo o profissional que eu era. Num determinado momento, ele pediu pra que eu fosse até no almoxarifado buscar um produto pra colocar a aplicação do piso, e eu fui até lá, só que assim, dentro de obras, grande, eles vendem galão... cinquenta litros... e ele pediu na ocasião que eu fosse buscar. E eu fui até lá, identifiquei o produto e pedi pra que levasse o produto pro setor lá em cima. E na reunião que teve, né?, que ele tava participando com o dono da empresa, ele falou que eu mandei subir um produto, do qual não era o especificado pro serviço, e o meu supervisor desmentiu na hora na reunião, ele falou é mentira... E ali houve um conflito, e eu me senti humilhada, porque num tinha necessidade de ter me retratado daquela forma, todo mundo viu da forma que ele agia, mas ele era o engenheiro e ele mandava na obra. Então eu pedi pra que fosse mandada embora, porque não tinha espaço ali pra mim, né?” “Depois tem aqueles que veem que tu não é aquilo. Eu fui assediada, em um lugar eu fui assediada. Um cara falou pra mim que se eu saísse com ele, ele ia facilitar pra mim o serviço. Eu fui e falei com meu engenheiro, foi falado pra ele, falado pra eles que eu não tinha mais condições de trabalho. Eu liguei pra outro encarregado de outra obra e pedi pra ele me transferir, ele me transferiu no mesmo dia. O meu engenheiro, eu acho que foi até lá, conversou com outro engenheiro. Ele foi afastado do serviço, com certeza.” Nos grandes canteiros de obra, em que a presença masculina é majoritária e se revela, nas relações no cotidiano, uma disputa pelos postos de trabalho e práticas masculinas que intentam manter as fronteiras na “divisão sexual do trabalho”, o receio de ser apontada como “lésbica” funciona como uma interdição para a entrada e a permanência das mulheres. “Os homens te olham com uma certa arrogância. Primeiro eles te olham como se eu fosse... primeiro impacto, vestida com a roupa de homem, com a bota, com uma roupa mais masculina. Primeiro te olham achando que tu é sapatão, já te julgam teu lado... será é o teu lado... é sapatão... Ainda mais eu que uso cabelo curto, já uso cabelo curto por causa da máscara, que queima muito o meu cabelo... É sapatão... já te dão aquela gelada, assim te tratam meio com aspereza porque é uma mulher querendo espaço de homem como uma profissional, uma mulher com característica de homem. Fisicamente eles acham que tu é homem, que tu quer ser homem. Não é nada 139 disso, né? Eu sou bem mulher, tenho cinco filhos e um neto.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Na área da construção civil em si, sei e conheço vários casos da dificuldade da mulher. Tem sim dificuldade com relação à forma que você é vista. Assim, já que você quer se igualar aos homens, então vamo lá, cê vai ter que mostrar que você tem a força, vamo lá. Eles costumam judiar um pouquinho, num é tão assim. É de piadinhas, por ela ser mulher, né? Por ela tá ali querendo ser igual o homem, é ‘mulher-macho’, coisas do tipo.” Esses depoimentos da pesquisa confirmam que, “independentemente de suas práticas sexuais reais, a ameaça de ser estigmatizada como lésbica é um potente meio de negar a qualquer mulher o acesso aos ‘trabalhos de homens’, os mais prestigiosos e os mais bem remunerados” (PHARR, 1988 apud FALQUET, 2008). CONSIDERAÇÕES A PARTIR DAS TRAJETÓRIAS Os percursos das trajetórias de trabalho revelam que as desigualdades de gênero e raça produzem trajetórias precárias de trabalho. A precariedade não é estática, mas pode ser apreendida na trajetória de vida, nos movimentos progressivos de precarização com frágeis intermitências de formalização mesmo em contextos de forte crescimento econômico. Nessas trajetórias, a alternativa em termos de ocupação que lhes assegura uma garantia de trabalho nesse contexto de profunda insegurança na atual ocupação é aquela na qual iniciaram sua trajetória de trabalho remunerado: o emprego doméstico. O fio condutor dessas trajetórias no trabalho remunerado, que conecta trabalhadoras inseridas em diferentes contextos e ao longo de gerações, é a precariedade das relações e condições de trabalho nas quais estiveram inseridas ao longo de sua trajetória produtiva. A autonomia econômica é um processo construído no contexto de limitações estruturais que conformam a organização do trabalho produtivo e reprodutivo, produzindo constrangimentos na renda, nos direitos e no tempo. Porém, ter um trabalho remunerado ganha sentido e força quando se consideram nas trajetórias o enfrentamento e a resistência ante as relações de apropriação vivenciadas nas relações sociais de sexo, de desigualdade e discriminação nas relações de raça, e de extrema exploração e privação produzida pelas relações sociais de classe. Para além de ter uma renda própria que lhes assegure a capacidade de tomar decisões e de superar situações de dependência financeira em relações de apropriação, a autonomia está fortemente relacionada ao sentido de formar-se trabalhadora e construir uma profissão. Reconhecer-se como trabalhadora, ainda que em relações precárias, emerge na percepção das sujeitas da pesquisa, nos três contextos em que realizamos a pesquisa, como um valor em si. No caso das trabalhadoras da construção civil, essa afirmação ganha ainda mais força pelo fato de trabalharem de maneira remunerada e de terem uma profissão em um campo historicamente limitado à presença das mulheres. O que se apreende das trajetórias é que a autonomia econômica é um processo que se forja em contradição com as dimensões materiais e simbólicas que sustentam as relações sociais de sexo, classe e raça. As narrativas também evidenciam que a precariedade que as trabalhadoras enfrentam se conforma na tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo ao longo das trajetórias de vida e nas relações de trabalho atuais. Nesse sentido, podemos afirmar que se a organização do trabalho produtivo está baseada na superexploração e na precariedade, a organização do trabalho reprodutivo segue ancorada na apropriação ilimitada do tempo de vida destas trabalhadoras no interior das famílias, agravada pela 140 precariedade de estrutura social para responder às demandas deste campo, o que Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras termina por retroalimentar sua condição precária de inserção no trabalho remunerado. O déficit de direitos relacionados à reprodução social se expressa já no momento do parto e se mantém ao longo da trajetória, na ausência de equipamentos para cuidados dos filhos pequenos, situação que reflete diretamente nas trajetórias de trabalho produtivo como limitações e, em alguns casos, como fatores que empurram as mulheres para a inserção mais precária. Em todos os contextos, os relatos referem-se ao período da gestação como marcados por intensificação do cansaço. Esta expressão de cansaço relatado nas narrativas das sujeitas da pesquisa é radicalmente particular da experiência das mulheres no mundo do trabalho. Podemos afirmar que a gravidez é o momento da trajetória em que os encargos da produção e da reprodução confluem e se expressam de maneira inextricável e irredutível na materialidade corpórea das trabalhadoras: nesse período, elas, e somente elas, são um corpo que a um só tempo produz e reproduz. No trabalho produtivo em que empregam grande esforço físico e no processo reprodutivo da gestação de um outro corpo. Na materialidade do corpo toma lugar essa síntese contraditória que tem como corolário o cansaço extremo. O cansaço, nesse período, ganha uma conotação única e uma condição singular só vivida pelas trabalhadoras. Nas narrativas das mulheres há um antagonismo de difícil superação entre as exigências do trabalho produtivo e reprodutivo e os processos de estudo e qualificação. Parte das sujeitas da pesquisa menciona a interrupção dos estudos diante do impedimento expresso de homens da família, como pais, ou da falta de suporte de companheiros. A vivência do casamento é também narrada como um momento de interdição à continuidade dos estudos, o que expõe um bloqueio – que na trajetória delas não se reverte em conflito – produzido pelas relações de gênero desiguais. O nascimento dos filhos e os encargos consequentes levam a uma conformação do tempo da vida para responder às exigências do trabalho reprodutivo e do trabalho produtivo, resultando na interrupção dos estudos. Na trajetória das sujeitas da pesquisa no trabalho remunerado, podemos apreender as diferentes estratégias acionadas pelas empresas nos três contextos investigados para reconfigurar as relações de trabalho, tornando-as ainda mais periféricas e precárias, e nas quais as mulheres são os sujeitos diretamente concernidos. A precariedade não é uma situação estática dada pela natureza do vínculo estabelecido; ela é um movimento permanente estruturado por processos materiais e ideológicos que podemos apreender nas trajetórias laborais das sujeitas da pesquisa e na articulação entre produção e reprodução social. Nas suas trajetórias no trabalho remunerado revelam-se o movimento mesmo de precarização e as formas que vão tomando ao longo do tempo, nos três contextos, a desvelar um movimento de precarização progressiva que modifica e torna ainda mais complexa a apreensão da dinâmica formalização-informalização. As relações de trabalho em que as mulheres estão inseridas, nos três contextos, também revelam relações precárias de trabalho, mais evidentes no caso de Toritama, em que estão inseridas no trabalho doméstico em domicílio; e mais disfarçadas no caso das trabalhadoras das cooperativas, em Barcarena; e daquelas inseridas nos grandes canteiros de obra da construção civil. Em Barcarena, o que pudemos apreender é que as sujeitas da pesquisa foram ao longo de sua trajetória inseridas de maneira periférica e gradativamente afastadas da 141 relação mais direta e formalizada com as empresas do Polo Industrial que constitui o cerne do processo de desenvolvimento da região. Primeiro, inserem-se como assalariadas; Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica posteriormente, passam a terceirizadas de firmas que prestavam serviços às empresas, até chegarem às cooperativas que, por sua vez, foram criadas pelas próprias empresas como estratégia de redução dos custos com a mão de obra. Nessas cooperativas, só recentemente, em 2012, passaram a ter acesso a direitos. As cooperativas estão completamente subordinadas às empresas, que definem o processo de trabalho, as regras de segurança, o volume de produção e, consequentemente, o fluxo de renda. O ideário da autogestão esfuma essa relação de subsunção e subordinação das trabalhadoras ao Polo Industrial. Ganha força, ainda, uma contradição entre ideário da autogestão e uma situação concreta de nenhum poder de tomada de decisão, e mesmo de conhecimento sobre como estas decisões são tomadas. Há uma organização hierárquica no interior da cooperativa em que as decisões são tomadas pelo presidente, um homem em diálogo direto com as empresas. Essas trabalhadoras, que exercem a atividade de higienização de uniformes, estão no último momento de uma cadeia produtiva que se inicia nas empresas e termina na higienização dos resquícios da produção industrial. Em Toritama, as mulheres se acham inseridas em uma relação de trabalho historicamente reconhecida como marcada por profundos níveis de exploração: o trabalho em domicílio remunerado por peça. A perspectiva profissional que se coloca no horizonte para as trabalhadoras de Toritama é a de converter-se em dona de facção. Esse anseio mobiliza um esforço individual de acumulação que leva as trabalhadoras que não são e mesmo aquelas que já são trabalhadoras-empregadoras das facções a estender e intensificar suas jornadas de trabalho, em um processo que atravessa os limites de tempo e do corpo, para se tornarem “empresárias de si mesmas” (HAN, 2015) ou “empreendedoras”, no discurso de modernização amplamente disseminado no local. O que é comum a todas são jornadas que se estendem e intensificam no dia e na semana, para garantir patamares de rendimento mensal que lhes assegurem condições de sobrevivência, o pagamento das contas mensais e, por conseguinte, uma autonomia econômica sempre relativa. Algumas sujeitas da pesquisa referem-se à ocupação na costura como “sem garantias” ou “sem futuro”, do que se depreende que a inserção neste contexto precário de trabalho forja um instável processo de autonomia econômica que se mantém no presente pelos ritmos e jornadas intensas de trabalho que produzem, quando somadas ao tempo do trabalho produtivo produzido pela divisão sexual do trabalho, uma carência de tempo para outras atividades e para si mesmas, e que, dificilmente, pela situação de desproteção social em que se inserem, pode ser sustentada no tempo e, especialmente, no futuro. Na construção civil, a precariedade no trabalho configura-se, no caso das trabalhadoras, pela intermitência nos vínculos empregatícios, que gera uma permanente condição de insegurança que, no caso delas, agrava-se pelas desigualdades de gênero vivenciadas no interior do espaço de trabalho, que as tornam mais vulneráveis numa situação já precária, a perder o posto de trabalho, por sua condição de “fora do lugar”. Elas se encontram numa situação de limbo: nem são plenamente assalariadas, nem inseridas no classicamente tratado como trabalho precário, sem registro em carteira e sem direitos. As intermitências nos contratos de trabalho que caracterizam o setor da construção repercutem de maneira negativa na trajetória de trabalho individual registrado em carteira. As entradas e saídas sucessivas registradas em carteira aparecem como “queimação” da vida de trabalho dela, como um déficit da trabalhadora, e não como uma dimensão da precariedade da inserção no mercado de trabalho. A brevidade das contratações, especialmente nos setores de alta especialização que fazem 142 contratações para momentos específicos da etapa de construção, repercute no não acesso a direitos trabalhistas que exigem um período de carência de vínculo, como o Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras seguro desemprego. O que é uma condição estrutural das relações de trabalho no setor converte-se em um déficit da trabalhadora. A relação de trabalho predominante é a do contrato em regime celetista, porém por tempo determinado. O vínculo com as empresas contratadas permanece durante os períodos de construção de obras, e a inserção no mercado de trabalho remunerado é marcada por intermitências permanentes. Nestes interstícios, essas trabalhadoras, em geral, prestam serviços como autônomas, também de maneira informal, até conseguir uma reinserção no setor com registro em carteira. A insegurança do vínculo se aprofunda em decorrência de serem “trabalhadoras” em um campo de trabalho masculino. A análise das relações de trabalho, das relações no trabalho e dos processos de trabalho evidencia que essas trabalhadoras se encontram numa situação de limbo: do ponto de vista das relações de trabalho, nem são plenamente assalariadas, nem inseridas no classicamente tratado como trabalho precário; do ponto de vista das relações no trabalho e do processo de trabalho, vivem em geral em uma condição de não-lugar: nunca plenamente integradas, nem totalmente excluídas. As trajetórias revelam as dificuldades de inserção profissional das mulheres neste campo, em que pesem os níveis de qualificação que possuem, e a frágil inserção promovida pelas políticas públicas em curso. O que se apreende dos relatos das sujeitas da pesquisa é que o elemento constante de garantia de melhores patamares de renda para essas trabalhadoras é a intensificação de seus ritmos e jornadas de trabalho: em Barcarena, na garantia do cumprimento da produção do mês; no caso de Toritama, o rendimento depende da produção em função do salário por peça. Há a percepção de que a renda vem sofrendo quedas, o que impacta diretamente na capacidade de planejarem sua vida financeira e emerge como um fator de instabilidade da sua condição de trabalho que afeta diretamente suas possibilidades de manterem uma autonomia econômica sustentada. Os mecanismos que sustentam a divisão sexual do trabalho – divisão e hierarquia (KERGOAT, 2010) – expressam-se de maneira concreta nos três arranjos de trabalho investigados, produzindo desigualdade salarial entre homens e mulheres. Nesse cenário, forja-se um instável processo de autonomia econômica que se mantém no presente pelos ritmos e jornadas intensas de trabalho que produzem, quando somadas ao tempo do trabalho produtivo produzido pela divisão sexual do trabalho, uma carência de tempo para outras atividades e para si mesmas – e que, dificilmente, pela situação de desproteção social em que se inserem, pode ser sustentada no tempo e, especialmente, no futuro. A percepção de que a atual situação no mercado de trabalho e nas condições de vida, assim como possíveis melhoras, depende do esforço individual é expressão de um processo de individualização forjado nas relações de trabalho em que estão inseridas, aprofundado pela mediação de uma ideologia liberal que reforça tal perspectiva, mesmo no contexto de trabalho cooperativado, e que ganha sua expressão máxima no ideário do “empreendedorismo” em Toritama. Ao tempo que as conquistas na trajetória são vistas como resultado de um esforço próprio, como o de ter uma profissão, os déficits e ausências são também percebidos como um déficit individual, só passível de superação desta mesma maneira. Esse processo de individualização de processos que são inerentemente sociais é reforçado pelas relações de trabalho em que estão inseridas. A individualização, nesse processo, ganha contornos extremos: da capacidade de empregar-se (empregabilidade) à de manter-se produtiva, saudável e viva, a responsabilidade é da trabalhadora. As narrativas revelam que, na percepção das entrevistadas, são elas que estão em permanente débito com o mercado de trabalho e 143 consigo mesmas. Isto se expressa de maneira flagrante na organização dos processos de trabalho e, especialmente, nas questões relacionadas à segurança e saúde das Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica trabalhadoras. As empresas operam uma “transferência de riscos para os trabalhadores” (Antunes, 2011), que passam a se sentir responsáveis pelos possíveis “infortúnios” que venham a sofrer no local de trabalho. As narrativas das sujeitas da pesquisa sobre suas trajetórias de trabalho revelam também as conquistas e aquisições que são marcos nas trajetórias de vida e estão profundamente ligadas ao fato de terem um trabalho remunerado, como também à importância que conferem a esse trabalho nas suas vidas e no seu processo de construção de autonomia. A aquisição da casa própria é, sem dúvida, a principal dessas conquistas, revelam as narrativas. Para além de uma melhoria nas condições de renda, dada pela saída do aluguel, e da segurança que a aquisição deste espaço lhes garante, a casa própria emerge, na percepção das sujeitas da pesquisa, como a materialização dos esforços mobilizados durante toda sua trajetória e como um espaço para a existência própria, onde podem tomar suas decisões e viver com maior autonomia. Ter uma casa própria é de fato um grande empreendimento na vida dessas trabalhadoras. E o fato de ter uma casa própria como resultado direto da sua renda, mesmo que compartilhe os custos com o companheiro ou alguém da família, aparece como um signo de ser sujeito da sustentabilidade de suas condições de vida com capacidade para definir metas e realizar desejos. Porque a casa própria, enfatizada como uma grande necessidade objetiva e conseguida com a renda do trabalho, é também, em uma perspectiva mais subjetiva, algo da ordem do desejo que denota a própria capacidade do sujeito de agir no mundo. E como algo, até mesmo, relacionado à liberdade e à autonomia na esfera da vida amorosa e sexual, como explicitado no caso da trabalhadora que afirmou ter uma vida em comum com uma companheira. 144 CAPÍTULO V – JORNADAS, CONDIÇÕES E SENTIDOS DO TRABALHO QUE CONFORMAM O COTIDIANO Todas as manhãs, cedo ou muito cedo, ou mesmo ainda de madrugada, mulheres trabalhadoras, da região Amazônica à região Metropolitana de São Paulo, passando pelo Agreste de Pernambuco, acordam para iniciar uma jornada de trabalho severa que começa em suas próprias casas, se estende para outros espaços, na maioria dos casos, e pela noite. São jornadas longas formadas pela intermitência entre trabalho reprodutivo e trabalho produtivo, e em geral vividas em condições precárias. Foi isso que constatamos ao ouvir e analisar as narrativas das sujeitas desta pesquisa. As horas e minutos do dia estão sempre comprometidos com as tarefas de trabalho, incluindo nessa temporalidade os deslocamentos entre os espaços da casa e do trabalho remunerado. Aquelas que não necessitam se deslocar entre esses espaços é porque os seus trabalhos produtivo e reprodutivo se realizam no espaço doméstico, numa dinâmica cotidiana cuja intensidade parece não deixar vazios de tempo que possam ser usufruídos como uma temporalidade liberada de atividades de trabalho. Mas além da intensidade dos ritmos, os trabalhos, muitas vezes, são realizados simultaneamente. O trabalho produtivo em domicílio também provoca, em algum grau, uma deterioração nas condições da vida doméstica, em espaços que já apresentam muitas restrições no tocante à qualidade de vida. Essa temporalidade marcada pela tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo é uma experiência fundamentalmente das mulheres, decorrente da divisão sexual do trabalho. Daí que a vivência do tempo enquanto duração dos eventos, marcado pelos relógios e pelos calendários, constitui uma relação de desigualdade entre homens e mulheres que está diretamente associada às formas de sociabilidade que constituem a vida cotidiana decorrente dessa divisão. O que a teoria feminista tem mostrado a partir das pesquisas de abordagem crítica sobre a relação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo é que as lógicas que regem o tempo desses trabalhos são distintas. O primeiro se rege por “uma lógica diacrônica, linear e facilmente tornada objetiva mediante o sistema de horário, enquanto o segundo se move em uma lógica sincrônica, difícil de precisar sem a percepção subjetiva da experiência vivida cotidianamente e com uma descontinuidade, só visível através do ciclo de vida feminino” (TORNS, 2002, p. 138). A definição da temporalidade das jornadas de trabalho é constitutiva da organização do cotidiano e conforma a dinâmica da vida cotidiana, mas esse tempo mensurado como duração dos eventos, isto é, o tempo institucionalizado, é, em si, o tempo da existência das pessoas. O tempo do trabalho é uma forma de organização do tempo baseada nas regras e métodos que o definem como uma instituição social, o qual está no centro da organização social da vida cotidiana, que tem como seu movimento interno o vivido no dia a dia. O tempo do trabalho é parte central desse vivido. Por isso, quando buscamos as informações sobre as experiências das mulheres trabalhadoras como uma fonte de conhecimento para analisar a relação entre trabalho e vida cotidiana, o que emerge daí, através das narrativas do vivido, expressa uma configuração de jornadas de trabalho nas quais está materializada não só a forma de exploração contida na venda de sua força de trabalho, mas também a exploração feita 145 através do trabalho reprodutivo gratuito. Daí que a relação entre condições de vida Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica e de trabalho se mostra na totalidade da sua dimensão material. Para a reprodução humana e social, neste sistema e deste sistema, é necessário não só a venda da força de trabalho como mercadoria, como também o emprego gratuito da força de trabalho para o trabalho reprodutivo. Só a análise da relação entre esses dois trabalhos pode dar a extensão da temporalidade e da exploração do trabalho para a reprodução social. De acordo com a abordagem sociológica de Elias (1998), o tempo tal como concebido na sua institucionalidade, como um sistema de horário para regular as temporalidades da organização da vida social, “tem o caráter de uma instituição social, de uma instância reguladora dos acontecimentos sociais, de uma modalidade da experiência humana – e os relógios são parte integrante de uma ordem social que não poderia funcionar sem eles” (ELIAS, 1998, p. 93). Um dos problemas com as formas de mensuração do tempo do trabalho, feitas a partir da marcação de um sistema de horário baseado na lógica do trabalho produtivo, é que a temporalidade do trabalho reprodutivo é ajustada a esta lógica, a qual se mostra incompatível com seu ritmo, sua dinâmica e suas formas complexas de ser objetivado. Referindo-se às sociedades industrializadas, Elias (1998) diz que “nessas sociedades, o tempo se exerce de fora para dentro, sob a forma de relógios, calendários e outras tabelas de horários, uma coerção que se presta eminentemente para suscitar o desenvolvimento de uma autodisciplina nos indivíduos” (ELIAS, 1998, p. 22). Essa ideia sobre o tempo como um recurso externo e que prevalece até os dias atuais, de maneira hegemônica e ainda mais agudizada pelas transformações tecnológicas no campo informacional e pelo uso que é feito delas, é fundamental ao sistema capitalista/ patriarcal/racista para a manutenção da exploração do trabalho produtivo e reprodutivo. Para a sustentação e a reprodução dessa estrutura material de exploração foi desenvolvida uma ideologia através da qual foi estabelecida uma concepção sobre o tempo social, a separar o que é inseparável na vida real. Nesta concepção, o tempo da vida da/o sujeita/o concreta/o enquanto trabalhadora/trabalhador está separado do tempo despendido para realizar um trabalho. O que essa ideologia esconde, e para isso ela foi criada, é que nesta forma de organização social concreta, na qual vivemos e convivemos, a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras gastam a maior parte do tempo de suas vidas trabalhando para sobreviver precariamente. Como parte dessa face escondida da vida real, por essa ideologia, está a invisibilidade do trabalho reprodutivo através da sua naturalização como algo intrínseco à própria vida das mulheres e uma dimensão da sua própria natureza. Esta invisibilidade leva à exclusão do trabalho reprodutivo como uma esfera do mundo do trabalho, impondo a naturalização da divisão sexual do trabalho, a qual é, historicamente, um elemento estruturante das relações sociais de sexo/gênero e da sua reprodução que se realiza consubstancial e coextensivamente às relações sociais de raça e classe. A separação espaço/tempo entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo se dá no processo de construção da vida social, como parte da formação do sistema capitalista a partir da qual se estrutura a divisão sexual do trabalho, elemento central na constituição das relações sociais de sexo/gênero, que “é modulada historicamente e societalmente” (KERGOAT, 2001 p. 36). Os estudos sobre as mulheres no mundo do trabalho ou em qualquer outra temática devem considerar as relações sociais nas quais elas estão inseridas. Partindo desse arcabouço conceitual, podemos levantar questões sobre as práticas sociais nas quais se expressam essa divisão, nos diferentes contextos, que contribuam para uma visão crítica sobre o mundo do trabalho e a sua relação com autonomia econômica. As diferenças de classe e raça entre mulheres são, historicamente, um determinante da sua 146 inserção na relação trabalho/doméstico/trabalho assalariado. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Consideramos que o trabalho reprodutivo realizado fundamentalmente pelas mulheres é fundamental para assegurar a reprodução dos seres humanos e ao mesmo tempo a reprodução da força de trabalho como tem sido fundamentado pela teoria feminista materialista. De acordo com Federici (2013), ao fazer uma análise crítica sobre a questão do trabalho reprodutivo em Marx, a não consideração da importância do trabalho reprodutivo, não pago, feito pelas mulheres, para o processo de acumulação capitalista, resulta em um limite para a “... sua compreensão sobre a verdadeira extensão da exploração capitalista...” (FEDERICI, 2013, p. 24). Argumenta Lefebvre (1972) que o estudo da vida cotidiana oferece um terreno de encontro com as Ciências Sociais parcelares e também explicita os conflitos entre o racional e o irracional na sociedade contemporânea, e assim determina o lugar onde se formulam os problemas da produção em sentido amplo: a forma como é produzida a existência social dos seres humanos, A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa, por uma parte, a produção “espiritual” e, por outra parte, a produção material, a fabricação de coisas. Designa também a produção por si mesmo do “ser humano” em curso de seu desenvolvimento histórico. O que implica a produção de relações sociais. Enfim, tomado em toda sua amplitude, o termo abarca a reprodução. (LEFEBVRE, 1972, p. 44-45). O problema é que esse sentido amplo da produção, mesmo na teoria crítica, está informado por uma visão produtivista, na qual o sentido de produtivo se acha diretamente vinculado ao que produz valor de troca no processo de reprodução do capital. O trabalho reprodutivo, que assegura no cotidiano a reprodução da humanidade e da força de trabalho, com suas práticas, seus ritmos e relações de trabalho específicas, é tratado sempre como substrato da produção. Dessa forma, mesmo as análises críticas hegemônicas no campo da produção do conhecimento sobre a relação capital/trabalho não consideraram a centralidade desse trabalho para o processo de reprodução social e para a reprodução do capital, tampouco o considerando como uma esfera de trabalho conformada por relações sociais de exploração e dominação. Quando apenas o trabalho produtivo é considerado como aquele que assegura a produção do viver, somente uma subjetividade é considerada nas abordagens teóricas e políticas sobre o vivido da vida cotidiana, que é a subjetividade do homem trabalhador, percebido como o sujeito do trabalho. Dessa forma, a experiência cotidiana do trabalhador homem inserido no trabalho produtivo é um tipo de experiência que não pode ser transferida nem generalizada como a experiência padrão da classe que vive do trabalho. Ademais, não podemos falar de experiência padrão, pois as relações de classe, raça e gênero e as especificidades dos contextos sociais e econômicos configuram as diversidades de experiências de trabalhadores e trabalhadoras. E como afirma Kergoat, trabalhadora não é o feminino de trabalhador (KERGOAT, 2004). A experiência das mulheres trabalhadoras com uma subjetividade própria, forjada pelo trabalho produtivo e reprodutivo, torna-se uma exterioridade, no sentido de que só aparece como questão periférica na análise da realidade social. Se não considerarmos essas questões, resulta que a elaboração sobre a vida cotidiana não se estende ao trabalho reprodutivo como esfera de trabalho e de relações de poder determinantes das desigualdades sociais presentes na vida cotidiana. Além disso, não se reconhece que as mulheres estiveram presentes como parte da classe trabalhadora desde o início da formação social do sistema capitalista, que tem como 147 dimensões intrínsecas dessa formação a exploração e a dominação patriarcal e racista, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica constituindo, portanto, um único e inextricável sistema. Quando tudo isso é tomado em consideração, como é feito pela teoria social feminista, torna-se incontornável a reestruturação da concepção sobre a vida cotidiana, para que nesse compartilhamento, ou nesse viver em comum, que caracteriza o cotidiano, esteja incluído o movimento, com suas tensões entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, o qual só pode ser apreendido a partir da prática social das mulheres trabalhadoras, em contextos específicos. Nas narrativas das sujeitas que participaram da pesquisa, o cotidiano aparece, de maneira muito concreta, como um tempo e uma forma de vida social marcada pela temporalidade e por outras exigências dos trabalhos, produtivo e reprodutivo, sob a prescrição das exigências do primeiro. No caso desta pesquisa estamos falando do cotidiano de mulheres trabalhadoras situadas em três regiões diferentes do Brasil: no município de Barcarena, no interior do Pará, em Toritama, no Agreste de Pernambuco, e na região Metropolitana de São Paulo. As atividades produtivas são diferentes para cada grupo de mulheres pesquisadas, segundo o ramo de atividade em que estão inseridas, mas o trabalho reprodutivo em suas próprias casas, associado a uma jornada de trabalho remunerado para adquirir uma renda, é uma realidade para todas elas. Através da análise do cotidiano podemos observar, de fato, a vida concreta das sujeitas. O ponto de vista metodológico apreendido como um espaço tempo, recortado para fins analíticos, pode nos revelar como estão materializadas as possibilidades e os limites das condições de vida, incluindo como elementos fundamentais dessas condições a relação com o tempo social e as formas concretas como é vivido e seus significados para o sujeito, bem como os percursos de ida e de volta entre os locais do trabalho remunerado e a casa, como parte da temporalidade e das condições constitutivas das jornadas de trabalho cotidianas, pois estes deslocamentos ocupam o tempo da vida diário das trabalhadoras e trabalhadores e fazem parte das dificuldades enfrentadas no dia a dia, repercutindo diretamente na sua qualidade de vida. Isso nos parece fundamental como base para uma reflexão crítica sobre a questão da autonomia econômica das mulheres. De acordo com a abordagem metodológica adotada, queremos apresentar aqui uma espécie de análise itinerante na qual o cotidiano em cada contexto pesquisado apareça como pano de fundo das vivências individuais e coletivas com seus ritmos e dinâmicas próprias e, ao mesmo tempo, buscar nessa itinerância o que de comum há entre as experiências pesquisadas, as quais estão consideradas não só a partir do tempo cotidiano, mas também, como analisado no capítulo anterior, do tempo como trajetória de vida profissional. BARCARENA O TEMPO E AS PEDRAS NO CAMINHO DE IDA E DE VOLTA Barcarena é uma cidade que se espalha por diversas áreas, tem espaços segregados, e as residências das trabalhadoras podem estar localizadas tanto nos bairros populares mais próximos do centro da urbanização mais consolidada como em locais mais longínquos, que se imbricam pelo meio das trilhas abertas na floresta, sendo em todos os casos espaços que ao serem observados evidenciam situações de grande precariedade. Como parte do complexo urbanístico/industrial que se estende pela floresta, pelos rios e igarapés, encontramos as grandes indústrias de alumina, bauxita e caulim, 148 que estão na origem dessa formação urbana, e nas mesmas cercanias está o maior Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras porto fluvial da região, a partir do qual as navegações alcançam o oceano Atlântico. O desenvolvimento econômico dessa região tem produzido impactos altamente danosos ao meio ambiente e um crescimento urbano irregular, periférico, sobretudo para os/as trabalhadores/as que se encontram nos setores mais desprotegidos, isto é, precarizados, do mercado de trabalho local. Nesse contexto, os caminhos de ida e volta para o trabalho podem apresentar vários problemas e constituem um elemento importante na dinâmica das jornadas de trabalho diária. As trabalhadoras que participaram da pesquisa e cuja experiência narrada serve de base para esta análise, as quais trabalham em uma mesma cooperativa, contam, na sua maioria, com um transporte coletivo exclusivo para os deslocamentos entre suas residências e o local de trabalho. Para várias das trabalhadoras que utilizam esse transporte há ainda a necessidade de recorrer a outros meios de transporte a fim de complementar essa travessia. O percurso feito no transporte coletivo apresenta situações diferenciadas para cada uma das viajantes. Por exemplo, se a casa da trabalhadora está na rota do ônibus, é só caminhar alguns minutos até o local onde está o ponto de parada estabelecido. Mas se está situada fora dessa rota, ela tem de se deslocar por outros meios de transporte que ela própria deve conseguir. Uma outra diferença é onde se encontra a sua residência e a relação com o percurso do ônibus. O percurso pode ser muito longo para quem mora perto do início do trajeto feito pelo ônibus, diferentemente de quem está situada no último local de passagem antes da parada final na ida ou do início da volta, que é o local da Cooperativa. O percurso de volta para casa evidentemente implica as mesmas situações. Alguns extratos de narrativas sobre essa travessia são apresentados a seguir: “Acordo às três horas da manhã. A minha casa fica a vinte minutos do terminal do ônibus. Tem que ir de moto por causa de assalto; a gente já foi assaltada duas vezes, aí é muito perigoso, então a gente tem que ter aquele dinheiro pra pagar a moto pra chegar até lá, né? Do terminal do ônibus eu venho andando já daqui de Barcarena, quando chega na Vila dos Cabanos já venho andando, é vinte minutos também. Quando tá chovendo a gente tem que vim de van, a gente pega uma van. Nesse horário que a gente chega as vezes não tem van, tá escuro ainda, então a gente fica lá até clarear um pouquinho, mas as pessoas começam a chegar, né?, a gente vem acompanhado dessas pessoas.” “Pego ônibus às cinco horas, chego às 5h40 no ponto final do ônibus e ando 15 minutos para chegar no trabalho, que começa às 6 horas. Eu começo às seis e meia; na verdade a gente tem que chegar aqui de seis horas da manhã, ai começa às seis e meia e para às 16h30, e passando as vezes assim até às dezoito horas.” “Acordo quatro e meia. Eu saio da minha casa mesmo pro trabalho, eu saio de lá... quatro e cinquenta. Venho de ônibus, né? A gente tem de vim cedo pra parada, porque é longe, né? A parada do ônibu a gente tem que vim mais cedo. Aí a gente pega o ônibu na parada e vem embora, pegando todo mundo na estrada, e ainda tem sono, tenta dormir só dá pra cuchilar, né?, até chegar aqui na lavanderia. A gente chega aqui cinco e cinquenta e oito... é cinco e cinquenta e oito a gente chega aqui... Eu num sei não, que num conferi, mas é mais de hora e 149 meia, eu acho, né?” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Olha, o ônibus passa umas cinco e nove lá, da manhã. Olha, eu saio de casa dez pra as cinco, uns três minutos pra as cinco. Aí, na parada a gente espera, ele passa cinco e nove na parada, vai pegando outras pessoas no caminho. Vai parando. Olha, a gente chega pra cá umas cinco e meia, eu acho. Eu acho que é meia hora de onde eu saio.” “Eu acordo é cinco e vinte, aí já vô, me organizo pra sair pro trabalho... e no momento da saída, esse momento aí de saída, eu normalmente venho dormindo no ônibus, por tá cansada já, né? Eu já venho dormindo.” “Eu trabalho de segunda a sábado… No sábado geralmente eu não passo de meio-dia, porque já tô muito cansada já. Quando chega no sábado de meio-dia já tá todo mundo cansado, aí só até meio-dia. Mas eu trabalho muito, eu me levanto seis da manhã, tem dia que eu me levanto de cinco. Quando eu vejo que tem muita mercadoria que eu tenho que ajudar muito as menina eu me levanto cinco horas da manhã, vou pra dez horas, onze hora da noite.” O que chama a atenção nas narrativas sobre os trajetos de ida e volta, no transporte coletivo, é uma espécie de desconforto que aparece como uma repetição cotidiana e dificultosa, a agregar vários elementos como, por exemplo, o medo da violência nas travessias para tomar o ônibus, o sono que acompanha a travessia, pela incompletude do tempo de repouso, pois para chegar no horário da passagem desse transporte quem mora mais distante tem de realmente acordar mais cedo do que seria necessário se fizesse um percurso direto; a quantidade de paradas feitas no caminho torna ainda mais fatigante esse momento de travessia. Nos dias de chuva, segundo elas, tudo se agrava. Não existe outra alternativa coletiva viável para estes deslocamentos. No contexto onde vivem e nas condições sociais em que se acham inseridas, essa é a alternativa que garante a regularidade de horário necessária no acesso cotidiano ao local de trabalho remunerado. O custo individual para o uso deste transporte coletivo é descontado do próprio rendimento das trabalhadoras como parte do contrato de trabalho e de pertencimento à cooperativa. “O ônibus que é pago pela empresa, já tá no nosso contrato, entendeu? A gente tem que aproveitar ele pra ficar logo aqui, porque se a gente depender de van, a gente vai chegar atrasada todos os dias aqui. A gente não podemos chegar atrasada.” Na citação acima, a trabalhadora afirma que o transporte coletivo é pago pela empresa, o que pode indicar a não introjeção, ou o não conhecimento, de que esse custo é pago por ela mesma como parte dos descontos que são feitos dos seus rendimentos, fruto de seu trabalho na cooperativa. Para aquelas que têm seu próprio transporte, como é o caso das possuem uma bicicleta, esse percurso é feito em um tempo reduzido, sem espera e sem outros percalços, quando o dia é de sol. Nos dias chuvosos a situação é mais difícil para se deslocar de bicicleta, e dependendo da situação, nem sempre é possível encontrar outra alternativa. Mas o que prepondera entre as entrevistadas é o uso do transporte coletivo. As que se deslocam de bicicleta em geral moram mais ou menos perto do local de 150 trabalho, e essa travessia é feita rapidamente, na visão dessas trabalhadoras. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Vou de bicicleta. Levo de dez a vinte minutos para chegar no trabalho.” Como podemos perceber nas narrativas, os percursos de ida e volta são os mesmos, no entanto, na volta pode ocorrer que antes de chegar em casa, haja a necessidade de fazer algumas compras ou de pegar crianças na escola, ou ainda uma rápida visita a familiares ou amigas/os, o que em geral ocorre nas cercanias do local de moradia. O horário previsto para o fim da jornada é 16h30, mas segundo as trabalhadoras entrevistadas há alterações frequentes nesse horário. O retorno para casa fora do horário formalmente previsto para o final da jornada de trabalho ocasiona problemas adicionais para essas trabalhadoras, pois elas têm de encontrar outros meios de locomoção quando esse transporte coletivo não se mostra viável. Este movimento diário de ida e de volta aparece nas narrativas como um elemento inserido na organização compulsória do cotidiano. UMA JORNADA FEITA DE DOIS TRABALHOS, PRODUTIVO E REPRODUTIVO: UMA JORNADA DE MULHERES Em Barcarena, as trabalhadoras que fizeram parte da pesquisa expressam através das narrativas de suas experiências que o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo fazem parte de suas vidas cotidianas. Na tensão entre o trabalho produtivo e reprodutivo essas trabalhadoras vivem suas vidas diárias num ritmo de trabalho intenso, intermitente e extensivo. “Acordo quatro e meia. Vou dormir quase onze e meia da noite. Eu saio da minha casa mesmo pro trabalho, eu saio de lá, cinco, quatro e cinquenta. A gente chega aqui... eu num sei, que num conferi, mas gasta hora e meia, eu acho, né? Saio do trabalho quatro e meia... quando a gente não vai até seis hora, né? Quando tá muito aperriado a gente vai até seis horas.” “O carro só passa cinco e dez... a gente chega quase cinco e quarenta... quase num demora às vez daqui pra lá pra casa. Trabalho o dia todo na cooperativa, almoço lá com as outras. Faço de tudo em casa. Quando chego em casa tem coisa pra fazer. Na casa moro eu, mora meu marido, mais o filho do meu marido que tá lá... meu irmão, a mulher, e o bebezinho de um ano... a minha filha com o esposo e a bebezinha dela, e a minha filha de quinze ano.” “Acordo às três e quarenta e cinco, preparo umas coisinhas em casa. Vou dormir dez e meia, onze horas. A gente chega de manhã, temos o DDS... todos os dias, de segurança, depois do DDS vamos pro café, depois do café cada um vai pras suas tarefas... trabalha até quatro e espera o ônibus e, vou pra casa... chego em casa... quando eu chego lá eu faço a serviço de casa, lavo roupa, eu limpo banhêro e ajeito a comida.” “Acordo, tomo meu banho, me arrumo, aí eu pego a minha comida que eu já deixo arrumada já, porque a gente leva almoço, né? na geladeira, arrumo quentinha numa sacolinha, e lá vou pro trabalho... seis e quinze, aí vou pro DDS, depois do DDS termina às seis e meia, vou tomar o café, depois, 151 pega a atividade... naquela rotina do dia a dia... classificando, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica trabalhando.. Depois, quatro e meia pego a minha bicicleta, tiro a minha bota que eu deixo lá, boto a sandália e venho embora pra casa. Chego em casa, quando não tem comida feita eu vou fazer a janta, e tem que fazer pra mim levá no outro dia. Boto as criança pra tomar banho, dou a janta... A gente janta no máximo sete, sete e meia. Aí eu já fico um pouquinho lá, assisto um pouco da novela, que a televisão é no quarto né? Ás vezes até durmo, cansada, a televisão fica lá falando só. É essa a minha rotina.” “Eu acordo, no caso, cinco e dez da manhã, né? Então, levanto, tomo aquele banho, né? E aí troco de roupa e tal e vou embora pra cooperativa. Quando chega na cooperativa a gente tem o nosso DDS, né? Então, a gente tá na hora do DDS, aí depois do nosso DDS tem o nosso café, né? Então, como eu falei, a gente vai, a gente pega, vai pro trabalho. Quatro e meia a gente tá saindo pro nosso lar. Então, chegando em casa, né? Eu, se tiver tudo organizado, tudo ok no meu lar, eu vou dar a janta e dar um tempo pro meu filho, vou ficar com ele, né? Esse tempo que resta que eu tenho com ele, ajudo ele a fazer o dever do colégio dele, até a gente se deitar pra dormir.” Para essas trabalhadoras os horários do trabalho remunerado apresentam uma rotina que está sujeita a irregularidades frequentes. A rotina formal é descrita como uma jornada de trabalho que se inicia às 7h e termina às 16h30 de segunda a sexta-feira, e no sábado até às 16h. No entanto, em função dos arranjos do transporte coletivo, para as que o utilizam, e de uma atividade que precede, na própria percepção delas, a jornada de trabalhado denominada DDS (Diálogo Diário de Segurança), que diariamente se inicia às 6h15, a rotina diária de trabalho, de fato, começa às 6h15, já que esta atividade é obrigatória. Por outro lado, o término dessa jornada de trabalho pode sempre sofrer alterações, caso seja necessário estender o horário para dar conta de todas as tarefas que têm de ser feitas naquele dia, bem como a meta mensal, a qual, por sua vez, está relacionada ao valor dos rendimentos mensais de cada uma delas. Os rendimentos mensais individuais estão, dessa forma, inextricavelmente vinculados à relação entre produção individual versus produção coletiva. Estas trabalhadoras podem ainda ser requisitadas nos domingos e feriados para jornadas extras, por dois motivos: para garantir o cumprimento da meta estabelecida, quando os resultados da produtividade do período se mostram muito atrasados em relação ao previsto, ou em decorrência de demandas extras das empresas com as quais a cooperativa tem contrato de prestação de serviços. “A gente trabalha oito horas... são oito horas todos os dia, só passam um pouco se tiver necessidade... Se haver necessidade de roupa atrasada, às vez a gente fica até seis horas... e às vez o feriado, se precisá a gente vem. Mas isso de feriado é muito difícil acontecer. Então quando aumenta o volume de roupas a gente trabalha mais. Às vez sim e às vez não... É comum... vareia, né?” “Às vezes eu trabalho aqui, quando eu vou pra botá em dia, a gente trabalha até das sete às quatro e meia, mas quando tá atrasada e tem mais trabalho aqui a gente fica até seis, às vez até oito, às vez até o domingo, mesmo porque, como é que se 152 diz?, a gente trabalha por produção e tem que entregar aquele produto, aquela quantidade na data certa que eles estipulam. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Aí então aqui a gente num trabalha assim, a gente trabalha por hora, mas hora num conta muito aqui não, é a produção mesmo. Se produzir bem é que tu tira o dinheiro um pouco mais ou menos.” Essas horas e jornadas extras, que caracterizam uma irregularidade frequente nas jornadas de trabalho e na relação entre os dias de trabalho remunerado e os dias considerados de folga, no caso delas o domingo, aparecem nas narrativas como algo que responde ao interesse comum das trabalhadoras, à medida que são necessárias para alcançar a renda mensal de acordo com o que está estabelecido como um patamar salarial mínimo, e que elas consideram indispensável de ser alcançado, uma vez que estes recursos são usados, sobretudo, para garantir a aquisição de produtos necessários à sobrevivência cotidiana. “Nós trabalhamo junto, produzimos, e no final a gente tem aquele lucro razoável pra gente, né? A gente fica até satisfeito; agora é ruim quando a gente produz, a gente tá ali produzindo bastante e, no final, quer dizer o serviço já acumulou a mais, já fica mais desesperado, dá aquele desespero. Mas trabalhamo mais, e quando consegue a meta é muito bom o resultado pra nós, né?” “Se dentro do horário que nós tamo produzindo, nós produzir bastante, nós se empenhá, nós mulheres se empenhá, a gente produz bastante, quer dizer, é benefício pra nós. Vamo produzir ali, ajuda mútua, uma ajudando a outra, quer dizer o trabalho vai pra frente, e no final é quando a gente tem o lucro, né? Pra mim é bom, né?, porque no caso, se eu trabalhá mais, a renda é melhor, né? A renda, a gente precisa pra viver, né?” Como parte das jornadas diárias de trabalho remunerado e antes iniciar as atividades inerentes ao processo de trabalho produtivo propriamente dito, como brevemente mencionado anteriormente, todas as trabalhadoras devem passar por uma sessão coletiva de diálogo chamado DDS (Diálogo Diário de Segurança). Como podemos constatar através das narrativas, há um tempo de espera entre o final da sessão do DDS e o início das atividades de trabalho. Em geral elas reclamam desse horário intermediário. O que muitas das entrevistadas afirmam é que esse horário cria uma espécie de intervalo de tempo “perdido” que prolonga o tempo da jornada de trabalho. De fato, é um uma temporalidade que não está propriamente incluída no processo produtivo e dessa forma não é considerada na contagem de horas trabalhadas, pois as horas trabalhadas só podem ser contadas quando materializadas em produtividade, que é o que interessa como resultado para as empresas contratantes dos serviços da cooperativa e o que define os rendimentos das trabalhadoras. Os rendimentos mensais dependem, segundo elas, de uma combinação entre horas trabalhadas e produtividade, mas é de fato o volume de produtos entregues às empresas contratantes da cooperativa que define os recursos financeiros que entram para a cooperativa. Dessa forma, o horário dispensado ao DDS da forma como está organizado se constitui numa usurpação do tempo da vida cotidiana das trabalhadoras. Deve-se considerar ainda o que foi tratado em capítulo anterior sobre o fato de serem elas mesmas as responsáveis, individualmente, pela realização de cada sessão, o que exige também um tempo de preparação. A questão da segurança é, em princípio, absolutamente fundamental para a proteção das trabalhadoras, como também para 153 garantir formas de proteção que sejam ao mesmo tempo práticas e não interfiram nas Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica suas habilidades produtivas. No entanto, o que queremos colocar em questão é o fato de que o método de mensuração do tempo despendido no trabalho, para definição dos rendimentos, não possibilita a incorporação desse tempo do DDS na conta final do tempo trabalhado, como também a falta de poder dessas trabalhadoras de definir uma forma de organização dos processos coletivos de trabalho de maneira que valorize seus tempos de trabalho na relação com o salário e com a qualidade de vida no cotidiano. “Uma vez eu tava conversando aqui, eu tava dizendo, a gente tem uma perca de tempo, que a gente sai de casa, num horário desse a gente vem e a gente num vai trabalhá. Aí, era pra gente chegá, já quase certo de pegá no serviço, né? Mas num pode, tem que tê o DDS; o DDS, é seis e quinze que o DDS começa, né? A gente fica meia hora esperando aqui. Aí é o tempo que faz o café, aí a dona Maria faz o café, o café pro pessoal tudinho tomá. Se num fosse assim, a gente tinha um tempinho mais de manhã em casa.” Da forma como está organizado o início das jornadas de trabalho e as possibilidades de acesso ao local de trabalho remunerado, esse horário “perdido”, segundo a visão de muitas das trabalhadoras pesquisadas, antes de iniciar a jornada de trabalho propriamente dita, é de fato uma situação incontornável, como fica evidente nas falas das participantes da pesquisa. “Todos os dias tem que tá no nosso DDS, porque se não você não pode assinar, se você não assistiu, não vai assinar a folha de DDS.” “A minha rotina começa cinco horas da manhã, né? Acordo cinco da manhã, é, saio de casa quinze pras seis, chego na fábrica seis e dez da manhã, porque tem o DDS, todos os dias o DDS. A gente nunca pode ir pra área de trabalho se não tiver o DDS.” Participar do DDS é obrigatório; a cooperativa responde às exigências legais de normas trabalhistas. O problema é que esse tempo do DDS é diário, acontece muito cedo pela manhã e, além disso, é feito com um intervalo de tempo entre a hora da chegada das trabalhadoras definida, para a maioria, pelo horário do ônibus coletivo e a hora de começar a sessão de diálogo. De uma perspectiva crítica feminista, podemos dizer que essa forma de organizar os horários iniciais da jornada de trabalho reflete um descaso institucional com o cotidiano dessas mulheres e uma visão do tempo das mulheres como elástico e sem valor social. O que pode aparecer em uma primeira impressão como um detalhe corriqueiro do dia a dia, ganha um significado importante a partir da reflexão crítica sobre o narrado, através da qual já transparece a contradição entre as regras e imposições do trabalho que garante a renda mensal e a autonomia sobre a organização do tempo da vida diária. Por outro lado, e como parte das contradições deste cotidiano, elas utilizam esse horário “desocupado” da chegada como momento de convivência, para um café em conjunto, algumas conversas e até mesmo para assistir a algum programa de televisão. As descrições sobre este momento expressam ao mesmo tempo a vivência compartilhada de momentos alegres entre colegas e a sujeição dessas trabalhadoras a uma dinâmica de organização, do tempo cotidiano, heterônima. Como analisado em outro capítulo, a organização hierárquica da cooperativa à qual estas trabalhadoras estão ligadas define 154 o ritmo e as condições de trabalho a partir da lógica e das exigências das empresas para Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras as quais prestam serviços, portanto essa organização social do tempo de trabalho na cooperativa não é uma deliberação coletiva das próprias trabalhadoras. O ritmo do trabalho produtivo e reprodutivo constrange ou dificulta as possibilidades de outras atividades de interesse profissional e pessoal, como, por exemplo, os estudos. “Eu acordo às três horas da manhã e vou dormir às oito e meia, nove horas... a gente trabalha aqui de seis e meia até às dezoito horas, de seis e meia até as dezesseis e trinta, né: A gente, pra fazer todas essas horas, inclusive sábados e feriado, e às vezes domingo, que a gente tem que vim, as vezes. O tempo que gasto trabalhando e vindo e voltando num dá tempo pro estudo. Eu queria fazer faculdade. Eu começo às seis e meia; na verdade, a gente tem que chegar aqui de seis horas da manhã, e aí começa seis e meia e para às dezesseis e trinta; é, passando às vezes assim até as dezoito horas, às dezoito e trinta. E eu volto pra casa por volta das sete e meia da noite.” “Eu acordo cinco e meia, cinco e meia eu passo o café, vou tomá meu banho, me arrumo e venho pra cá. Chego aqui umas seis e quinze, aí daqui eu vou pro DDS, do DDS a gente vem tomá café, daqui a gente vai trabalhá. Aí depois vai pra casa de novo, quatro e meia. Na minha casa eu chego, aí vou fazê a janta, eu tomo meu banho e vou pro colégio. É de segunda a sexta.” “Ah, no sábado eu venho pra cá, eu chego aqui umas seis e meia.” A maioria das trabalhadoras entrevistadas afirmou que passa o dia inteiro na cooperativa, em uma jornada de trabalho remunerado intensiva, com pequenos intervalos para almoço e lanches. Jornada essa que, como foi mencionado, pode sempre ser estendida. Essa parece ser uma situação mais geral, tanto pelo que foi narrado como também pelo que foi observado nos processos de pesquisa de campo. “Aí seis e quinze começa o nosso (DDS), seis e trinta termina. Aí cada um vai procurar sua área de trabalho, cada um já procura o que fazer, e num tem o que ficar de braço cruzado, tem que ir logo fazendo mermo pra num atrasar. Seis e trinta eu começo, aí onze e trinta paro pro almoço, né?, que dia de semana é isso, e uma hora a gente retorna o trabalho. Tem parada curta pros lanches, e encerra às dezesseis e trinta.” “Tem dias que é muito trabalho, muito trabalho mermo, porque além desse contrato a gente tem contrato com outras empresas. Então todas querem roupa naquele mesmo dia, então a gente tem que agilizar, eu e minha colega. Então a gente vai cansando, né?, porque a gente agiliza, agiliza pra agradar a todos, né? A gente para pro almoço, fica aqui mermo, e tem os lanches.” Esse trabalho produtivo significa na prática a reconstrução diária de uniformes, botas, óculos de trabalho e outros objetos de uso dos operários (sobretudo) e operárias das empresas contratantes dos serviços. O que exige uma multiplicidade de tarefas e habilidades: receber, separar, classificar as roupas e os outros objetos sujos, lavar, que 155 implica, antes de pôr nas máquinas, fazer um processo de higienização, secar, passar, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica reclassificar e embalar os produtos. Todo esse processo requer, segundo o que elas relatam, além de conhecimentos técnicos, delicadeza e muita atenção. Além disso, algumas tarefas são cheias de detalhes, outras exigem ficar em pé durante todo o processo e ainda lidar com instrumentos de trabalho pesados, como é o caso do ferro industrial de passar roupa, operar máquinas de lavar e outros equipamentos de menor porte para lavar e limpar outros objetos, como capacetes, botas, e equipamentos de proteção, como luvas, máscaras etc. Esses processos implicam o manuseio de objetos que chegam contaminados e por isso, segundo elas, ao lidar com isto precisam ser muito cuidadosas. “Se torna difícil porque às vezes tem muita coisa pra gente fazer, esses detalhezinhos da higienização que atrapalha a gente. Tem que ter delicadeza pra num arranhar óculos, né?; tem que ter delicadeza para passar álcool depois de lavado e enxuto, e tem que colocar logo no saquinho, e tem a máquina pra lavar... Vai levando tempo, a gente num tem que fazer aquilo correndo, porque senão num sai com perfeição. Na passação a gente trabalha com ferro industrial.” É importante salientar que faz parte das tarefas diária a organização e limpeza do espaço do trabalho produtivo ao final do dia. O que o separa em termos de temporalidade, o final do expediente diário do trabalho reprodutivo que significa o reinício de atividades no trabalho reprodutivo, em muitos casos já iniciado pela manhã, em sua própria casa é o tempo do percurso de volta até lá. Muitas vezes nesse percurso são feitas outras tarefas do trabalho reprodutivo, como as compras para a sua manutenção e do seu grupo familiar, e ainda buscar as crianças na escola. Para aquelas que têm filhos(as) em idade que ainda necessitam de cuidados em casa, no retorno para casa à noite o cuidado com os (as)filhos(as) é uma parte importante do trabalho reprodutivo e ao mesmo tempo um momento de convivência e compartilhamento com significado afetivo. Quando narram esta relação há sempre a expressão de perda nesse processo de convivência, pela exiguidade de tempo para compartilhar mais momentos com os(as) filhos(as): “Eu acordo cinco, né? Aí eu deixo o café dos meus filhos pronto, vejo se tem alguma coisa pra organizar. Quando volto eu faço minhas coisa diária, vou ter que arrumar alguma coisa, fazer a janta. Aí vou dormir lá pras nove. A gente inda frequenta a igreja, Assembleia de Deus, e tem dias que a gente vai pra igreja, aí o culto termina nove horas. Você vai chegar em casa, jantar, deitar...” “Eu vou pra casa, e se tiver que ir no supermercado eu vou; na padaria, eu vou; quando não, eu vou pra casa mermo...” “Toda hora, a hora do almoço, de noite, sempre, sempre eu faço mais de noite, quando eu chego. Eu vou arrumar as coisa, lavo prato de noite. Lavo prato, varro casa, lavo roupa, alimpo os troço, faço comida, faço tudo dentro casa. Lavo banheiro.” “Acordo às cinco horas da manhã. Vou dormir às 22 horas, porque quando eu chego ainda vou cuidar de novo um pouco da casa, fazer janta, cuido um pouco dos meus filhos, porque devido você passar o tempo todo na empresa, praticamente o 156 dia inteiro, você pouco dá atenção pros seus filhos, né? Teve época que eu chegava, eles já tavam dormindo. Meus filhos Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras praticamente cresceram e eu nem percebi. Então quando eu chego do trabalho, eu vou olhar um pouco pra casa, aprontar a janta, pra quando eles chegarem dar um pouco de atenção pra eles. Saber como foi na aula. Porque eles já passam o dia todo à vontade, aí se largar...” Quando há divisão de trabalho, em geral é feita com outras mulheres; quando os homens estão presentes na realização das tarefas domésticas, são sempre mencionadas como ajuda ou apoio. “Quem faz as tarefas domésticas é a minha companheira. Nas horas vagas leio a Bíblia.” “Quem cuida da minha filha é a avó dela, agora que ela tá de férias; quando essa num tá é a outra avó dela”. “Olha, eu tenho um pedaço do trabalho na casa, aí a mamãe tem o pedaço dela, aí cada um faz o seu lá. Então o meu pedaço faço só eu.” “Eu lavo, cozinho, arrumo a casa, e minha filha me ajuda, o meu marido também me ajuda muito. À noite, quando eu chego, só vou mesmo lavar a louça do jantar; a minha filha já preparou o almoço e já arrumou a casa. Só dia de domingo, na minha folga que eu lavo, arrumo e lavo a roupa, né? Vou arrumar a casa junto com a minha filha e meu marido ajudando também.” Creche para filhos(as) pequenos(as) não foi mencionada como um dos recursos utilizados no dia a dia. O que podemos inferir é que no geral o trabalho reprodutivo, incluindo as atividades do cuidado, é fundamentalmente de responsabilidade dessas mulheres sozinhas ou em colaboração com outras mulheres, contando ou não com o trabalho dos homens nestas tarefas, que só o fazem como ajuda ou apoio. As políticas públicas de apoio ao trabalho reprodutivo, e no caso das creches como um direito das crianças, não estão disponíveis, pelo menos no que diz respeito à experiência das sujeitas da pesquisa. A escola para filhos(as) aparece como parte da rotina cotidiana e como algo de grande importância que deve ser garantido para uma melhor condição de vida. AS CONDIÇÕES E OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO As jornadas diárias da vida dessas trabalhadoras estão sujeitas a uma pressão de tempo permanente exercida pelas exigências do trabalho remunerado e não remunerado. Nas narrativas podemos perceber que tanto do ponto de vista objetivo como do ponto de vista subjetivo esse ritmo de trabalho afeta negativamente a qualidade das condições de vida delas, ao tempo que garante os meios para a sua sobrevivência e a de seu grupo familiar. Nas narrativas podemos encontrar de maneira muito explícita a falta de tempo como uma das dificuldades impostas pelo ritmo das jornadas de trabalho. A falta de tempo para estas trabalhadoras é explicitada pela impossibilidade de fazer outras atividades e também pelos esforços que têm de ser despendidos para outras atividades extremamente necessárias à sua sobrevivência e também para a sobrevivência de outras pessoas do grupo familiar que são dependentes delas, como as crianças, por exemplo. No caso dessas trabalhadoras, a semana de trabalho remunerado de seis dias deixa apenas o domingo como dia livre, que é chamado dia de folga. No entanto, existe ainda 157 o trabalho reprodutivo que, no geral, se estende para esse dia de folga. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “A maior dificuldade que eu acho é só a falta de tempo mesmo; às vez a gente precisa ir no médico e tem que tá faltando, e a gente trabalha por produção... Porque o negócio é brabo mermo, isso aí é a maior dificuldade... Às vez a gente precisa de um tempo pra resolver uns problemas... É isso que acho, a carga horária muito alta.” A intermitência entre trabalho produtivo e reprodutivo, em geral, não deixa horários livres para momentos de lazer ou para outras formas de usufruir o tempo diário. Isto é, um tempo que se caracterize como uma temporalidade liberada das pressões para realizar as atividades de trabalho. O descanso só aparece mesmo na hora de dormir, à noite. Essa hora de dormir é uma questão crucial, porque no outro dia, invariavelmente, o horário de acordar, como já vimos, é sempre muito cedo. Os trechos que reproduzimos a seguir são ilustrativos dessa situação que se mostrou generalizada nos resultados da pesquisa. “Geralmente eu num tenho mais hora vaga que trabalho direto. Lá na lavanderia e finais de semana aqui no bar, em casa... Às vez quando chego em casa, tomo um banho e vou deitar e dormir.” “Nunca tô parada em casa, agora é o vaivém. É difícil eu entrar pra descansar. Eu gosto de deitar assim, de descansar um pouquinho. Lá em casa eu tenho alguma coisa, sempre tô fazendo coisa, que eu num gosto de ficar parada.” “Hum! as minhas horas vagas são a noite, que é mesmo pra descansar, né? Como eu lhe falei, à noite eu chegando a janta tá pronta, eu vou descansar pra amanhã começar a tarefa de manhã.” O lazer, quando acontece, é vivenciado no domingo, com muitas variações de possibilidades. Pode ser todo domingo, ou uma vez por mês, uma tarde todos os domingos, ou o domingo inteiro, além de outras possibilidades. Para as que têm filhos(as) pequenos(as), o lazer pode também ser usufruído juntamente com eles/elas, e isto significa que lazer e cuidado, atividades do trabalho reprodutivo, estão sendo vividos ao mesmo tempo. As afirmativas sobre o domingo como um dia de descanso são quase inexistentes, mas não totalmente impossíveis de ser encontradas. Nesses casos, ou não existem crianças ou outros dependentes para serem cuidados, ou então há um apoio por parte de outras mulheres do grupo familiar para que isto aconteça. O que pode, de fato, ser caracterizado como uma forma preponderante de vivenciar os dias de domingo, na maioria dos casos, é uma relação entre lazer e trabalho reprodutivo. As tarefas do trabalho reprodutivo feitas aos domingos dizem respeito tanto às necessidades oriundas desse mesmo dia, como também às tarefas que foram acumuladas durante a semana. As diversas situações podem ser observadas nos trechos a seguir, como exemplos extraídos de algumas narrativas. “Em acordo, faço tudo de novo, faço o meu café, tomo meu banho; quando tem que comprar alguma coisa na feira eu vou pra feira com o marido, aí volto e preparo o almoço. Tem vez que a gente só vai na feira, compra o almoço já vai direto prum sítio, passa o dia no sítio. Tem igarapé, aí vem só tarde, pra cinco horas da tarde que chega em casa, tomo banho de novo, né? Dou uma arrumadinha mais um pouquinho na casa e 158 vou descansar; janto e vou descansar, pra amanhecer o dia na segunda e começar tudo de novo.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Só dia de domingo aqui. Olha, dia de domingo a gente dorme até mais tarde, descansa, aí no domingo eu descanso, aí acordo, dou uma saída e volto. Descanso de novo, procuro o que fazer, aí de noite eu vou pra igreja. Olha, o domingo, que é pra acordar mais tarde, a minha filha é a primeira a levantar; ela acorda sete horas da manhã, aí eu tenho que levantar junto. Aí depois a gente toma café, aí depois ela fica pulando em cima da cama pra me levantar de novo. Aí pra eu poder sair com ela. Aí eu saio, dou um passeio com ela; quando ela quer sair ou quando ela também não quer sair, eu fico dando uma volta, aí a volta é rápido, vou e volto.” “Ah, no dia que eu tô de folga é o melhor dia. Ah, fico mais um pouquinho na cama, levanto um pouco tarde, tomo aquele café com a família, mais um pouco tarde, né? E aí vou preparar o almoço, fazer as coisas como de costume, e sempre à tarde saio, como te falei, ou saio pra me divertir ou então vou pra cama e durmo a tarde todinha. Quando, depois no meu dia de folga, aos domingos sempre, sempre à tarde, né? Seis horas, seis e meia eu tomo aquele banho e vou pra igreja, como de costume, né? Então, venho de lá às nove horas, nove e meia tomo aquele banho e vou dormir. No outro dia, trabalho de novo.” “Geralmente eu tiro o domingo, aonde eu pego eles e vou pra casa da minha mãe, pro interior... que tem igarapé, né? Aí, vou de manhã e venho à tarde; geralmente é um domingo, só uma vez no mês. Olha, é mais coisa de família mesmo. Aí pego eles aí junto, né? Já passa a semana afastada deles, já junto eles, já vou pra casa da minha mãe... Coisa familiar mesmo, a gente almoça, faço a carne... aí coloca as fofoca em dias.” “... lazer como, assim? dentro de casa mermo. Passear?, num sou muito passeista... Aí é em casa, é só isso mermo que eu faço; lazer mermo pra tá andando, assim passeando, num tem, que a gente trabalha a semana toda, né? Aí domingo eu vou fazer as coisa que eu tenho que deixar pra segunda-feira pronto, faxina, né? Aí num saio, quase.” Em uma declaração muito sintética, que citamos abaixo, esta trabalhadora que revela através de sua narrativa uma semana de longos e duros dias de trabalho produtivo e reprodutivo, expressa com veemência a sua forma preferida de usufruir o dia de domingo. “Domingo. Ah!!! descansar, descansar, descansar.” As trabalhadoras jovens que ainda vivem na casa da mãe parecem ter mais tempo livre para usufruir da maneira que quiserem o dia de domingo, mas também podem fazer um pouco de tarefas domésticas mencionadas como uma forma de ajudar a mãe, como expresso na citação abaixo. “São só o dia de domingo, acordo é seis horas, pois já tô acostumada a acordar cedo. Quando dá umas seis horas, no máximo sete horas, aí eu fico rolando lá na cama, aí levanto, aí às vez quando eu tô assim vou ajudá mamãe, né? Eu vou arrumá a casa, ou então eu pego a minha roupa, vou lavar minha roupa, aí depois eu pego. Aí eu vou pra rua, eu vou lá pra casa das 159 amiga, converso um pouco, aí às vez quando eu num almoço Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica pelas casa delas mesmo, eu volto pra casa, almoço. Aí eu me deito, às vez quando eu tenho dinheiro eu vou pra praia, aí fico lá na praia até cinco hora, seis hora, depois venho pra casa, tomo um banho, às vez vou numa serestazinha. Aí quando eu chego eu vou dormir assim umas meia-noite. Mas às vez não, eu vou só na igreja e venho pra casa. Às vez eu nem saio de casa quando eu chego da praia, e às vez eu nem saio de domingo, fico conversando com as amiga. Pego, me deito e quando é no outro dia, cinco horas da manhã, eu tenho que me acordar pra vim trabalhar, porque é só um dia mesmo que tem de folga.” A citação abaixo sobre a maneira de vivenciar o dia de domingo expressa uma situação de vida na qual o trabalho monopoliza o tempo da existência não só nos dias da semana de trabalho remunerado propriamente dita, mas também no dia da folga semanal. “O dia de folga é o domingo, só folgo no domingo, né? Justamente agora tem esse bar, é sábado, hoje vai ter festa, aí sei que vai fechar aqui lá pras três, quatro horas, cinco horas da manhã... Aí vou pra casa, tomo um banho, deito, durmo até umas oito nove horas, que eu não consigo ficar muito tempo dormindo. Levanto, às vezes o café não tá pronto, levanto, faço o café, mando as menina tomar banho, dô o café delas, vou fazer almoço, limpo a casa... Aí quando dá cinco horas eu volto pra cá, que tem que abrir de novo o bar. Aí volto dez, onze horas da noite, pra dormir, pra ir trabalhar no outro dia. É essa minha rotina.” A trabalhadora, da qual citamos abaixo um trecho de sua narrativa, ao refletir sobre o que significa passear com os(as) filhos(as) nos domingos não considera que esteja usufruindo do lazer para ela, uma vez que isso implica esforços que a deixam mais cansada ainda. O fato de voltar cansada do lazer é que lhe traz essa percepção de que não tem lazer, e mais que isso, de que não tem tido um tempo para si. É como se ao fazer a narrativa, a reflexão sobre a sua própria experiência lhe trouxesse tal visão sobre este fato. Esses esforços de uma atividade de trabalho, que é o cuidado com os filhos durante as atividades de lazer, demonstra a extensão do trabalho reprodutivo no tempo e no espaço da vida cotidiana. “eu fazendo assim um levantamento, eu ultimamente eu não tô tendo esse lazer, eu não tô tendo. O meu lazer é sempre com eles, com meus filhos, né?, mas aí eu já acabo voltando mais cansada do que saí. Eu, meu momento mesmo, ultimamente não tem.” O domingo como um dia de lazer e como um dia que pertence a si mesma, isto é, como afirmação de um tempo para si, também apareceu nas narrativas, e neste único caso se tratava de uma jovem mulher sem filhos ou filhas, sem outras responsabilidades familiares e que vive em sua própria casa e tem seu próprio meio de transporte. O que parece fornecer condições básicas e raras para tal possibilidade, no contexto da pesquisa. Além disso, para ela o lazer também não está confinado ao domingo. É com ênfase que ela fala sobre isso, como se quisesse de fato afirmar que isto é possível, em contraponto à situação mais generalizada entre as mulheres com as quais compartilha 160 o dia a dia de trabalho. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Domingo é o dia de lazer. É todo meu...Dia de lazer? Pra mim num tem hora. Quando eu tô bem, pego a minha moto, vou em tal canto, vou na praia agora, me arrumo, praia. Ah, eu vou na casa de uma amiga ou então vou convidar uma amiga, vou sair. Num tem, num tem dia, num tem hora. Quando eu estou bem, a hora que eu posso eu saio. Eu gosto de ir pra praia. Festa, dificilmente. Gosto, gosto mais, assim, de fazer churrasco, fazer coisas em casa, entendeu? Num gosto muito de tá por aí; é que eu num gosto de tá me expondo, gosto de ficar mais na minha.” O período de férias não aparece nas narrativas sobre tempo livre de trabalho remunerado nem sobre o que acontece nesses períodos. Como pudemos ver no capítulo anterior, o gozo de férias foi recentemente garantido no contrato de trabalho da cooperativa, no entanto não há relatos que indiquem como são usufruídas e se de fato já foram usufruídas. Uma das questões que consideramos graves em termos de condições de trabalho que afetam diretamente as condições de vida é o fato de que estas trabalhadoras lidam em seu trabalho com os uniformes e outros objetos de uso dos trabalhadores(as) das empresas para as quais a cooperativa presta serviço, os quais são contaminados de produtos tóxicos de alta periculosidade para a saúde. Elas dizem em suas narrativas que usam os equipamentos de proteção apropriados, os chamados EPIs (equipamentos de proteção individual) para este manejo, mas que mesmo assim algumas pessoas apresentam reações alérgicas durante o processo de trabalho, como consta no comentário feito por um sujeita da pesquisa, apresentado abaixo: “As pessoas lá atrás na lavanderia, elas têm um cuidado maior, né? Assim, por exemplo, tem que ter os EPIs apropriado pra que elas não se contamine, porque a gente sabe que a bauxita ela tem um monte de produto como a soda cáustica. Mas mesmo assim tem pessoas que têm alergia que pode dá problema, né? Aí tem que ter todo um cuidado também.” As mulheres falam sobre suas experiências de gravidez de maneira variada. Para umas foi um período normal e sem problemas com relação ao trabalho; outras relatam cansaço mais acentuado e dores, sem, no entanto, apontar algum tipo de problema mais grave. Uma das situações mais graves sobre contaminação que aparece nas narrativas é a de uma trabalhadora que conta sobre a experiência de uma gravidez marcada pelo efeito danoso do material tóxico. “Bem, eu num vou dizer que senti bem... eu tive três filhos aqui na lavanderia, que eu só saí daqui mermo pra ele nascer, né? Num senti nem ruim, nem bem... A última filha que eu tive aqui foi que morreu, né? Ela nasceu defeituosa, e a maioria do pessoal falava que foi o produto, que antigamente não tinha máscara como tem que usar agora. Isso foi logo quando a Albrás entrou aqui, né? Aí eu trabalhava sem máscara lá atrás. A minha gravidez todinha foi lá atrás, aí o bebê num aguentou, nem eu aguentei também, que eu quase morro. Nasceu e ficou até nove mês no 161 hospital, internado... e eu vivi três mês dentro do hospital.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Segundo a informação das trabalhadoras, são “5.000 peças que sai por dia”, isto é, peças que foram higienizadas/lavadas, passadas, recompostas e classificadas. Este número de peças pode sempre estar sujeito a alterações diárias, sobretudo para mais. Todas essas peças, como dito antes, estão sujeitas a algum nível de contaminação, o que significa que cotidianamente as trabalhadoras estão expostas aos resíduos de produtos tóxicos como condição inerente ao seu processo de trabalho e lugar que ocupam na cadeia produtiva em que estão inseridas. Além disso, no exercício da realização das tarefas, elas têm de se manter de pé todo o tempo e manejar instrumentos que emitem calor, como ferro industrial de passar roupa e as máquinas de enxugar, além de carregar peso nos deslocamentos com pacotes de uniformes e outros objetos dos quais se ocupam no processo de restauração. Essas tarefas pesadas devem estar associadas, segundo elas, a uma atitude cuidadosa e delicada, como parte das habilidades requeridas para a realização do trabalho, o que torna essa dinâmica ainda mais difícil. “Se torna difícil porque às vezes tem muita coisa pra gente fazer, que tem esses detalhezinhos... Tem que ter delicadeza. Isso vai levando tempo; a gente num tem que fazer aquilo correndo, porque senão num sai com perfeição o seu trabalho.” “Tem que ter cuidado pra num misturar. Cuidado também na hora de carregar roupa, pra gente não se machucar, não carregar peso demais por causa do movimento do corpo, as mão, os ombro, tudo isso, a gente faz esforço.” O que é muito ressaltado como positivo nas condições de trabalho é o fato de haver um forte e solidário compartilhamento na realização das tarefas diárias. Segundo elas, nesse compartilhamento há sempre apoio, ajuda mútua, e só assim é possível dar conta do volume de trabalho e manter a produtividade exigida no trabalho remunerado, o que pode ser considerado a expressão de uma formação de coletivo de mulheres, ainda que de caráter destituído de consciência política e capacidade de construir algum tipo de resistência transformadora, mesmo que restrita àquele ambiente de trabalho. Isto significa que a resistência diária construída pelo coletivo garante a capacidade de responderem às exigências da exploração vivida no trabalho. Elas afirmam que no dia a dia há um movimento permanente entre as que terminam mais cedo suas tarefas e vão ajudar as que estão mais atrasadas, o que pode ocorrer por problemas inerentes às dificuldades da tarefa ou por problemas de falta de condições físicas de alguém num determinado momento ou num determinado dia. “Então a tarefa é assim: cada um tem a sua tarefa, sim, mas se eu puder ajudar a colega que eu tô vendo que ela tá precisando de uma força, aí a gente sai, uma ou duas, vai ajudar ela, né? Eu vim pra ser passadeira, sim, mas se eu puder ajudar a colega que tá precisando, eu acho que é muito importante pra nós, né?” Os efeitos do processo de trabalho sobre o corpo aparecem nas narrativas sobre as dores e os problemas de cansaço, mas o que podemos perceber ao longo das narrativas é que, de um lado, os efeitos vão se acumulando e muitas vezes provocam a necessidade de mudanças nas funções das trabalhadoras e, de outro, a consciência dos processos de adoecimento em seus próprios corpos muitas vezes só surge quando os sintomas 162 alcançam um grau elevado de dor e outros sofrimentos. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “O meu trabalho aqui na lavanderia, eu entrei como passadeira, depois eu fui trocada de função, porque me deu um problema nas minhas mãos, né? Aí então eu tive uma doença, que é a tendinite. Então tive que ser trocada. Fiquei sete anos passando roupa. Na verdade, o médico do trabalho falou que era pra mim alternar, ficar alternado, né?, não ficar só num lugar, porque é repetitivo.” “Olha o meu corpo agora, duns tempos pra cá eu adquiri uma alergia muito grave, que isso tá acabando comigo. Aí já me dói os braço, que um dia eu tô bem, tem dia que tô ruim, que é alergia respiratória, né? Que é a coisa mais ruim do mundo que tem, eu vivo tomando remédio, eu dependo do remédio, se não eu vou pro hospital. O meu corpo num dói muito, mas meus pés eu não aguento de dor, eu tô atacada com as pernas... tomo um porre de remédio de alergia e faz eu engordar. Aí realmente todo esse meu peso, tô isso aí. Eu já entrei duas vezes em benefício, uma porque eu num aguentava mais de dor nas costas, mas dor mesmo. Tenho sim problema de coluna; às vezes tomo remédio pra parar de doer. A gente já tá numa idade, né? Num é mais aquela idade novinha, que a gente faz tudo que é de arte. Dá não, né? Aí também eu aumentei de peso.” Uma das trabalhadoras, ao fazer a narrativa de sua trajetória de trabalho, parece que vai se dando conta dos efeitos do trabalho sobre o seu corpo, os quais foram se materializando ao longo do tempo. No breve relato aqui citado também podemos perceber que essa situação pode ser tomada como algo que pode ser generalizado. “Carregava aqueles bolão de coisa que colocava lá, na máquina. Quem sabe o que a gente passa, os sintomas num aparece de repente, eles vêm durante sua jornada de trabalho. É assim que começa. Ah, você entra hoje, já tô sentindo isso? Não, você entra, eu, principalmente eu, tinha uma garra danada pra trabalha. Mas gente vai sem sentir os problemas, aí depois começa a sentir...” A contundência deste último depoimento nos mostra um processo no qual o corpo da trabalhadora está literalmente sendo gasto, destituindo-se de saúde no processo de trabalho, em um encadeamento de consequências dado pelo impacto das condições de trabalho e pelo uso de remédios. Além dos problemas de doenças e mal-estar, há concretamente o cansaço após a jornada de trabalho remunerado pelo esforço despendido durante todo o expediente e sempre em condições desfavoráveis ao bem-estar corporal. Ao retornar para casa, o cansaço já está instalado no corpo, e ainda há tarefas de trabalho reprodutivo a ser feitas, como evidencia a fala de uma das sujeitas da pesquisa: “No fim do dia, cansada, cansada, muito cansada, quando eu chego em casa à noite, aí eu tomo um banho... fico por aí, depois eu vô, faço a janta, varro a casa e lavo vasilha. Dificilmente fico assim, muito parada, só quando eu chego muito muito cansada mermo... Mas assim mermo ainda vou fazer as coisa que tem pra fazer. Mas nunca fiquei doente por causa de trabalho”. “... chego cansada, muito cansada porque eu chego em casa estourada. Eu só vou ajeitar umas coisinhas em casa; depois só 163 tomo banho... e cama.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Nos domingos, os sinais da exaustão do corpo pela dura semana de trabalho aparecem reiteradamente em todas as narrativas. Quando se tornam necessárias as horas extras de trabalho remunerado nesse dia, podemos dizer que não só a qualidade de vida sempre precária se acentua, como também se rompem todas as fronteiras entre o tempo do trabalho e o tempo da reprodução de si mesma. “Não, em dia de folga eu num acordo três horas da manhã não, aí já acordo um pouco mais tarde; eu acordo por volta de seis horas da manhã, né?, que o corpo pede que a gente descanse mais, que é muito cansativa a jornada de trabalho. Ela exige muito da gente.” “No sábado, eu já tô praticamente nas últimas. Por quê? O nosso corpo ele tem o limite, né? Então tipo assim, se você já tá programado pra ir até as quatro, até às quatro e meia, é aquilo; como você ultrapassa, dezoito, dezenove, aí o corpo já vai ficando cansado. O meu pelo menos é assim, né? E no sábado você já tá nas última, quando você precisa vim no domingo, porque você só tem o domingo pra descansar, e às vezes você, pela obrigação do trabalho, pela sua responsabilidade, você tem que vim. Aí pronto, como sobrecarrega é difícil”. Uma questão considerada pelas sujeitas da pesquisa como da maior importância para as condições de vida é ter uma casa própria. As maneiras de conseguir são variadas: um dinheiro recebido de indenização de trabalho anterior, do marido e/ou dela própria, um terreno doado pela família, ou através de política social. É importante salientar que a renda mensal do seu salário do trabalho remunerado sempre está diretamente implicada nesta possibilidade, para compra total, para a construção em geral por etapas, ou para restaurar. Isso pode ser ou não compartilhado com os rendimentos do companheiro, nos casos das que têm um companheiro. A satisfação de ter uma casa própria ajuda na autoestima, no sentimento de bem-estar, e concretamente favorece a possibilidade de ir gradativamente melhorando as condições do espaço doméstico. No caso de uma das trabalhadoras, o que aparece de forma implícita na sua narrativa sobre a importância de ter uma casa própria está relacionado à questão da liberdade pessoal no campo da vida amorosa e sexual. Para ela, ter sua própria casa foi uma forma de garantir uma base material concreta para uma vida com mais autonomia nesta e em outras esferas da vida cotidiana. Fazer bem o serviço é algo que traz satisfação, assim como receber o salário no final do mês. Sair de casa todos os dias e a convivência com as colegas no trabalho remunerado também são tratados como fatos positivos decorrentes de um trabalho remunerado. Ter um trabalho que garante uma renda mensal é um fator de grande importância em suas vidas e pode mesmo ser considerado um elemento emancipador, no sentido mais elementar que isso possa significar: o de ter capacidade para garantir os recursos para a sobrevivência pessoal e familiar e as possibilidades de tomar decisões neste âmbito, porque gera um sentimento de autonomia ou de independência. “A importância desse trabalho na minha vida é que realmente eu tive uma autonomia, né? É pra comprar as coisas que eu necessitava pra minha casa, pra pagar as dívidas que eu tenho... Eu consegui aqui. Eu gosto de trabalhar assim, que é dele que vem o dinheiro pra ajudar minha família.” “O trabalho pra mim é de suma importância né? É daqui que 164 eu tiro o meu sustento, o sustento da minha família. Eu posso passear, dar uma condição melhor de vida pra família.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Pra mim é muito importante o trabalho. Desse trabalho eu pude educar meus filhos, eu consegui minha casa junto com meu marido. O que nós temos é fruto do trabalho, e isso pra mim é muito importante.” “Olha, a importância do trabalho pra minha vida, o trabalho é tudo pra mim, tudo. Eu trabalho desde os dezessete ano, né? O trabalho pra mim é fundamental, é tudo, é a base de tudo.” “Primeiro, que eu sempre pensei que mulher tem que ser independente, que ela tem que ter o seu dinheiro, seu lugar. Eu gosto de cuidar da casa, mas também de trabalhar fora, da minha independência financeira.” “Quando você tá trabalhando, você se sente independente, né? Você chega no final do mês, seja muito, seja pouco, mas você pega seu dinheiro, você sabe o que você vai fazer sem ninguém se meter, sem você tá pedindo: ‘Olha, eu vô fazê isso, fazê aquilo’. Então você decide, decide o que fazer com ele: ‘Vou comprar isso, vou pagar aquilo, meu filho precisa disso ou aquilo’. Então tem liberdade de tomá a decisão de usar, gastar o dinheiro naquilo que você achar melhor.” Nas narrativas há uma afirmação generalizada de que as decisões no dia a dia no âmbito da vida familiar são tomadas sobretudo por elas, ou ainda feitas de maneira compartilhada com companheiros(as) ou com outros membros da família. Esta afirmação sempre está relacionada ao fato de trabalharem e de terem seu próprio dinheiro. No entanto, essa capacidade de tomar decisão não está acompanhada de uma mudança no cotidiano sobre a partilha das tarefas do trabalho reprodutivo. No âmbito do trabalho remunerado as decisões também não são fruto de processos coletivos nos quais elas podem partilhar suas visões e decidir em conjunto. Há uma hierarquia que impõe as regras gerais sobre do dia a dia de trabalho remunerado, mesmo em se tratando de uma cooperativa. Neste sentido, ter uma renda própria é um elemento de grande valor pessoal e tido como um fator de independência, mas isso tem de ser considerado dentro dos limites impostos pelas relações de trabalho produtivo e reprodutivo, que como podemos perceber nas narrativas, estão forjadas pela exploração e dominação de classe, de raça e de gênero. TORITAMA A CASA COMO ESPAÇO DE TRABALHO PRODUTIVO E REPRODUTIVO No caso de Toritama, a questão dos deslocamentos da residência para o local de trabalho e vice-versa não se apresenta como um problema de tempo que impacta a jornada de trabalho. Primeiro, porque grande parte das trabalhadoras deste contexto faz o trabalho remunerado em suas próprias residências ou em locais muito próximos a elas, já que não há grandes distâncias a serem percorridas quando o local do trabalho remunerado está fora do domicílio da trabalhadora. Quando necessário, há sempre a possibilidade de recorrer aos serviços de mototáxis, que existem em grande quantidade e tornam a paisagem da pequena cidade com suas ruas de desenhos irregulares. A existência de uma autoestrada que divide a cidade ao meio só concorre para aumentar a precariedade desse espaço urbano. As trabalhadoras que fizeram 165 parte da pesquisa confirmam esta informação em suas narrativas. As narrativas das Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica experiências daquelas que fazem o trabalho remunerado em suas próprias casas, que constituiu o grupo majoritário entre os sujeitas desta pesquisa, são aquelas que foram tomadas como referência nesta análise. Segundo as narrativas, este trabalho produtivo em domicílio é uma situação muito generalizada devido à forma como está organizada a produção têxtil local, que tem neste modo de trabalho uma base importante do seu processo de produção. As redes de conhecimentos pessoais na vizinhança ou de familiares é uma via importante para a inserção no mercado local de trabalho, o que reproduz também formas de lidar com o trabalho remunerado e com a convivência cotidiana. Como veremos mais adiante, o trabalho produtivo em domicílio não requer deslocamentos; coloca, no entanto, problemas de outros tipos sobre as temporalidades das jornadas formadas de trabalho produtivo e reprodutivo, sobre o espaço doméstico como espaço de trabalho produtivo e sobre a própria forma de viver o cotidiano. UMA JORNADA FEITA DE DOIS TRABALHOS, PRODUTIVO E REPRODUTIVO: UMA JORNADA DE MULHERES O trabalho produtivo em domicílio neste universo pesquisado apresenta duas situações diferenciadas. Há aquelas mulheres que trabalham sozinhas em suas próprias casas, prestando serviço para as empresas através de agentes ou subcontratantes, que fazem a intermediação entre elas e essas empresas. E há aquelas que trabalham em suas próprias casas, em conjunto com outras mulheres, que são por ela subcontratadas como força de trabalho. Neste caso, significa que as que contratam outras trabalhadoras montaram uma pequena facção em sua própria residência, a qual está também voltada para a prestação de serviço para as empresas, contando para isso, também, com intermediários(as). As narrativas que informam esta análise são de sujeitas que trabalham em um dessas situações, pois não fizemos separação entre elas. O que caracteriza, em geral, as experiências aqui apresentadas é o fato de se tratar de mulheres que fazem o trabalho remunerado em suas próprias casas. Para as mulheres que já montaram as facções no interior de suas residências, o processo de trabalho produtivo implica sua própria inserção como produtora e como gerente patroa da equipe contratada, formada por outras mulheres que residem, quase sempre, nas cercanias. A dupla inserção neste grupo de trabalho formado sob seu controle resulta em um movimento no qual ela tanto explora em algum grau a força de trabalho das outras trabalhadoras como agrega tempo de exploração da sua própria força de trabalho ao processo produtivo coletivo que ocorre no interior da sua residência. A semana de trabalho remunerado em geral vai de segunda-feira até o sábado, e neste último dia, também em geral, a jornada do trabalho remunerado é menor. Há sempre variações nessas temporalidades, dependendo de vários fatores, mas, sobretudo, das épocas do ano, com suas flutuações na demanda de produtos. O movimento diário é contínuo entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. Pode também ocorrer que esses dois trabalhos sejam feitos simultaneamente, e isso se dá com tanta frequência que pode ser caracterizada como uma dinâmica própria da situação do trabalho produtivo feito em domicílio. Esse movimento se estende ao longo de dia e pode também se estender pela noite. “Eu num sei, porque vivo mais na máquina. Eu acordo, aí tomo café, venho pra máquina, aí quando é dez e meia, onze 166 horas, vou botar almoço no fogo. Aí vou lavar os pratos, almoço Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras e volto pra máquina de novo. Aí de tarde boto os meninos pra ir pra escola, aí venho costurar de novo. Aí até dez e meia, onze horas da noite. Me levanto pra tomar conta da pequena.” “Eu começo a trabalhar às sete da manhã e paro às onze da noite. Durmo à meia-noite e acordo cinco horas da manhã, pra fazer exercício, caminhar. A facção fica na minha casa, onde moro com a minha filha. Minha filha é preguiçosa, só faz dormir e estudar. Eu aí paro de dez, vou ajeitar o almoço. Pego de sete, paro as dez, vou ajeitar o almoço. Aí o tempo que eu tô fazendo o almoço, eu vou lavando os pratos, eu vou varrendo a casa. Aí vamo dizer que dá uma hora e meia lá dentro, aí termino e volto pra máquina. E assim eu vou dividindo o tempo pra cada coisa.” “Eu pego de sete e meia. Largo de dez pra meio-dia, tem que parar, porque eu tenho que cuidar de almoço, porque tenho os dois pequenos que estuda, tem as menina que trabalha, que estuda. Aí uma e meia começo de novo. Acordo seis da manhã, vou cuidar de café, começar a trabalhar, parar, cuidar de almoço. Às vezes aparece problema pra resolver e eu nem almoço, vou resolver, volto, almoço, sento na máquina, começo a trabalhar de novo. Às seis, paro pra fazer o jantar e começa na máquina de novo. Óia, meia-noite... mais de meia-noite. Mais de meia-noite porque as meninas estuda, as duas meninas estuda em Santa Cruz. Eu fico trabalhando, esperando elas chegar pra poder ir dormir.” “Começa a trabalhar às sete da manhã. Acorda às sete, que é na hora que eu trabalho, e vou dormir às onze, onze e meia, meia-noite. Eu acordo às sete, levanto, escovo os dentes, faço café, tomo café e vou pra máquina. Aí vou até às onze horas só costurando, sem parar, sem pausa. Onze e meia, onze e quarenta, eu me levanto, vou, preparo o almoço, almoço, descanso um pouquinho, aí uma hora, uma hora e meia, eu levanto, vou pra máquina, costuro. Aí às seis da noite eu paro, tem aquela pausa. Faço o café. Às sete pego de novo. Mas só que eu gosto de costurar e gosto de fazer serão. Eu gosto de trabalhar de noite. O meu dia é assim, todo dia. Faço a tarefas de casa, lavar prato, varrer casa, faço todas as tarefas de casa, depende do serviço. Quando dá aquela pausinha, eu vou lá, saio da máquina, vou correndo, faço ligeiro pra voltar pra máquina, pra não ter atraso na produção. Sou eu que faço trabalho em casa. Meu marido chega em casa já é tarde, aí vai direto pra cama, dormir.” “Faço tudo, né? Assim, dentro do meu tempo que dá, pra mim sair da máquina e fazer alguma coisa. É lavar prato quando dá, quando não dá fica pra lavar no outro dia, no final de semana, aí vai de acordo com o trabalho, entendeu? No tempo que eu posso... Quem tá começando a fazer alguma coisa é minha menina, mas com toda preguiça do mundo. Eu levanto, faço as necessidades principais, escovar os dentes, se cuidar primeiro, depois pra máquina. Depois levanto, vou tomar um cafezinho, volto pra máquina de novo, meio-dia, levanto pra cuidar do almoço, fazer uma comida, e máquina de novo, até à noite. Aí eu malho, saio uma hora, pra academia e só. Pronto, depois é quase hora de dormir, vou dormir, e no 167 outro dia a mesma coisa de novo.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica No relato a seguir pode-se constatar o que significa ter outra atividade remunerada concomitante à atividade remunerada feita em domicílio, tanto em termos de jornada de trabalho como na forma e nas condições de viver o cotidiano. O ritmo de trabalho alcança um elevado grau de intensidade, que se dá na combinação entre intermitência e simultaneidade e que se expressa como resultado de uma dinâmica gerada pelo movimento diário entre trabalho produtivo e reprodutivo, e ainda entre trabalho produtivo de um tipo, trabalho produtivo de outro tipo e trabalho reprodutivo. “Eu me acordo de manhã, todos os dias, de cinco e meia. Quando eu tô muito cansada, eu vou até seis hora. Que é quando eu trabalho que faço serão até meia-noite, aí eu vou me acordar pelo meno seis hora. Aí eu faço café da manhã, apronto o menino pra ir pra escola, que aí o menino estuda de manhã, os dois, os dois estuda de manhã, o mais velho e o do meio. A caçula fica comigo, eu tenho uma caçula de dois ano, eu deixo ela brincando perto do meu trabalho, que meu trabalho já é nos fundo da minha casa e eu tenho acesso a ela a todo momento. Eu trabalho, eu faço o almoço, aí fico na máquina, me levanto, boto o comer no fogo, de lá eu fico trabalhando e olhando o comer. De onze horas eu paro, dou banho na menina, troco de roupa nela, dou mingau a ela, espero o outro chegar de doze e meia, dou almoço a ele, pego minha moto, vou pra escola trabalhar. Chego lá na escola de uma hora, no máximo uma e dez, que não posso me atrasar, dou aula até cinco e meia. Quando eu volto, cinco e meia, Ave!!! chego bastante agitada, faço café, dou banho na menina novamente, pra deixar ela prontinha pra ela dormir sozinha, deixo o mais velho quando chego da escola, ele passa o dia todinho na escola, o mais velho só chega na hora que eu chego, de cinco e meia. Aí no período que eu tô na escola, ou que eu tô trabalhando lá dentro, com a máquina, eles tão tomando conta dela.” Quando ouvimos as narrativas das mulheres, o trabalho produtivo em domicílio parece contribuir ainda mais para o sentimento de disponibilidade permanente das mulheres para qualquer demanda de trabalho que surja de trabalho nesse espaço. O que podemos perceber, e isso requer uma atenção acurada do narrado, é que na intermitência entre trabalho produtivo e reprodutivo, em alguns casos as mulheres vão abrindo brechas de tempos curtos dentro da temporalidade das jornadas de trabalho, formadas pelos seus trabalhos produtivos e reprodutivos rotineiros; nestas, outras atividades de trabalho são agregadas às tarefas do dia a dia, como pequenos afazeres remunerados, para melhorar a renda familiar. Entre essas pequenas tarefas extras podem ser encontradas também aquelas de apoio a uma atividade remunerada do companheiro, quando feita na proximidade do domicílio. Esta disponibilidade sem limite para o trabalho reprodutivo e produtivo no âmbito familiar revela o quanto a divisão sexual do trabalho está firme em seus alicerces. O trecho transcrito abaixo releva alguns desses elementos aqui tratados: “Eu pinto a unha, dou chapinha no cabelo, em casa, ajudo também na barraca, porque a barraca é dele, tá entendendo? O meu é a parte da costura. É dele, mas quando ele num tá, que chega uma pessoa, eu num vou deixar, aí eu atendo”. 168 Como o pagamento do trabalho produtivo é feito por peça, quanto mais peças produzidas, mais a renda aumenta. Isso é uma forma de coação, uma pressão sobre Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras o ritmo e o tempo do trabalho, porquanto há sempre uma tentativa de melhorar a renda, considerando ainda que o preço pago por peças é avaliado por elas como muito baixo. Essa é uma forma de constrangimento em relação à autonomia sobre o tempo do trabalho e da vida do dia a dia. Como o patamar de rendimento depende diretamente da produção, quando as entrevistadas têm de destinar tempo para as demandas do trabalho reprodutivo fora do espaço doméstico, como levar filhos ao serviço de saúde, os rendimentos são diretamente afetados. As intermitências no trabalho produtivo geradas pelas demandas do trabalho reprodutivo interferem diretamente no rendimento. O que se vê nos depoimentos é que as necessidades de sua autorreprodução, inclusive as mais básicas, como comer e dormir, são prejudicadas para não interromper o ritmo extensivo e intensivo de trabalho, como no depoimento a seguir: “Só que eu, como lhe falei,  meio-dia eu paro, eu vou fazer almoço, botar a menina pra escola, aí volto, aí eu não faço serão, por isso também… Eu acho que se eu costurasse à noite, também eu ganharia bem mais”. “A gente tem de dá conta daquele serviço que a gente faz. A gente trabalha feito burro… Tem, tem vez que eu nem me alevanto pra uriná, eu num me alevanto, que num dá tempo, metendo o pé, metendo o pé na máquina.” “Pra trabalhar, minha fia, tem que trabalhar. O povo em Toritama trabalha muito, é muito puxado. Em Toritama é bom de morar, agora é puxado demais o serviço. Tem dia até que eu não consigo dormir.” “Às vezes dava pra pessoa ganhar um dinheirinho, às vezes num tinha nem tempo de ir no banheiro direito. Às vezes já chegou caso aqui de eu comer até em pé, nas carreiras, pra fazer as peças do povo.” Essa pressão para produzir o máximo possível parece gerar uma forma de obsessão que pode ser associada ao que foi tratado no capítulo anterior, o propósito de se tornar ela mesma uma empresária, o que se caracteriza como uma espécie de obsessão da cultura local dessa região e está evidentemente relacionado a outros projetos de vida, realizáveis ou não no tempo; mas com certeza são fatores de exploração e de autoexploração da força de trabalho dessas mulheres. O que prevalece mesmo como fator para essa dinâmica de trabalho é o baixo preço pago pelas peças e o montante de peças que têm de ser produzidas para garantir os recursos a fim de suprir as necessidades de sobrevivência das sujeitas da pesquisa. “Começo sete e meia, oito horas. Termina umas onze e meia. Ontem a gente foi pra uma hora da manhã. Que se num entregar, não recebe também, né? Se uma costureira falta, eu tenho que aumentar o ritmo de trabalho. Aumenta o meu ritmo e o das outras. Trabalho na minha casa. Durmo de meia-noite e acordo de sete e meia. Depois vai cuidar da casa, tomar banho, e aí já deu meia-noite. Faço o almoço, sento na máquina, vou lavar os pratos, e assim vai. Não fico só sentada, fico pra lá e 169 pra cá.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Tem que ganhar mais ou menos uns oitenta reais por dia. Essas horas de relógio todinha… De sete e meia da manhã, meio-dia e de uma e meia às seis hora…Tá entendendo? Porque cada peça que a gente, cada um pedaço de uma peça que a gente faz é um preço. Aí a senhora juntô aqueles preço que a senhora faz por dia e vai ganhar aquilo... Eu mesma tiro oitenta reais por dia, eu tiro. E se eu me esforçar eu posso tirar até mais, se eu me esforçar. Se eu quiser me esforçar, eu me esforço; também se eu num quiser, eu num vou me esforçar, que eu num vou me matar por serviço, que eu vou enricar o patrão e eu num vô me enricar, né? Dá vantagem pro patrão, num dá vantage pra mim. Tá me esforçando, me acabando. Que numa máquina a senhora inframa útero, inframa tudo em cima de uma máquina. Já pensô a gente trabalhando o dia todo numa máquina daquela? Assentada ali? Ói, quando eu saio da máquina meus pés já tá tudo inchado.” Um dos fatores que servem de pressão para um ritmo intenso de produção é o fato de as vendas dos produtos das empresas de confecção locais estarem sujeitas a certa sazonalidade. A venda é permanente, mas em alguns períodos do ano elas se intensificam. Para equilibrar os efeitos financeiros dessa sazonalidade as mulheres trabalhadoras ressaltam a necessidade de acelerar o ritmo em determinados períodos. Essa intensificação parece se realizar sobre um ritmo de trabalho já intenso ao longo do dia e do ano. No caso das trabalhadoras de Toritama, o cuidado dos filhos, quando é partilhado, é partilhado com outras mulheres, à semelhança da situação encontrada em Barcarena. Quando há filhos e filhas em idade que podem partilhar alguma tarefa doméstica, mesmo como ajuda, em geral, com mais frequência, as meninas são chamadas a ajudar; mas também encontramos casos de filhos meninos que ajudam e dividem tarefas com suas mães. Os maridos, quando fazem alguma tarefa, isso é considerado uma ajuda. O que se pode perceber nas narrativas é que, pelo aspecto pontual e específico da participação dos homens nas tarefas do trabalho doméstico, trata-se realmente de ajuda ou apoio pontuais. “Moram cinco pessoas em casa. Tenho dois filhos, uma de 14 e um de 18, meu pai e minha mãe. Quem me ajuda é a mãe. Meu menino e minha menina tão estudando, vão pra escola todo dia. Mãinha faz o almoço, e eu faço as coisas assim: varro casa, lavo prato, passo o pano, lavo um banheiro. É ela quem faz janta, almoço é com ela. Minha menina, eu boto ela pra lavar, pra ela forrar as cama, espanar os troços. Eu digo: ‘A gente tem que começar de logo cedo a aprender’. Aí coloco, mesmo que depois eu vá lá e faça, mas ela faz umas coisinhas, sabe? Quando eu olho tá as bolacha embaixo do armário, parece que ela bota o lixo pra de baixo, mas vai aprendendo.” No relato acima, deve ser ressaltado que dos dois filhos – uma menina de 14 e um rapaz de 18 anos –, só a filha é mencionada como colaboradora das tarefas domésticas e como aquela que deve aprender tudo desde cedo. Como é mencionado que a menina também vai para a escola, podemos destacar neste caso que essa menina passa por dois aprendizados simultâneos: o doméstico, ligado ao trabalho reprodutivo, e o aprendizado feito através da escola, que deverá levar a uma profissionalização. Esta narrativa evidencia como a divisão sexual do trabalho que estrutura as relações sociais 170 de sexo/gênero é parte da qualificação das mulheres para o trabalho. O quadro geral Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras desse trecho, extraído de uma narrativa, poderia ser descrito dessa forma: uma mãe, uma filha/mãe (que é trabalhadora remunerada) e uma filha criança (que também é neta) dividem o trabalho reprodutivo, sendo que no caso da mais nova este é considerado um processo de aprendizado. Os meninos, menos frequentemente, também ajudam as suas mães, de acordo com as narrativas das trabalhadoras, o que mostra que os processos sociais são formados de contradições do dia a dia. Isso não elimina as determinações que sustentam a reprodução das relações sociais e as desigualdades que elas implicam. Como podemos ver, o que sustenta mesmo a reprodução social do dia a dia são as mulheres, em uma relação social entre elas. A creche não aparece como um recurso disponível para as crianças, o que seria também um suporte para o trabalho das mulheres no cotidiano. A escola aparece como algo central no dia a dia, para as crianças, mais novas ou mais velhas, e para as mulheres que são mães. “O meu menino me ajuda, lava os pratos. Eu faço a comida; a roupa eu boto pra alguém lavar. Só sobra tempo para fazer a comida, por causa do trabalho nas máquinas. Às vezes, quando eu me lembro, vou botar o arroz no fogo quase às onze horas. Às vezes faço um cuscuz na carreira, um macarrão. É assim. Vai levando a vida assim. Meu marido e meus filhos ajudam.” “Meu filho tem sete anos, estuda. A avó dele ajuda no cuidado, vem buscar ele. Moram três pessoas em casa: eu, meu filho e meu marido. Quando ele quer, aí ele lava uns pratinhos.” “Eu estudo de meia-noite, uma hora da manhã, duas horas da manhã... Porque eu preciso acessar ao computador; aí é o tempo que eu estudo, que eles tão tudo dormindo e eu posso me concentrar. Quando eu vou fazer prova, eu me tranco uma hora dentro do quarto, tiro lá do que eu tenho que fazer, vou estudar pra mim tirar uma nota boa. Não tenho filhos. Ajudo nas tarefas domésticas de casa na minha folga. Durante o dia não tenho tempo, quem faz o trabalho doméstico é a minha mãe. Minha irmã e minha cunhada ajudam a mãe.” Neste último relato, pode-se perceber com precisão a existência de uma microrrede formada por mulheres no espaço doméstico que garantem o trabalho reprodutivo. Pode-se também perceber que quando uma trabalhadora se mantém estudando e trabalhando, isto significa um exercício permanente de superação de dificuldades, mesmo quando não tem filhos e mora da casa de sua mãe. O que torna isso de fato possível, nas condições e no ritmo do trabalho remunerado, é o apoio dessa rede formada entre mulheres. AS CONDIÇÕES E OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO A renda por peça aumenta a pressão sobre o tempo do trabalho, com forte impacto sobre a qualidade de vida dessas mulheres. A intensa semana, formada de dois trabalhos, o produtivo e o reprodutivo, em geral é definida como de segunda-feira a sábado. Algumas tarefas produtivas, no entanto, podem avançar para o domingo, a depender das exigências da relação produtividade e renda. No tocante ao trabalho reprodutivo, suas tarefas se estendem para os fins de semana, isto é, para o domingo; além disso, neste dia são feitas as tarefas acumuladas durante toda a semana, por falta de tempo de executá-las para além de uma manutenção básica, segundo a expressão 171 frequentemente utilizada pelas sujeitas da pesquisa. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Durante a semana não há tempo para o descanso, e qualquer atividade externa para resolver problemas do cotidiano e que exija deslocamentos que implique afastamento de suas residências é percebida como um fator que resulta em perda de tempo para investir na produção. No dia a dia, a televisão é uma forma de lazer disponível que pode ser desfrutada simultaneamente à realização do trabalho produtivo. Nesse tempo sob a coação do ritmo do trabalho por peça e mal remunerado, o sentido de urgência é permanente, e todas as outras dimensões da vida cotidiana acham-se pressionadas pela necessidade de produzir. Nas narrativas, a ideia de perder tempo aparece como um fio que, sub-repticiamente, desenrola-se em forma de angústia, atravessa o dia e só é interrompida pelas horas do sono, motivada pela necessidade, considerada premente, de aumentar sempre a capacidade produtiva a fim de manter e aumentar a renda, e conseguir uma pequena acumulação primitiva dentro das precárias condições em que estão inseridas. Nas citações abaixo podemos perceber elementos que refletem os problemas aqui mencionados: “Trabalho de cinco da manhã até uma da madrugada para garantir o trabalho. Agora no momento diminuiu a quantidade de peças nesse aprontamento. Mas ele me arrumou outro aprontamento”. “A renda varia, depende da produção. Porque se eu for ao dentista, se eu levar meu filho ao médico, as outras ficam produzindo, e eu não. Porque se você num enfrentar o tempo, que é pra correr, pra fazer o serviço, num consegue. Às vezes tem de correr, ou num dá tempo pra fazer, pra entregar as peças.” “Descansar, só de noite, depois que os menino dorme. Porque se eles passa até dez hora, vou botando eles pra cama, pra dormir. Eu não tenho tempo pra mim e pra meus filho. Do jeito que tá o serviço aqui, eu só faço comer e a pulso.” “Eu acordo, venho pra máquina, só levanto mesmo nas horas da refeição, só. Até a noite, até a hora de ir dormir. Como eu trabalho em casa, fico vendo televisão; enquanto eu tô assistindo a televisão, eu tô trabalhando. Só paro mesmo pra fazer um exercício físico, e só.” O descanso é na máquina – é uma expressão usada na narrativa para mostrar a falta dessa possibilidade no dia a dia. Consideramos também que esta expressão pode ser tomada como uma espécie de síntese que mostra até que ponto pode chegar o ritmo de trabalho produtivo no cotidiano dessas trabalhadoras e a sua interferência no tempo para realizar as atividades imprescindíveis para sua própria manutenção no dia a dia. Abaixo citamos o trecho da narrativa na qual esta expressão aparece. A máquina pode também ser o local em que, ocasionalmente, as trabalhadoras podem comer, para não interromper totalmente o processo produtivo naquele breve momento. Nesse caso, a simultaneidade ocorre entre trabalhar e se alimentar. “Acordo às sete, sete e meia. Faço café, tomo café, passo a vassoura na casa, me sento às oito horas. Começa às oito horas da manhã. Depois eu me levanto várias vezes. De onze e meia, onze e quarenta, eu tô parando pra terminar o almoço. Às vezes eu lavo roupa, almoço. Essa correria de almoço, fazer suco, fazer molho de macarrão, todas essas coisas. Depois eu 172 volto pra costura, porque eu já tenho parado muito; aí quando Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras eu almoço o meu descanso é na máquina. Aí à tarde eu paro um pouquinho, uns dez minutos, dou uma lanchadinha, volto, depois eu paro pra fazer o café da noite. Volto. E de oito e meia, nove horas, eu tô parando pra dormir. Vou dormir às dez e meia. Eu dou banho nele, ensino tarefa de escola, faço um monte de coisa.” “À noite, aí eu... às vezes, quando as meninas fazem serão comigo, eu faço a janta, a gente come na máquina mermo e fica até dez, onze horas.” Uma das trabalhadoras participantes da pesquisa usa o termo “intensidade” para se referir ao ritmo do trabalho produtivo e reprodutivo nos dias de semana, em contraponto ao ritmo do trabalho reprodutivo no dia da folga semanal do trabalho produtivo que é domingo. Consideramos que este conceito traduz com muita propriedade a situação de trabalho vivida por ela e pelas outras trabalhadoras que compõem os grupos de mulheres deste estudo. Outra expressão que queremos salientar nesse mesmo trecho citado abaixo é “quando eu tô trabalhando”, referido ao fato de fazer o trabalho produtivo, o que indica que o fato de ela estar fazendo tarefas do trabalho reprodutivo no final de semana não é visto como trabalho, enquanto ela afirma que faz “o serviço”, referindo-se a este último. Esta é uma visão questionada – mas ainda generalizada, embora nem sempre explicitada de maneira tão direta – que mostra a persistência da naturalização do trabalho reprodutivo, no senso comum, incluindo, evidentemente, a percepção das próprias mulheres como algo intrínseco ao ser e ao estar no mundo das mulheres. “Acordo oito, oito e meia. Eu acordo mais tarde de manhã, faço o serviço, não naquela intensidade de quando eu tô trabalhando. Assim, mais lento: almoço, cochilo um pouquinho. Depois eu volto de novo, arrumo as coisas. Aí fico jogando conversa fora no portão. E de noite, durmo mais cedo.” Nos fins de semana, o lazer e trabalho caminham juntos, quando possível. Mas às vezes não há tempo para lazer ou não há condições físicas para usufruir de alguma atividade de lazer, dado o cansaço que foi se instalando no corpo durante toda a semana. O dia de sábado aparece nas narrativas como um dia de trabalho remunerado, mas não na mesma extensão da temporalidade dos outros dias da semana. Este trabalho remunerado no sábado tem variações de temporalidade entre as diferentes trabalhadoras que compõem este universo da pesquisa. Se a produtividade durante a semana alcançou o que estava previsto, se não há demanda extra e outros fatores, o sábado pode por vezes ser parcialmente liberado das tarefas remuneradas, mas não é essa a situação que prevalece. O que pode também ser observado através das narrativas é a simultaneidade entre lazer e cuidado com os(as) filhos(as). A percepção de um tempo para si ou para seu próprio lazer, na percepção delas, pode significar tão somente os momentos de liberação do trabalho produtivo e de tarefas reprodutivas específicas, como arrumar a casa, cozinhar, lavar roupas e pratos; mas o cuidado com as crianças durante os momentos de lazer, como mencionado em suas falas, não é considerado, com raras exceções, uma atividade do seu trabalho reprodutivo. Essas atividades do cuidado, aos domingos, também podem se estender para outros membros da família que não têm capacidade de se autocuidar por conta da idade ou de alguma deficiência física. Pequenas atividades de comércio, como a venda por encomenda ao/à cliente através de revista, também podem ocupar alguns horários desse domingo. Como podemos perceber nas 173 falas das sujeitas da pesquisa, abaixo apresentadas, são muitas as atividades de trabalho Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica de natureza diversa que podem ocupar a vivência do domingo, considerado como o dia de folga. “Pra falar a verdade... nós num tem é nada. A gente trabalha o sábado o dia todo. No domingo, vamo correr dento de casa. No domingo vem fêra de fruta, vem fêra de mercado, vem arrumar a casa, vem lavar prato, às vez lavar ropa, principalmente ropa no final de semana. A senhora vê a multidão de ropa que tem ali que eu lavei durante o dia hoje. Não é brincadera. É o tempo que eu tenho agora de três horas da tarde. O domingo que eu tenho num dá pra nada. Se eu tiver é uma bebederinha que nós faz no final de semana, já de meio dia pra tarde, de três horas por diante. Pruma piscina, prum bazim… Que lá pra casa da minha sogra tem, a gente fica, leva os dois minino, se diverte.” “Quando aquele domingo é só meu, eu me acordo depois de oito e meia, nove hora, não faço almoço de jeito nenhum, não faço faxina, passo o dia andando com eles, com os meninos, vou pro sítio, vou pra casa de algum parente e quando eu chego à noite, cansada, descanso um pouquinho de tanto que andei mais eles. Aí eu sei que no outro dia eu vou começar a minha rotina, eu já começo me preparar, deixar as coisa bem organizadinha”. “No domingo faço tarefas da casa e também vendo os produtos das revistas, atendo as clientes.” “Passeio com meus filhos, vou pra casa da minha mãe, passo final de semana na casa da minha mãe com meus filhos. É o que eu faço no final de semana. O dia do meu lazer é o domingo. A partir das nove horas da manhã já começa o meu lazer. Pego meus filhos, vou pra casa da minha mãe que é num sítio, e passo o dia lá, com a família brincando. À noite, venho pra casa descansar”. “Aí no domingo é o dia de eu arrumar as coisas da minha mãe, que a minha mãe não anda. Minha menina é que ajeita aqui. Faz o almoço, ajeita a casa. Minha filha fica cuidando da casa aqui e da minha mãe. Meus filhos já tão tudo adultos.” Ainda em relação ao lazer, o que aparece de forma recorrente nas narrativas das sujeitas é o fato de a cidade na qual residem não oferecer opções de lazer. Como vimos anteriormente, uma das formas de lazer mais aludidas é o passeio na casa de familiares, que em geral moram em sítios na área rural, nas cercanias da cidade, ou então localizadas na própria periferia da cidade, em terrenos mais espaçosos, com área para encontros familiares. Nas observações de campo feitas sobre a cidade pelas pesquisadoras, pode-se constatar a precariedade da infraestrutura da cidade no que diz respeito não somente ao lazer, mas também às condições do meio ambiente e da organização do espaço urbano, como já foi tratado no capítulo sobre os contextos da pesquisa, o que de fato traz um impacto fortemente negativo para a qualidade de vida da população. “Às vezes, num domingo à tarde, num feriado, eu saio para um barzinho, pra tomar uma cervejinha. É só o que tem aqui em Toritama mermo, é um bar. Num tem assim um canto bom. Só 174 tem fora, aí não dá pra ir.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Olhe, em Toritama é um local que num tem esse divertido, nós se diverte em nada em Toritama. Em Toritama tem o quê? Num tem nada. Em Toritama num tem um passeio, em Toritama num tem uma praça pra gente ir pruma praça e se divertir com a criança num passeio. Num tem nada em Toritama, nada, nada, nada em Toritama.” “Assim, lazer, pelo menos aqui nessa cidade não tem um lugar pra gente sair. E aí, pronto, fica em casa, em casa e em casa. Não tem outra opção. Eu vejo televisão, olho o facebook, é essa a distração aqui. Pelo menos pra mim, eu não gosto de sair. Isso é de mim também, eu num sou muito festeira não.” Nas narrativas das trabalhadoras, a temporalidade do trabalho produtivo também segue um ritmo extensivo ao longo dos meses do ano, e o período de férias parece que não fazer parte da realidade das condições de trabalho vivenciadas por elas. Os períodos de férias, quando abordados por elas, estão referidos a dias específicos como sexta-feira da Semana Santa, a semana do Natal e Ano Novo do calendário cristão, e os dias de carnaval. Como são elas mesmas que determinam os dias de férias, o que prevalece nas decisões sobre férias é a necessidade de se manter na produção, uma vez que se elas não produzem não obtêm renda. “A gente não tem isso não. Só na sexta-feira da Paixão. Desde quando eu trabalhei, só teve duas sexta-feira da Paixão mesmo que eu não trabalhei.” “Férias aqui a gente só tira férias mesmo é só duas vezes por ano, na semana do final do ano e no carnaval, somente. A gente trabalha a ano todinho... aí os feriados, pronto e o da Semana Santa que é o certo, a gente trabalha a semana toda e folga a quinta e sexta da Paixão. Aí mais feriado pra gente quase num existe. Se a gente trabalhar, a gente tem dinheiro; se a gente num trabalhar, a gente num tem dinheiro. Que a gente trabalha por produção, num trabalhou num recebe.” Fazer o trabalho produtivo no espaço doméstico significa a autodespossessão de um território absolutamente fundamental para garantir a qualidade de vida dos seres humanos, que é o seu lugar de moradia. Os espaços da vida privada do repouso são capturados, como podemos perceber no trecho de uma narrativa, a seguir: “Essa estadia não é boa, a minha estadia. Porque na minha casa eu tirei a sala, o quarto. Ela é pequena, tem dezoito metros só, minha casa. Dezoito metros; aí desses dezoito metros eu botei canto de trabalhar e a casa ficou muito pequena, não ficou boa a estadia. Por isso que tá nesse processo, se arrastando pra gente melhorar”. Esta autodespossessão do espaço no território da vida privada, o qual é a base de sustentação das sujeitas no cotidiano, se dá pela ocupação de locais no qual a trabalhadora coloca a máquina ou as máquinas, as peças para serem confeccionadas e as produzidas para entrega, e outros apetrechos necessários ao processo produtivo, mas também porque os materiais que são descartados na produção vão se espalhando pela casa, invadindo todos os seus cômodos para além da fronteira estabelecida para o local do trabalho produtivo. O próprio ritmo e os sons gerados pelo trabalho 175 produtivo em domicílio retiram dos habitantes da casa as condições de conforto e Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica bem-estar, que só podem ser garantidas quando o espaço doméstico é livremente utilizado como o espaço da intimidade necessária ao processo de autorreprodução da vida de cada um(uma) no dia a dia. Como o trabalho produtivo é feito em equipe, a privacidade da vida doméstica é totalmente quebrada, e a vida íntima e a necessidade de recolhimento ficam completamente inviabilizadas pelas longas jornadas de trabalho produtivo que se realizam no interior da casa. Como a rotina formada pelo trabalho produtivo e trabalho reprodutivo se intercala e fica encerrada dentro de um mesmo espaço, o espaço doméstico, isso configura uma espécie de confinamento cotidiano das trabalhadoras, num espaço/tempo preenchido quase integralmente com atividades do trabalho produtivo e reprodutivo. Isso se mostra como um limite, como um déficit na liberdade de ir e vir. Esse sentimento está expresso de maneira evidente neste trecho de uma narrativa, a seguir: “É, as dificuldade é que você fica muito presa, tá entendendo? Você não tem liberdade. Você vive só aqui dentro, que você fica só aqui e pronto, só, sem sair... Eu chamo esse trabalho de uma prisão, porque você só tem dois dias na semana, o sábado e o domingo. Mas eu mermo trabalho até o sábado”. Como já mencionado, as trabalhadoras cujas dinâmicas de trabalho cotidiano estão aqui relatadas dizem respeito àquelas que fazem trabalho produtivo em seus próprios domicílios. Esta forma de trabalho foi preponderante entre as trabalhadoras que participaram da pesquisa e, segundo essas sujeitas, é uma forma amplamente encontrada no contexto local. O processo do trabalho produtivo gera sujeira e desarrumação do espaço doméstico. Dessa forma, acrescenta ao dia a dia de trabalho uma atividade de limpeza que ao ser feita no interior do espaço doméstico se confunde com o trabalho reprodutivo, contribuindo para borrar as fronteiras entre o trabalho produtivo e o reprodutivo. Consideramos que essa é uma questão central para avançarmos no conhecimento sobre a diversidade de formas, sinuosas, ambíguas e diversas, que moldam esses trabalhos e que estabelecem as relações entre eles. “Sete e meia eu já tô de pé. Aí boto serviço pras meninas, começo colocando o serviço pras meninas. Às vezes eu vou arrumar uma costureira fora, que trabalhe na casa dela, pra levar algum serviço. Almoçar, às vezes a gente vem almoçar uma hora, duas horas da tarde. Ainda agora a gente acabou de almoçar. Aí num tem aquele horário, eu não tenho aquele horário certo, não sei se é porque eu trabalho em casa e termino me acomodando. Mas assim que eu acordo, boto serviço pras meninas, aí ajeito um café, faço um café, um pão, qualquer coisinha a gente come, e sento na máquina; às vezes a gente chega até a comer na máquina mesmo, aqui, né? Mas quando é meio-dia boto o comer, aí é comendo e vindo da mesa pra máquina. À noite aí eu... às vezes quando as meninas fazem serão... e fica até dez, onze horas. Eu sempre continuo. Porque eu dou o adiantamento do meu serviço que eu atrasei tanto durante o dia, aí acontece às vezes de desmanchar serviço. Depois que elas sai dou uma varrida, deixo tudo limpo, o serviço das meninas tudo no local, pra quando elas chegar de manhã.” “As dificuldade que eu tenho é que eu tenho vontade de tirar 176 as máquina daqui, alugar um canto e colocar elas, só que por Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras enquanto eu num tô podendo. A dificuldade que eu acho é só porque eu tenho que morar no mesmo canto que eu trabalho; é trabalho e morada, mistura tudo, é uma dificuldade.” É raro nos relatos encontrar descrições sobre momentos de pausa no trabalho para descanso ou atividade corporal. São poucos os casos de mulheres que se referiram ao fato de fazer exercício físico como uma atividade do dia a dia. Para que isto seja possível é necessário acordar mais cedo. O cansaço do dia a dia parece que vai se acumulando, como um sinal de que o tempo para a reposição das energias corporais, necessárias à saúde e para garantia de algum nível de bem-estar, está em falta permanente. Elas falam com ênfase sobre o cansaço e o estresse. E às vezes não associam os sintomas de dores no corpo a uma forma de adoecimento do corpo. A intensidade do trabalho durante a semana gera um estado de cansaço que interfere na possibilidade de vivenciar o domingo, como dia de folga, para atividades lúdicas, uma vez que a prioridade é descansar. “Nas minhas horas vagas, quando dá, eu corro pra dormir... Num dá coragem de sair pra canto nenhum, o corpo só quer descansar. Tô sem coragem pra nada, vivo cansada.” “Eu gosto, apesar dele ser puxado, eu gosto. Mas ele desgasta a gente, entendeu? É um trabalho que é bom, eu gosto do que faço, mas é desgastante, puxa pela sua mente, pelo seu corpo, muito, muito, muito...” “Fico muito parada e dá muito problema de paralisação de articulação, porque você tá parada, você não anda, num tem circulação do movimento do sangue das perna, entendeu? Puxa muito com a mão, você fica o dia todinho sentada aí, só com as mão segurando os tecido, puxa muito...” “Quando tô trabalhando sinto muita dor, mas nunca fiquei doente por causa do trabalho.” “Não faço nada de lazer. Fico em casa. Um dia de lazer? É em casa, meu lazer é em casa. Fico em casa assistindo TV, descansando. O domingo fica pra mim descansar, descansar que é o que eu preciso.” No caso de uma trabalhadora grávida, no período da pesquisa, a sua narrativa apresenta o mesmo ritmo de trabalho que foi expresso pelas outras mulheres, sem, no entanto, se referir a cuidados especiais ou problemas que possam aparecer no cotidiano em função dessa relação entre trabalho produtivo, trabalho reprodutivo em uma dupla dimensão, tanto exteriorizado quanto gestado no seu próprio corpo. No entanto, quando essa e outras trabalhadoras se referem a sua trajetória profissional, como mostrado no capítulo anterior, relatam os períodos de gravidez como momentos que dificultam o dia a dia de trabalho e interferem nessa trajetória. O trabalho remunerado é considerado de grande importância na vida dessas trabalhadoras. Como garantia da sua sobrevivência e do grupo familiar, e como forma de realização pessoal no sentido de garantir uma renda necessária à sobrevivência, e também por entenderem que através da renda do trabalho podem realizar projetos pessoais e familiares, como, por exemplo, ter uma casa própria. Nas narrativas, a questão do trabalho produtivo específico da costura, ao qual elas se dedicam, pode ser percebido de diversas maneiras: de forma conformista, como o que é possível de ser feito, por falta de condições para escolher outra atividade profissional; de maneira 177 crítica, como algo necessário, mas que constitui um obstáculo ao seu desenvolvimento Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica pessoal e à construção de outras possibilidades de profissionalização e condições de vida; e também como um trabalho que elas gostam de realizar. Essas variações não alteram o fato de que todas consideram o fato de trabalhar e ter uma renda como algo fundamental em suas vidas. Para algumas das trabalhadoras, trabalhar e ter uma renda são um fator fundamental não só para elas mesmas, mas também para todas as mulheres, em uma relação direta com o fato de que mesmo tendo um companheiro, as mulheres não devem ser financeiramente dependentes dos homens. Isto mostra uma percepção de autonomia econômica como algo que pode ser conquistado nas condições de vida em que elas estão inseridas. “O meu trabalho pra mim é tudo, porque tiro o meu sustento e o da minha família, dos meus filhos. Pr’eu ter uma casa, tiro tudo daqui. O meu trabalho é muito importante. Eu gosto muito de trabalhar; quando eu num trabalho fico com agonia, que o trabalho que eu gosto é de costurar.” “É essencial, porque sem ele eu acho que num faria nada; e a gente precisa trabalhar pra sustentar a casa. Eu não sei o que seria de mim sem o trabalho da costura, não. É essencial, é essencial pra mim. É o que eu sei fazer.” “A pessoa sabe que esse trabalho num tem importância nenhuma; o que importa é os estudo que leva a pessoa pra frente, que costura num leva. Mas tenho que fazer pra viver, pra sustentar... e num dá pra estudar.” “Eu sou satisfeita. Porque eu não tenho estudo e Deus me amostrou essa profissão. Deu o dom de eu aprender a costurar. Hoje eu bato no meu peito, que tenho uma profissão, porque se eu num soubesse costurar, ia fazer o quê? Ia ficar sem ganhar nada. Ia viver de quê? Só esperando pelo marido. Pra quando o marido quisé dá uma roupa, um calçado, tá pedindo a ele? Não e não. As mulé têm que trabalhar. Quem num tem uma profissão num tem nada. Eu sou muito feliz que eu tenho minha profissão, minha profissão de costureira. O povo chega assim e pergunta: ‘Qual a tua profissão? E eu: ‘Costureira’.” Nas narrativas das trabalhadoras de Toritama, a questão sobre os processos de decisão sobre a vida cotidiana aparece de forma difusa. Uma das razões para isso é que a questão das decisões sobre a vida cotidiana e os projetos de vida está muito associada à questão da renda do trabalho e isso coloca dois problemas. Em primeiro lugar, porque no geral não estão disponíveis para falar sobre isto, por razões já tratadas no capítulo anterior; e em segundo lugar, porque as decisões sobre esta renda parecem estar sempre permeadas pelas dificuldades de separar a administração da renda do trabalho nos seus diversos usos: para ser poupado e ser reinvestido na produção imediatamente, como, por exemplo, na compra de nova máquina de costura, ou para ser poupado e reinvestido mais tardiamente, como parte da acumulação primitiva, e para manutenção da vida familiar. Mas é a não revelação sobre a renda total auferida com trabalho que impede as sujeitas de falarem sobre os processos decisórios. Apesar disso, elas também mostram uma percepção sobre elas mesmas, pelo fato de serem trabalhadoras com capacidade de gerar renda própria, como sujeitas com capacidade e poder de decisão. O fator de ter uma atividade produtiva por conta própria, a despeito da falta de seguridade e proteção social, é no caso dessas trabalhadoras, percebida como um elemento fundamental de sua 178 independência, e de sustentação para construir uma mudança positiva nas suas condições financeiras como uma empreendedora de seu próprio negócio. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras SÃO PAULO O TEMPO E AS PEDRAS NO CAMINHO DE IDA E DE VOLTA No caso de São Paulo, a imensidão da cidade já se constitui como um problema em si para quem todos os dias tem de se locomover entre sua residência e o local de trabalho remunerado. No caso das trabalhadoras inseridas nos setores precários do mercado de trabalho, vivendo em lugares distantes, em geral na periferia, dos seus locais de emprego, a travessia necessariamente é longa e dificultosa. O transporte público urbano com suas formas problemáticas de conexão é, em geral, dispendioso, desconfortável e, além disso, insuficiente para a multidão que necessita utilizá-lo. É o problema da mobilidade urbana que tanto penaliza o dia a dia da classe que vive do seu próprio trabalho. Para as trabalhadoras que participaram da pesquisa no contexto da região Metropolitana de São Paulo, os roteiros e os percursos diários são, em geral, extensos e dependentes de mais de um meio de transporte. É o que se constata nas narrativas das trabalhadoras cujas experiências servem de base para esta análise, que são aquelas que trabalham nos canteiros de obra das empresas de construção civil. Trem, metrô e ônibus são os meios mais utilizados, muitas vezes em uma combinação dos três e em uma sequência que se inverte do caminho de ida para o caminho de volta. As trabalhadoras desse contexto, que fizeram parte da pesquisa, deixam evidente em suas próprias narrativas que os locais de residência delas estão sempre distante dos canteiros de obras em que trabalham, pois são construções civis de prédios empresariais, ou residenciais, de padrões que não poderiam se situar nos bairros ondem vivem, devido à desigualdade entre os padrões de classe destas construções e os padrões de classe nos territórios das comunidades nas quais habitam. “Saio de casa às 6 horas da manhã. O primeiro ônibus demora uma hora e vinte minutos. Depois pego o outro ônibus fura-fila, mais rápido, aí gasto de vinte a trinta minutos. O resto do trajeto é a pé. Todo o percurso dura duas horas. ÀS dezoito horas saio do trabalho e chego mais ou menos às vinte horas em casa. Vou sentada em cima do motor do ônibus, quando tem um espaço no motor, né?” “Acordo seis horas, só dá tempo de passar uma água no corpo e sair correndo. Cê sabe como é, condução cheia, lotada. Cê pega aquele metrô. Às vezes cê passa mal, eu, no meu caso, tenho fobia. Aí tenho que sair do metrô, ficar um pouco lá fora. Local fechado pra mim... é a morte.” “Começo o trabalho às sete da manhã e termino cinco horas da tarde. Pra chegar no trabalho às sete, saio de casa às três e meia da manhã. Eu saio para chegar antes, né? Pode acontecer algum imprevisto. Eu saio três e meia da minha casa. Três e cinquenta, quer dizer, eu pego o ônibus dez para quatro. Ônibus, trem e metrô e outro ônibus depois. Depois do trabalho, o mesmo caminho de volta. Saio do trabalho sempre às cinco, chego sete e meia, oito horas.” “Pego lotação, trem, metrô até a República, desço, passo pra linha amarela. Aí eu desço na Faria Lima, pego um ônibus pra chegar até a obra. E a volta a mesma coisa: pego um ônibus até o metrô, até a Faria Lima, desço na Luz, pego o trem até a Itaquera, pego a lotação e chego em casa. Chego em casa às 179 sete horas. A volta é um pouco mais complicada. É mais gente.” Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica As narrativas sobre os percursos de ida e volta para o trabalho remunerado, das quais apresentamos acima alguns extratos, atestam o quanto o problema da mobilidade urbana é um fator deteriorante da qualidade da vida cotidiana de trabalhadoras e trabalhadores nos grandes centros urbanos. O que esses percursos também revelam é que na travessia para os locais de trabalho remunerado há um gasto de energia física muito grande e um desconforto com impacto sobre o corpo como parte da produção diária de uma exaustão corporal das trabalhadoras, a qual se faz acompanhar de um forte desgaste emocional causado pelo ritmo do tempo, cronometrado, para essas longas travessias. Isso pode ser considerado um fator prejudicial não só à capacidade de trabalho como também à saúde das trabalhadoras. “Cada dia é um novo dia, um recomeço, uma nova conquista. Cansada, muito cansada. Às vezes não é o serviço que cansa, é a trajetória que cansa; é você chegar no serviço já desgastada. Isso que é cansativo. Mas o resto é normal.” Para as trabalhadoras que participaram da pesquisa e não estão inseridas nos quadros de empregados(as) das empresas da construção civil, mas prestam serviço por conta própria, os deslocamentos diários não implicam os mesmos problemas, porque, em geral, há uma tendência a fazer o trabalho remunerado com mais frequência nos bairros onde moram ou que são próximos de suas residências. Além disso, os horários de trabalho apresentam também uma dinâmica diferente e são mais negociáveis no dia a dia, e por isso exercem menos pressão no tempo cotidiano. No entanto, as situações podem, ocasionalmente, mudar e os trabalhos remunerados podem a qualquer momento aparecer em áreas mais distantes do bairro onde vivem. Porque elas têm de ir em busca da renda, onde quer que a demanda de prestação de serviço apareça. Como já mencionado, neste estudo, dentro do universo pesquisado, são as experiências das trabalhadoras que estão nos canteiros de obra que constituem a base de nossas análises para o contexto de São Paulo. UMA JORNADA FEITA DE DOIS TRABALHOS, PRODUTIVO E REPRODUTIVO: UMA JORNADA DE MULHERES Durante a semana de trabalho produtivo, de segunda-feira a sexta-feira, o dia começa cedo para as trabalhadoras da construção civil em São Paulo. Muitas saem de casa ainda pela madrugada. O trabalho remunerado captura a vivência cotidiana do tempo dessas trabalhadoras sem tréguas para qualquer outra atividade que não seja relacionada ao trabalho. As grandes distâncias que percorrem entre suas casas e os locais do trabalho remunerado impactam nessa conformação do dia a dia como uma temporalidade sobre a qual elas não têm nenhuma autonomia para organizar de outra maneira, e mais que isso, para alterar qualquer detalhe dessa dinâmica. Uma das únicas brechas de tempo que encontramos durante os horários do trabalho remunerado é quando na hora do intervalo do almoço, com duração em torno de uma hora, uma hora e meia, elas podem decidir sobre um almoço muito rápido, para aproveitar este pequeno intervalo de tempo, como elas mesmas dizem, para deitar e esticar as costas. Em geral elas trazem a marmita de casa com o almoço pronto. Mas isso significa também que na noite anterior esta comida foi preparada por elas mesmas dentro das tarefas do trabalho reprodutivo. Ao analisar as jornadas de trabalho nas narrativas 180 dessas trabalhadoras, é possível observar que de fato não existe outra possibilidade de Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras enfrentar a jornada de trabalho formada de produtivo e reprodutivo se essas mulheres não contarem com a solidariedade ou o apoio de outras mulheres, para garantir a sobrevivência pessoal e do grupo familiar no cotidiano. “Começa o trabalho às sete da manhã e termino cinco horas da tarde. Pra chegar no trabalho às sete, saio de casa às três e meia da manhã. Depois do trabalho, chego em casa às dezenove, vinte horas.” “Eu acordo três e meia e vou dormir dez e pouco, onze horas. Tenho quatro filhos. Quem faz trabalho doméstico em casa é a filha mais velha. A mais velha tem vinte. Somos em cinco. Somos eu e meus quatro filhos. Mas sempre tem que eu ajeitar umas coisas em casa, nem que seja no fim da semana.” “Eu acordo às cinco, enrolo até às cinco e vinte. Das cinco e vinte ponho fogo, passo pra cozinha, ponho água pra fazer café. Aí faço, tomo café, vou rezar, depois vou pro serviço. Chegando lá, ponho roupa, vou trabalhar, faço minhas coisas. Quando é onze e cinquenta, tô eu almoçando, estico minhas costas. Como e deito, que eu adoro deitar. Aí fico lá e dou uma descansadinha. Quando é uma hora eu volto pro serviço; quando é quatro e vinte eu pego as chaves, eu subo na torre, saio descendo de escada abaixo, verificando tudo. Fechando todos os apartamentos que tão aberto. Eu que fecho tudo. Quando dá cinco hora, aí desço, me troco. Aí quando dá cinco hora tô saindo do serviço, e quando dá cinco e meia tô chegando em casa. Aí vou fazer uma comida e otras coisas da casa.” “No dia de trabalho eu acordo cedo – umas cinco e meia da manhã – né? Tomo um banho, hum! às vezes, nem sempre, tomo um café da manhã, arrumo minha sobrinha, que eu ponho ela na perua pra ir pra escolinha. A perua passa entre seis, seis e cinco; aí pego minha mochila, venho embora pro serviço, pego o ônibus até o Parque Dom Pedro e venho caminhando até o serviço. Fico até às seis horas aqui. Tem uma hora de almoço. Geralmente do meio-dia até a uma da tarde. Depois eu tenho quinze minutos do café da manhã, e do lanche da tarde, né?, que aí a gente escolhe o horário, tem quinze minutinhos. E no caso, como eu sou fumante, tem esses quinze minutinho. Às vezes, quando eu faço um serviço muito sujo, assim, eu tomo um banho, que aqui tem chuveiro, né? Me troco pra ir embora. Aí chego em casa em torno de umas oito horas, mais ou menos. Se ninguém tiver feito, ninguém das minhas irmã tiver feito a janta, aí eu vou e faço, uma janta que até mesmo é pra trazer minha marmita no outro dia. Sento pra jantar... umas, oito e meia, nove horas, por aí. Aí janto, vou tomar um banho, tudo. Aí vou ligar, né? Pra namorada, conversar um pouquinho e ver uma televisão. Dá uma atenção pra sobrinha, tem que fazer tudo assim, né? Dá atenção pra sobrinha, falar no telefone, jantar, ver um pouquim de televisão... É tudo ao mesmo tempo, meio que assim, né? Porque num dá pra você fazer uma coisa só por vez. E aí, é fechar a noite. Aí dormir, vou dormir umas dez, onze.” “Dia de trabalho é normal, oito horas de trabalho, no dia normal de trabalho, mais o tempo de ir e voltar. Acordo às quatro 181 e meia, faço tudo rápido, deixo a menina na creche e venho. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Trabalho o dia todo, paro pro almoço e faço lanche. Chego em casa, minha mãe já fez as coisas pegou a menina; ajeito mais umas coisas, umas comidas, vejo os meninos. Converso um pouco e vou dormir, num dá tempo mais pra nada. Às vezes eu fico até as seis hora, conta como hora extra. Às vezes eu num fico, é opcional; a empresa num obriga, mas conta como hora extra mais o adicional de sessenta por cento.” “Ó, eu acordo dez pras quatro, tomo um banho, me ajeito; se der tempo de fazer um café, eu faço; se não der, eu não faço, que às vezes dá tempo, às vez não dá, né? Venho, pego a perua dez pras cinco. E quando é umas cinco e cinco, cinco e dez mais ou menos, tô no trem. Quinze, dez pra seis eu tô aqui, né? Aí eu entro ali, vou tomar café, às vezes eu me arrumo, espero dar a hora pra bater o cartão. Aí o cartão cê bate cinco pras sete, bate o cartão. Cinco pras sete, sete horas. Aí pego o material e vamo ver pra onde o encarregado manda, ficar pra cima, pra baixo, que hoje você chega, ele fala assim: ‘Ah, amanhã você não vai praquele lugar, cê vai pra outro lugar’. Então cê nunca pode falar que vai naquele de ontem. É muito difícil! E aí, vamo trabalhando. Dez pra o meio-dia a gente guarda o material e desce, né? Vamo lavar a mão, lavar tudinho, vamo pegar seu garfo, bate o cartão de novo, novamente, meio-dia tem que bater o cartão. Almoço e descanso um pouquinho. Uma hora tem que bater o cartão e voltar pra trabalhar de novo. Não tem esse negócio de ‘bateu tal hora’ não. Tá tudo ali. E é a mesma coisa. Quando é quinze pras cinco cê já pega as suas coisa, já desce, e a gente toma banho, troca de roupa e bate o cartão. Cinco e dez... Depende. Chego em casa sete horas. Sete e cinco eu tô em casa. Dentro de casa. Eu não vou fazer nada não. Eu, hein?! Eu chego em casa, tomo banho, descanso, tomo um banho, faço um cafezinho. Tomo um café, às vezes eu janto, às vezes eu num janto. Fumo meu cigarro e vou me deitar. Sete e meia, nove horas... por aí!” A forma de inserção precária no mercado de trabalho da construção civil traz como um dos problemas frequentemente mencionados a irregularidade na definição das tarefas diárias, o que está associado ao fato de serem contratadas para um tipo de atividade e serem alocadas para fazer outras diferentes do que foi acertado. A temporalidade da jornada não muda, pode se estender, mas isso é devido às horas extras. Nessa temporalidade cotidiana não há, na visão delas, uma estabilidade em sua dinâmica cotidiana de trabalho que lhes permita, dentro dos estreitos limites impostos pelas relações hierárquicas de trabalho, organizar seu próprio ritmo de trabalho. Como já mencionado, o trabalho reprodutivo é uma esfera de trabalho sempre sob a responsabilidade das mulheres, e quando há partilha é entre mulheres. Os homens, quando se fazem presentes nas narrativas sobre este trabalho, estão sempre no lugar dos que apoiam, auxiliam, mas nunca como corresponsáveis ou responsáveis principais. Vale salientar que esta situação, para as mulheres que têm companheiros, é correlata ao que foi encontrado nos contextos de Barcarena e Toritama. Essa divisão sexual desigual do trabalho reprodutivo ocorre com mulheres que estão inseridas no mercado de trabalho e são coprovedoras ou provedoras integrais dos meios para a manutenção do grupo familiar. A ideia de trabalho reprodutivo como um trabalho das mulheres aparece muitas vezes nas narrativas de maneira explicita e associada à percepção sobre 182 a participação dos homens nessas tarefas como apoio ou ajuda. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “A jornada continua em casa, né? Chego em casa, cuido da neném, ponho roupa pra bater, faço janta, cuido da casa e das criança. A jornada continua, não para. Até onze hora da noite.” “Quem cuida das filhas é minha a mãe, quando tô fora. A mais nova tem creche. Quando tão tudo em casa e eu no trabalho, são cuidadas pela minha mãe.” “Meu marido... Ele me auxilia, ele me ajuda a manter a casa e às vezes ele faz a janta. Quando ele faz a janta, eu fico cuidando da neném. Aí ele tem que me ajuda, me auxilia, né?, quando eu volto do trabalho e nos finais de semana.” “Aí que eu chego em casa e eu tenho que ficar cuidando. Aí eu tenho que tá fazendo um almoço, uma janta, uma marmita. Eu tenho que pegar as lição dele, tenho que sentar com ele. Tem todo um processo dentro de casa.” “Eu lavo, eu passo, limpo... normal, como qualquer outra mulher. Pode ser de manhã, pode ser de tarde, normalmente eu não procuro deixar acumular, porque se acumular, dependendo das tarefas que eu tenho fora, acaba embolando o campo. Muitas vezes dizem que eu sou elétrica. Eu acabo colocando roupa pra lavar e vou fazer outra coisa, não fico esperando alguma coisa terminar; eu coloco e vou fazer outra coisa, mas eu estou atenta naquilo que eu deixei fazendo. Então eu acho que consigo organizar por isso, por esse dinamismo.” “Eu moro com meu filho caçula e a minha companheira. Ela faz mais o trabalho doméstico. Minha companheira faz quando está desempregada. Meu filho é responsável por cuidar da baguncinha dele, de retirar o lixo e comprar o pão. Eu faço o trabalho doméstico no final do dia e o pesado no final de semana. Durante a semana a gente faz a manutenção.” “É, os meus filho ajuda, mas assim, eles fazem do jeito deles. E fica pro final de semana pra mim ajeitar um pouco mais. Meu marido, de vez em quando ele faz alguma comidinha, lava alguma coisa, uma louça, faz sim. Quando eu chego, eu tenho que fazer alguma coisa. Eu faço comida. Às vezes, fica faltando alguma coisa assim. E durante o dia não dá tempo, de manhã, porque eu tenho que sair pra trabalhar. Agora aos finais de semana eu dou um jeito na casa. A minha filha, e os meus filhos, cada um tem uma partezinha. Os três, cada um tem sua parte dividida pra fazer. E o meu marido fica lá, coordenando eles.” “O moleque tem dezenove e a outra tem dezessete e a outra tem dez. Ah, eles num ajuda durante a semana. Não ajuda em fazer nada em casa. No final de semana eu que lavo roupa e passo. Eu lavo, eu faço a comida, né? Aí a gente divide, tipo assim: uma vai lavando a louça, a outra vai limpando a casa, varrendo a casa, passando pano; a outra vai  lavando o banheiro; a pequena vai limpando o quintal. Por quê? Por causa do cachorro dela.” É sempre mencionado nas narrativas que durante a semana os filhos(as) fazem algumas tarefas do trabalho doméstico, mas isso está sempre associado à ideia de uma manutenção básica e superficial, no sentido da incompletude das tarefas, que são feitas 183 “só para manter mais ou menos as coisas”. Em algumas narrativas, diferentemente das Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica de Barcarena e Toritama, algumas mulheres mencionam o uso de creches para deixar as crianças como algo fundamental para as crianças e para as mulheres trabalhadoras. Não é esse o caso para todas as mulheres cujos filhos(as) ainda necessitam de cuidados permanentes. Já a escola está sempre nas narrativas como uma rotina na vida dos filhos(as), o que é mencionado sempre como algo de muito valor e em função do que qualquer carga de trabalho a mais vale a pena para que isto seja possível. AS CONDIÇÕES E OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO Trabalho produtivo, trabalho reprodutivo e percursos diários ocupam o tempo de vida diária dessas trabalhadoras, de segunda feira a sexta-feira, de maneira tão avassaladora que vão conformando uma forma de vivência cotidiana marcada pela pressão dos horários e pelo sentimento permanente da falta de tempo. O que sobra dos horários corridos entre as esferas do trabalho produtivo e reprodutivo é escassamente utilizado para o repouso diário e não parece ser suficiente para o descanso do corpo e a reposição da energia corporal. Como as atividades no trabalho produtivo não podem ser acumuladas nem negociadas para que sejam feitas depois, o acúmulo se dá sempre nas tarefas do trabalho reprodutivo, que em geral é feito durante a semana como manutenção básica. O que resta para ser feito se acumula para o final de semana. Esta é uma situação generalizada, mesmo no caso das trabalhadoras que contam com um suporte diário de outros membros da família. No final de semana, que no caso dessas trabalhadoras significa sábado e domingo, além de trabalho reprodutivo, atividades extras, para gerar renda extra, ou até mesmo para fazer um curso de qualificação, podem também fazer parte das atividades destes dias. “Aí geralmente na semana eu não faço muito serviço em casa. Lavo uma louça, coisinha tola, sabe? Eu vou pegar pra fazer limpeza mesmo na casa no sábado, ou sábado ou domingo, que a gente pega pra dar ajeitada na casa, mas na semana eu não tenho tempo. Que também um dia só não dá. Aí eu vou fazendo na semana, mas pra pegar mesmo as coisas, é no final de semana. Na semana só vai manter a sua casa.” “O dia que eu estou em casa... eu nunca acordo cinco horas. Fim de semana eu vou, vou mais tarde, eu acordo oito horas, nove, dependendo do horário que eu vá dormir no dia anterior. Aí eu levanto, eu vou lá fazer a arrumação da casa, e, às vez, eu vou lavar roupa, pelo menos, ou no sábado ou no domingo eu tenho que lavar roupa, que é os únicos dias que eu tenho pra lavar. Faço o almoço, procuro lavar roupa na parte da manhã e já fazer o almoço, porque depois do almoço que eu lavo a louça, eu deito e vou assistir filme, tendeu? E, às vez, eu saio com as criança, né? Aí quando eu saio com as criança eu sempre planejo como que vai ser, entendeu? Às vezes eu num durmo, eu tenho às vezes um problema de insônia, eu penso muito...” “O dia é mais o domingo, porque o sábado é o dia inteiro cuidando da casa, lavando roupa, passando roupa... É mais o domingo na parte da tarde que vou de lazer, faço passeios no parque, vou à casa da sogra. E faço uns bico fora. Eu sou manicure, nas hora vaga. É no final de semana, e às vezes à 184 noite, quando chego. É em casa mesmo.” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras As atividades de lazer estão em geral restritas ao final de semana, e nem sempre é possível contar com esta possibilidade. Pela falta de tempo, pelo cansaço ou ainda pela falta de condições financeiras. Quando as trabalhadoras têm filhos(as) pequenos(as), as atividades de lazer sempre são usufruídas juntamente com as crianças, o que significa ter lazer simultaneamente ao trabalho reprodutivo do cuidado. Ver televisão é sempre uma opção, na falta de outras opções ou de indisposição para sair. “Hoje eu tava pensando a respeito disso, tava falando isso hoje... Tá mei difícil as coisa porque a gente só trabalha, só vive pra trabalhar, vive pra trabalhar. Com essa dinheirama que a gente ganha, né? Num tem muito assim o que fazer. As coisa anda muito cara, né? Os passeios andam muito caro. Se antes eu ia pruma balada, hoje já num vou mais. Porque, se der pra mim, é uma vez por mês pruma balada. Num tem como cê sair todo final de semana, pra pegar uma baladinha.” “Normalmente eu vou durmir um pouquinho mais tarde no sábado, por volta de meia-noite, meia-noite e meia. Domingo, como eu já fiz a maioria das atividades da casa no sábado, no domingo eu já acordo, faço o básico, né? Esse básico é se tem alguma roupinha no tanque, é se precisa organizar alguma coisa na cozinha. E aí eu faço almoço, eu almoço junto com eles aqui. Quando a gente tem algum transporte a gente sai depois do almoço, a gente sai pra dar uma volta, mas retorna sempre por volta de seis pra casa.” “Não dá tempo! Nada! Vou dormir. Eu não saio pra me divertir, não faço nada. Muito difícil. Gente é raramente, as pessoa fica besta comigo. Fala: ‘Nossa, cê não sai pra lugar nenhum, cê num sai pra lugar nenhum’. É raramente vou pra minha mãe, que minha mãe mora em Poá. Tempo do lazer pra mim é dormir, dormir, descansar...” “No dia de folga, domingo, quando tô em casa, assisto toda a programação da Globo, desde cedo até a noite. Também nos dias frios ou de chuva. Assisto, e pra comer alguma coisa, às vezes, saio de casa.” “Ah, sim! Eu vou pra igreja e levo as crianças pra passear quando tem alguma coisa pra gente ir. Às vezes tem festas no final de semana e a gente vai. Eu acho que meu dia inteiro é bem divertido. Eu acho que até mesmo trabalhando pra mim, é uma diversão. A gente ri muito, né?, conversa com as pessoas. Eu acho que isso é interessante, mas assim, uma hora no fim de semana a gente tira e vou me divertir no domingo. Faço curso de mestre de obras.” Uma questão que afeta as condições de trabalho é o fato de serem mulheres inseridas em um universo de trabalho considerado ideologicamente como um trabalho de homens. Isto não afeta só a relação entre as sujeitas, mas também as condições materiais para desenvolver suas tarefas. A falta de equipamentos e uniformes adaptados ao corpo das mulheres é um problema, como também a questão da infraestrutura para as necessidades pessoais durante o dia. O banheiro é outro problema. Há duas situações que ocorrem com frequência: a não existência de um banheiro específico para as mulheres, ou então apenas um banheiro no térreo, quando elas passam o dia todo 185 nos andares mais altos ou muito altos, e muitas vezes sem acesso ao elevador da obra. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica “Olha, num dá pra mim. Eu num posso trabalhar sem um banheiro feminino. Eu aprendi bastante coisa no sindicato... que a gente tem direitos.” “... porque os uniformes são todos masculinos, que não me serviam... Eu acabo trabalhando ca minha roupa mesmo.” “Não tem como pedir pra empresa, que eu sei que é toda terceirizada, entendeu? Fomos uma equipe de dez minina que entramo na empresa e todas foi mandadas em obra que tava batendo laje ainda. Obra que tá batendo laje cê num tem banheiro, cê num tem nada. O alojamento é dos homens. Por exemplo, se eu quiser usar o banheiro, como eu sou a minoria, só sou eu aqui... eu uso o deles, num tem problema. Elevador no início de obra é um sacrifício, cada descida é meia hora, é meia hora pra subir, num tem agilidade. Às vezes eu ficava empatada lá em cima, até num poder mais pra poder ir no banheiro; agora num adianta chegar pra empresa e falar... E menstruada, trabalhar menstruada é ó, o, entendeu? Mas é aquela coisa, não adianta você querer se iludir, a realidade é meia assim.” “Condições? Que eles num dão pra gente máscara... Lá mesmo onde eu trabalho, num tem banheiro pra gente. Eu trabalho no décimo quinto andar. Aí o banheiro, não tem banheiro lá em cima, só tem banheiro no segundo subsolo... Que nem hoje, eu tô menstruada, como é que eu faço para ir no banheiro? O elevador quebrado. É assim, eles obrigam a gente a subir a escada com material na mão porque o elevador vive quebrado... e por Lei da Construção Civil você pode até subir até o oitavo andar... depois você não é obrigada a subir... Eu num sei se da Lei ou se é do Sindicato... Material pesado, furadeira, caixa de ferramenta, escada de madeira, tudo... As condições do banheiro, num é um lugar adequado pra gente. Mulher não tem condições. O elevador vive quebrado... Junto do nosso vestiário eles montaram um banheiro pra gente; fica eu, as menina... porque lá a gente guarda nossas coisas.” “Se tu vai pra dentro de uma obra grande, primeiro que os banheiros químicos são todos para os homens, a gente não tem onde se trocar, já começa por aí. E os próprios homens assim te olham diferenciado, uma mulher trabalhando como soldadora no meio dos homens... Parece que tem gente que num tem cultura para isso, essa é a verdade. E nem o próprio patrão. Aqui soldei na chuva; podia tomar um tranco e cair pra trás. Aqui tomei vários tranco, e eu tenho que soldar a viga. Eu pus em pé aqui viga de doze metros, de dezoito metros. As pessoas aqui não são muito preocupadas com acidente de trabalho.” As precárias condições de trabalho se refletem sobre o corpo, na forma de dores, cansaço, estresse e outras formas de adoecimento. Nem sempre os sintomas de mal-estar do corpo são percebidos como adoecimento. Outras vezes, admitem que adoeceram no ambiente do trabalho, porém não relacionam as condições ambientais do trabalho como um elemento diretamente associado às condições de trabalho e seus impactos sobre o corpo e o estado de saúde. Mas há relatos que explicitam efeitos muito graves sobre a saúde, devido às condições do trabalho produtivo que vivenciam nos canteiros de obra, que ferem até mesmo as regras básicas leais de 186 proteção à saúde das trabalhadoras. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “Já adoeci de garganta inflamada, gripe, devido a engolir muita poeira quando tô lixando a parede.” “Se eu fico muito abaixada, vez em quando eu fico com dor nas costas, essas coisas. Mas assim, nada assim não, nada que coise não. Hoje eu cheguei, mas cheguei melhor. Ontem eu tava com um pouco de dor nas costas, mas eu falo assim... Eu, depois que eu comecei a trabalhar em obra, a gente sobe muita escada, a gente desce... Você tá fazendo algum serviço, você tá subindo uma escada ou senão você tá passando. Por exemplo, eu tô aqui no vinte, vou fazer uma coisa no dezenove ou no dezoito, não vou ficar esperando um elevador que demora uma eternidade... Se pegar uma marreta e picotar essa parede... Era um esforço assim que a gente acabava fazendo com muito desgaste físico, entendeu? Eu me sinto cansada. Quando eu tô no serviço, eu tô ativa, mas quando eu paro o corpo... Eu vou sentindo assim, quando eu chego em casa, pronto... O trabalho é enorme, e o desgaste físico é enorme.” “Eu não tenho nenhuma doença relacionada diretamente ao trabalho, né?, mas, por exemplo, a primeira vez que entrei na obra lá, tava só na laje, tava batida na laje, tava um frio e o vento lá em cima... O vento aqui é diferente do vento lá de cima, porque o vento lá de cima chega faz um ‘chuuuuu!!!’. Aí eu sei que peguei... eu tinha ido fazer o serviço e eu tava de frente com a janela. Aí aquele vento frio bateu assim, sabe? Quando vou fazer um serviço, eu só não faço se realmente eu não tiver mesmo como não fazer, porque se der. Aí aquele vento batendo assim, aí só sei que no final do dia... terminou o dia e já senti aquela dor. Aí aquela dor... Aquela quantidade de vento, vento gelado que chega entrava assim. Aí no dia seguinte fui dormir com aquela dor de cabeça. No dia seguinte não conseguia nem levantar, com dor de cabeça. Mas assim, foi aquele momento da pancada de vento, mas nenhum serviço, nem uma coisa diretamente relacionada ao serviço, não, doenças, coisas assim. Coisas de pancadas de vento, uma gripe...” “Tem dia que tô bem, tem dia que não tô bem não. Principalmente quando é uma peça que entra no parafuso. Aquilo ali ela quebra a sua cabeça. Se você perder um parafuso, uma pecinha... Se você quebrar uma peça, que tem peça que você não pode quebrar. Tem peça que você não pode serrar. A disposição é boa; num vou dizer a você que num é... Depois do trabalho é que é ruim. É um cansaço! É cansativo! E aí você tá ali ativa, né? Tá ali fazendo, tal, lutando, lutando, faz ali, faz ali. Depois que termina tudo na hora de ir embora, aí já começa a vim aquele cansaço, aquela moleza... Mas é tranquilo, eu não tenho do que me queixar.” “É, eu uso cabelo curto pra poder usar a máscara. É porque seca muito, o calor seca muito, resseca o cabelo. Aí tu põe uma espécie de uma toquinha na cabeça comprida, que cobre até os ombros, põe a máscara; aí quando tu tira aquilo, o cabelo tá desse jeito, né? O cabelo fica duro, duro assim, que tu não consegue nem passar a mão nele; queima assim, fica seco. Então eu sempre optei por ele curto porque ficava mais fácil quando eu tirava, ninguém se assustava tanto, né? Saía de lá 187 suada, porque lá a gente soa muito, né? O cabelo de louca, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica ficava com cara de louca assim mesmo... E eu já soldei alumínio aqui e não recebi máscara. Meu colega escarrava sangue, saía do nariz dele sangue. Eu também fiquei bem ruim, muito pó, pó do alumínio, que a gente corta muito alumínio, solda muito alumínio.” Uma das trabalhadoras deste contexto da pesquisa fala do estresse como decorrência do trabalho reprodutivo, o que ocorreu durante um período em que ela estava sem trabalho remunerado e passava o dia em sua própria casa. Foi a única vez que constou nas narrativas, considerando os três contextos pesquisados, uma situação de adoecimento causado pelo trabalho reprodutivo e pelo confinamento diário ao espaço doméstico. “Bom, eu posso considerar uma doença psíquica? Um estresse? Pela rotina do dia a dia da casa, no trabalho de casa, fiquei com aquela neura, né? Conhece a tal da neura? Então eu queria tá tudo muito limpo, tudo muito certo, e eu, eu comecei a ficar doente, porque eu limpava e limpava de novo, porque eu achava que tava sujo; aí eu limpava de novo pela terceira vez, e eu ficava limpando... Até que eu, né?, me dei conta que eu tava com alguns problemas. Eu fui num psicólogo, ele me indicou um tratamento, e realmente eu tava entrando assim num estresse já.” O trabalho remunerado é considerado de grande importância nas narrativas de todas as trabalhadoras que participaram da pesquisa neste contexto. Os motivos para esse sentimento são variados, mas a possibilidade de garantir os meios da própria sobrevivência e do grupo familiar é fundamental para isso. O fato de realizar uma obra, construir algo, é tido como um fator de satisfação e realização como trabalhadora, como pode ser observado na citação abaixo: “A minha satisfação é quando a gente termina o trabalho, como eu te falei, vê como era antes e quando termina, que às vezes demora quinze dias, um mês, ou mais ainda, e você vai vendo o trabalho andar, concluindo, e tu fala: ‘Meu, que coisa mais bonita!’. Eu que fiz”. As que têm uma casa própria sempre ressaltam isto como uma conquista de muito valor, a qual está diretamente associada ao fato de ser trabalhadora e de ter uma renda, assim como o fato de ter uma casa altera também, e positivamente, o dia a dia dela e do grupo familiar. As que não possuem uma casa têm isto como um projeto que para ser realizado dependerá das suas possibilidades como trabalhadora, mesmo que possa contar com a parceria de um companheiro, companheira ou com a ajuda de outros membros da família, como o pai ou a mãe. Mas, além disso, há uma recorrente expressão de satisfação pelo fato de trabalhar e de ter uma renda, que vem junto com uma percepção de si como sujeita com capacidade de produzir. “É sempre muito importante. Me deixa assim com a autoestima lá em cima. Eu sempre procuro tá colocando o melhor de mim. Sempre a gente tem altos e baixos, assim né?, mas trabalhar pra mim é fundamental, é uma autoestima, é ter uma independência, é eu poder fazer o que eu quero. Ter como pensar no meu futuro. Eu acho que trabalhar é uma coisa que 188 tá sempre botando tua autoestima lá em cima, né?” Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras “A importância do trabalho? É tudo. Eu todos os dias, quando eu acordo, eu tenho que agradecer ao Senhor por mais um dia de trabalho, né? Se eu num tiver trabalho, eu num sou nada, eu num consigo fazer nada. Que eu acho que o trabalho é o combustível pra você seguir em frente, pra você adquirir os seus objetivos.” “É primordial, né? Primeiro, porque a gente precisa comer, e segundo, porque eu gosto mesmo, é minha escolha trabalhar na construção civil.” “É fundamental, né? Desde os meus dezoito eu sempre trabalhei. Assim quando eu tive a minha filha, a minha primeira filha, eu criei ela sozinha, sem a ajuda do pai. Ela tá com seis anos. É fundamental, e faz assim, faz a gente se sentir útil.” Nas narrativas dessas trabalhadoras há uma predominância de percepções que relacionam a importância de seus trabalhos remunerados com o fato de terem conseguido uma qualificação como trabalhadoras da construção civil. Esse fato se mostra de grande valor para a autoapreciação positiva como trabalhadora e como sujeita, como já foi tratado no capítulo anterior. Isso favorece também um sentimento de autonomia sobre sua vida, o que é reiterado pela afirmação sempre presente nas narrativas sobre a capacidade e o poder de tomar decisões sobre sua própria vida e sobre as questões familiares, isoladamente ou de forma compartilhada. Mas há sempre uma percepção de si que pode ser definida como uma percepção de ser sujeita, ao tempo que aparecem nas narrativas todos os constrangimentos que a inserção precária no mercado de trabalho e as responsabilidades do trabalho reprodutivo impõem à vida cotidiana dessas trabalhadoras. CONSIDERAÇÕES A PARTIR DO COTIDIANO Ao ouvir e ler as narrativas das sujeitas da pesquisa, nos três contextos, sobre suas experiências de trabalho no dia a dia, torna-se de imediato perceptível a intensidade das jornadas de trabalho que, muitas vezes, estendem-se pela noite e ocorrem num movimento de intermitência entre o trabalho que gera renda e o trabalho que garante a manutenção da casa e das atividades do cuidado com as crianças, com outros membros da família e consigo própria. Podemos dizer, com base nas narrativas das trabalhadoras pesquisadas, que independentemente do ramo de atividade no qual estão inseridas, a organização do cotidiano é definida, sobretudo, pelas exigências do trabalho remunerado. Podemos dizer ainda que as jornadas de trabalho dessas mulheres trabalhadoras podem ser sintetizadas no geral como “extensas, intensas e intermitentes” (ÁVILA, 2010). E constatar nos três contextos pesquisados que a experiência cotidiana das sujeitas da pesquisa tem como elemento central da sua conformação uma jornada de trabalho composta de trabalho produtivo e trabalho reprodutivo. O fato de o cotidiano dessas mulheres se mostrar como uma sucessão de dias totalmente preenchidos pelas exigências do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo, segundo o que se depreende de suas narrativas sobre trajetórias profissionais e vida cotidiana, pode ser tido como um fator que causa grandes restrições à qualidade de vida delas e às possibilidades do seu desenvolvimento profissional e pessoal. Isso se dá 189 por diversos fatores: pela falta de tempo, de recursos materiais e de disposição corporal para realizar outras atividades, além dos do trabalho, que possam trazer satisfação, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica prazer, aprendizado e, sobretudo, repouso, com o tempo necessário para sua própria restauração corporal e psicológica. Os momentos de ócio, de cuidado de si e de reflexão não aparecem como parte de suas vivências; o que emerge dos relatos do dia a dia são formas precárias de cuidar de si mesmas em tempos muitíssimo breves, no transcurso dos quais só é possível dar conta das necessidades cotidianas e imprescindíveis. Em suas falas sobre o dia a dia não constam momentos significativos de temporalidade liberada desse movimento entre trabalho produtivo e reprodutivo. A fim de conseguir manter esse movimento e tudo o que ele implica, para a maioria das mulheres é preciso muito esforço e ainda contar com o apoio de outras mulheres. Nesse ritmo entre as duas esferas de trabalho, os homens pouco aparecem como parceiros no trabalho reprodutivo. Ou não aparecem porque não o fazem, isto é, não dividem este trabalho com elas, ou porque não estão presentes na composição do grupo familiar. E quando aparecem, são sempre citados como aqueles que ajudam ou apoiam. Neste estudo inserimos como parte das horas investidas no trabalho produtivo aquelas despendidas nos percursos de ida para os e de volta dos locais de trabalho remunerado. Constatamos que o tempo de vida diário investido para a realização desses percursos significa, com raras exceções, um tempo de travessias longas, demoradas e pontilhadas de dificuldades. Em geral, essas travessias implicam um gasto de energia corporal muito grande e são vivenciadas como momentos de sofrimento, ou no melhor dos casos, de desconforto, sobretudo quando se trata da realidade das trabalhadoras de São Paulo. Essas trabalhadoras que habitam os espaços periféricos da Grande São Paulo têm seus domicílios sempre distantes dos canteiros de obra para os quais se deslocam todos os dias, para uma jornada de trabalho difícil, irregular e desadaptada do ponto de vista cultural, social e da própria infraestrutura, para contar com a presença de trabalhadoras. As de Barcarena, no entanto, em seus relatos também mostram um percurso longo e dificultoso, o que pode parecer contraditório pelo pequeno porte da cidade e por sua localização conferir a aparência de um lugar fora e apartado dos movimentados centros do mundo capitalista. No entanto, em Barcarena as mulheres estão vivenciando em seus cotidianos os efeitos deletérios das condições de vida e de trabalho que são, historicamente, intrínsecas à forma de desenvolvimento capitalista. Barcarena, com seu parque industrial dentro da floresta Amazônica, está, em um sentido metafórico, escondida dos olhares do mundo, mas do ponto de vista da engrenagem da reprodução do sistema capitalista, patriarcal e racista, as trabalhadoras que aí habitam e trabalham estão imersas na cadeia produtiva global, sujeitas a seus ritmos de trabalho e a sua superexploração. Os resultados desta pesquisa indicam que considerar o tempo transcorrido nesses percursos fornece uma visão mais acurada e mais concreta da relação tempo e trabalho no cotidiano. Podemos perceber, por exemplo, as horas do dia que sobram e o que não sobra para outras atividades da vida cotidiana, a fim de sair da vivência desse espaço/ tempo como mera cotidianidade, isto é como mera repetição. Para poder usufruir de outros momentos e dispor de tempo para transitar por outras esferas da vida social, como, por exemplo, a da política, ou participar da festa. A festa aqui tem o sentido de um acontecimento que, no seu espaço/tempo, nos retira de toda atividade de labor, exatamente como um momento de suspensão da cotidianidade. Situadas em realidades tão diferentes, as participantes desta pesquisa parecem estar todas sincronizadas em um mesmo ritmo temporal nos dias em que enfrentam as jornadas formadas de trabalho produtivo e reprodutivo. É o ritmo definido pela divisão social e sexual do trabalho e, dentro dela, pela inserção precarizada no mercado de trabalho. Em síntese, é o ritmo do trabalho dado pela ubiquidade da exploração 190 da força de trabalho das mulheres que toma formas concretas e particulares, na conformação do cotidiano, através das práticas sociais em cada contexto social. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Esta ubiquidade, no entanto, não é uma realidade fixa, nem fechada. Ela é dada por um sistema de dominação que é conformado, ao mesmo tempo, por estruturas determinantes da sua formação e reprodução e por relações sociais de classe, de raça e de sexo/gênero, ou seja, por antagonismos gerados pelas contradições inerentes a essa formação e a sua reprodução, e nas quais os sujeitas concretos vivem e agem. A experiência dessas mulheres evidencia que na organização social desse sistema os trabalhos produtivo e reprodutivo são inconciliáveis. São as mulheres que enfrentam no cotidiano os antagonismos da relação entre esfera produtiva e esfera reprodutiva, como esferas separadas, sem que haja uma conciliação entre elas, mas investindo cotidianamente o tempo de existência e a energia corporal para dar conta das jornadas de trabalho formadas por esses dois tipos de trabalho. Podemos também constatar que num mercado de trabalho marcado pela precariedade e pela segmentação, as jornadas de trabalho podem ser sempre redefinidas e tomar formas irregulares que dificultam, ainda mais, para as mulheres a relação entre trabalho produtivo e reprodutivo. No caso de Barcarena, as metas de produtividade que estão diretamente associadas à definição da renda mensal podem exigir horas extras de trabalho ao final da jornada diária, mas também nos dias de folga, como o domingo. No caso de São Paulo, as horas extras apareceram com menos frequência nas narrativas das trabalhadoras que participaram da pesquisa, mas a possibilidade de isso acontecer está sempre presente. Para aquelas que trabalham por conta própria, porque não estão inseridas como força de trabalho terceirizada nos canteiros de obras das empresas, e que não são o foco desta análise, os dias e horas de trabalho dependem da demanda e podem ocorrer a qualquer momento, inclusive no final de semana. No caso de Toritama, o trabalho remunerado por peça, e de baixo valor, exige um ritmo de produtividade que sempre pode se estender ou retrair, a depender da demanda. Mas o fato de ser um trabalho produtivo feito em domicílio deixa evidentes as engrenagens, neste mundo do trabalho produtivo precarizado, que borram as fronteiras entre as temporalidades dos trabalhos produtivo e reprodutivo, criando não só intermitência entre eles, como simultaneidade. Mas esse trabalho produtivo em domicílio não é a volta da relação de trabalho na unidade doméstica que antecedeu ao capitalismo, quando a unidade familiar doméstica era uma unidade produtiva e reprodutiva. O trabalho feito em domicílio para angariar renda está inserido numa cadeia produtiva constituída como forma atual de organização capitalista do mercado de trabalho, o que o insere diretamente no processo geral de produção de mercadoria, segundo suas regras. Já o trabalho reprodutivo responde às necessidades do cotidiano para a sobrevivência pessoal da trabalhadora e do seu grupo familiar. Nesse caso, as jornadas de trabalho das sujeitas pesquisadas são constituídas por uma temporalidade de trabalho de difícil mensuração. É que dois processos de trabalho regidos por lógicas temporais diferentes, ao serem realizados em uma forma de intermitência de alta intensidade ou por vezes simultaneamente, não podem ser medidos pela lógica formal que hegemoniza as análises do chamado uso do tempo, a qual está definida a partir da temporalidade do trabalho produtivo em espaços próprios desses trabalhos. Essa lógica não pode servir para a mensuração do trabalho reprodutivo, mesmo quando realizado em um tempo exclusivo e no espaço doméstico livre de trabalho produtivo, dado que está regido por outra lógica temporal, que implica 191 um ritmo próprio sujeito a variações de tempo na sua realização. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica A realização do trabalho produtivo no interior do domicílio familiar significa, na prática, uma despossessão desse espaço como lugar da privacidade, do repouso e da convivência familiar e provoca um impacto negativo nos espaços, já restritos, de moradia dessas trabalhadoras. Além disso, leva a uma permanência das trabalhadoras no mesmo ambiente, durante o dia e a noite, que pode ser caraterizado como um confinamento com regime de trabalho intensivo. Por isso, julgamos que as análises sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho que ressaltam a dimensão quantitativa e o seu crescimento devem ser problematizadas a partir das condições e relações de trabalho nas quais as mulheres estão inseridas e, sobretudo, considerando a divisão sexual do trabalho. Pois, como afirmado em documento da Cepal: “A participação econômica das mulheres ocorre em condições de desigualdade, discriminação e sobrecarga de horas de trabalho que relativizam o avanço...” (CEPAL, 2010, p. 30). A divisão internacional do trabalho se reatualiza no processo de globalização, e dentro dela, a divisão sexual do trabalho, cuja característica forte é a precarização do trabalho das mulheres. A América Latina, e o Brasil como parte dela, como parte do cenário global, seguem essa mesma tendência. O fato de o trabalho precarizado e desregulamentado atingir preferencialmente as mulheres é parte dessa reconfiguração. Segundo análises que constam de documento da Cepal, A sobrecarga de horas de trabalho das mulheres é a outra cara do aumento de sua participação laboral que tem mostrado a sua crueldade. Geralmente, a mulher que ingressa na atividade remunerada não pode reduzir de maneira equivalente o tempo de trabalho dedicado a casa (CEPAL, 2010, p. 30). Ainda segundo a Cepal, “a conciliação entre a vida laboral e a vida familiar, inscrita, por sua vez, na redistribuição das tarefas reprodutivas entre o Estado, o mercado e as famílias, continua sendo o ponto cego das políticas públicas da América Latina e do Caribe” (CEPAL, 2010, p. 24). Os resultados desta pesquisa reafirmam esta assertiva a partir de experiências concretas e localizadas em contextos diferenciados do país. O que constatamos nos três contextos estudados foi que o trabalho remunerado, além de definir toda a organização do tempo social no cotidiano, não oferece nenhuma possibilidade de arranjos mais flexíveis; ao contrário, as jornadas podem ser estendidas com certa frequência, como já observamos em outro momento. Além da organização do tempo social nos dias chamados “úteis”, isto é, os dias da rotina do trabalho remunerado, o trabalho produtivo também impacta na disposição da forma como se vive os dias de folga desse trabalho, e o trabalho reprodutivo impacta nessa disposição da forma e também nas possibilidades concretas de tempo liberado de trabalho nesse período. A semana de trabalho remunerado das sujeitas da pesquisa nos contextos de Barcarena e Toritama estende-se de segunda-feira a sexta-feira, assim como no contexto de São Paulo. Mas, como vimos nas análises específicas de cada contexto, no final de semana essas trabalhadoras realizam o trabalho reprodutivo em suas casas, colocando em dia as tarefas acumuladas durante a semana; algumas delas também mencionam a possibilidade de horas extras do trabalho produtivo no dia da folga do final de semana, ou ainda outras pequenas atividades de trabalho remunerado para completar a renda. Portanto, a questão do lazer e do descanso nos finais de semana se mostrou no geral muito problemática. Lefebvre (1958) observa que neste sistema o lazer não pode ser entendido como dissociado da lógica do trabalho produtivo, nem reduzido a uma simples relação, 192 como, por exemplo, entre o domingo e os outros dias da semana, representados como exteriores e somente diferentes uns dos outros. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras O lazer não se separa do trabalho. O mesmo homem repousa, relaxa ou se ocupa, a sua maneira, depois do trabalho. Cada dia, a mesma hora, o trabalhador sai da usina, o empregado, do escritório. Cada semana, o sábado, o domingo, pertencem ao lazer, com a regularidade do trabalho quotidiano. Tem-se então que considerar uma unidade – trabalho-lazer –, porque esta unidade existe, e que cada um tenta programar sua parte de tempo disponível em função do seu trabalho – e do que não é (LEFEBVRE, 1958, p. 38). Se acrescentarmos a essa relação o trabalho reprodutivo, esta unidade se estabelece como trabalho produtivo/reprodutivo/lazer, e uma análise sobre essa relação a partir desse novo elemento trará certamente outros resultados e outras questões para a análise sociológica. Quando há crianças ou jovens no grupo familiar da trabalhadora, as referências ao lazer, em geral, automaticamente expressam essa extensão das tarefas do cuidado feitas no âmbito doméstico para os outros espaço e tempo do cotidiano. Consideramos importante salientar a percepção explicitada por algumas sujeitas da pesquisa de que não consideram como lazer o fato de essa atividade estar ligada ao cuidado com os filhos, porque isso evidencia, do nosso ponto de vista, uma percepção desnaturalizada do cuidado como algo intrínseco a sua própria vida. Essa consciência crítica, quando aparece, parece ser provocada pelos efeitos que isto causa sobre o seu próprio corpo, isto é, o cansaço corporal na volta do lazer como algo que denota o que fato aconteceu: que esteve cuidando das crianças no período em que estava supostamente vivenciando um lazer. Portanto, essa consciência de que não estava em estado de lazer, mesmo que não indique esse cuidado como um trabalho, emerge de uma prática social concreta, constitutiva do trabalho reprodutivo das mulheres, de acordo com a divisão sexual do trabalho. A participação em festas, em atividades culturais ou artísticas, externas ou produzidas por coletivos nos espaços onde habitam, é uma ausência permanente em suas narrativas sobre o lazer. São os almoços e encontros familiares que mais aparecem como lazer. Em Barcarena, os banhos nos igarapés fazem parte da relação lazer e encontros familiares. Em Toritama é também o que prepondera, o lazer com almoços entre familiares, e neste caso há sempre uma forte crítica à falta de possibilidades de usufruir de outras atividades de lazer em decorrência da precariedade desse espaço urbano. Para as trabalhadoras de São Paulo, os passeios no parque e os encontros em família preponderam como possibilidades de lazer. As mais jovens e sem filhos falam da “balada” e do custo para frequentar os espaços onde estas acontecem, o que restringe as possibilidades de usufruir com frequência deste tipo de festa. A participação política também não se apresenta como parte de suas atividades extratrabalho. A participação em atividades da igreja, seja ela qual for, é algo que consta como atividade sistemática nos fins de semana de algumas trabalhadoras, sobretudo em Barcarena e Toritama. O cansaço, que na maioria dos relatos toma a forma de exaustão, com sintomas como dores e outras formas de mal-estar corporal, afeta profundamente a qualidade de vida. O cansaço é um bloqueio concreto à capacidade das sujeitas de agir no cotidiano fora das fronteiras, espacial e temporal, dos trabalhos produtivos e reprodutivos. A exposição cotidiana a objetos contaminados com produtos altamente tóxicos, longas jornadas de trabalho em pé, manejo de objetos pesados e emissores de calor, longas jornadas sentadas manejando máquinas de costura que requerem movimentos repetitivos, longas jornadas subindo e descendo escadas, transportando materiais 193 pesados e com vestimentas inadequadas, todos esses elementos, e outros mais, estão Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica presentes, de maneira específica e em alguns casos de maneira geral, no cotidiano de trabalho produtivo das sujeitas que participaram da pesquisa. O que difere em cada contexto é a forma da precariedade, mas em todos eles os efeitos estão no corpo e na vida das trabalhadoras que têm como parte dessas jornadas o trabalho reprodutivo; este também exige esforço, produz cansaço e sofrimentos específicos, e também é feito de forma precária, porque a inserção precária no mercado de trabalho gera condições de vida precárias nos espaços da vida privada. Além disso, as condições e os ritmos de trabalho aos quais essas trabalhadoras estão submetidas não só afetam suas condições de saúde física e mental, mas também gastam seus corpos progressivamente, o que parece acontecer não só pelo impacto de determinados fatores quando da execução do trabalho produtivo, mas também pela falta do tempo necessário à reposição das energias corporais, motivada pelas extensas jornadas formadas de trabalho produtivo e reprodutivo. Segundo Ávila (2011), O trabalho, nesse sistema, é um campo de disciplinamento e expropriação da energia corporal, das emoções, da capacidade intelectual. As condições de trabalho atuais e a forma de exploração capitalista, patriarcal e racista, nas quais estão negadas cada vez mais os direitos de cidadania de trabalhadores/as, com a expansão dos trabalhos precários, irregulares, de tempos e jornadas incertos, com profundos abismos sociais nas formas de inserção no mercado de trabalho, parecem propositalmente gastar os corpos, cada vez mais em função do lucro (ÁVILA, Maria Betânia, 2011, p. 64). Um dos fatores que agudizam este problema é o fato de o trabalho reprodutivo permanecer como um trabalho ainda naturalizado e invisível, e, além disso, constitutivo da própria experiência de ser das mulheres. Aliado a isto está a persistente negação das mulheres como sujeitas do trabalho, o que leva, quando pensamos na conjunção desses dois fatores, a invisibilizar os impactos das práticas de trabalho sobre o corpo das mulheres. Isso nos faz pensar que podemos utilizar as concepções de Butler (2002) sobre vidas precárias e sobre corpos que importam e corpos que não importam, nesta sociedade globalizada, quando tratamos dos efeitos do trabalho precário sobre os corpos de trabalhadoras e também de trabalhadores. A relação entre autonomia econômica e trabalho, considerando as duas esferas do trabalho na conformação do cotidiano das trabalhadoras, é importante no sentido de uma reflexão mais aprofundada sobre as condições concretas nas quais essa autonomia é vivenciada e percebida pelas sujeitas. É no cotidiano que as práticas de trabalho tomam forma concreta e revelam de maneira objetiva as possibilidades reais de uma vida com autonomia e as possibilidades, existentes ou não, de meios concretos para a realização de mudanças de vida. As trabalhadoras pesquisadas nos três contextos da pesquisa narram seu cotidiano como uma engrenagem que não há como alterar seu ritmo, pois há que se cumprir todas as tarefas, seguindo com rigor os horários. O tempo do trabalho é um fator de constrangimento da autonomia no dia a dia e também para definir outras possibilidades para o futuro, como, por exemplo, o desejo de continuar estudando e fazer uma faculdade, o que significa que há uma situação conflitante entre o desejo de alterar a trajetória de vida e o constrangimento exercido pelas cargas de 194 trabalho cotidiano, que impedem ou dificultam a construção de novas possibilidades. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras As atividades do trabalho produtivo e reprodutivo podem apresentar dinâmicas diferenciadas, mas o que em geral pode ser constatado através deste estudo, baseado nas narrativas das mulheres e em observações de campo, é que no contexto das reconfigurações no mundo do trabalho, a divisão sexual do trabalho permanece como uma dimensão que estrutura a reprodução social e a vida cotidiana. Ter um trabalho assalariado ou um trabalho autônomo que gere renda é uma necessidade social e política das mulheres para sua própria manutenção e/ou de sua família, bem como para a sua autonomia econômica, uma vez que na sociedade capitalista, a forma preponderante de garantir uma renda para a sobrevivência é através do emprego. De acordo com a Cepal, “deve-se reconhecer que no mundo de hoje a principal fonte de recursos monetários das pessoas é o trabalho remunerado, dependente ou independente... Isto se completa ao fato de que é por meio do emprego que se tem acesso a outros benefícios, como a proteção social” (CEPAL, 2010, p. 30). Nessas narrativas que contam sobre as trajetórias e o cotidiano de mulheres trabalhadoras, os dois trabalhos, produtivo e reprodutivo, aparecem na sua incompatibilidade irredutível. São esses trabalhos situados nas esferas produtiva e reprodutiva que conformam a vida cotidiana dessas trabalhadoras como um tempo de vida vivido sobretudo como tempo de trabalho. O trabalho remunerado, nas condições precárias em que estão inseridas as trabalhadoras que participaram desta pesquisa, garante um grau de autonomia econômica bem objetivo e muito restrito, diretamente relacionado com as questões de sua sobrevivência e do seu grupo familiar. Esta autonomia econômica está também calcada numa dimensão subjetiva que se expressa como autoestima, sentimento de independência e sentimento de ser sujeita, pelo fato de trabalhar, produzir algo e auferir uma renda. Essa autonomia econômica se coloca diretamente em contradição com a qualidade de vida, bem como pelas possibilidades de definição sobre a própria vida a longo prazo, o que produz uma espécie de movimento existencial contraditório. Para essas trabalhadoras que passam o cotidiano transitando entre as esferas produtiva e reprodutiva, a inserção precária no mundo do trabalho assegura uma autonomia precária de vida, sob o peso de um trabalho produtivo alienado que lhes garante, minimamente, a sobrevivência, gasta seus corpos e quase sempre a sua autonomia em relação às possibilidades de como usufruir o tempo corrente da sua própria vida. As mulheres trabalhadoras que compuseram o universo desta pesquisa apresentam uma percepção sobre seus trabalhos remunerados como uma dimensão fundamental de suas vidas, tanto no que as faz se sentir como sujeitas, dando-lhes sentimentos de independência e autoestima, como no que lhes garante recursos para o provimento das necessidades básicas do dia a dia. As percepções sobre as possibilidades de mudanças, em geral pequenas mudanças, em suas vidas são sempre explicitadas como difíceis ou impossíveis, para a maioria delas. Em geral, a questão dos estudos é tida como fundamental para qualquer possiblidade de melhoria em suas condições de vida e de realização profissional. Mas são poucas as que estudam, nos três contextos pesquisados, e quando isto acontece percebe-se um esforço gigantesco para tanto. Mesmo assim, só obtêm êxito quando contam com o apoio substantivo de outras mulheres no trabalho reprodutivo, tendo ou não tendo filhos(as). Isto porque o ritmo intenso nos e entre os trabalhos produtivo e reprodutivo é, no cotidiano, um bloqueio concreto para qualquer 195 grau de autonomia quanto ao tempo de suas próprias vidas. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica A importância do trabalho remunerado na vida das mulheres que participaram da pesquisa é fortemente afirmada nas narrativas, de maneira recorrente, como já visto anteriormente. No entanto, sentimentos de independência, de autonomia e outras formas de autoestima expressadas parecem não trazer qualquer alteração sobre a percepção delas do trabalho reprodutivo e sobre o fato de serem elas que respondem pela responsabilidade cotidiana desse trabalho. O trabalho reprodutivo é explicado no seu fazer cotidiano como algo da rotina obrigatória, mas nunca é mencionado como algo que tem algum tipo de valor; quando algum comentário é feito sobre o sentido desse trabalho, é sempre com a percepção de uma atividade, ou melhor, de uma obrigação constitutiva do fato de serem mulheres. Nos relatos surgem pequenas expressões que indicam que já existe algo minimamente desconforme nessa rotina de trabalho reprodutivo em que estão imersas, mas os sinais de uma consciência crítica sobre a desigualdade vivida nesta relação não aparecem. Apesar de falarem, também, da conquista dos direitos das mulheres, e de que as mulheres atualmente são portadoras de outras possibilidades em suas escolhas de vida, creditam tudo isso à própria capacidade das mulheres de produzir mudanças. No entanto, a esfera pública como possibilidade de ação coletiva para se tornarem sujeitas da mudança consta como algo distante, referente a outras mulheres. O que podemos depreender como questão central para esta análise, considerando as experiências concretas das sujeitas das pesquisas, apresentadas como narrativas de suas trajetórias profissionais e como vivência do cotidiano, e refletindo sobre elas a partir da perspectiva feminista crítica e materialista é que a autonomia dessas mulheres como uma capacidade de serem sujeitas plenas de uma vida emancipada não se realiza pela mera inserção no mercado de trabalho. Esta inserção que significa ter uma renda própria é vivida ao mesmo tempo como conquista, como necessidade e como limite. Mergulhadas todo dia e o dia todo em jornadas de trabalho extensas, a falta de tempo, o cansaço e os desgastes do corpo funcionam como bloqueios não só para realizar outras atividades extratrabalho, mas também para repor suas energias e para refletir sobre os rumos de suas próprias trajetórias. Por vezes transparece uma percepção de como se aquele fosse o ritmo “natural” de suas próprias vidas, o que não significa que não sejam explicitadas em suas percepções sobre o futuro, sonhos ou projeções difusas de uma vida com mais segurança e mais conforto, e tudo isso associado às possibilidades que um trabalho remunerado pode assegurar para elas, mas sobretudo para seus filhos e filhas. Aliás, o cuidado e a educação de filhos e filhas são dimensões centrais nas tarefas de trabalho do cotidiano e nas preocupações e responsabilidades permanentes dessas mulheres. A autonomia econômica, para mulheres inseridas em condições precárias de trabalho, é ao mesmo tempo restrita e restritiva, e por outro lado, considerada fundamental para elas. O cotidiano aparece como um espaço/tempo no qual a tensão entre essas duas dimensões se expressa e expressa as contradições das condições de vida e trabalho em que estão inseridas, o que, em certa medida, configura os limites e as possibilidades de suas trajetórias. 196 Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras AUTONOMIA ECONÔMICA: SÍNTESES DE UMA ANÁLISE ANCORADA NA EXPERIÊNCIA DE MULHERES INSERIDAS EM TRABALHOS PRECÁRIOS A análise sobre crescimento econômico e geração de postos de trabalho do ponto de vista da inserção das mulheres e da população negra, ou, mais além, de como as desigualdades de gênero e raciais determinam e são enfrentadas nesse processo, tem sido crucial para revelar os limites e as contradições entre crescimento e desenvolvimento econômico, participação no mercado de trabalho e superação das desigualdades nas relações sociais. No contexto de elaboração deste projeto de pesquisa, o Brasil experimentava um momento histórico do ponto de vista de seu desenvolvimento econômico e de sua inserção na dinâmica econômica e política global. No momento de análise dos resultados dessa pesquisa, assistimos a inflexões nesse processo – nucleadas pela emergência de uma crise econômica de fortes proporções que se expressa na estagnação da economia – que colocam em questão os limites do modelo de desenvolvimento que orientou o crescimento econômico, sustentado na produção de commodities para exportação e na ampliação do mercado de consumo interno. Nesse momento, no Brasil, o debate sobre os rumos do desenvolvimento nacional ganha centralidade na arena política entre os movimentos sociais e intelectuais do campo democrático. Nesse cenário, os resultados desta pesquisa ganham maior relevância na medida em que, a partir da pesquisa empírica, podem contribuir para uma análise sobre os limites do modelo de desenvolvimento no enfrentamento de desigualdades de gênero e raciais, dimensões tratadas ainda de maneira subordinada e marginal no debate teórico e político, mesmo no campo progressista. O conceito de desenvolvimento foi utilizado criticamente nesta pesquisa visando avançarmos no debate sobre a relação desenvolvimento e autonomia econômica das mulheres, que tem sido amplamente tratada, na nossa visão, de maneira mecânica e simplificada, como se os chamados processos de desenvolvimento econômico fossem em si mesmos, e de maneira automática, indutores dessa autonomia. Esta equação feita de maneira tão simplificada, carrega ou esconde por trás de si uma realidade complexa sobre a qual já tínhamos – através de outras análises (RODRIGUEZ 2010, FRANCH et. Al., 2001), dos processos de diálogo com as organizações de mulheres trabalhadoras e de outras fontes de informações críticas – indicativos que mostravam tanto os problemas vividos pelas mulheres como a necessidade de avançar no conhecimento empírico e nas reflexões teóricas sobre o significado e as dinâmicas presentes no processo de participação das mulheres nos chamados processos de desenvolvimento através da sua inserção no mercado de trabalho. Esta pesquisa foi realizada em contextos que são considerados como polos dinâmicos da economia no País, em três regiões distintas: na região Nordeste, o Polo de Confecções do Agreste Pernambucano; na região Norte, o Polo Industrial do Alumínio, em Barcarena, no estado do Pará; e na região Sudeste, o setor de Construção Civil na região Metropolitana de São Paulo – SP. Escolhemos esses territórios porque foram construídos a partir de processos de desenvolvimento distintos, mas profundamente articulados ao processo de crescimento em curso nos estados e no país. Nesta nossa abordagem, contexto é tomado como uma noção teórico-metodológica relevante que orientou o processo de pesquisa. Contexto não se confunde com entorno 197 nem se restringe à ideia de um território, mas define-se como um espaço-tempo no Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica qual as relações sociais tomam lugar e expressam suas particularidades através de práticas sociais concretas. Implicam um processo histórico de estruturação de um campo de atividades produtivas e de conformação de relações sociais de sexo, classe e raça, que se forjam de maneira imbricada e consubstancial e revelam uma dinâmica entre presente e passado, local e global. A cidade de Barcarena está localizada a 40 quilômetros da capital do estado do Pará, Belém. O contexto econômico e social de Barcarena está profundamente ligado à inserção da Amazônia na dinâmica capitalista global, na qual a cidade ocupa, desde os anos 1970, uma posição estratégica. Barcarena é conhecida como um importante polo industrial de beneficiamento e exportação de caulim, alumina, alumínio – realizados por multinacionais como o complexo Albrás-Alunorte (recentemente incorporado pela transnacional Hydro). A instalação do complexo Albrás-Alunorte foi um fator responsável pela industrialização do território e por sua reconfiguração social e ambiental. Os projetos de desenvolvimento que se sucedem na região Amazônica e em Barcarena, em particular, mantêm e reatualizam a relação colonial de exploração dos bens naturais e a superexploração da força de trabalho local. Barcarena é, nesse sentido, inteiramente (re)criada para o capital internacional pela mediação do Estado nacional. No contexto atual, com a perspectiva neodesenvolvimentista adotada pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, em que o Estado reassume um papel protagonista no desenvolvimento, especialmente no investimento para a criação da infraestrutura, Barcarena ocupa um lugar estratégico na produção, sobretudo como via de integração e escoamento das commodities produzidas ou exploradas da região. Um novo impulso ao desenvolvimento local foi gerado com o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e pela Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana/Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento/ IIRSA/COSIPLAN, nos quais estão inseridas ações como a construção da usina de Belo Monte no rio Xingu, do complexo de barragens Tapajós, no estado do Pará. Por sua localização geográfica estratégica e por abrigar o maior porto da região (porto de Vila do Conde), Barcarena está no coração desses processos e os projetos em curso para a cidade pretendem consolidá-la como um “entroncamento logístico”, ao permitir a integração de diferentes vias de transporte e escoamento, especialmente a rodoviária, aérea, marítima e fluvial. Além dos impactos sociais, o avanço deste modelo tem como consequência a perda definitiva e irreparável de diversos ecossistemas e bens comuns. Deste processo se depreende que o desenvolvimento econômico na região segue avançando em um modelo baseado no desapossamento (Harvey, 2005) para produção de commodities com altos e negativos impactos sociais e ambientais. Do ponto de vista da geração de trabalho produtivo para a população local com déficit de qualificação, pode-se dizer que a implantação do polo Albrás-Alunorte promoveu formas de assalariamento restritas e de curta duração. O município de Toritama, outro dos contextos pesquisados, está situado no Agreste de Pernambuco, distante cerca de 170 quilômetros da capital, Recife. Ao longo das últimas décadas, verifica-se um aumento na população e uma intensificação do processo de urbanização da cidade, que está diretamente vinculado à consolidação do município como um polo produtor de confecções. O processo de desenvolvimento econômico em Toritama foi historicamente constituído a partir dos anos 1950 e movido pela busca das populações locais, especialmente sustentada no trabalho das mulheres, de criar “estratégias de 198 sobrevivência” em face do declínio da principal atividade econômica que sustentava Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras a região, a produção algodoeira. A atividade produtiva de confecção desenvolve-se e ganha força, no Agreste pernambucano, sem a mediação do Estado ou a intervenção do capital, mas pela iniciativa de mulheres e homens em situação de pobreza que encontram na confecção de roupas e artigos de cama, mesa e banho, tendo como base a “sulanca” (helanca do sul), uma estratégia de sobrevivência. Vale ressaltar que as feiras da “sulanca”, como ficaram conhecidas, floresceram no mesmo período em que ganhava impulso, sob a intervenção do Estado, o processo de industrialização no sul do país. O polo de confecções do Agreste desenvolveu-se à margem desse processo e é expressão da desigualdade regional que atravessou o desenvolvimento econômico brasileiro no século passado. Em Toritama, as atividades desenvolvidas a partir dos “rejeitos” da produção da indústria têxtil na região Sudeste do país ganharam força e hoje competem com outros polos produtivos nacionais do ramo. A produção de confecções a partir da “sulanca” começa com as mulheres produzindo roupas em casa, com suas máquinas domésticas, para vender em feiras e para consumo da própria família. O desenvolvimento econômico gerado pelo polo transforma o município em um “território de informalidade” (OLIVEIRA, 2013) que vai redefinindo a relação urbano-rural, pelo acelerado processo de urbanização que a atividade gera, ao passo que promove a atração de grandes contingentes de pessoas em busca de trabalho remunerado. Hoje, o município verifica altas taxas de ocupação na PEA, com 96,78% da população ocupada, mas com graus de informalidade também altíssimos, que denunciam “o profundo enraizamento do caráter informal das atividades econômicas e do trabalho na região” (VÉRAS DE OLIVEIRA, 2013, p. 257). Segundo os dados do Sebrae (2013), 83,79% da população ocupada encontrava-se em situação de informalidade. Os dados sobre a capacidade produtiva local são impressionantes: segundo o Dieese, o polo registra, hoje, uma produção anual de 842,5 milhões de peças confeccionadas em torno de 18 mil unidades produtivas que “empregam” cerca de 130 mil pessoas. O faturamento das empresas da região alcança 1,1 bilhão de reais (DIEESE, 2014). Inserida no polo de confecções do Agreste pernambucano, Toritama movimenta um montante considerável de recursos na região e no próprio Estado de Pernambuco. Entre 2000 e 2009, o crescimento de 101% do PIB de Toritama se destacou, juntamente com os outros nove municípios do Polo. No entanto, alerta Oliveira, todo esse crescimento populacional e do PIB é contrastante com as condições sociais da região. O crescimento econômico da região não impactou na desigualdade de renda. Os impactos ambientais da atividade produtiva também vêm sendo motivo de grande preocupação nos estudos realizados no município. O outro contexto de pesquisa abrangeu um setor da economia em franco crescimento no país, nos anos recentes: a construção civil, tendo como territorialidade uma das regiões onde se verificavam uma das maiores taxas de expansão: a região Metropolitana de São Paulo, no Sudeste do país. Esta região, conhecida como Grande São Paulo, abrange 39 municípios; a pesquisa qualitativa foi realizada com trabalhadoras de dois municípios, um deles a própria capital, São Paulo, e Guarulhos, cidade vizinha. O contexto de crescimento e de ampliação da inserção das mulheres na construção civil deve ser compreendido à luz do lugar que as cidades passaram a ocupar no modelo de desenvolvimento no plano global (Harvey, 2013) e na política de desenvolvimento do país, em particular, que na última década subsidiou a expansão do capital imobiliário como estratégia para ampliar empregos gerando, por contradição, o acirramento da questão urbana. Os impactos do modelo de desenvolvimento nas condições de vida das populações na cidade, evidenciados sobretudo no problema da mobilidade e nos 199 processos de desapossamento, estiveram no epicentro das manifestações que varreram o país em junho e julho de 2013, tendo como ponto de partida a cidade de São Paulo, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica e que marcaram um ponto de acirramento na correlação de forças política no país. A mobilidade é um dos principais problemas enfrentados pela população na cidade de São Paulo e é agravada pela desigualdade na ocupação do espaço urbano que, no caso brasileiro, é expressão de uma formação social patriarcal e racista. Na região Metropolitana de São Paulo, o setor da construção civil responde por 13% da ocupação; do contingente de empregados(as) no setor, 39,4% estão na informalidade. A ampliação da inserção das mulheres neste setor é bastante recente e vem crescendo nos últimos anos a partir do incentivo das políticas públicas desenhadas já no Governo Luís Inácio Lula da Silva. Neste governo, e sobretudo a partir do Governo Dilma Rousseff, foram ampliadas as políticas de qualificação para inserção profissional e desenvolveu- se um programa específico voltado para a inserção das mulheres na construção civil, que responde em medida significativa pela ampliação da inserção das mulheres nesse setor e nas atividades relacionadas ao “canteiro de obras”. A participação das mulheres no setor da construção civil, na RMSP, está bem acima da média da região Sudeste e da média nacional: em 2013, a participação feminina no setor foi de 4,5%. A construção civil é hoje um dos setores mais dinâmicos da acumulação capitalista, mas sua dinâmica mantém os traços do desenvolvimento econômico no país: “a incapacidade de o núcleo mais dinâmico da economia incorporar, de maneira adequada, a maioria da força de trabalho nacional” (DIEESE, 2014). Outra característica da ocupação no setor é a alta rotatividade da força de trabalho, sobretudo nas grandes obras. O setor emprega um grande contingente de pessoas a cada ano, mas também desemprega no mesmo patamar. A cada obra concluída tem-se um grande contingente de desempregados(as). A rotatividade se reflete na imprevisibilidade dos rendimentos, que já são baixos e, além disso, instáveis. A desproteção social é grande neste segmento: na região Metropolitana de São Paulo, em 2009, apenas 11% dos ocupados por conta própria na construção civil contribuíam para a Previdência Social. As mulheres constituíam tão somente 8% dos empregados no setor inseridos nos canteiros de obra, o que indica uma explícita fronteira traçada pela divisão sexual do trabalho nestes contextos. Tomando como referência esses contextos de forte desenvolvimento econômico, esta pesquisa buscou investigar os fatores objetivos e subjetivos que favorecem ou limitam a autonomia econômica das mulheres inseridas no mercado informal de trabalho. Ao construir o projeto de pesquisa, partimos do pressuposto de que a importância da informalidade na inserção das mulheres no mercado de trabalho não correspondia à relevância de estudos sobre esse universo no Brasil. Partimos, também, de uma abordagem crítica sobre o conceito de informalidade, questionando, em consonância com outros estudos de perspectiva crítica (Araújo, 2010; Cacciamali, 2001), as limitações desse conceito para apreender a trama complexa das relações de trabalho no atual contexto de produção capitalista, produzidas na imbricação das relações de sexo, raça e classe. O próprio processo e os resultados da pesquisa nos levaram a abandonar o conceito inicial de informalidade para adotar o de precarização, que, conforme já apontam outros autores, nos permite abordar a trama concreta das relações de trabalho nesse atual momento de acumulação capitalista, não apreensíveis caso tomemos a dualidade formal e informal ou, ainda, o continuum formal e informal. As experiências de trabalho das mulheres inseridas em contextos precários apontam que a precariedade pode se configurar inclusive nas relações de trabalho formalizadas, em geral marcadas por processos de intermitência, insustentabilidade e insegurança nos rendimentos e no acesso a direitos e desprotegidas socialmente. Mesmo as 200 formalizadas vivem os direitos do trabalho de maneira irregular. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Nas experiências das trabalhadoras que integraram o universo desta pesquisa, expressadas em narrativas, pudemos constatar que essa relação entre formalidade e informalidade não possibilita a apreensão da configuração concreta e complexa das condições e relações de trabalho. Isso se mostrou tanto nas narrativas sobre trabalho e cotidiano como nas narrativas sobre as trajetórias de trabalho. Trabalhadoras que afirmavam ter um contrato de trabalho formal, o que pressupunha o acesso a direitos, explicitavam uma não vivência concreta dos direitos pressupostos neste contrato pelos limites colocados pela própria relação de trabalho, por exemplo: ausência de creche, gozo de férias, duração de jornadas de trabalho e outros. A falta de conhecimento sobre os direitos trabalhistas revelou-se a expressão mais contundente dessa não vivência e do distanciamento de um horizonte de cidadania no trabalho. Nos relatos da trajetória, pudemos também observar que a irregularidade entre situações de contratos formais e informais é constitutiva do percurso laboral das mulheres, o que impossibilita definir essas trabalhadoras como parte de um “setor” a partir exclusivamente do vínculo empregatício. O que podemos apreender como resultado da pesquisa é que a precariedade nas experiências dos sujeitos da pesquisa não é estática, mas, ao contrário, se constrói em uma irregularidade que pode ser percebida por meio das narrativas sobre trajetórias de vida, conformando movimentos contínuos de informalização com frágeis intermitências de formalização e reconfigurações nas formas de contratação geradas no próprio processo de desenvolvimento. Ao trabalhar com o conceito de precarização, constatamos estas duas dimensões: a existência ou não de contrato de trabalho e a vivência concreta, ou não, dos direitos estabelecidos, quando este contrato existe. O que pudemos apreender, como síntese, é que “a informalidade está no coração da formalidade” (ARAÚJO, 2010). No caso das mulheres trabalhadoras, que se mantêm como as principais responsáveis pelo trabalho reprodutivo, mesmo inseridas no trabalho produtivo, a precarização só pode ser apreendida ao se considerar as dinâmicas e condições de inserção nesses dois trabalhos. Para as mulheres, a divisão sexual do trabalho, materializada em suas vidas cotidianas como um movimento contínuo entre trabalho reprodutivo e trabalho produtivo de maneira intermitente e, em muitos casos, de maneira simultânea, é em si um fator de precarização. Ao definir o escopo desta pesquisa formado por sujeitas inseridas em contextos e em relações de trabalho precário, do nosso ponto de vista, estávamos constituindo um universo de pesquisa forjado na imbricação das relações sociais de classe, raça e sexo. Uma vez que segundo os dados quantitativos sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho, a inserção precária é majoritariamente formada por mulheres negras. No processo de investigação qualitativa, buscamos configurar através da percepção das sujeitas da pesquisa, a vivência de situações de discriminação e sua própria percepção sobre suas identidades raciais. No entanto, a realidade empírica sobre estas questões se mostrou de difícil apreensão. Do nosso ponto de vista, e como hipóteses explicativas, que carecem de maior de mais investigação, inferimos que dois fatores podem ter interferido neste sentido: um de ordem metodológica que está relacionado a limites metodológicos que necessitam serem superados para o desenvolvimento de estudos empíricos referenciados teoricamente no conceito de relações sociais e nos seus imbricamentos; e outro imposto pelo “mito da democracia racial”, que prevalece no Brasil, como instrumento ideológico que produz e reproduz o racismo e as desigualdades raciais, e que serve para esconder a dominação e a exploração de brancos/as sobre 201 negros/as, e para invisibilizar as contradições das relações sociais de raça. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Na experiência desta pesquisa, as sujeitas ao serem interpeladas sobre as identidades raciais mostraram dúvidas, constrangimentos e até mesmo uma reação de surpresa e recusa para afirmar qualquer identificação nesse sentido. Quando o diálogo estava dirigido para as vivências de situações de discriminação e, de maneira específica de discriminação racial, houve uma reiterada atitude que nos pareceu de negação da vivência de discriminação racial, a qual se expressava como uma persistente negação da existência de racismo. As narrativas se referiam em geral a “mistura de raças”, como por exemplo, através da afirmação “eu sou brasileira” ou “somos todas misturadas”. Essa negação feita reiteradamente, está sendo considerada por nós como um resultado objetivo da pesquisa. E que tem como consequência a impossibilidade de considerar nas análises das narrativas sobre trajetórias e vivências cotidianas as questões raciais. E é este resultado objetivo que nos leva a considerar a necessidade premente de avançarmos no debate metodológico sobre pesquisas empíricas no campo das relações raciais e da sua “consubstancialidade e coextensividade” (Keergoat, 2012) com as relações sociais de gênero/sexo e classe. Nas trajetórias dessas trabalhadoras revelam-se diferentes estratégias acionadas pelas empresas nos três contextos investigados para reconfigurar as relações de trabalho, tornando-as ainda mais periféricas e precárias, e nas quais as mulheres são os sujeitos diretamente concernidos. A precariedade não é uma situação estática dada pela natureza do vínculo estabelecido; ela é um movimento permanente estruturado por processos materiais e ideológicos nas trajetórias laborais das mulheres e na articulação entre produção e reprodução social. Em Barcarena, as sujeitas da pesquisa foram ao longo de sua trajetória inseridas de maneira periférica e gradativamente afastadas da relação mais direta e formalizada com as empresas do Polo Industrial que constitui o cerne do processo de desenvolvimento da região: primeiro, inserem-se como assalariadas, e posteriormente passam a terceirizadas de firmas que prestavam serviços às empresas, até chegarem às cooperativas que, por sua vez, foram criadas pelas próprias empresas como estratégia de redução dos custos com a mão de obra. Com a estruturação dessas cooperativas, sob a égide das empresas, as novas levas de trabalhadoras ingressaram diretamente em relações terceirizadas de trabalho. Nestas cooperativas, só recentemente, em 2012, passaram a ter acesso a direitos. As cooperativas estão completamente subordinadas às empresas; estas definem o processo de trabalho, as regras de segurança, o volume de produção e, consequentemente, o fluxo de renda. O ideário da autogestão esfuma essa relação de subsunção e subordinação das trabalhadoras às empresas do Polo Industrial. Ganha força, ainda, uma contradição entre ideário da autogestão e uma situação concreta de nenhum poder de tomada de decisão e mesmo de total desconhecimento sobre como as decisões são tomadas no interior da cooperativa. Há uma organização hierárquica no interior da cooperativa em que as decisões são tomadas pelo presidente, um homem, em diálogo direto com as empresas. Essas trabalhadoras, que exercem sobretudo a atividade de higienização e recomposição de uniformes e outros objetos de uso no trabalho dos/as operários/ as (na realidade, quase exclusivamente operários) do polo, estão no último momento de uma cadeia produtiva que se inicia nas empresas e termina na higienização dos resquícios da produção industrial. Em Toritama, as mulheres estão inseridas numa relação de trabalho historicamente reconhecida como marcada por profundos níveis de exploração: o trabalho em domicílio remunerado por peça. A perspectiva profissional que se coloca no horizonte para as 202 trabalhadoras de Toritama é a de converter-se em dona de facção – unidade produtiva Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras em que uma ou mais trabalhadoras produzem peças ou etapas do processo de produção de peças, sob a encomenda das empresas. Esse anseio mobiliza um esforço individual de acumulação que leva as trabalhadoras que não são e mesmo aquelas que já são trabalhadoras-empregadoras das facções a estender e intensificar suas jornadas de trabalho, em um processo que atravessa os limites de tempo e do corpo, para tornarem- se “empresárias de si mesmas” (HAN, 2015) ou “empreendedoras”, no discurso de modernização amplamente disseminado no local. Os discursos das autoridades locais reforçam uma ideologia que atribui à informalidade – e sua manutenção – a força motriz que impulsiona a riqueza e o crescimento dos municípios do Polo, o que se traduz no reforço a uma cultura dos médios e pequenos empregadores(as) de rechaço a qualquer perspectiva de regulação da atividade (Registros de Campo, Toritama, Novembro de 2013). Essa constante “elegia da informalidade” é um aspecto ideológico a ser tratado como uma dimensão não menos relevante nas análises sobre as relações de trabalho e a precariedade na região. Nesse contexto, algumas informações relacionadas a rendimentos no trabalho e ao rendimento de donas e donos de facção dificilmente são reveladas, denotando uma espécie de tabu. Na construção civil, a precariedade no trabalho configura-se, no caso das trabalhadoras, pela intermitência nos vínculos empregatícios, o que gera uma permanente condição de insegurança que, no caso delas, se agrava pelas relações de sexo/gênero vivenciadas no interior do espaço de trabalho que as torna as mais vulneráveis, dentro de uma situação já precária, a perder o posto de trabalho, por sua condição de “fora do lugar”. As intermitências nos contratos de trabalho que caracterizam o setor da construção repercutem de maneira negativa na trajetória de trabalho individual registrado em carteira. As entradas e saídas sucessivas registradas em carteira aparecem como “queimação” da vida de trabalho dela, como um déficit da trabalhadora e não como uma dimensão da precariedade da inserção no mercado de trabalho no setor. A brevidade das contratações, especialmente nos setores de alta especialização que fazem contratações para momentos específicos da etapa de construção, repercute no não acesso a direitos trabalhistas que exigem um período de carência de vínculo, como o seguro desemprego. O que é uma condição estrutural das relações de trabalho no setor converte-se em um déficit da trabalhadora. A relação de trabalho predominante é a do contrato em regime celetista, porém por tempo determinado. O vínculo com as empresas contratadas permanece apenas durante os períodos de construção de obras, o que faz com que a inserção no mercado de trabalho remunerado seja marcada permanentemente por intermitências. Nestes interstícios, essas trabalhadoras, em geral, prestam serviços como autônomas, também de maneira informal, até conseguirem uma reinserção no setor com registro em carteira. A insegurança do vínculo se aprofunda em razão de serem “trabalhadoras” num campo de trabalho majoritariamente masculino. A análise das relações de trabalho, das relações no trabalho e dos processos de trabalho evidencia que essas trabalhadoras se encontram em uma situação de limbo: do ponto de vista das relações de trabalho, nem são plenamente assalariadas, nem inseridas no classicamente tratado como trabalho informal; do ponto de vista das relações no trabalho e do processo de trabalho, vivenciam em geral uma condição de não-lugar: nunca plenamente integradas, nem totalmente excluídas. As trajetórias revelam as dificuldades de inserção profissional das mulheres neste campo, em que pesem os níveis de qualificação que possuem e a frágil inserção promovida pelas políticas públicas em curso. Nos três contextos de pesquisa, o elemento constante de garantia de melhores 203 patamares de renda para essas trabalhadoras é a intensificação de seus ritmos e jornadas de trabalho: em Barcarena, na garantia do cumprimento da meta de produção do mês; Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica no caso de Toritama, na produção do maior número de peças possível; na construção civil, na possibilidade, sempre retomada por conta das atividades que realizam no trabalho remunerado e pelas demandas do trabalho reprodutivo, de cumprir horas extras. Há a percepção de que a renda vem sofrendo quedas, o que impacta diretamente na capacidade de planejarem sua vida financeira e constitui um fator de instabilidade da sua condição de trabalho que afeta diretamente suas possibilidades de manterem uma autonomia econômica sustentada. Os mecanismos que sustentam a divisão sexual do trabalho – separação e hierarquia (KERGOAT, 2009) – expressam-se de maneira concreta nos três arranjos de trabalho investigados, produzindo desigualdade salarial entre homens e mulheres, nos três contextos de pesquisa. O fio comum que conecta trabalhadoras inseridas em diferentes contextos e ao longo de gerações é a precariedade das relações e condições de trabalho nas quais estiveram inseridas ao longo de sua trajetória produtiva. O que se mantém como uma experiência comum em todos os contextos é a permanência dos encargos do trabalho reprodutivo sob a responsabilidade das mulheres de diferentes gerações. As narrativas também evidenciam que a precariedade que as trabalhadoras enfrentam se conforma na tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo ao longo das trajetórias de vida e nas relações de trabalho atuais. Nesse sentido, podemos afirmar que se a organização do trabalho produtivo está baseada na superexploração e na precariedade, a organização do trabalho reprodutivo segue ancorada na apropriação ilimitada do tempo de vida destas trabalhadoras no interior das famílias, sendo agravada pela precariedade de estrutura social para responder às demandas deste campo, o que termina por retroalimentar sua condição precária de inserção no trabalho remunerado. O déficit de direitos relacionados à reprodução social evidencia-se já durante a gravidez e no momento do parto, e persiste ao longo da trajetória de maternidade, na ausência de equipamentos para cuidados dos filhos pequenos, situação que irá incidir diretamente nas trajetórias de trabalho produtivo como limitação e, em alguns casos, como fator que empurra as mulheres para a inserção mais precária. Pode-se falar, também, em condições precárias de trabalho reprodutivo. A expressão do cansaço provocado pelo trabalho produtivo e reprodutivo é radicalmente particular da experiência das mulheres no mundo do trabalho. A gravidez é o momento da trajetória em que os encargos da produção e da reprodução confluem e se explicitam de maneira inextricável e irredutível na materialidade corpórea das trabalhadoras; nesse período, elas, e somente elas, são um corpo que a um só tempo produz e reproduz. No trabalho produtivo, no qual empregam grande esforço físico, no processo reprodutivo da gestação de um outro corpo e nas práticas sociais externas do trabalho reprodutivo. Essa tríade – trabalho produtivo, trabalho reprodutivo social e trabalho reprodutivo biológico – toma lugar na materialidade do corpo, tendo como corolário o cansaço extremo. O cansaço, nesse período, ganha uma conotação única e uma condição singular só vivida pelas trabalhadoras. Isto denota que a gravidez é um processo vivido no corpo, mas em determinados contextos e relações sociais. Essa experiência pode, inclusive, ser tomada como um fator de morbidade materna. Por meio das narrativas das mulheres, percebe-se um antagonismo de difícil superação entre as exigências do trabalho produtivo e reprodutivo e os processos de estudo e qualificação. A interrupção dos estudos também emerge, nas trajetórias, como provocada por impedimentos expressos de homens da família, como pais, ou da falta de suporte de companheiros; a vivência do casamento é também narrada como um momento de interdição à continuidade dos estudos, o que expressa um bloqueio – que 204 na trajetória delas não se reverte em conflito. O nascimento dos filhos e os encargos Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras consequentes levam a uma conformação do tempo da vida para responder às exigências do trabalho reprodutivo e do trabalho produtivo; são considerados um fator objetivo que repercute na interrupção dos estudos. A percepção de que a atual situação no mercado de trabalho e as condições de vida, assim como possíveis melhorias, dependem do esforço individual é expressão de um processo de individualização forjado nas relações de trabalho em que estão inseridas, aprofundado pela mediação de uma ideologia liberal que reforça esta visão de mundo, mesmo no contexto de trabalho cooperativado, e que ganha sua expressão máxima no ideário do “empreendedorismo” em Toritama. Ao tempo que as conquistas na trajetória são vistas como resultado de um esforço próprio, como o de ter uma profissão, os déficits e ausências são também percebidos como um déficit individual, só passível de superação pelo esforço do sujeito individual. Essa concepção individualista de processos que são inerentemente sociais é reforçada pela ausência de qualquer espaço de debate coletivo, pelas informações difundidas nos meios de comunicação e pelas próprias condições e práticas sociais do trabalho produtivo e reprodutivo em que estão inseridas. Da capacidade de empregar-se (empregabilidade) a de manter-se produtiva, saudável e viva, a responsabilidade é percebida como da trabalhadora. As narrativas revelam que, na percepção das entrevistadas, são elas que estão em permanente débito com a exigência do mercado de trabalho e consigo mesmas. E, até mesmo, no que diz respeito à sua própria segurança e saúde no trabalho produtivo. Nesse cenário, forja-se um instável processo de autonomia econômica que se mantém no presente pelos ritmos e jornadas intensos de trabalho que produzem, quando somados ao tempo do trabalho reprodutivo, uma carência de tempo para outras atividades e para si mesmas – e que, dificilmente, pela situação de desproteção social em que se acham, pode ser sustentável no tempo e, especialmente, no futuro. As narrativas das mulheres sobre suas trajetórias de trabalho revelam também as conquistas e aquisições que são marcos nas trajetórias de vida e que estão profundamente ligadas ao fato de terem um trabalho remunerado, como também a importância que conferem a esse trabalho nas suas vidas e no seu processo de construção de autonomia. A aquisição da casa própria é, sem dúvida, a principal dessas conquistas. Para além de uma melhoria nas condições de renda, dada pela saída do aluguel, e da segurança que a aquisição deste espaço lhes garante, a casa própria emerge como a materialização dos esforços mobilizados durante toda sua trajetória e como um espaço para a existência própria, onde podem tomar suas decisões e viver com maior autonomia. Ter uma casa própria é de fato um grande empreendimento na vida dessas trabalhadoras. E o fato de ter uma casa própria como resultado direto da sua renda, mesmo que compartilhe os custos com o companheiro ou alguém da família, implica ser sujeito da sustentabilidade de suas condições de vida, com capacidade para definir metas e realizar desejos. Porque a casa própria, enfatizada como uma grande necessidade objetiva e obtida com a renda do trabalho, é também, em uma perspectiva mais subjetiva, algo da ordem do desejo que denota a própria capacidade do sujeito de agir no mundo. E até mesmo como algo relacionado à liberdade e à autonomia na esfera da vida amorosa e sexual, como explicitado no caso de trabalhadora que afirmou que o fato de ter sua própria casa estava diretamente relacionado à possibilidade de ter uma vida em comum com uma companheira. O fato de assumirem a condição de “provedoras” de seus filhos, sem dependência de pais ou familiares, além de uma necessidade objetiva, revela um forte valor subjetivo, 205 que indica, na percepção das mulheres, uma capacidade de autonomia na vida reprodutiva, sem que ocorra a percepção da desigualdade que essa responsabilização Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica solitária produz. A possibilidade de garantirem condições objetivas para a permanência na escola e o avanço nos estudos de seus filhos e filhas também emerge como uma necessidade incontornável e como expressão de uma transferência para os/as filhos(as) dos seus anseios de realização profissional que não se concretizaram e/ou não se mostram possíveis de ser concretizados nas suas próprias vidas profissionais. Situadas em realidades tão diferentes, as participantes desta pesquisa parecem estar todas sincronizadas em um mesmo ritmo temporal nos dias em que enfrentam as jornadas formadas de trabalho produtivo e reprodutivo. É o ritmo definido pela divisão sexual do trabalho e, dentro dela, pela inserção precarizada no mercado de trabalho. Em síntese, é o ritmo do trabalho dado pela ubiquidade da exploração da força de trabalho das mulheres que toma formas concretas e particulares, na conformação do cotidiano, através das práticas sociais em cada contexto social. Esta ubiquidade, no entanto, não é uma realidade fixa nem fechada. Ela é dada por um sistema de dominação que é conformado, ao mesmo tempo, por estruturas determinantes da sua formação e reprodução e por relações sociais de classe, de raça e de sexo/gênero, o que significa: por antagonismos gerados pelas contradições inerentes a essa formação e à sua reprodução, e nas quais os sujeitos concretos vivem e agem. Nos três contextos, no dia a dia, nas experiências de trabalho narradas, é de imediato perceptível a intensidade das jornadas de trabalho que, muitas vezes, estendem-se pela noite e ocorrem num movimento de intermitência entre o trabalho que gera renda e o trabalho que garante a manutenção da casa e das atividades do cuidado com as crianças, com outros membros da família e consigo próprias. Independentemente do ramo de atividade em que se acham inseridas, a organização do cotidiano é definida, em primeiro lugar, pelas exigências das jornadas do trabalho remunerado. Podemos dizer que as jornadas de trabalho dessas mulheres podem ser sintetizadas como extensas, intensas, intermitentes e simultâneas. O fato de o cotidiano dessas mulheres mostrar-se como uma sucessão de dias totalmente preenchidos pelas exigências do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo pode ser considerado como um fator que causa grandes restrições à qualidade de vida delas e às possibilidades do seu desenvolvimento profissional e pessoal. Isso se dá por diversos fatores: pela falta de tempo, de recursos materiais e de disposição corporal para realizar outras atividades, além das do trabalho, que possam trazer satisfação, prazer, aprendizado e, sobretudo, repouso com tempo necessário para sua própria restauração corporal e psicológica. Os momentos de ócio, de cuidado de si e de reflexão não aparecem como parte de suas vivências. O que emerge dos relatos do dia a dia são formas precárias de cuidar de si mesmas em tempos muitíssimo breves, no transcurso dos quais só é possível dar conta das necessidades cotidianas e imprescindíveis. No dia a dia, não ocorrem momentos significativos de temporalidade liberada desse movimento entre trabalho produtivo e reprodutivo. A fim de conseguir manter esse movimento e tudo o que ele implica para a maioria das mulheres, é preciso muito esforço e ainda contar com o apoio de outras mulheres. Nesse ritmo entre as duas esferas de trabalho, os homens pouco aparecem como parceiros no trabalho reprodutivo. Ou não aparecem porque não o fazem, isto é, não dividem este trabalho com elas, ou porque não estão presentes na composição do grupo familiar. E quando aparecem são sempre citados como aqueles que ajudam ou apoiam. Neste estudo inserimos como parte das horas investidas no trabalho produtivo aquelas despendidas nos percursos de ida para os e de volta dos locais de trabalho 206 remunerado. Constatamos que o tempo de vida diário investido na realização desses Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras percursos para as trabalhadoras de Barcarena e de São Paulo significa, com raras exceções, um tempo de travessias longas, demoradas e pontilhadas de dificuldades. Em geral, essas travessias implicam um gasto de energia corporal muito grande e são vivenciadas como momentos de sofrimento ou, no melhor dos casos, de desconforto, sobretudo quando se trata da realidade das trabalhadoras de São Paulo. Essas trabalhadoras que habitam os espaços periféricos da Grande São Paulo trabalham sempre longe dos locais de residência, pois uma divisão espacial de classe separa os lugares de seus domicílios daqueles onde estão localizados os canteiros de obra para os quais se deslocam todos os dias, para uma jornada de trabalho difícil, irregular e desadaptada do ponto de vista cultural, social e da própria infraestrutura para contar com a presença de trabalhadoras. As mulheres, e em maior medida as mulheres negras, que constituem o maior grupo de trabalhadoras inseridas no trabalho precário enfrentam o problema de grandes deslocamentos no duplo trabalho que realizam: na produção e na reprodução social, assim como são elas que arcam com a sobrecarga gerada pelos problemas ambientais urbanos, como a falta de ou a poluição das águas e a precariedade do saneamento. As de Barcarena, no entanto, em seus relatos também mostram um percurso longo e dificultoso, o que pode parecer contraditório pela dimensão de pequeno porte da cidade e pela sua localização, que lhe confere a aparência de um lugar apartado dos centros movimentados do mundo capitalista. No entanto, em Barcarena as mulheres estão vivenciando em seus cotidianos os efeitos deletérios das condições de vida e de trabalho que são, historicamente, intrínsecas à forma de desenvolvimento capitalista. Barcarena, com seu parque industrial dentro da floresta Amazônica, está, em um sentido metafórico, escondida dos olhares do mundo, mas do ponto de vista da engrenagem da reprodução do sistema capitalista, patriarcal e racista, as trabalhadoras que aí habitam e trabalham acham-se na cadeia produtiva global, sujeitas a seus ritmos de trabalho e a sua superexploração. O tempo transcorrido nesses percursos possibilita uma visão mais acurada e mais concreta da relação tempo e trabalho no cotidiano. Podemos perceber, por exemplo, as horas do dia que sobram, as que não sobram para outras atividades da vida cotidiana e para sair da vivência desse espaço/tempo como mera cotidianidade, isto é, como mera repetição. A fim de poder usufruir de outros momentos e poder, também, ter tempo e possibilidades para transitar por outras esferas da vida social, como, por exemplo, a da política, ou participar da festa. A festa aqui tem o sentido de um acontecimento que, no seu espaço/tempo, nos retira de toda atividade de labor, exatamente como um momento de suspensão da cotidianidade. A experiência dessas mulheres evidencia que na organização social desse sistema os trabalhos produtivo e reprodutivo são inconciliáveis. São as mulheres que enfrentam no cotidiano os antagonismos da relação entre esfera produtiva e esfera reprodutiva, investindo cotidianamente o tempo de existência e a energia corporal para dar conta das jornadas de trabalho formada por esses dois trabalhos. O que podemos também constatar é que dentro de um mercado de trabalho marcado pela precariedade e pela segmentação, as jornadas de trabalho podem ser sempre redefinidas e tomar formas irregulares que dificultam, ainda mais, para as mulheres, a relação entre trabalho produtivo e reprodutivo. No caso de Barcarena, as metas de produtividade que estão diretamente associadas à definição da renda mensal podem sempre exigir horas extras de trabalho ao final da 207 jornada diária, mas também nos dias de folga como o domingo. No caso de São Paulo, Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica as horas extras apareceram com menos frequência nas narrativas das trabalhadoras, mas a possibilidade de isso acontecer está presente. Para aquelas que trabalham por conta própria porque não estão inseridas como força de trabalho terceirizadas nos canteiros de obras das empresas, e que não são o foco desta análise, os dias e horas de trabalho dependem da demanda e podem ocorrer a qualquer momento, inclusive no final de semana. No caso de Toritama, o trabalho remunerado por peça, e de baixo valor, exige um ritmo de produtividade que sempre pode se estender ou retrair, a depender da demanda. Pelo fato de ser um trabalho produtivo feito em domicílio, ficam evidentes as engrenagens, neste mundo do trabalho produtivo precarizado, que borram as fronteiras entre as temporalidades dos trabalhos produtivo e reprodutivo, criando não só intermitência entre eles, como simultaneidade. Mas esse trabalho produtivo em domicílio não é a volta da relação de trabalho na unidade doméstica que antecedeu ao capitalismo, quando a unidade familiar doméstica era uma unidade produtiva e reprodutiva; no contexto atual, o trabalho feito em domicílio está inserido numa cadeia produtiva constituída como forma atual de organização capitalista do mercado de trabalho, o que o inclui diretamente no processo geral de produção de mercadoria e segundo suas regras. Já o trabalho reprodutivo responde às necessidades do cotidiano para a sobrevivência pessoal da trabalhadora e do seu grupo familiar. A realização do trabalho produtivo no interior do domicílio familiar significa na prática uma despossessão desse espaço como lugar da privacidade, do repouso e da convivência familiar e provoca um impacto negativo nesses espaços, já restritos, de moradia dessas trabalhadoras. Além disso, leva a uma permanência das trabalhadoras, no mesmo ambiente, durante o dia e a noite, o que pode ser caraterizado como um confinamento com regime de trabalho intensivo. Podemos, aqui, fazer uma analogia com o que Federici define como “cercamento das mulheres” no interior dos processos de acumulação primitiva do capital. Nos três contextos estudados, o trabalho remunerado, além de definir toda a organização do tempo social no cotidiano, não oferece nenhuma possibilidade de arranjos mais flexíveis; ao contrário, as jornadas podem ser estendidas com certa frequência. Mas além da organização do tempo social nos dias chamados “úteis”, isto é, os dias da rotina do trabalho remunerado, o trabalho produtivo também impacta na disposição da forma como se vive os dias de folga desse trabalho; já o trabalho reprodutivo impacta nas possibilidades concretas de tempo liberado de trabalho nesse período. A semana de trabalho remunerado dos sujeitos da pesquisa nos contextos de Barcarena e Toritama vai de segunda-feira até sexta-feira, e no contexto de São Paulo, de segunda-feira a sexta-feira. Mas como vimos nas análises específicas de cada contexto, no final de semana essas trabalhadoras realizam o trabalho reprodutivo em suas casas, inclusive colocando em dia as tarefas acumuladas durante a semana; algumas delas também mencionam a possibilidade de horas extras do trabalho produtivo no dia da folga do final de semana, ou ainda outras pequenas atividades de trabalho remunerado para completar a renda. Portanto, a questão do lazer e do descanso nos finais de semana se mostrou no geral muito problemática. Na vida das mulheres trabalhadoras, a possibilidade de vivenciar o lazer é muito contingencial e está subordinada não só às determinações do tempo do trabalho produtivo, mas também ao tempo do trabalho reprodutivo. Quando há crianças ou jovens no grupo familiar da trabalhadora, as referências ao lazer são, em geral, automaticamente feitas expressando essa extensão das tarefas do cuidado realizadas no âmbito doméstico para os outros espaço e tempo do cotidiano. Consideramos 208 importante salientar que a percepção explicitada por alguns sujeitos da pesquisa de Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras que não consideram como lazer o fato de essa atividade estar ligada ao cuidado com os filhos evidencia, do nosso ponto de vista, uma percepção desnaturalizada do cuidado como algo intrínseco à sua própria vida. No entanto, essa percepção crítica, quando aparece, é provocada pelos efeitos que isto causa sobre o seu próprio corpo, isto é, o cansaço corporal na volta do lazer como algo que denota o que de fato aconteceu, ou seja, que se esteve cuidando das crianças no período em que se estava supostamente vivenciando um lazer. São as condições materiais da vivência desse lazer-trabalho reprodutivo, materializadas no corpo, que fazem emergir essa percepção crítica sobre um trabalho que estava disfarçado como tempo de lazer. No dia a dia dessas trabalhadoras, o cansaço que se acumula nos movimentos entre trabalho produtivo e reprodutivo toma a forma de exaustão, com sintomas como dores e outras formas de mal-estar corporal que afetam profundamente a qualidade de vida. O cansaço no dia a dia é um bloqueio concreto à capacidade dos sujeitos de agir no cotidiano fora das fronteiras, espacial e temporal, dos trabalhos produtivos e reprodutivos. A exposição cotidiana a objetos contaminados com produtos altamente tóxicos, longas jornadas de trabalho em pé, o manejo de objetos pesados e emissores de calor, longas jornadas sentadas manejando máquinas de costura que requerem movimentos repetitivos, longas jornadas subindo e descendo escadas, transportando materiais pesados e com vestimentas inadequadas, todos esses elementos, e outros mais, estão presentes, de maneira específica e em alguns casos de maneira geral, no cotidiano de trabalho produtivo dos sujeitos que participaram da pesquisa. O que difere em cada contexto é a forma da precariedade, mas em todos eles os efeitos estão no corpo e na vida das trabalhadoras. Além disso, as condições e os ritmos de trabalho aos quais essas trabalhadoras estão submetidas não só afetam suas condições de saúde física e mental, mas também gastam seus corpos progressivamente, o que parece acontecer tanto pelo impacto direto provocado pela execução do trabalho produtivo e reprodutivo, bem como pela falta de tempo necessário à reposição das energias corporais, motivada pelas extensas jornadas. A riqueza produzida nos três contextos contrasta com a precariedade social e de infraestrutura, que se expressa principalmente na ausência de políticas públicas de apoio à reprodução social, como equipamentos de lazer e as creches, fundamentais para a garantia de autonomia sobre seu tempo no contexto da divisão sexual do trabalho que atribui às mulheres – e retira do tempo da vida delas – os encargos do trabalho reprodutivo. A experiência das mulheres mostra o quanto o trabalho, nesse sistema, é um campo de disciplinamento e expropriação da energia corporal, das emoções e da capacidade intelectual. As condições de trabalho atuais e a expansão dos trabalhos precários, irregulares, de tempos e jornadas incertos, com profundos abismos sociais nas formas de inserção no mercado de trabalho, impõem as formas de exploração capitalista, patriarcal e racista e parecem gastar os corpos, cada vez mais, em função do lucro. Nesta abordagem, com base nas experiências narradas pelos sujeitos da pesquisa, desenvolvemos a análise como um processo de apreensão do sentido das informações recolhidas, buscando perceber tanto as diferenças como as similaridades, na intenção de contribuir, em uma perspectiva crítica, para visibilizar experiências concretas de mulheres trabalhadoras que nos ofereçam pistas e percepções sobre a autonomia econômica de trabalhadoras inseridas no mundo do trabalho no atual contexto de globalização neoliberal.Nesse contexto global, o não acesso aos direitos trabalhistas, o não acesso integral ou a perda gradativa de direitos se constitui como uma realidade 209 para a grande maioria das mulheres; para estas, relações flexíveis de trabalho, que Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica significam precárias, materializam-se em formas concretas de exploração que marcam os corpos das mulheres, as condições de suas vidas cotidianas e impactam nas suas trajetórias e nos seus projetos de vida. A relação entre autonomia econômica e trabalho, considerando as duas esferas do trabalho, na conformação do cotidiano das trabalhadoras, é importante no sentido de nos levar a uma reflexão mais aprofundada sobre as condições concretas nas quais essa autonomia é vivenciada e percebida pelos sujeitos. É no cotidiano que as práticas de trabalho tomam forma concreta e revelam de maneira objetiva as possibilidades reais de uma vida com autonomia e as possibilidades, existentes ou não, de meios concretos para a realização de mudanças de vida. As trabalhadoras pesquisadas nos três contextos da pesquisa narram seu cotidiano como uma engrenagem que não permite alterar seu ritmo, pois há que se cumprir todas as tarefas, seguindo com rigor os horários. O tempo do trabalho é um fator de constrangimento da autonomia no dia a dia e também para definir outras possibilidades para o futuro, como, por exemplo, o desejo de continuar estudando e fazer uma faculdade, o que significa que há uma situação conflitante entre o desejo de alterar a trajetória de vida e o constrangimento exercido pelas cargas de trabalho cotidiano, que impedem ou dificultam a construção de novas possibilidades. As atividades do trabalho produtivo e reprodutivo podem apresentar dinâmicas diferenciadas nos três contextos, mas o que em geral pode ser constatado através deste estudo é que no contexto das reconfigurações no mundo do trabalho a divisão sexual do trabalho permanece como uma dimensão que estrutura a reprodução social e a vida cotidiana. Ter um trabalho assalariado ou um trabalho autônomo que gere renda é uma necessidade social e política das mulheres para sua própria manutenção e/ou a de sua família e para sua autonomia econômica, pois na sociedade capitalista a forma preponderante de garantir uma renda para a sobrevivência é através do emprego. As análises sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho, ressaltando a dimensão quantitativa e o seu crescimento, devem ser problematizadas a partir das condições e relações de trabalho nas quais as mulheres estão inseridas e, sobretudo, considerando a divisão sexual e racial do trabalho. A divisão internacional do trabalho se reatualiza no processo de globalização e na divisão sexual do trabalho, cuja característica forte é a precarização do trabalho das mulheres e, sobretudo, das mulheres negras. A América Latina – e o Brasil como parte dela e parte do cenário global – segue essa mesma tendência. O fato de o trabalho precarizado e desregulamentado atingir preferencialmente as mulheres é parte dessa reconfiguração. A autonomia econômica para as trabalhadoras inseridas em trabalhos remunerados precários, responsáveis pelo trabalho reprodutivo e, em sua maioria, negras, é um processo construído no contexto de limitações estruturais que conformam a organização do seu cotidiano e do desenvolvimento das trajetórias individuais e coletivas das trabalhadoras, produzindo constrangimentos na renda, nos direitos, nos espaços onde habitam, no tempo e no corpo. Porém, ganha sentido e força quando se considera nas trajetórias o enfrentamento e a resistência às relações de apropriação, discriminação, exploração e despossessão produzidas na imbricação das relações sociais de sexo, raça e classe. Para além de ter uma renda própria que lhes assegure a capacidade de tomar decisões e de superar situações de dependência financeira, o sentimento de autonomia está fortemente relacionado ao fato de ser uma trabalhadora, ter uma profissão e realizar uma obra. Reconhecer-se como trabalhadora é algo percebido, nos três contextos em que realizamos a pesquisa, como um valor em si. No caso das trabalhadoras 210 da construção civil, essa afirmação ganha ainda mais força pelo fato de terem uma Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras profissão em um campo historicamente refratário à presença das mulheres. O que se apreende das trajetórias e das vivências do cotidiano é que a autonomia econômica é um processo que se forja em contraponto às dimensões materiais e simbólicas que sustentam as relações sociais de sexo, classe e raça. O trabalho remunerado, nas condições precárias nas quais estão inseridas as trabalhadoras que participaram desta pesquisa, garante um grau de autonomia econômica bem objetivo e muito restrito, diretamente relacionado com a provisão das necessidades de sua sobrevivência e do seu grupo familiar. Esta autonomia econômica está também calcada numa dimensão subjetiva que se expressa como autoestima, sentimento de independência e sentimento de ser sujeito, pelo fato de trabalhar, produzir algo e auferir uma renda. Para essas trabalhadoras que passam o cotidiano transitando entre as esferas produtiva e reprodutiva, a inserção precária no mundo do trabalho garante uma autonomia precária de vida, sob o peso de um trabalho produtivo alienado que lhes assegura minimamente a sobrevivência e gasta seus corpos, reduzindo-lhes o usufruto do tempo corrente da sua própria vida. As mulheres trabalhadoras que compuseram o universo desta pesquisa apresentam uma percepção sobre seus trabalhos remunerados como uma dimensão fundamental de suas vidas, tanto no que as faz se sentir como sujeitos, dando-lhes sentimentos de independência e autoestima, como na garantia de recursos para o provimento das necessidades básicas do dia a dia. As percepções sobre as possibilidades de mudanças, em geral pequenas mudanças, em suas vidas são sempre explicitadas como difíceis ou impossíveis, para a maioria delas. Em geral, a questão dos estudos é tida como fundamental para qualquer possiblidade de melhoria em suas condições de vida e de realização profissional. Mas são poucas as que estudam, nos três contextos pesquisados, e quando isto acontece percebe-se um esforço gigantesco para tanto. Mesmo assim só conseguem isso quando contam com o apoio substantivo de outras mulheres no trabalho reprodutivo, tendo ou não tendo filhos(as). Isto porque o ritmo intenso nos e entre os trabalhos produtivo e reprodutivo é, no cotidiano, um bloqueio concreto para qualquer grau de autonomia na vivência do tempo de suas próprias vidas. A importância do trabalho remunerado na vida das mulheres que participaram da pesquisa é fortemente afirmada nas narrativas, de maneira recorrente. No entanto, sentimentos de independência, de autonomia e outras formas de autoestima expressadas parecem não trazer qualquer alteração sobre a percepção delas acerca do trabalho reprodutivo e do fato de serem elas que respondem pela responsabilidade cotidiana desse trabalho. O trabalho reprodutivo é explicado no seu fazer cotidiano como algo da rotina obrigatória, mas nunca é mencionado como algo que tem algum tipo de valor, e quando algum comentário é feito sobre o sentido desse trabalho, é sempre com a percepção de uma obrigação constitutiva do fato de serem mulheres. Nos relatos aparecem pequenas expressões de que há algo desconforme nessa rotina de trabalho reprodutivo na qual elas se acham imersas, mas os sinais de uma consciência crítica sobre a desigualdade vivida nesta relação não ocorrem – apesar de mencionarem também as conquistas dos direitos das mulheres, e que as mulheres atualmente são portadoras de outras possibilidades em suas escolhas de vida, bem como de creditarem tudo isso à própria capacidade das mulheres de produzir mudanças. No entanto, a esfera pública como possibilidade de agir coletivamente como sujeitos da 211 mudança aparece como algo distante, referente a outras mulheres. Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica Uma inserção precária no trabalho produtivo associada às responsabilidades no trabalho reprodutivo realizado também de maneira precária produz uma autonomia precária e relativa e, também, condições de vida precárias no percurso de vida e no cotidiano. Ter uma profissão e uma renda auferida pelo seu próprio trabalho produtivo confere às mulheres sentimentos positivos de autoestima, de independência e de realização pessoal que podem ser considerados como expressões subjetivas de autonomia. A renda do trabalho das mulheres garante, inteiramente ou de forma compartilhada, a provisão das necessidades pessoais e familiares de sobrevivência cotidiana. A percepção sobre a importância incontornável de um trabalho remunerado em suas vidas extrapola a importância prática de garantir a satisfação dessas necessidades concretas da sobrevivência e ganha uma dimensão subjetiva de encorajamento e resistência para enfrentar os desafios que se colocam no cotidiano e, em perspectiva, de alguma realização que venha alterar para melhor as suas condições de vida, este é um sentimento generalizado e parece ser também um elemento que ajuda no enfrentamento das jornadas diárias entre trabalho produtivo e reprodutivo, em síntese, emerge como um sentimento de capacidade de autodeterminação. As formas de resistência coletiva não estão presentes na vida dessas mulheres, não são mencionados espaços, nem experiências de participação em qualquer tipo de coletivo político. Dessa forma não emerge a crítica sobre as situações de dominação exploração a que estão submetidas nem são vislumbradas ações coletivas de enfrentamento a essas situações, todo peso é jogado na responsabilidade individual com o passado e o futuro. A partir das narrativas, das observações locais e de uma leitura feminista crítica e materialista, constata-se que a autonomia dessas mulheres e das mulheres em geral, como uma capacidade de ser sujeito pleno de uma vida emancipada, não se realiza pela mera inserção no mercado de trabalho. Isto certamente significa uma conquista coletiva, mas não um movimento progressivo e sustentável de autonomização, o que só pode ser conquistado mediante a mudança das estruturas e relações sociais. A autonomia econômica das mulheres como uma dimensão constitutiva do sujeito está diretamente relacionada à capacidade de as mulheres se organizarem como coletivo portador de um projeto feminista de igualdade e emancipação. Individualmente, as mulheres trabalham, adquirem graus diferenciados de autonomia, formam redes e coletivos de apoio ao trabalho produtivo e reprodutivo, e dessa forma podem mudar aspectos de sua vida pessoal e conseguir pequenas margens de manobra nos esquemas de trabalho, de acordo com sua inserção de classe e raça, mas não transformam as estruturas e as relações de dominação e exploração, isto é, não podem produzir rupturas que alterem a ordem das coisas que conformam as relações de trabalho, as quais estão assentadas na divisão sexual do trabalho. Uma vida com autonomia só será possível com a transformação das estruturas e relações sociais de dominação e exploração, o que só pode se dar como um processo coletivo do movimento feminista portador do projeto de emancipação das mulheres, vinculado a um processo coletivo formado pela pluralidade dos sujeitos em luta por transformação social. Pensamos que a abordagem metodológica desenvolvida nesta pesquisa possibilita uma reflexão crítica sobre a autonomia econômica nas suas gradações e contradições, a partir do ponto de vista feminista e ancorada na experiência de mulheres trabalhadoras que vivenciam uma experiência de trabalho precário, experiência esta majoritariamente 212 vivida pelas mulheres e, sobretudo, pelas mulheres negras. Na Pespectiva das Mulheres Brasileiras Consideramos a produção do conhecimento uma dimensão central na práxis feminista que a realiza em relação dialética com a militância política, sendo, ela própria, parte da ação de disputa de contra-hegemonia na produção do saber. A produção do conhecimento é realizada, portanto, como uma prática coletiva de resistência e subversão e com um sentido emancipatório. Ela é própria da constituição do feminismo como um movimento de autoemancipação das mulheres e de sua construção histórica. Partindo dessas premissas, pensamos que este estudo que tomou a experiência das mulheres trabalhadoras como ponto de partida para uma análise crítica da realidade social contribui no sentido de alimentar a ação coletiva feminista para a transformação social. 213 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBOTT, Pamela; WALLACE, Claire. An introduction to Sociology – Feminist perspectives. London and New York: Routledge, 1997. 334p. AGÊNCIA BRASIL DE COMUNICAÇÃO. Índice que mede desigualdade de renda fica estável, aponta IBGE. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/ noticia/2014-09/indice-que-mede-desigualdade-de-renda-fica-estavel-aponta-ibge>. Acesso em: 02.10.15. ALVES, Giovanni. Trabalho e Subjetividade. O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011 AMANAJÁS P., H., DOS SANTOS, A. y PEREIRA OLIVEIRA, H. Análise da dinâmica da estrutura produtiva do município de Barcarena, Pa-Brasil. 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Os movimentos feministas e de mulheres estiveram, ao longo do processo, reivindicando a política e disputando seus sentidos, sobretudo no que diz respeito à igualdade no mundo do trabalho e a autonomia econômica das mulheres, o que foi incorporado à institucionalização das políticas para as mulheres e para a igualdade de gênero, especialmente após a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República – SPM/PR. Esta pesquisa aborda a formação da agenda e a formulação da política de creches, no período de 2011-2014, por meio da política de creches do PAC-2 e do Brasil Carinhoso, trazendo uma análise crítica na perspectiva de gênero. Por meio de técnicas qualitativas de análise documental, buscou-se responder em que medida a formação da agenda e a formulação da política de creches nesse período esteve articulada aos objetivos de promoção da autonomia econômica das mulheres e igualdade de gênero no mundo do trabalho, incorporados aos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres - PNPMs. Além disso, investigou-se qual concepção ideológica das práticas sociais de cuidado foi central para a constituição da identidade das creches nesse período. Partiu-se da hipótese de que os compromissos com a ampliação da autonomia econômica das mulheres e da igualdade no mundo do trabalho não foram incorporados aos pressupostos ideológicos da política de creches como objetivos estratégicos, o que compromete a capacidade transformativa da ação estatal em relação às práticas sociais de cuidado vigentes. Os resultados encontrados em relação aos investimentos insuficientes, em face do déficit acumulado de acesso, e a abordagem do tema da jornada das creches - tanto em relação ao seu horário de funcionamento quanto em relação ao repasse de recursos do Brasil Carinhoso-, apontam nesse sentido. Palavras-chave: Creches, Políticas Públicas, Cuidado, Divisão Sexual do Trabalho Olhares de gênero sobre a política de creches no Brasil: 1 Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado Mariana Mazzini Marcondes2 Maria do Carmo Meirelles Toledo Cruz3 Patrícia da Silva Rodrigues4 1 Esse artigo foi elaborado partindo de Marcondes (2013a, 2013b); Cruz e Farah (2014a, 2014b), Cruz, Farah, Sugyama (2014) e Cruz (2015). Foram atualizados os dados, agregando as contribuições das co-autoras e colaboradoras, além de reflexões coletivamente construídas que, inclusive, estão sendo desenvolvidas no âmbito dos projetos de pesquisa para obtenção de título de doutora de Marcondes e Cruz. O cap. 1 foi escrito por Marcondes, com a colaboração de Cruz, Silva e Maria Camila Florêncio. O cap. 2 foi escrito por Marcondes e Cruz, com a colaboração de Silva e Florêncio. Os cap. 3 e 4 foram escritos por Marcondes, com a colaboração de Cruz, Silva e Florêncio. O cap. 5 foi escrito por Cruz (6.1.) e por Marcondes e Silva (6.2), com colaboração de Florêncio e, no caso do 6.1., de Catherine Rojas Merchán. O anexo foi organizado por Florêncio, partindo do levantamento de dados realizado por Marcondes (2013) e Cruz e Farah (2014a, 2014b), Cruz, Farah, Sugyama (2014) e Cruz (2015), atualizado e tabulado por Florêncio e Silva. As versões preliminares desse artigo contaram com contribuições e leitura crítica da Professora Marta Ferreira Santos Farah, pelo que agradecemos. 2 Formada em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestra em Política Social pela Universidade de Brasília -UnB e doutoranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas - Escola de Administração de Empresas de São Paulo- FGV-EAESP; Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento e Orçamento e Gestão- MPOG, atualmente coordenadora de Gestão de Participação da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão – Sempla, da Prefeitura de São Paulo. 3 Administradora, mestra em Administração e Planejamento Urbano e doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV- EAESP; Especialista em Políticas Públicas e técnica do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal- Cepam. 4 Cientista Social pela USP e pós-graduanda em “Relações entre Poder Legislativo e Democracia no Brasil” pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo; e assessora na Sempla.  Introdução A formação da agenda e a formulação da política de creches no Brasil esteve imersa, desde seus primórdios, em uma dinâmica política de múltiplas concepções, em que a demanda por creches foi reivindicada como resposta a problemas distintos, sendo igualmente diversos os sentidos assumidos por ela. Nesse contexto, as creches integraram a agenda das políticas de trabalho, assistência social, educação, igualdade de gênero e, em alguns períodos, de saúde. Foi nessa intersecção que se constituiu sua identidade, assim como as continuidades e rupturas dessa história. As mulheres - organizadas em movimentos coletivos e até mesmo individualmente- foram atrizes importantes das reivindicações por creches, especialmente a partir da década de 80. Isso não significa que a formulação dessa política tenha incorporado o repertório da luta pela autonomia econômica das mulheres como um de seus pressupostos ideológicos. Tampouco que uma compreensão comprometida com a igualdade de gênero tenha sido o alicerce para as decisões que sustentaram as reformulações da política de creches nesse processo. A Constituição Federal de 1988 - CF-88 foi determinante para a mudança no curso da política de creches no Brasil, na medida em que, atendendo às reivindicações de múltiplos movimentos organizados – e, dentre eles, os movimentos feministas e de mulheres-, as creches foram previstas como um direito universal das crianças à educação (art. 208, IV), mas também como um direito social de trabalhadores(as) urbanos e rurais de contarem com assistência gratuita a seus(as) filhos(as), na qualidade de pais, mães e responsáveis (art. 7º, XXV). A partir desse momento deflagrou-se a ação governamental de integrar as creches ao sistema educacional, tendo sido a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb (Emenda Constitucional – EC nº 53/2006, regulamentada pela Lei nº 11.494/2007) um dos marcos mais emblemáticos dessa trajetória. Tratou-se de um momento inédito na história da política de creches, em que ela tornou-se uma prioridade na agenda governamental brasileira (KINGDON, 2006), especialmente por meio de duas importantes iniciativas: a política de creches do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC-2 e o Brasil Carinhoso - BC. A política de creches do PAC-2 remete à criação, em 2007, do “Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil – Proinfância”. Com o objetivo de financiar a expansão da rede de creches e pré-escolas, bem como a aquisição de equipamentos, o Proinfância foi incluído, em 2010, na 2ª edição do PAC-2 (2011-2014). Em 2012, foi criado o BC, no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria - PBSM, com a finalidade de superar a extrema pobreza em todas as famílias com crianças de até seis anos, com a ampliação do acesso a creches e pré- escolas, além de serviços de saúde e aumento da renda (CRUZ; FARAH, 2014a, 2014b, CRUZ; FARAH, SUGIYAMA, 2014). No período mais recente, ocorreu a institucionalização da Política Nacional para as Mulheres no Governo Federal, com a criação, em 2003, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República – SPM/PR, com a missão de promover a igualdade entre mulheres e homens, por meio da articulação das políticas implementadas pelo Governo Federal em torno do compromisso do Estado brasileiro com a igualdade de 232 gênero. Com a edição de Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres – PNPMs, as creches foram incorporadas às ações para a promoção da autonomia econômica das mulheres e a igualdade no mundo do trabalho. Isso não significa, contudo, nos Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado termos propostos por Farah (2004), que houve ‘aderência’ dessa política à agenda de reivindicações dos movimentos de mulheres e feministas – ou, ainda, à agenda de políticas para a igualdade de gênero. Em que medida a formação da agenda e a formulação da política de creches nesse período significou uma resposta aos problemas e sentidos pautados pelos movimentos feministas e de mulheres e recepcionados em Planos e estratégias da Política para as Mulheres? A autonomia econômica e a igualdade de gênero no mundo do trabalho foram incorporadas aos pressupostos ideológicos dessa política? Qual concepção ideológica das práticas sociais de cuidado foi central para a constituição da identidade das creches, no contexto de integração ao sistema educacional, e de que forma a ação estatal contribuiu para a transformação ou para a reprodução dessas práticas sociais? São essas perguntas que orientaram esta pesquisa, cujo objetivo foi a produção de uma análise crítica, na perspectiva de gênero, da política de creche no Brasil, a partir das ações previstas no PAC-2 e BC. Partimos da hipótese de que os compromissos com a ampliação da autonomia econômica das mulheres e da igualdade no mundo do trabalho não foram incorporados aos pressupostos ideológicos da política de creches como objetivos estratégicos a serem perseguidos por essa Política, durante o período analisado. Ainda que a ação estatal relacionada a essa política tenha impactos positivos sobre as desigualdades de gênero, sua baixa aderência a esses compromissos contribuiu para a reprodução de padrões familistas e maternalistas, que formam as bases de sustentação das práticas sociais de cuidado. A opção pela política de creches do PAC-2 e do BC não significa que sejam as únicas iniciativas estatais relevantes, mas que identificamos nelas as duas iniciativas mais representativas da política de creches no período analisado5. O recorte da nossa análise em relação a essas iniciativas não contempla a totalidade do ciclo de políticas públicas, mas enfoca a formação da agenda e a formulação da política. Por formação da agenda entendemos, nos termos propostos por Kingdon (2006, p. 225), como “a lista de temas ou problemas que são alvo, em dado momento, de séria atenção, tanto por parte das autoridades governamentais, como de pessoas fora do governo, mas estritamente associada às autoridades”. Por formulação compreendemos o “processo de gerar um conjunto de escolhas de políticas plausíveis para resolver problemas. Nessa fase do processo, uma gama de potenciais escolhas de políticas é identificada e uma avaliação preliminar da sua viabilidade é oferecida” (WU et al, 2014). Para realizar nossa pesquisa empregamos técnicas qualitativas de análise documental, selecionando os documentos que permitiram conhecer o quadro normativo e institucional da política, o que Muller e Surel (2002, p. 14) classificam como o “conjunto de medidas concretas que constituem a substância ‘visível’ da política” – tais como normativos, documentos de referência da política, consultas ao Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão – e- SIC (Anexo 1). Para contextualizarmos a análise utilizamos, ainda, de uma amostra representativa de documentos produzidos durante o período de transição das creches e pré-escolas para o sistema educacional, além de pareceres e resoluções emitidos pelo Conselho Nacional de Educação – CNE e atas das reuniões do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, ao que se somaram os documentos de referência da formulação da 5 Vale destacar o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - PARFOR e o Programa de Formação Inicial de Professores em Exercício na Educação Infantil – Proinfantil. Há, ainda, outros programas e ações que, apesar de não serem apenas para a educação infantil, apresentam 233 impacto positivo, como os Programas Nacional de Alimentação Escolar - PNAE, o Dinheiro Direto na Escola - PDDE e o Saúde na Escola. Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: Política Nacional para as Mulheres. Por fim, foram utilizados dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, além do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea et al, 2012)6. Esse artigo está organizado em seis capítulos, além de introdução e conclusão. No primeiro capítulo, abordamos o marco teórico da pesquisa. No segundo, o histórico da formação da agenda e formulação da política de creches. No terceiro, a abordagem do cuidado na política de creches, no período analisado. A política de creches do PAC-2 e o Brasil Carinhoso- BC são temas do quarto e do quinto capítulos, respectivamente. Esse estudo integra o projeto de pesquisa “Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica na Perspectiva das Mulheres Brasileiras”, realizado pelo SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia, em parceria com a Rede de Desenvolvimento Humano - REDEH e o Ipea, com financiamento do International Development Research Centre – IDRC. A pesquisa tem como objetivo geral investigar a inserção e as condições de trabalho das mulheres no mercado informal e as possibilidades e limites para a construção de sua autonomia econômica. O “trabalho”, enquanto conceito, exerceu e exerce enorme centralidade nos estudos econômicos e políticos modernos e contemporâneos, nos mais diversos matizes ideológicos. Para Hirata e Zarifian (2009), há uma dupla definição de trabalho, nos termos propostos pela economia clássica. A primeira compreende o trabalho como um atributo genérico da ação humana, em que “O Homem”, utilizando de sua força, atua sobre a natureza, transformando-a. A segunda, enfoca as condições sociais particulares em que esse trabalho se realiza, dando destaque aos elementos intersubjetivos. Os (as) autores (as) destacam, contudo, que, ainda que a segunda compreensão evidencie as especificidades das trocas envolvidas na relação social de trabalho, essa problematização é limitada, na medida em que encerra uma visão assexuada do trabalho, em que o sujeito universal é “O Homem”, em uma relação de equivalência com “A Humanidade”. Esse foi o ponto de partida das críticas feministas ao conceito de “trabalho”, especialmente na perspectiva da divisão sexual do trabalho. Como sintetizam Ávila e Ferreira (2012, p. 15): “No século XX, a partir dos anos 1970, o feminismo contemporâneo revelou, analisou e teorizou sobre essa divisão, produzindo avanços na teoria crítica e colocando em questão o conceito de trabalho que ao longo do tempo foi referido apenas ao trabalho produtivo (...)”. Esse questionamento permitiu evidenciar que o conceito de trabalho, por não ser generificado, desnuda apenas as opressões estruturais de classe, e não as de gênero ou de raça, igualmente estruturantes das desigualdades sociais. Buscava-se reconhecer que - mesmo para o pensamento feminista que partia de bases teóricas e metodológicas marxistas- era necessária uma correção, para comportar as análises críticas feministas do mundo do trabalho, integrando à categoria “trabalho” àquilo que as mulheres faziam (HARAWAY, 2013). A divisão sexual do trabalho demarca, estruturalmente, as trajetórias de gênero, delimitando o espaço produtivo como o habitat natural da masculinidade e o espaço reprodutivo, como o da feminidade. Essas duas esferas são regidas, segundo Kergoat (2009), pelos princípios da separação e da hierarquia, delimitando uma separação material, mas também simbólica, do mundo do trabalho, segundo as relações sociais de gênero. Essa separação é, também, socialmente hierarquizada, cabendo à produção social a particularidade de criar valor, enquanto a reprodução social é um “não-trabalho”. 234 6 Os dados utilizados pelo IBGE, assim como Ipea et al (2012) tem como base a Pesquisa Na- cional por Amostra de Domicílios – PNAD, sendo que, em relação à essa última, utilizamos os dados disponibilizados em sua plataforma digital (http://www.ipea.gov.br/retrato). Capítulo 1 - As práticas sociais de cuidado na perspectiva da divisão sexual do trabalho: entre as necessidades práticas e estratégicas de gênero O cuidar de pessoas e do ambiente doméstico configurou-se, material e simbolicamente, como uma manifestação natural da essência do feminino. Como destaca Ávila (2011), a própria noção do feminino, em sua representação genérica, constitui- se em uma relação com o trabalho reprodutivo. Isso significa que essa dualidade não é apenas material, mas ideológica, e a separação e a hierarquização dos trabalhos produtivos e reprodutivos não se assentam apenas sobre distintas bases materiais, mas há racionalidades diferentes, inclusive da constituição das subjetividades de gênero. Enquanto o trabalho produtivo concretiza-se através de processos de objetificação, o trabalho doméstico é seu oposto, entrelaçando-se com relações de afeto, especialmente maternais e conjugais (HIRATA E ZARIFIAN, 2009). Embora a reprodução social possa assumir diferentes conformações, coube ao trabalho doméstico não-remunerado a forma histórica particular do trabalho de reprodução social no modo de produção capitalista, sendo o espaço doméstico e familiar o lócus de exploração dessa forma de trabalho, realizado, sobretudo, pelas mulheres (KERGOAT, 2009). No capitalismo, a unidade doméstica tornou-se o espaço de sociabilidade da família e de organização das condições de reprodução das condições de vida, deixando de ser o equivalente à unidade de produção econômica, cuja centralidade foi deslocada para a esfera pública (GÓMEZ, 2010). As explorações do trabalho assalariado e do trabalho reprodutivo são, contudo, indissociáveis, gerando o trabalho de reprodução social contribuições inestimáveis à extração da mais-valia, na medida em que cria as condições para a manutenção desta valiosa mercadoria: a mão de obra proletária (MARCONDES, 2013). A contemporaneidade complexificou o mundo do trabalho, especialmente a partir das décadas de 60 e 70, em que se colocou em marcha um amplo processo de mudança na realidade ocidental, em que os movimentos feministas e de mulheres pautaram um conjunto de reivindicações por mudanças no Estado e na sociedade, inclusive no cotidiano familiar e nas políticas relacionadas a ele. Foi como resultado dessas transformações que as mulheres consolidaram a ocupação o espaço produtivo e assalariado, significando uma progressiva superação daquilo que Ávila (2011, p. 48) denomina como “discurso ideológico de sustentação da desvalorização da participação das mulheres no mercado de trabalho”, como se elas estivessem fora do lugar. E isso não significa que as mulheres não estivessem presentes nesse espaço, mas que essa presença era compreendida como desviante ou temporária. A consolidação da trajetória feminina da casa para o espaço público não teve como correspondência a trajetória masculina do espaço público para o doméstico (SORJ; FONTES e MACHADO, 2007), o que resultou em um contexto de dupla presença (CARRASQUER OTO, 2009), em que a nova divisão sexual do trabalho (HIRATA e KERGOAT, 2007) manifesta-se através da sobrecarga, jornadas flexíveis e parciais e delegação do trabalho doméstico a outras mulheres. Além disso, a inserção feminina no mercado de trabalho ocorreu, sobretudo, por meio das posições laborais que envolvem o cuidado (BANDEIRA, 2010), evidenciando que a divisão sexual do trabalho também demarca as práticas de trabalho em cada um dos espaços do mundo do trabalho (ÁVILA e FERREIRA, 2012), e não apenas na relação 235 entre produção e reprodução. A exteriorização progressiva de parte da provisão do Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: cuidado do doméstico para público, por meio de políticas sociais7, ocorreu, pari passu, com a integração das mulheres ao mercado de trabalho, cabendo a elas as profissões que suportam o funcionamento desses serviços, como é o caso da assistência social e a educação, esferas de políticas públicas a que as creches estiveram conectadas, desde o princípio (McINTOSH, 2007). É nesse contexto que os estudos sobre a prática social de cuidado e a divisão sexual do trabalho colocam-se como necessários para a agenda de pesquisa feminista. A esfera da reprodução social traz implícita a noção de cuidado. Mas é necessário, contudo, compreendê-lo enquanto um objeto e um conceito autônomos, especialmente considerando o potencial para as análises das políticas sociais, em geral, e da política de infância, em particular (BATTHYANY, 2010). O cuidado, como destaca Tronto (1997), está muito presente na nossa comunicação cotidiana, o que desperta um conjunto minimamente comum e compartilhado de sentidos a ele atribuído, embora sua abordagem seja bastante distinta conforme a área de conhecimento em que ocorra seu enquadramento teórico. O cuidado é, portanto, polissêmico, e esse seu atributo coloca o dever de explicitar a definição que adotamos, o que fazemos partindo de MARCONDES (2013, p. 21), para quem o cuidado é: Uma prática social que, ancorada na divisão sexual do trabalho, tem como objetivo atender às necessidades humanas concretas, mas também emocionais e psicológicas, pressupondo a interação face a face entre quem cuida e quem é cuidado, em uma relação de interdependência. Trata-se de um trabalho essencial para a reprodução social da vida humana, o que pressupõe a sua compreensão como inscrito na divisão sexual do trabalho. A definição busca salientar, nos termos destacados por Tronto (2009), a relação direta entre cuidado, necessidades e sobrevivência humana, o que vai na contramão do desprestígio que cerca o trabalho de cuidado. A interdependência significa que não se trata de uma relação estabelecida entre dois sujeitos isolados - um autônomo e outro dependente-, mas sim de uma relação contextualizada socialmente em uma trama de necessidades em que todos demandam cuidados em alguma medida (TRONTO, 2009), em interações inscritas em relações de poder e de desigualdade. Afirmar que o cuidado é uma prática social significa reconhecer na forma de sua provisão um nível de institucionalização, em que se articulam práticas concretas – formas de intervenção normalizadoras – com um conjunto articulado de saberes (LUZ, 1979). Essa prática social é modulada pela divisão sexual do trabalho, uma vez que o cuidado integra a esfera da reprodução social, mas abarca as relações em que há uma interação face a face, como destaca Bubeck (2002), diferenciando-se, portanto, dos afazeres domésticos ou atividades de suporte ao cuidado, como a limpeza da casa (BANDEIRA, 2010). Além disso, ao assumir o cuidado como uma prática social estabelece-se um diálogo, também, com Kittay (2009), para quem o cuidado é um conceito multifacetado: é trabalho, atitude, virtude e ética. Até porque as necessidades a serem atendidas pelo cuidado são de bens e serviços, mas de emoções, afetos e relações também (CARRASCO, 2001). As práticas sociais de cuidado delineiam-se, como destacado por Marcondes (2013), através das inter-relações entre os níveis microssocial (práticas intrafamiliares) e macrossocial (repartição de responsabilidades entre Estado, família e mercado) para a 236 7 Nos termos propostos por Pereira-Pereira (2009), compreendemos “política social” como espécie do gênero “políticas públicas”. Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado provisão do bem-estar (AGUIRRE, 2011). O familismo é um atributo fundamental dessa prática, sendo a família a instituição provedora do cuidado, articulando-se, através dela, uma rede de mulheres (mães, filhas, avós, vizinhas etc.) que responde pelo cuidado, por meio de famílias estendidas, vizinhança e ajuda mútua (Idem). O familismo é, portanto, marcado pela maternagem, uma vez que as construções culturais do feminino são profundamente vinculadas à maternidade, o que torna o cuidado uma expressão da essência feminina, desresponsabilizando-se completamente os homens por esse trabalho (MOLYNEUX, 2006). Políticas públicas que corresponsabilizem o Estado, “desfamilizando” (MIOTO, 2009) a provisão do cuidado é uma preocupação presente tanto nas reivindicações calcadas nos interesses práticos de gênero, através das quais se reivindicam medidas de alívio ao cotidiano de dupla jornada das mulheres, quanto nos interesses estratégicos, como o enfrentamento à divisão sexual do trabalho e ao fomento às novas práticas sociais de cuidado. Nos termos propostos por Molyneux (2003)8, os interesses estratégicos decorrem da subordinação das mulheres nas relações de gênero e da formulação de uma alternativa de maior igualdade, questionando a posição socialmente construída para as mulheres e projetando um ideal de emancipação. Os interesses práticos, por sua vez, decorrem das condições concretas das mulheres nas relações de gênero. É a politização dos interesses práticos na transformação em interesses estratégicos que se constitui na base fundamental para a luta feminista. 8 Para Molyneux (2003) não é possível falar em interesse das mulheres, e sim de gênero, uma vez que as mulheres não são homogêneas e as condições de classe, raça e identidade de gênero, dentre 237 outros elementos articuladores das desigualdades, diferenciam as necessidades e interesses dessas mulheres, impondo, inclusive, conflito de interesses entre elas. Capítulo 2 - O histórico da Política de Creches: formação de agenda e formulação em uma interseção de sentidos A história da política de creches, enquanto uma política social, remete ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social, em que o Estado assumiu atribuições de mediação social e política (ESPING-ANDERSEN, 1991). No caso brasileiro, as políticas de bem-estar foram forjadas no processo de modernização conservadora (BEHRING e BOSCHETTI, 2006) da Era Vargas, através da legislação trabalhista. Foi nesse contexto que a política de creches entrou na agenda governamental. Segundo Marcondes (2013), a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT (Decreto- Lei nº 5.452/43) previu as creches como uma responsabilidade do empregador, mas também das instituições públicas9. O problema político em questão era o de inserção no mercado de trabalho das mães com filhos(as) que não tivessem onde ficar (ROSEMBERG, 1984), mas, embora as creches estivessem inseridas na política de trabalho, a lógica da divisão sexual não era problematizada, além de só assegurar os(as) trabalhadores(as) inseridos(as) em relações formais de trabalho. A formulação da política, nesse contexto, responsabilizava, em primeiro lugar, as empresas, prevendo uma responsabilidade subsidiária do Estado. A falta de fiscalização e a existência de sanções apenas simbólicas (ROSEMBERG, 1984) resultaram na baixa efetividade dessa política nesse período. Durante a Ditadura Militar, o processo de incorporação da política de creches à agenda governamental sofreu nova inflexão, dessa vez deslocando-se para a fronteira entre a assistência social e a política de trabalho, com prevalência daquela. Isso ocorreu através da criação, em 1977, do Projeto Casulo, implementado pela Legião Brasileira de Assistência – LBA (ROSEMBERG, 1984). A ação estatal buscou aumentar o número de bebês e crianças pequenas10 atendidas, combinando a redução de custos, incentivos à utilização de locais pré-existentes e o estimulo a maior participação da família, especialmente das mães em esquema de rodízio e da “mãe crecheira” (TATAGIBA, 2011). Tratava-se, portanto, de uma política de apoio precário às mães trabalhadoras empobrecidas, que não estivessem amparadas pelas garantia de proteções sociais previstas na CLT. O saldo da expansão da política de creches nos dois períodos foi uma combinação de superposição, fragmentação e insuficiência de ações estatais (LUZ, 2006)11. Apenas as classes média e alta contavam com uma rede de serviços mais consolidada, por meio de instituições privadas (CAMPOS, 1999). Mas, mesmo nesses casos, as creches não se inscreviam no universo dos direitos. A conjuntura política começou a mudar nas décadas de 70 e 80, no contexto da redemocratização, com o ressurgimento de atores coletivos, como os movimentos populares, sindicais e estudantis, dentre outros. Esteve em jogo, nesse período, a democratização de processos decisórios, mas também a inclusão de novos grupos ou segmentos como 9 Estabelecimentos com mais de 30 mulheres empregadas deveriam ter local apropriado para guarda de seus filhos durante a amamentação (art. 389, CLT, § 1º). Além disso, o texto original previa que que as instituições de Previdência Social deveriam construir e manter creches em vilas operárias com mais de cem casas e nos centros residenciais de maior densidade de segurados, podendo, ainda, financiar as creches construídas por empregadores ou instituições particulares. Essa previsão, que constava nos arts. 397 e 398, foi posteriormente revogada pelo Decreto-Lei nº 229/967. 10 Ao longo do artigo, será adotada a distinção entre bebês (crianças de até um ano e meio), crianças pequenas (de um ano e meio até 3 anos) e crianças (acima de 3 anos) conforme BRASIL, MEC (2009b). 238 11 Cruz (2015) destaca algumas iniciativas municipais que, a partir da década de 1970, foram pioneiras na inserção das creches na educação infantil, como Piracicaba/SP, Lages/PR e Boa Esperança /ES. Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado beneficiários de políticas públicas (FARAH, 2004). As mulheres eram protagonistas em diversas dessas trincheiras, o que levou Souza-Lobo (2011) a afirmar que os principais atores do movimento popular eram, de fato, atrizes. As mulheres atuavam na denúncia das condições de injustiça social no Brasil, mas também pautavam reivindicações específicas dos interesses práticos e estratégicos de gênero, o que articulou movimentos feministas e de mulheres em torno de temas como trabalho, família e saúde, tendo sido apresentada uma plataforma reivindicativa à Constituinte denominada “Carta das Mulheres Brasileiras”, articulada em torno da palavra de ordem “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher” (FARAH, 2004). O Conselho Nacional de Direito da Mulher – CNDM foi uma importante instância de articulação e mobilização e, no caso das creches, lançou a campanha “Filho não é só da mãe” (THURLER e BANDEIRA, 2010). A CF-88 inscreveu a política de creches na dimensão dos direitos, como uma resposta às reivindicações políticas sobre o tema, significando, portanto, um divisor de águas na constituição de sua identidade. As creches e pré-escolas foram afirmadas como um direito social de trabalhadores(as) urbanos e rurais (art. 7º, XXV), mas também como direito de crianças de até cinco anos à educação (art. 208, IV)12. A CF-88 trouxe um novo paradigma, em que se conferiu “normatividade” à educação infantil que, anteriormente, não dispunha de instrumentos legais para a sua efetiva garantia (GEMAQUE, 2011). Coube à legislação infraconstutucional dar concretude aos mandamentos constitucionais e escrever uma narrativa para as políticas públicas de ampliação de creches e pré-escolas, integrando esses equipamentos à esfera educacional. Foram fundamentais, nessa trajetória, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n° 8.069/1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei n° 9.394/1996) e o Plano Nacional de Educação – PNE 2001-2010 (Lei nº 10.172/2001). O ECA explicitou uma nova concepção da infância e da adolescência, centrada na noção de direitos, prevendo que o atendimento em creches é dever do Estado, definindo ações de responsabilidade em caso de omissão ou oferta irregular (art. 54, IV, § 2º) (CRUZ, FARAH, SUGIYAMA, 2014a). A LDB, por sua vez, afirmou a integração das creches e pré-escolas ao ciclo educacional, enquanto primeira etapa da educação básica13. As creches deveriam atender bebês e crianças pequenas de até três anos de idade (art. 30, I) e, à pré-escola, as crianças de 4 e 5 anos de idade (art. 30, II). A educação infantil passou a ser prevista, expressamente, como atribuição municipal14, além de reafirmar- se e detalhar-se o que estava previsto na CF-88 em relação à prestação de serviços de educação infantil por entidades privadas, tanto em relação às instituições sem fins lucrativos (entidades comunitárias, filantrópicas e confessionais), quanto àquelas com finalidade lucrativa15. 12 O texto original previa até 6 anos, mas a EC n° 53/2006 alterou para zero a cinco anos. Vide: CRUZ, FARAH, 2014b; CRUZ, FARAH, 2014c. 13 A responsabilidade municipal não foi definida constitucionalmente, em seu texto original, e sim através da EC n° 14/96, que instituiu o  Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - Fundef e estabeleceu que caberia aos municípios dedicarem-se ao ensino fundamental e à educação infantil, em regime de colaboração com a União e Estados (CRUZ, FARAH, SUGIYAMA, 2014). 14 A LDB previu o ensino fundamental como etapa prioritária para a ação municipal, devendo a União e os estados apoiarem os municípios, técnica e financeiramente. 15 No caso das creches privadas com finalidade lucrativa o serviço é pago diretamente por quem dele usufrui, o que não impede que possam gozar de isenções e subsídios tributários e fiscais. Já no caso das instituições sem fins lucrativos, o Poder Público pode com elas celebrar convênios 239 para garantir a oferta indireta de vagas, devendo a oferta do serviço ser gratuita, tal qual nas creches públicas (CRUZ, FARAH, SUGYAMA, 2014). Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: Embora na LDB tenha sido previsto o dever do Estado pelo oferecimento de vagas em creches, com gratuidade assegurada, a frequência pelas crianças pequenas e bebês foi mantida como optativa, cabendo a decisão sobre a matrícula a pais, mães ou responsáveis (CRUZ, FARAH, SUGYAMA, 2014). Em relação à pré-escola, a EC n° 59/2009 previu a sua obrigatoriedade, a partir de 2016, o que significa que, a partir de sua vigência, a única etapa de ensino não obrigatório no Brasil será a creche. Os PNEs foram, igualmente, fundamentais para a consolidação da política de creches no sistema educacional. O PNE 2001-2010 (Lei n° 10.172/2001) previu explicitamente as creches, com metas específicas de expansão e orientações para os padrões mínimos de infraestrutura e formação de profissionais para a educação infantil (CRUZ, FARAH, 2014b; MARCONDES, 2013). Em relação à ampliação da cobertura, a meta de atendimento era de 50% das crianças de zero a três anos. Além disso, o Plano previu que os municípios deveriam priorizar a educação infantil para a aplicação dos 10% dos recursos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino não reservados para o ensino fundamental (CRUZ, FARAH, SUGYAMA, 2014a). O PNE 2014 – 2024 (Lei n°13.005/2014) manteve a meta de ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até três anos, até 2024. A meta de expansão da cobertura prevista nos PNEs, contudo, está longe de ser alcançada, ainda que tenha havido um avanço da ampliação das creches para as crianças de 0 a 3 anos durante a vigência de ambos os Planos, como podemos ver abaixo. Gráfico 1- Proporção de crianças de 0 a 3 anos de idade que frequentam escola ou creches, por situação de pobreza16 - Brasil, 1996 a 2012 Fonte: Ipea et al, 2012 / Elaboração: Silva Se utilizarmos como linha de base o ano de 1996 – em que foi instituído o Fundef -, podemos observar que a cobertura de crianças de até 3 anos era de 7,4%, enquanto em 2001 – início de vigência do PNE (2001-2010) – as creches ou escolas atendiam 10,5% de bebês e crianças pequenas, alcançando 20,7% em 2011, após o fim da vigência do Plano, o que significa um aumento de cerca de 10% em dez anos, o que é bastante distante 16 Para o Ipea et al (2012) são: extremamente pobres – renda domiciliar per capita de até R$ 75; Pobres – renda domiciliar per capita maior ou igual a R$ 75 e menor que R$ 150; vulneráveis – renda 240 domiciliar per capita maior ou igual a R$ 150 e menor que R$622; não pobres – renda domiciliar per capita maior ou igual a R$ 622 (um salário mínimo de 2012). Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado da meta inicialmente prevista (Ipea et al, 2012). Se considerarmos as desigualdades de acesso a questão é ainda mais alarmante. Enquanto a cobertura das crianças de 0 a 3 anos extremamente pobres passou, de 2001 a 2010, de 6,9% para 12,5%, a das crianças não pobres variou de 23,5% para 33,9%. Essa diferença também deve ser considerada em relação a outras formas de desigualdades, como raça/cor e urbano-rural17. O padrão de financiamento da educação infantil era um dos gargalos para o processo de ampliação de vagas (BRASIL, MEC, 2009). Durante o governo Fernando Henrique Cardoso houve uma opção política por priorizar o ensino fundamental, através da instituição do Fundef (EC n°14/1996 e Lei n° 9.424/1996). Criado como um fundo de natureza contábil e vigente durante o período de 1998 a 2006, sua inovação consistiu na mudança da estrutura de financiamento do ensino fundamental público, que passou a vincular 15% dos recursos da educação a essa etapa de ensino, com distribuição automática de recursos, de acordo com o número de alunos(as) matriculados(as) em cada rede de ensino fundamental (CARVALHO, 2014)18. É importante destacar que o Fundo não abarcava a educação infantil e o ensino médio. Durante esse período, as creches eram cofinanciadas pela assistência social, por meio do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, e pela educação, por meio de recursos municipais. Em 2005, das 16.231 de creches e pré-escolas que recebiam recurso do FNAS e estavam cadastradas no Programa de Proteção Básica/Infância, 10.414 também estavam cadastradas no Censo Escolar, o que significa que 64,2% das entidades identificadas como educacionais recebiam recursos da assistência (BRASIL, MDS, 2005). Outro dado relevante é que, dessas 10.414 instituições, apenas 1.985 estavam registradas como instituições privadas - menos de 20% do total-, sendo que 8.300 unidades eram municipais, o que representava 80,3% das instituições financiadas pela assistência (BRASIL, MDS, 2005). Em 2004 colocou-se em marcha a reorganização da assistência social, com a instituição da Política Nacional de Assistência Social – PNAS e do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Nesse momento, foi instituído o Piso Básico da Transição, através da Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS (CNAS nº 130/2005), que previa o cofinanciamento dos serviços de creches e pré-escolas apenas em caráter transitório (BRASIL, CNAS, Ata da 155ª reunião ordinária realizada em fevereiro de 2008). Nesse contexto foi criado, em 2005, o Grupo de Trabalho Interministerial –GTI (Portaria Interministerial nº 3.219/2005), com o objetivo de elaborar uma proposta de transferência das ações de apoio financeiro ao atendimento das crianças de 0 a 6 anos em creches e pré-escolas da assistência social para a educação. O GTI era integrado pelo Ministério do Desenvolvimento Social - MDS, Ministério da Educação - MEC e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG, e era instância de diálogo com o CNAS, CNE e Comissão Intergestores Tripartite - CIT da Assistência Social (MARCONDES, 2013). Além disso, o MEC passou a produzir uma série de diagnósticos e documentos de referência para a transição, sobretudo a partir de 2006, em que se afirmava que a 17 No meio rural há “desigualdade de acesso e a praticamente inexistência de instituições no caso do segmento de 0 a 3 anos de idade. Enquanto que na população infantil urbana a taxa de frequência à creche, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD 2008, era de 20,52%, nos territórios rurais era de 6,83%”. Com relação às crianças assentadas, em 2005, “0,1% frequentam creche familiar ou informal; 0,8% frequentam creche organizada como escola” (BRASIL, 2011, p. 4) 18 Com essa Emenda, 60% desses recursos (o que representa 15% da arrecadação global de 241 estados e municípios) ficavam reservados ao ensino fundamental e os municípios poderiam utilizar os 10% restantes na educação infantil (CRUZ, FARAH, 2014b; CRUZ, FARAH, SUGYAMA, 2014). Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: integração de creches e pré-escolas ao sistema escolar pressupunha compartilhar com esse de seus valores comuns, respeitando as especificidades do cuidar e do educar de bebês, crianças pequenas e crianças (BRASIL, MEC, 2006b)19. O passo mais importante foi dado, contudo, com a criação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica- Fundeb (EC nº 53/2006 e Lei nº 11.494/2007). À semelhança do Fundef, foi instituído como um fundo de natureza contábil, composto por parcelas financeiras de recursos federais e por recursos provenientes de impostos e de transferências de todos os entes federativos, com a diferença de ser destinado ao financiamento da educação básica (BRASIL, MEC, 2008). Sua principal finalidade é a melhoria da remuneração do magistério dessa etapa educacional (MARCONDES, 2013), haja vista que é obrigatória a utilização de, no mínimo, 60% do total para a remuneração desses profissionais (art. 22, caput)20. Outra importante inovação prevista no Fundeb foi a equalização nacional da educação, através do apoio da União aos estados e municípios que não alcancem, com a própria arrecadação, o valor mínimo nacional estabelecido por aluno (CRUZ, FARAH, SUGIYAMA, 2014). A inclusão das creches no Fundeb não ocorreu, contudo, por iniciativa do Executivo, já que o projeto original excluía as creches, o que chegou a ser apontado pelo Relatório de Avaliação da Educação Infantil (BRASIL, MEC, 2009) como um limitador dos efeitos positivos que o Fundo poderia ter sobre a ampliação do acesso a creches e pré- escolas. A Câmara dos Deputados emendou o projeto original, incluindo as creches, em decorrência de uma intensa mobilização social em que se articularam movimentos feministas e de mulheres, frentes de luta pela educação e de direito pelas crianças e adolescentes, sendo ilustrativo o movimento “Fraldas Pintadas” e a realização de “carrinhatas” no Congresso Nacional21. Com a instituição do Fundeb catalisou-se o processo de integração das creches ao financiamento do sistema educacional, sendo que a sua criação gerou um forte consenso no campo da assistência social, que já defendia sua ampliação para a cobertura de toda a educação infantil, embora questionasse o eventual deslocamento de recursos da assistência social para a educação (BRASIL, CNAS, Ata da 129ª reunião ordinária realizada em setembro de 2005). Em 201022, oficializou-se a transição plena, não sendo mais permitido financiar a rede de educação infantil com recursos do Piso Básico de Transição, que foi extinto (MARCONDES, 2013) 23. Durante esse período foi criada, no âmbito federal24, a SPM/PR, como resultado da luta das mulheres nas mais diversas frentes (internacionais, nacionais e locais). Viabilizou-se, assim, a construção de uma agenda política governamental para a igualdade de gênero, partindo de uma plataforma de reivindicação de políticas públicas dos movimentos feministas e de mulheres, em diálogo com o previsto na Conferência Mundial sobre a Mulher –Beijing (1995) (FARAH, 2004). A SPM/PR assumiu a missão 19 Foi essencial também a instituição da Lei nº 11.114/2005, que tornou obrigatória a matrícula no ensino fundamental aos seis anos de idade e, ainda, a Lei nº 11.274/2006, que instituiu o ensino fundamental de nove anos. Assim, as crianças de seis anos migraram da educação infantil para o ensino fundamental, possibilitando a abertura de novas vagas na pré-escola e na creche (CRUZ, FARAH, SUGIYAMA, 2014) 20 Abrange docentes, responsáveis pela direção/administração escolar, planejamento, inspeção, supervisão, orientação educacional e coordenação pedagógica (art. 22, II). 21 Vide: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/73782.html. Consulta em: fev. 2015. 22 Vide:http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/assistencia-social/psb- protecao-especial-basica/psb-protecao-especial-basica/pbt-extincao 23 Resposta do e-SIC realizada ao Ministério de Desenvolvimento Social –MDS em 30 de novembro de 2012. 242 24 No âmbito subnacional há registros de instituição, em São Paulo, do Conselho Estadual da Condição Feminina, em 1983 (FARAH, 2004). Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado de concretizar a transversalidade de gênero, que se consubstancia na articulação e integração de ações das demais áreas de governo, e, sobretudo, na incorporação de um questionamento permanente a respeito do compromisso das políticas públicas com a superação das desigualdades, no que diz respeito à formulação, implementação, monitoramento e avaliação (BANDEIRA, 2005; PAPA, 2012). Dessa forma, nenhuma política pública ou prática de gestão poderia furtar-se a responder a pergunta de qual é sua contribuição para a construção da igualdade, o que inclui a política de creches. Em relação à igualdade de gênero no mundo do trabalho, a agenda da política para as mulheres enfatizou a igualdade entre mulheres e homens no mercado de trabalho, mas também destacou a valorização do trabalho reprodutivo e a ampliação de equipamentos sociais, como creches, como meio para disponibilizar tempo livre para as mulheres. Esse diálogo entre reivindicações de movimentos feministas e de mulheres e consolidação da Política para as Mulheres travou-se, especialmente, através das Conferências Nacionais e do CNDM. Com efeito, os PNPMs, principal instrumento para operacionalizar a transversalidade de gênero, estruturaram-se como respostas às demandas apresentadas nas Conferências Nacionais25, cabendo ao Conselho sua articulação e monitoramento junto à SPM/PR. O I PNPM (2004-2008) previu um Capítulo dedicado à “Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania” que, apesar de recepcionar o diagnóstico de desigualdade de gênero no mundo do trabalho, não incorporava os equipamentos sociais de cuidado entre suas prioridades, embora o apoio a equipamentos sociais, tais como creches, para facilitar a inserção e permanência das mulheres no mercado de trabalho, fosse uma das ações desse Capítulo. Além disso, as creches apareciam no Capítulo “Educação Inclusiva e não sexista” (BRASIL, SPM, 2004). Esse enquadramento da problemática sinaliza que o tema das creches e a igualdade de gênero não estavam no centro da agenda da Política Nacional para as Mulheres26, que esteve, durante o período, mais focada no enfrentamento à violência contra as mulheres e à promoção de direitos sexuais e reprodutivos, inclusive em consonância com os Tratados e Convenções Internacionais27. O II PNPM (2008-2011) alterou essa abordagem, conferindo-lhe um sentido mais próximo à agenda do feminismo e conferindo-lhe maior prioridade. O Capítulo I - “Autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social” previu, como um de seus objetivos específicos “Promover a valorização do trabalho doméstico não-remunerado e contribuir para a superação da atual divisão sexual do trabalho”, trazendo como prioridade “Promover a oferta de equipamentos sociais que contribuam para ampliar o tempo disponível das mulheres”, incluindo metas e ações específicas para a expansão das creches (BRASIL, SPM, 2008). O mesmo sentido foi recepcionado pelo atual PNPM (2013-2015), que avançou no refino do diagnóstico e da incorporação das creches à agenda da política para as mulheres, ao definir como objetivo específico “Promover políticas que visem o compartilhamento das responsabilidades domésticas 25 As conferências nacionais ocorreram em 2004, 2007 e 2011. 26 O que não significa que a reivindicação pelos movimentos feministas e de mulheres não estivesse presente nas Conferências Nacionais desde a primeira edição. No levantamento realizado por Florêncio e Silva, as creches aparecem nos anais das 3 conferências e, no caso da I CNPM, consta como uma das diretrizes gerais. 27 Essa hipótese não foi, contudo, exaustivamente testada pelas pesquisadoras. Entretanto, em consulta realizada por Florêncio ao relatório Internacional sobre População e Desenvolvimento de Cairo (1994) não foi encontrada qualquer menção a creche; a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher de Beijing (1995) a menção a creche aparece em um emaranhado de demandas no objetivo 180, alínea b, no eixo “F Promover a harmonização do trabalho e das 243 responsabilidades familiares, para as mulheres e os homens” (BEIJING, 1995). Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: e que contribuam para a superação da divisão sexual do trabalho”. Dentre as linhas de ação, consta a “Ampliação da oferta de equipamentos públicos e de políticas que favoreçam o aumento do tempo disponível das mulheres, promovendo a sua autonomia, inclusive para a sua inserção no mercado de trabalho” (BRASIL, SPM, 2013). Esse processo de consolidação da política de creches na agenda de política para as mulheres significa que a primeira, ao ser incorporada à segunda, deveria ter seu sentido revisitado para atender os comandos que permearam os Planos Nacionais, especialmente o II PNPM e o atual, que coexistiram com a política de creches do PAC-2 e o Brasil Carinhoso. 244 Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado O cuidado é polissêmico e, a depender de como é abordado politicamente, pode ou não incorporar as críticas feministas à política de creches e, por conseguinte, contribuir para promover novas práticas sociais de cuidado ou reproduzir práticas tradicionais. Isso significa que a atuação estatal em relação às creches e ao enfrentamento à divisão sexual do trabalho depende, em grande medida, da compreensão ideológica que orienta a formação da agenda e a formulação daquela política. A integração das creches à agenda política da educação foi acompanhada de um profícuo processo de construção de seu repertório identitário e o tema do cuidado esteve em pauta. Em 2009, com a elaboração da Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o tema do cuidado foi, inclusive, abordado conceitualmente, afirmando- se que (BRASIL, Parecer CNE/Câmara de Educação Básica - CEB nº 20/2009, p. 10): A dimensão do cuidado, no seu caráter ético, é assim orientada pela perspectiva de promoção da qualidade e sustentabilidade da vida e pelo princípio do direito e da proteção integral da criança. O cuidado, compreendido na sua dimensão necessariamente humana de lidar com questões de intimidade e afetividade, é característica não apenas da Educação Infantil, mas de todos os níveis de ensino. Na Educação Infantil, todavia, a especificidade da criança bem pequena, que necessita do professor até adquirir autonomia para cuidar de si, expõe de forma mais evidente a relação indissociável do educar e cuidar nesse contexto. Se compararmos a definição do cuidado prevista nas orientações do CNE com a definição por nós adotada, podemos perceber várias convergências. Inicialmente, o cuidado é compreendido como multidimensional; além de identificar necessidades concretas de cuidar para promover a autonomia (como é o cuidado físico, como alimentação e segurança), evidencia-se também dimensões da afetividade e intimidade, e, inclusive, um caráter ético, o que significa atenção às necessidades emocionais e psicológicas de quem é cuidado. Além disso, ao afirmar sua importância para todas as etapas da educação, embora com mais ênfase para a educação infantil, reconhece-se que o cuidado é essencial para a sustentabilidade da vida humana. Por fim, assume- se que existe uma relação indissociável entre o educar e o cuidar, o que pressupõe repensar a primeira dimensão para dar concretude à segunda. Também as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 7/2010, p. 13) abordaram o tema do cuidado, destacando-o como um “princípio que norteia a atitude, o modo prático de realizar-se, de viver e conviver no mundo”, ao afirmar que “as práticas envolvidas nos atos de alimentar-se, tomar banho, trocar fraldas (...), não são apenas práticas que respeitam o direito da criança de ser bem atendida (...)”. Como destaca Marcondes (2013), a indissociabilidade entre o educar e o cuidar é uma das diretrizes da Política Nacional de Educação Infantil (BRASIL, MEC, 2006a), sendo que o tema já estava presente na LDB, como finalidade da educação infantil de promover o “desenvolvimento integral da criança de até 6 anos de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (art. 29). Um dos pontos mais importantes da integração à agenda da educação foi, contudo, a inscrição na dimensão dos direitos universais, consagrada na CF-88 e em todos os normativos que a sucederam e regulamentaram, o que é inédito na história dessa política no Brasil, especialmente se considerarmos a limitação da política 245 de trabalho aos(às) trabalhadores(as) com vínculo formal e a ênfase da assistência à Capítulo 3 - O cuidado na agenda da política de creches e o olhar de gênero focalização na vulnerabilidade. A CF-88 trouxe, portanto, a possibilidade de construção de uma compreensão que superasse as abordagens tradicionais, entendendo o cuidado não como um problema particular das famílias, mas como um problema político central que demanda a corresponsabilização do Estado. Há, contudo, que se problematizar a centralidade do cuidado na política de creches na educação. O estigma de assistencialismo ronda o tema do cuidado na política de creches, havendo uma dualidade discursiva entre “assistência social versus educação”, em que há uma contraposição entre “assistência – cuidado – negativo” e “educação – escolarização – positivo” (MARCONDES, 2013). O estigma em torno do tema do cuidado e a dificuldade de conferir diretrizes mais claras sobre como abordá- lo na esfera educacional são aspectos centrais para o que Aguirre (2011) denomina zonas de indefinições, que orbitam em torno do cuidado infantil e as primeiras etapas educacionais, e que remetem à intersecção em que se constituiu o sentido do cuidado nas múltiplas conformações da política de creches. Além disso, a perspectiva do cuidado na esfera educacional está centrada na criança enquanto sujeito da política, estando as mulheres invisibilizadas nessa compreensão da problemática, o que é um obstáculo para a reformulação da política de creches na perspectiva de gênero, já que essa pressupõe a visibilidade de quem cuida. A Declaração de Viena (1993) prevê que os direitos humanos são caracterizados pela indivisibilidade e interdependência (PAUTASSI, 2010). Nos termos sugeridos por Pautassi (2010), a interdependência de direitos à creche significa que são sujeitos desse direito as crianças, mães, pais e responsáveis, ou seja, quem cuida e quem é cuidado, o que está consagrado na CF-88. Já a indivisibilidade indica que os sujeitos de direitos são uma totalidade em si, e que a garantia de seus direitos não pode ser prejudicada pelas especializações das funcionalidades estatais, quer em relação à repartição de competências entre entes federativos, quer em relação à especialização de atribuições através de órgãos ou setores. Agregando a essa abordagem a transversalidade de gênero, é de se compreender que a garantia dos direitos das mulheres e da promoção da igualdade deve envolver todas as políticas públicas do Estado brasileiro. Para isso é fundamental que a transversalidade dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres seja efetiva, garantindo-se a reorientação da política de creches, evitando que as especializações setoriais comprometam a garantia de direitos das mulheres, além de trazer quem cuida para o centro do debate político sobre o cuidado. Durante o período de conformação da identidade da política de creches um dos principais debates foi o da jornada da oferta desse serviço. Tratou-se de uma oportunidade ímpar para se afirmar outra compreensão da política, mais complexa e enriquecedora do ponto de vista de gênero. Até porque o tempo do cuidado é inelástico e não se organiza pelo “tempo-relógio”, mas sim pelo tempo do ciclo de vida, aumentando bastante a demanda por tempo durante a primeira infância (CARRASCO, 2001). Conforme o entendimento do CNE, o horário de funcionamento das creches é o 246 diurno (Resolução CNE/CEB nº 5/2009) e seu funcionamento pode ocorrer em tempo Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado integral e parcial (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 17/2012). No primeiro caso, a jornada deve ser de, no mínimo, quatro horas diárias e, no segundo, igual ou superior a 7 horas diárias, não se recomendando, conforme entendimento do Conselho, que a jornada seja excessiva, pelos riscos de “não ter atendidas suas necessidades de recolhimento, intimidade e de convivência familiar” (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 17/2012, p. 9). A jornada integral nas creches é estimulada pela ação estatal, especialmente por meio do fator de ponderação do Fundeb, que prevê um repasse proporcionalmente maior para creches em período integral, especialmente quando o serviço é prestado diretamente pelo Poder Público28. O que não significa prestação de serviço ininterrupto. O fechamento desse serviço durante férias e recesso ensejou mais de uma consulta ao Conselho, resultando nos Pareceres CNE/CEB nº 23/2012 e CNE/CEB nº 17/201229. A manifestação do CNE foi provocada pela Defensoria Pública de São Paulo, cujo entendimento seria de que as instituições de educação infantil deveriam funcionar ininterruptamente, inclusive durante os recessos escolares e férias de julho e janeiro, “pois se trata de serviço essencial imprescindível às famílias que tenham menores que se utilizam, em especial, das ‘creches’ e não tenham condições, no recesso e nas férias, de cuidar dos filhos menores, ante a razão de trabalhar” (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 23/2012, p. 1). Em síntese, o CNE afirmou que as férias e os recessos escolares devem ser assegurados também nas creches, por ser necessário para garantir aos(às) professores(as) um período para dedicarem-se ao desenvolvimento do planejamento pedagógico. Além disso, a demanda das famílias de contarem com a ação estatal para o cuidado de bebês e crianças pequenas, para além da jornada das creches e pré-escolas, segundo o CNE (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 17/2012, p. 8): “extrapola as atribuições da Educação Infantil, devendo ser respondida no escopo mais amplo da política para a infância, que envolve outras áreas como assistência e proteção social, saúde, cultura e esporte”. A necessidade de pais, mães e responsáveis de contar com a corresponsabilização do Estado pelo cuidado para, dentre outras atividades, poderem trabalhar, deve, portanto, ser equacionada dentro das “políticas para a infância”, segundo o CNE, e apenas em situações excepcionais o espaço físico das creches pode ser utilizado para esse fim. Perdeu-se a oportunidade, portanto, de inserir as creches no centro da articulação intersetorial que deveria responder às necessidades de cuidado infantil, utilizando-se do argumento da departamentalização estatal para não garantir direitos. A indivisibilidade entre os direitos de quem cuida e de quem é cuidado também não foi evidenciada nas análises do CNE, deixando de se questionar as condições reais em que as relações de cuidado são exercidas nas famílias durante o recesso escolar. O discurso do CNE reforça, ainda, as perspectivas familistas e feminizadoras do cuidado, ao afirmar, quando da análise do tema (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 23/2012, p. 3) que o recesso e férias escolares: Não constitui obstáculo ou empecilho para a consecução dos objetivos, ao tempo em que contribui para o atendimento de necessidades básicas de desenvolvimento das crianças relacionadas à convivência intensiva com suas famílias e a vivências de outras experiências e rotinas distintas daquelas organizadas pelas instituições de educação. 28 Em 2007, o fator de ponderação do Fundeb era de 0,80, e, para o exercício de 2012, foi definido como 1,30 (Portaria MEC nº 1.322/2011), que é o máximo possível pela legislação e que se mantém para os exercícios seguintes, inclusive 2015 (BRASIL, Resolução MEC nº 1/2014). 29 O Parecer em questão dispõe sobre orientações para a organização e o funcionamento da 247 Educação Infantil. O Parecer CNE/CEB nº 23/2012 é, em verdade, o reexame do Parecer CNE/CEB nº 8/2011, que foi analisado por Marcondes (2013). Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: O que o caso da jornada das creches permite identificar é que a sua integração ao sistema educacional responde pouco aos interesses práticos de gênero, na medida em que não incorpora a preocupação com as condições em que se realiza o cuidado infantil. Mas também não se associam aos interesses estratégicos de gênero, haja vista que as preocupações com as práticas sociais de cuidado e com a igualdade de gênero no mundo do trabalho não são questões relevantes para a construção de narrativa do CNE. Com isso não queremos afirmar que não haja situações em que se confere visibilidade às mulheres na política de creches, mas que, mesmo nesses casos, as limitações das políticas públicas para incorporar a transversalidade de gênero evidenciam-se. O Programa Proinfância é ilustrativo. Em sua fase “pré-Pac”, havia uma matriz de priorização que consolidava os critérios para a seleção de projetos, sendo a vulnerabilidade social um deles, orientando-se a “prioridade aos municípios com maiores percentuais de mulheres chefes de família” (Resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE nº 6/2007, Anexo I). No início da inserção do Proinfância no PAC-2, essa previsão foi alterada para: “Serão apoiadas as ações que preveem atendimento a áreas vulneráveis com alto índice de mães que trabalham fora de seus domicílios” (BRASIL, MEC, 2010, p. 13). Reconhecia-se, assim, a sobrecarga do cuidado sobre as mulheres, especialmente as mulheres pobres. Mas, além dessa previsão ter sido apenas simbólica30, a abordagem da questão do cuidado na “fase Pré-Pac” remetia à focalização nas mulheres vulnerabilizadas, e, no início da “fase Pac-2”, priorizava as mulheres “que trabalham fora de casa” - o que exclui o trabalho doméstico não-remunerado. Repete-se, portanto, segundo Marcondes (2013), a visão tradicional do cuidado, em que a intervenção do Estado é apenas para apoiar as mulheres que trabalham fora de casa ou que estejam em situação de vulnerabilidade, não incorporando a crítica feminista de conferir universalidade e centralidade ao tema. 30 Na fase “PAC” a seleção de projetos passou a orientar-se pela divisão em grupos (1,2 e 3), definida pelo Grupo Executivo do Programa de Aceleração do Crescimento – GEPAC, cujo critério 248 central é o número de habitantes (Resposta do SIC-FNDE, 26 de dezembro de 2012, p. 01). Capítulo 4 - A política de creches do PAC-2: um olhar de gênero 4.1. A política de creches do PAC-2: possibilidades e limites de uma agenda política prioritária e a (des)articulação com os interesses de gênero O Fundeb foi fundamental para a integração da educação infantil ao sistema educacional, mas havia uma limitação fundamental na estratégia do Fundo: Não se permitia remunerar a expansão da rede, o que é um dos principais gargalos da política de creches. Respondendo a esse diagnóstico, foi criado, em 2007, o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos da Rede Escolar Pública de Educação Infantil - Programa Proinfância. Instituído pela Resolução do FNDE nº 6/2007 (e regulamentado, posteriormente, pelo Decreto nº 6.494/200831), a quem cabe operacionalizá-lo, seu objetivo era a “assistência financeira para municípios e Distrito Federal para a construção e aquisição de equipamentos e mobiliário para creches e pré- escolas” (Anexo II, Resolução FNDE/MEC nº 6/2007), visando à ampliação da oferta de vagas para a educação pública de 0 a 5 anos, através de transferências voluntárias do Governo Federal para os municípios O Proinfância foi inserido no Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE mas seus resultados foram bastante tímidos durante a fase “pré-PAC”32. De 2007 a 2011, foram conveniadas 2.543 unidades33. A capacidade de implementação pelos municípios e as travas burocráticas da gestão do programa e repasse de recursos foram identificados como algumas das causas de seu fraco desempenho, o que envolvia desde os procedimentos de convênio até os procedimentos de comprovação de dominialidade dos terrenos para construção (MARCONDES, 2013). Foi esse o pano de fundo para que o Governo Federal decidisse, em 2010, pela inclusão do Programa na 2ª edição do PAC, sob a coordenação do MPOG (Anexo do Decreto nº 7.488/ 2011). O PAC-2 buscou agrupar programas e ações estratégicas para o investimento em infraestrutura, inclusive social, que precisavam ser reorganizados, tanto em relação à gestão e ao monitoramento, quanto suas metas físicas e orçamentárias. Seu propósito coadunou-se, portanto, com as dificuldades enfrentadas pelo Proinfância. A inclusão da infraestrutura social no PAC foi uma das novidades da segunda edição do Programa, o que tornou propício o ingresso da Política de Creches na agenda de prioridades de obras de infraestrutura do Governo Federal. O “PAC Comunidade Cidadã” foi criado como um eixo do PAC-2, cujo objetivo seria ampliar a presença estatal em bairros populares, totalizando investimentos previstos de R$ 23 bilhões (Brasil, MPOG, 2010). Desse montante, R$ 7,6 bilhões eram reservados para a expansão da rede de creches e pré-escolas, com a meta de apoiar 6.000 unidades (BRASIL, MPOG, 2010)34, o que representava 33% do volume global de recursos desse Eixo, significando o maior investimento do “PAC Comunidade Cidadã” (MARCONDES, 2013). 31 Para mais detalhamentos sobre as mudanças normativas e a reformação do programa, vide Rezende (2013). 32 A categoria, que adotamos, consta na Resposta do e-SIC, MPOG, 13 de dezembro de 2012 e também é adotada por Rezende (2013). 249 33 Resposta do e-SIC, FNDE, 26 de dezembro de 2012. 34 Em consulta feita pelo e-SIC o quantitativo afirmado era um pouco maior: 6.427 unidades (Resposta do e-SIC,MPOG, 13 de dezembro de 2012). Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: Em relação à superação das travas burocráticas, o FNDE reorganizou as responsabilidades, procedimentos e fluxos, para dar celeridade à implementação35. Uma das primeiras iniciativas da “fase PAC” do Programa foi a substituição do instrumento de convênio por um instrumental simplificado: O Termo de Adesão ao Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação e a elaboração do Plano de Ações Articuladas – PAR, operacionalizado por meio Sistema Integrado de Planejamento, Orçamento e Finanças do Ministério da Educação – SIMEC, com o objetivo agilizar o processo (MARCONDES, 2013). De acordo com o balanço final do Programa, foram investidos R$ 7,7 bilhões, com a contratação de 6.016 creches e pré-escolas, em 2.451 diferentes municípios, sendo que “até outubro de 2014, 3.468 estavam em obras e 786 concluídas” (BRASIL, MPOG, 2014, p. 180). Se considerarmos apenas o quantitativo de entrega, o resultado é limitado, mas, se avaliarmos esses números na perspectiva de garantia de apoio financeiro, o total de unidades contratadas superou a meta inicialmente prevista. Além disso, a “fase PAC” resultou em uma melhor performance da ação estatal, do ponto de vista da contratação de empreendimentos, do que a “fase pré-PAC”. A incorporação da política de creches ao PAC-2 significou, portanto, um importante exemplo da inserção da política de creches na agenda de prioridades governamentais, nos termos propostos por Kingdon (2006). Mas em que sentido isso significou uma priorização de fato, em face da demanda existente, ou apenas uma atenção inédita, considerando o histórico de marginalidade dessa política no Brasil? Se compararmos com o histórico da política que narramos no capítulo anterior, a Política de Creches do PAC-2 desponta como um momento de priorização inédito no histórico brasileiro. Entretanto, devemos problematizar essa reflexão em face da demanda reprimida por essa política, que se acumulou ao longo das décadas em que as creches não foram, de fato, priorizadas. Podemos, para isso, considerar o valor destinado pelo Programa às creches, quando comparado a outras obras de infraestrutura, nos termos propostos por Marcondes (2013). No que diz respeito à relação do valor de investimento na política de creches do PAC-2 em relação ao valor total do PAC devemos destacar, inicialmente, qual é a relevância do Eixo PAC Comunidade Cidadã em relação ao valor global, conforme tabela 1: Tabela 1 – Recursos previstos do PAC-2 por eixos (total e e em %) – Brasil, 2011-2014. 2011-2014 EIXOS (Orçamento em R$ bilhões e %). PAC Cidade Melhor 57,1 (6%) PAC Comunidade Cidadã 23,0 (2,5%) PAC Minha Casa, Minha Vida 278,2 (29%) PAC Água e Luz para Todos 30,6 (3%) PAC Transporte 104,5 (11%) PAC Energia 461,6 (48,5%) TOTAL 955 Fonte: Brasil, MPOG, 2010 / Elaboração: Marcondes (2013) 250 35 Tratam do tema as Resoluções FNDE/MEC nº 13 e n° 69/2011, posteriormente substituídas pelas Resoluções FNDE/MEC nº 13/2012 e a nº 25/2013. Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado O “PAC Comunidade Cidadã” contou com o menor aporte relativo de recursos previstos, abarcando R$ 23 bilhões do total de R$ 955 bilhões (BRASIL, MPOG, 2010), o que corresponde a cerca de 2,5% dos valores de investimento do PAC-2. O valor contrasta, por exemplo, com o investimento previsto no PAC-Energia, que significava 48,5% do total (MARCONDES, 2013). Se considerarmos apenas o valor previsto para creches e pré-escola, o total de investimento previsto não alcançava 1% dos recursos do PAC-2, o que é insuficiente para contribuir de forma significativa para o alcance da meta do PNE, especialmente considerando que, em 2013, apenas 23,2% das crianças de 0 a 3 anos acessavam as creches (IBGE, 2014). Ainda que a iniciativa do PAC-2 não seja a única iniciativa para a expansão da educação infantil no Brasil, a subida do tema ao topo das prioridades do Governo Federal deveria, em tese, fazer frente à demanda reprimida por esse serviço, o que o próprio governo federal reconhece que não é o caso, como destaca Marcondes (2013, p. 85)36: Assim, considerando-se uma população de mais de 16 milhões de crianças e a meta de 50% de atendimento em creches e 100% de atendimento em pré-escola, temos um déficit calculado de 4.293.852 matrículas. Considerando-se que, em média, um projeto arquitetônico padronizado do Proinfância atende a 216 crianças, o País teria que construir ou disponibilizar mais 19.878 unidades escolares de educação infantil nos próximos anos. Além disso, é necessário atentar-se a um fator central: o PAC-2 não distingue entre estabelecimentos de creches e pré-escolas, não indicando quantos estabelecimentos apoiados atendem a quantas crianças de cada faixa etária. Como destacamos anteriormente, por força da EC n° 59/2009, a matrícula na pré-escola passará a ser obrigatória a partir de 2016– em contraposição às creches, nas quais a matrícula é facultativa-, o que torna maior o estímulo aos municípios que, tendo de escolher, opte por unidades que atendam crianças pequenas de 4 a 5 anos37, ainda mais considerando que o custo-aluno é maior no caso de bebês e crianças pequenas (ABRAHÃO, 2005). Esse cenário de “priorização subpriorizada” (Marcondes, 2013) tem consequências concretas no dia a dia das mulheres, uma vez que o menor custo para o Estado das práticas sociais de cuidado vigentes não contabiliza o custo para quem cuida, o que se desdobra da imagem do homo economicus e da fêmea cuidadora (CARRASCO, 2001), em que o trabalho de cuidado é invisível, entendido como um “não-trabalho” ou, quando remunerado, desprestigiado social e economicamente. Em um contexto de inserção das mulheres no mercado de trabalho as estratégias de provisão do cuidado são centrais para dispor de tempo que viabilize a inserção em postos de trabalho mais valorizados, mas que se organizam pelo “tempo relógio”, o que não é sincronizado com o tempo do “ciclo de vida”, que é o tempo do cuidado. A insuficiência de uma rede de equipamentos que corresponsabilize o Estado articula-se às responsabilidades desigualmente repartidas entre mulheres e homens dentro das famílias, resultando em um obstáculo central à igualdade no mundo do trabalho. Basta notar que, quando filhos(as) de 0 a 3 anos frequentam creches, a taxa de ocupação das mulheres alcançava, em 2012, 71,7%, caindo para 43,9% quando nenhum filho estava matriculado (IBGE, 2012). 36 Informação extraída pela autora da resposta do e-SIC - MPOG (13 de dezembro de 2012, p. 05) 37 Embora existam equipamentos que atendam ambas as faixas. Demanda mínima de 240 251 alunos de 0 a 5 anos para concorrer ao projeto tipo “B” e 120 alunos para concorrer ao projeto tipo “C”, com base em dados do Censo Escolar. Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: 4.2. A baixa priorização do cuidado na agenda governamental e a divisão sexual do trabalho O custo do cuidado familiar é invisível e assumido desproporcionalmente pelas mulheres, mas esse custo não é precificado, sendo desconsiderado na elaboração do orçamento das ações que financiam a expansão da educação infantil. Não por acaso, segundo pesquisa realizada pela SOS Corpo e Datapopular (2012), 34% das mulheres identificam como a principal dificuldade encontrada no cotidiano conseguir vaga nas creches, sendo, portanto, a maior dificuldade identificada pelas entrevistadas. As creches foram, ainda, apontadas, nas respostas espontâneas, por 16% das entrevistadas como a principal demanda feminina ao Poder Público. Trata-se, portanto, de uma necessidade prática de gênero percebida pelas mulheres brasileiras como uma prioridade de reivindicação ao Poder Público, cujo não atendimento decorre, em grande medida, dos valores familistas e maternalistas que orientam ideologicamente a formação da agenda e a formulação da política de creches. A identificação da responsabilidade pelo cuidado e pelos afazeres doméstico como feminina fica evidente se considerarmos que, em 2013, 46% dos homens brasileiros de 16 anos ou mais respondiam, em suas casas, por afazeres domésticos, enquanto 88% das brasileiras afirmavam o mesmo (IBGE, 2014). A jornada total de trabalho – produtiva e reprodutiva – era, durante esse período, de 51,6 horas médias semanais para os homens, e, para as mulheres, correspondia a 56,4 horas. Entretanto, a dedicação ao mercado de trabalho – majoritariamente remunerada38 – era proporcionalmente maior para os homens (41,8 horas dedicadas ao trabalho principal) do que para as mulheres (35,7 horas). O que significa que parte expressiva do tempo médio das mulheres era dedicado a um trabalho não-remunerado: os afazeres domésticos, a que eram dedicados 20,6 horas por semana, em média, ao passo que os homens utilizavam apenas 9,8 horas da semana para a mesma finalidade. Essa repartição desigual é indicada, também, por meio da pesquisa realizada pelo SOS Corpo e Datapopular (2012), em que 98% das entrevistadas afirmaram que o cuidado da casa estava presente na vida delas, e 58% declararam que os maridos dão mais trabalho do que ajudam. Enquanto a responsabilidade dos homens pelo trabalho doméstico respeita, em geral, a jornada de trabalho remunerada, no caso das mulheres a inserção no mercado de trabalho é modulada pela responsabilidade naturalizada pelo cuidado, colocando- se, para elas, a necessidade de “conciliar”39 as duas esferas do mundo do trabalho. Mulheres e homens vivenciam, portanto, o mundo do trabalho de forma bastante distinta, mas igualmente demarcadas pela divisão sexual do trabalho. Em 2013, cerca de 5% dos homens estavam desocupados, enquanto que 8,5% das mulheres estavam na mesma condição (IBGE, 2014). Em relação à carteira assinada, 43,1% dos homens viviam essa realidade, no mesmo ano, o que correspondia a 36,6% das mulheres. A combinação de tempo de trabalho não remunerado, maior ausência do mercado de trabalho e ocupação de postos precários ajudam a explicar as diferenças salariais entre mulheres e homens, como podemos ver no gráfico abaixo. 38 Há posições na ocupação que não são, necessariamente, remuneradas, como a construção para o próprio uso, a produção para o próprio consumo e o trabalho não remunerado 39 O conceito de conciliação tem sido usado com frequência para tratar do tema, inclusive pela Organização Internacional do Trabalho - OIT (2009). Partes dos movimentos feministas e de mulheres vêm, contudo, apresentando críticas a essa terminologia, por não permitir visibilizar as tensões que 252 existem nesses processos, além de reforçar a ideia de que cabe às mulheres conciliarem as duas jornadas. Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado Gráfico 2 - Rendimento médio mensal do trabalho principal das pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas em trabalhos formais e informais, segundo o sexo - Brasil - 2013 Fonte: IBGE (2014) / Elaboração: Silva Como se pode ver acima, em 2013, as mulheres ocupadas tinham rendimento médio mensal equivalente a R$ 1.278,00, o que equivale a 70% dos R$ 1.808,00 percebido pelos homens. Proporcionalmente, essa diferença aumenta para os rendimentos obtidos com trabalhos informais, em que as mulheres recebem 63% do rendimento médio dos homens. Essa é, contudo, uma realidade perpassada pela articulação de múltiplas formas de desigualdades. As mulheres que possuem condições de classe e renda que lhes permitem delegar a atividade de cuidado (no todo ou em parte) conseguem gozar de tempo disponível para a inserção no mercado de trabalho e para a realização de outras atividades, por meio da contratação de serviços privados para os cuidados infantis – como os de creches-, ou através da contratação de trabalhadoras doméstica. Esse último arranjo é bastante presente na realidade brasileira, o que Hirata e Kergoat (2007) denominam de relação de delegação, em que as mulheres de classe média e classe média alta (sobretudo brancas) delegam para outras mulheres, majoritariamente empobrecidas e negras, a execução desses trabalhos. Com efeito, a proporção de mulheres que se dedicavam ao trabalho doméstico quando havia uma trabalhadora doméstica que morasse em casa caía para 50,9%, com média de 17,7 horas semanais (a proporção de brasileiras que, no mesmo período, dedicavam-se aos afazeres domésticos era de 89,1%, com média de 25,4 horas semanais) (Ipea et al, 2012). O trabalho doméstico remunerado é uma profissão massivamente feminina, o que reforça a compreensão de que as práticas sociais de cuidado definem-se por uma rede de mulheres que se organizam a partir da família. Enquanto essa ocupação não chegava a empregar, em 2012, 1% dos homens inseridos no mercado de trabalho, essa era a realidade de 14,7% das mulheres. A proporção de mulheres ocupadas como 253 trabalhadoras domésticas é bastante demarcada pela desigualdade racial, haja vista que essa proporção chegava a 18,8% para as mulheres negras, e correspondia a 10,7% para Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: as mulheres brancas) (Ipea et al, 2012). A viabilidade desse arranjo de cuidado, que remete à tradição escravocrata brasileira, depende, contudo, de um fator econômico e jurídico40: o trabalho doméstico remunerado é desvalorizado e barato e possui um status jurídico diferenciado, em relação à garantia de direitos. Com efeito, apenas 28% das empregadas domésticas possuíam carteira assinada, e o rendimento médio mensal dessas trabalhadoras era, em 2012, de R$ 563 reais, sendo que o rendimento médio mensal do total de brasileiros(as) chegava a R$ 1.113,00 para o mesmo período (Ipea et al, 2012). É, portanto, das trabalhadoras domésticas que é cobrado, de forma mais perversa, o custo da divisão sexual do trabalho, restando como estratégia para os dilemas do cuidado apenas o acúmulo de tarefas e a prática do “se virar” (HIRATA, 2008), o que pode ser ainda mais grave caso elas não contem com uma rede de mulheres, como mães, filhas ou vizinhas. A proporção de trabalhadoras com filhos(as) que frequentam creches ou pré-escola é exemplar: apenas 7,2% dessas mulheres contavam com o acesso a esse equipamento social (Ipea et al, 2012). O cuidado realizado nas creches, por meio da docência, também carrega a marca da feminização das práticas sociais de cuidado e, por conseguinte, seu desvalor. A história da profissionalização da docência na América Latina coincidiu com a sua feminização. As mulheres forma julgadas como as mais aptas para educar as crianças pequenas nas escolas, já que elas já o faziam em casa (YANNOULAS, 2011). Aos atributos da docilidade e persuasão somava-se a vantagem de ser uma estratégia de ampliação da educação com um baixo custo, o que a mão de obra feminina podia proporcionar (YANNOULAS, 2011). A formação, no ensino superior, na área da educação, é massivamente feminizada: 92,3% das concluintes eram mulheres, em 2012, e apenas 7,7% eram homens (BRASIL, SPM, 2013)41. Além disso, em 2013, as mulheres nas creches representavam 97,7% do total de docentes (em números absolutos eram mais de 185,2 mil de um total de 189,3) (INEP, 2014). A feminização da docência, em seu sentido quantitativo, é indissociável de seu sentido qualitativo. Se a naturalização e essencialização do cuidado como um atributo feminino estrutura as práticas sociais de cuidado, sua conformação no espaço público e profissionalizado mantém essa característica. O conhecimento sobre o cuidado de crianças pequenas aprende-se e legitima-se através da socialização para o cuidar que as meninas vivenciam desde a infância, sendo a maternidade a principal fonte de conhecimento para o cuidado infantil (CARVALHO, 2011), além das trocas de saberes e conhecimentos entre as mulheres. É interessante notar que a LDB prevê que a docência deve ser exercida por profissionais que tenham formação inicial equivalente ao ensino superior completo, sendo a exceção a educação infantil e as primeiras series do ensino fundamental, para a qual admite-se o ensino médio na modalidade normal, o magistério (BRASIL, MEC, 2006a). 40 A CF-88 previa, em seu artigo 7º, parágrafo único, a exclusão de um conjunto de direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas. Apenas em 3 de abril de 2013 foi aprovada a EC nº 72/2013, que suprimiu a expressa diferenciação constitucional, garantindo a aplicabilidade imediata de alguns direitos, como jornada de trabalho de 44 horas e a previsão de horas extras. Outros, contudo, dependem de regulamentação infraconstitucional, o que ainda tramita no Congresso Nacional, sendo exemplos a indenização demissão sem justa causa, o adicional noturno e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS. 254 41 Esses dados referem-se ao ano de 2011 e a fonte é o Resumo Técnico do Censo da Educação Superior, INEP, Brasília-DF, 2013, com elaboração de SPM (2013). Capítulo 5 – A política de creches no Brasil Carinhoso - BC 5.1. A política de creches do BC: a (re)integração entre a educação e a assistência social O Brasil Carinhoso, lançado em 2012, como parte do Plano Brasil Sem Miséria - PBSM42, aponta para um processo incremental (LINDBLOM, 1959) na formulação da política de creches, cuja compreensão remete ao contexto de priorização que resultou na política de creches do PAC-2. Desde a CF-88, buscava-se afirmar a identidade e os sentidos dessa política de creches no sistema educacional, cujo afastamento dos sentidos da assistência social, verdadeiro repositório de estigmas, trouxe dificuldades para a integração do cuidado à educação infantil. O Brasil Carinhoso representou, portanto, uma novidade, ao fortalecer a interface entre educação e assistência social, em relação à problemática da manutenção das creches e o acesso de crianças mais pobres. Além disso, significou a incorporação da política de creches a outra agenda prioritária do período: a do enfrentamento da pobreza e da miséria, através dos programas de transferência de renda (Programa Bolsa Família – PBF e Plano Brasil Sem Miséria - PBSM). O BC foi concebido para fundamentar um novo desenho das políticas sociais voltadas ao combate à pobreza, em uma perspectiva de atenção integral. Propôs-se a articular a política de educação às de saúde e assistência social, bem como fortalecer a articulação interfederativa entre União, estados e municípios. Está estruturada em três pilares: renda, saúde e educação. O complemento ao benefício do PBF (Lei n° 12.722/2012) foi previsto para as famílias extremamente pobres e com filhos de até 6 anos, até o limite de R$ 70,00 por pessoa43. Na área da saúde, o objetivo foi de expandir o fornecimento das doses de vitamina “A”, sulfato ferroso, vacinas e medicamentos de asma, além da ampliação do Programa Saúde na Escola. Em relação à educação, o foco foi definido em torno da educação infantil, buscando subsidiar a ampliação de vagas para crianças de 0 a 48 meses, além de ampliar o financiamento para a manutenção, pressupondo que a educação infantil contribui para os desenvolvimentos físico, intelectual e emocional das crianças. No eixo referente à educação, parte-se do diagnóstico de que 14,6% das crianças com até 6 anos estavam em situação de extrema pobreza (OSÓRIO e SOUZA, 2012), além de se considerar a “desigualdade de acesso às creches [...] entre as crianças brancas e negras, moradoras do meio urbano e rural, das regiões sul/sudeste e norte/nordeste e, principalmente, ricas e pobres”. Em relação ao meio rural, é importante destacar que a pauta da Marcha das Margaridas de 2011 colocou a reivindicação por creches e pré- escolas em tempo integral em comunidades rurais, observando suas especificidades. A pauta de reivindicação incorporava a demanda de instalação imediata Grupo de Trabalho Interministerial, para elaborar padrões e recomendações que orientassem ampliação de creches públicas no campo (BRASIL, MEC, 2014). O Grupo foi instituído por meio da Portaria Interministerial n° 6/2013, composto do MEC, MDS, Ministério de Desenvolvimento Agrário e a SPM/PR, além de representações dos movimentos feministas e de mulheres, de trabalhadores(as) sem-terra e da educação infantil, dentre outros(as)44. 42 O Plano Brasil Sem Miséria - PBSM é regulamentado pelo Decreto n° 7.492/2011 e tem como objetivo ampliar a integração entre diversos programas e projetos já existentes (Saúde na Escola, Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE, dentre outros), bem como a inserção de novas iniciativas que contribuam para o enfrentamento da extrema pobreza. 43 Este valor era de R$ 77,00, em 2014 (COSTA, MAFRA, BACHTOLD, 2014). Posteriormente, 255 ampliado o benefício às famílias com pelo menos um filho de até 15 anos.  44 Florêncio chegou a essa informação durante a atualização do levantamento de dados da pesquisa. Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: O incentivo do BC à ampliação de vagas para as crianças com até 48 meses, especialmente as beneficiárias do PBF, em creches públicas ou conveniadas com o Poder Público, consubstanciou-se por meio de três iniciativas: a) antecipação do repasse do Fundeb, pelo MEC, para novas turmas de educação infantil45; b) apoio financeiro suplementar de 50%, por meio da transferência obrigatória de recursos da União aos municípios e ao Distrito Federal, para novas vagas/turmas abertas para crianças do PBF46; e c) ampliação do valor repassado para alimentação escolar no valor de R$ 1,00, possibilitando cinco refeições, por dia, em 2012 (Resolução FNDE/MEC n° 8/2012). São transferências obrigatórias da União para os municípios, a título de apoio financeiro, sendo que na hipótese de suplementação, o apoio financeiro fica a cargo do MDS, que descentraliza o recurso ao FNDE, a quem cabe efetuar o repasse aos municípios (BRASIL,resolução FNDE/MEC n° 19/2014). Em relação à antecipação do repasse do Fundeb, o Brasil Carinhoso utiliza o fator de ponderação do Fundo, privilegiando a creche pública em tempo integral, cujo fator de ponderação é o mais elevado, em comparação às creches em período parcial, especialmente da rede conveniada (Resolução MEC n° 1/2014). Não há diferenciação prevista para a diversidade dos municípios (porte, localização, urbano-rural, características socioeconômicas) e faixas etárias atendidas (bebês, crianças pequenas e crianças). A suplementação de 50% do Fundeb, por sua vez, adota o valor anual mínimo por aluno definido nacionalmente para a educação infantil (Portaria Interministerial Ministério da Fazenda MF/MEC n° 17/2014). A transferência de recurso toma como base o quantitativo de crianças de 0 a 48 meses cadastradas no Censo Escolar da Educação Básica, provenientes de famílias beneficiárias do PBF (Lei n° 12.722/2012, Art.4º, § 1o). Para receber o repasse, portanto, os municípios devem oferecer novas vagas aos beneficiários do PBF, em estabelecimentos educacionais públicos ou em instituições conveniadas, em tempo parcial ou integral (BRASIL, Lei n° 12.695/2012; Resolução FNDE/MEC n° 19/2014). A Lei n° 12.722/2012 prevê que os recursos decorrentes da antecipação do FUNDEB e da suplementação devem ser aplicados nas despesas de manutenção e desenvolvimento da educação infantil. Trata-se de um estímulo financeiro aos municípios para a ampliação de vagas em creche, considerando que o seu gasto é maior do que o valor aluno do FUNDEB para esta etapa de ensino (ABRAHÃO, 2005). Uma demanda dos movimentos municipalistas, incorporada à política, foi a permissão para que a suplementação de 50% do FNDEB pudesse também ser utilizada no cuidado integral e na segurança alimentar e nutricional das crianças do PBF (Resolução n° 1/2014), além das despesas já previstas com manutenção e desenvolvimento da creche. Desta forma, a educação infantil é vista “em sua integralidade, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educativo” (BRASIL, Resolução CNE/CEB n° 5/2009, art. 8o, I), observando a atenção aos cuidados pessoais (fraldas, pomadas, etc.) e nutricionais para que a criança possa crescer saudável e segura. A relação entre priorização e superação de travas burocráticas, que identificamos na inclusão do Proinfância no PAC-2, também esteve presente no Brasil Carinhoso. O objetivo foi de conferir celeridade ao repasse de recursos aos municípios, dispensando-se 45 Para a antecipação, é previsto que as crianças de novas turmas devem ser cadastradas em sistema específico do MEC e suas matrículas não podem ter sido computadas no âmbito do FUNDEB, independentemente da situação cadastral no Censo Escolar da Educação Básica. As novas turmas deverão ser cadastradas por ocasião da realização do Censo Escolar da Educação Básica imediatamente posterior ao início das atividades escolares, sob pena de interrupção do apoio financeiro e de devolução das parcelas já recebidas (Lei n° 12.722/2012, art. 2o). 256 46 A suplementação é um estimulo financeiro aos municípios para ampliar as vagas em creche, visto que o seu gasto é maior do que o valor aluno do FUNDEB para esta etapa de ensino (ABRAHÃO, 2005). Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado a exigência de convênio para sua formalização (Lei n° 12.695/2012). Os dados da implementação do Brasil Carinhoso apontam avanços notáveis: Em 2012, primeiro ano do incentivo, foram atendidas 261.890 crianças; em 2013, 453.569; e, em 2014, totalizaram 580.981 crianças, representando um crescimento de 121%, no período. As matrículas do Brasil Carinhoso representaram, respectivamente, 10%, 17% e 20% do total de matrículas em creche, indicando aumento do acesso das crianças mais pobres47, além da intensa adesão dos municípios à iniciativa. Com efeito, em 2012, inscreveram-se 2.246 municípios para receber suplementação do FUNDEB, por meio do Brasil Carinhoso. Em 2013, a adesão aumentou para 3.450 municípios e, em 2014, o total alcançou 4.939 atendidos, o que representava 89% dos municípios brasileiros (CRUZ, FARAH, SUGYAMA, 2014; BRASIL, 2014; IBGE, 2014)48. Em relação ao montante de recursos mobilizados pelo Programa, a suplementação financeira repassada aos municípios passou de R$ 151,07 milhões, em 2012, para R$ 766,14 milhões, em 2014, apontando para um crescimento significativo, da ordem de R$ 615 milhões de reais. Há, contudo, diferenças relevantes em relação ao tipo de oferta de vagas abertas, por rede de ensino (pública e conveniada), e jornada (parcial e integral), de 2012 a 2014, como se pode notar na tabela 2. Tabela 2 - Quantidade de crianças do PBF atendidas pelo Brasil Carinhoso em creche parcial ou integral, por rede de ensino e jornada através da suplementação de 50% do FUNDEB - Brasil – 2012 -2014 Variação Rede de ensino Jornada 2012 2013 2014 (2012 -2014) Parcial 85.654 173.168 211.682 147% Pública Integral 135.349 232.843 280.684 107% Total 221.003 406.011 492.366 123% Parcial 4.124 7.806 12.102 193% Privada conveniada (filantrópica, Integral 36.763 53.160 76.513 108% comunitária ou confessional) Total 40.887 60.966 88.615 117% Total 261.890 466.977 580.981 122% Fonte: Dados fornecidos pela Lei de Acesso à Informação – LAI / Elaboração: CRUZ, FARAH, SUGYAMA, 2014; CRUZ, 2015. A maioria das vagas criadas para o Brasil Carinhoso foi na rede pública, totalizando 492.366, em 2014. As vagas em creches públicas que contaram com o apoio do BC cresceram 123%, no período, enquanto as conveniadas chegaram a 117%. A maior 47 Os dados referem-se ao pedido de informação, por meio da Lei de Acesso à Informação (2014) e do Sistema de Consulta a Matrículas do Censo Escolar do INEP (2012, 2013, 2014). 48 Há uma desigual participação de estados no Brasil Carinhoso: Acre e Sergipe têm 73% de seus 257 municípios participantes da iniciativa, enquanto no Ceará todos os municípios estão inclusos (BRASIL, 2014; IBGE, 2014). Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: ampliação de vagas oferecidas ocorreu, contudo, nas instituições privadas com oferta de jornada parcial, sendo que, de 2012 a 2014, a ampliação de vagas apoiadas foi da ordem de 193%. Como a suplementação de 50% não diferencia creches em jornada parcial e integral, os dados apontam para uma opção pela rede conveniada com jornada parcial, o que pode ser explicado pelo menor custo proporcional do atendimento em jornada parcial. A rápida ampliação de vagas oferecidas reforça a priorização que a política de creches teve, durante o período, na agenda política governamental. Assim como a inscrição do Proinfância no PAC-2, constata-se, no Brasil Carinhoso, um maior esforço de coordenação do Governo Federal junto aos entes municipais, com resultados significativos. A priorização foi, contudo, proporcionalmente insuficiente para atendimento à demanda reprimida, tal qual apontamos em relação à política de creches do PAC-2, não tendo havido, também, diferenciação de faixas etárias atendidas, o que significa que as instituições podem “optar” por preferir as crianças maiores, que exigem cuidados menos intensivos, a infraestrutura e os gastos são menores, do que dar prioridade ao atendimento de bebês e crianças pequenas. Também podem “optar” por instalar, prioritariamente, creches na zona urbana onde o ganho em escala é maior do que em zonas rurais com pouco adensamento populacional.  5.2. As práticas sociais de cuidado e os entraves ideológicos das políticas sociais A família é central para a política social, o que é, inclusive, afirmado na Política Nacional de Assistência Social e na NOB/SUAS (MESQUITA, 2011), sendo que essa última define expressamente a família “como o núcleo social básico de acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade e protagonismo social” (CNAS, Resolução n° 130/2005, p. 19). Como vimos anteriormente, a centralidade da família estabelece um padrão ideológico para as políticas sociais em que cabe a ela, principalmente, a gestão do bem- estar e do cuidado, sendo a atuação do Estado subsidiária. As políticas sociais de transferência de renda no Brasil e em outros países da América Latina49 são exemplares da carga ideológica do familismo e da maternagem. Esses programas sejam importantes para a redução significativa das famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. Em um país marcado pelas desigualdades socioeconômicas é inegável a importância de um programa de transferência de renda que viabilize uma complementação de renda regularmente fornecida e, até mesmo, coloque em discussão o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro. O Programa Bolsa Família - PBF, criado em 2003, atendia a cerca de 13 milhões de famílias em 2012; e um dos vetores para seu sucesso era a priorização do repasse do recurso às mulheres, que representavam mais de 92% dos(as) beneficiários(as) (LAVINAS, COBO e VEIGA, 2012; FARAH, 2004). A principal razão para a preferência pelas mulheres na elegibilidade do benefício é o que Carloto e Mariano (2012) denominam instrumentalização da atuação das mulheres dentro das famílias. Trata-se da operacionalização, para a eficiência da política social, das práticas sociais de cuidado 49 Alguns outros programas de transferência de renda na América Latina: “Progresa” (México), “Chile Solidário” (Chile), “Famílias em Acción” (Colômbia), “Abono de Desenvolvimento Humano” (Equador) e “Mi Familia Progresa” (Guatemala) (LAVINAS, COBO e VEIGA, 2012). Molyneux (2006) analisou, na perspectiva de gênero, o “Progresa”. 258 Mudanças e permanências das práticas sociais de cuidado baseadas no familismo e na maternagem, tanto na gestão de recursos em benefício das crianças, quanto no cumprimento das condicionalidades (MOLYNEUX, 2006). Afinal, se as mulheres é que respondem, tradicionalmente, pelo cuidado, elas sabem como melhor utilizar os recursos para esse fim. Porém, a reafirmação dos papeis tradicionalmente exercidos pelas mulheres, como condição de eficiência dos programas de transferência de renda, não contribui para a igualdade de gênero, na medida em que reforça a naturalização da feminização do cuidado, desresponsabilizando os homens e reproduzindo-se, assim, os estereótipos das mulheres cuidadoras, o que retroalimenta o familismo maternalista nas políticas sociais (TEIXEIRA, 2011). A responsabilização das mulheres pelo cumprimento das condicionalidades do Programa (tais como garantir que as crianças acompanhem a escola e que também estejam com as vacinas em dia), em um contexto de infraestrutura de equipamentos sociais insuficiente e de precarização da inserção das mulheres no mercado de trabalho, sobrecarrega as mulheres em relação ao cuidado infantil (CARLOTO E MARIANO, 2012). Isso não significa, contudo, que a priorização das mulheres não possa ter impacto positivo sobre a autoestima e a autonomia das mulheres, tanto em relação a seus maridos e familiares, quanto na sensação de inclusão pelo consumo, que é o que apontam as pesquisas com beneficiárias do PBF (REGO e PINZANI, 2014; CARLOTO E MARIANO, 2012, LAVINAS, COBO e VEIGA, 2012). Como arremata Farah (2004, p. 56): De um lado, uma ênfase na eficiência e uma certa ‘funcionalização’ da mulher, vista como um ‘instrumento’ do desenvolvimento, como ‘potencializadora’ de políticas públicas, pelo papel que desempenha na família. De outro, uma ênfase em direitos, na constituição da mulher como sujeito. Assim, a exemplo dos distintos vetores presentes na agenda de reforma do Estado – o da eficiência e o da democratização – também na agenda de gênero há uma tensão entre diferentes perspectivas. Por um lado, atende-se às necessidades práticas de sustento das mulheres e de suas famílias, e, reconhecendo a mulher como a responsável pelo sucesso do Programa, contribui-se para a percepção de empoderamento pelas mulheres beneficiárias (REGO e PINZANI, 2014). Entretanto, a transferência de renda dissociadas de outras iniciativas para a promoção da autonomia das mulheres e desresponsabilização do cuidado inviabiliza uma mediação com as necessidades estratégicas, ao deixar de politizar a questão da divisão sexual do trabalho e a sociabilização do trabalho de cuidados, o que seria esperado na perspectiva da transversalidade de gênero e da efetividade dos PNPMs. Ao incorporar a ampliação de vagas em creches como um de seus objetivos, o BC complexifica essas contradições ideológicas das políticas de transferência de renda pois, apesar de ser centrado nas crianças, enfatiza a ampliação das creches, essencial para a corresponsabilização do Estado pelo trabalho de cuidados, o que contribui positivamente para a autonomia econômica das mulheres. Articulando políticas que favorecem a politização das necessidades estratégicas e da articulação delas com as necessidades práticas das mulheres, o BC introduz um elemento potencial do questionamento, pelas mulheres, de suas performances tradicionais enquanto cuidadoras, o que, vinculado a iniciativas de formação política dessas beneficiárias, pode contribuir para a articulação 259 de necessidades práticas e estratégicas de gênero. Além disso, ao tema do cuidado o BC confere concretude, especialmente através Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: das ações da ampliação do valor destinado à alimentação escolar a da possibilidade de utilizar os recursos transferidos aos municípios pelo BC para o cuidado integral e segurança alimentar e nutricional das crianças do Bolsa Família. Dessa forma, a retomada do cofinanciamento, pela assistência social, de ações que integral o educar e o cuidar, significa um avanço na concepção da política de creches. O BC aprofunda a intersetorialidade, inclusive pela interface da política de creches com diferentes áreas do PBSM, conferindo densidade à indivisibilidade da ação Estatal, e, assim, dando maior sentido à “política para a infância”, constantemente citada pelo CNE em seus pareceres. O retorno do problema do acesso às creches à agenda política da assistência social – inclusive através do retorno do tema aos debates do CNAS50 - não significa, portanto, a retomada de antigos sentidos, mas um enriquecimento da identidade educacional da política pela integração intersetorial e, também, pela preocupação com a vulnerabilidade social. Há uma clara priorização, pelo governo federal, das crianças mais pobres, por meio de uma ação focalizada (CRUZ, FARAH, SUGIYAMA, 2014), o que reflete uma perspectiva consagrada na assistência social. O debate sobre a desigualdade de acesso também foi incorporado à esfera educacional, durante o período de transição da educação infantil, assumindo-se a necessidade de considerar as disparidades de acesso (regionais, raça/ cor, urbano-rural, renda etc.). Com efeito, o Relatório de Avaliação da Educação Infantil já havia indicado a questão como um dos principais desafios para a melhoria do serviço no Brasil (BRASIL, MEC, 2009a)51. Na perspectiva das necessidades práticas de gênero, a preocupação com a vulnerabilidade e o acesso à creche contribui para garantir que as mulheres que mais precisam desse serviço possam dele gozar, em decorrência da interdependência da relação entre quem cuida e quem é cuidado. A opção pela focalização, entretanto, deve ser problematizada em face do sentido que ela confere às políticas sociais, em um contexto neoliberal. Cortes de gastos públicos e restrições orçamentárias para as políticas sociais estimulam a formulação de políticas que atendam apenas aos mínimos sociais de famílias empobrecidas e miseráveis, respondendo a um ideal de eficiência cirúrgica de gastos públicos, e não à garantia de direitos universais, sendo as mulheres, no exercício de suas funções tradicionais de cuidado, o vetor de sucesso dessa estratégia, sem problematizar as questões de gênero dessa instrumentalização (LAVINAS, COBO e VEIGA, 2012). Outro aspecto que, do ponto de vista de gênero, deve ser salientado é a ampliação desproporcional das vagas ofertadas pelo Brasil Carinhoso em regime parcial, em prejuízo do integral, entre 2012 e 2014, especialmente na modalidade de suplementação de 50% do FUNDEB, que não diferencia o tipo de jornada para o repasse de recursos. A oferta de vagas parciais traduz-se em um retrocesso na consolidação da autonomia econômica das mulheres, comprometendo as possibilidades de inserção no mercado de trabalho em postos formais e bem remunerados, cuja jornada de trabalho integral é incompatível com a responsabilização apenas parcial do Estado pelo cuidado. A creche parcial coloca a responsabilização das mulheres pela busca de alternativas para o cuidado das crianças, por meio de ação e omissão do Estado, o que contraria o seu compromisso com as políticas para as mulheres e igualdade de gênero. 50 O tema de creches voltou a ser debatido no CNAS. O Brasil Carinhoso foi pauta de três reuniões (CNAS, Atas da 200ª reunião e 201ª, em 2012, e da 225ª, em 2014). 51 A questão é abordada, ainda, em outros documentos de referência, como a Declaração 260 Mundial Sobre Educação para Todos (1990, art. 3º), PNE (2014-2024) e na Conferência Nacional de Educação - CONAE (2014). Considerações Finais A historização da formação da agenda e da formulação da política de creches permitiu identificar uma priorização inédita dessa política na agenda governamental brasileira, especialmente a partir da CF-88, que inscreveu as creches na perspectiva dos direitos. Sua concretização ocorreu, contudo, a partir de 2006, com a criação do Fundeb, e, entre os períodos de 2011 e 2014, a política de creches foi incorporada às duas principais agendas de governo: de infraestrutura, com o PAC-2, e de enfrentamento à pobreza e à miséria, com o Brasil Carinhoso. Essas duas iniciativas, portanto, são representativas desse processo de priorização. Constatamos que ambas as iniciativas contribuíram para ampliar o acesso às creches no Brasil, o que impacta positivamente o cotidiano de crianças, mães, pais e responsáveis, mas, sobretudo, das mulheres, as quais respondem massivamente pelas práticas sociais de cuidado. A priorização da política de creches, contudo, deve ser problematizada, trazendo o olhar de gênero. A escala conferida no período para a expansão da rede e aumento de recursos para sua manutenção não são proporcionais ao déficit acumulado, especialmente considerando a centralidade do cuidado para a sustentabilidade da vida humana. A identidade da política de creches constituiu-se em uma intersecção de sentidos, atribuídos pelas políticas educacionais, trabalho, assistência social, saúde e igualdade de gênero. Foi na incorporação das creches ao sistema educacional, o que se aperfeiçoou em 2010, que se consagrou a dimensão dos direitos universais e, assim, a possibilidade de compreender essa política na perspectiva da interdependência e da indivisibilidade de direitos. Com a institucionalização das políticas para as mulheres, sobretudo através dos PNPMs, a transversalidade de gênero deveria colocar um questionamento permanente à formação da agenda e a formulação da política de creches, para a sua melhor articulação com os objetivos da igualdade de gênero no mundo do trabalho e da autonomia econômica das mulheres. A política de creches, no período analisado, não incorporou os problemas e sentidos da agenda de gênero de forma central. A análise do debate ocorrido no CNE em relação à interrupção do serviço de creches durante as férias e os recessos sinaliza que a interdependência entre quem cuida e quem é cuidado não é visibilizada. Reforça-se, assim, a atuação subsidiária do Estado em relação à corresponsabilização pelo cuidado, inclusive pela não diferenciação dos valores de repasse para creches parciais e integrais, no caso do BC, para a suplementação do Fundeb. Assume-se como possível o olhar para quem é cuidado perdendo-se de vista quem cuida. E quem cuida são as mulheres, através do trabalho doméstico não-remunerado ou remunerado, mas também pela feminização da profissão de docência na educação infantil, tratando-se de diferentes modalidades de trabalho de cuidado, mas todas igualmente desvalorizadas. A não incorporação dos objetivos da autonomia econômica e da igualdade de gênero não apenas aponta a fragmentação da atuação estatal, mas também sinaliza que, enquanto o olhar de gênero sobre uma política pública for marginalizado, seus efeitos transformadores das desigualdades também serão limitados. A subsidiariedade da ação do Estado corrobora para a reprodução dos valores familistas e maternalistas nas práticas sociais de cuidado, conferindo centralidade a essa concepção ideológica nas políticas sociais no Brasil. Isso não significa, contudo, que não haja contradições. Um exemplo é a complexificação que o BC coloca em relação às transferências de renda condicionadas, realizada por meio do PBF e PBSM. As políticas de transferência 261 de renda instrumentalizam os papeis tradicionais de gênero exercidos pelas mulheres, Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: para garantir eficiência do Programa, o que retroalimenta o familismo maternalista. Mas, por outro lado, a integração da ampliação das creches a essa agenda traz uma outra abordagem, no sentido de correpsonsabilização do Estado, ainda que limitada. Na intersecção de sentidos em que a política de creches organizou-se durante o período, os comandos dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres pouco reverberaram, no que diz respeito ao comprometimento da prestação desse serviço com a autonomia econômica das mulheres e a igualdade no mundo do trabalho. A fragmentação e segmentação das ações do Estado, em relação à política para as mulheres, não propicia condições adequadas para operar a transversalidade de gênero. As necessidades práticas e estratégicas de gênero são, nesse contexto, pouco articuladas, havendo baixa politização da divisão sexual do trabalho e das práticas sociais de cuidado, mesmo quando o Estado busca incorporar a preocupação com as necessidades concretas das mulheres. A centralidade que o cuidado tem na reprodução das condições da vida humana coloca a necessidade do Estado brasileiro assumir um compromisso radical com a conformação de novas práticas sociais de cuidado, criando condições para a superação da divisão sexual do trabalho. Enquanto esse não for o horizonte da atuação estatal, sua ação seguirá comprometida com a reprodução das desigualdades, e não com o enfrentamento delas. 262 REFERÊNCIAS ABRAHÃO, Jorge. Financiamento e gasto público da Educação básica no Brasil e comparações com alguns países da OCDE e América Latina. Campinas: Educação e Sociedade, v. 26, n. 92, p. 841-858, 2005. AGUIRRE, Rosário. El reparto del cuidado en América Latina. In: Durán, M.A. (dir.). 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Disponível em: http://www.fnde.gov.br/fnde/legislacao/resolucoes/item/3549- resolu%C3 Acesso em: 24 nov. 2014. _______. FNDE. Resolução FNDE/MEC nº 19, de 29 de setembro de 2014. Estabelece os procedimentos operacionais para a transferência obrigatória de recursos financeiros aos municípios e ao Distrito Federal, a título de apoio financeiro suplementar à manutenção e ao desenvolvimento da educação infantil para o atendimento de crianças de zero a 48 meses informadas no Censo Escolar da Educação Básica, cujas famílias sejam beneficiárias do Programa Bolsa Família, em creches públicas ou conveniadas com o poder público, a partir do exercício de 2014. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/fnde/ legislacao/resolucoes/resolucoes-2014 . Acesso em 24 nov. 2014. _______. Ministério da Educação - MEC. Portaria MEC nº 1.322/2011. Aprova a Resolução da Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade para o exercício de 2012. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/fnde/ legislacao/portarias/item/3595-portaria-n%C2%BA-1322-de-21-de-setembro-de-2011 .Acesso em 24 nov. 2014. _______. Ministério da Educação - MEC. Resolução MEC nº 1/2014. Aprova as ponderações aplicáveis entre diferentes etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da educação básica, para vigência no exercício de 2015. Disponível em: https:// www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&sgl_ tipo=RES&num_ato=00000001&seq_ato=000&vlr_ano=2014&sgl_orgao=MEC. Acesso em 24 nov. 2014. Sítios eletrônicos consultados Brasil Carinhoso: http://www.mds.gov.br/brasilsemmiseria/brasil-carinhoso IBGE: http://www.ibge.gov.br INEP: http://portal.inep.gov.br/ IPEA: www.ipea.gov.br FNDE: http://www.fnde.gov.br MDS: www.mds.gov.br MEC: http://www.mec.gov.br MPOG: http://www.brasil.gov.br/pac/pac-2 Plano Brasil Sem Miséria: http://www.brasilsemmiseria.gov.br SIGSPM: http://www.sigspm.spmulheres.gov.br/relatorios.php SIMEC: http://simec.mec.gov.br SOF: http://www.sof.org.br 272 Anexo Análise de documentos sobre cuidado e autonomia econômica das mulheres O levantamento dessa pesquisa teve como base: (i) Atos normativos, como Leis, Decretos, Resoluções e Portarias; (ii) Documentos que contenham diretrizes e orientações gerais para a implementação da política de creches; (iii) Atas ou Pareceres do CNE, CNAS e CNDM; e (iv) Resoluções de Conferências, em que são registradas demandas da sociedade civil. Nessa linha, foram selecionados, de forma não aleatória, aqueles documentos que pudessem subsidiar a análise da pesquisa. Ao todo, foram levantados 49 (quarenta e nove) documentos de Política, sendo13 (treze) da Assistência Social; 1 (um) produzido em conjunto com Assistência, Educação e Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA; 9 (nove) da Educação; e 24 (vinte e quatro) da área de Política para as Mulheres. Após o levantamento e análise, foram incorporados à pesquisa aqueles mais representativos das evidências buscadas para responder às questões analíticas e testar as hipóteses. O quadro a seguir ilustra o levantamento. Área Tipos de Documento (conferências, atas, resoluções, planos, pareceres documentos Leis, Política Nacional da Assistência Social, 2004. Decretos, Planos e Diretrizes Portarias e Portaria nº 442, de 26 de agosto de 2005. Resoluções Portaria MDS nº 288, de 2 de setembro de 2009. Conselho Ata da 197ª reunião ordinária do CNAS, fevereiro de 2012. Ata 199ª reunião ordinária do CNAS, abril de 2012. Ata da 201ª reunião ordinária do CNAS, maio 2012. Assistência social Ata da 202ª reunião ordinária do CNAS, julho de 2012. Ata da 204ª reunião ordinária do CNAS, setembro de 2012. Ata da 207ª reunião ordinária do CNAS, dezembro de 2012. Ata da 209ª reunião ordinária do CNAS, maio de 2013. Ata da 225ª reunião ordinária do CNAS, agosto de 2014. Deliberações da IV Conferência Nacional da Assistência Social, 2003 Deliberações da V Conferência Nacional da Assistência Social, 2005 Assistência social, Educação Infantil no Campo: expansão da política. Relatório do Grupo Educação e de Trabalho Interministerial, 2014. Desenvolvimento Agrário 273 Olhares de Gênero Sobre a Política de Creches no Brasil: Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, 2013. FUNDEB - Manual de Orientação, 2008. Educação Infantil: Subsídios para construção de uma sistemática de avaliação, 2012. FNDE - Resolução nº 6, de 24 de abril de 2007. Parecer 39/2002. CNE. Câmara de Educação Básica. Educação Parecer 35/2004. CNE. Câmara de Educação Básica. Parecer 20/2009. CNE. Câmara de Educação Básica. Parecer 7/2011. CNE. Câmara de Educação Básica. Deliberações da Conferência Nacional da Educação Básica - CONEB, 2008. Deliberações da Conferência Nacional de Educação - CONAE, 2010. I Plano Nacional de Política para Mulheres, 2004 - 2007. II Plano Nacional de Política para Mulheres, 2008 - 2011. III Plano Nacional de Política para Mulheres, 2012 – 2015 Anais da I Conferência Nacional de Política para Mulheres, 2004. Anais da II Conferência Nacional de Política para Mulheres, 2007. Anais da III Conferência Nacional de Política para Mulheres, 2011. 2008-10_ 11a_Ata Reunião CNDM 3 agosto 2010 2010-13_1a_2010 - Ata Reunião CNDM 4 agosto 2010 2010-13_2a_Reunião CNDM 17-18 nov 2010 - pauta e ata 2010-13_3a_Reunião CNDM 9 fev 2011 - pauta e ata 2010-13_4a_Reunião CNDM 18 e 19 maio 2011 - pauta-final 2010-13_5a_Anexo 4 - Proposta de Programação 3ª CNPM Mulher e trabalho 2010-13_5a_Anexo 5 - CT Assuntos Internacionais 2010-13_5a_Anexo 6 - CT Monitoramento PNPM 2010-13_5a_ATA - 5ª Reunião Ordinária - 25.08.2011 2010-13_6a_ATA1 - 6ª Reunião Ordinária - 30 11 e 01 12 2011 2010-13_7a_ATA - 7ª Reunião Ordinária - CNDM - 02.02.2012 2010-13_8a_ATA - 8ª Reunião - 02 e 03.04.2012 – Aprovada 2010-13_8a_Recomendações VII Relatório CEDAW - Brasil - português 2010-13_9a_ATA Reunião - 29 e 30.05.2012 2010-13_11a_Ata da Reunião 2010-13_Anexo 7 - CT Orçamento e Planejamento Ata do CNDM_2010-13_10a_ANEXO IV - Apresentação Secretária- Executiva Lourdes Bandeira - PNPM - 04e05.09.2012 Ata do CNDM_2010-13_10a_SPM_ Ata do CNDM_ANEXO III - Apresentação Secretária TATAU GODINHO - 04e05.09.2012 274 QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL DAS MULHERES NA CONSTRUÇÃO CIVIL 2 Qualificação Profissional das Mulheres na Indústria da Construção Civil na RMSP entre 2009 e 20131 Juliana Bacelar de Araújo2 1 Este Estudo integra o Projeto Desenvolvimento, Trabalho e Autonomia Econômica na Per- spectiva das Mulheres Brasileiras, realizado pelo SOS CORPO – Instituto Feminista para a Democracia, no período de setembro de 2013 a outubro de 2014, com o apoio do IDRC – Centro Internacional de Desenvolvimento e Pesquisa do Canadá, e em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e a Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH. O Projeto é composto por estudos de políticas públicas e de uma pesquisa qualitativa com mulheres inseridas em trabalhos precários em três contex- tos no Brasil: Barcarena, Pará; Toritama, Pernambuco; e Região Metropolitana de São Paulo, São Paulo. 2 Economista pela UFPE, mestra em desenvolvimento econômico pela UNICAMP e doutoran- da em desenvolvimento econômico - IE/UNICAMP. Introdução Milena A. P. Prado3• A partir dos anos 2000, observa-se a retomada do crescimento do produto da economia brasileira, com manutenção das políticas macroeconômicas, mas em um contexto internacional extremamente favorável, principalmente entre 2004 e 2008. Esse dinamismo foi puxado, inicialmente, pelo incremento das exportações e, em seguida, pela expansão do consumo interno, do crédito e do investimento, além da melhoria do rendimento médio das famílias, da consolidação das políticas sociais e da implementação da política de valorização do salário mínimo. Entretanto, esse cenário se reverte a partir do final de 2008 e início de 2009, com os impactos da crise financeira internacional sobre a economia brasileira. A partir da adoção de medidas anticíclicas, a economia cresce em 2010, porém sem conseguir manter o patamar de incremento da atividade econômica observado entre 2004 e 2008. Em termos de mercado de trabalho, importantes avanços podem ser verificados, com destaque para a expansão significativa do emprego formal, a redução da taxa de desemprego aberto e a melhoria nos rendimentos médios do trabalho. A indústria da construção civil também segue esse movimento, apresentando forte expansão de sua atividade, especialmente entre 2004 e 2008, e sofrendo retração em 2009. Em 2010, com a implementação de um conjunto de políticas e incentivos, o setor recupera-se, mas a partir de 2011 vem perdendo dinamismo. O setor da construção civil apresentou as maiores taxas de crescimento da ocupação nos anos 2000, com expressivo incremento do emprego formal e melhorias no nível de escolaridade e rendimento médio de seus trabalhadores, especialmente entre as mulheres. Contudo, a construção ainda é um setor marcado pela predominância do trabalho masculino, com baixo nível de escolaridade, alto grau de rotatividade e grande peso do trabalho por conta própria. Como ressalta o DIESSE, “na indústria da construção, o atraso histórico das relações de trabalho, a ausência de ação propositiva e fiscalizatória do Estado no enfrentamento das questões centrais que têm impactos sobre o setor - informalidade, rotatividade, terceirização, saúde e segurança - são os principais desafios a serem vencidos de forma a estabelecer relações e condições de trabalho decentes para os trabalhadores” (DIEESE, 2014, p. 61). O objetivo desse artigo é analisar a qualificação profissional das mulheres na indústria da construção civil na Região Metropolitana de São Paulo entre 2009 e 2013. Para realizar essa discussão, o trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução. Na primeira seção, apresenta-se a dinâmica setorial da construção civil nos anos 2000, especialmente entre 2009 e 2013. Em seguida, é realizado o estudo do mercado de trabalho na construção civil neste último período, no Brasil, no Sudeste e na Região Metropolitana de São Paulo - RMSP. Na terceira seção faz-se um resumo das principais mudanças recentes na indústria da construção civil no Brasil, além de uma reflexão sobre os aspectos teóricos do mercado de trabalho e da qualificação da mão de obra no país, para, enfim, apresentar um breve levantamento das políticas públicas de qualificação profissional, com destaque para o programa Mulheres Construindo Autonomia na Construção Civil. Na quarta parte, analisa-se a qualificação da mão de obra feminina formal na indústria da construção civil da RMSP entre 2009 e 2013. Por fim, as considerações finais buscam retomar e articular a discussão feita ao longo do texto. 277 3 Economista pela UFU e mestra em economia pela UFPE. 1. A dinâmica setorial da construção civil No início dos anos 2000 a economia nacional passou por um processo de dinamização de sua atividade econômica, inicialmente impulsionado pelo aumento das exportações para, em seguida, ser complementado pelo crescimento do consumo interno, decorrente da ampliação da renda, do crédito e do emprego no país. Observou- se, também, principalmente a partir de 2004, o aquecimento interno da construção civil, fruto da ampliação do crédito e da renda das famílias e da retomada do investimento público e privado em infraestrutura econômica, social e urbana, em particular mediante o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O PAC, lançado em 2007 e previsto para durar até 2010, tinha como objetivo articular projetos de infraestrutura públicos e privados e estabelecer medidas institucionais para aumentar o ritmo de crescimento da economia2. Além de “modernizar a infraestrutura, melhorar o ambiente de negócios, estimular o crédito e o financiamento, aperfeiçoar a gestão pública e elevar a qualidade de vida da população”4, com investimento em infraestrutura logística, energética, social e urbana, em um montante de R$ 619 bilhões (PAC/MPOG, 2012). Todavia, a crise financeira de 2008 atingiu o país e reconfigurou o cenário internacional, até então bastante favorável. A economia nacional retraiu seu produto em 2009 e retomou o crescimento a partir de 2010. Observando essa mudança de cenário e apostando no investimento como principal motor para a continuidade do incremento da atividade produtiva nacional, o governo federal resolveu implementar uma segunda etapa do PAC. “O PAC 2, previsto para o período de 2011 a 2014, incorpora mais ações de infraestrutura social e urbana, para enfrentar os problemas das grandes cidades brasileiras”1. O programa foi dividido em 6 eixos: transportes, energia, cidade melhor, comunidade cidadã, água e luz para todos e o programa minha casa, minha vida (PMCMV). Segundo o 11º relatório do PAC 2, até dezembro de 2014 foram gastos R$ 802,9 bilhões em obras. Apenas o Eixo Minha Casa, Minha Vida (MCMV) foi comtemplado com recursos de R$ 449,7 bilhões (PAC/MPOG, 2014). O PMCMV, em especial, além de se apresentar como uma política anticíclica, também favoreceria os interesses do setor imobiliário, acenando para a habitação como estratégia econômica, ideológica e política (MIOTO, 2015). Entretanto, já no período de 2011 a 2013 verificou-se uma expressiva queda das taxas de crescimento do PIB, refletindo, em termos macroeconômicos, a persistência dos efeitos da crise mundial (com a fraca recuperação da economia Europeia e a continuidade do declínio dos preços das commodities), bem como as limitações dos mecanismos desenvolvidos para a retomada da atividade econômica nacional. Os dados do Gráfico 1 mostram que, até 2003, o setor da construção vivenciou um período de instabilidade, “caracterizado pela falta de incentivo, pela tímida disponibilidade de recursos e por uma inexpressiva presença do financiamento imobiliário” (DIEESE, 2011a, p. 4). Somente a parti de 2004, com a recuperação mais consistente da economia, o aumento do crédito e da renda média das famílias e a ampliação dos investimentos em infraestrutura social e econômica, é que o setor retoma seu dinamismo, expandindo-se inclusive acima do incremento médio do PIB do país, em 2004. Esse crescimento da atividade na construção civil acompanha o movimento da economia nacional, ampliando-se de maneira expressiva em 2008 e 2010; mas a queda do produto nacional em 2009, decorrente da crise financeira internacional, refletiu-se em retração ainda mais acentuada da construção civil. Vale ressaltar, entretanto, que 278 4 http://www.planejamento.gov.br/includes/faq/faq.asp?sub=1 Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 a taxa anual de incremento de 11,6% em 2010 foi o melhor desempenho das últimas duas décadas do setor, resultante de diversos fatores: “aumento do crédito, incluindo o apoio dos bancos públicos ao setor produtivo no momento mais agudo da crise financeira de 2009, queda nas taxas de juros, obras públicas - as de infraestrutura dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), habitação, com o Programa Minha Casa, Minha Vida e a redução de impostos” (DIEESE, 2011a, p. 5). Já a partir de 2011, a construção civil vem apresentando oscilações na taxa média de crescimento de sua atividade, acompanhando a dinâmica do PIB nacional. Em termos de composição do PIB a construção civil tem apresentado variação de sua participação ao longo dos anos 2000 (Tabela 1). No período recente houve uma tendência de expansão do peso relativo dessa atividade no valor adicionado bruto na- cional, passando de 5,25% em 2009 para 5,78% em 2011. Todavia, sobretudo a partir de 2012, quando o setor e a economia nacional começam a exibir menores taxas médias de incremento, a participação da construção civil na economia nacional diminui, chegando a 5,40% em 2013. 279 Artigo No que se refere à distribuição regional do valor adicionado bruto da construção civil entre as grandes regiões, observa-se que, entre 2009 e 2012, a região Sudeste detinha mais de 50% do VAB setorial (Tabela 2). Em seguida aparece o Nordeste, que ampliou seu peso relativo de 17,5% para 18,3% nesse período, em decorrência de importantes obras de infraestrutura econômica e social – tais como a Ferrovia Transnordestina, a Integração das Bacias do rio São Francisco, entre outras –, além das obras da Refinaria Abreu e Lima, novas plantas industriais e de forte expansão do setor imobiliário. Tabela 2 - Grandes Regiões - Participação (%) no VAB a preços básicos da Construção Civil, 2009 - 2012 Área Geográfica 2009 2010 2011 2012 Sudeste 50,75 50,63 51,32 50,84 Nordeste 17,52 17,49 18,14 18,30 Sul 15,32 15,35 14,37 15,32 Centro-Oeste 9,30 9,40 9,31 8,77 Norte 7,12 7,13 6,86 6,76 Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE - Contas Regionais. Outro fator importante para o forte impulso do setor no período recente está associado ao crescimento dos financiamentos imobiliários, concedidos pelo FGTS e pela Poupança -SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo). Entre 2009 e 2013, houve uma expansão de 20,6% ao ano no volume desses financiamentos, chegando a um aporte de recurso de R$ 137,4 bilhões em 2013 (Gráfico 2). Nesse mesmo período, apenas com os recursos do FGTS, foi possível a contratação de cerca 1,2 milhão de unidades financiadas. Todavia, entre 2012 e 2013, o montante de recursos financiados ficou praticamente estável. 280 Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 Também é possível observar a dinâmica da construção civil através da variação anual do volume e da receita nominal de vendas de materiais de construção (Gráfico 3). O comércio de materiais de construção apresentou expressiva queda no volume e na receita nominal de vendas em 2009, com o impacto da crise. Ainda em 2009, o governo começou a estimular o setor com a adoção de medidas de redução do Imposto sobre bens industrializados (IPI). Em 2010, o governo reforçou os incentivos a esse setor com uma segunda rodada para as alíquotas do IPI para 41 itens (DIEESE, 2011a). Em paralelo, a implementação do PMCMV gerou um significativo impulso para o setor que expandiu o seu volume de vendas em 20,6% e ampliou sua receita nominal em 15,7%, apenas em 2010. Contudo, o pico de 2010 não se mantem a partir de 2011, mas o setor continua aquecido e apresentando taxas de incremento do volume de vendas acima dos 10%, apenas a receita nominal apresenta constante declínio. Em 2014, com a mudança do cenário econômico e o baixo dinamismo da atividade econômica nacional, o setor é diretamente impactado, como pode ser observado a partir da queda no crescimento do volume de vendas (5,8%), e da estabilidade nas receitas nominais de vendas de materiais de construção. Por enquanto, a redução do IPI para os materiais de construção permanece vigente5, porém é necessário que a economia continue a crescer e que consiga manter o patamar de investimentos (públicos e privados) para que esse setor recupere seu dinamismo . O consumo do cimento – insumo básico da construção civil – exibe tendência semelhante à observada para o volume de vendas dos materiais de construção (Gráfico 4), com queda do consumo em 2009, forte crescimento em 2010 e trajetória de taxas de incremento decrescentes a partir de 2011. Em relação à dinâmica regional, verifica-se um maior ritmo de ampliação do consumo de cimento nas regiões Norte e Nordeste, que entre 2009 e 2010 registraram um incremento de 28,4% e 21,9%, respectivamente. “Este aquecimento pode ser explicado, em grande medida, pela instalação de novas plantas industriais nessas duas regiões, registrando um aumento da produção de cimento em mais de 2 mil toneladas/ mês em 2010 em relação ao ano anterior” (DIEESE, 2011a, p. 8). Todavia, apesar da região Sudeste ter apresentado menores taxas de crescimento ao longo do período de 2009 a 2013, o que se refletiu, consequentemente, em perda de peso relativo, essa região ainda era responsável por 44,4% de todo o consumo de cimento do país, em 2013. 281 5 http://www.gazetadopovo.com.br/economia/prorrogacao-da-reducao-do-ipi-ajuda-setor- -de-materiais-de-construcao-edofu7vkswz2t9bfm87eylaoe Artigo Em resumo, a construção civil, que apresentou forte expansão no início dos anos 2000, especialmente entre 2004 e 2008, foi fortemente impactada pelas repercussões da crise financeira internacional sobre a economia brasileira no final de 2008 e início de 2009. Em 2010, com a implementação de um conjunto de políticas e incentivos, o setor se recupera e demonstra forte expansão de sua atividade, porém, esse movimento não se sustenta ao longo do tempo. A continuidade dos incentivos fiscais tem se mostrado insuficiente para a manutenção e retomada do incremento do valor adicionado da construção civil. É fundamental a recuperação do crescimento da atividade econômica nacional e a elevação dos investimentos públicos e privados, em infraestrutura econômica e social, para que se consiga reativar um setor tão importante e que gera tantos empregos, como é o caso da construção civil no Brasil. Em seguida, analisa-se a evolução do mercado de trabalho da construção. 2. O mercado de trabalho da construção civil A construção civil vem apresentando um forte incremento na geração de postos de trabalho nos últimos anos. Esse setor ampliou sua participação na população ocupada nacional de 7,4%, em 2009, para 9,2% em 2013, totalizando 8,8 milhões de ocupados em 2013 (Tabela 3). A presença de homens no setor continua predominante, com as mulheres representando apenas 3,2% da população ocupada na construção civil em 2013. Todavia, observou-se no período recente uma taxa média de crescimento da ocupação das mulheres mais expressiva que as dos homens, 9,7% a.a. e 6,1% a.a., respectivamente. A região Sudeste segue tendência de ampliação da participação relativa da construção civil, chegando a 9,3% do total de ocupados dessa região em 2013 e respondendo por 43,7% do total de ocupados no setor da construção civil no país. Também nessa região verifica-se uma predominância da ocupação masculina, mas com maior média de crescimento das mulheres ocupadas no período recente (10,7% ao ano). 282 Destaca-se, ainda, o fato de 50% das mulheres ocupadas, em 2013, nesse setor, estarem trabalhando no Sudeste. Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 A Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), por sua vez, apresentou um incremento de novas vagas menor que a média nacional e regional, cerca de 5,0% ao ano, entre 2009 e 2013. Essa região metropolitana também demonstrou aumento do peso relativo da construção civil, passando de uma participação relativa do setor entre os ocupados de 6,9% para 7,9% no período. Entretanto, apesar de a RMSP responder por 13,1% dos novos postos de trabalho no setor, o incremento do trabalho na construção para as mulheres, entre 2009 e 2013, foi de apenas 1,4% ao ano, bem abaixo da média nacional, mostrando que as ocupações nesse setor para as mulheres vêm crescendo mais nos demais municípios do Estado de São Paulo e em outros Estados do Sudeste do que na RMSP. Tabela 3 - Brasil, Grandes Regiões, Estado de São Paulo e RMSP: Percentual (%) de ocupados que trabalham na Construção Civil e taxa média anual de crescimento, por sexo, 2009-2013 Ocupados em 2013 Taxa de Crescimento 2009 2013 Área Geográfica (em mil) (% a.a.) - 2009/2013 Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Brasil 7,4 12,6 0,5 9,2 15,5 0,7 8.871 8.589 282 6,2 6,1 9,7 Norte 7,8 12,6 0,6 9,5 15,0 0,8 712 689 23 6,3 6,3 6,3 Nordeste 6,9 11,3 0,4 8,9 14,7 0,5 2.187 2.135 52 6,9 6,8 8,9 Sudeste 7,8 13,4 0,5 9,3 15,9 0,8 3.878 3.737 141 5,5 5,3 10,7 São Paulo 7,5 12,7 0,6 8,6 14,7 0,8 1.872 1.800 72 4,9 4,7 9,5 RMSP 6,9 11,8 0,8 7,9 13,7 0,8 820 783 37 5,0 5,3 1,4 Sul 6,8 11,8 0,5 8,8 15,4 0,7 1.359 1.314 45 7,6 7,6 6,5 Centro-Oeste 8,2 14,0 0,4 9,8 16,3 0,7 735 714 21 6,0 5,8 15,0 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Embora a RMSP tenha apresentado um baixo dinamismo no crescimento da população ocupada feminina na construção civil, em 2013 essa região metropolitana apresentava uma participação da ocupação das mulheres de 4,5% no setor – valor bem acima da média do Sudeste e do Brasil (Tabela 4). Contudo, é necessário ressaltar que essa participação era de 5,2% em 2009 e caiu no período recente, como reflexo da maior expansão dos postos de trabalho entre os homens na RMSP. Já no Brasil e no Sudeste as mulheres ampliaram seu peso relativo setorial entre 2009 e 2013, chegando a 3,2% no Brasil e 3,6% no Sudeste. Tabela 4 - Brasil, Grandes Regiões, Estado de São Paulo e RMSP: Participação (%) de ocupados na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 2009 2013 Área Geográfica Total Homem Mulher Total Homem Mulher Brasil 100,0 97,2 2,8 100,0 96,8 3,2 Norte 100,0 96,8 3,2 100,0 96,8 3,2 Nordeste 100,0 97,8 2,2 100,0 97,6 2,4 Sudeste 100,0 97,0 3,0 100,0 96,4 3,6 São Paulo 100,0 96,8 3,2 100,0 96,2 3,8 RMSP 100,0 94,7 5,2 100,0 95,5 4,5 Sul 100,0 96,6 3,5 100,0 96,7 3,3 Centro-Oeste 100,0 97,8 2,1 100,0 97,1 2,9 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. No que se refere à faixa etária, ressalta-se inicialmente que cerca de 60% dos ocupados na construção civil, tanto no Brasil, quanto no Sudeste e na RMSP, tinham entre 25 e 49 anos de idade (Tabela 5). Já entre as mulheres, enquanto a presença dessa faixa etária era de quase 2/3 no Brasil e no Sudeste, na RMSP as trabalhadoras de 25 a 49 anos eram 55,6% em 2009 e passaram para 51,4% em 2013. Essa perda de peso relativa é decorrente do aumento de oportunidades entre as mulheres de 18 a 24 283 anos nessa região metropolitana, no período de 2009 a 2013 – tendência diferente da Artigo observada nacional e regionalmente. Destaca-se, assim, que as trabalhadoras jovens, de 18 a 24 anos, expandiram sua ocupação na construção civil da RMSP, chegando a 34,3% das ocupações femininas desse setor em 2013. Tabela 5 - Brasil, Sudeste e RMSP: Distribuição (%) das pessoas ocupadas por faixa etária na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Área 2009 2013 Faixa etária Geográfica Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres 10 a 17 anos 3,2 3,3 1,8 2,2 2,2 3,5 18 a 24 anos 14,3 14,2 18,8 14,0 13,9 16,8 25 a 29 anos 11,8 11,6 18,2 12,1 11,9 18,5 Brasil 30 a 49 anos 49,1 49,1 49,3 48,8 48,8 49,1 50 a 64 anos 19,5 19,7 11,1 20,2 20,5 11,6 65 anos ou mais 2,2 2,2 0,8 2,6 2,7 0,5 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 10 a 17 anos 2,7 2,8 1,9 1,9 1,8 3,5 18 a 24 anos 13,0 12,7 23,0 12,4 12,1 19,5 25 a 29 anos 10,3 10,0 18,4 11,4 11,1 17,8 Sudeste 30 a 49 anos 48,6 48,7 45,0 48,1 48,1 48,2 50 a 64 anos 22,6 23,0 10,7 22,9 23,4 10,2 65 anos ou mais 2,7 2,8 1,0 3,4 3,5 0,8 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 10 a 17 anos 2,0 2,0 2,8 1,8 1,5 8,6 18 a 24 anos 12,9 12,2 25,0 12,6 11,5 34,3 25 a 29 anos 10,5 10,5 11,1 10,1 9,9 14,3 RMSP 30 a 49 anos 47,7 47,8 44,4 47,6 48,1 37,1 50 a 64 anos 24,3 24,7 16,7 24,4 25,3 5,7 65 anos ou mais 2,6 2,8 0,0 3,5 3,7 0,0 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Acompanhando o processo de formalização do emprego que vem ocorrendo no mercado de trabalho nacional ao longo do início dos anos 2000, o setor da construção civil também apresentou importante expansão da ocupação entre os empregados com carteira de trabalho assinada. Verificou-se, também, um incremento dos trabalhadores por conta própria nesse setor, que ampliou sua participação relativa entre 2009 e 2013 no Sudeste, mas perdeu peso relativo na RMSP. Quatro pontos importantes podem ser constatados a partir da análise dos dados da Tabela 6: i) A expansão do emprego com carteira de trabalho assinada foi mais significativa entre os homens, no Brasil e na RMSP, e entre as mulheres, no Sudeste, no período de 2009 a 2013. Houve aumento da participação desse tipo de ocupação tanto entre os trabalhadores quanto entre as trabalhadoras. Todavia, destaca-se também uma importante diferença no peso relativo do emprego formal por sexo. Enquanto as mulheres eram maioria entre os ocupados com carteira de trabalho assinada, chegando a representar 85,7% dos ocupados formais da RMSP em 2013, os homens empregados com carteira de trabalho assinada na construção civil correspondiam por apenas 37,9% dos ocupados nessa mesma região metropolitana; ii) O trabalho por conta própria na construção cresceu em média 6,8% ao ano no Brasil, 7,8% ao ano no Sudeste e 3,4% ao ano na RMSP entre 2009 e 2013, demonstrando taxas médias de ampliação maiores entre as mulheres apenas no Brasil e no Sudeste. Já na RMSP, segundo os dados da PNAD, houve retração do número das trabalhadoras por conta própria na construção nesse período. No que se refere à distribuição dos ocupados, é essa posição na ocupação 284 a principal entre os homens, representando 42,4% dos ocupados masculinos, em 2013, na RMSP. Entre as mulheres, o trabalho por conta própria respondia por apenas 5,7% de suas ocupações nessa região; iii) O emprego sem carteira de trabalho assinada reduziu sua participação relativa na ocupação da construção civil entre homens e mulheres. Na RMSP, os empregados sem carteira correspondiam a 14,4% dos ocupados masculinos e uma expressiva retração do trabalho não remunerado na construção civil no Brasil, Sudeste e RMSP, entre todos os ocupados. Tabela 6 - Brasil, Sudeste e RMSP: Distribuição (%) e taxa média de crescimento anual (% a.a.) das pessoas ocupadas por posição na ocupação na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Distribuição dos ocupados Taxa de Crescimento (% a.a.) Área Posição na Ocupação 2009 2013 2009 / 2013 Geográfica Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Empregado com carteira de trabalho assinada 28,7 27,7 62,1 34,6 33,6 64,4 11,3 11,4 10,6 Empregado sem carteira de trabalho assinada 23,1 23,4 12,9 19,5 19,7 12,7 1,9 1,7 9,3 Conta própria 40,0 41,0 5,1 40,7 41,6 13,3 6,8 6,6 39,5 Brasil Empregador 5,7 5,7 6,4 3,7 3,7 4,2 -4,8 -4,9 -1,1 Trabalhador na construção para o próprio uso 1,5 1,3 7,1 1,2 1,1 3,8 0,2 1,1 -6,4 Não remunerado 0,8 0,7 5,2 0,3 0,2 1,7 -17,4 -17,3 -17,4 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 6,2 6,1 9,6 Empregado com carteira de trabalho assinada 30,4 29,3 66,0 35,5 34,4 66,0 9,7 9,6 10,7 Empregado sem carteira de trabalho assinada 21,5 21,8 13,3 16,3 16,4 13,5 -1,7 -2,0 11,2 Conta própria 39,9 40,9 6,1 43,5 44,7 12,9 7,8 7,6 33,7 Sudeste Empregador 5,9 5,9 4,9 3,5 3,5 3,7 -7,2 -7,5 3,0 Trabalhador na construção para o próprio uso 1,5 1,3 7,0 1,0 0,9 2,6 -5,2 -4,0 -13,7 Não remunerado 0,6 0,5 2,1 0,2 0,1 1,4 -22,3 -26,7 -1,0 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 5,5 5,3 10,7 Empregado com carteira de trabalho assinada 32,0 30,4 61,1 40,1 37,9 85,7 11,1 11,2 10,2 Empregado sem carteira de trabalho assinada 18,4 18,2 22,2 14,0 14,4 5,7 -1,9 -0,8 -27,9 Conta própria 43,4 45,4 8,3 40,7 42,4 5,7 3,4 3,5 -7,9 RMSP Empregador 3,8 3,9 2,8 4,7 4,8 2,9 10,6 10,9 1,9 Trabalhador na construção para o próprio uso 1,3 1,2 2,8 0,5 0,5 0,0 -16,8 -14,3 - Não remunerado 0,7 0,6 2,8 0,0 0,0 0,0 - - - Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 5,0 5,2 1,2 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. O cruzamento das informações de posição na ocupação e grupamentos ocupacionais revela que, além de importantes diferenças em termos de posição na ocupação, a inserção de mulheres e homens no mercado de trabalho também ocorre com marcantes distinções em termos ocupacionais (Tabela 7). Enquanto os homens apresentavam, em 2013, menor grau de formalização, mais de 90% deles eram trabalhadores da produção de bens e serviços industriais e de reparação e manutenção, ou seja, estavam ocupados em atividades ligadas às principais ocupações do canteiro de obras da construção civil, sem formação de nível técnico ou superior, além de trabalhos nos serviços de reparação e manutenção. Já as mulheres, que detinham uma forte participação do emprego com carteira de trabalho assinada, ciências e das artes (ocupações de nível superior) e trabalhadoras da produção de bens e serviços industriais e de reparação e manutenção. Nesse último caso, merece destaque a menor participação das mulheres no canteiro de obras e em serviços de reparação e manutenção da construção civil na RMSP (apenas 20,0% do total, dos quais 14,3% com proteção social), em comparação com a média do Sudeste e do Brasil (cerca de 25% das ocupações das mulheres da construção). 285 Artigo Tabela 7 - Brasil, Sudeste e RMSP: Distribuição (%) das pessoas ocupadas por posição na ocupação e grupamentos ocupacionais na Construção civil, por sexo, 2013 Grupamentos ocupacionais Vendedores e Trabalhadores da Área Profissionais Técnicos Trabalhadores Sexo Posição na ocupação Dirigentes Trabalhadores prestadores de produção de bens e Geográfica das ciências de nível de serviços Total em geral dos serviços serviço do serviços industriais e de e das artes médio administrativos comércio reparação e manutenção Brasil Homens Empregado com carteira de trabalho assinada 0,2 1,1 1,2 1,1 0,7 0,1 29,2 33,6 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,0 0,1 0,2 0,1 0,1 0,0 19,2 19,7 Conta própria 0,0 0,2 0,1 0,0 0,0 0,2 41,1 41,6 Empregador 1,0 0,2 0,0 0,0 0,0 0,0 2,5 3,7 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 1,1 1,1 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,2 0,2 Total 1,2 1,6 1,4 1,2 0,9 0,4 93,3 100,0 Mulheres Empregado com carteira de trabalho assinada 4,9 10,4 9,1 20,8 7,8 0,5 10,9 64,4 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,8 1,5 1,0 3,2 1,6 1,0 3,6 12,7 Conta própria 0,0 0,5 0,0 0,0 0,4 6,4 6,0 13,3 Empregador 2,9 1,0 0,4 0,0 0,0 0,0 0,0 4,2 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 3,8 3,8 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,4 0,0 0,0 1,2 1,7 Total 8,6 13,4 10,4 24,5 9,8 7,8 25,5 100,0 Total Empregado com carteira de trabalho assinada 0,3 1,4 1,4 1,7 1,0 0,1 28,6 34,6 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,1 0,2 0,2 0,2 0,2 0,1 18,7 19,5 Conta própria 0,0 0,2 0,1 0,0 0,0 0,4 40,0 40,7 Empregador 1,0 0,2 0,0 0,0 0,0 0,0 2,4 3,7 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 1,2 1,2 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,3 0,3 Total 1,4 1,9 1,7 1,9 1,1 0,6 91,1 100,0 Sudeste Homens Empregado com carteira de trabalho assinada 0,2 1,2 1,4 1,3 0,8 0,2 29,2 34,4 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,0 0,1 0,1 0,0 0,1 0,0 15,9 16,4 Conta própria 0,0 0,2 0,1 0,0 0,0 0,1 44,2 44,7 Empregador 1,0 0,2 0,0 0,0 0,0 0,0 2,3 3,5 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,9 0,9 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,1 0,1 Total 1,3 1,7 1,6 1,4 1,0 0,3 92,6 100,0 Mulheres Empregado com carteira de trabalho assinada 6,0 13,3 8,3 24,3 4,4 0,0 9,8 66,0 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,8 2,0 0,9 4,1 1,1 0,5 4,1 13,5 Conta própria 0,0 0,5 0,0 0,0 0,8 4,2 7,4 12,9 Empregador 2,9 0,8 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 3,7 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 2,6 2,6 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 1,4 1,4 Total 9,7 16,5 9,3 28,4 6,3 4,6 25,1 100,0 Total Empregado com carteira de trabalho assinada 0,4 1,7 1,6 2,2 1,0 0,2 28,5 35,5 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,1 0,2 0,2 0,2 0,1 0,0 15,5 16,3 Conta própria 0,0 0,2 0,1 0,0 0,1 0,3 42,9 43,5 Empregador 1,1 0,2 0,0 0,0 0,0 0,0 2,2 3,5 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 1,0 1,0 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,2 0,2 Total 1,6 2,3 1,9 2,4 1,2 0,5 90,2 100,0 RMSP Homens Empregado com carteira de trabalho assinada 0,0 2,4 1,4 1,8 0,5 0,3 31,5 37,9 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,1 0,4 0,0 0,0 0,1 0,0 13,7 14,4 Conta própria 0,0 0,4 0,1 0,0 0,0 0,1 41,7 42,4 Empregador 1,4 0,0 0,0 0,0 0,0 0,1 3,3 4,8 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Total 1,5 3,3 1,5 1,8 0,7 0,5 90,8 100,0 Mulheres Empregado com carteira de trabalho assinada 8,6 25,7 5,7 28,6 2,9 0,0 14,3 85,7 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,0 0,0 0,0 2,9 0,0 0,0 2,9 5,7 Conta própria 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 2,9 2,9 5,7 Empregador 0,0 2,9 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 2,9 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Total 8,6 28,6 5,7 31,4 2,9 2,9 20,0 100,0 Total Empregado com carteira de trabalho assinada 0,4 3,5 1,6 3,0 0,6 0,3 30,7 40,1 Empregado sem carteira de trabalho assinada 0,1 0,4 0,0 0,1 0,1 0,0 13,2 14,0 Conta própria 0,0 0,4 0,1 0,0 0,0 0,3 39,9 40,7 Empregador 1,3 0,1 0,0 0,0 0,0 0,1 3,1 4,7 Trabalhador na construção para o próprio uso 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Não remunerado 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Total 1,8 4,4 1,7 3,1 0,8 0,6 87,5 100,0 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Outro ponto que merece destaque é a forte presença do trabalho por conta própria e sem carteira entre os homens no canteiro de obras e em serviços de reparação e manutenção. Mais de 40% dos homens trabalhadores da construção civil eram autônomos ocupados em trabalhos de produção de bens e serviços industriais e de emprego sem carteira de trabalho assinada nos canteiros de obras e em serviços de reparação e manutenção representava 13,7% das vagas ocupadas por homens na RMSP, 15,9% no Sudeste e 19,2% no Brasil. Quanto às horas trabalhadas, a maioria dos ocupados na construção civil trabalhava entre 40 e 44 horas semanais em 2009 e esse percentual aumentou em 2013, no Brasil, no Sudeste e na Região Metropolitana de São Paulo (Tabela 8). De maneira geral, entre 286 2009 e 2013, observou-se uma redução relativa dos trabalhadores com maiores jornadas Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 de trabalho (45 a 49 horas e 49 horas ou mais) e aumento da participação dos com jornada de até 14 horas – com maior peso entre as mulheres. Entre os ocupados com carga horária que variava de 15 a 39 horas, verificou-se uma queda de sua importância entre os homens e um aumento entre as mulheres, com exceção da RMSP que também apresentou perda de peso relativo dos postos de trabalho femininos com jornada de 15 a 39 horas. No Brasil, na região Sudeste, em 2013, cerca de 55% das mulheres que trabalham no setor da construção tinham carga horária de 40 a 44 horas e 21% de 15 a 39 horas, ao passo que na RMSP a distribuição das ocupadas por grupos de horas semanalmente trabalhadas era bastante distinta: 73% detinham jornada de trabalho de 40 a 44 horas, 8,1% de 45 a 49 horas, 5,4% de 49 horas ou mais e 2,7% de 15 a 39 horas; mas também exibiam maior importância, se comparado à média nacional e regional, as ocupadas que trabalhavam até 14 horas – 10,8% em 2013. Tabela 8 - Brasil, Sudeste e RMSP: Distribuição (%) dos ocupados por grupo de horas semanalmente trabalhadas na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Área 2009 2013 Grupo de Horas Geográfica Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Até 14 horas 1,5 1,3 6,7 2,3 2,1 7,1 15 a 39 horas 10,0 9,8 14,4 9,3 8,9 21,6 40 a 44 horas 52,8 52,6 60,0 59,7 59,8 56,0 Brasil 45 a 48 horas 19,7 20,0 10,8 17,1 17,4 10,3 49 horas ou mais 16,0 16,3 7,7 11,6 11,8 5,3 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Até 14 horas 1,2 1,1 5,3 2,0 1,8 7,8 15 a 39 horas 8,4 8,4 8,5 7,6 7,1 20,6 40 a 44 horas 55,4 55,0 70,2 59,8 60,0 55,3 Sudeste 45 a 48 horas 19,6 19,9 10,6 18,6 18,9 11,3 49 horas ou mais 15,4 15,7 5,3 11,9 12,2 4,3 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Até 14 horas 1,0 0,9 2,9 2,1 1,7 10,8 15 a 39 horas 9,6 9,7 8,6 5,6 5,7 2,7 40 a 44 horas 53,0 51,9 74,3 58,7 58,0 73,0 RMSP 45 a 48 horas 18,5 19,0 11,4 18,5 19,0 8,1 49 horas ou mais 17,8 18,5 5,7 15,1 15,6 5,4 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. No que se refere aos anos de estudo, uma proxy do nível de qualificação da população ocupada, constatou-se uma melhoria do nível de instrução da população ocupada na construção civil entre 2009 e 2013, com exceção para o aumento de participação dos trabalhadores sem instrução ou com menos de 1 ano de estudo, tanto entre homens quanto entre mulheres (Tabela 9). Todavia, houve uma diminuição do peso relativo dos ocupados sem instrução ou com até o nível fundamental incompleto (ou seja, até 7 anos de estudo) e uma ampliação da participação dos trabalhadores com maior grau de instrução, ou seja, com nível fundamental completo ou médio incompleto (8 a 10 anos), médio completo ou superior incompleto (11 a 14 anos) e superior completo (15 anos ou mais). Em termos relativos, as mulheres demonstravam um nível de escolaridade maior que a dos homens ocupados no setor da construção civil. Cerca de 70% das mulheres ocupadas nesse setor tinham pelo menos o ensino médio completo ou mais. Na RMSP essas trabalhadoras eram ainda mais qualificadas e melhoraram seu nível de instrução no período de 2009 a 2013. As mulheres com pelo menos o ensino médio completo eram 287 75% das ocupadas em 2009 e passaram para 85,7% em 2013, das quais 54,3% tinham nível médio completo ou superior incompleto e 31,4% o ensino superior completo. Artigo Tabela 9 - Brasil, Sudeste e RMSP: Distribuição (%) das pessoas ocupadas por anos de estudo na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Área 2009 2013 Posição na Ocupação Geográfica Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Sem instrução e menos de 1 ano 8,7 8,9 2,0 10,1 10,3 2,7 1 a 3 anos 14,1 14,4 3,4 10,4 10,7 2,6 4 a 7 anos 37,2 37,9 12,3 32,6 33,1 15,1 8 a 10 anos 19,9 20,1 11,0 22,0 22,4 11,4 Brasil 11 a 14 anos 16,9 16,0 48,9 21,5 20,6 47,8 15 anos ou mais 3,1 2,5 22,4 3,4 2,8 20,2 Não determinados 0,2 0,2 0,1 0,1 0,1 0,2 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Sem instrução e menos de 1 ano 6,5 6,6 1,6 9,1 9,3 2,8 1 a 3 anos 13,3 13,5 3,7 8,9 9,2 1,8 4 a 7 anos 36,8 37,6 10,7 32,1 32,8 14,5 8 a 10 anos 20,7 21,0 8,6 22,8 23,3 8,6 Sudeste 11 a 14 anos 18,9 18,0 50,0 23,3 22,3 49,7 15 anos ou mais 3,8 3,1 25,4 3,6 2,9 22,6 Não determinados 0,1 0,1 0,0 0,1 0,1 0,0 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Sem instrução e menos de 1 ano 7,7 8,0 2,8 12,5 13,0 0,0 1 a 3 anos 12,3 12,8 2,8 6,5 6,8 0,0 4 a 7 anos 33,0 34,1 13,9 26,6 27,4 8,6 8 a 10 anos 23,5 24,5 5,6 23,1 23,9 5,7 RMSP 11 a 14 anos 18,0 16,4 47,2 25,9 24,6 54,3 15 anos ou mais 5,4 4,2 27,8 5,4 4,2 31,4 Não determinados 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Em relação à distribuição dos ocupados por classes de rendimento mensal no trabalho principal (Tabela 10), observou-se, inicialmente, uma maior concentração dos trabalhadores da construção civil que auferem até 2 salários mínimos. Em seguida, aparecem os ocupados com remunerações de 2 a 5 salários mínimos. Constataram-se também melhores níveis de rendimento pagos por esse setor na RMSP, acima dos da região Sudeste e do Brasil. Houve, também, uma queda no número de trabalhadores sem rendimentos na construção civil. Na Região Metropolitana de São Paulo, 62,2% dos homens e 51,4% das mulheres que trabalhavam nesse setor recebiam até 2 salários mínimos em 2009. Essa participação caiu para 52,5% entre os homens e 35,1% entre as mulheres, em 2013. Já os ocupados com rendimentos de 2 a 5 salários mínimos eram cerca de 26% em 2009 e passaram para 35,1% dos homens e 37,8% das mulheres em 2013. Destaca-se, ainda, que 16,2% das mulheres ocupadas nesse setor ganhavam de 5 a 10 salários mínimos e 5,4% mais de 10 salários mínimos, em 2013 na RMSP. Em síntese, 59,5% das trabalhadoras desse setor na RMSP auferiam mais de 2 salários mínimos, enquanto que entre os homens 52,5% recebiam até 2 salários mínimos, o que demonstra que em 2013 as mulheres auferiam maiores níveis médios de remuneração do que os homens na construção civil. 288 Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 Tabela 10 - Brasil, Sudeste e RMSP: Distribuição (%) das pessoas ocupadas por classes de rendimento mensal do trabalho principal na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Área 2009 2013 Classes de rendimento mensal Geográfica Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Até 1/2 5,8 6,0 1,0 4,1 4,1 4,6 Mais de 1/2 a 1 21,4 21,5 16,9 17,3 17,2 18,4 Mais de 1 a 2 salários mínimos 43,5 43,9 29,2 43,8 44,1 32,3 Brasil Mais de 2 a 5 salários mínimos 21,3 21,2 25,6 25,9 26,0 23,8 Mais de 5 a 10 salários mínimos 2,6 2,4 7,7 2,9 2,7 7,1 Mais de 10 salários mínimos 1,2 1,2 3,6 1,2 1,1 4,6 Sem rendimento 2,3 2,0 12,3 1,5 1,4 5,3 Sem declaração 1,8 1,8 3,6 3,3 3,3 3,5 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Até 1/2 3,1 3,2 1,1 1,7 1,6 2,8 Mais de 1/2 a 1 14,9 14,8 18,1 11,1 10,9 15,6 Mais de 1 a 2 salários mínimos 46,6 47,2 26,6 46,1 46,7 32,6 Sudeste Mais de 2 a 5 salários mínimos 26,0 25,9 28,7 31,1 31,3 26,2 Mais de 5 a 10 salários mínimos 3,0 2,9 7,4 3,1 2,9 9,2 Mais de 10 salários mínimos 1,4 1,3 3,2 1,4 1,3 6,4 Sem rendimento 2,1 1,9 9,6 1,2 1,1 4,3 Sem declaração 2,9 2,8 4,3 4,3 4,3 3,5 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Até 1/2 3,0 3,0 2,9 0,7 0,6 2,7 Mais de 1/2 a 1 12,2 11,8 20,0 8,9 8,9 8,1 Mais de 1 a 2 salários mínimos 46,4 47,5 28,6 42,1 42,9 24,3 RMSP Mais de 2 a 5 salários mínimos 26,0 26,0 25,7 35,1 35,1 37,8 Mais de 5 a 10 salários mínimos 3,4 3,1 8,6 4,1 3,6 16,2 Mais de 10 salários mínimos 1,9 1,7 5,7 2,4 2,3 5,4 Sem rendimento 2,1 1,9 5,7 0,5 0,5 0,0 Sem declaração 5,0 5,2 5,7 6,0 6,0 5,4 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Outro aspecto importante desse setor é um alto grau de rotatividade. É possível examinar esse aspecto a partir do perfil dos desligamentos no setor formal da construção civil. Como já destacado anteriormente, o mercado de trabalho no setor da construção, em especial o formal, cresceu de maneira expressiva entre 2009 e 2013; porém, como ressalta estudo do DIEESE sobre rotatividade setorial, ao analisar os dados de 2007 a 2012 para o Brasil: “apesar de todo o aumento observado no emprego setorial, a proporção de desligamentos - contratos que foram rompidos ao longo do ano - em relação ao total de vínculos (ativos e inativos) permanece estável. Isto é, cresce o emprego, mas sobe em proporção semelhante o número de desligamentos”. Segundo dados do estudo, o percentual de desligados era de cerca de 52% ao ano entre 2008 e 2012, com exceção de 2009 (DIEESE, 2014, p. 63). Em 2013, o patamar de desligados em relação ao total de vínculos chega a 53,1% no Brasil, 51,9% no Sudeste e 49,3% na RMSP, como é possível observar a partir dos dados da Tabela 11. Percebe-se, também, que a proporção de desligamentos no ano é um pouco menor na RMSP e no Sudeste, mas permanece grande ao longo do período de 2009 a 2013. Todavia, quando analisado por sexo, constata-se que a rotatividade do emprego formal nesse setor é bem maior entre os homens do que entre as mulheres. Na RMSP, enquanto o percentual de desligados de 2013 era de 50,4% entre os homens, o de mulheres era de 36,3%. O estudo do DIEESE (2014) mostra que o volume de desligamentos no ano no setor da construção já vinha aumentando desde 2007 e, comparando-se com os dados da 289 tabela 11, é possível observar que esse crescimento dos desligados continua em 2013. Constata-se, ainda, que o volume de desligamentos no ano vem sendo maior que o Artigo estoque de vínculos ativos em 31 de dezembro de cada ano, com exceção da RMSP. Esse movimento ocorre entre os homens e não entre as mulheres, resultante da menor rotatividade observada entre essas trabalhadoras. Tabela 11 - Brasil, Sudeste e RMSP: Número de vínculos ativos e desligados na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Área Vínculos ativos e 2009 2013 Geográfica desligados Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Vínculos Ativos em 31/12 2.132.288 1.973.508 158.780 2.892.557 2.645.909 246.648 Desligados no ano 2.190.360 2.101.747 88.613 3.280.317 3.104.823 175.494 Brasil Total de Vínculos 4.322.648 4.075.255 247.393 6.172.874 5.750.732 422.142 % Desligados no ano 50,7 51,6 35,8 53,1 54,0 41,6 Vínculos Ativos em 31/12 1.102.727 1.018.219 84.508 1.409.631 1.282.496 127.135 Desligados no ano 1.124.707 1.077.674 47.033 1.522.378 1.438.335 84.043 Sudeste Total de Vínculos 2.227.434 2.095.893 131.541 2.932.009 2.720.831 211.178 % Desligados no ano 50,5 51,4 35,8 51,9 52,9 39,8 Vínculos Ativos em 31/12 348.629 318.841 29.788 439.558 398.794 40.764 Desligados no ano 304.327 289.699 14.628 427.831 404.581 23.250 RMSP Total de Vínculos 652.956 608.540 44.416 867.389 803.375 64.014 % Desligados no ano 46,6 47,6 32,9 49,3 50,4 36,3 Fonte: MTE - RAIS. Em síntese, observa-se um forte incremento da ocupação na construção civil no período de 2009 a 2013. Todavia, esse setor ainda detém uma predominância da participação masculina em seus postos de trabalho. Mas, no período recente, as mulheres vêm expandindo sua participação nesse setor, exibindo taxas médias de crescimento maiores que as dos homens. As mulheres apresentam maiores níveis de escolaridade, melhores formas de inserção por grupamentos ocupacionais e posição na ocupação – com maior proporção de trabalhadores com carteira de trabalho assinada, apesar do crescimento também do trabalho por conta própria –, menor rotatividade e auferem rendimento médios maiores. Entretanto, ainda eram apenas 4,5% dos ocupados da RMSP em 2013. Todavia, o mercado de trabalho da construção civil ainda é marcado pelo baixo nível de escolaridade, alto grau de rotatividade e grande participação do trabalho por conta própria, principalmente entre os homens. Na próxima seção, serão abordadas questões relativas ao mercado de trabalho e a qualificação da mão de obra na construção civil, além de uma breve discussão sobre as mudanças recentes no setor da construção. 3. Mercado de trabalho e qualificação da mão de obra na construção civil – aspectos teóricos, mudanças recentes no setor e políticas públicas. O mercado de trabalho brasileiro era caracterizado por uma ampla heterogeneidade e forte fragmentação quando se aceleram os processos de globalização, financeirização 290 e reestruturação produtiva, a partir dos anos 1980 e 1990. Diferentemente dos países desenvolvidos, a modernização havia gerado no Brasil um grau de assalariamento Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 relativamente baixo, poucas mudanças na organização social – os sindicatos não tiveram tanta força para reivindicar um maior grau de ocupação assalariada – e não tinha conseguido resolver os problemas estruturais (questões agrárias, regionais, urbanas e sociais) que caracterizavam nosso país (DEDECCA E BALTAR, 1997). O processo de reestruturação produtiva se intensificou nos anos 1990 no Brasil, com a abertura comercial e financeira e a desaceleração do ritmo de crescimento do PIB. Observou-se, assim, uma expansão fantástica do setor informal da economia e, dentro do setor formal, a abertura de novas vagas passa a ocorrer, sobretudo no setor terciário, além da explosão do desemprego. Em paralelo, constata o deslocamento do emprego das grandes empresas industriais para estabelecimentos menores, através principalmente de terceirizações. No caso da construção civil, esse movimento não foi diferente. A partir dos anos 1990, já era possível verificar mudanças em processos organizacionais, bem como novas determinações do processo de acumulação de capital, especialmente no subsetor de edificações. Como destaca Villela (2008), alguns exemplos do impacto da reestruturação produtiva nesse subsetor, da indústria da construção civil subsetor de edificação (ICCSE), podem ser observados a partir da implementação de diversos processos e programas: “1) Produção Enxuta (‘Lean Production’) – Construção Enxuta (‘Lean Construction’); 2) Programas de Qualidade Total; 3) Racionalização dos Processos de Trabalho em Escritório; 4) Logística e Racionalização do Canteiro de Obras; 5) Horizontalização das Empresas; 6) Organizações em Constante Aprendizagem (‘Learning Organizations’); 7) Gestão Participativa; 8) Políticas de Engajamento e Fixação dos Trabalhadores à Empresa; 9) Terceirizações (‘Outsourcing’); e 10) Novas Estratégias Organizacionais (VILLELA, 2008, p. 41-42)”. Ainda de acordo com o autor, esse conjunto de “Novas Tecnologias e Modos de Socialização, advindos do bojo da Reestruturação Produtiva e utilizados com maior ou menor intensidade na ICSSE, vem sendo denominado genericamente pelas empresas brasileiras de ‘Fast Construction’ – ‘Construção Rápida’”. Busca-se, assim, concluir as obras em um menor prazo possível, com redução de custos e preços e maior padronização dos empreendimentos. Haveria, também, uma seleção que mesclaria tecnologias construtivas tradicionais com outras mais avançadas, “tais como, ‘Steel Deck’, ‘Tilt-up’, ‘Built to Suit’, gestão de projetos do tipo ‘Fast Track’, ‘Turn-Key’, etc.”, (VILLELA, 2008, p. 42). Contudo, esses novos processos de produção e organização de gestão e projetos demandariam profissionais mais qualificados. Ainda de acordo com Villela, “Alguns exemplos que ‘agilizam’ a Fast Construction são: 1) o ‘Steel Deck’, laje composta por aço galvanizado e que serve de forma para uma camada de concreto; 2) o Tilt-Up, que são paredes de concreto moldadas na horizontal, perto do local em que serão utilizadas e que após a cura, são içadas e colocadas na fundação; 3) o Turn-key (‘vire a chave’, ‘chave na mão’, ‘preço fechado’, ‘custo global’, ‘porteira fechada’), que é um contrato 291 que atribui à construtora a responsabilidade integral pela obra, desde o projeto, o fornecimento de materiais e equipamentos, Artigo a execução e até, em alguns casos, a operação e manutenção do empreendimento” (VILLELA, 2008, p. 42-43). Nos anos 2000, com a retomada do dinamismo da atividade econômica e a forte expansão da construção civil, verifica-se, além da intensificação da reestruturação produtiva, o aumento da internacionalização do setor, com a entrada de capitais estrangeiros e aumento do grau de importação. Segundo Villela (2008 apud MEDEIROS, 2003), a entrada de empreendimentos estrangeiros no país, especialmente nos ramos hoteleiro, de shoppings centers e de hipermercados, que já utilizavam os modelos de construção a partir de pré-fabricados e obras rápidas, pressionou o mercado a se modernizar e aumentou a demanda por esse tipo de construção. O que, associado às transformações já ocorridas no setor ao longo dos anos 1990, deu continuidade ao processo de reestruturação produtiva na construção civil de edificações. Em termos de relações trabalhistas, destaca-se o crescimento das terceirizações no setor da construção civil como um todo. Já a entrada de capitais (IDE), que já havia ocorrido de maneira mais expressiva em outros setores da economia brasileira nos anos 1990, acontece de maneira tardia no segmento de Edificação e Incorporação, que era um importante reduto de capitais nacionais até então. Como ressalta Mioto, “ (...) a entrada desses capitais (principalmente entre 2005 e 2009) não contrariou a lógica da entrada de IDE no país, muito mais de caráter patrimonial e de ganho de mercado (Market-seeking) do que aqueles com o objetivo de modernizar e expandir a base produtiva (greenfield). No caso dos investimentos produtivos, as formas mais relevantes são das Sociedades de Propósito Específico – SPEs, onde as empresas estrangeiras buscam parcerias nacionais para executar as obras. No caso patrimonial estão a participação acionária (Oferta inicial de ações - IPO), private equity para empresas maiores e venture capital para as médias e menores” (MIOTO, 2015, p.97, apud Bertasso, 2012). A entrada de IDE, em paralelo às mudanças recentes no sistema financeiro internacional, amplia as formas de apropriação externa da renda da terra e da renda oriunda da construção civil. Como demonstra Mioto, “a estratégia das empresas perante a abertura de capitais foi ampliar a compra de terrenos na busca de manter, frente aos investidores, as possibilidades de efetivar o VGV (Valor Geral de Vendas) prometido no lançamento das ações, sendo o efeito principal desse processo o aumento generalizado do preço dos terrenos e a incorporação de novas áreas (periféricas, rurais, de fronteira, etc.) à dinâmica especulativa do setor imobiliário” (MIOTO, 2015, apud FIX, 2011, p.138). No que se refere à balança comercial da construção civil, estudo da ABRAMAT (2013) indica um aumento do déficit comercial em vários segmentos importantes da cadeia produtiva de materiais de construção, como: produtos químicos; produtos de borracha; material plástico; equipamentos para distribuição e controle de energia; produtos de vidro; e cutelaria serralheira e ferramentas, a fabricação de bombas, motores, 292 compressores e equipamentos de transmissão; produtos cerâmicos; fabricação de Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 cimento; fabricação de artefatos de concreto, cimento, fibrocimento, gesso e materiais semelhantes; entre outros. Observou-se, assim, uma piora da inserção externa desse setor, em especial na sua relação comercial com a China (MIOTO, 2015). Já estudo realizado pela Ernest & Young (2014), sobre produtividade na construção civil: desafios e tendências no Brasil, evidencia que, apesar do forte crescimento do PIB da construção civil no período recente, houve uma expansão dos custos acima das receitas nas principais empresas de capital aberto do setor. A partir da análise dos relatórios anuais de administração de sete das maiores incorporadoras e construtoras de capital aberto no Brasil, entre 2007 e 2011, o estudo mostrou que os custos dessas empresas se ampliaram a taxas médias anuais maiores que as do incremento das receitas, gerando impactos sobre as margens de lucro dessas empresas. Apesar do crescimento nos lançamentos (em m2) e do aumento dos preços dos imóveis, o que levou a uma expansão média da receita líquida anual, os custos dessas empresas ampliaram-se a taxas maiores. O que, segundo o estudo, aponta para a necessidade de aumento de produtividade nesse setor (ERNEST & YOUNG, 2014). Apoiado nessa constatação, o estudo realiza uma pesquisa qualitativa com base em questionários online respondidos por 74 executivos que trabalhavam no setor da construção civil no Brasil, em empresas de diversos portes e dos ramos de construção pesada, construção industrial e de edifícios residenciais e industriais. Os resultados da pesquisa demonstram que, segundo os entrevistados, “nos últimos dois anos, os esforços para ganhos de produtividade na construção civil foram focados principalmente em melhorias de projetos e no aprimoramento do planejamento de empreendimentos” (ERNEST & YOUNG, 2014, p. 6). Ou seja, apesar de todas as transformações ressaltadas por Villela (2008) no desenvolvimento do processo de “Construção Rápida”, o que parece de fato ter acontecido no Brasil, nos últimos anos, foi uma melhoria das técnicas, mas ainda com uso de modelos construtivos tradicionais. E, em relação aos ganhos de produtividade, eles ocorreram mais em termos de melhorias nos processos de gestão e no desenvolvimento de projetos, do que na relação de produção no canteiro de obras. Segundo Garcia e Dias (2011), o setor precisa mudar a tendência verificada nos últimos anos de baixos ganhos relativos em termos de produtividade da mão de obra. Para isso, de acordo com os autores, é necessário: “(a) promover a mudança tecnológica nos processos construtivos e nos materiais, (b) aumentar o uso de máquinas e equipamentos; e (c) qualificar a mão de obra que ingressa nesse mercado” (GARCIA E DIAS, 2011, p.6). A pesquisa da Ernest & Young (2014) ainda sinaliza a qualificação da mão de obra como o principal gargalo da construção civil no Brasil, com 100% dos entrevistados respondendo que essa questão tem forte impacto na produtividade atual do setor. Mas, por diversos motivos, a qualificação profissional não aparece no topo da lista de iniciativas das empresas para melhoria da produtividade nos próximos anos. Como revelam Costa e Tomasi (2009), essa reclamação sobre a escassez de mão de obra qualificada na construção civil é constante e não é recente. Para esses autores, a falta de mão de obra qualificada nesse setor, mais sentida na atualidade, poderia estar relacionada a alguns fatores econômicos e setoriais ocorridos nas décadas de 1980 e 1990. O cenário de crise econômica vivida a partir dos anos 1980, associado aos altos índices inflacionários, à redução do crédito imobiliário e ao fim do Banco Nacional de Habitação (BNH), impactaram o dinamismo da construção civil no país. Por consequência, reduziu-se a demanda por trabalhadores nesse setor, levando a menores 293 oportunidades de formação e qualificação profissional desses mesmos trabalhadores. Artigo Ao mesmo tempo, esses trabalhadores também foram atraídos pelo desenvolvimento de outros setores produtivos da economia, que ofereciam melhores salários, trabalhos mais seguros e menos braçais (PESSOA E MAIA, 2013). Verificou-se, também nesse período, uma mudança nos padrões demográficos, com queda da migração rural, que era uma tradicional fornecedora de trabalhadores para a construção, além de uma alteração do perfil de inserção no mercado de trabalho da mão de obra migrante, que passou a se inserir em outros setores, tais como os serviços (COSTA E TOMASI, 2009). Costa e Tomasi (2009) questionam, ainda, se essa escassez atual da mão de obra qualificada seria igualmente verificada no conjunto das empresas da construção. Para esses autores, no período recente de crescimento da atividade econômica e da construção civil, “estaria havendo, como apontam alguns empresários do setor, uma mobilidade dessa mão de obra em direção às grandes empresas. Mais atraentes aos olhos do trabalhador (salário, condições de trabalho etc.), as empresas de grande porte ao absorverem essa mão de obra qualificada reduziriam a sua oferta no mercado de trabalho” (COSTA E TOMASI, 2009, p. 95). Entretanto, deve-se considerar ainda outro elemento importante: os jovens já não têm mais tanto interesse pelos trabalhos da construção civil. Ou seja, as ocupações da construção civil deixaram de ser a porta de entrada para os jovens no mercado de trabalho. Segundo Costa e Tomasi, “Esse interesse não é observado nem mesmo na maioria dos que entram para o canteiro de obras na condição de ajudantes e de serventes e que poderiam, depois de alguns anos, tornar- se oficiais (carpinteiros, pedreiros etc.). O caráter estigmatizado dos ofícios, os baixos salários, a rudeza dos serviços e o enorme desgaste físico, exigido pelos trabalhos, fazem com que haja uma desmotivação, especialmente por parte dos jovens em procurar, no setor, uma profissão” (COSTA E TOMASI, 2009, p.96). Mas, para esses autores, os baixos salários pagos pelas empresas construtoras, associados à ausência de investimentos na formação da mão de obra, podem ter contribuído de maneira importante para afugentar a população em idade ativa disposta a se qualificar nos ofícios da construção e nela permanecer. A alta rotatividade do setor da construção civil também atrapalha a formação de um profissional qualificado, fazendo com que o trabalhador interrompa seu processo de aprendizado ao ficar um curto período de tempo em uma construtora. A saída do setor ou mudança de empresa ocorre, em grande medida, pelo desinteresse do empresário em manter o trabalhador; porém, também, pela procura do próprio trabalhador por melhores salários e condições de trabalho (COSTA E TOMASI, 2009). Ainda de acordo com Costa e Tomasi (2009, p. 115) “a introdução de novos modelos organizacionais nos canteiros de obras, bem como as cobranças constantes de qualidade dos produtos, sugerem a necessidade de outro modelo de gestão do trabalho”. Além desse novo modelo, deve-se buscar uma formação profissional orientada por princípios e fundamentos escolares. Todavia, ao estudar dois canteiros de obras da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Costa e Tomasi demonstram que “(...) os processos de aprendizagem atuais no canteiro de obras e de reconhecimento dessa aprendizagem são, ainda, 294 como apontamos, permeados por relações paternalistas e Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 envolvidos por favorecimentos. A formação e a qualificação profissional dentro do canteiro são percebidas pelos trabalhadores como um favor da empresa ‘uma oportunidade’ viabilizada pelos encarregados, mestres de obras, técnicos ou engenheiros e nunca como um direito. Persiste, ainda, a ideia de que a aprendizagem dos saberes de ofícios é, dentro dos canteiros, um problema exclusivamente dos trabalhadores” (COSTA E TOMASI, 2009, p. 115). Além disso, “O processo de classificação, ou seja, de obtenção de um registro na carteira de trabalho como oficial é desejado por muitos trabalhadores. Este registro funciona no mercado de trabalho como um diploma, e garante por lei a possibilidade do trabalhador sempre se inserir no ofício a que foi classificado. Os conhecimentos adquiridos, seja na situação de trabalho, seja na escola, não são, todavia, garantia da obtenção de uma classificação como oficial. A ausência de um processo institucionalizado de aprendizagem e de reconhecimento dos saberes faz com que sejam fundamentais os acordos pessoais com os oficiais e com a chefia. Neste sentido, tanto o processo de aprendizagem como o de classificação são permeados por relações paternalistas que envolvem preferências pessoais com forte apelo a valores morais de lealdade e de confiança e pertencimento a redes sociais” (COSTA E TOMASI, 2009, p. 115). Os autores concluem que, apesar das mudanças que o setor da construção civil vem passando, especialmente na aplicação de modelos organizacionais, de gestão da mão de obra e de programas de qualidade, é possível ainda encontrar “práticas e racionalidades tradicionais” (COSTA E TOMASI, 2009, p. 116). Em resumo, a expansão da atividade econômica construção civil no período recente foi extremamente importante para o dinamismo da economia nacional e, também, para a expansão do emprego, especialmente o com carteira de trabalho assinada. Houve, também, melhorias de rendimento e escolaridade entre os trabalhadores da construção civil, apesar da manutenção de alto grau de rotatividade e do trabalho por conta própria, principalmente entre os homens. Porém, de fato, a questão da qualificação profissional do setor precisa ser encarada de maneira mais ampla e por diversos atores sociais. Cabe às empresas melhorar seus programas de qualificação, reduzir a rotatividade da mão de obra e as terceirizações, como forma de manter seus empregados por mais tempo na empresa ou setor e garantir, assim, melhorias nos processos de aprendizagem. Mas, o Estado também detém um papel importante na ampliação e difusão de programas de qualificação profissional, através do fortalecimento de políticas públicas de garantia de autonomia e geração de trabalho e renda. Todavia, é preciso relembrar que as transformações do capitalismo contemporâneo, especialmente a partir dos anos 1980 e 1990, já referenciadas anteriormente, representaram também uma importante ruptura no tratamento das questões do 295 mundo do trabalho, enquanto as políticas de emprego do pós-guerra tinham como Artigo compromisso a garantia do pleno emprego e a plena incorporação social. No período recente, essas políticas passam a configurar “estratégias diversas de garantia de direitos sociais básicos, como a garantia de renda via seguro desemprego, o acesso à educação (profissional, no caso), a atenção de grupos especialmente em dificuldades de obtenção de emprego e renda, retirada antecipada de trabalhadores no mercado de trabalho, entre outros” (GIMENEZ, 2006, p. 209). É a partir dessas transformações e mudanças de paradigmas que podemos (re) definir as políticas no âmbito do mercado de trabalho, em dois tipos: (i) as políticas de emprego; e ii) as políticas de mercado de trabalho. As políticas de empregos são aquelas voltadas para a geração de novos postos de trabalho a partir do crescimento econômico e do dinamismo da atividade econômica em determinado país. Já as políticas de mercado de trabalho se caracterizam por políticas dirigidas ao mercado de trabalho, podem ser divididas em duas categorias: a) políticas ativas, elaboradas a partir de iniciativas de administração e difusão de serviços públicos de emprego, formação profissional, programas especiais para públicos específicos (tais como os jovens, desempregados, portadores de necessidades especiais, beneficiários de programas sociais); e b) políticas passivas, como indenização aos desempregados (seguro desemprego) e medidas de antecipação da aposentadoria (GIMENEZ, 2006). A qualificação profissional, nesse sentido, insere-se entre as políticas ativas de mercado de trabalho, ou seja, mecanismos que podem melhorar a (re)inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho, mas elas, por si só, não geram novas oportunidades de ocupação, que dependem da dinâmica da atividade econômica. No Brasil, com a retomada do crescimento do PIB, a partir dos anos 2000, como já destacado anteriormente, a questão da qualificação (re)coloca-se pelo movimento de aceleração da economia, mas também pelas “(...) transformações decorrentes da difusão do novo paradigma de produção, tanto no que se refere à difusão das novas tecnologias de automação, como das novas formas de gestão” (SABOIA et al., 2009, p.19). Entretanto, o nível de instrução básica da população, ou seja, o fator educacional impõe limites a essas políticas de qualificação, afetando a produtividade do trabalho e a competitividade nacional. É nesse contexto de retomada da atividade econômica, difusão de novos paradigmas de produção e baixo nível educacional que se implementa a atual política pública nacional de qualificação profissional, o Plano Nacional de Qualificação – PNQ. A configuração do PNQ apresenta linhas programáticas que mantêm as políticas estaduais de qualificação (Planos Territoriais de Qualificação  - PlanTeQ), através de convênios entre governos estaduais e o Ministério do Trabalho e Emprego, mas pretende também aumentar as parcerias com os governos municipais (ARAÚJO E LIMA, 2014). Em paralelo, procura-se ampliar o acesso à educação profissional e tecnológica através da consolidação e expansão da rede de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF’s) e da criação, a partir de 2011, do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), ambos do Ministério da Educação. “O Pronatec busca ampliar as oportunidades educacionais e de formação profissional qualificada para os jovens, trabalhadores e beneficiários de programas de transferência de renda”6. Esse programa disponibiliza cursos gratuitos oferecidos pela Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e pelas redes estaduais, distritais e municipais de educação profissional e tecnológica; além de cursos de instituições do Sistema S, como o SENAI, SENAT, SENAC e SENAR; e, a partir de 2013, também de instituições privadas. O Pronatec pretende, assim, aumentar a oferta de educação profissional e tecnológica, 296 6 http://pronatec.mec.gov.br/institucional-90037/o-que-e-o-pronatec Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 de forma articulada com a elevação da escolaridade do trabalhador, priorizando a dimensão social de inclusão de segmentos menos favorecidos da população. Contudo, Araújo e Lima evidenciam que: “De modo similar ao que ocorre no sistema Planfor-PNQ, a vertente social do Pronatec, com prioridade para famílias inscritas no Cadastro Único, tende a ampliar a importância de cursos de menor carga horária, dirigidos a segmentos sociais cujas maiores chances de inserção no mercado de trabalho repousam em ocupações no setor informal da economia (diversas atividades de trabalho por conta própria)” (ARAÚJO E LIMA, 2014, p. 184). O Plano Nacional de Qualificação – PNQ, além dos PlanTeQs, é implementado também por meio de PlanSeQs – Planos Setoriais de Qualificação e de ProEsQs – Projetos Especiais de Qualificação e Certificação Profissional. No que se refere às políticas públicas de qualificação profissional para a construção civil, ressalta-se o PlanSeQ da construção civil pesada, onde todas as unidades da federação estão habilitadas, mas também alguns planos setoriais em territórios específicos, tais como: PlanSeQ construção civil de Alcântara – Maranhão; PlanSeQ construção civil do RS; PlanSeQ construção civil voltados para o setor de petróleo e gás em Suape – PE; entre outros. Em termos de políticas públicas de qualificação profissional para o setor da construção civil com foco nas mulheres, destaca-se o programa Mulheres Construindo Autonomia na Construção Civil. Esse programa tem como objetivo fortalecer as ações previstas no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – II PNPM, especialmente nas proposições do Capítulo 1 “Autonomia Econômica e Igualdade no Mundo do Trabalho com Inclusão Social”, que buscam prioritariamente promover a autonomia econômica e financeira das mulheres por meio da assistência técnica, do acesso ao crédito e ao apoio ao empreendedorismo, associativismo, cooperativismo e comércio (SPM, 2014). A partir de um diagnóstico que mostra o importante crescimento da atividade econômica, associado à expansão dos investimentos em infraestrutura econômica e social, em especial através do PAC e do PMCMV, e da geração de postos de trabalho na construção civil, com expansão da ocupação de mulheres nesse setor, o programa é proposto. A sua justificativa aponta para a necessidade de “efetivação de políticas que contemplem a igualdade de gênero como vetor de desenvolvimento econômico e sustentável a partir da crescente inclusão de mulheres em atividade de ocupação em setores historicamente ocupados por homens, onde a discriminação de gênero ainda é bastante presente” (SPM, 2014, p. 3-4). O programa pretende, assim, elaborar ações que possibilitem a mobilização, sensibilização, capacitação e apoio aos processos de inclusão econômica e social das mulheres no setor da construção civil, através de projetos de qualificação e difusão do conhecimento, mostrando oportunidades de emprego e trabalho nesse setor. O programa Mulheres Construindo Autonomia na Construção Civil atua na capacitação profissional das mulheres, com cursos teóricos e práticos da área da construção civil, integrados com conhecimentos e questões de gênero e raça, como forma de inseri- las no mercado de trabalho da construção civil, e de incentivá-las para a formação de empreendimentos solidários e de comércio justo. Seu público alvo é composto por “mulheres pobres, com baixa renda, pouca escolaridade, em situação de risco social e vulneráveis à violência doméstica” (SPM, 2014, p. 4). 297 Dentre o grande conjunto de ocupações que compõem a construção civil, foram Artigo selecionados 11 cursos que podem ser oferecidos pelas instituições conveniadas e desenvolvidos com as mulheres: 1) Assentamento de tijolos e regularização de paredes e pisos; 2) Aplicação de cerâmica e assemelhados; 3) Serralheira; 4) Desmonte e melhor aproveitamento de resíduos da construção; 5) Carpintaria estrutural; 6) Pedreira de alvenaria e acabamento; 7) Pintura Predial; 8) Restauro-técnico em conservação; 9) Instalações hidro sanitárias; 10) Instalações elétricas de baixa tensão; e 11) Marcenaria (SPM, 2014). Na próxima parte do texto, será analisada a qualificação profissional da mão de obra feminina inserida no mercado de trabalho formal da indústria da construção civil da Região Metropolitana de São Paulo. 4. Qualificação da mão de obra feminina formal na indústria da construção civil da RMSP Como já observado, o mercado de trabalho da construção civil da RMSP, seguindo uma tendência nacional e regional, apresentou forte dinamismo na geração de emprego formal a partir do início do século XXI, inclusive no período de 2009 a 2013. A partir dos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego, observa-se que a construção civil foi o grande setor de atividade econômica com maiores taxas de geração de emprego formal no período, com incremento médio de 6,0% ao ano, e maior expansão entre as mulheres (8,2% a.a.) em comparação com os homens (5,8% a.a.). Entretanto, é importante destacar o peso bem maior da participação dos postos de trabalho formais dos homens nesse setor. Enquanto, em 2013, havia 398.794 homens empregados formalmente na construção civil na RMSP, as mulheres eram apenas 40.764 (9,3% do total em 2013). Apesar do baixo peso relativo, o emprego formal nesse setor ampliou seu peso relativo entre as mulheres de 8,5% em 2009 para os atuais, 9,3% em 2013. 298 Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 O estudo do emprego formal por nível de escolaridade oferece elementos para conhecer o nível de qualificação da demanda por mão de obra da construção civil. Usando-se o nível de escolaridade como uma proxy da qualificação profissional dos trabalhadores com carteira de trabalho assinada, observa-se que ocorreu forte crescimento nos trabalhadores formais da construção da RMSP com ensino médio completo e nível superior completo, 15,3% e 11,8% ao ano, respectivamente, entre 2009 e 2013. Todavia, como já observado entre a população ocupada no setor, os níveis de escolaridade entre os trabalhadores formais desse setor, apesar de sua evolução no período estudado, ainda eram bem melhores entre as mulheres do que entre os dos homens, como é possível verificar a partir dos Gráficos 6a e 6b. Quase 2/3 das trabalhadoras formais da construção civil já tinham pelo menos o ensino médio completo em 2009, em contraste com apenas 29,8% dos homens empregados nesse setor, na RMSP. Essa diferença é fortemente explicada pela grande presença de trabalhadores homens com ensino fundamental incompleto ou completo. Porém, como já destacado, houve de fato uma importante melhoria dos níveis de ensino dos empregados na construção civil no período de 2009 a 2013. Os homens, com pelo menos o ensino médio completo, passam a representar 41,3% dos postos de trabalho formais, em 2013. Já as mulheres empregadas formalmente na construção passam para 73,2%, no mesmo ano. 299 Artigo inserção de homens e mulheres no mercado de trabalho formal da construção civil e que também estão associadas não só aos níveis de escolaridade, como também aos tipos de ocupações exercidos por cada um desses sexos, nesse setor. Proporcionalmente, os homens estavam predominantemente trabalhando em ocupações de produção de bens e serviços industriais7 CBO 2002, referem-se às principais ocupações de canteiros de obra, sem formação de nível técnico e superior. Já as mulheres eram empregadas em ocupações de serviços administrativos, serviços em geral, além de ocupações de nível técnico e superior. Entre 2009 e 2013, os homens diminuíram sua participação relativa no emprego formal em atividades de produção de bens e serviços industriais e ampliaram sua presença em cargos de direção e gerência, em trabalhos de serviços administrativos e de reparação e manutenção, além de ocupações de técnicos de nível médio. Já as mulheres aumentaram sua importância desde as atividades de direção e gerência, até os serviços administrativos e de reparação e manutenção, inclusive nas ocupações do canteiro de obras8, perdendo peso relativo apenas em ocupações ligadas aos trabalhos nos serviços em geral (Tabela 12). Ressalta-se, assim, que houve uma ampliação da participação feminina em ocupações do canteiro de obras de 7,2% para 7,9%, entre 2009 e 2013. Contudo, esse ainda é um ambiente predominante do emprego masculino, que representava 72,9% das ocupações desses trabalhadores da construção civil em 2013, na RMSP. Tabela 12 - RMSP: Distribuição (%) dos empregos formais por grupamentos ocupacionais da CBO 2002 na Construção Civil, por sexo, 2009-2013 2009 2013 Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres 1 - Membros superiores do poder público, dirigentes de organizações de interesse público e de empresas e gerentes 1,3 1,2 2,8 1,7 1,4 4,3 2 - Profissionais das ciências e das artes 3,5 2,7 12,2 3,7 2,7 14,0 3 - Técnicos de nível médio 5,5 5,1 9,5 6,6 6,1 10,9 4 - Trabalhadores de serviços administrativos 8,6 5,8 37,8 9,6 6,4 40,7 5 - Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados 5,4 3,6 24,8 4,5 3,4 15,8 6 - Trabalhadores agropecuários, florestais e da pesca 0,5 0,5 0,2 0,4 0,4 0,3 1 7 - Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais 68,8 74,6 7,2 66,8 72,9 7,9 8 - Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais 2 0,7 0,7 0,2 0,7 0,8 0,2 9 - Trabalhadores em serviços de reparação e manutenção 5,7 5,7 5,3 5,9 5,9 5,8 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: MTE - RAIS. Nota: 1 - Este grande grupo compreende: Trabalhadores da indústria extrativa e da construção civil; Trabalhadores da transformação de metais e compósitos; Trabalhadores da fabricação e instalação eletroeletrônica; Montadores de aparelhos e instrumentos de precisão e musicais; Joalheiros, vidreiros, ceramistas e afins; Trabalhadores das indústrias têxtil, do curtimento, do vestuário e das artes gráficas; Trabalhadores das indústrias de madeira e do mobiliário; Trabalhadores de funções transversais (ais como operadores de robôs, de veículos operados e controlados remotamente, condutores de equipamento de elevação e movimentação de cargas etc). 2 - Este grande grupo compreende: Trabalhadores em indústrias de processos contínuos e outras indústrias; Trabalhadores de instalações siderúrgicas e de materiais de construção; Trabalhadores de instalações e máquinas de fabricação de celulose e papel; Trabalhadores da fabricação de alimentos, bebidas e fumo; Operadores de produção, captação, tratamento e distribuição (energia, água e utilidades). 7 É importante destacar que existem diferenças entre os grupamentos ocupacionais da CBO utilizados pelas RAIS (MTE) e os grupamentos da PNAD (IBGE), que são baseados na CBO domiciliar. 8 de mulheres ocupadas com carteira de trabalho assinada entre os trabalhadores da produção de bens e serviços industriais e reparação e manutenção, em 2013, segundo a PNAD. Já pela RAIS seriam 7,9% de mulheres empregadas formalmente entre os trabalhadores da produção de bens e serviços industriais, 300 mais 0,2% trabalhando em outro grupo de ocupação da produção de bens e serviços industriais e 5,8% em serviços de reparação e manutenção, ou seja, cerca de 13,9%. O cruzamento dos dados de grupamentos ocupacionais por classes de atividade econômica da construção civil revela que as mulheres trabalhadoras da produção de bens e serviços industriais, ou seja, de ocupações ligadas aos canteiros de obras, apesar de representarem menos de 8,0% do total, expandiram fortemente sua inserção no mercado de trabalho formal da construção civil da RMSP, em atividades ligadas a serviços especializados para a construção, passando de 2,2% para 3,4% entre 2009 e 2013. Nesse mesmo período, as mulheres em ocupações de canteiro de obras reduziram sua participação relativa em postos de trabalho com carteira assinada na construção de edifícios e, em menor proporção, em obras de infraestrutura. Tabela 13 - RMSP: Distribuição (%) dos empregos formais das mulheres por grupamentos ocupacionais da CBO 2002 e Classes de atividade econômica da Construção Civil, por sexo, 2009-2013 Serviços Serviços Obras de Obras de Construção especializados Construção especializados infra- Total infra- Total Grupos CBO 2002 de edifícios para a de edifícios para a estrutura estrutura construção construção 2009 2013 1 - Membros superiores do poder público, dirigentes de organizações de interesse público e de empresas e gerentes 1,2 0,7 0,9 2,8 1,5 1,0 1,7 4,3 2 - Profissionais das ciências e das artes 5,0 5,1 2,2 12,2 5,6 5,1 3,3 14,0 3 - Técnicos de nível médio 3,0 3,6 2,9 9,5 3,5 4,0 3,4 10,9 4 - Trabalhadores de serviços administrativos 13,0 11,7 13,1 37,8 12,3 10,3 18,0 40,7 5 - Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio 4,5 16,8 3,5 24,8 5,8 5,5 4,5 15,8 em lojas e mercados 6 - Trabalhadores agropecuários, florestais e da pesca 0,1 0,1 0,0 0,2 0,1 0,1 0,0 0,3 7 - Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais 1 2,6 2,5 2,2 7,2 2,2 2,4 3,4 7,9 8 - Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais 2 0,0 0,1 0,1 0,2 0,0 0,1 0,1 0,2 9 - Trabalhadores em serviços de reparação e manutenção 0,1 4,8 0,4 5,3 0,1 5,2 0,5 5,8 Total 29,4 45,3 25,3 100,0 31,3 33,8 34,9 100,0 Nota: 1 - Este grande grupo compreende: T rabalhadores da indústria extrativa e da construção civil; T rabalhadores da transformação de metais e compósitos; T rabalhadores da fabricação e instalação eletroeletrônica; Montadores de aparelhos e instrumentos de precisão e musicais; Joalheiros, vidreiros, ceramistas e afins; T rabalhadores das indústrias têxtil, do curtimento, do vestuário e das artes gráficas; T rabalhadores das indústrias de madeira e do mobiliário; T rabalhadores de funções transversais (ais como operadores de robôs, de veículos operados e controlados remotamente, condutores de equipamento de elevação e movimentação de cargas etc). 2 - Este grande grupo compreende: Trabalhadores em indústrias de processos contínuos e outras indústrias; Trabalhadores de instalações siderúrgicas e de materiais de construção; Trabalhadores de instalações e máquinas de fabricação de celulose e papel; Trabalhadores da fabricação de alimentos, bebidas e fumo; Operadores de produção, captação, tratamento e distribuição (energia, água e utilidades). Outra forma de subsidiar uma análise da política pública de inserção das mulheres com autonomia na construção civil é o estudo das principais famílias ocupacionais das mulheres empregadas no mercado de trabalho formal da RMSP. A família ocupacional de Ocupações - CBO, onde “cada família constitui um conjunto de ocupações similares correspondente a um domínio de trabalho mais amplo que aquele da ocupação”, e que pressupõe uma formação e determinada experiência requerida para seu o exercício (MTE, 2010a, p.4). Todavia, compreendendo a grande desagregação no número de famílias ocupacionais disponibilizado pela CBO e, ao mesmo tempo, entendendo que o mercado de trabalho feminino na construção civil é bastante heterogêneo e o foco a ser dado é no estudo da inserção feminina no canteiro de obras desse setor, optou-se, logo de início, pela análise das famílias ocupacionais de apenas um grande grupo de ocupação da CBO 2002: 7 - Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais9. Apesar de só representarem 7,9% dos empregos formais entre as mulheres da construção civil, esse recorte seria o que permitiria uma análise da colocação das mulheres no mercado de trabalho formal da RMSP, e que possibilitaria um “confrontamento” das ocupações 9 A introdução de novos modelos organizacionais e de novos padrões tecnológicos, espe- a promover diferenciação entre as ocupações do canteiro de obras da construção de edifícios e de obras de infraestrutura, apesar de não haver nenhum estudo recente que faça essa discussão. Todavia, levando em consideração que o maior crescimento do emprego formal entre as mulheres da RMSP no período de 2009 a 2013 ocorreu em serviços especializados para a construção, foram selecionadas, no 301 estudo das famílias ocupacionais, todas as três divisões de atividades econômicas da construção civil, sem distinção entre a construção de edifícios, obras de infraestrutura ou serviços especializados. Artigo demandadas por esse mercado de trabalho e os cursos de qualificação oferecidos no âmbito do programa Mulheres Construindo Autonomia na Construção Civil. Para tal, foram selecionadas as 20 principais famílias ocupacionais10 de maior participação no emprego formal das mulheres na construção civil em 2013, na Região Metropolitana de São Paulo. As 20 principais famílias ocupacionais, classificadas a partir de sua participação no emprego formal das mulheres na construção civil em 2013, representavam 86,7% do total de trabalhadoras formais desse setor na RMSP em 2009 (Tabela 14). Entre 2009 e 2013, essas ocupações expandiram a uma média anual de 10,6%, um pouco abaixo da média total do setor de 10,8%, o que se refletiu na perda de peso relativo do conjunto dessas famílias ocupacionais nesse período. Mesmo assim, em 2013, essas 20 maiores ocupações correspondiam a 86,0% dos postos de trabalho com carteira assinada das mulheres da construção na RMSP. Em termos de remuneração, apesar de essas ocupações terem apresentado incremento médio anual da remuneração ligeiramente acima da média do mercado de trabalho feminino da construção civil na RMSP, essas 20 ocupações auferiam remunerações médias mensais de R$ 1.426,52 em 2013. A ocupação no canteiro de obras com maior participação das mulheres na RMSP em 2013 era a de ajudante de obras civis. Caracteriza-se por uma ocupação de “entrada” no canteiro de obras da construção, que, de acordo com a CBO requer “uma escolaridade que varia entre a quarta e a sétima séries do ensino fundamental e curso de formação profissional básica com até duzentas horas/aula” (MTE, 2010b, p.159). Essa ocupação sozinha respondia por 38,5% dos empregos formais das mulheres da construção nessa região em 2013, apesar de ter perdido participação entre 2009 e 2013. As ajudantes de obras civis recebiam um salário médio de R$ 1.122,19, um dos mais baixos entre as 20 principais ocupações estudadas – só perdendo para as trabalhadoras de carga e descarga. Em seguida, observam-se as trabalhadoras de estrutura de alvenaria, que representavam 8,4% dos postos de trabalho formais das mulheres desse setor e auferiam remunerações médias de R$ 1.255,60 em 2013. Essa família ocupacional também perdeu peso relativo entre 2009 e 2013, devido a um incremento médio na sua geração de emprego formal de apenas 4,5% ao ano, bem abaixo da média de 10,8% do emprego com carteira assinada entre as mulheres da construção nessa região metropolitana. A terceira principal ocupação, em termos de participação, com crescimento médio anual de 12,8% entre 2009 e 2012, e salários médios de R$ 2.841,57 em 2013 – quase o dobro da média do mercado de trabalho formal feminino da construção civil da RMSP, de R$ 1.438,23), era de supervisor da construção civil. Essa família ocupacional representava 6,1% dos empregos formais e, em conjunto com as duas principais, respondiam por 53,0% do mercado de trabalho formal feminino da construção dessa região em 2013. As instaladoras e reparadoras de linhas e cabos elétricos, telefônicos e de comunicação de dados apareciam como quarta principal ocupação. Essa família ocupacional ampliou sua participação de maneira expressiva entre 2009 e 2013, passando de 0,9% para 4,6%. Apresentaram também incremento acima da média nas remunerações, 6,7% ao ano, com salários médios de R$ 1.600,86, em 2013. Destacam-se, ainda, quatro subgrupos de ocupações ligadas a trabalhos de: construção civil e obras públicas; montagem de tubulações, estruturas metálicas e de compósitos; trabalhos de acabamentos de obras; condução de veículos e operação de equipamentos de elevação e de movimentação de cargas; e caldeiraria e serralheria. 302 10 Para maiores detalhes sobre as famílias ocupacionais ver: MTE, 2010b. Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 Outras ocupações ligadas à construção civil e obras públicas, além dos trabalhos em estrutura de alvenaria, podem ser verificadas entre as 20 principais ocupações; eram elas: montadores de estruturas de madeira, metal e compósitos em obras civis; instaladores elétricos; operadores de máquinas de terraplenagem e fundações; montadores de estruturas de concreto armado; e trabalhadores de instalações de materiais isolantes. Essas cinco famílias ocupacionais correspondiam a 11,0% dos empregos formais das mulheres na construção civil da RMSP em 2013, e auferiam remunerações médias que variavam de R$ 1.188,40, entre as trabalhadoras de instalações de materiais isolantes, a R$ 1.818,29, entre as operadoras de máquinas de terraplenagem e fundações. Três famílias ocupacionais ligadas a trabalhos de montagem de tubulações, estruturas metálicas e de compósitos encontram-se entre as 20 principais ocupações: encanadores e instaladores de tubulações; trabalhadores de soldagem e corte de metais e de compósitos; e trabalhadores de tracagem e montagem de estruturas metálicas e de compósitos. Em conjunto, representavam 7,8% das ocupações femininas da construção dessa região metropolitana em 2009, e caíram para 7,0% em 2013, como reflexo da queda das duas últimas famílias ocupacionais, apesar do pequeno incremento de peso relativo das encanadoras e instaladoras de tubulações. Essas ocupações pagavam salários médio que iam de R$ 1.249,93 a R$ 2.256,63, em 2013. Ressaltam-se, entre as ocupações de acabamentos de obras, as de pintoras de obras e revestidoras de interiores (revestimentos flexíveis), aplicadoras de revestimentos cerâmicos, pastilhas, pedras e madeiras e gesseiras. Essas três ocupações ampliaram sua participação no emprego formal das mulheres desse setor de 2,7%, em 2009, para 4,7% em 2013, com expansão mais expressiva entre as aplicadoras de revestimentos cerâmicos, pastilhas, pedras e madeiras. Entretanto, essas ocupações remuneravam abaixo da média das 20 principais ocupações e do setor, como é possível observar a partir dos dados da Tabela 14. Destacam-se, ainda, entre as 20 principais com maior participação em 2013 as ocupações de condução de veículos e operação de equipamentos de elevação e de movimentação de cargas: motoristas de veículos de cargas em geral, motoristas de veículos de pequeno e médio porte e operadores de equipamentos de movimentação de cargas. Essas três ocupações ampliaram seu peso relativo no mercado de trabalho feminino da construção civil da RMSP de 2,9% para 3,6%, entre 2009 e 2013. Enquanto as motoristas recebiam salários acima dos R$ 1.800,00, as operadoras de máquinas e equipamentos de movimentação de cargas auferiam R$ 1.591,94, em 2013. Enfim, as trabalhadoras de caldeiraria e serralheria apresentaram incremento médio anual de 22,8% ao ano entre 2009 e 2013 na geração de postos de trabalho formal entre as mulheres da construção nessa região metropolitana. Representavam 0,8% dessa força de trabalho, com remunerações medias de R$ 1.822,19 em 2013. Em resumo, os dados sobre o mercado de trabalho formal feminino da indústria da construção civil na RMSP, entre 2009 e 2013, indicam que além de mais escolarizadas, as mulheres estão mais inseridas em ocupações de serviços administrativos e gerais, além de ocupações de nível técnico e médio. Entre as trabalhadoras do canteiro de obras, que eram apenas 7,9% da mão de obra feminina desse setor em 2013, 46,9% estavam trabalhando em duas famílias ocupacionais: de ajudantes de obras civis e trabalhadoras de estrutura e alvenaria, ocupações essas que demandam apenas um grau de escolaridade de nível fundamental e pagam baixos salários. 303 Artigo Tabela 14 - RMSP: 20 ocupações1 com maior participação no emprego formal das mulheres na Construção Civil em 2013 Código Emprego Formal Taxa média de Remuneração médio Taxa média de Distribuição (%) Ranking CBO Família CBO 2002 Mulheres cresc. anual mensal2 (Em R$) cresc. anual 2002 2009 2013 2009/2013 2009 2013 2009 2013 2009/2013 1 7170 AJUDANTES DE OBRAS CIVIS 936 1.247 7,4 43,5 38,5 980,26 1.122,19 3,4 2 7152 TRABALHADORES DE ESTRUTURAS DE ALVENARIA 227 271 4,5 10,6 8,4 1.159,47 1.255,60 2,0 3 7102 SUPERVISORES DA CONSTRUCAO CIVIL 123 199 12,8 5,7 6,1 2.444,73 2.841,57 3,8 INSTALADORES E REPARADORES DE LINHAS E CABOS ELETRICOS, 4 7321 19 148 67,1 0,9 4,6 1.233,24 1.600,86 6,7 TELEFONICOS E DE COMUNICACAO DE DADOS TRABALHADORES DE MONTAGEM DE ESTRUTURAS DE MADEIRA, METAL E 5 7155 74 121 13,1 3,4 3,7 1.220,27 1.353,14 2,6 COMPOSITOS EM OBRAS CIVIS 6 7156 TRABALHADORES DE INSTALACOES ELETRICAS 88 118 7,6 4,1 3,6 1.254,87 1.587,27 6,1 7 7241 ENCANADORES E INSTALADORES DE TUBULACOES 63 105 13,6 2,9 3,2 1.403,62 1.476,23 1,3 8 7243 TRABALHADORES DE SOLDAGEM E CORTE DE METAIS E DE COMPOSITOS 69 92 7,5 3,2 2,8 2.549,90 2.256,63 -3,0 PINTORES DE OBRAS E REVESTIDORES DE INTERIORES (REVESTIMENTOS 9 7166 47 90 17,6 2,2 2,8 1.131,37 1.324,06 4,0 FLEXIVEIS) 10 7825 MOTORISTAS DE VEICULOS DE CARGAS EM GERAL 31 51 13,3 1,4 1,6 1.511,91 1.861,58 5,3 TRABALHADORES NA OPERACAO DE MAQUINAS DE TERRAPLENAGEM E 11 7151 29 49 14,0 1,3 1,5 1.651,10 1.818,29 2,4 FUNDACOES 12 7832 TRABALHADORES DE CARGAS E DESCARGAS DE MERCADORIAS 32 45 8,9 1,5 1,4 917,69 1.121,86 5,2 13 7153 MONTADORES DE ESTRUTURAS DE CONCRETO ARMADO 29 42 9,7 1,3 1,3 1.235,53 1.469,32 4,4 APLICADORES DE REVESTIMENTOS CERAMICOS, PASTILHAS, PEDRAS E 14 7165 4 41 78,9 0,2 1,3 1.286,38 1.209,16 -1,5 MADEIRAS 15 7823 MOTORISTAS DE VEICULOS DE PEQUENO E MEDIO PORTE 23 40 14,8 1,1 1,2 1.948,45 1.829,58 -1,6 TRABALHADORES DE TRACAGEM E MONTAGEM DE ESTRUTURAS METALICAS E 16 7242 36 31 -3,7 1,7 1,0 953,75 1.249,93 7,0 DE COMPOSITOS 17 7244 TRABALHADORES DE CALDEIRARIA E SERRALHERIA 11 25 22,8 0,5 0,8 1.539,81 1.822,19 4,3 18 7157 TRABALHADORES DE INSTALACOES DE MATERIAIS ISOLANTES 7 25 37,5 0,3 0,8 1.495,39 1.188,40 -5,6 19 7822 OPERADORES DE EQUIPAMENTOS DE MOVIMENTACAO DE CARGAS 8 25 33,0 0,4 0,8 1.468,16 1.591,94 2,0 20 7164 GESSEIROS 7 21 31,6 0,3 0,6 1.164,01 1.268,51 2,2 20 principais ocupações entre as mulheres na Construção Civil 1.863 2.786 10,6 86,7 86,0 1.242,44 1.426,52 3,5 Total do mercado de trabalho formal feminino da Construção Civil da RMSP 2.150 3.240 10,8 100,0 100,0 1.259,88 1.438,23 3,4 Fonte: MTE - RAIS. Nota: 1 - A seleção das famílias ocupacionais foi realizada entre o grande grupo 7 - Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais, da CBO 2002. 2 - Valores deflacionados pelo INPC a preços de 2013 304 305 5. Considerações finais A construção civil apresentou forte expansão no início dos anos 2000, especialmente entre 2004 e 2008, mas foi fortemente impactada pelas repercussões da crise financeira internacional sobre a economia brasileira no final de 2008 e início de 2009. Em 2010, com a implementação de um conjunto de políticas e incentivos, o setor cresce expressivamente, mas esse movimento não se sustenta ao longo do tempo. A continuidade dos incentivos fiscais tem se mostrado insuficiente para a manutenção e retomada do incremento do valor adicionado da construção civil. Analisado o movimento da ocupação no início dos anos 2000, chama atenção a desmobilização nos empregos que tem sido realizada pela construção civil a partir de 2014. Esse processo pode causar impactos negativos no consumo, na renda das famílias, e, principalmente, na geração de postos de trabalho, o que levaria a aumento do desemprego. É fundamental a recuperação do crescimento da atividade econômica nacional e a elevação dos investimentos públicos e privados, em infraestrutura econômica e social, para que se consiga reativar um setor tão importante e que gera tantos empregos, como é o caso da construção civil no Brasil. Todavia, é importante ressaltar que o setor ainda é predominantemente ocupado pela mão de obra masculina, apesar da expansão recente da participação do emprego feminino. As mulheres apresentam maiores níveis de escolaridade, melhores formas de inserção por grupamento ocupacional e posição na ocupação – com maior proporção de trabalhadoras com carteira de trabalho assinada, apesar do crescimento do trabalho por conta própria –, menor rotatividade e auferem rendimentos médios maiores. No entanto, ainda eram apenas 4,5% dos ocupados da RMSP em 2013. O mercado de trabalho da indústria da construção civil ainda é marcado pelo baixo nível de escolaridade, alto grau de rotatividade e grande participação do trabalho por conta própria, especialmente entre os homens. Portanto, é preciso avançar em ações propositivas e fiscalizatórias do Estado que enfrentem as principais questões do setor - informalidade, rotatividade, terceirização, saúde e segurança –, como forma de melhorar as relações e condições de trabalho na construção civil. Importantes mudanças foram observadas nesse setor, especialmente aquelas relacionadas à introdução de novos modelos de gestão e produção. E, apesar da incorporação de novas tecnologias, ainda é muito presente o uso de modelos construtivos tradicionais no setor. Já no que se refere aos ganhos de produtividade, eles ocorreram mais em termos de melhorias nos processos de gestão e desenvolvimento de projetos, do que nos canteiros de obras. Ao se confrontar o conjunto de cursos oferecidos pelo programa Mulheres Construindo Autonomia na Construção Civil com a demanda por mão de obra feminina formal da construção civil da RMSP, verifica-se que a maioria dos cursos aparece entre as 20 principais famílias ocupacionais com maior participação no emprego formal das mulheres na construção civil, em 2013, nessa região metropolitana. Contudo, as mulheres do canteiro de obras representavam apenas 7,9% da mão de obra feminina nesse setor. Além de ser uma política que está voltada para uma pequena parcela desse mercado de trabalho, dois pontos merecem destaque: 1) quase metade das trabalhadoras de canteiro de obras estavam ocupadas em duas famílias ocupacionais, de ajudantes de obras civis e trabalhadoras de estrutura e alvenaria. Essas ocupações 306 demandam apenas um grau de escolaridade de nível fundamental e remuneram com baixos salários, em torno de R$ 1.200,00; e 2) os dados de emprego formal da RAIS Qualificação Profissional das Mulheres na Construção Civil 2 mostram que as mulheres estão se inserindo no mercado de trabalho da construção principalmente em ocupações de serviços administrativos, serviços gerais e de nível técnico e superior, e não em ocupações ligadas aos canteiros de obras. Ademais, o processo de classificação, ou seja, de obtenção de um registro de oficial na carteira de trabalho ainda continua permeado por relações paternalistas, como destacam Costa e Tomasi (2009), o que dificulta a inserção e evolução dos trabalhadores no setor. Em síntese, é importante garantir o acesso à educação e formação profissional das mulheres, inclusive possibilitando a formação em cursos voltados para setores historicamente ocupados por homens e onde a discriminação de gênero ainda é bastante presente. Entretanto, essa formação não garante inserção. É preciso fortalecer as políticas de emprego que, a partir do crescimento econômico e da dinamização da atividade econômica nacional, garantam a geração de novos postos de trabalho para, em seguida, fortalecer as políticas públicas voltadas para a autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho das mulheres, com um olhar mais amplo da inserção feminina no mercado de trabalho. 307 Referências Bibliográficas ABRAMAT e FGV projetos (2013). Importações e competitividade na indústria brasileira de materiais de construção. Disponível em: < http://www.abramat.org.br/site/ lista.php?secao=9 >. Acesso em 15 de maio de 2015. ARAUJO, T. P. de; LIMA, R. A. de. Formação profissional no Brasil: revisão crítica, estágio atual e perspectivas. Revista Estudos Avançados, vol. 28, n. 81, maio/ago. 2014. BARAVELLI, J.E. Trabalho e Tecnologia no Programa MCMV. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, mar 2014. BERTASSO, B. 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Dessa forma, além do assalariamento consolidaram-se, no país, diversas formas de inserção ocupacional (com destaque para o trabalho por conta própria) em setores econômicos também bastante diversos em termos de produtividade. São nesses termos que se pode afirmar que o mercado de trabalho nacional ainda é pouco estruturado e bastante heterogêneo, configuração que não encontra paralelo no mundo capitalista desenvolvido (DIEESE, 2011). Esse estudo traz uma breve análise da inserção ocupacional dos trabalhadores por conta própria os quais se caracterizam pela não subordinação a um empregador. Essa forma de inserção possui denominações diferenciadas dependendo das bases metodológicas as quais se recorrem para investigar esse tipo de fenômeno. Nas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), tais atividades são chamadas de “trabalho por conta própria” e, na Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), produzida pela Fundação Seade, Dieese e parceiros regionais, de “trabalho autônomo”. Apesar das diferenças semânticas e até mesmo metodológicas de apuração das formas de inserção ocupacional nos principais mercados metropolitanos do país, neste estudo utilizam-se de maneira indistinta, estas terminologias para se referir aos trabalhadores que tem liberdade de exploração do seu negócio ou ofício, podendo contar ou não, com a ajuda de terceiros. Com relação a essa definição é preciso ressaltar dois aspectos importantes. O primeiro refere-se ao fato de que tais negócios ou ofícios não estão relacionados às atividades compatíveis com a formação universitária dos trabalhadores que as exercem, cuja situação é compreendida pela condição de profissionais liberais (médicos, advogados, dentistas, entre outros), os quais podem contar com até dois empregados remunerados, no exercício da atividade laboral.1 O segundo diz respeito ao próprio segmento dos trabalhadores autônomos, constituído por pessoas que trabalham sozinhas no próprio negócio ou ofício (para o público em geral ou para mais de uma empresa), ou seja, sem a separação entre o trabalho direto e a gestão do negócio, podendo contar com a ajuda de um trabalhador familiar ou, eventualmente, com algum ajudante remunerado por prazo determinado. Na prática, esse segmento laboral está relacionado ao trabalhador autônomo mais tradicional, cujas ocupações geralmente são precárias, devido à combinação de significativas jornadas de trabalho com baixo padrão de rendimentos e ausência de mecanismos de proteção trabalhista e de seguridade social. Para a análise do perfil do trabalho autônomo ou por conta própria, a fonte de informações aqui utilizada é da Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED, que é realizada pelo DIEESE em parceria com a Fundação SEADE, MTE/FAT e convênios regionais em algumas das principais regiões metropolitanas do país – Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo – no período de 2009 e 2013. Os dados da PED mostram que, apesar de algumas singularidades, o perfil majoritário dos trabalhadores que atuam por conta própria é de um público com maior participação masculina, com 50 anos ou mais de idade e de trabalhadores com os mais diferentes níveis de escolarização. Na primeira parte, faz-se uma caracterização dos autônomos nos mercados de 1 Conforme metodologia da Pesquisa de Emprego e Desemprego, o profissional liberal que 312 possui mais de dois empregados subordinados a ele é classificado como empregador, segundo a sua forma de inserção ocupacional no mercado de trabalho. Microempreendedores Individuais – MEI trabalho metropolitanos. Embora os dados não sejam representativos para toda a realidade brasileira, destacam-se algumas características observadas e comuns ao conjunto de importantes regiões metropolitanas do país, entre elas, a maior presença feminina no trabalho autônomo nas áreas metropolitanas nordestinas, regiões nas quais essa forma de inserção apresentou maior peso. A partir dos dados do Sistema PED, constatou-se que o trabalho autônomo é realizado nos mais diferentes lugares, tanto em lugares fixos, como lojas, salas, galpões, e até mesmo nas próprias residências dos trabalhadores quanto em lugares indefinidos, como as vias e os espaços públicos. Uma breve caracterização dessas relações de trabalho mostra que esse segmento do mercado de trabalho convive com extensas jornadas laborais, menor padrão de rendimento e baixa proteção social. Na segunda parte, buscou-se descrever a legislação de criação do programa Microempreendedor Individual como política pública de inclusão à formalidade dos trabalhadores autônomos e microempreendedores informais. O MEI envolve diferentes agendas de governo e trata-se de uma ação de ampliação da proteção social dessa parcela importante de trabalhadores caracterizados na primeira parte do presente estudo, os conta própria ou autônomos. Em seguida, faz-se uma descrição da evolução recente das inscrições no programa e um perfil desses microempreendedores individuais. Considerando que o advento do Microempreendedor Individual (MEI) possa vir a ser um passo importante como uma importante ação para equacionar o déficit das políticas públicas para esse importante e expressivo contingente de trabalhadores, a partir da experiência do MEI, o estudo busca verificar em que medida essa política pública contribuiu efetivamente na ampliação da cobertura previdenciária desse segmento de frágil inserção ocupacional nos mercados de trabalho regionais. Na terceira e última parte são apresentadas as considerações finais. 313 1. O Trabalho Autônomo ou Conta Própria no contexto dos mercados de trabalho metropolitanos De modo geral, ao longo dos anos 2000, o mercado de trabalho brasileiro vivenciou um processo intenso e contínuo de incremento do emprego formal. Nesse contexto, as formas de inserção ocupacional que compõem a informalidade tiveram a participação em relação ao total de ocupados reduzida, em termos relativos. No entanto, houve crescimento em números absolutos, evidenciando a inter-relação com a dinâmica mais geral do mercado de trabalho e as características do próprio processo de desenvolvimento capitalista brasileiro. Os mercados de trabalho nas regiões acompanhadas pelo Sistema PED convergem para uma mesma tendência de melhora, tanto para homens quanto para mulheres. Sob a ótica ocupacional, todas as regiões registraram desempenho positivo no mercado de trabalho entre 2009 e 2013. A expansão do nível ocupacional combinada ao comportamento diferenciado da População Economicamente Ativa (PEA) contribuiu favoravelmente para a redução do número de desempregados nas regiões metropolitanas pesquisadas pelo Sistema PED. Entre 2009 e 2013, evidencia-se crescimento da ocupação total no período (8,0%) e redução do número de desempregados (22,4%). A melhora no mercado de trabalho, como resposta ao crescimento da economia no período, verificou-se pelo aumento mais intenso do emprego assalariado, notadamente o formal – aquele protegido pelo marco legal e que assegura proteção trabalhista e seguridade social (assalariamento com carteira de trabalho assinada nos setores privado e público, e estatutário do setor público). As inserções informais cresceram com menor intensidade, mas ainda de forma significativa. Considera-se informal a parcela de trabalhadores independentes que explora seu negócio sozinho ou com a ajuda de familiares, os chamados trabalhadores por conta própria2. Estes podem ser autônomos para mais de uma empresa, autônomos para o público ou donos de negócios familiares. Dada a natureza dessas formas de inserções e o modelo da rede de proteção social do país, historicamente associado à relação salarial, os mecanismos de proteção são restritos. Os trabalhadores por conta própria representam um foco relevante da desproteção social no Brasil. Uma parcela significativa da população ocupada brasileira empreende por conta própria sua atividade, auto-organizando seu negócio e estabelecendo relação com uma determinada clientela ou mercado de atuação. Trabalham diretamente na produção de bens ou serviços e podem utilizar familiares para a operacionalização de seu trabalho. Os objetivos de sua produção se prendem mais diretamente à sobrevivência ou à geração de uma renda apropriada ao consumo familiar, não sendo meta principal a obtenção de acumulação de capital ou alta rentabilidade, embora possa ser encontradas ocupações com alta produtividade e que auferem rendas superiores às recebidas por grupos de assalariados nas mesmas funções. Esse segmento de trabalhadores não se apoia na intermediação de um empregador e tem um grau de autonomia e controle sobre seu trabalho, não sendo obrigado a cumprir uma jornada previamente estabelecida e dispensa a regulamentação do ritmo e extensão de seu trabalho por terceiros. 2 “O conceito do trabalhador por conta própria vem sendo delineado como oposição ao de empregado, tendo em vista que no último caso o trabalhador é alocado em ocupações de empresas formal ou informalmente constituídas, ou seja, como trabalho assalariado. Assim, o trabalho por conta própria ou autônomo é definido, de um modo generalizado, como uma situação em que o trabalhador exerce a ocupação com independência, controla seu processo de produção, é proprietário do capital empregado na produção e recebe uma renda (e não salário). Essa renda resulta da diferença entre gastos (com a produção e com o consumo próprio) e receitas e não é determinada anteriormente, pois 314 depende da qualidade e da quantidade do trabalho oferecido e também da demanda direta do merca- do no período” (Anita Kon, 2002). Microempreendedores Individuais – MEI Em 2013, o contingente de trabalhadores autônomos ou por conta própria atingiu 3,2 milhões no total das seis regiões pesquisadas pelo Sistema PED, enquanto que no mesmo período, a população ocupada totalizou 18,6 milhões de pessoas. Em termos do contingente (em milhares) de trabalhadores nessa forma de inserção ocupacional, houve discreta redução de 0,3% na comparação entre 2013 contra 2009 para o total das seis regiões metropolitanas. O relativo decréscimo do número de trabalhadores por conta própria representou uma redução da sua participação na população ocupada, correspondendo, em 2013, a 17,3% dessa população no total de ocupados das seis regiões metropolitanas acompanhadas pelo Sistema PED. Esse percentual foi de 18,8% em 2009. Na análise regional da participação dos autônomos na população ocupada verifica- se o peso desse segmento ocupacional nesses mercados, especialmente os da Região Nordeste, que apresentam maior proporção desses trabalhadores (Gráfico 1). Fato, em grande medida, associado aos desequilíbrios regionais ainda existentes entre as regiões brasileiras e ao histórico processo de desenvolvimento econômico e de estruturação dos mercados de trabalhos local e regional. As ocupações reconhecidas como autônomas, em análise, envolvem boa parcela das populações ocupadas dos mercados de trabalho, que de alguma maneira executa uma atividade econômica e laboral como estratégia de sobrevivência, frente às alternativas de trabalho assalariado. Muitas dessas alternativas estão relacionadas à produção de pequena escala, baixo nível de organização e pela quase inexistência de separação entre capital e trabalho, quando se fala em termos de fatores produtivos (MESQUITA, 2014). A divisão dos trabalhadores autônomos em cada região apresenta características específicas, que resultam da natureza da oferta de mão de obra de cada espaço e da estrutura produtiva regional relacionada ao grau de desenvolvimento, que tem impactos sobre a possibilidade de absorver um contingente maior ou menor de trabalhadores 315 nas empresas. O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Entretanto, não se pode deixar de reconhecer que tal situação de procura pelo trabalho autônomo pode estar também associada ao sentimento individual de busca de autonomia no modo de empreender, dada a própria possibilidade de definição do padrão de rendimento e dos horários de trabalho pelo trabalhador, algo mais difícil nas inserções ocupacionais submetidas aos vínculos de subordinação das relações de trabalho assalariadas. Como as oportunidades ocupacionais são desigualmente distribuídas, alguns segmentos populacionais são alocados em posições menos valorizadas econômica e socialmente. Para o segmento feminino a inserção como conta própria ou autônoma pode possibilitar a participação no mercado de trabalho com a “conciliação” de jornadas laborais com o trabalho reprodutivo. A distribuição da população ocupada nas diversas formas de inserção, segundo sexo, com relação às demais posições mostra que a participação dos trabalhadores autônomos, para o conjunto das seis regiões metropolitanas pesquisadas, superou todas as outras, exceto a dos trabalhadores com carteira assinada no setor privado, os quais corresponderam a 47,1% da população feminina ocupada e a 55,2% da população masculina ocupada (Tabela 1). Tabela 1 Distribuição dos ocupados segundo posição na ocupação e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Belo Sexo e posição na ocupação Total (1) Fortaleza Porto Alegre Recife Salvador São Paulo Horizonte Mulheres 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Assalariados Total (2) 66,3 70,0 55,1 70,9 60,0 62,0 68,1 Assalariados do Setor Privado 54,5 52,9 46,2 56,2 45,7 51,1 57,9 Com Carteira Assinada 47,1 47,4 36,7 50,3 38,4 43,1 50,3 Sem Carteira Assinada 7,4 5,6 9,5 5,9 7,3 8,0 7,6 Assalariados do Setor Público 11,8 17,0 8,9 14,7 14,3 10,9 10,2 Autônomos 14,1 12,8 25,9 10,0 18,2 17,7 11,9 Autônomos que Trabalham p/ o Público 10,1 10,1 20,6 7,6 14,3 16,6 7,1 Autônomos que Trabalham p/ Empresa 4,0 2,7 5,3 2,4 3,9 1,2 4,8 Empregadores 2,1 2,6 1,9 3,2 1,8 1,8 2,0 Empregados Domésticos 13,9 12,4 14,2 10,7 15,5 16,9 14,0 Trabalhadores Familiares 1,1 (4) 1,9 (4) 3,1 (4) 1,2 Demais (3) 2,5 2,0 0,9 4,9 1,4 1,3 2,8 Homens 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Assalariados Total (2) 71,7 70,5 68,3 71,6 71,0 72,8 72,6 Assalariados do Setor Privado 64,3 59,7 61,1 62,0 60,7 64,4 67,1 Com Carteira Assinada 55,2 54,0 48,5 54,9 51,8 56,8 57,0 Sem Carteira Assinada 9,2 5,8 12,6 7,1 8,9 7,6 10,0 Assalariados do Setor Público 7,4 10,7 7,2 9,6 10,3 8,4 5,5 Autônomos 20,1 21,4 26,0 17,3 20,9 22,0 18,7 Autônomos que Trabalham p/ o Público 14,3 17,0 21,9 12,6 15,6 20,3 11,5 Autônomos que Trabalham p/ Empresa 5,7 4,4 4,1 4,7 5,3 1,7 7,2 Empregadores 4,6 5,4 2,9 5,8 3,6 3,2 4,8 Empregados Domésticos 0,5 (4) 0,9 (4) 0,8 (4) 0,5 Trabalhadores Familiares 0,4 (4) (4) (4) 1,5 (4) (4) Demais (3) 2,7 2,2 1,4 4,8 2,1 1,3 3,1 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (2) Inclusive aqueles que não informaram o segmento em que trabalham. (3) Inclui profissionais universitários autônomos, donos de negócio familiar, etc. (4) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. 316 Microempreendedores Individuais – MEI 1.1. Perfil dos Trabalhadores Autônomos O universo do segmento de trabalhadores autônomos ou conta própria é bastante diversificado, uma vez que existem características extremamente heterogêneas diante da variedade de atividades desenvolvidas. Nesta seção buscou-se conhecer, através das informações captadas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego, algumas características importantes na construção do perfil desse segmento. Entre os quase vinte milhões de pessoas que possuíam alguma ocupação nas áreas metropolitanas investigadas pelo Sistema PED, em 2013, uma parcela expressiva exercia o trabalho autônomo. Eram 3,2 milhões de pessoas que trabalhavam por conta própria, correspondendo a 17,3% da população ocupada que fora investigada neste estudo. Regionalmente, observa-se a maior participação de autônomos nas áreas metropolitanas do Nordeste, o que sugere maior atenção nacional para que possíveis projetos pilotos possam ser experimentados nessas metrópoles devido à própria expressão que tais atividades possuem nessas regiões. Representatividade dos autônomos segundo gênero Tabela 2 Distribuição dos autônomos (1), segundo sexo Regiões Metropolitanas - 2009 e 2013 (em %) Sexo Regiões Metropolitanas Total Mulheres Homens 2009 Metropolitano (2) 100,0 38,5 61,5 Belo Horizonte 100,0 38,0 62,0 Fortaleza 100,0 43,8 56,2 Porto Alegre 100,0 34,9 65,1 Recife 100,0 40,2 59,8 Salvador 100,0 41,5 58,5 São Paulo 100,0 36,9 63,1 2013 Metropolitano (2) 100,0 37,1 62,9 Belo Horizonte 100,0 33,8 66,2 Fortaleza 100,0 44,4 55,6 Porto Alegre 100,0 32,7 67,3 Recife 100,0 41,0 59,0 Salvador 100,0 40,8 59,2 São Paulo 100,0 35,1 64,9 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. A análise do perfil do trabalhador autônomo segundo o sexo revela que nessas regiões a presença feminina nesta forma de inserção era mais expressiva em relação às demais áreas metropolitanas investigadas, sinalizando perspectivas de intervenção pública tanto na questão regional quanto de gênero. Contudo, as informações da PED atestam existir no conjunto das regiões metropolitanas pesquisadas mais homens inseridos na condição de autônomos que mulheres, atingindo quase 63,0% do total dessa categoria ocupacional em 2013 (Tabela 2). 317 O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Não obstante o predomínio da participação masculina no trabalho por conta própria observa-se, na Tabela 2, que a presença feminina no segmento é proporcionalmente mais expressiva nas metrópoles do Nordeste – Fortaleza (44,4%), Recife (41,0%) e Salvador (40,8%) – o que, em grande medida, sinaliza a importância dessa forma de inserção ocupacional nos mercados de trabalho que possuem, relativamente, maior vulnerabilidade nas relações de trabalho. A ampliação da participação feminina no mercado de trabalho se dá com a reprodução de segmentações em relação às posições em que as mulheres se inserem comparativamente aos homens – por setor de atividade, por ocupação e por hierarquia. Observa-se que, apesar dos avanços da escolaridade das mulheres e da sua crescente participação no mundo do trabalho, sobretudo a partir dos anos 1970, a maior concentração feminina permanece em trabalhos precários, vulneráveis e em setores, atividades econômicas e profissões tradicionalmente por elas ocupadas. Fenômeno associado, em grande parte, ao fato de serem esses “espaços” vistos como possibilidade para que a mulher concilie seu trabalho, atividade produtiva, com os cuidados da família, atividade reprodutiva. Esta é uma das expressões da divisão sexual do trabalho em nossa sociedade. A composição por idade: Os trabalhadores autônomos tem perfil etário mais avançado A composição por idade dos trabalhadores autônomos revela que parcela expressiva dessa força laboral é constituída por pessoas com mais idade, independentemente do recorte geográfico pesquisado. O exame da distribuição dos ocupados segundo faixas de idade permite constatar que um em cada três trabalhadores do conjunto metropolitano disse possuir cinquenta anos ou mais, proporção esta que cresceu ao longo do período investigado – de 29,6% (2009) para 33,4 % (2013) –, realidade que pode estar associada aos mais diversos fatores, entre eles, o envelhecimento populacional e, consequentemente, da força laboral, bem como da própria distribuição da oferta de trabalho de acordo com as características pessoais dos trabalhadores, dentre eles, o perfil etário. Os dados disponíveis indicam que a participação de jovens de 16 a 24 anos no exercício do trabalho autônomo diminuiu, entre os anos de 2009 e 2013, na maioria das regiões metropolitanas pesquisadas, provavelmente como decorrência de melhores oportunidades de trabalho. No que se refere às mulheres trabalhadoras por conta própria os indicadores mostram um comportamento semelhante em relação ao perfil etário registrado para o segmento (Tabela 3). Em 2013, em todas as regiões parcela substantiva das mulheres que se encontrava nessa inserção estava na idade adulta, entre 25 e 39 anos, (33,3%), período de vida no qual a mulher se encontra em idade reprodutiva e vivencia a infância dos filhos. Nas regiões de Porto Alegre e Recife, a participação de mulheres autônomas com mais de 50 anos era superior às demais idades (35,6% e 33,8%, respectivamente). 318 Microempreendedores Individuais – MEI Tabela 3 Distribuição das mulheres autônomas (1), segundo faixa etária Regiões Metropolitanas - 2009 e 2013 (em %) Faixa Etária Regiões Metropolitanas Total 10 a 15 anos 16 a 24 anos 25 a 39 anos 40 a 49 anos 50 a59 anos 60 anos e mais 2009 Metropolitano (2) 100,0 0,9 10,4 35,1 25,9 19,5 8,2 Belo Horizonte 100,0 (3) 9,5 32,0 27,0 21,0 9,4 Fortaleza 100,0 (3) 12,0 34,1 26,4 17,6 8,6 Porto Alegre 100,0 (3) 6,9 30,9 28,1 23,9 10,0 Recife 100,0 (3) 9,3 36,1 26,9 19,2 8,1 Salvador 100,0 (3) 9,2 37,7 27,4 18,6 (3) São Paulo 100,0 (3) 11,1 36,2 24,6 19,2 7,8 2013 Metropolitano (2) 100,0 0,5 7,9 33,3 26,4 21,7 10,2 Belo Horizonte 100,0 (3) 7,5 33,2 26,2 23,0 9,9 Fortaleza 100,0 (3) 8,8 33,9 27,3 19,5 10,0 Porto Alegre 100,0 (3) 7,6 30,6 26,2 25,6 10,0 Recife 100,0 (3) 6,1 30,5 29,4 22,3 11,5 Salvador 100,0 (3) 8,4 34,5 29,7 20,8 (3) São Paulo 100,0 (3) 8,1 33,8 24,6 21,7 11,0 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (3) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. A maior concentração de trabalhadores autônomos em grupo de idade mais elevada não significa dizer que este fato esteja necessariamente associado às restrições das empresas aos trabalhadores “mais velhos”, embora possa haver alguma relação, quando se considera outras características pessoais associadas, como, por exemplo, a experiência profissional e o baixo nível de escolaridade de boa parcela desses trabalhadores, que não ultrapassa o ensino fundamental, o que se traduz em maiores dificuldades para a (re)inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. O nível de escolaridade: As mulheres trabalhadoras autônomas são mais escolarizadas A distribuição do total de autônomos segundo escolaridade (Gráfico 2) denota que uma proporção elevada de trabalhadores autônomos (38,6%) não completou o ensino fundamental. Destacam-se as metrópoles do Recife (43,4%) e de Fortaleza (45,7%), que superam a média metropolitana neste nível de escolarização. No entanto, parcela substantiva de trabalhadores concluiu, no mínimo, o ensino médio (35,0%), o que retrata um perfil de escolaridade bem heterogêneo entre os trabalhadores autônomos. Nesse contexto as ações de apoio ao desenvolvimento das ocupações autônomas deveriam levar em consideração as particularidades existentes entre esses trabalhadores, como, por exemplo, ações relacionadas ao apoio técnico e à programas de qualificação profissional, entre outras. 319 O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Tabela 4 Distribuição dos autônomos (1), segundo escolaridade e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Escolaridade Regiões Metropolitanas Fundamental Médio Completo e Fundamental Superior Total Analfabeto Completo e Médio Superior Incompleto (2) Completo Incompleto Incompleto Mulheres Metropolitano (3) 100,0 2,9 28,2 20,1 41,3 7,5 Belo Horizonte 100,0 (4) 26,1 21,2 44,0 8,0 Fortaleza 100,0 5,3 32,3 22,1 36,6 (4) Porto Alegre 100,0 (4) 24,8 23,1 43,4 7,9 Recife 100,0 4,4 31,4 18,0 41,4 4,8 Salvador 100,0 (4) 27,2 19,9 45,1 (4) São Paulo 100,0 (4) 27,2 19,3 41,1 9,9 Homens Metropolitano (3) 100,0 4,0 39,0 20,4 31,4 5,2 Belo Horizonte 100,0 (4) 38,0 23,3 32,0 5,0 Fortaleza 100,0 10,6 41,6 19,3 26,5 (4) Porto Alegre 100,0 (4) 37,9 21,0 35,6 4,7 Recife 100,0 5,8 42,9 18,4 29,5 3,5 Salvador 100,0 (4) 39,4 21,5 32,0 (4) São Paulo 100,0 3,4 38,0 19,9 31,9 6,8 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. Elaboração: DIEESE. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Inclui alfabetizados sem escolarização. (3) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (4) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. A análise dos diferenciais de escolaridade segundo sexo mostra que as mulheres inseridas como trabalhadoras autônomas são mais escolarizadas que os homens, padrão que ocorre para as outras formas de inserção na estrutura ocupacional do mercado de trabalho independente da região do país (Tabela 4). 320 Microempreendedores Individuais – MEI Parcela expressiva são chefes de família Com relação à posição no domicílio, destaca-se o peso dessa forma de inserção ocupacional não apenas nos mercados de trabalho metropolitanos, mas na própria sustentabilidade familiar, uma vez que mais da metade desses trabalhadores são chefes de famílias (58,2%), aqueles que possuem maior responsabilidade com a provisão econômica e material do domicílio. Nas regiões a presença dos chefes variou entre 53,2%, em Fortaleza, a 64,3%, em Porto Alegre, dos entrevistados, o que sinaliza o peso dessa forma de inserção ocupacional em boa parcela das famílias metropolitanas (Tabela 5). Tabela 5 Distribuição dos autônomos (1), segundo posição no domicílio e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Chefes Demais Membros Regiões Metropolitanas Total Mulheres Homens Mulheres Homens Metropolitano (2) 100,0 11,4 46,8 25,7 16,1 Belo Horizonte 100,0 9,4 45,7 24,3 20,5 Fortaleza 100,0 13,6 39,6 30,8 16,0 Porto Alegre 100,0 10,9 53,4 21,8 13,9 Recife 100,0 13,6 43,1 27,5 15,9 Salvador 100,0 13,2 44,8 27,6 14,4 São Paulo 100,0 10,6 49,2 24,6 15,7 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. Além da expressiva presença de autônomos na condição de chefes de domicílios, outros membros da unidade familiar (cônjuge, filhos, dentre outros) também exercem essa forma de ocupação. A metrópole cearense, entre as regiões pesquisadas, apresentou a maior proporção de membros não chefes na condição de autônomos (46,8%). Na área metropolitana de Belo Horizonte os demais membros envolvidos no trabalho por conta própria somavam 44,9% do total. Ressalta-se que independentemente da posição do indivíduo no domicílio, o trabalho autônomo é uma importante e expressiva forma de inserção ocupacional nos mercados de trabalho metropolitanos. 1.2. Características da Ocupação: distribuição setorial dos trabalhadores, local de trabalho, posse dos instrumentos de trabalho e tempo de permanência Do ponto de vista da análise setorial, constata-se que a Construção Civil era o segmento da atividade econômica no qual o trabalho exercido por conta própria atingia maiores proporções em todas as regiões metropolitanas pesquisadas (Gráfico 3), com percentuais superiores a 40%. A única exceção é a Região Metropolitana de Fortaleza, 321 na qual a presença desses trabalhadores era de 32,9%. Entre 2009 e 2013, a participação O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária de autônomos na construção civil passou de 15,3%, em 2009, para 42,0% em 2013 3. O setor de Serviços, que absorvia maior proporção de trabalhadores autônomos em 2009, registrou uma redução expressiva da sua participação em todas as áreas metropolitanas pesquisadas, no período analisado, perdendo posição para a construção civil. O crescimento da participação de autônomos na construção civil no conjunto das regiões abrangidas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), entre 2009 e 2013, pode estar associado à própria dinamicidade que esse setor adquiriu nos últimos anos, especialmente com as políticas de apoio e fomento, entre elas, linhas de financiamento com subsídios governamentais (Programa Minha Casa, Minha Vida), obras de infraestrutura e desoneração da carga tributária em produtos vinculados a esse setor, favorecendo a expansão do setor em termos de ocupação e de atividade econômica. Entre 2009 e 2013, as regiões metropolitanas de Fortaleza, Recife e Salvador verificaram reduções expressivas de trabalhadores autônomos no Comércio, passando a apresentar participações inferiores à média metropolitana nesse setor (20,0%). Setor que absorve a maior parte dos trabalhadores autônomos com pouca qualificação. Nas demais áreas metropolitanas acompanhadas pelo Sistema PED, observou-se elevação da proporção desses trabalhadores, superando a média observada para o setor. Comportamento que pode estar associado à própria mobilidade ocupacional da força de trabalho entre os setores de atividade econômica, como da própria expansão do emprego formal nos últimos anos (MESQUITA, 2014). A indústria de transformação ocupa 11,8% dos trabalhadores autônomos, com algumas regiões, como Belo Horizonte e Fortaleza, registrando participações superiores à média metropolitana, 14,3% e 16,7%, respectivamente. Em 2013, um contingente de 380,4 mil trabalhadores por conta própria do total metropolitano estavam ligados ao 3 A partir desse período, o Sistema PED adotou a Classificação Nacional de Atividades Econô- 322 micas (CNAE) para maior detalhamento da dinâmica setorial, o que possibilita maior comparabilidade entre os dados de 2009 com os de 2013. Microempreendedores Individuais – MEI setor industrial. Na região de Fortaleza, a maior presença de autônomos nesse setor pode ser explicada, em parte, pela dinâmica do ramo da confecção, atividade tradicional e de forte expressão na economia local. A distribuição setorial segundo sexo revela que as mulheres autônomas estão mais presentes no setor de serviços (52,0%) e no comércio (28,4%), enquanto os homens nos serviços (36,1%) e na construção civil (31,7%) (Tabela 6). Destaca-se o peso relativo da presença das mulheres autônomas na indústria de transformação com percentual bastante superior ao verificado para os homens. Tabela 6 Distribuição dos autônomos (1), segundo setor de atividade econômica e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Metropolitano Belo Setor de Atividade Fortaleza Porto Alegre Recife Salvador São Paulo (2) Horizonte Mulheres Autônomos 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Indústria de transformação (4) 18,6 24,5 26,6 12,7 11,4 10,7 18,7 Construção (5) 0,3 (8) (8) (8) (8) (8) (8) Comércio e reparação de veículos 28,4 19,7 37,5 29,9 41,3 31,2 23,3 automotores e motocicletas (6) Serviços (7) 52,0 54,2 35,5 56,5 46,3 54,4 57,5 Homens Autônomos 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Indústria de transformação (4) 7,7 9,1 8,8 8,3 6,0 5,6 7,7 Construção (5) 31,7 36,5 28,3 29,5 26,6 29,5 33,0 Comércio e reparação de veículos 22,9 16,6 29,4 23,6 26,2 22,0 22,5 automotores e motocicletas (6) Serviços (7) 36,1 36,4 30,9 36,7 38,9 39,1 36,1 Fonte: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e convênios regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego. Elaboração: DIEESE. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (4) Seção C da CNAE 2.0 domiciliar. (5) Seção F da CNAE 2.0 domiciliar. (6) Seção G da CNAE 2.0 domiciliar. (7) Seções H a T da CNAE 2.0 domiciliar. (8) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. Na estrutura setorial analisada para o conjunto dos trabalhadores nessa inserção ocupacional, os dados indicam que o trabalho autônomo está bem disseminado entre os mais diferentes setores de atividade econômica. Cabe mencionar que a maior representatividade de autônomos no setor terciário pode ser atribuída pelos “menores” obstáculos para o ingresso laboral em suas atividades, no qual geralmente não são exigidas maiores experiências e qualificações profissionais e de capital financeiro para o início do negócio. No tocante ao modo como são exercidas essas atividades nos mercados de trabalho metropolitanos, é importante investigar se tais inserções ocupacionais estão mais relacionadas às estratégias de subcontratação ou a fraude das leis trabalhistas ou a meras estratégias pessoais de ingresso no mundo laboral. Segundo os dados de para quem os autônomos trabalhavam, constata-se que a maior proporção exercia suas atividades para a população em geral. No recorte por sexo, 71,7% das mulheres e 71,3% dos homens autônomos trabalhavam para o público (Tabela 7). Nesse contexto, destaca-se a participação do trabalho por conta própria do tipo mais “tradicional”, caracterizado pelas mais diferentes formas de sobrevivência, como vendedores ambulantes, 323 serventes, pedreiros, costureiros, prestadores de serviços simples, entre outros. O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Tabela 7 Distribuição dos autônomos (1), segundo para quem trabalha Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Para quem trabalha Regiões Metropolitanas Para mais de uma Para uma empresa Para a população Total empresa ou ou negócio em geral negócio Mulheres Metropolitano (2) 100,0 22,7 5,5 71,7 Belo Horizonte 100,0 12,9 8,2 79,0 Fortaleza 100,0 18,3 (3) 79,6 Porto Alegre 100,0 18,1 (3) 76,3 Recife 100,0 15,3 6,1 78,6 Salvador 100,0 (3) (3) 93,5 São Paulo 100,0 33,5 6,9 59,7 Homens Metropolitano (2) 100,0 19,7 8,9 71,3 Belo Horizonte 100,0 10,8 9,7 79,5 Fortaleza 100,0 11,6 4,3 84,1 Porto Alegre 100,0 16,3 11,0 72,7 Recife 100,0 19,8 5,4 74,8 Salvador 100,0 5,6 (3) 92,1 São Paulo 100,0 27,3 11,4 61,3 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (3) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. O trabalho para uma única empresa ou negócio foi bem expressivo na metrópole paulistana, o que pode estar associado à própria densidade demográfica e de empresas existentes na região, tal como exemplo as atividades de representação de firmas ou de técnicos mais especializados que prestam seus serviços para o segmento empresarial. Em 2013, verificou-se que a maior parcela dos trabalhadores autônomos residentes nas áreas metropolitanas desenvolviam as atividades fora da residência (em prédios, salas ou galpões). Secundariamente, parcela expressiva exercia suas atividades sem ter instalações fixas, embora usassem equipamentos específicos. De outro lado, um percentual significativo desses trabalhadores fazia da residência seu local de trabalho, especialmente em cômodo não adaptado. No entanto, no recorte por sexo destaca-se o peso relativo de mulheres autônomas que utilizam sua própria residência como local de trabalho nas regiões de Belo Horizonte (40,6%), Fortaleza (52,7%), Recife (45,1%) e Salvador (37,0%), sendo as proporções bem mais elevadas em relação àquelas que exerciam as atividades fora do domicílio (Tabela 8). Ressalta-se que a maior parcela dessas residências não possui nenhuma adaptação para o exercício da atividade laboral. Entre os homens, em 2013, expressiva parcela de trabalhadores não dispõe de locais fixos para o exercício da atividade laboral, mas contam com algum equipamento para desempenhar suas funções, variando entre 52,6%, em Porto Alegre, a 61,7%, em Salvador. 324 Microempreendedores Individuais – MEI Tabela 8 Distribuição dos autônomos (1), segundo local de trabalho e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Metropolitano (2) Belo Horizonte Fortaleza Porto Alegre Recife Salvador São Paulo Local de trabalho Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Autônomos 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Na residência 38,3 9,4 40,6 9,0 52,7 18,4 31,3 7,7 45,1 13,5 37,0 7,8 32,2 7,1 Em cômodo adaptado 12,7 5,0 18,7 6,1 18,2 10,9 14,2 5,6 13,0 5,9 12,4 (3) 8,9 3,1 Em cômodo não adaptado 25,6 4,4 22,0 (3) 34,5 7,5 17,1 (3) 32,1 7,6 24,6 (3) 23,3 4,0 Fora da residência 40,1 34,3 40,2 30,7 26,9 27,3 45,9 39,2 32,1 30,6 27,0 30,4 49,0 37,6 Em edificações 36,9 31,8 38,3 29,9 23,1 23,5 44,9 38,0 26,1 26,4 20,4 25,1 46,7 35,6 Em bancas ou barracas 3,2 2,5 (3) (3) (3) 3,8 (3) (3) 6,0 4,2 6,6 5,3 (3) (3) Sem Instalações fixas 21,5 56,0 19,2 60,0 20,3 53,7 22,9 52,6 22,7 55,3 36,0 61,7 18,7 55,2 Com equipamentos 13,6 48,8 18,1 58,4 9,8 42,1 20,8 50,1 10,8 45,5 29,6 55,7 9,7 47,0 Sem equipamentos 7,9 7,3 (3) (3) 10,5 11,6 (3) (3) 11,9 9,8 (3) 6,0 9,1 8,3 Outro 0,1 0,2 (3) (3) (3) (3) (3) (3) (3) (3) (3) (3) (3) (3) Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (3) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. Esse contexto sinaliza a importância da elaboração de políticas públicas destinadas ao fomento das auto-ocupações, uma vez que parcela razoável dos trabalhadores desse segmento afirmou não possuir alguma adaptação em sua residência para o exercício da atividade laboral. O que, por outro lado, traz enormes desafios para o poder público e para a sociedade de maneira geral no que diz respeito às ações de fiscalizações por parte das instituições governamentais no combate às possíveis irregularidades que podem ocorrer no interior dessas residências. A condição de vulnerabilidade do exercício do trabalho para esse segmento de trabalhadores quanto ao local de trabalho, também é evidenciada quando examinamos o exercício da atividade laboral segundo a posse dos instrumentos de trabalho. O que reafirma a importância de política pública para o trabalho adequada, considerando que parcela significativa dos trabalhadores autônomos relatou não possuir equipamentos próprios para o desempenho de sua atividade (Tabela 9). Tabela 9 Distribuição dos autônomos (1), segundo propriedade dos instrumentos de trabalho e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Posse dos i nstrumentos de trabal ho Regi ões Metropol i tanas De outra pessoa ou Total Própri os de uma empresa Mulheres Metropol i tano (2) 100,0 79,3 20,7 Bel o Hori zonte 100,0 88,8 11,2 Fortal eza 100,0 85,1 14,9 Porto Al egre 100,0 86,3 13,7 Reci fe 100,0 79,5 20,5 Sal vador 100,0 92,0 8,0 São Paul o 100,0 70,7 29,3 Homens Metropol i tano (2) 100,0 79,6 20,4 Bel o Hori zonte 100,0 88,3 11,7 Fortal eza 100,0 79,6 20,4 Porto Al egre 100,0 87,4 12,6 Reci fe 100,0 77,5 22,5 Sal vador 100,0 89,4 10,6 São Paul o 100,0 74,6 25,4 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. 325 (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Nos mercados de trabalho metropolitanos, o tempo médio de permanência na empresa apresenta grande discrepância segundo a modalidade de contratação dos trabalhadores. Em que pese o trabalho autônomo ser caracterizado por sua heterogeneidade e carregar o estigma da insegurança e da vulnerabilidade, no que diz respeito à estabilidade da sua inserção ocupacional, destaca-se o tempo médio de permanência na auto-ocupação (MAIA E GARCIA, 2012). Em meio aos trabalhadores autônomos, no que se refere ao tempo médio de permanência no trabalho, observa-se que há algum tempo esses trabalhadores estão no exercício da atividade laboral – aproximadamente quatro em cada dez autônomos entrevistados nessas regiões possui cinco anos ou mais no trabalho atual na maioria dos mercados metropolitanos monitorados pelo Sistema PED. O que indica maiores resistências para mudanças mais bruscas na atividade a qual já estão habituados, e pode estar associado a outras características pessoais, como o baixo nível de escolarização e a idade mais avançada de boa parcela desse segmento populacional. O percentual expressivo de trabalhadores autônomos com tempo de trabalho tão prolongado em todas as regiões metropolitanas, tendo apresentado ainda, entre 2009 e 2013, crescimento deste contingente, sinaliza o enraizamento desse tipo de inserção ocupacional nos mercados de trabalhos locais. Na tabela 10, no recorte por sexo destaca-se a participação das mulheres ocupadas com mais de dez anos no exercício do trabalho autônomo, 17,4%, enquanto os homens superavam esse patamar, 24,4%. Os homens apresentam os maiores percentuais na faixa de tempo de permanência com mais de dez anos, sendo o mais expressivo na região de Belo Horizonte, enquanto as mulheres concentram-se nas faixas dos que exercem sua atividade entre dois a cinco anos. 326 Microempreendedores Individuais – MEI Tabela 10 Distribuição dos autônomos (1), segundo faixas de tempo de permanência no trabalho principal e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Tempo de Permanência Regiões Metropolitanas Até 6 Mais de 6 Mais de 1 Mais de 2 Mais de 5 Mais de 10 Total meses a 12 meses a 2 anos a 5 anos a 10 anos anos Mulheres Metropolitano (2) 100,0 20,6 11,3 13,1 21,2 16,4 17,4 Belo Horizonte 100,0 10,4 10,3 12,3 21,2 20,1 25,6 Fortaleza 100,0 20,6 12,0 13,1 22,1 16,9 15,3 Porto Alegre 100,0 13,8 9,5 13,0 23,1 17,8 22,9 Recife 100,0 18,1 10,5 11,8 21,3 18,5 19,8 Salvador 100,0 18,1 12,1 13,6 22,9 16,7 16,5 São Paulo 100,0 25,4 11,5 13,5 20,2 14,5 14,9 Homens Metropolitano (2) 100,0 23,3 8,7 11,1 16,6 15,9 24,4 Belo Horizonte 100,0 11,3 9,7 10,3 18,9 17,5 32,3 Fortaleza 100,0 24,1 9,3 9,6 17,3 17,2 22,6 Porto Alegre 100,0 16,4 8,0 10,1 17,1 18,1 30,4 Recife 100,0 32,7 7,5 7,0 13,3 15,5 23,9 Salvador 100,0 21,6 9,1 11,2 18,5 18,0 21,5 São Paulo 100,0 26,1 8,5 12,6 16,1 14,4 22,4 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. Esse tipo de inserção ocupacional é bastante marcado pelo baixo padrão de (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. remuneração, na maioria dos casos, especialmente porque opera em pequena escala, com tecnologias geralmente adaptadas e com qualificação geralmente adquirida no “saber fazer” se comparada à participação em cursos de qualificação profissional oferecidos por entidades ou institutos especializados em formação técnica e profissional, tais como as do “Sistema S” (SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio, SENAI – da Indústria e outros), o que dificulta, sobremaneira, o próprio aperfeiçoamento da atividade laboral. Sem maiores alternativas de apoio ou preparo para o exercício desse tipo de modalidade ocupacional, o trabalhador autônomo prolonga sua atividade até quando é possível (MESQUITA, 2014, p. 40). 1.3. Contribuição à Previdência Um aspecto relevante e preocupante com relação ao trabalhador autônomo ou por conta própria é a ausência de proteção previdenciária, considerando que a maior proporção desses trabalhadores se encontra à margem da proteção social assegurada aos contribuintes da Previdência. A constituição da previdência social no Brasil seguiu a lógica do “seguro social para a pessoa que contribui. É uma instituição pública que tem como objetivo reconhecer e conceder direitos aos seus segurados” (PREVIDÊNCIA, 2015). Nesse sentido, a condição do trabalhador autônomo ou conta própria contém uma relação especial com a previdência social. A cobertura previdenciária não é um dado como 327 para o trabalhador assalariado, mas decorre de um ato deliberado do trabalhador O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária no sentido de providenciar sua inserção como contribuinte autônomo. Para tanto, é necessário a consciência dos benefícios, o conhecimento dos procedimentos requeridos e, finalmente, a possibilidade de destinar parcela de seus rendimentos à previdência. Nesse contexto, a prática previdenciária é uma prática restrita. Nas áreas pesquisadas pelo Sistema PED, constata-se que 74,8% dos trabalhadores autônomos das regiões metropolitanas não possuem qualquer tipo de contribuição previdenciária. Na Região Metropolitana de Fortaleza, 89,0% dos trabalhadores autônomos não recolhiam parte de seus ganhos à previdência social, ou seja, nove em cada dez trabalhadores (Tabela 11). Tendo a região Nordeste apresentada os maiores percentuais de desproteção social. Tabela 11 Distribuição dos autônomos (1), segundo contribuição à Previdência Social Regiões Metropolitanas 2009 e 2013 (em %) Contribuição à Previdência Social Regiões Metropolitanas Total Sim Não 2009 Metropolitano (2) 100,0 16,5 83,5 Belo Horizonte 100,0 23,2 76,8 Fortaleza 100,0 6,6 93,4 Porto Alegre 100,0 30,5 69,5 Recife 100,0 9,1 90,9 Salvador 100,0 15,2 84,8 São Paulo 100,0 16,8 83,2 2013 Metropolitano (2) 100,0 25,2 74,8 Belo Horizonte 100,0 36,7 63,3 Fortaleza 100,0 11,0 89,0 Porto Alegre 100,0 44,5 55,5 Recife 100,0 16,8 83,2 Salvador 100,0 24,0 76,0 São Paulo 100,0 25,0 75,0 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo Em termos absolutos, cerca de 2,4 milhões de trabalhadores não tinham qualquer proteção previdenciária, o que ressalta a vulnerabilidade de milhões de pessoas que diariamente estão expostas aos riscos de acidentes de trabalho, doenças, desemprego ou de aposentadoria (invalidez ou tempo de contribuição) e não dispõem de um sistema de proteção social que os assegure nesses momentos (MESQUITA, 2014). Os dados analisados indicam que parcela expressiva de trabalhadores autônomos encontra-se no exercício da atividade por um tempo prolongado, no conjunto das regiões pesquisadas, e na ausência de proteção trabalhista e previdenciária. A conjunção desses fatores denota a gravidade de um problema que historicamente pouco se avançou em termos de políticas públicas do trabalho. 328 A contribuição previdenciária é relativamente maior entre os homens que entre as mulheres (26,2% dos homens contra 23,3% para as mulheres). O percentual contribuinte, Microempreendedores Individuais – MEI tanto para homens como mulheres inseridos no trabalho autônomo, era muito baixo, principalmente quando comparado a outras categorias de ocupados. No caso específico das mulheres, isto dificulta o acesso destas trabalhadoras a direitos básicos como a licença-maternidade. Tabela 12 Distribuição dos trabalhadores autônomos (1), segundo contribuição à Previdência e sexo Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Contribuição à Previdência Social Regiões Metropolitanas Total Sim Não Mulheres Metropolitano (2) 100,0 23,3 76,7 Belo Horizonte 100,0 34,2 65,8 Fortaleza 100,0 10,6 89,4 Porto Alegre 100,0 42,5 57,5 Recife 100,0 15,9 84,1 Salvador 100,0 23,5 76,5 São Paulo 100,0 24,0 76,0 Homens Metropolitano (2) 100,0 26,2 73,8 Belo Horizonte 100,0 38,0 62,0 Fortaleza 100,0 11,3 88,7 Porto Alegre 100,0 45,4 54,6 Recife 100,0 17,4 82,6 Salvador 100,0 24,3 75,7 São Paulo 100,0 25,5 74,5 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. 1.4. Rendimentos Outra característica marcante do trabalho autônomo, além da inexistência de mecanismos de proteção trabalhista e previdenciária, é o baixo padrão de remuneração e extensa jornada de trabalho, embora a média de rendimento desses trabalhadores fosse superior ao valor do salário mínimo de R$ 678, em 2013, em todas as metrópoles pesquisadas (Tabela 13). Entre 2009 e 2013 o rendimento médio real cresceu em todas as regiões metropolitanas, variando de 3,5%, em Salvador, a 44,3%, em Recife. No entanto, os dados apresentados mostram que há grandes desigualdades no padrão de rendimento desses trabalhadores, em termos regionais, como é de se esperar, dado que a remuneração dos autônomos está relacionada ao grau de desenvolvimento da região (KON, 2002). As diferenças de rendimento eram bastante acentuadas entre os trabalhadores nordestinos e os das demais áreas metropolitanas. 329 O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Tabela 13 Rendimento médio real (1) dos autônomos (2) no trabalho principal, segundo sexo Regiões Metropolitanas - 2009 e 2013 Rendimento Médio Real Variação Relativa (em %) Regiões Metropolitanas 2009 2013 2013/2009 Total Mulheres Homens Total Mulheres Homens Total Mulheres Homens Metropolitano (3) 1.055 726 1.292 1.268 844 1.550 20,2 16,3 20,0 Belo Horizonte 1.268 832 1.569 1.502 1.038 1.769 18,5 24,8 12,7 Fortaleza 651 477 838 842 621 1.072 29,3 30,2 27,9 Porto Alegre 1.320 939 1.534 1.552 1.097 1.778 17,6 16,8 15,9 Recife 628 432 772 906 615 1.137 44,3 42,4 47,3 Salvador 858 613 1.045 888 632 1.082 3,5 3,1 3,5 São Paulo 1.222 848 1.468 1.483 971 1.776 21,4 14,5 21,0 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Inflator utilizado: IPCA/BH/IPEAD; INPC-RMF/IBGE; IPC-IEPE/RS; INPC-RMR/IBGE; IPC-SEI/BA; ICV-DIEESE/SP. Valores em reais de novembro de 2013. (2) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (3) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. Em 2013, o rendimento médio real dos trabalhadores autônomos, segundo os dados do Sistema PED, na região metropolitana de Fortaleza (R$ 842) era, em média, consideravelmente inferior ao de Porto Alegre (R$ 1.552), praticamente o dobro do valor observado. Muito embora, a média metropolitana para o conjunto dos trabalhadores autônomos (R$ 1.268) não ultrapassava 2 salários mínimos, situando-se em nível inferior à média registrada para o total dos assalariados (R$ 1.637), no mesmo período. As diferenças de inserção dos segmentos populacionais no mercado de trabalho refletem-se em diferenciais de remunerações. Assim, o rendimento dos homens fica em patamar superior ao da média (R$ 1.550), enquanto o das mulheres correspondia apenas a 66,6% desse indicador (Tabela 13). Se, para o conjunto dos trabalhadores autônomos, a região Nordeste revelava rendimentos cerca de 30% inferiores à média metropolitana, para as mulheres essa relação era ainda mais perversa. As trabalhadoras autônomas nordestinas tinham rendimentos de aproximadamente 50% do valor médio dos ocupados nessa forma de inserção ocupacional. Há diferenças também no padrão de rendimento dos trabalhadores por conta própria quando analisado pelo valor da hora trabalhada. Constata que as mulheres nas auto-ocupações recebiam em média 65,1% da hora trabalhada pelos homens no desempenho de suas atividades. Gráfico 5 Proporção dos rendimentos médios reais por hora (1) das mulheres trabalhadoras autônomas (2) em relação aos rendimentos médios reais por hora dos homens Regiões Metropolitanas - 2009 e 2013 Em % 80,0 77,7 75,9 75,0 72,6 72,6 70,8 71,4 70,0 68,7 68,2 67,1 66,9 65,8 65,6 65,1 65,4 65,0 60,0 Metropolitano Belo Horizonte Fortaleza Porto Alegre Recife Salvador São Paulo (3) 2009 2013 Fonte: DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Inflator utilizado: IPCA/BH/IPEAD; INPC-RMF/IBGE; IPC-IEPE/RS; INPC-RMR/IBGE; IPC-SEI/BA; ICV-DIEESE/SP. 330 (2) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (3) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e Sãp Paulo. Microempreendedores Individuais – MEI A jornada média total deste segmento ocupacional, considerado apenas o trabalho principal, era de 41 horas semanais. Em termos regionais, a jornada média mais prolongada foi na região metropolitana do Recife (43 horas). A distribuição da jornada de trabalho dos trabalhadores autônomos, na Tabela 14 e Gráfico 6, apresenta a concentração destes trabalhadores segundo o número de horas trabalhadas. Para cada faixa ou período de horas separadamente, observa-se que as concentrações de trabalhadores nesta faixa são consideravelmente diferenciadas entre os gêneros. Entre os que trabalham até 20 horas e de 21 a 30 horas semanais, os homens apresentam concentrações abaixo da média verificada para as mulheres em todas as regiões. Para os trabalhadores autônomos que se ocupam em um período de 31 a 40 horas, ocorre o inverso, os homens revelam proporções superiores ao das mulheres. E para aqueles que se ocupam na faixa acima de 44 horas por semana verifica-se um distanciamento maior entre os dois grupos populacionais, de 13,3 pontos percentuais. Tabela 14 Distribuição dos autônomos (1), segundo faixas de horas trabalhadas Regiões Metropolitanas - 2013 (em %) Faixas de horas trabalhadas Regiões Metropolitanas De 21 a 30 De 31 a 40 De 41 a 44 Mais de 44 Total Até 20 horas horas horas horas horas Mulheres Metropolitano (2) 100,0 26,5 16,0 20,1 3,8 33,6 Belo Horizonte 100,0 15,9 18,3 32,5 (3) 31,1 Fortaleza 100,0 25,3 13,7 16,0 5,8 39,2 Porto Alegre 100,0 20,5 16,2 20,4 (3) 38,6 Recife 100,0 27,3 15,0 14,3 4,1 39,3 Salvador 100,0 30,3 17,7 18,7 (3) 30,1 São Paulo 100,0 29,5 16,1 20,1 (3) 30,7 Homens Metropolitano (2) 100,0 9,7 10,3 28,2 4,9 46,9 Belo Horizonte 100,0 4,4 7,1 42,4 3,5 42,5 Fortaleza 100,0 11,9 10,8 22,1 7,9 47,3 Porto Alegre 100,0 8,9 10,7 28,4 5,4 46,6 Recife 100,0 10,0 8,3 16,9 4,2 60,6 Salvador 100,0 8,2 10,0 22,5 (3) 55,5 São Paulo 100,0 11,0 11,4 29,0 4,9 43,7 Fonte: Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais. Sistema PED. Pesquisa de Emprego e Desemprego. (1) Incluem os autônomos para mais de uma empresa e os autônomos para o público. (2) Corresponde ao total das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. (3) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria. No entanto, observa-se que cerca de um terço das mulheres trabalhadoras autônomas laboravam mais de 44 horas semanais e quase metade dos homens nas auto-ocupações tinha a mesma jornada extensa de trabalho semanal. No Nordeste encontravam-se as maiores proporções de homens na jornada acima das 44 horas e das mulheres, mais expressivamente, em Fortaleza e no Recife, percentuais acima das médias metropolitanas, em 2013. 331 O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária 2. O Trabalho Autônomo e a experiência do Microempreendedor Individual – o MEI O modelo de previdência social adotado no Brasil, com foco voltado para os trabalhadores formais, tem gerado uma cobertura previdenciária parcial que pode ser explicada pela configuração heterogênea do mercado de trabalho nacional e de sua relativa incompatibilidade com o modelo de seguro social, que não consegue incluir os trabalhadores desempregados, empregados rurais e urbanos sem carteira, assim como praticamente todo o conjunto de trabalhadores vinculados a atividades autônomas (JACCOUD, 2009). Os trabalhadores por conta própria, segundo dados da PNAD 2013 somavam aproximadamente 19,9 milhões de pessoas, convivem, em sua maioria, com a desproteção previdenciária no país, apresentando nível de proteção inferior até mesmo ao de grupos como os trabalhadores domésticos. Uma proporção muito pequena desse segmento ocupacional contribui para a Previdência Social, prevalecendo alto nível de informalidade nessa posição da ocupação. Nesse contexto, a ampliação da cobertura previdenciária desses trabalhadores por conta própria ou autônomos é estratégia necessária e fundamental para a expansão da proteção social no Brasil. Nesse sentido, várias medidas têm sido tomadas pelo 332 Governo Federal com o objetivo de ampliar a formalização dos trabalhadores por conta própria, como por exemplo, o Plano simplificado de Previdência Social para o Microempreendedores Individuais – MEI contribuinte individual (LC nº 123/2006) que reduziu a alíquota de 20% sobre o salário de contribuição para 11% sobre o salário mínimo, ficando, entretanto, excluído o direito à aposentadoria por tempo de contribuição, com direito apenas a aposentadoria por idade no valor de um salário mínimo. Outra iniciativa de política pública de inclusão à formalidade de parcela expressiva de autônomos e microempreendedores informais foi a Lei Complementar nº 128/2008 que criou a figura jurídica do Microempreendedor Individual (MEI), estabelecendo o limite, incialmente de R$ 36 mil de faturamento anual e, posteriormente, ampliado para R$ 60 mil para que os empreendedores informais tivessem acesso a um conjunto de benefícios da formalização. O MEI avançou na redução da carga tributária prevista no Simples, eliminando entraves burocráticos e possibilitando, a partir de 2011, aos optantes do referido sistema, pagar apenas a contribuição previdenciária de 5% sobre o salário mínimo, conforme determinou a medida provisória nº 529/2011, mais R$ 5,00 para o município (ISS), quando a atividade for de serviço, e/ou R$ 1,00 para o Estado (ICMS), quando a atividade envolver produtos comercializados. A baixa contribuição à Previdência Social e a isenção de impostos federais são uma tentativa de estimular a formalização por meio de tratamento tributário mais favorável e compatível com a capacidade contributiva do público-alvo (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011). A rápida expansão do Programa se deve ao processo simplificado e desburocratizado de inscrição, assim como o estímulo por meio de benefícios da formalização como: crédito mais barato, emissão de nota fiscal, entre outros. Nesse sentido, pode-se dizer que o advento do MEI pode ser considerado como uma forma de maior aproximação da realidade objetiva dos trabalhadores autônomos mais tradicionais com a necessidade subjetiva de constituição de uma personalidade jurídica – a inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) – tornando acessível a esses trabalhadores as linhas de financiamento, as iniciativas das compras governamentais, entre outros benefícios. 2.1 Análise da Legislação para o Microempreendedor Individual Como destaca os estudos do SEBRAE e BNDES (2013), Oliveira (2013) e Costanzi, Barbosa e Ribeiro (2011), existe um conjunto de normas constitucionais relativas à criação e ampliação de microempreendedores individuais e micro e pequenas empresas e a expansão da proteção social, entre elas: • A Lei 7.254/84 – Primeira legislação elaborada com o objetivo de favorecer as micro e pequenas empresas do país nos âmbitos: previdenciário, tributário, trabalhista; • A Lei 8.864/94 – Lei que determina os requisitos básicos para enquadramento de uma empresa como microempresa ou empresa de pequeno porte; • A Emenda Constitucional (EC) nº 06, de 15 de agosto de 1995 – Lei que limita os benefícios oferecidos às microempresas e empresas de pequeno porte apenas aquelas com sede e administração no país; • A Lei 9.317/96 – Lei que institui o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – 333 SIMPLES. Atualmente modificada e incorporada a LC 123/06; • A Lei 9.841/99 – Lei que estabelece o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dispondo sobre o tratamento jurídico diferenciado, simplificado e favorecido previsto nos artigos 170 e 179 da Constituição Federal; • A Lei 10.460/2002 – Novo código civil que cria o Microempreendedor Individual depois regulamentado na LC 128/08; • A Lei 10.666/2003 – Lei que modifica a forma de recolhimento dos trabalhadores por conta própria que prestam serviços às empresas; • A Lei 11.598/2007 – Cria a Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – REDESIM, e estipula diretrizes e procedimentos para a simplificação e integração do processo de registro e legalização das micro e pequenos empresas; e • O Decreto 6.884/2009 – Decreto que concebe um comitê gestor para a REDESIM. Todavia, as duas principais legislações atuais com foco no Microempreendedor Individual são as Leis Complementares 123/06 e 128/08. A Lei complementar n⁰ 123 de 14 de dezembro de 2006 institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, definindo normas gerais em relação ao tratamento diferenciado e favorecido para estas organizações no que se refere a um único regime de arrecadação de impostos e contribuições; ao cumprimento de obrigações trabalhistas e previdenciárias; ao acesso ao crédito e ao mercado; e ao cadastro nacional único de contribuintes. Além disso, essa lei complementar estabeleceu o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional, um sistema de simplificação de tributos onde é possível o pagamento de oito tributos (IRPJ, IPI, CSLL, COFINS, PIS/PASEP, CPP, ICMS e ISS) em apenas uma única guia de recolhimento (BRASIL, 2006; SEBRAE E BNDES, 2013). Com o objetivo de ampliar a inclusão previdenciária cria-se o Plano Simplificado de Previdência Social (PSPS) que reduziu a alíquota de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) “de 20% sobre o salário de contribuição para 11% sobre o salário mínimo para contribuintes individuais que prestam serviços para pessoas físicas e contribuintes facultativos, ficando, entretanto, excluído o direito à aposentadoria por tempo de contribuição, com direito apenas a aposentadoria por idade no valor de um salário mínimo” (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011, p. 388). A Lei Complementar n⁰ 128 de 19 de dezembro de 2008, por sua vez, altera a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa e cria o Microempreendedor Individual (MEI). Como evidencia Oliveira (2013), o MEI foi pensado como uma política de inclusão à formalidade para os trabalhadores autônomos e microempreendedores informais, especialmente àqueles das áreas urbanas. De acordo com os dados da PNAD, em 2009, quando a lei foi implementada, havia 19,2 milhões de trabalhadores por conta própria no país, cerca de 20,5% da população ocupada, dos quais 12,8 milhões eram homens e 6,4 milhões mulheres. Após atualização do valor4, em 2011, passou-se a considerar MEI, de acordo com a lei, o empresário individual que tenha auferido receita bruta, no ano-calendário anterior, de até R$ 60.000,00 mil reais, seja optante pelo Simples Nacional e exerça atividade permitida ao MEI, de acordo com o art. 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. A partir desta, possibilitou-se ao MEI contratar apenas um 334 4 Ver Lei Complementar 139/2011. Microempreendedores Individuais – MEI único empregado que receba exclusivamente 1 (um) salário mínimo ou o piso salarial da categoria profissional. Vale ressaltar, ainda, que o MEI só pode possuir um único estabelecimento e não lhe é permitido participar de outra empresa como titular, sócio ou administrador (BRASIL, 2008). Esse processo de formalização busca fornecer uma série de benefícios para esses empreendedores individuais, entre eles: o registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, o que proporciona a emissão de nota fiscal para venda/prestação de serviço para outras empresas ou para o setor público e a abertura de conta bancária com acesso a crédito mais barato, além do acesso à aposentadoria e outros direitos previdenciários. O processo de abertura, registro, alteração e baixa da microempresa e empresa de pequeno porte não incorre em custos, inclusive prévios, quanto à abertura, à inscrição, ao registro, ao funcionamento, ao alvará, à licença, ao cadastro, às alterações e procedimentos de baixa e encerramento e aos demais itens relativos ao microempreendedor individual. Como evidenciam Costanzi, Barbosa e Ribeiro (2011), dentro do Simples Nacional, na verdade a categoria do MEI representa uma nova faixa de menor faturamento, atingindo assim a base da pirâmide das micro e pequenas empresas. O microempreendedor individual, sendo enquadrado no Simples Nacional, está isento dos tributos federais (Imposto de Renda – IR; Programa de Integração Social – PIS; Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS; Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI; e Contribuição Sobre o Lucro Líquido – CSLL). Além disso, como mostra Oliveira (2013), foi implantado um sistema de registro, por meio do Portal do Empreendedor, que facilita o processo de registro e baixa do MEI. Todavia, este deve pagar mensalmente, através de uma guia única e integrada emitida pela internet, um valor referente: à contribuição previdenciária ao Simples Nacional (que corresponde a 5% do salário mínimo vigente no ano5); ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS); e/ou ao Imposto sobre Serviços de qualquer Natureza (ISS), conforme o ramo de atividade que está inscrito6. Entretanto, a inscrição no MEI é permitida para apenas 485 atividades de comércio, indústria e serviços7. A partir de 2014, a tributação municipal do imposto sobre imóveis prediais urbanos passou a garantir a aplicação de alíquota menor, seja residencial ou comercial, ao MEI que realize sua atividade na mesma localidade em que residir (BRASIL, 2014). Porém, a prefeitura também pode cobrar algumas alíquotas, não no início das atividades como MEI, mas nas renovações, geralmente um ano após o registro como microempreendedor individual. As principais taxas são a de Fiscalização de Abastecimento, Fiscalização de Anúncios, Licença de Funcionamento e Fiscalização Sanitária. A legislação sobre o MEI não tem por objetivo fragilizar as relações de trabalho existente, não devendo servir de instrumento para a transformação de um trabalhador em microempreendedor individual, através de processos de terceirização ou de substituição do emprego com carteira assinada pela prestação de serviço. Para inibir tal possibilidade, 5 A Contribuição previdenciária do MEI, na sua criação, era de 11% do salário mínimo, o que correspondia ao mesmo valor dos contribuintes individuais e facultativos do Plano Simplificado de Previdência Social (PSPS). Porém, com a Medida Provisória n⁰ 529, de 07 de abril de 2011, depois transformada na Lei n⁰ 12.470, o valor de contribuição à previdência do MEI foi reduzido para 5% do salário mínimo (COSTANZI et al., 2011). 6 O valor atual varia de R$ 40,40 a R$ 45,40. Sendo R$ 39,40 para a contribuição previdenciária (o que representa 5% do salário mínimo de R$ 788,00) acrescido de: R$ 1,00 de ICMS, se a atividade for do comércio ou indústria; R$ 5,00 de ISS para os prestadores de serviços; ou R$ 6,00 de ICMS e ISS para atividades de comércio e serviços (PORTAL DO EMPREENDEDOR, 2015). 335 7 Conforme lista completa disponível em: <http://www.portaldoempreendedor.gov.br/mei-mi- croempreendedor-individual/atividades-permitidas/lista-completa-de-atividades-permitidas-ao-mei>. O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária além de restringir o número de atividades permitidas, o Art. 6º da Resolução nº 58, de 27 de abril de 2009, do Comitê Gestor de Tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – CGSN determina que: “Art. 6º - O MEI não poderá realizar cessão ou locação de mão de obra. § 1º - Cessão ou locação de mão de obra é a colocação à disposição da empresa contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de trabalhadores, inclusive o MEI, que realizem quaisquer que sejam a natureza e a forma de contratação. (...)§ 4º - Por colocação à disposição da empresa contratante entende-se a cessão do trabalhador, em caráter não eventual, respeitados os limites do contrato. § 5º - A vedação de que trata o caput não se aplica à prestação de serviços de hidráulica, eletricidade, pintura, alvenaria, carpintaria e de manutenção ou reparo de veículos. § 6º - Na hipótese do § 5 º , a empresa contratante de serviços executados por intermédio do MEI deverá, com relação a esta contratação: recolher a Contribuição Previdenciária Patronal (CPP); prestar as informações de que trata o inciso IV do art. 32 da Lei n º 8.212, de 1991 ; cumprir as demais obrigações acessórias relativas à contratação de contribuinte individual. § 7º - O disposto no § 6 º aplica-se a qualquer forma de contratação, inclusive por empreitada” (RECEITA FEDERAL, 2009). O MEI, em termos previdenciários, garante também ao microempreendedor uma cobertura composta pelos seguintes benefícios: • Aposentadoria por idade: mulheres a partir dos 60 anos e homens aos 65 anos. Também é necessário ter contribuído por, no mínimo, 15 anos; • Aposentadoria por invalidez, onde é necessário um ano de contribuição; • Auxílio-doença, após um ano de contribuição; • Salário-maternidade, a partir de 10 meses de contribuição; • Pensão por morte, logo após o primeiro pagamento em dia; e • Auxílio reclusão. No que se refere ao auxílio-doença e ao salário-maternidade: “Em caso de gozo de benefício de auxílio-doença ou de salário-maternidade não é devido o recolhimento da 336 contribuição do MEI relativamente à Previdência Social, desde que o período do benefício englobe o mês inteiro. Caso o início O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Tabela 15 Atividades mais frequentes entre os Optantes pelo SIMEI, por classe CNAE e sexo Brasil - Até 2014 Optantes MEI Distribuição (%) por sexo Distribuição (%) por sexo Ranking Classe CNAE 2.0 Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total 1 Comércio varejista de artigos do vestuário e acessórios 122.868 397.734 520.602 5,6 19,1 12,2 23,6 76,4 100,0 2 Cabeleireiros 77.864 293.581 371.445 3,5 14,1 8,7 21,0 79,0 100,0 3 Obras de alvenaria 176.843 5.914 182.757 8,0 0,3 4,3 96,8 3,2 100,0 4 Lanchonetes, casas de chá, de sucos e similares 59.834 78.618 138.452 2,7 3,8 3,2 43,2 56,8 100,0 Comércio varejista de mercadorias em geral, com predominância de 5 61.533 56.673 118.206 2,8 2,7 2,8 52,1 47,9 100,0 produtos alimentícios - minimercados, mercearias e armazéns 6 Outras atividades de tratamento de beleza 3.795 106.772 110.567 0,2 5,1 2,6 3,4 96,6 100,0 7 Bares e outros estabelecimentos especializados em servir bebidas 57.216 48.839 106.055 2,6 2,3 2,5 53,9 46,1 100,0 8 Instalação e manutenção elétrica 88.423 8.203 96.626 4,0 0,4 2,3 91,5 8,5 100,0 Fornecimento de alimentos preparados preponderantemente para 9 23.742 72.129 95.871 1,1 3,5 2,2 24,8 75,2 100,0 consumo domiciliar Comércio varejista de cosméticos, produtos de perfumaria e de higiene 10 22.779 63.085 85.864 1,0 3,0 2,0 26,5 73,5 100,0 pessoal 11 Serviços ambulantes de alimentação 45.185 37.350 82.535 2,1 1,8 1,9 54,7 45,3 100,0 12 Comércio varejista de bebidas 47.331 30.239 77.570 2,2 1,5 1,8 61,0 39,0 100,0 13 Serviços de pintura de edifícios em geral 67.840 3.604 71.444 3,1 0,2 1,7 95,0 5,0 100,0 14 Serviços de organização de feiras, congressos, exposições e festas 33.517 35.919 69.436 1,5 1,7 1,6 48,3 51,7 100,0 15 Promoção de vendas 38.587 30.744 69.331 1,8 1,5 1,6 55,7 44,3 100,0 Reparação e manutenção de computadores e de equipamentos 16 58.182 7.998 66.180 2,6 0,4 1,5 87,9 12,1 100,0 periféricos 17 Confecção, sob medida, de peças do vestuário, exceto roupas íntimas 6.484 54.720 61.204 0,3 2,6 1,4 10,6 89,4 100,0 Serviços de manutenção e reparação mecânica de veículos 18 48.960 5.565 54.525 2,2 0,3 1,3 89,8 10,2 100,0 automotores Comércio varejista de produtos alimentícios em geral ou especializado 19 25.326 26.614 51.940 1,2 1,3 1,2 48,8 51,2 100,0 em produtos alimentícios não especificados anteriormente Confecção de peças do vestuário, exceto roupas íntimas e as 20 8.833 42.172 51.005 0,4 2,0 1,2 17,3 82,7 100,0 confeccionadas sob medida Total das 20 principais CNAEs 1.075.142 1.406.473 2.481.615 48,9 67,6 58,0 43,3 56,7 100,0 Total de Optantes 2.198.025 2.080.986 4.279.011 100,0 100,0 100,0 51,4 48,6 100,0 Fonte: Portal do Empreendedor - Estatísticas do MEI. Considerando a distribuição do MEI para as vinte atividades com maior participação de mulheres (Tabela 15), fica evidente a presença mais expressiva nos setores de Serviços e Comércio. O grupo dessas vinte atividades somava um total de 2.481.615 registros de MEI, das quais 1.406.473 eram do sexo feminino (56,7% do total) e 1.075.142 do masculino (43,3%). A participação do sexo feminino na atividade “Outras atividades de tratamento de beleza” representava 96,6% do total de MEI desse segmento, até 2014. Em seguida “Confecção, sob medida, de peças do vestuário”, na qual 89,4% dos MEI são mulheres. Duas atividades tipicamente femininas. Em relação aos setores com maior participação de MEI do sexo masculino, ficam evidentes as mudanças tanto nos percentuais de participação quanto nos segmentos de atividades econômica. Em atividades como “Obras de alvenaria”, os homens respondem por uma presença de 96,8%, enquanto as mulheres apresentam inclusive a mais baixa proporção no conjunto de suas participações, 3,2%. Na sequência, as atividades de “Serviços de pintura de edifícios em geral” e “Instalação e manutenção elétrica” eram exercidas em sua maioria por homens, 95,0% e 91,5%, respectivamente (Tabela 15). A predominância masculina entre os inscritos no MEI é uma realidade em todos os estados da federação, o que pode estar refletindo a maior proporção de homens inseridos entre os trabalhadores por conta própria. Portanto, o público potencial é em sua maioria do sexo masculino. Em relação à faixa etária do universo de microempreendedores, a partir dos dados de sua constituição a cada ano, em 2013, 50,1% dos MEIs constituídos neste ano tem de 25 a 39 anos, 35% encontravam-se no grupo de 40 ou mais e 14,8% até 24 anos. Entre 2011 e 2013, a partir dos dados da declaração anual dos MEI, observa-se uma 338 participação cada vez maior de jovens até 24 anos inscritos e da participação decrescente daqueles acima de 40 anos (SEBRAE, 2013). Microempreendedores Individuais – MEI do gozo do auxílio-doença e do salário-maternidade transcorra dentro do mês, será devido o recolhimento da contribuição do MEI relativo àquele mês” (PORTAL DO EMPREENDEDOR, 2015). O valor dos benefícios concedidos ao microempreendedor individual pela Previdência Social é de um salário mínimo, não sendo possível que uma maior contribuição ao INSS resulte em uma aposentadoria de renda maior. Mas, como ressalta Amorim (2015), caso o MEI exerça outra atividade, pagando uma alíquota de 20% sobre o salário de contribuição dessa atividade, e complemente com 15% a contribuição de 5% referente ao MEI, “os valores das contribuições serão somados para compor a base de cálculo para concessão de aposentadoria, inclusive por tempo de contribuição e Certidão de Tempo de Contribuição – CTC”. Destaca-se, ainda, que se houver contribuição para a Previdência Social antes da formalização, este período também será somado para concessão de benefícios para o MEI, exceto aposentadoria por tempo de contribuição ou Certidão de Tempo de Contribuição – CTC (AMORIM, 2015). 2.2 Evolução recente A formalização do MEI teve início em julho de 2009 e tem sido considerada exitosa na medida em que foram registrados, até 2013, 3.659.781 Microempreendedores Individuais no país 8. A taxa média de crescimento do quantitativo do MEI no ano de 2013 foi de 37,3%, com nove estados apresentando taxas superiores à média nacional. Os três estados que mais cresceram foram Ceará (45,1%), Paraná (41,5%) e Minas Gerais (41,5%). Segundo estudo do SEBRAE (2013), na análise setorial da distribuição do MEI verifica- se que o Comércio (39,3%) concentra a maior proporção de microempreendedores individuais, seguido dos Serviços (35,8%), Indústria (15,2%) e Construção Civil (8,5%). O detalhamento da distribuição setorial a partir das atividades mais frequentes entre os microempreendedores individuais demonstra que as vinte atividades com maior presença respondem por 58,0% do total. Os MEIs se concentram em atividades que, em geral, tem valor agregado menor. As três atividades com maior número de MEIs são “Comércio varejista de artigos do vestuário e acessórios”, com 12,2% do total, “Cabelereiros”, com 8,7% e “Obras de alvenaria” com 4,3% (Tabela 15). Das vinte atividades com maior percentual de participação no MEI, oito são de Serviços, seis do Comércio, três da Indústria e três da Construção Civil. As atividades de serviços, de modo geral, requerem menos investimentos iniciais que as do comércio. Vale ressaltar que as principais atividades dos setores da indústria e da construção civil entre os MEIs também estão associadas a menores investimentos iniciais (fornecimento de alimentos preparados para consumo domiciliar; confecção, sob medida, de peças do vestuário; obras de alvenaria; instalação e manutenção elétrica; e, serviços de pintura de edifícios em geral). 337 8 Dados disponíveis na pesquisa Perfil do Microempreendedor Individual 2013. Série Estudos e Pesquisas do SEBRAE, Dezembro/2013. Microempreendedores Individuais – MEI Na pesquisa amostral, realizada pelo SEBRAE (2013), os dados sobre a escolaridade dos MEIs mostram que a maioria tinha nível médio ou técnico completo (44,1%), seguida daqueles com até o ensino fundamental completo (37,0%) e pelo grupo com ensino superior completo correspondia a 9,8%. Considerando os resultados do Censo 2010, observa-se que os MEIs são mais escolarizados que a média nacional da população, uma vez que 50,2% tem, no máximo, o ensino fundamental (OLIVEIRA, 2013). O MEI é o resultado da integração de ações de diferentes órgãos federais – Ministério da Previdência Social, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) e a Secretaria da Receita Federal – e a convergência de interesses desses órgãos em uma determinada política pode ser um elemento que venha a contribuir com seu sucesso. Assim como, a facilidade do sistema de registro do MEI através do Portal do Empreendedor, a eliminação de entraves burocráticos decorrentes da isenção de determinados impostos federais (IR; PIS; Cofins; IPI e Contribuição sobre o Lucro Líquido) também são elementos que podem contribuir (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011; OLIVEIRA, 2013). Muito embora o MEI tenha registrado importantes avanços no que diz respeito a formalização dos trabalhadores por conta própria alguns desafios precisam ser enfrentados, a saber: se a política do MEI pode estar sendo usada por empregadores para evitar encargos trabalhistas através da substituição de contratos de trabalho com empregados por contratos de prestação de serviços com supostos empreendedores individuais. A partir dos dados das RAIS entre 2006 e 2010 e considerando o início da implantação da política de formalização do MEI, em 2009, observou-se que um percentual dos indivíduos que deixaram de ser empregados formais entre 2006 e 2008 (24,3% dos encontrados na Rais), estava na condição de desempregados ao ingressarem como MEI a partir de 2009. “Assim, pode-se afirmar que, para estes, a política foi responsável por reinseri- los no mundo formal, agora na condição de MEIs – inclusive, alguns deles, possivelmente, poderiam estar atuando como empreendedores informais” (OLIVEIRA, 2013). Por outro lado, Oliveira (2013) indica que um grupo expressivo de indivíduos registrados como MEI e encontrados nos dados da Rais 2006 e 2010, segundo motivo do desligamento, havia sido demitido e feito a transição à condição de microempreendedor individual. Neste caso, a política pública para ampliar a formalização e cobertura previdenciária dos trabalhadores por conta própria parece estar sendo utilizada ou desvirtuada como processo de substituição de contratos trabalhistas por relações de prestações de serviços. Estudo realizado por Corseuil, Neri e Ulyssea (2013) também aponta na mesma direção. Outro desafio relevante, em termos de simplificação, na evolução do MEI refere-se à necessidade de avançar na simplificação das obrigações impostas ao MEI, semelhantes aquelas impostas às demais pessoas jurídicas no Brasil. No que diz respeito ao processo de inscrição do MEI, houve simplificação via o Portal do Empreendedor, como o pagamento unificado dos impostos mensais (Previdência Social, ICMS e/ou ISS) que passou a ocorrer através da geração de uma guia única e integrada de DAS (Documento de Arrecadação do Simples Nacional) emitida no próprio site. No entanto, o fato do MEI ser uma pessoa jurídica, quando da contratação de um empregado, ele é obrigado a declarar GFIP, RAIS e o Cadastro Geral de Emprego e Desemprego (Caged), que pode envolver certa operacionalidade, exigindo a contratação de um contador e elevando o custo da formalização (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011). 339 Um dos principais atrativos do MEI é seu baixo custo da formalização e de inserção na proteção previdenciária. Enquanto o Plano Simplificado de Previdência Social (PSPS), O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária criado em 2006-2007, possibilita uma contribuição mensal de 11% do salário mínimo, a contribuição previdenciária do MEI é 5% do salário a partir de maio de 2011. Essas duas medidas são formas de inclusão previdenciária através de incentivos econômicos, o que significa que pessoas com mesmo direito, em termos de benefício previdenciário, possuem contribuições diferenciadas e isso pode estimular a migração de inscritos no Plano Simplificado para o MEI. Talvez, outro desafio a ser enfrentado (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011). Nesse sentido, um aspecto bastante relevante, é que a formalização sempre implica em deixar de pagar zero de impostos e taxas referentes à atividade por conta própria, tornando a concorrência com a informalidade muito difícil. Nesse contexto, “é fundamental não apenas uma carga tributária condizente com a capacidade contributiva desses trabalhadores por conta própria, mas que haja benefícios pela formalização” (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011, p. 394), como a possibilidade de emitir nota fiscal, ampliando o acesso aos mercados, e as linhas especiais de crédito para o MEI. 2.3 Cobertura Previdenciária Os dados da PNAD 2013 apontam para um sensível avanço da cobertura previdenciária para a população ocupada nos últimos dez anos. O principal responsável por essa ampliação na cobertura foi o emprego com carteira, que verificou forte crescimento no período. O resultado positivo observado mostra uma trajetória de crescimento em todos os anos de 2003 a 2013. O aumento da população protegida ocorreu simultaneamente ao crescimento da população ocupada. Corroborando o entendimento de que o crescimento do número de contribuintes no período está ligado ao bom desempenho do mercado formal de trabalho, o número de trabalhadores empregados, com pelo menos uma contribuição no ano para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), aumentou de 31,5 milhões, em 2003, para 53,8 milhões, em 2012 (COSTANZI, et al, 2014). Em que pese as distintas visões sobre a informalidade no mercado de trabalho, as opiniões convergem para o reconhecimento do grave problema de falta de cobertura dos trabalhadores informais pela Previdência Social. Afinal, o sistema de proteção social a partir da relação de emprego pressupõe cobertura universal, seja pelas contribuições trabalhador-empresa, seja pelas contribuições individuais do trabalhador autônomo. Quando se analisa a cobertura previdenciária pela posição na ocupação na PNAD, nota-se que três categorias concentram mais de 90% de trabalhadores sem cobertura previdenciária: trabalhadores domésticos, os por conta própria e outros empregados sem carteira assinada. Dentre estas, os trabalhadores por conta própria apresentam o menor percentual de contribuição. De acordo com os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego utilizados, no presente texto, para a caracterização do trabalho autônomo no mercado de trabalho metropolitano, no período de 2009 a 2013, verificou-se baixo nível de cobertura previdenciária para esse segmento ocupacional. Em 2009, do total de autônomos, 3,2 milhões, nas seis regiões pesquisadas pelo Sistema PED, 83,5% não contribuíam para a Previdência, correspondendo a aproximadamente 2,7 milhões de trabalhadores 340 desprotegidos. Em 2013, ocorreu uma pequena redução do número de autônomos e uma relativa melhora na proporção de contribuintes, passando de 16,5%, em 2009, para Microempreendedores Individuais – MEI 25,2%, em 2013. De outro modo, a proporção de não contribuintes reduziu-se para 74,8%, ou 2,4 milhões de trabalhadores. Com o objetivo de ampliar a inclusão previdenciária no país e incluir essas categorias, o governo federal tem implementado uma série de políticas nos últimos anos, como o Plano Simplificado de Previdência Social e a Lei que cria o Microempreendedor Individual (MEI). Medidas positivas que apresentam a característica comum de incentivo à inclusão pelo barateamento da contribuição à Previdência. Nesse contexto, possivelmente uma ampliação da cobertura previdenciária entre os trabalhadores nas regiões metropolitanas pesquisadas pelo Sistema PED, pode ter sido motivada, entre outros fatores, pelas medidas adotadas para ampliar a proteção social. Não se pode afirmar que o incremento da contribuição previdenciária dos trabalhadores por conta própria, entre 2009 e 2013, seja diretamente atribuído ao MEI. No entanto, o incremento no número médio de contribuintes no RGPS incorpora o aumento do número de trabalhadores por conta própria ou autônomos, denominados legalmente dentro do grupo como contribuintes individuais. Há, assim, indício de que o MEI pode ter tido impacto positivo. A figura do MEI, que contabilizava, até 2014, 4,2 milhões de inscritos no país, segundo os relatórios estatísticos do “Portal do Empreendedor”, pode ter gerado impacto positivo na ampliação da cobertura previdenciária dos trabalhadores por conta própria. Apesar desse marco, percebe-se que há quase metade deste universo sem cobertura previdenciária ao levar em consideração os resultados apurados somente na área de cobertura do Sistema PED, isto é, em seis áreas metropolitanas (2,4 milhões de pessoas). O que mostra que o bom desempenho da economia, e decorrente expansão previdenciária, somada as medidas de inclusão adotadas não foram suficientes para ampliar de maneira efetiva a cobertura, uma vez que parcela expressiva de trabalhadores ainda está socialmente desprotegida. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, o número de MEIs contribuintes para a Previdência com pelo menos uma contribuição em 2013 era cerca de 2 milhões (Tabela 16). Entretanto, o total de MEIs registrados na Receita Federal, no mesmo ano, era de 3,6 milhões (Gráfico 7). 341 O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária Tabela 16 Número de MEI contribuintes para a Previdência Social e Distribuição por número de contribuições Brasil - 2011 - 2013 Número de Contribuintes Distribuição (%) Contribuições 2011 2012 2013 2011 2012 2013 1 124.005 115.348 152.562 12,5 7,6 7,4 2 65.027 107.130 145.192 6,5 7,0 7,1 3 76.444 102.899 134.853 7,7 6,8 6,6 4 75.720 85.887 115.257 7,6 5,6 5,6 5 68.448 84.056 108.413 6,9 5,5 5,3 6 67.551 82.150 103.505 6,8 5,4 5,0 7 68.787 69.638 89.487 6,9 4,6 4,4 8 38.319 73.186 92.464 3,9 4,8 4,5 9 41.639 65.080 89.716 4,2 4,3 4,4 10 44.433 75.497 96.047 4,5 5,0 4,7 11 63.764 89.696 141.092 6,4 5,9 6,9 12 261.152 572.564 785.450 26,2 37,6 38,2 Total 995.289 1.523.131 2.054.038 100,0 100,0 100,0 Fonte: MPS - Anuá ri o Es ta tís ti co da Previ dênci a Soci a l . Os dados disponibilizados na tabela 16 confrontados os do Gráfico 7 revelam que o número de MEIs com pelo menos uma contribuição era inferior ao número de MEIs inscritos no programa no período de 2011 e 2013. Ou seja, as políticas de inclusão previdenciária como o MEI tiveram resultados relevantes na ampliação da proteção social dos trabalhadores por conta própria ou autônomos, muito embora uma parcela razoável de contribuintes esteja inadimplente. Mesmo com a medida provisória nº529/2011, que reduziu a contribuição de 11% para 5% do salário mínimo (COSTANZI; BARBOSA; RIBEIRO, 2011). Gráfico 7 Número de trabalhadores inscritos no MEI 4.000.000 3.613.740 3.500.000 3.000.000 2.665.605 2.500.000 2.000.000 1.656.953 1.500.000 1.000.000 771.715 500.000 44.188 0 dez-2009 dez-2010 dez-2011 dez-2012 dez-2013 Fonte: Receita Federal Elaboração: SSPS/MPS 342 Microempreendedores Individuais – MEI Diferentemente dos trabalhadores empregados, cuja cobertura previdenciária depende da formalização das relações patrão e empregado, a cobertura do trabalhador por conta própria ou autônomo passa pelo seu ato de contribuir para a previdência. Dessa forma deve-se pensar políticas que estimulem essa contribuição, sob a forma de estímulo financeiro com alíquotas contributivas mais baixas, mas, também, enfatizar que previdência é mais do que aposentadoria na velhice. A proteção social se faz diante de acidente ou uma doença que impossibilite temporária ou permanentemente o trabalho, via auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez (RANGEL, 2014). Uma dimensão adicional desse desafio é a de gênero. Além de possuírem taxa de proteção social mais baixa, as mulheres são maioria entre os desprotegidos sem capacidade contributiva e minoria entre os desprotegidos com capacidade contributiva. Em razão da estrutura familiar na qual se sustentam a maioria dos domicílios e a boa parte das tradições, muitas das tarefas associadas ao cuidado dos idosos vão cair sobre as mulheres. As mulheres enfrentam menores níveis de cobertura por sua menor conexão com o mercado de trabalho durante sua vida. De 2003 a 2012, o número de mulheres com pelo menos uma contribuição no ano aumentou e a participação das mulheres no total de contribuintes subiu de 39,8% para 43,9%, segundo dados do Ministério da Previdência. Esse resultado, muito provavelmente, está associado à maior participação e melhoria da inserção das mulheres no mercado de trabalho formal, no período de 2003 a 2013. A maior parcela dos trabalhadores autônomos ou conta própria está envolvida em atividades com baixo padrão de rendimento, especialmente quando se leva em contraste a duração (média) de suas extensas jornadas trabalho, o que evidencia a necessidade de aumentar o valor agregado dos serviços prestados por esse segmento de trabalhadores como forma de elevar não somente o padrão de rendimento obtido com o seu trabalho como também assegurando maiores possibilidades de formalização de sua atividade econômica e, portanto, capacidade contributiva. A experiência do MEI, mesmo com os resultados já alcançados, ainda possui um desempenho muito tímido frente ao universo de trabalhadores autônomos existentes nos grandes centros urbanos do país, conforme já ilustrado. Nesse sentido, um programa que proporcionasse uma formação profissional desses trabalhadores, que basicamente atuam no “saber fazer”, poderia ter mais eficácia nos ganhos de produtividade e no padrão de rendimento desses trabalhadores, possibilitando, entre outras coisas, o acesso ao sistema de contribuição previdenciária que ainda é algo muito distante da realidade da maior parcela desse segmento ocupacional, que, muitas vezes, acaba sendo coberto por outras ações de seguridade social, especialmente de assistência social, pelo quadro de pobreza e miséria em que vivem do que pela sua própria capacidade laborativa e contributiva, devido especialmente pela informalidade de suas relações de trabalho ao longo de seu ciclo de vida. 343 3. Considerações Finais Os trabalhadores autônomos, parcela importante da população ocupada brasileira, constituem-se num segmento complexo de trabalhadores que empreendem por conta própria sua atividade produtiva, auto-organizando seu negócio e relação com sua clientela ou mercado de atuação. O perfil do trabalhador autônomo caracteriza-se pela presença majoritária de homens, chefes de família e indivíduos de faixas etárias mais elevadas. Essas características definem, em geral, um conjunto de trabalhadores com responsabilidades por parcela importante de sustento do domicílio e que sofrem uma pressão maior para permanecerem na condição de ocupados. Trabalhadores marcados pela baixa escolaridade, com uma extensa jornada de trabalho, mais longa que a dos assalariados, enfrentam menores rendimentos e a imprevisibilidade de recebimento, características inerentes a um trabalho exercido de forma autônoma. Constatou-se que esse segmento convive com baixa proteção social, uma vez que a grande maioria não contribui para a Previdência Social. Uma dimensão adicional desse desafio é gênero. Além de possuírem taxa de proteção social mais baixa, as mulheres são maioria entre os desprotegidos sem capacidade contributiva e minoria entre os desprotegidos com capacidade contributiva. As mulheres enfrentam menores níveis de cobertura por sua menor conexão com o mercado de trabalho durante sua vida. A maior parcela desses trabalhadores presta serviços para a população em geral através da comercialização de diferentes produtos (lanches, refeições, vestuário, dentre outros), de consertos e reparos (reformas de vestuário ou no segmento da construção civil, por exemplo), de serviços pessoais de estética (cabeleiras, manicures, esteticistas, dentre outras) ou de conservação das residências ( jardinagem e limpeza, por exemplo). Em todas as regiões pesquisadas pelo Sistema PED, a presença de trabalhadores que atuavam em estruturas não adaptadas para a atividade econômica e laboral atingiu patamares significativos, o que retrata a necessidade de iniciativas que assegurem maiores adaptações com relação não somente a infraestrutura física dos locais de trabalho, ocorrendo, em muitos casos, até mesmo em algum cômodo da própria residência, como também para a compra de equipamentos próprios, uma vez que aproximadamente um em cada cinco trabalhadores não contava com a propriedade dos equipamentos que utilizava. Nesse contexto, a ampliação da cobertura previdenciária desses trabalhadores por conta própria ou autônomos é estratégia necessária e fundamental para a expansão da proteção social no Brasil. Com o objetivo de ampliar a inclusão previdenciária no país e incluir essas categorias, o governo federal implementou uma série de políticas nos últimos anos, como o Plano Simplificado de Previdência Social e a Lei do Microempreendedor Individual (MEI). A Lei Complementar nº 128/2008 – criou a figura jurídica do Microempreendedor Individual (MEI). Com a formalização, o trabalhador teria acesso ao Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), ao crédito bancário, à cobertura da previdência social, à emissão de nota fiscal, à dispensa de escrituração fiscal e contábil. O argumento central da inclusão e ampliação da cobertura da proteção social. A legislação sobre o MEI não tem por objetivo fragilizar as relações de trabalho existente, não devendo servir de instrumento para a transformação de um trabalhador em 344 microempreendedor individual, através de processos de terceirização ou de substituição do emprego com carteira assinada pela prestação de serviço. No entanto, a política pública para ampliar a formalização e cobertura previdenciária dos trabalhadores por conta própria parece estar sendo utilizada ou desvirtuada como processo de substituição de contratos trabalhistas por relações de prestações de serviços. Outro aspecto importante refere-se aos níveis de inadimplência que chegam a patamares expressivos, no caso dos MEIS, em que mais da metade dos trabalhadores inscritos nessa personalidade jurídica está inadimplente, conforme estatísticas elencadas pelo próprio governo federal. Na realidade, o elevado nível de inadimplência não deixa de ser um indicativo da carência de apoio a esse segmento profissional. A decisão de contribuir para a previdência social envolve uma verdadeira contabilidade entre custos e ganhos presentes e futuros. A dificuldade de adaptar as regras previdenciárias à realidade dos trabalhadores que vivem na informalidade se reflete, fundamentalmente, nas limitações de manter a contribuição em períodos de dificuldade financeira, como também em períodos de afastamento por doença ou acidente. As iniciativas de políticas públicas para aqueles que exercem o trabalho autônomo foram bem residuais. Ainda que o advento do Microempreendedor Individual (MEI) possa ser considerado um avanço recente na escassez de políticas específicas para esse segmento de trabalhadores, esta iniciativa possui grandes limitações ao não oferecer um atendimento integrado ao trabalhador no acesso à informação, no conhecimento técnico especializado e nos recursos materiais para aperfeiçoamento de sua atividade laboral. A elevada inadimplência dos trabalhadores inscritos nessa personalidade jurídica é um claro e evidente indício dessa realidade. 345 4. Referências Bibliográficas AMORIM, A. B. de. 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