erigidas, as sepulturas (e todo o aparato que as acompanha) permanecem, na sua quase totalidade, em suas primitivas posições, sem que ocorram alterações significativas no contexto original. Isto propicia uma configuração ímpar para a investigação arqueológica, pelas excelentes possibilidades que oferece, em termos de controle dos dados. Os jazigos constituem artefatos datáveis com precisão, já que nas lápides tumulares ficam em geral impressas as datas de nascimento e falecimento dos indivíduos que aí foram enterrados. Essasdatas, salvo em casos de traslados, como ocorre com os ossários, por exemplo, ou em casos de reformas posteriores, coincidem em geral com a época do sepultamento. Outros elementos gráficos e iconográficos apostos às sepulturas (nome do morto, ascendência e/ou descendência familiar, profissão, títulos, termos utilizados em dedicatórias, memoriais, louvações, etc., bem como a própria estrutura desses escritos; adornos, esculpidos nas lajes ou sobrepostos a elas; suas variações através do tempo e sua distribuição espacial) fornecem um campo vasto e fecundo para a pesquisa. O universo funerário vem sendo consideravelmente estudado no âmbito das Ciências Sociais, em especial pela Antropologia, bem como no da História Social. Trabalhos como os de Tenenti (1952), Gorer (1965), Vovelle (1970, 1974, 1978, 1983, 1987, 1993), Aries (1977, 1989, 1990) e Urbain (1978) tornaram-se clássicos da literatura especializada, que vem incorporando um número crescente de produções (Curl, 1972, 1980; Stannard, 1977; Farrell, 1980; Ragon, 1981; Humphreys & King, 1981; Penny, 1981; Taylor, 1980 e 1983; Gnoli & Vernant, 1982; Houlbrooke, 1989; Huntington, 1992, entre muitos outros). Seminários e simpósios internacionais sobre o tema estão se tornando freqüentes (Death, ritual and bereavement, organizado pela Social History Society;1ondres, 1987; Una Arquitecturapara Ia muerte, IQEncuentro Internacional sobre los CementeriosContemporaneos, Sevilha, 1991), assim como exposições em museus: The art of death: visualeulturein the Englishdeath ritual, mostra organizada pelo Victoria and Albert Museum, em 1992 (ver Llewllyn, 1992). Estudos de cultura material vêm privilegiando particularmente pesquisas em cemitérios históricos, envolvendo ou não escavações, e estão se multiplicando as monografias sobre o assunto, em especial nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra (Anderson, 1993; Bender, 1988; Brock, 1991; Brooks, 1989; Brown, 1992 a e b; Clark, 1987; Coates, 1987; Combs, 1986; Crowell, 1981; Corrucini, 1982; Costello, 1987; Deetz, 1977; Deetz & Dethlefsen, 1978; Dethlefsen, 1981; Frascari, 1981; Gittings, 1988; Hall, 1986; Hannon, 1983; Jeane, 1989; Jordan, 1980; Kjolbye-Biddle, 1976; Lanphear, 1990; Uttle et aI., 1992; McGuire, 1988; Milbauer, 1989; Osborne, 1974; Owsley et ai., 1987; Parrington, 1987; Patterson, 1986; Pearson, 1982; Pocins, 1986; Richardson, 1993; Ridlen, 1983; Rodwell, 1989; Sexton, 1991; Slater, 1987; Stone, 1991; Stone & Russel, 1986; Trask, 1978; Trask& McNabb, 1986; Watters, 1987; Wurst, 1991, entre outros). No Brasil, o investimento no universo da morte ainda é consideravelmente tímido, não obstante a excelência de contribuições como as 88 de Valladares (1972), Martins, org. (1983), e Reis (1991). Seminários, como A morte e os mortos na sociedade brasileira, realizados na Universidade de São Paulo; estudos monográficos (Loureiro, 1977; Meihy & Levine, 1987; Campos, 1987 e 1988, entre outros), teses de doutoramento, quer defendidas no exterior (Rodrigues, 1983), no país (Borges, 1991), ou ainda em andamento, a par de dissertações de mestrado (Guedes, 1986), atestam a crescente vitalidade das pesquisas no campo funerário. A arqueologia tem aí um importante campo de atuação e os trabalhos desenvolvidos em outros países vêm demonstrando as possibilidades que ele oferece para a comprensão de sistemas sócio-culturais extintos. Pelo seu trato direto com a cultura material, a disciplina qualifica-se notavelmente para esse tipo de investigação, sendo capaz de somar novos conhecimentos aos já produzidos a partir âos registros documentais. Esta pesquisa, considerando a ruptura do império escravista, na década de 80, e a emergência de uma república progressivamente capitalista, voltou-se para a verificação de prováveis mudanças no imaginário coletivo sobre a morte, nos cemitérios do Rio de Janeiro, provocadas pelo rompimento da ordem escravocrata. Conforme assinalou Carvalho (1990: 1O), "a manipulação do imaginário social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas" . Assim sendo, quer como resultado de tensões internas, operando em um plano inconsciente, quer como produto de ações política e ideologicamente determinadas e portanto conscientes, assumiu-se a priori que a reordenação econômica, política, social e ideológica do sistema, ao final do século, implicou um fenômeno de mudança nas representações da morte. A pesquisa foi conduzida no sentido de se investigar não apenas a natureza dessa mudança, mas sobretudo os mecanismos subjacentes que a determinaram. A implantação de cemitérios no Rio de Janeiro A sucessão de surtos epidêmicos, responsáveis por milhares de mortes, determinou, no âmbito da ideologia de sanitarização que espraiou no século passado, uma série de transformações nas políticas sanitárias e nos hábitos de higiene, pública e privada. Entre outros possíveis focos, cadáveres passaram a ser considerados como perigosos transmissores de doenças, evitando-se o contato direto com eles. Os sepultamentos ad sanetos, feitos até então em terrenos adjacentes às igrejas, começaram a ser combatidos como prováveis fontes de infecções e epidemias, estabelecendo-se com força crescente uma relação de causa e efeito entre cadáveres e proliferação de doenças. Este movimento no sentido de isolar os vivos dos mortos se inscreve no contexto mais amplo da ideologia de controle que, estendendo progressivamente seus dispositivos ao longo dos séculos XVII e XVIII, se intensificou no século XIX, multiplicando-se, como assinala Foucault (1983: 184), por todo o corpo social, formando o que se poderia chamar de sociedade disciplinar. 89 sempre bem superiores à e?tatura média de um indivíduo. que têm no isolamento e na meticulosa organização e repartição do espaço. onde proliferam animais asquerosos) perde-s~ a visibilidade. em meio à mais absoluta falta de higiene. igualmente enquadrados e. já que ao cair das trevas (domínio dos mortos. permitindo a sua imediata classificação e localização. Se aqueles espaços passam a ser rigorosamente definidos. etc.: 132)entre os vivos. cit. quadras. nomes e datas que individualizam os mortos. quartéis. etc. reforçado pelo problema de superlotação dos espaços funerários adjacentes às igrejas. conventos. como diz Foucault. ou uma instituição total (adaptando-se aqui o conceito. trata-seagora de impedir a todo custo qualquer forma de comunicação perigosa com os mortos. o contato entre vivos/mortos. tanto no espaço quanto na escala social. gradeado (as normas definem até a altura dos muros e das grades. controlados. Este só é permitido à luz do sol. varíola. grades. o Rio de Janeiro era uma cidade exposta a toda sorte de contágios e assolada por uma sucessão de epidemias de cólera. ordenado. delimitados (cercas. para "satisfazer a necessidade de vigiar. dos infectados. o contato direto. Esses dados são registrados em livros sujeitos a toda sorte de inspeções. portanto. Um rígido horário de abertura/fechamento regula a entrada (dia)/saída (noite) e. fossos. Em cada sepultura há números. hospitais. A criação de cemitérios extramuros foi se tornando um imperativo cada vez mais forte. entre 1838 e 1855. no princípio do quadriculamento individualizante. os fundamentos para melhor observar. e com ela as possibilidades de controle (objetivo/subjetivo). Os surtos epidêmicos que vitimaram grande parte da população carioca. contribuiram para mobilizar ainda mais fortemente o poder público para as questões relacionadas à higiene e saúde.) e repartidos em unidades cada vez menores. banidos do espaço urbano para áreas periféricas. muralhas. de romper as comunicações perigosas" ( op. E aí que se introduz o medo. como prisões. manicõmios. murado. sem esgotos sanitários e permanentemente bafejada por "miasmas pútridos". a higiene (os vivos). das regras. de que nos fala Aries (1990:440). dos limites. Ao lado dos loucos. Finalmente. ocorrendo severas punições em casos de irregularidades. geometricamente alinhado. dos marginais. como o medo dos loucos.). estabelecimentos de ensino. doentes e condenados. podem ser também incluídos os cemitérios. muros.Ao lado de outros aparelhos disciplinares. onde reina a "ordem". quadriculado (aléias. de forma a desestimular a sua transposição). de modo a permitir a observação. o controle. a proximidade física (Foucault. a vigilância. E cuidadosamente repartido. ou seja. o "grande medo da morte". sobretudo nas áreas urbanas. 90 de funcionamento. 1974: 15-19). O cemitério torna-se uma cidade Fechada. controlar e dominar. de todos aqueles que estão além das fronteiras. O espaço funerário é assim cercado. por extensão. os mortossão também excluídos. da imundície e da "desordem". A circulaçâo é bem definida e visível. fortalezas. 1986:90). Em meados do século XIX. a limpeza. bem delimitado. com todos os tipos de dejetos (inclusive cadáveres) lançados diretamente nas praias e nas ruas. portões. febre amarela. tal como proposto por Goffman. em 5 de setembro de sujeita a regras rigorosas . Desde então. de 18 de outubro de 1851) e implantando um monopólio que se mantém até os nossos dias. tornara-se insustentável com o cemitério ao seu lado. a Casa dos Expostos. Como provedor. por extensão. determinou o estabelecimento de cemitérios públicos nos subúrbios do Rio de Janeiro. A Santa Casa da Misericórdia. pertencente à Santa Casa. Pedro li. etc. o primitivo núcleo do Campo Santo. nas condições que julgasse convenientes. Este mesmo instrumentodeterminou a instalação de uma nova necrópole no Brequó (atual Zona Sul.. Em 1840. transformado. Botafogo).a situação do Hospital Geral da Prata de Santa Luzia. como também da própria cidade. tanto de mendigos quanto de irmãos da Misericórdia. graças às sucessivas renovações do privilégio. a cidade. 1878). Os médicos protestavam violentamente contra a proximidade dos cadáveres. com a finalidade de prestar assistência médica aos tripulantes de navios atacados pela peste. de 16 de outubro. o Campo Santo da Misericórdia. tomou a si a tarefa de sepultá-Ios. em alguns casos. em virtude do estado de "calamidade pública". ocupando altos cargos no governo. com o governo reservando-se o direito de permitir a criação de cemitérios particulares. muçulmanos. fundada em 1582 por José de Anchieta. também conhecido como Cemitério do Caju. através do decreto imperial nQ842. mandou fechar para sempre os jazigos e catacumbas do hospital. negros. eliminando a promiscuidade em que se encontravam e instalando as necessárias estratégias de controle. restando apenas a assistência prestada pela Santa Casa. do enterro de escravos. combates. no Caju. porém era bastante comum seus corpos serem apenas jogados à beira de caminhos e de praias. para quem era vedado o sepultamento ad sanetos. com a aquisição de novos terrenos. em número crescente. ocupavam-se. naquela ocasião. particularmente aos desfavorecidos: pobres. Algumas irmandades religiosas e ordens terceiras. A estes somavam-se protestantes. que inumavam os segmentos mais altos da sociedade nos terrenos adjacentes às igrejas. índios e condenados. Em meados do século XIX. a Santa Casa administravq ainda o Hospício D. Em 1839. acumulava então considerável poder político. judeus. o Recolhimento das Orfãs e 91 . assumiu a Provedoria da Santa Casa José Clemente Pereira que. comprometendo a salubridade não só do hospital. a instituição passou a se dedicar à missão de prestar atendimento médico à população em geral. assinado pelo Visconde de Mont'Alegre. detendeu ferreamente os interesses da instituição. além de vítimas de epidemias. à época. no Cemitério de São Francisco Xavier.1850. segundo suas próprias palavras. A par dos cemitérios e do hospital. conseguiu as devidas aprovações e fez inaugurar o seu primeiro cemitério público extramuros. vindo a ganhar mais tarde a concessão dos serviços públicos funerários por 50 anos (decreto imperial nQ843. Urgia disciplinar ambos os espaços. em 1851. em um terreno ao lado do seu tosco hospital. em que se encontrava a Santa Casa e. Em 1838. ampliando. encarregando-se ainda do seu sepultamento. lá sepultando uma escrava e cerca de 300 vítimas da epidemia de cólera. desamparados. só inaugurada em 1852: o Cemitério São João Batista (Vasconcellos. situado na Ponta do Calafate. no Rio de Janeiro. o decreto nQ583. marginais de toda sorte. recusando-se a "enterrar seus irmãos. onde foram utilizadas expressões como "repugnãncia (. que as incrições nas lápides não ofendessem nem a moral. controlados. Conforme determinação do artigo 6Q do regulamento do Cemitério São Francisco de Paula. em 1852. entermos de toda natureza. Em 1857. começaram a pressionar fortemente a opinião e o poder públicos contra os privilégios acumulados pela Santa Casa.) das diversas Ordens Terceiras por não quererem ficar ungidas à Santa Casa".. portanto. O seu traçado banal. Por outro lado. ao administrar essa diversidade de instituições.. assegurando à sociedade que a sustentou o controle que se fazia necessário para a sua organização. somado a essa liberdade de expressão. destinados exclusivamente aos membros das irmandades. Já os últimos. elitistas. temendo inclusive a perda das esmolas dos enterros para os seus cofres. em desarmonia com o tipo religioso de tais monumentos". nem as leis. os loucos. todos os segmentos potencialmente perigosos.. atestam o descompromisso com a estética e a qualidade artística. a Santa Casa da Misericórdia desmembrou parte de seus terrenos no Caju para a instalação de mais dois cemitérios particulares: o da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo e o da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. empresária dos enterramentos e pompas fúnebres". a Enfermaria. assumindo a seu encargo. Foram desta forma colocados à disposição da população carioca. . cuidavam para que tosse mantido o seu perfil religioso. "o plano e prospecto (dos monumentos) devem ser em modo que não apareçam símbolos ou alusões profanas. visando com isto atrair para seus quadros a nata do império. órfãos. mendigos. tuberculosos. Pretendiam "ficar fora do domínio. que precisavam ser disciplinados. muitos dos quais são indivíduos importantes na sociedade brasileira (. quanto seculares (públicos). como o da Ordem do Carmo. expressavam seu repúdio em manifestos aos jornais.). no então Catumbi Grande. Os primeiros. em seus estatutos. em princípio abertos a indivíduos de qualquer credo ou raça. tanto cemitérios religiosos (particulares). para desta forma assegurar à Ordem maior prestígio e poder. além dos mortos. em 1849. as irmandades religiosas que estavam igualmente com as igrejas abarrotadas de cadáveres. aprovado quando da sua fundação. empenhavam-se no apuro estético dos seus espaços funerários. variolosos. e somente após o falecimento do Provedor José Clemente. religiosos. alienados. Acumulou à essa época um considerável poder. eram francamente liberais. publicado no Jornal do Comércio. em grande parte representantes das classes mais abastadas. ou seja. instalou o primeiro cemitério particular extramuros da cidade. ordenados. escravos.92 Desvalidas. entre os escravos e os mendigos e padecentes" A primeira irmandade a conseguir a aprovação do Governo Imperial foi a Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula que. inspeção e chaves da Santa Casa da Misericórdia. Desejosas de obter concessão para abertura de cemitérios particulares. em meados do século passado.. exigindo apenas. no processo de secularização dos cemitérios. deixadas ao arbítrio de cada um. Mais ainda. secularizados. estabelecimentos de ensino. Iniciativa pioneira entre as ordens religiosas. suiços. Cemitério de São Francisco Xavier. além de hospitais. O Cemitério da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula ou Cemitério do Catumbi. administrados pela Santa Casa da Misericórdia (Cemitério São João Batista. e o Cemitério de São João Batista. por especial concessão do príncipe regente. para a implantação de um cemitério extramuros. foi finalmente criada a Junta Central de Higiene Pública. com a superlotação do espaço adjacente à Igreja de São Francisco de Paula. e elaborada a planta. dinamarqueses. considerando que até então só havia o cemitério secular do Campo Santo da Misericórdia. situada à Rua Catumbi Grande. Em meados do século XIX.Em 1851. na Gamboa. Os demais foram avaliados à luz dos dados aí levantados. de diferentes nacionalidades e credos religiosos. a aprovação do governo imperial para a sua instalação. Destinado à época ao sepultamento de protestantes ingleses. Destinada a fiscalizar o exercício da Medicina e a inspecionar as condições sanitárias de locais passíveis de comprometerem a saúde pública (entre eles os cemitérios. ambos no Caju). Dois são seculares. não-católicos: alemães. conhecido como Cemitério do Catumbi. Não foi incluído neste estudo o Cemitério dos Ingleses. em Botafogo. de acordo com as disposições da Imperial Academia de Medicina. todos situados atualmente na zona urbana do Rio de Janeiro. na verdade o primeiro espaço funerário extramuros implantado na cidade. como modelo de cemitério secular. Com signos e alegorias próprios. no Caju) e três pertencem à ordens religiosas (Cemitério da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. no espírito desse movimento de higienização e controle que tomou conta da sociedade em meados do século. inaugurados em meados do século passado. Cemitério da Ordem de Nossa Senhora do Carmo e Cemitério da Ordem de São Francisco da Penitência. Os cemitérios analisados Foram selecionados para estudo os cinco principais cemitérios da cidade. no Catumbi. e com a reordenação das questões relativas à higiene e saúde públicas anteriormente mencionadas. em 1849. em 1810. prisões. atuando como confirmadores dos resultados e interpretações neles obtidos. mantido pela Santa Casa. a Irmandade obteve. franceses.L inaugurou uma nova etapa na organização da saúde pública no Brasil (Machado. aorigou estrangeiros em geral. a administração da Ordem Terceira decidiu partir. etc. seu estudo escaparia aos objetivos desta investigação. etc. 1978:246). Apenas dois foram trabalhados sistematicamente: o Cemitério da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Nesse mesmo ano lá havia sido negociada para esta finalidade uma chácara. selecionado como modelo de cemitério religioso. destinado aos mortos. Em 1850 foi inaugurado o 93 . mais exatamente em 1845. segundo Vieira Fazenda (1921: 352). baixo.000 vítimas da epidemia de febre amarela. a pedido do governo imperial. alguns montículos e um pequeno vale. O segundo nível. em um plano ligeiramente elevado. sobre pedestais elevados. Estando já consumado o processo de decomposição. O Cemitério de São Francisco de Paula foi inquestionavelmente o mais importante do império. não ofereceriam maiores riscos para a disseminação de bactérias e proliferação de doenças. ao fundo. de 16 de outubro de 1851. além de arejada. duques.o da entrada. de acordo com a topografia acidentada do terreno: . que pela irregularidade do terreno exigiria beneficiamentos dispendiosos e obras de grande vulto. viscondes. inclinado. barões em profusão). conselheiros. o que mais tarde efetivamente veio a ocorrer. elevando-se gradativamente até o sopé dos morros. ao nível da rua. Esses ossários ficavam elegantemente dispostos ao longo da alameda central. considerando-se a preocupação dominante com miasmase exalações. alagadiço. os grandes monumentos fúnebres. adequando-se portanto a sua função à topografia e condições de drenagem do terreno. Pedro li. reservado à colocação dos mausoléus. foi considerado ideal para a colqcação dos túmulos. em virtude de discordôncias entre o Provedor 94 . situado entre o primeiro e o segundo nível. 1897). . foi reservado para futuras ampliações. Colocados em geral em urnas. tendo sido aí sepultada grande parte da nobreza (marqueses. requerendo aterros e plantio de arvoredos. Este patamar foi selecionado para aí ser implantado o eixo monumental. encontrando em seu final um eixo transversal. compreendendo uma várzea irrigada pelas águas de uma fonte natural.por se tratar de área extensae bem drenada. com o traslado de vários despojos de irmãos da Ordem que Iotavam as catacumbas da Igreja e ainda o sepultamento de cerca de 3. comendadores. no alto e em destaque. por se tratar de sepultamentos secundários. o Cemitério São João Batista funcionou provisoriamente em terrenos do Hospício D. plano. A época foi muito discutida a direção dos ventos no local. que cortava toda a parte baixa. os ossos ficavam a salvo das inundações.cemitério. porém sujeito a inundações por ocasião de chuvas fortes. porém na documentação consultada da Ordem não foi possível obter referências quanto ao seu autor. não pertencentes à congregação. O terceiro. Sua topografia.foi considerada excelente para o cemitério. foi destinado à colocação dos ossários. Trata-se de um traçado urbanístico de excelente qualidade. condes. O primeiro. .terrenos variados. Na planta original podiam ser distinguidos três níveis. comparada então com a do PereLachaise. tendo em vista que era a única que então possuía "campo santo extramuros para seus mortos" (Duprat.uma vertente. de tal forma que da entrada se avistava a alameda de ossários e. O Cemitério São João Batista Fundado através do já referido decreto imperial nQ842. altas patentes militares e os segmentos mais abastados da sociedade à época.em Paris. conforme o caso. Os túmulos. à esquerda. nessa condição. Para este cemitério convergiram as preferências das classes dominantes do período republicano. trasladados das catacumbas das igrejas. de costas para a rua. e em dois lances de terra aplanada. e no contorno das quadras. Os ossários do século XIX. mas sobretudo as representações iconográficas. foram implantados na parte alta do terreno. após a realização de obras de aterro e drenagem. aumentando os riscos de contaminação. nos terrenos de uma chácara adquirida para esta finalidade. a alta burguesia etc. foi consideravelmente ampliado com a compra de novos terrenos. preenchendo a porção interna das quadras. Se lá foram sepultados os segmentos mais expressivos do império. ou seja.da Misericórdia e o Ministério dos Negócios do Império. Outros poucos. distribuídas em uma parte plana. à semelhança daquele cemitério. nem de longe alcançando a magnitude da ala monumental do Catumbi. dupla ou tripla. ficassem alagados. cada cemitério foi entendido como um sítio arqueológico. totalizando uma ampla área de formato trapezoidal. chefes militares. defronte à entrada. em Botafogo. a área foi dividida em quadras regulares. centradas por um cruzeiro. foram dispostos ao longo da alameda central.. evitando-se que jazigos contendo sepultamentos primários. em local de baixa visibilidade para o visitante à chegada. reunindo uma série de atributos. em carreira única. embora os ossários abriguem despojos de anos anteriores. mais próximos da virada do século. Os poucos mausoléus da época foram colocados à direita da entrada. foram destacadas. políticos de projeção. Metodologia de trabalho Para fins da investigação proposta. no início da encosta do morro. o cemitério foi inaugurado oficialmente em 4 de dezembro de 1852. Superado o impasse e aprovada a proposta da Santa Casa. tendo em vista os fins propostos. em processo de decomposição.em quantidade muito superior à do Cemitério de São Francisco de Paula. 95 . Com um traçado urbanístico convencional. sendo os jazigos considerados como artefatos e. no São João Batista encontra-se a nata da república: presidentes. o que foi relegando progressivamente o Catumbi a uma condição secundária. o que os torna mais visíveis. que se estende pela vertente do Morro de São João. quanto ao local mais adequado para a sua instalação. foram distribuídos nos patamares da encosta. Dentre estes. a constatação de uma possível mudança na representação da morte na transição do império escravista para a república progressivamente capitalista. sem qualquer imponência. privilegiadas e isoladas para análise. ao nível da rua. porém sem grande impacto visual. Em 1857. Sua sepultura mais antiga data de 1858. não apenas a forma e a função (sempre estreitamente associadas). A implantação dessas primeiras sepulturas em planos inclinados parece ter sido determinada pelas boas possibilidades de escoamento de águas pluviais. essas sepulturas são alongadas.por mausoléu entende-se uma terceira categoria. 96 . foi necessário suprimir imaginariamente do espaço funerário os jazigos do século XX. não comportando o corpo humano em posição distendida. após o processo da sua decomposição. que comporta tanto sepultamentos primários quanto secundários. foram reconhecidas três categorias de jazigos ou sepulturas: túmulos. Do ponto de vista da forma. a sua disposição original no século XIX. em poucos minutos. onde inexisteeste tipo de vinculação. foi necessário sistematizar a coleta de dados. pertencentes a uma mesma família. envolvendo milhares de unidades funerárias. de modo a comportar um corpo deitado. normalmente em caixões. caso em que essas edificações apresentam uma arquitetura eminentemente religiosa. reproduzindo uma pequena igreja. Para tanto. essas sepulturas são estreitas e altas. organização ou entidade civil ou religiosa. procedeu-se em primeiro lugar a uma classificação dos diferentes tipos de jazigos (ou sepulturas) existentes. ou seja. a análise da sua implantação nesse espaço físico e do seu traçado urbanístico. ao ingressar em cemitérios ainda não estudados. que coloca lado a lado sepulturas do século XIX e da década em curso. .por ossário entende-se o jazigo onde foram realizados um ou mais sepultamentos secundários. independentemente das condições da inumação e do tipo de edificação erigido sobre ela.por túmulo entende-se o jazigo onde foram realizados um ou mais sepultamentos primários. significando o local onde foram inumados um ou mais indivíduos. Do ponto de vista da forma. híbrida. onde foram dispostos os ossos desarticulados de um ou mais indivíduos. apenas os do século passado. Por se tratar de um universo bastante amplo. onde foram dispostos os corpos articulados de um ou mais indivíduos. de caráter monumental. trata-se de uma edificação de grande porte. Esses dois termos são aqui utilizados de modo indiferenciado. de modo a agilizar a tarefa de descrição e registro. no âmbito de cada uma das categorias acima referidas. Do ponto de vista da forma. cristã. de modo a se "visualizar". de vários indivíduos. através de uma rápida avaliação visual. ou seja. suntuosa.A pesquisa de campo Na abordagem de cada espaço funerário pesquisado impôs-se inicialmente um reconhecimento do terreno. . o observador percebe. Nos dois cemitérios selecionados como modelos. tanto quanto possível. Considerando a feição atual aparentemente caótica dos cemitérios. Duas sub-categorias foram reconhecidas entre os mausoléus: as capelas. procedeu-se a um minucioso levantamento gráfico e iconográfico das sepulturas. em posição distendida. ossários e mausoléus. grupo. Uma vez classificados e definidos os diferentes tipos de jazigos. tornouse fundamental entender a lógica que rege a sua ocupação. . Assim sendo. em termos da sua delimitação e topografia. e os monumentos. normalmente em urnas. em caixões e em urnas. para fins analíticos. de ta r forma que. Este rocedimento permitiu obter rapidamente um perfil da época em questão. Dois tipos de signos foram reconhecidos: os verbais (epigrafia tumular)e os não-verbais (elementos escultóricos e arquitetõnicos). bem como as possíveis relações espaciais entre elas. o que permitiu visualizar sua distribuição no espaço funerário.Figura feminina C . claramente perceptíveis.Figura masculina D .c/ fita j .Bústo G . seguindo-se a numeração atribuída a cada um deles pela administração âo local. Atenção especial foi dada às datas impressas nas lápides.associado à urna r .Figurade anjo a .refletindo p .Crânio E .c/ bastão alado e serpente m. O levantamento.Figura de criança B . Esta omissão exigiu.signos ligados ao fogo.c/ tacha para cima b . em laboratório.c/ foice s . obtendo-se assim um máximo de informação.Em pé II . As três categorias de sepulturas reconhecidas foram plotadas em uma planta esquematizada do local. registradas juntamente com os signos verbais e não verbais. Comportando variações e sub-variaçães. a elaboração de uma estratégia destinada a impedir a perda dos dados iconográficos aí existentes.Em vôo V .c/ pergaminho t . fitomorfos. embora levantados. zoomorfos.c/ cruz g .c/ âncora n . o que criou dificuldades para sua datação.c/ tacha para baixo c . de nobreza ou distinção social e representações de objetos.Ajoelhada IV.c/ mãos cruzadas sobre peito e . Diversas sepulturas não apresentaram qualquer referência cronológica. o que permitiu sintetizar em apenas algumas letras um grande número de signos. e desta forma avaliando-se a ocupação progressiva do espaço.c/ trombeta i . Para cada um deles foi concebida uma sigla alfa-numérica.Signos Antropomorfos A .c/ tíbias cruzadas K .Militar I .c/ instrumentoagrícola k . tendo sido classificados como signos antropomorfos.Face F . com um esforço tanto quanto possível minimizado. foram desprezadas no levantamento.c/ cornucópia de frutos 97 .Isolado J . Já as sepulturas que sofreram alterações posteriores decorrentes de reformas.c/ cálice h .c/ livro f . Os signos verbais.Cena H .c/ panejamento l-c/ criança ao colo I . foram assim sintetizados e codificados: 1 .Sentada 111 . foi feito jazigo a jazigo. não foram trabalhados para os finsdesta pesquisa e apenas os não verbais foram objeto da presente investigação. fundamentais para se evitar a distorção da amostra.cariátides q .c/ coroa de flores d .orando o . limitado ao período compreendido entre o ano da inauguração do cemitério estudado e a virada do século (1903).c/ serpente I . Emfigura antropomorfa .c/ flor c .Em bastão alado .Cruz 98 IV .Para cima .Forma de vaso .Coroa .Águia 11 .Fruto IV .Forma quadrangular Forma piramidal .c/ chama e .Coruja IV .Ramalhete .Lamparina 11 .Emtocha .asa de morcego .Signos Zoomorfos I .Objetos I - Urna 11 .Isolado .duas voltas .Em moldura A B C D .Suporte c .Crucifixo V .c/ coroa.Horizontal .sobre almofada z .Emalça .Para baixo .Trespassado por foice a .Signos de Nobreza ou Distinção Social I .Signos ligados ao fogo I .c/ serpente h .Tocheiro IV .c/ pata de leão 5 .c/ fita 9 .Engolindo o rabo .Isolado b .Signos Fitomorfos I .Abelha VI .Emcruz 3 .emaranhada -Asa .asa de coruja f .Serpente A B C D E F G H I a .Coroa 111.uma volta .Tocha 111 .c/ coluna x . flor e folha f .isolado b .Brasão 11 .c/ panejamento d .Título/Comendo V .Cornucópia a .Arma 6 .Isolado .com fita 4 .u .Folha III .Morcego 111.Globo A B C D E F .Pata de leão V .Isolado .Chama A B C D E .cruzada por foice d .Ampulheta 111.c/ pomba 2 .Saindo de urna a .Flor 11 .cruzadas entre si c .cruzada por cruz e .Maçônico IV .c/ fita b .Alado .c/ estrela na cabeça v .livro VI .Pombo VII. processadas estatisticamentee analisadas à luz de um raciocínio seriacional. Na grande maioria dos casos.c/ anjos m.Âncora XII .Lobada M . quantificadas. em primeiro lugar.Elmo XV . situadas cronologicamente entre 1850 e a entrada do século XX (1903).cruzadas - c/ serpente entre si I .Imitando galhos K .841 do Cemitério São João Batista. A estratégia desenvolvida para contornar esta dificuldade consistiu. econômicos e sociais.Trombeta X . como seria mais desejável. Nas planilhas foi possível constatar que o expressivo número de jazigos sem referências cronológicas seria capaz de alterar o perfil iconográfico do cemitério. As freqüências obtidas foram devidamente interpretadas. bem amplos. enquanto categorias tipológicas. Considerou-se mais seguro sustentar as estimativas nos limites de uma década. analisando-se a sua relação com mudança social e cultural e entendendo-se o aumento e a diminuição da popularidade de cada categoria como resultante de uma complexa conjunção de fatores ideológicos.Coração XVI . no caso de serem simplesmente ignorados.c/ inscrição J .Cruzadas N . utilizando-se o conjunto de datas da aléia para a confirmação da estimativa.asa de outros h .Decorada I .Cálice XI .Pergaminho IX .Simples H . devidamente codificadas através das siglas alfa-numéricas.Porta-retrato XVII.monte de pedras i . foram introduzidos em planilhas eletrônicas. Como resultado. sendo 679 do Cemitério do Catumbi e 1.Em figura feminina g . julgando-se temerário trabalhar com intervalos menores.Cesto G . os gráficos de freqüência dos signos apresentam as ocorrências por décadas e não por ano. o conjunto dessas datas está dentro de um intervalo cronológico pequeno.c/pergaminho/livro 0. a partir das sepulturas vizinhas.Bastão XIV . mas também ao longo da aléia em que estão situados.VII . ou seja.de Malta L .520 sepulturas.ineiso na lápide o trabalho de laboratório As representações iconográficas levantadas no campo.c/ pombos n . Resultadosobtidos Foi levantado e analisado um total de 2. em função da ocupação progressiva das aléias.Foice XIII . 99 .estilizada i k .Panejamento VIII . na medida em que este procedimento permitiu verificar o seu comportamento diacrônico. políticos. na observação das datas apostas não apenas às sepulturas mais próximas. o que torna esses jazigos relativamente contemporâneos. A etapa seguinte consistiu no cálculo de uma data média para cada sepultura sem referência cronológica.Em figura de anjo O . no entanto. O São João Batista. Nas décadas de 80 e 90. Esta uniformidade se manteve até os anos 70 e parece corresponder a um número relativamente constante de membros adquirindo jazigos perpétuos. A mesma tendência foi constatada nos três primeiros anos do século XX. menos densa. ao longo do século XIX. Batista / / / / / / / / / 100 gráfico 1 . enquanto cemitério público. porém manteve a regularidade. um cemitério particular de ordem religiosa. 1978:469-70L devem ter sido ampliados os quadros da ordem. O número de sepulturas aumentou ligeiramente. a expansão demográfica da cidade.o gráfico nQ 1 apresenta a distribuição da freqüência dos jazigos por décadas. quando ele finalmente se estabeleceu como o cemitério das classes dominantes republicanas. J. teve evidentemente uma ocupação mais restrita. com o incremento da população urbana no Rio de Janeiro. A pouca aceitação durante o império fica evidente diante do pequeno número de jazigos perpétuos com ornamentos nas décadas iniciais. Sua ocupação aumentou progressivamente à medida que a monarquia foi se desgastando. porém uniforme. secular. que acompanhou. Perfil de distribuição dos jazigos ao longo do século XIX 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 O. para o qual contribuiram consideravelmente o colapso da cafeicultura na região do Vale do Paraíba fluminense e a melhoria das condições de saneamento na cidade (Lobo. em cada um desses cemitérios. 1850 1860 1870 1880 1890 / / / / / / - Catumbi S. até atingir um crescimento exponencial nas décadas finais e nos primeiros anos do século XX. O Catumbi. de modo natural. administrado pela ~?nta Casa: apr~sentou maior expressão numérica por se tratar de espaço tuneraflo aberto indistintamente a todos. Os que aparecem sob forma de anjos. acompanhadas por pequenos livros ou pergaminhos. corujas. no início do século. bastões e foices com serpentesL enlaçados por fitas. As urnas ocupam o segundo lugar em popularidade. ãncoras. formadas por galhos cruzados. Somente no início do sécub XXaparecem sob a forma de crucifixo. representadas sob as mais diversas formas: simples. aparecendo menos nos mausoléus e ossários. fincadas em montículos de pedras. no intervalo cronológico analisado. de Malta. Ocorrem em grande número apenas incisas na lápide. cornucópia de frutosL zoomorfos (ampulhetas com asas de morcegos. Colocadas em geral nos ossários. São muito mais freqüentes nos túmulos. 1206. seguindo-se as representações femininas. mausoléus e ossários são as categorias de jazigos mais elaboradas artisticamente e nelas foi aposta a maior diversidade de signos. ou seja. já que aí estão incluídas cruzes e urnas. Os signos que apresentam a freqüência mais expressiva nos dois cemitérios são os objetos. foices e globos. contêm sepultamentos secundários. com a imagem aposta do Cristo crucificado. de modo geral. desarticulados. quadrangulares. 211. urnas com suportes em patas de leão. Mais tardiamente. formando coroas ou ramalhetes. monumentais.. enquanto as masculinas têm pouca expressão numérica.Em ambos os cemitérios. Foram quantificados 235 jazigos com urnas no Catumbi e 106 no São João Batista. Em segundo lugar aparecem os signos antropomorfos. etc. portando asas. Os objetos mais expressivos que se seguem a ambos são tochas. Podem aparecer combinados a signos fitomorfos (coroas e ramalhetes de flores e folhas. 101 . já que um mesmo túmulo pode apresentar mais que uma cruz. As primeiras constituem indiscutivelmente o signo de maior popularidade: o Catumbi apresenta 417 túmulos com cruzes. Em forma de vasos. Crianças ocupam a terceira posição. Em grande parte dos casos estão encimadas por chamas ou parcialmente encobertas por panejamentos que caem displicentemente sobre elas. ou seja. seguidas por ampulhetas. e o São João Batista. em geral de grande dominância visual nas sepulturas. surgem corações e porta-retratos. no período analisado. Podem apresentar folhagens em trepadeiras. O São João Batista possui 485 jazigos com representações humanas. e o Catumbi. são os mais freqüentes. apresentam decoração mais discreta. mais raramente inscrições. e com treqüência estão associadas a signos ligados ao fogo. etc. Os túmulos. esse número aumenta. Através do tratamento quantitativo dos dados nas planilhas eletrõnicas foi possível constatar os tipos de maior ocorrência nas duas amostras. decoração floral. em geral com tampa. ou não ter qualquer tipo de decoração. Estão presentes desde a inauguração dos dois espaços funerários. lobadas. Se quantificadas isoladamente. o que é compatível com a sua natureza. embora aí também tenham sido executadas muitas composições pomposas. parcialmente encobertos por panejamentos. entre outros. limitando-se a umas poucas unidades. Esses objetos são de baixa dominância visual no espaço funerário e em geral compõem campos decorativos secundários. possuem outros formatos bastante diversificados: piramidais. .Padrão de Consolidação. numa tentativa de entender os mecanismos responsáveis por essas mudanças. em uma moderna capital. Ao importarem mimeticamente o modo de vida assumido pela burguesia florescente da Europa ocidental. por exceder o recorte cronológico proposto. São erigidos ou diretamente importados da Europa (particularmente de Portugal) inúmeros mausoléus. expressam claramente os valores desses segmentos dominantes. etc. quer emprestando suas asas às ampulhetas ou servindo de suporte para urnas.Padrão de Transição. etc. foi apenas caracterizado. que em grande parte apresentam apuro artesanal e qualidade artística. que podem ser assim sistematizados: . implantação de linhas de bondes.. de feição portuguesa. ocupando eixos transversais e confirmando diferenciações de status social (fotos 1 e 2). Padrão inaugural: 1850 . As classes dominantes da sociedade (aristocracia rural. político e ideológico no qual se movia a sociedade que os produziu ou adotou. como morcegos. que domina os espaços funerários entre 1850 e 1888. 102 . de caráter monumental. reconhecidos através dos procedimentos quantitativos descritos e aplicados apenas aos dois cemitérios acima referidos. grandes comerciantes. . não tendo sido trabalhado estatisticamente. As sepulturas desse momento.) investem consideravelmente na morte nesse período. Esses padrões. transplantam para os cemitérios do Riode Janeiro os modelos vigentes nos espaços funerários europeus. Também no início desse período é feito um considerável investimento no espaço urbano. implantado entre 1903 e 1930. aparecem associados a outras formas. Em poucos casos foram colocados isoladamente. Os demais. foram confirmados através de avaliação visual nos demais. que se instala por um curto período. com dominância visual. A análise do comportamento desses signos através do tempo permitiu reconhecer três padrões dominantes na representação da morte. instalação de iluminação a gás. Os signos utilizados e o estilo adotado para essas representações foram analisados no âmbito do cenário econômico. com inúmeros projetos para a construção de diversos prédios públicos.1888 Tem início com a efetiva ocupação dos cemitérios no Rio de Janeiro e se estende até a ruptura do modo de produção escravista. numa tentativa de transformar a cidade "barroca". corujas e patas de leão. Esse investimento é maior nas décadas iniciais. a empresa cafeicultora fluminense. nas suas principais aléias (fotos 3 a 7). Inúmeros sepultamentos feitos antes em igrejas são transferidos para os novos espaços tunerários e colocados em pomposos ossários.Padrão Inaugural. declinando à medida que se deteriora a monarquia escravista e o principal sustentáculo da sua economia. entre 1889 e 1902. alta burocracia civil e militar. O último. com a conseqüente transição para o capitalismo emergente.Os zoomorfos têm nas serpentes que engolem o próprio rabo o signo de maior popularidade desta categoria. entendendo-o como uma representação autóctone das culturas nórdicas. para assim obter uma legitimação implícita da ordem social corrente. as urnas em forma de ânforas. ao redescobrir a antiguidade clássica a partir das grandes descobertas arqueológicas do século XVIII(Herculano. As representações da figura humana são chapadas. ao se rebelar contra os exageros do classicismo arqueológico. E essa vertente que impõe aos cemitérios o mármore branco. sem sensualidade. orubouros. entre outros. Signos que remetem à consumação dos tempos. surgiu como uma reação ao artificialismo. entre 1800 e 1840. valorizando a simplicidade. não há tristeza. a serpente alquímica que engole o próprio rabo. 1922) em vigor na Europa. adotou em meados do século. assinala que as reinterpretações em miniatura dos gigantescos monumentosdo passado da humanidade podem ser entendidas como associações com o esplendor dessascivilizações. ao brilhantismo e riqueza cromática do rococó. as tochas e fachos. a contenção. nos seus espaços funerários. Não há desespero. O movimento neo-classicista. ampulhetas aladas. a severidade. os templos. este novo classicismo surgiu compromissado com os ideais da burguesia em processo de afirmação e consolidação. só melancolia (fotos 3 e 4 ). Essa sociedade. sem exuberância de formas. fachos e tochas acesas. que interpretavam o mundo greco-romano através da sua própria ótica e valores morais. à frivolidade. porém voltadas para baixo. corujas e plantas narcóticas.As representações da morte no império escravista são escatológicas. essencialmente burguês. E?legeu como seu grande modelo o mundo grego. e as atitudes são de reflexão. que transplantava a ideologia do ocidente europeu e importava em doses maciças a maioria dos seus bens de consumo. foices. os obeliscos e pirâmides egípcias. ambas claramente representadas neste primeiro momento identificado nos cemitérios cariocas: o classicismo arqueológico e o neo-medievalismo romântico. em termosdaqueles valores. além de morcegos. O classicismo arqueológico. edículas e colunas greco-romanas. mórbidas. Pompéia. A 103 . Já o neo-medievalismo romântico. são os leitmotiv da arte tumular nesta fase (pranchas 1 a 7). criando expressões híbridas. romano. globos alados. etrusco e egípcio. o modelo do classicismo romãntico (d. que se mesclaram e interpenetraram na arte tumular dos espaços funerários analisados. Diferindo substancialmente do antigo classicismo das monarquias absolutistas do século XVII. Pearson(1982L ao discutiro simbolismoda comunicação ritual. O branco domina a totalidade do espaço funerário. elegantes. propôs uma revivescência do estilo gótico. estimulando uma verdadeira febre de escavações. desdobrou-se em duas vertentes. As suas expressões denotam emoções contidas. mas a uma expressão idealizada dessas relações. inclusive túmulos e mausoléus inteiros. Giedion. 1737. 1748L que despertaram a paixão pelo antiquariato e pela procura de obras clássicas. machados. Os corpos são esbeltos. que não se refere necessariamenteàs verdadeiras relações de poder. à sensualidade. controladas. a objetividade e a brancura dos monumentos clássicos. como caveiras com tíbias cruzadas. classicamente trajados. macabras. Enquanto movimento. a degenerescência. inclusive com criptas. Nos domínios subterrâneos. que tanto enfatizou o contraste entre a vida e a morte. serpentes). produziu seus signos com base no sentimento e na emotividade. espectrais. como quem dorme ("Aqui jaz . expondo a decomposição da carne. através dos signos produzidos. metaforizado pelas papoulas. koimáo = dormir) é um espaço disciplinado. à distância. "Aqui repousa. Conforme assinalo Hauser (1972:834).:835). mas sempre mesclada a elementos do classicismo arqueológico. Traduzidos e retrabalhados. os morcegos). corujas. O cemitério (do gr. corujas). a introspecção. foices). manifestou-se dominantemente na arquitetura religiosa (igrejas) e funerária (cemitérios). op. ampulhetas."). o antigo mito da Morte/Sono. dos quais muitos reproduzem capelas góticas miniaturizados. O imaginário do classicismo romântico reafirma assim. Neste primeiro momento ocorrem ainda. Essa vertente nunca aparece em sua forma pura nos cemitérios do Rio de Janeiro. em sua própria perspectiva. referido por Urbain (1978). Suas principais manifestações estão nos mausoléus. e buscou nisso um refúgio contra a realidade que era incapaz de dominar por meios racionais". "num verdadeiro culto do misterioso e do tenebroso. a podridão. em pequena escala. esses signos foram reintegrados ao imaginário classicista romântico da morte. do fantástico e do grotesco. Assimilando esses modelos com pelo menos vinte anos de atraso em relação à Europa. a classe burguesa fugiu à sua própria realidade. Ao contrário do barroco.. de modo a que não se perturbe o sono dos mortos. expressada nesse neo-gótico. inexoráveis (ampulheta alada) compõem o repertório romântico neste primeiro momento dos cemitérios cariocas. signos metonímicos. do patológico e do perverso" (Hauser. sinistros (caveiras. a ação dos vermes. no interior da terra.. que configura o historicismo na Europa. reino das trevas. fantasmagóricos (a cor branca). Elementos noturnos (as corujas. Thanatos e Hypnos são ambos filhos da Noite. com medo. paralelamente. serpentes. silencioso.. mas também incorporou elementos dos movimentos anteriores ao surgimento da burguesia (caveiras. também como resultantesdesse movimento de valorização dos estilos antigos. só que transformando-os à sua feição.". por morcegos. do diabólico e do macabro. entre outros. a loucura. "o romântico mergulhou impetuosamente no seu duplo. foices. em tudo o que é obscuro e ambíguo. onde os corpos são dispostos distendidos. ossadas. em atitude de repouso. demoníaco e dionisíaco.104 exaltação nostálgica da Idade Média. Valorizando o inconsciente. que é povoado. desse confronto. representando a morte apenas fantasmagoricamente.. com olhos fechados. os mortos dormem o Grande Sono. soníferos (papoulas). os conflitos internos. koimêtêrion = lugar onde se dorme. o fantástico e exaltando o poder criador da imaginação. Os túmulos são concebidos como leitos. Nessa nostalgia p-elo passado. abrigando-se na fantasia e no sonho. por volta de 1840. onde se fala baixo. o neo-medievalismo romântico fugiu. obscuros e tenebrosos. terríficos (serpentes). os cemitérios do Rio de Janeiro foram impregnados por essa . o Sono Eterno. Esta vertente não apenas introduziu seus próprios motivos na arte tumular (morcegos. do horrível e do fantasmagórico. caótico e beatífico. cit. algumas expressões neo-renascentistas e neo-barrocas. Com o advento da república. em ambos os espaços funerários. presentes em cerca de 65% dos jazigos. um percentual que possivelmente corresponde aos segmentos com poder aquisitivo suficiente para adquiri-Ias. praticamente desaparecem.aneiro. fincado em 105 . essa feição vai se atenuando paulatinamente. 1975:37). Padrão de transição: 1889 . 10 de . em sua própria imagem. Já no São João Batista. constituindo um novo leitmotiv e disseminando-se com força crescente nos túmulos dessa época: uma cruz singela. entre 1850 e 1888. O gráfico 2 mostra a dominância dos signos escatológicos no Catumbi . cemitério público onde se enterravam todas as camadas da sociedade e que não desfrutou da mesma preferência. cedendo espaço para o signo da cruz. provincianos. em múltiplas variações. é de declínio acentuado desses signos em direção ao final do século. posto que estão situados nas aléias mais nobres e de maior visibilidade no cemitério. suas atitudes de exibição e auto-promoção. Mais pronunciada nas décadas iniciais. Conselheiro Ayres. as classes dominantes. compreendido entre a queda do império e o final do governo Campos Salles. ao tempo em que aqui foram implantados.). investiram maciçamente na morte e. As representações escatológicas da morte. podia ser um pouco mais simples . uma dessas variações assume a dominância sobre as demais.mas o que está é bem feito".azigo. à medida que declina o sistema escravista. Fomos ao cemitério ISãoJoão Batista) IH. econômicas.). não obstante eventuais pulsações recessivas determinadas por conjunturas de mercado. em geral imitando galhos. os signos escatológicos estão presentes em cerca de 20% das sepulturas da década.o cemitério das elites imperiais . conforme demonstra o gráfico 3. em 1902. Não é feio o nosso . e a magnificência de seus túmulos dá a medida das suas aspirações à ascensão social. 1944b: 13). paulatinamente substituídas pelo signo da cruz. foi decisivo para a constituição e consolidação do novo regime (Cardoso. Caracteriza-se por uma progressiva ascensão da burguesia e. em Memorial de Ayres (Machado de Assis. A tendência. Período que corresponde à emergência da ordem capitalista republicana.1902 "1888IH. Esta defasagem fica claramente perceptível diante da adoção de padrões que na Europa. marcado por fortes crises políticas. já eram considerados demodés. Seusepitáfios expressam os seusanseios de diferenciação e prestígio. Em um período de expansão econômica. Bastante tumultuado.a inscrição e uma cruz . que invade os cemitérios com força crescente. os mausoléus. A popularidade das cruzes aumenta de modo notável.estética do classicismo romântico. paradoxalmente. por um notável empobrecimento da arquitetura tumular. através dela.entre 1850 e 1860. diminuem consideravelmente nesse período. As construções monumentais. com capital em disponibilidade. financeiras e sociais. não obstante impregnada de religiosidade. Presente desde a inauguração dos cemitérios. detalhando apenas a cruz sobre pedras. em cerca de 5% a 10% dos túmulos levantados. apresenta uma notável persistência temporal: trata-se de um anjo/criança ajoelhado sobre uma almofada em atitude de oração. detalham a sua freqüência. marcando a presença da sepultura anônima de uma pessoa modesta. Os gráficos 6 e 7 mostram. mantém-se com ligeira retração na década final e adentra consideravelmente o século XX. a cruz parece ser utilizada simplesmente como o signo da morte. com expressões surradas. no caso).um montículo de pedras (prancha 8). entre 1870 e 1890. sugerindo o trabalho de artesãos marmoristas pouco criativos. de modo geral sem qualidade artística. designado nos álbuns dos marmoristas à época como "anjo espreme-limão". na última década do século. com raízes na Idade Média ou talvez muito antes: a de simples marcos de referência. ao pé do qual muitas vezes é colocado um pequeno livro aberto ou um pergaminho parcialmente desenrolado (fotos 11 e 12). em virtude da posição das suas mãos (fotos 17. e dos signos escatológicos. Representação geometrizada e metafórica do corpo humano. quando aparecem. A variante destacada corresponde ao modelo de túmulo mais simples e pobre. desvinculada do sentido que lhe atribui o catolicismo. e os antigos signos. Os gráficos 8 e 9 apresentam as freqüências comparadas do signo da cruz. por exemplo. o cemitério dos republicanos. em contra posição. que não foram capazes ou não tiveram motivação suficiente para renovar seu repertório. não obstante tratar-se de cemitério religioso. A produção funerária deste período é massificada. 18). Os três primeiros anos do século XX registram uma tendência de alta desse signo nos dois espaços funerários. Todas essas cruzes. caracterizando o processo de substituição de uma categoria de signos pela outra. que expõem a regularidade da distribuição dos signos antropomorfos em geral por todo o período analisado. Um signo antropomorfo. que não carregam em si o sentido religioso do suplício de Cristo. à beira de qualquer caminho. ocupou cerca de 30% dos jazigos nesse mesmo intervalo de tempo. Os gráficos 4 e 5 mostram o crescimento progressivo do leitmotiv da cruz sobre pedras ao longo da segunda metade do século XIX. desconhecida (foto 9). a retração dos signos escatológicos e a expansão da cruz sobre pedras ao longo da segunda metade do século. Há casos de sepulturas que chegam a apresentar três ou até mesmo quatro desses anjos apostos a uma . Os gráficos 10 e 11. cuja imagem jamais lhe é aposta nesse momento. sinalizando apenas a presença de um morto. sustenta uma relativa estabilidade por várias décadas. que evoca dois galhos de árvore cruzados e fincados sobre um montículo de terra (ou pedra. repetem velhas fórmulas já desgastadas. Pouco expressivo entre 1850 e 1870. espraia-se por cerca de 25% dos jazigos ambos os cemitérios. para finalmente predominar em em 106 cerca de 60% das sepulturas do São João Batista. No Catumbi. parecem meramente retomar uma antiga conotação. com poucas exceções. com suas múltiplas variações agrupadas. Os que compram esse tipo de produto. o que revela um surpreendente desinteresse no tratamento dispensado aos mortos. coroa. o real. a verdade. convencionais.agora com o concreto. alguns dos princípios fundamentais pregados pelo movimento positivista. O desenvolvimento científico e os avanços tecnológicos exigiam um novo compromisso. no epitáfio. pelo estado de espírito positivista que tomou conta da sociedade ao final do século. apenas o nome. acrescidos apenas de um ou outro símbolo (brasão. Posteriormente desvirtuado e transformado em Religião da Humanidade. nesse momento. a fantasia e o sobrenatural romãntico. atestando a desmotivação e o desinteresse dos ateliês pela criação de novos modelos. o progresso através da educação (o livro aberto. através do comentário feito pelo Conselheiro Ayres. Aristocratas. entendendo que esses espaços "prolongavam a ação moralizadora da família. O pensamento comtiano pretendeu. armas ou menção. em sua esmagadora maioria. a crença na unidade fundamental da espécie humana. os marmoristas acrescentam-nas. que valorizava particularmente o estilo alegórico de monumentos. pequenos burgueses. Esteanjo perdura por cerca de 70 a 80 anos nos espaços funerários da cidade. a objetividade. sem qualquer ornamento (fotos 13 a 16). Em casos extremos.mesma lápide (fotos 19 e 20). em sua etapa inicial. recebem indistintamente em seus túmulos signos semelhantes. o exato. o gosto pela leitura e pelo estudo. comenda. à medida que o signo vai se vulgarizando. A sociedade pouco investe na morte nesse período. De início sem asas. Machado de Assis expressa. As sepulturas são banais. o pergaminho/diploma) sugerem a impregnação. mesmo assim impregnou fortemente a sociedade com esses 107 . de sua condição profissional e social) que promove a diferenciação entre eles. em oposição ao que existia antes. também do espaço funerário. o mundo exterior) como o grande modelo. tendo a natureza (a realidade. O leitmotiv da arquitetura tumular desse momento de transição parece conter. Na citação acima. a solidariedade social e a irmanação das classes (a cruz que iguala indistintamente os mortosL a admiração e o fervor pela natureza expressos na concepção do "bosque sagrado". O branco se mantém como a cor absoluta do espaço funerário. em plena efervescência nesse período. para além da existência objetiva dos seres que dela fazem parte" (Aries. acrescido apenas da inscrição. a estética funerária que se anuncia entre os estamentos mais elevados da sociedade: a opção pela simplicidade. e o igualitarismo decorrente dessa massificação quase nivela os mortos entre si (foto 10). 1982:590). varrer o subjetivismo. A doutrina. sobre o seu jazigo de família. O haternalismo. aparentemente se satisfazem com ele. em um mesmo e único signo. militares de qualquer patente. imprescindível ao culto positivista (os galhosL o cientismo. o título nobiliárquico e as datas de nascimento é morte são impressas nas lápides. colocando em seu lugar a precisão. sem a pompa e a magnificência do período anterior. pelo signo da cruz. tinha especial apreço por túmulos e cemitérios. como novidade máxima em oferta. sobretudo os escultóricos. em 1888. Esse esvaziamento do culto romãntico da morte sugere claramente ser fruto da penetração desses novos valores racionais. e do dramático episódio do Encilhamento. da difusão da doutrina em si. mas da infiltração sutil dos seus ideais. símbolos. com a conivência do governo e sob a proteção da espada do Marechal de Ferro. sob a forma de uma república federativa e presidencialista. o aparente desinteresse pelo espaço funerário nesse curto intervalo de tempo. pequenos proprietários. não letrados. Estesparecem ter sido os principais fatores que contribuíram para dar aos cemitérios cariocas a surpreendente feição que eles assumem nesse momento de transição: empobrecida. até . aqui. em um intervalo de tempo tão restrito. esses segmen10s médios urbanos incluíam desde militares de baixa e média patentes. é surpreendente. Conforme ressaltou Bosi (1992:280). resistindo enquanto servirem como veículos úteis para racionalizar interesses e vontades". este fenômeno de desapreço pelas sepulturas. onipresente a partir da implantação do regime republicano em 1889. artesãos. fortemente nacionalista e radical. conseqüência desta conjunção de fatores no conturbado processo de consolidação da república em seus primeiros anos. fez surgir o iacobinismo. em 1893. banal. por meio de imagens. até mesmo os mais baixos. provocado pelo movimento jacobino. professores. que apenas as elites letradas foram capazes de absorver. Em meio a um clima de permanente sedição. autoritário. com a soberania nacional acima de tudo. Pela sua transitoriedade. intolerante. Definidos por Carvalho (op. estudantes. funcionários de repartições públicas. sugere ter sido mais propriamente resultante de pressões externas. A impressionante resistência do presidente à Revolta da Armada. com a renúncia de Deodoro. Não se trata. "esquemas mentais não cessam abruptamente de funcionar. cit. longe de ser produto de novos esquemas mentais. cuhural e ideologicamen1e he1erogêneos. adentrando os primeiros anos do século XX. foi responsável por um período de intensas agitações. os positivistas parecem ter contribuído substancialmente para a transformação da representação da morte ao final do século XIX. ao discorrer sobre a perduração do positivismo. ritos e mitos. Social. patriótico. pequenos comerciantes. alegorias. defendendo um estado forte. disseminados através de uma eficiente propaganda subliminar. ferroviários e telegrafistas. parece resultante do pesado clima antimonarquista dos primeiros anos da república. nivelada. instalado em novembro de 1891. este movimento. guarda-livros. os jacobinos espalharam terror através de ações armadas contra possíveis monarquistas. Entretanto.108 princípios. estudado em maior profundidade por Queiroz (1986). um violento movimento de defesa dos ideais republicanos.) como os mais articulados manipuladores de símbolos do novo regime. O temor de uma possível restauração monárquica. que conseguiu atingir a praticamente todos os segmentos da população. que emergiu de forma relativamente espontânea entre as camadas médias urbanas. De caráter militar positivista. exacerbou-se no governo Floriano Peixoto. Por ser o tratamento dispensado à morte um dos domínios onde as sociedades se mostram mais conservadoras e um dos que mais persistem na longa duração. proclamando-se "as sentinelas vigilantes da República". ditatorial. que a expressão de uma nova mentalidade. promoviam linchamentos e assassinatos. os chamados "batalhões patrióticos". o modo porque se davam as buscas. portanto. Discursosexacerbados eram proferidos no Parlamento. ao que a sociedade do Rio de Janeiro possuía de melhor. sem que ficasse vestígio. Os estratos mais baixos corriam atrás dos portugueses. empastelavam jornais. que invariavelmente terminavam em pancadarias (Queiroz. Prudente de Moraes. particularmenteintensono Rio de Janeiro. seus empregos. A sucessão de Floriano por Prudente de Moraes.. 1949b: 271 L semeou um clima generalizado de terror. decretando e prolongando o estado de sítio. reatar relações com Portugal. mais tarde transformado em "0 Nacional". Ainda segundo Joaquim Nabuco (1949a: 252L "o regime da Casa de Correção imposto a homens de caráter ilibado. bem distantes. promoviam toda sorte de agressões físicas e verbais. coibindo a crítica. 1987). o silêncio que se impunha a respeito das prisões. engenheiros e farmacêuticos. assaltavam suas lojas. como se o Brasil. "executando ou deixando executar seus inimigos. assim como jornalistas e parlamentares. em 1895. contrária aos interessesdos adeptos da ditadura. quer em desordens de rua. 1986:81). rompendo relações com Portugal. a incerteza do destino que aguardava os presos. incitando à desordem. e os prédios de aluguelL a quem atribuíam simpatias monarquistas.. francamente desfavorecidos pelo regime monárquico e conferindo ao movimento intensa participação popular (Carvalho. tivesse retrogradado ao estado de Roma no reinado dos Bórgias" (Nabuco. 1989). aumentou a tensão social. Entusiasmados pelas atitudes duras e pela pronta e enérgia reação do chefe do governo aos desafios e ameaças ao regime. nos clubes jacobinos. criando milícias armadas. e entendendo que os fins justificavam a violência dos meios. incendiavam seus armazéns. quer através da imprensa. em periódicos como "O Jacobino" e "A Bomba". acusado de fraco e tolerante para com os monarquistas. deram-lhe considerável sustentação popular. que se limitaram a assistir "bestificados" ao golpe de 15 de novembro. no século dezenove. constituía uma verdadeira e flagrante tirania". transformaram-se em grupos politicamente ativos. na famosa expressão de Aristides Lobo. Esses segmentos. anistiar os rebeldes federalistas e os revoltosos 109 . unindo-se em defesa de melhores oportunidades para os seus setores. médicos. aos gritos de 11 mata galegos!". próprias para inspirar terror e manter a cidade imóvel. A ditadura florian. como advogados. ao desmilitarizar o país. que constituíam cerca de 20% da população. o susto em que viviam até mesmo de serem sufocados à noite pela cal (. com intensa participação das "comissões de agitação pública". encarcerando os opositores ao regime. partindo os jacobinos para confrontos abertos com o governo civil. não só do operariado mas também dos grupos dominantes (Queiroz. a sua incomunicabilidade durante a encarceração. em comícios e nos meetings. enquanto os mais intelectualizados escreviam artigos em linguagem virulenta. até então passivos. recrutando tropas.L esse conjunto de medidas. Perseguindo implacavelmente os portugueses (que controlavam o comércio. ista por seu lado.profissionais liberais. da Armada, potencializou a ira dos fanáticos, que entenderam essas medidas como tentativas de restauração da monarquia, e, em 1897, ao promoverem um atentado contra a sua vida, acabaram vitimando seu ministro da guerra. O impacto fortemente negativo deste episódio sobre a opinião pública apagou o furor jacobinista e extinguiu de pronto o movimento, ao qual Queiroz (op. cit.) atribui uma delimitação cronológica bastante precisa: entre 1893 e 1897, ou seja, entre a Revolta da Armada e o atentado. Não obstante classificado por Nabuco (op. cit.: 263) como "uma moda de época, um pastiche histórico", o jacobinismo manteve-se por mais algum tempo, persistindo ainda consideravelmente no imaginário popular, conforme detectado por Cardoso (1989). Totalmente equivocados ao avaliar a Revolta da Armada como um movimento de adesão à monarquia, na verdade resultante da rivalidade entre exército e marinha (Hahner, 1975 :61), e ao atribuir a portugueses e monarquistas os entraves aos seus interesses, os jacobinos não foram capazes de perceber, em sua ótica limitada, que eram os cafeicultores paulistas, já dominantes no cenário político e econômico, os seus verdadeiro antagonistas. (Queiroz, 1989:237). 110 Este clima de suspeição, de insegurança generalizada, de restriçôes severas às liberdades individuais civís atemorizava a população, que, apavorada, temia ser confundida com monarquistas. Impunha-se a prudência, a discrição, a sobriedade, o recolhimento. A eliminação de sinais aparentes de identificação com os adeptos do antigo regime era uma questão de sobrevivência, que parece ter se estendido também aos espaços funerários. Esta foi, sem dúvida, uma das razôes pelas quais o cemitério da monarquia por excelência, o velho Catumbi, entrou em declínio, saiu de moda, repudiado pelas novas elites da república que elegeram o São João Batista como seu espaço funerário, a par do deslocamento do eixo elegante da zona norte (Catumbi e arredores: Rio Comprido, Mata Porcos, Andaraí, São Cristóvão) para a zona sul (Botafogo e adjacências: Flamengo, Catete, Laranjeiras, Cosme Velho), em busca de locais mais frescos, arejados e aprazíveis. Por outro lado, a total separação entre Igreja e Estado promovida pelo regime republicano, e inscrita na Constituição de 1891, foi outro fator que contribuiu consideravelmente para esta transferência. Fortemente positivista, a primeira Constituição da república promoveu a laicificação do Estado em vários de seus artigos, determinando, entre outras medidas, a secularização dos cemitérios. Ao submeter a administração dos espaços funerários, inclusive os religiosos, às autoridades municipais, retirou da Igreja o controle sobre a empresa funerária, enfraquecendo bastante a sua participação nesse processo. Por sua vez, o dramático episódio do Encilhamento, movimento de desenfreada especulação bolsista, decorrente da política financeira implantada pelos governos militares, caracterizado pela expansão desmedida de créditos e pela emissão em larga escala de papel moeda, fez triplicar o meio circulante, determinando uma forte depreciação cambial. Estas medidas, altamente inflacionárias, provocaram uma falsa euforia industrial, estimulando a negociação de papéis e ações das novas empresas abertas com o surto. Grandes fortunas apareceram do dia para a noite. Havia dinheiro, muito dinheiro, mas não para ser investido na morte, que não multiplicava o capital real, mas sim na bolsa, que fazia milionários aos borbotões. E o mesmo Machado de Assis que, em Esaú e Jacob (1944a:275), assim descreve o episódio: "Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saiam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. (...) Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos. Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu". Esta política de desvalorização da moeda, entretanto, realimentava a inflação e pôs em dificuldades as empresas que, sem condições de fazer frente a seus compromissos, foram sendo progressivamente levadas à falência. As grandes fortunas, surgidas meteoricamente, desapareceram com a mesma velocidade. "Patrimônios seculares" foram destruídos em pouco tempo. A depressão econômica que se seguiu ao Encilhamento teve como conseqüência direta um fenômeno de empobrecimento coletivo que atingiu indistintamente a todos os segmentos da sociedade. O dinheiro desapareceu de circulação e o poder aquisitivo diminuiu consideravelmente, trazendo uma indisponibilidade tinanceira generalizada ao final e na virada do século. Com isso, a sociedade perdeu suas referências, suas identidades até então bem marcadas, os mais ricos empobrecendo e os não tão ricos enriquecendo subitamente, o dinheiro mudando rapidamente de mãos, as camadas médias reivindicando agressivamente novas posições, em meio a um clima de "democratização" compulsória, imposto politicamente através da coerção, da censura, da pressão. Os papéis sociais confundiram-se, "igualando" momentaneamente segmentos antes bem diferenciados. Ao "perder a cara" no espaço urbano, essa sociedade "igualou-se" da mesma forma no espaço funerário, sem saber mais quem era quem. O leitmotiv da cruz, em especial a fincada em um monte de pedras, que aparentemente nivelava os mortos entre si, em nome de uma supqsta igualdade da espécie humana, na verdade encobria o seu contrário. E a imagem invertida de uma sociedade onde as desigualdades se acentuavam cada vez mais, sobretudo com o fortalecimento e as possibilidades de ascensão dos novos segmentos médios, que emergiam com o rompimento do império escravista e a intensificação das práticas capitalistas. Esse notável fenômeno de dissimulação que tomou conta dos cemitérios do Rio de Janeiro na virada do século pode ser mais claramente entendido à luz do que colocam Shanks & Tilley (1987: 142), ara quem um estilo de representação é antes de tudo uma produção socia,F de natureza eminentemente ideológica, na medida em que é uma expressão de idéias, 1 1 1 crenças e valores, sendo ativamente manipulado para inverter, encobrir, dissimular e deturpar práticas sociais. Não pode por isso ser tomado, segundo eles, como um simples espelhamento de estratégias e práticas sociais, mas sim como um mediador, que serve para reorientar essas estratégias. Assim sendo, por um curto período de tempo, a sociedade carioca viveu singularmente, tanto no espaço funerário quanto no espaço urbano, onde tampouco foi feito qualquer investimentosignificativo, um momento de indefinição. Ao cabo desse intervalo, a burguesia em ascensão reordenou-se,gestando o que viria a ser a sua reentrada triunfal na primeira década do século '/:1.., a partir de 1903, marcada pelo que designamos como "padrão de consolidação". Padrão de consolidação: 1903 - 1930 Período que se inicia com uma reativação econômica e retomada do crescimento, saindo o país da conjuntura recessiva em que se encontrava na transição do século. Com as finanças e o crédito externo parcialmente recuperados pelo governo Campos Salles, Rodrigues Alves assume em 1903, inaugurando uma etÇJpade grandes investimentos, tanto no espaço urbano quanto no funerário. A semelhança daquele, este passa nesse momento por uma notável transformação, aí instalando-se uma nova linguagem plástica. A burguesia, agora com disponibilidade de capital, volta a investir maciçamente na morte. Com um formidável aparato, erige mausoléus monumentais, introduzindo novos materiais na arquitetura tumular, entre eles metais nobres, como o bronze (foto 32). A morte agora é uni grande espetáculo e o cemitério passa a ser um lugar privilegiado para demonstrações de força e poder sem precedentes. Os segmentos dominantes exibem-se despudoradamente, expondo todo o seu prestígio e imprimindo com vigor a sua marca. Opulência, ostentação, luxo, grandiloqüência são as palavras de ordem nesse momento. Triunfo, a palavra-chave. Artistas renomados são contratados para a produção de obras então consideradas notáveis, imF?ortando da Europa concepções novas de arte tumular. Alguns, como Rodolfo Bernarde 11 i , introduzemelementosde vanguarda na escultura funerária. Mausoléus e túmulos continuam a ser importados, sobretudo da Itália e da França. As camadas médias, entretanto, sem grandes alternativas em função do seu poder de compra limitado, continuam comprando velhos modelos que os marmoristas repetem mecanicamente à exaustão, como o "anjo espreme-limão". 11 2 A produção artística passa a ser uma exclusividade apenas dos segmentos abastados, capazes de financiar as assinaturas dos grandes escultores da moda em seus túmulos; aos demais, cabe a reprodução em série, saindo de cena os velhos mestresa rtesãos, artistas anõnimos que conferiram aos cemitérios, em sua etapa inicial, a qualidade artística que apresentam. O erotismo, até então mantido fora dos seus limites, penetra progressivamente no espaço funerário. As estátuas, que em todo o século XIX ostentavam corpos esbeltos, elegantes, quase assexuados e classicamente trajados, explodem agora em sensualidade. As vestes femininas, até então em evidente contraponto com os anjo. em vida) das pessoas falecidas. apontam vitoriosamente para o alto.pudorosas. anjos e outras.. que traz para o espaço funerário o Art Nouveau. Tendo como principais forças sociais uma classe dominante constituída por segmentos de grande poder político e econômico e uma classe subalterna composta pelos negros e mestiços. a partir dos primeiros anos do século XX. antes contidos. eram diversos) mas imóveis" (Machado de Assis) op. em sua monumental obra sobre os cemitérios brasileiros. braços e asas erguidas. em diversas representações. São Pedro. Os gestos das figuras. Igualmente são introduzidos nesse momento retratos e estátuas que reproduzem realisticamente as feições. passam a manifestar emoções intensas. deixando ombros e seios à mostra. braços pendidos. Esta "imobilidade". embora timidamente. o retratismo.: 13). São José. desapareceu junto com a antiga ordem. e não raro um estado de êxtase. o Conselheiro Ayres comenta: "A impressão que me dava o total do cemitério é a que me deram sempre outros. num regime de tirania e perversão. As cruzes paulatinamente transformam-seem crucifixos) ao longo do período. começam afinal a penetrar no espaço funerário. Santo Antônio. Nessa sociedade) em que poder e lucro foram obtidos através da violência e opressão explícitas. a morte foi 11 3 . que antes denotavam reflexão e melancolia. Gloriosos. Os panejamentos. Suas expressões. como tristeza e desespero. a emoção e a movimentação tomam conta dos cemitérios nas primeiras décadas do século. (Nossa Senhora. tudo ali estava parado. tornam-se diáfanas.). E a Bel/e Epoque. cristãs) até então ausentes.. que tanto pode ser místico quanto sexual. marcando as suas individualidades. já anteriormente destacados por Valladares (1972). confundindo o espectador (fotos 21 a 24). a mesma mobilidade que a república capitalista conferiu às camadas intermediárias antes sem perspectivas) imprensadas entre os segmentos polares da sociedade escravista. em diferentes manifestações. Os anjo. e olhar à sua volta o espaço funerário construído até então. evocando a Ressurreição. pressionando camadas intermediárias ainda pouco expressivas) em processo de consolidação. caem agora displicentemente. com o seu intenso decorativismo. estava bipolarmente organizada. caracterizava-se pela baixa mobilidade dos seus estratos. no início de 1888. do séculq anterior. de asas baixas. a representação realista. carnudas. empunhando trombetas (totos 29 e 30). as formas curvilíneas. Uma notável mobilidade foi incorporada à estatuária fúnebre. Ao visitar o cemitério São João Batista. atitudes de meditação. estrela à testa. O erotismo. Imagens religiosas. assumem uma atitude de triunfalismo. Essas característicasse mantêm ao longo de toda a Primeira República. em todo o seu esplendor. Considerações finais Ao se iniciar a segunda metade do século XIX)a sociedade do Rio de Janeiro) vivendo o momento de expansão da economia cafeeiro sob o regime escravista. Jesus Cristo. Santa Tereza) etc. característica da estrutura social do império escravocrata. deixando entrever coxas e nádegas curvilíneas. cit. São Sebastião. Não obstante. à medida que se deteriorava o regime e a ideologia que o sustentava. em uma sociedade que buscava reordenar sua própria imagem. varridos pelas novas torças republicanas e pelos novos compromissos econômicos (industrialização e trabalho livre na lavoura do café). A violência social assumiu formas mais veladas. desorganizou momentaneamente um universoaté então alinhado com nitidez. foi profundamente abalada pela ruptura da ordem vigente. notadamente entre 1889 e 1892. . acelerou-se a mobilidade social. Este aparente paradoxo. de movimento. a dominãncia de Eros no espaço de Thanatos. Essencialmente escatológica. bafejada por princípios "democráticos". abrindo perspectivas de ascensão para as camadas médias. poder e lucro continuaram a ser obtidos igualmente através da exploração e da opressão. sob a capa de um regime que. mas também a febre especulativa que tomou conta do Riode Janeiro. Não apenas os antigos segmentos dominantes do império foram deslocados do poder. sem sutilezas. compondo túmulos iguais. A exploração. a representação da Vida no espaço da Morte. A perda súbita de poder político e de dinheiro. deveria dar oportunidade a todos. até ser praticamente abolida. em meio a um vórtice de mudanças que a transformaram consideravelmente. cada vez mais sutil. A morte. parecem na verdade corresponder a um momento de profunda desordem e desigualdade. de erotismo. Com a substituição desse regime por uma república progressivamente capitalista. parece na verdade ter sido a expressão da coerência de uma sociedade que não suportou mais o confronto direto com sua face sombria. somada ao democratismo compulsório imposto pelos jacobinos durante a ditadura florianista. mudaram a face da sociedade. A antiga estrutura do império escravista ganhou nuances. substituída por uma explosão de vida. A estrutura social até então fortemente verticalizada. a curto prazo. exibida aberta e frontalmente. instaurando-se um momento de grande indefinição e perturbação. nunca dantes vista.114 escancarada nos espaços funerários. Os papéis sociais foram estilhaçados. bem marcada. ordenados. banais. por princípio. de modo a não atentar ostensivamente contra a moralidade hipócrita das novas classes emergentes. a violência. a opressão. nas suas representações. essa sociedade exerceu sem escrúpulos seus aspectos mais sombrios. a transição foi vivida de forma bastante tumultuada. que passou a mudar de mãos com uma rapidez vertiginosa. entre 1893 e 1897. já que não conseguia mais se reconhecer. Este fenômeno de perda de identidade e de crescimento de mobilidade social transparece de modo cristalino no espaço funerário carioca. com grandes fortunas aparecendo e desaparecendo em questão de dias ou mesmo de horas. substituindo-se o pudor em relação ao sexo pelo pudor em relação à morte. nivelados. conseguiu reunir. sob inspiração positivista. As cruzes fincadas em montículos de pedra. só que agora dissimuladas. à entrada do século XX. mais sofisticadas (e por isso mesmo talvez ainda mais brutais). foi se tornando cada vez menos explícita. Na passagem de um regime a outro. Consolidada a república. onde os segmentos livres intermediários foram ganhando pouco a pouco maior força. as condições necessárias para a sua reorganização. a morte. como o fez a escatológica sociedade escravista. Aos Profs. de atenuar suas diferenças perversas. historiador de arte em Zürich. pela excelente acolhida a esta pesquisa. inspirou esta pesquisa. colocando em seu lugar o triunfo e a sensualidade de uma classe vitoriosa. escamoteou e dissimulou a exploração e a opressão. Suíça. na arte tumular. meu aluno e professor. parte de um programa de pósdoutorado em História Social desenvolvido na instituição. gentileza e desprendimento na confecção das pranchas. Ao Prof. pelos generosos ensinamentos. Tirou das suas vistas a morte. em Belém do Pará. Varreu para debaixo do tapete a sua escória. Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses e José Sebastião Witter. Andreas Hauser. enfim. Nicolau Sevcenko. embora onipresentes. do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Yonara de Oliveira Carrilho e Luis Claudio Pereira Symanski (Cemitério do CatumbiL pela inestimável colaboração no levantamento dos dados de campo. Incapaz de assumi-Ias. disfarçadas e mascaradas pelos seus contrários. que antes de tudo desejava orgulhar-se de si mesma. morcegos e serpentes. Fernando Antonio Novais e José Carlos Sebe Bom Meihy. sob os auspícios do CNPq. e sobretudo por ter tornado transparente. Drs. Drs. um dos líderes do movimento republicano. Marechal Frederico SoIon Sampaio Ribeiro. igualmente pelas valiosas críticas e sugestões. Antonio Henrique Damásio Martins (ti. cuja sepultura no Cemitério da SoIedade. sucessivamente diretores do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. E ao arqueólogo Antonio Henrique Damásio Martins. Ao Prof. À desenhista Maria Lilia Gomide da Silva. Roberto Aguinaga. In Memoríam Ao meu bisavô. Dr. de modo a conseguir conviver com elas. 115 . Disposta agora a mostrar sua face luminosa. dos cemitérios europeus. Andrea Fenzl. passaram a ser encobertas. através dos seus olhos. pela boa vontade que tiveram em ler o projeto original e pelas oportunas críticas e sugestões que me fizeram. pela disponibilidade. numa tentativa de aproximar seus extremos. escondeu suas vergonhas. pelas grandes lições de vida e de morte que me deu. o que para mim antes era opaco. por tudo o que pude ver. Aos arqueólogos Marta Pereira Reis da Fonseca (Cemitério São João BatistaL Ana Cristina de Souza. baniu definitivamente dos seus espaços funerários caveiras. Ag radeci mentos Aos Profs. permanente denúncia da sua própria finitude e da fugacidade das suas conquistas. sustentando assim sua imagem esplendorosa e seu desejo de perpetuidade. matizou-se em novos segmentos. p.l09-22. p. ed. p. Chris. BROCK.. n. 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Freqüências Comparadas Cemitério do Catumbi D cruzes diversas 11I cruz sobre pedras . signos escatológicos 90 80 70 60 50 40 30 20 10 O 1850 1860 1870 gráfico 8 Freqüências Comparadas Cemitério São João Batista o cruzes aiversas . signos escatológicos 90 80 70 60 50 40 30 20 10 O 1850 ---- 1860 1870 gráfico9 125 .. cruz sobre pedras . s 46 40 36 30 26 20 1& 10 & o 18&0 Signos Antropomorfos Cemitério do Catumbi 18&0 1870 1880 1880 gráfico 10 Signos Antropomorfos Cemitério São João Batista 40 3& 30 26 20 1& 10 & o 18&0 1880 1870 1880 1880 126 gráfico 1 1 . Cemitério do Catumbi Desenhos: Maria li/ia Gomide da Silva 127 .Prancha 1: Signosescatológicos Tachas voltadas para baixo . Prancha 2: 128 Signos escatológicos Ampulhetas e globos alados .Cemitério do Catumbi Desenhos: Maria Lilia Gomide da Silva . Prancha 3: Signos escatológicos Serpentes .Cemitério do Catumbi Desenhos: Maria Lilia Gomide da Silva 129 . Cemitériodo Catumbi Desenhos:Mario Li/ia Gomide do Silvo .130 Prancha 4: Signos escatológicos FOices. Cemitério do Catumbi Desenhos: Maria lilia Gomide da Silva 1 31 .Prancha 5: Signos escatológicos Coruias . Prancha 6: 132 Signos escatológicos Papoulas .Cemitério do Catumbi Desenhos: Maria Lilia Gomide da Silva . Prancha7: Signosescatológicos Caveiras .Cemitério do Catumbi Desenhos: Maria LiliaGomide da Silva 133 . 134 Prancha8: Signo "cruz sobre pedras" Desenhos: Maria Lilia Gomide da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . sendo ambos regidos pela mesma lógica de organização. riscos e danos (com especial atenção são tratados o paradigma observacional de conhecimento e o realismo ingênuo!. a construção social do objeto histórico. how to understand society as it searches intelligibility and auto-image through obiects). na década de 1880. voltou-se para a verificação de prováveis mudanças no imaginário coletivo sobre a morte. A seguir. v. enfatizando-se a necessidade de se fixarem responsabilidades metodológicas para os museus históricos (como produzir entendimento histórico por intermédio dos objetos. O presente trabalho. emphasizing the importance of setting up methodological responsabilities for historical museums Ihow to produce nistorical understanding through objects. Uma pesquisa foi conduzida no sentido de . diversa da construção epistemológica do documento histórico. nessa condição. Anais do Museu Paulista: N.Z. metonymic and metaphoric uses of obiects etc. risks and mischiets assessed (special attention is assigned to the observational paradigm of knowledge and the biases of a naif realism). a contextualização museológica. 1994. Objeto histórico. v. once a museum denies evocation and/ or celebration of the past as its legitimate purposes.Z. 1994. São examinadas diversas premissas. UNlTERMOS. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX Tania Andrade Lima 332 Considerando que os espaços destinados aos mortos em uma sociedade refletem especularmente o mundo dos vivos. como entender a sociedade na sua mobilização de objetos em sua busca de auto-imagem e inteligibilidade). metonímico e metafórico dos objetos. Exposição histórica. as instalações. the rhetorics of museum exhibits and the fetishist. e. são criticamente analisadas. Historic object. are critically analysed and their benetits. nos cemitérios do Rio de Janeiro. Historyexhibits. Bezerrade Meneses The paper aims at discussing conditions for the production and appropriation of historical knowledge.Ser. From the Theater of Memory to the Laboratory of History: museum exhibits and historica I knowledge UlpianoT. the social construction of the historical object as distinguished from the epistemological construction of the historical document. apontando-se seus benefícios. Living museum. UNlTERMS:History museum.Ser. A encenação histórica ("Iiving museums"). museological contextualizations. e a emergência de uma república progressivamente capitalista. os cemitérios foram entendidos como um lugar de reprodução simbólica do universo social. a retórica da exposição museológica e o uso fetichista. considerando a ruptura do império escravista. histórico. Museu histórico. consideram-se as implicações da História como um processo cognitivo discursivo. Bezerra de Meneses o texto procura discutir as condições de produção e apropriação do conhecimento histórico a partir do momento em que o museu deixa de aceitar como seus obietivos a evocação ou celebração do passado. Encenação histórica. installations etc. na perspectiva dos conceitos da cultura material: o papel insubstituível das coleções e a necessidade de definir problemas históricos como balizas. Museum and historicalknowledge.RESUMOS / ABSTRACTS Do Teatro da Memória ao Laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico Ulpiano T. etc. Implications of History as a discursive cognitive process are then considered. como um campo privilegiado para a análise do processo de implantação e consolidação dos valores burgueses na socieaade carioca do século passado. Museu e conhecimento Anais do Museu Paulista: N. provocadas pelo rompimento aa ordem escravocrata. etc. living museums. Several premises are surveyed within the general framework of material culture concepts: the irreplaceble role of collections and the need of establishing historical problems as basic guidelines.. Centennial Exposition (Philadelphia. mas sobretudo os mecanismos subjacentes que a determinaram. numa sociedade escravocrata e vinculada ao mercado internacional. the A. 1876. v. v. Funerary imaginaire. Imaginário funerário. da tecnologia: a Exposição Universal de Filadélfia de 1876 SandraJatahy Pesavento Após considerar premissas sobre as imagens como representações sociais e sobre as Exposições Universais como um teatro privilegiado para a exibição daquela hermenêutica do real engendrada pela transformação capitalista do mundo e pelo ideá rio burguês. World Expositions and Brazilian identity. both of them under the rules of the same Iogics. Images of the nation. related not only to the nature of changes. UNITERMOS: Cemitérios. Emergence 01 bourgeois society. 2. v. considers the cemeteries as the /ocus of the symbolic reproduction of social universe and.Pedro 11. Anais do Museu Paulista: N. 2. as well as of the emergence of a growing capitalistic republic.2. f UNITERMS: World Expositions. Exposição do Centenário (Filadélfia. in the 1880s. 333 . she detects eventual changes of the collective imaginaire concerning death. Emergência da sociedade burguesa. at Rio's cemeteries.Enfim. She then comments the presence of a Brazilian pavillion and the visit of Brazil's Emperor. The results of her fieldwork are discussed. sendo aqui apresentados os seus resultados. 19th-century Rio de Janeiro.se investigar não apenas a natureza dessa mudança. do progresso. Exposição universal e identidade brasileira. UNITERMS: Cemeteries. Within the framework of the disruption of the proslavery state.Ser.Ser. na Filadélfia. incluindo ainda a dimensão utópica da época. as a favoured domain to infer the processes through which bourgeois values are introduced and strengthened in 19th-century Rio de Janeiro's society. quer se trate da auto-imagem de sucesso do "sonho americano". Anais do Museu Paulista: N.Pedro 11. a A. briefly describes the main features of Philadelphia s Centennial Exposition in 1876. D. Anais do Museu Paulista: N. 1994. v.She finally traces a arallel between diver~ent meanings of the Exhibition as related to the successful autoimage o the "American dream in opposition to the contradictions of Brazilian identity.Ser. Anais do Museu Paulista: N.Ser. 18761.2. Rio de Janeiro oitocentista. 1994. vainly endeavouring to incorporate the new ethics of free mechanicallabour in a dependent proslavery society. henceforth. 1994. Comenta a presença de um pavilhão brasileiro e os ecos da visita do Imperador D. confronta sentidos divergentes. but also to the underlying mechanisms that provoked them. along with the bourgeois ideolo~y and the utopian Iongings of the epoch. 1994. Imagens da nação. the A. brevemente caracteriza a Exposição do Centenário (da Independência Americana). From bats and death' s heads to crosses and books: the representation of death at 19th-century cemeteries in Rio de Janeiro Tania Andrade Lima FoIlowing the assumption that spaces alloted to the dead specularly reflect the world of the living. 1876). quer das contradições de uma identidade brasileira que tenta incorporar a nova ética do trabalho livre mecanizado. UNITERMOS:Exposições universais. progress and technology: the World Exposition of Philadelphia 1876 SandraJatahy Pesavento After laying down her assumptions on images as social representations and on World's Fairs as a privileged scene for displaying the hermeneutics of reality engendered by the capitalist transformation ar the world.