Cult 13, Haroldo de Campos, Ago de 2008

March 18, 2018 | Author: Šárka Grauová | Category: Short Stories, Major Depressive Disorder, Saint Petersburg, Psychoanalysis, Homo Sapiens


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REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURAO poeta Haroldo de Campos 03 Notas 04 Entrevista 18 Capa/Entrevista Juan Esteves Haroldo de Campos fala sobre Crisantempo, livro e CD lançados pela Perspectiva 46 48 Literatura Sai no Brasil a obra completa de Lautréamont Francesa O escritor Teixeira Coelho fala de As fúrias da mente, seu novo romance José dos Santos/Agência USP 28 O crítico J. Guinsburg Capa/Ensaio Homenagem disseca a relação de Haroldo de Campos com o teatro Nelson de Oliveira escreve sobre o escritor Campos de Carvalho, morto este ano Oswaldo 34 35 Teixeira Coelho diante do prédio do MAC, museu do qual é diretor Leituras Confira os destaques entre os lançamentos do mercado editorial CULT 53 Dossiê Biografia e livro de ensaios literários renova leitura da obra de Albert Camus Reprodução Memória em Revista Uma crônica de Gustavo Barroso publicada em 1931 no livro Mulheres de Paris 10 13 Biblioteca João Alexandre Barbosa reflete sobre a obra do escritor Italo Calvino Imaginária 36 40 43 Fortuna Crítica 2 Na Ponta da Língua No segundo ensaio da série, o crítico Ivan Teixeira analisa o formalismo russo O professor Pasquale flagra um ato falho premonitório de Dunga, o capitão da seleção História Livros de viagem resgata os relatos sobre o Brasil do século XIX O escritor argelino Albert Camus 14 Turismo A São Petersburgo do poeta Josif Bródski Literário Criação Seis poemas do escritor Ruy Proença 64 Do Leitor O recado dos leitores de CULT agosto/98 - CULT 1 Poucos países têm o privilégio de ter uma personalidade como REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA N Ú M E R O 13 - A G O S T O D E 1 9 9 8 Haroldo de Campos. Escritor que renovou a poesia nos anos 50 (com o movimento concretista), ensaísta que modificou o cânone tradicional da literatura brasileira (relendo, a partir da poesia do presente, linhagens estéticas esquecidas no passado), tradutor com aguda consciência da consciência lingüística da literatura (e que por isso faz de cada texto traduzido uma recriação capilar dos recursos poéticos do original), editor de uma reputada coleção (a série Signos, da Perspectiva) – enfim, Haroldo de Campos é uma espécie de intelectual e artista poliédrico, cuja voragem criativa vai da prosa à poesia, da reflexão abstrata à presença física que marca a vida cultural brasileira e internacional com happenings , declamações públicas e conferências. Por isso, a publicação de um livro como Crisantempo vai bem além de mero evento editorial. Trata-se, na verdade, de uma espécie de observatório sígnico que vai do lírico ao teórico dentro do registro poético; que registra tros, reminiscências experiências de pessoais, viagem, enconaprendi- Diretor Paulo Lemos Gerente-geral Silvana De Angelo Editor Manuel da Costa Pinto Editor de arte Maurício Domingues Redator Bruno Zeni Diagramação e arte Adriano Montanholi Rogério Richard José Henrique Fontelles Fabiana Fernandes Eduardo Martim do Nascimento Produção editorial Antonio Carlos De Angelo Danielle Biancardini Revisão Izabel Moraes Baio Colunistas Cláudio Giordano João Alexandre Barbosa Pasquale Cipro Neto Colaboradores Aurora Fornoni Bernardini Claudia Cavalcanti Ivan Teixeira J. Guinsburg Marcello Rollemberg Nelson de Oliveira Ruy Proença Capa Foto de Juan Esteves Produção gráfica José Vicente De Angelo Fotolitos Bureau Bandeirantes Circulação e assinaturas Márcia Monteiro Cordás Dept. financeiro Regiane Mandarino Dept. comercial/São Paulo Idelcio D. Patricio (diretor) Jorge Rangel Exalta de Camargo Dias Jefferson Motta Mendes Valéria Silva Elieuza P. Campos Dept. comercial/Rio de Janeiro Milla de Souza (Triunvirato Comunicação, rua México, 31-D, Gr. 1403, tel. 021/533-3121) Distribuição em bancas AREVISTA Distribuição e Comércio Ltda. (r. Dona Ester Nogueira, 283, Campinas, SP, CEP 13073-040, tel. e fax: 019/242-8342) ISSN 1414-7076 Jornalista responsável Manuel da Costa Pinto – MTB 27445 CULT – Revista Brasileira de Literatura é uma publicação mensal da Lemos Editorial e Gráficos Ltda. – Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista – São Paulo, SP, CEP 01326-010 tel./fax: (011) 251-4300 e-mail: [email protected] AO L E I TOR Manuel da Costa Pinto zados lingüísticos, leituras; que traduz diferentes tradições literárias propondo técnicas de recriação e de reimaginação – tudo isso atualizado numa “concreção de linguagem”, como Haroldo de Campos diz na entrevista publicada nesta edição da CULT. Em Crisantempo , podemos entrever o próprio futuro do livro, que assim não sucumbe à fragmentação das linguagens, mas unifica a superfície caótica da realidade numa ordem superior – a ordem das palavras. Em Crisantempo , enfim, estamos diante daquela multiplicidade que o escritor italiano Italo Calvino, num dos textos de Seis propostas para o próximo milênio , considerava como um dos valores literários a serem cultivados a partir do século que se aproxima – século que certamente terá em Haroldo de Campos uma de suas referências máximas. 2 CULT - agosto/98 Guimarães Rosa Feira do livro em Minas Gerais Última Hora O escritor Guimarães Rosa N O T A S O Centro de Estudos Luso-afrobrasileiros da PUC-Minas Gerais promove entre os dias 24 e 28 de agosto o Seminário Internacional Guimarães Rosa. O evento reunirá estudiosos e escritores que se dedicaram à obra do autor de Sagarana – como os brasileiros Benedito Nunes, Lígia Chiappini, Kathrin Rosenfield e Adélia Bezerra de Menezes, os portugueses E.M. de Melo e Castro e Eduardo Lourenço, o moçambicano Mia Couto, o italiano Ettore Finazzi-Agró e o francês Francis Utéza. Estarão presentes também tradutores de Guimarães Rosa como Curt Meyer Clason (Alemanha), Jacques Thiériot (França) e Luciana Stegagno Picchio (Itália). Paralelamente, o seminário promove a exibição de filmes e vídeos, representações teatrais e de contadores de estórias, além de minicursos sobre a obra de Guimarães Rosa. Informações e inscrições: Centro de Estudos Lusoafro-brasileiros da PUC-MG, Av. D. José Gaspar, 500, prédio 4, sala 103, Belo Horizonte, MG, CEP 30535-610. tel. 031/319-1368, fax 319-1369, e-mail: [email protected] Bernanos A Câmara Mineira do Livro e a ABDLC (Associação Brasileira de Difusão do Livro e Coleções) promovem entre 7 e 16 de agosto a 2ª Feira Panamericana do Livro. O evento acontece no Diamondmall (região central de Belo Horizonte) e reunirá cerca de 250 expositores, entre editoras, livrarias e distribuidores, com representações de Itália, Portugal, França, Inglaterra, Argentina, Peru, Bolívia e Cuba. Segundo os organizadores, a feira deverá criar melhores canais de acesso das editoras ao mercado mineiro, que hoje representa 17,2% do consumo de livros do país. Informações pelo tel. 031/581-1206. Literatura Comparada Arquivo do Estado/Acervo Reprodução Georges Bernanos O escritor francês Georges Bernanos, morto há 50 anos, será tema de um encontro promovido nos dias 21 e 22 de agosto, no Rio de Janeiro, pelo Consulado Francês e pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. O colóquio “Bernanos e o Brasil” reunirá estudiosos de França, Alemanha e Brasil (onde o escritor morou durante a Segunda Guerra), além de amigos do autor de Sob o sol de Satã, como o acadêmico Geraldo de França Lima. Católico e membro da Action Française (movimento conservador liderado por Charles Mauras), Bernanos viveu na Espanha nos anos 30, onde testemunhou as atrocidades do franquismo, insurgindo-se então contra a Igreja Católica e escrevendo inflamados panfletos contra o nazifascismo. Informações sobre o colóquio pelos telefones 021/210-1272 e 220-4128. Entre 18 e 22 de agosto, Florianópolis sedia o VI Congresso da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada). O evento terá conferências, debates e comunicações sobre o tema “Literatura comparada = Estudos culturais?”. Entre os convidados estrangeiros estão Marjorie Perloff, Beatriz Sarlo, Peter Osborne e Susan Buck-Morss. Do Brasil, participam Roberto Schwarz, João Adolfo Hansen, Jeanne Marie-Gagnebin, Márcio Seligmann-Silva e Arthur Nestrovski, entre outros. Informações e inscrições no Núcleo de estudos literários e culturais (Nelic) – CCE, sala 253, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, CEP 88040-000, tel. 048/331-6602, fax 331-9988, e-mail: [email protected] Concursos de conto e poesia A Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de São José dos Campos (SP), abriu inscrições para dois concursos literários: a XIII Antologia Poética Hélio Pinto Ferreira e a XI Antologia de Contos Alberto Renart. O júri de cada um selecionará trabalhos de no máximo 40 autores, que serão publicados em dois livros. Cada concorrente pode inscrever até cinco poemas de no máximo duas laudas ou três contos – todos inéditos. As inscrições vão até 15 de setembro. Informações: tel. 012/324-7300, fax 341-8577. agosto/98 3 ASSINATURAS CULT DISQUE CULT 0800.177899 4 CULT - agosto/98 Évelson de Freitas/Folha Imagem entrevista TEIXEIRA COELHO Um romance-ensaio sobre o mal-du-siècle. Assim poderia ser definido o novo livro de Teixeira Coelho, As fúrias da mente – Viagem pelo horizonte negativo , que a editora Iluminuras lança este mês. Ao longo de 162 páginas de escrita errática, concêntrica, seu anônimo protagonista penetra nos labirintos da depressão – um distúrbio psicológico que vem tomando proporções epidêmicas a ponto de ser comparado à histeria do século XIX. Porém, ao contrário desta outra “doença cultural” (que esteve na base da teoria psicanalítica de Freud), a depressão nos leva a perceber o cérebro como uma “glândula” e o comportamento como algo passível de manipulação por meio de remédios. Daí sua importância. Pois, para Teixeira Coelho, a depressão e sua terapia são a expressão paroxística do ideal da modernidade de controle da natureza humana e da natureza tout court. Romancista, ensaísta, professor da ECA-USP e diretor do MAC (Museu de Arte Contemporânea de São Paulo), Teixeira Coelho mantém um olhar atento para todas as manifestações da pós-modernidade. Nesta entrevista à CULT, ele fala de como estas questões impregnam sua obra ficcional. Aurora F. Bernardini Manuel da Costa Pinto agosto/98 - CULT 5 Isso coloca para mim com grande evidência esse tema do homem cultural. A cada ano que passa.C. Esse processo tem expressão paroxística na possibilidade que se abre agora de você construir sua natureza humana de maneira cultural (seja por meio da clonagem.CULT As fúrias da mente é um romance sobre uma personagem que cai em depressão e. Essa é a razão.. ele vai assumir. o gênio humano lança no mercado algum novo instrumento de uso imediato. fora de ocasião – pois ela vai acontecer. E não acho que o remédio elimine o diálogo. que se faz em cima de um remoimento do passado que me parece destrutivo. Mas aquela rejeição me parece simplista. CULT A partir do momento em que você soluciona uma decepção existencial por meio de uma pílula. de que o cérebro é a mente. Sair da depressão pelo remédio é uma saída que. na medida em que você pode recorrer a uma medicação e.agosto/98 . que vem desde o século XVIII com o projeto da modernidade. recorrendo a medicações. A gente tem uma idéia arcaica.C. para você modelar sua personalidade interior. A idéia de felicidade proporcionada pelo remédio. Existe. Vira e mexe eu ouço alguém dizer em debates sobre tendências filosóficas do século XX que o homem cultural é absurdo. O aparecimento da palavra por si só não tem nada a ver com diálogo. T. para resolver um problema de desequilíbrio. Minha intervenção foi colocar isso em dúvida. por exemplo.. de avançar em termos de progresso e desenvolvimento. transformar seu estado emocional interior. embora tenha uma herança intelectual humanista. prêt-à-porter. O que me assusta tremendamente num tipo de diálogo psicanalítico é que se trata de diálogo que não sai do mesmo lugar. custe o que custar – e especialmente custe o que a natureza custar. CULT Essa diferença elimina a hipótese do diálogo psicanalítico? T. o ser humano estaria desistindo de enfrentar suas questões filosoficamente. passadista. Existe mais de uma descrição científica do cérebro como sendo uma glândula. não passa uma posição muito clara a favor de uma coisa ou outra. em que havia uma tendência clara do homem colocar a natureza sob seu controle. vive a experiência de sair de um problema psicológico por meio de remédios. A questão é muito similar a uma que me foi colocada num seminário: a conquista da palavra é o nascimento da democracia. o homem que se faz. pela qual escrevo algo que está na fronteira entre a ficção e o ensaio – e não propriamente um livro ensaístico.. aliás.C. com isso alterar. O livro é flutuante. que isso seria uma facilidade. ou a seu intermediário leigo (que é o psicanalista). uma espécie de adesão da personagem a essa possibilidade. em outras palavras. transplantes ou remédios).). Eu não tenho resposta pronta. Ele dá condições diferentes de iniciar o diálogo. é artificial se comparada à noção convencional. ou a seu intermediário na Terra (que é o sacerdote). Qual o significado disso? Teixeira Coelho Existe um tema que é um pilar de As fúrias da mente: o conflito entre o homem cultural e o homem natural. CULT Isso modifica certas noções e ideais. você já pôs um pé no território do homem absolutamente cultural. Na medida em que você não precisa mais recorrer a uma entidade divina. o homem que controla suas emoções (e quando eu escrevi isso nem estava em pauta o Viagra. ou o espírito ou quase uma massa divina colocada numa caixa de ossos. sim. Considero o diálogo proposto pela 6 CULT . o que acontece com o diálogo com o outro? T. pois a palavra permite diálogo. clássica.. seja artificial ou não. que. Talvez esclareça um pouco dizer que pensei inicialmente em dar ao livro o título de O homem-glândula. um romance (Geração Editorial) Os histéricos (com Jean Claude Bernardet. porém. Cia. Ela me incomoda menos como discurso filosófico ou poético sobre o mundo. nos quais temos contato com o outro durante cerca de 40 anos. sendo que a “vida útil” desse contato é de 20 anos: portanto não dá para passar dez anos num diálogo pantanoso e turvo. você teria condições de se colocar disponível para o diálogo num nível diferente de abertura para o outro. me interessa. que é o cérebro. Quando se trata de remontar seu universo afetual. Ateliê Editorial) Dicionário crítico de política cultural (Iluminuras) agosto/98 . justa. me parece que coloca as pessoas numa situação de constante fechamento de cada um em si mesmo. ela surge como último grito do movimento xamanista. A gente entrou na modernidade. mas fomos nesta. como poesia.psicanálise muito entravante. Com o recurso do medicamento. não podemos ficar fazendo dez anos de psicanálise para poder tocar o outro. das Letras) Céus derretidos (com Jean Claude Bernardet. CULT Você escreveu como observador externo ou teve processo depressivo? Évelson de Freitas/Folha Imagem OBRAS DE TEIXEIRA COELHO Moderno pós moderno (Iluminuras) Arte e utopia (Brasiliense) Usos da cultura: políticas de ação cultural (Paz e Terra) Uma outra cena (Pólis) Em cena. esse grande cenário de fundo que aponta para a possibilidade de o homem se controlar inteiramente. a que estamos acostumados com religiões e com a psicanálise. A tentativa de abordar uma glândula. comunicação (Perspectiva) O que é indústria cultural (Brasiliense) O que é utopia (Brasiliense) O que é ação cultural (Brasiliense) Fliperama sem creme (romance. digna. Ainda assim a psicanálise. espiritual. antropológico) da obra de Freud deixe dúvidas sobre sua subsistência depois da vastíssima revisão dos últimos dez ou vinte anos. Como terapia. Nossa vida média é de 70 anos. informação.CULT 7 . Nós vivemos muito pouco. Brasiliense) Niemeyer. É isso que me interessa acentuar. que é pré-modernidade. embora a quantidade de objeções levantadas sobre os mais variados aspectos (lingüístico. o sentido (Duas Cidades) A construção do sentido na arquitetura (Perspectiva) Artaud: posição da carne (Brasiliense) O sonho de Havana (Max Limonad) Dicionário do brasileiro de bolso (Siciliano) Semiótica. você pode exercer uma ação sobre o cérebro que não aquela ação imaterial. Por que isso seria tão impossível ou desumano? É o nosso projeto. através da palavra. Poderíamos ter ido em outra linha. em que o homem controla a criação de outros homens e aponta para a substituição do homem natural por outro tipo de homem possível. A psicanálise não é factível. toda. o único verdadeiramente fundamental para o homem. (. é uma doença. a liberdade de escolha e a aceitação da responsabilidade que daí deriva. Nesse caso. maior problema do homem até ali. Nem sequer correu um risco: simplesmente aceitou o caminho previsível. ter certeza de que ainda é ele mesmo. era uma opção intencional. o máximo possível de modificação de estados.Leia trechos de As fúrias da mente Um dia. mostrouse incontornável. O suicídio. desconfia. aquilo que Camus havia denominado. meses. banhado pela luminosidade azulada do aparelho que exibe um filme antigo. É uma sentença inapelável. havia desmoronado. Camus fez uma opção. não irreversivelmente adiante demais: esse seria o antidepressivo ideal. algo que se infiltra nele contra sua vontade. é a imaginação da morte. entre a doença e você constróise uma identidade indissolúvel. a sentença: estou em depressão. Levou tempo para ele declarar-se com um problema (continua relutando em declarar-se doente. Não. No limite. Um segundo médico poderá oferecer diagnóstico diferente. não é grave. não passava de um banal incidente químico. O acidente de carro que matou Camus foi visto como um modo deliberado de suicídio: Camus não dirigia o carro mas sabia que o motorista era fascinado pela velocidade. ele considera a hipótese de que o cinema seja o máximo de movimento possível. assistindo televisão no escuro. Não foi uma questão de semanas. mas talvez não contraditórios. De início. de “o único verdadeiramente sério problema filosófico”. claro. A depressão está nele. sair de si mesmo. estranho a ele. tão equacionável e solucionável quanto tantos outros. aceitaria declarar-se dolorido: não deveria bastar?).agosto/98 . que pode reconhecer-se. até que a consciência de que havia algo errado a corrigir. declararse com um problema (ele não quer ainda declarar-se doente). Terrível. A questão central em Camus.) À noite. A depressão.. O antidepressivo possível. o suicídio. Uma vida inteira. Permanecem demais – e o que mais apavora na depressão é a permanência. Naquele instante. toda uma filosofia. como em Sartre. é um problema. O deprimido que não se compraz na depressão quer sair. Você sabe. em O mito de Sísifo. 8 CULT . pelo contrário. Camus não escolhera nada. Ou num logro. A doença é você. ir adiante mas não adiante demais. provavelmente. para ele. é sempre possível pensar num engano. um médico por exemplo. e o paciente escolherá em qual acreditar. é grave. era a opção. “estar em depressão” lhe parece expressar seu estado com mais força do que dizer “estou deprimido”. era apenas mais um problema de química orgânica. a eternidade. As palavras. como se diz. não é só o diagnóstico que vem de fora: o próprio mal é de algum modo exterior ao paciente. sente-se num universo de fantasmas – e essa não era uma sensação agradável. não é. não fizera opção alguma – e o maior problema filosófico. Mover-se e simultaneamente permanecer. quase se convencia de que toda a filosofia de todos os tempos. Agora. • • De súbito. Foram anos. se Godard estivesse certo. de que havia um mal a enfrentar. O mal está dentro de você. sair de onde está. por esse viés.. ele é a depressão. Não há engano algum. Isso poderia constituir um antídoto para a depressão. O paciente escolhe. com o máximo de fixidez aceitável. Mais exato ainda: “tenho depressão”. podem significar a superação da angústia de sentir-se imobilizado e ao mesmo tempo condenado ao desaparecimento. ao acordar pela manhã. Quando é você mesmo que se reconhece doente. Quando é uma outra pessoa que o diz. num pulo ele se senta à beira da cama e pela primeira vez admite: Isso não é um estado de espírito. Resiste à tentação de dizer “uma depressão tem a mim” porque seria admitir que a depressão está fora dele e se apossou dele. Até que um dia. se a questão era de dosagem de serotonina. mover-se – e ao mesmo tempo permanecer. Esses dois momentos contrários. Ruía por terra. Mas. eliminam o movimento. abolem o tempo e. É um problema. não é uma doença. Talvez não seja uma idéia ousada. O que representam a histeria e a depressão para o mundo de hoje? T. O livro do Gabeira. A turma de 68 foi formatada para deixar de lado a sensibilidade em nome de um ideal racionalmente construído – e com bases falsas.CULT 9 .C. que a cultura brasileira é muito marcada pela idéia de morte (coisa que não vejo claramente em outras culturas). Essa obsessão com o desaprender. CULT Como isso entra na construção do livro? T. Outra razão é que depressão é doença cultural desta época. Fomos formatados por uma família e um país.T. mas também nos deixamos formatar. A depressão é um sintoma de outro mal-estar maior. com o fechamento das contas das pessoas etc. você encontra anúncios em revistas estrangeiras convocando você a perceber que está em estado de depressão – o que é apresentado de maneira positiva. um estado de depressão muito comum hoje em dia – e. Então há várias coisas em filigrana aqui. A histeria estava no ar. permanece bastante válido no sentido específico de que um militante não podia usar sunga. As fúrias da mente é um livro sobre um fenômeno específico. que assume esse aspecto: eu estou em conflito com minha formação anterior. sem poder intervir. ir à praia. No caso da geração de 68.C. eu diria que há um grande estado depressivo na cultura nacional. fartos da universidade. ter paixões. as pessoas em depressão ao meu redor eram em quantidades imensas. Não chega em nenhum momento a parar.C. manifestamente ou não. CULT A depressão é para o século XX o que a histeria foi para o século XIX. que quer intervir no sentimento dele. diga-se de passagem). com o “desformatar”. Escrevi Os histéricos com Jean Claude Bernardet logo depois do período Collor. T. Juntando as duas coisas. O livro é a reflexão de alguém que está em estado depressivo e tenta entender o que se passa. no momento em que eu estava escrevendo. Está presente em filigranas. e que marca nossa vida. Gabeira tocou no nervo de muita gente. Porque a obra é ficcional mas reflete de alguma maneira uma experiência pessoal. Depressão dos jovens. quer ver o mundo de outra forma. para mim é claro que fomos “formatados”.C. na medida em que muita gente não perceberia que este é um estado patológico e. Ambas as coisas. a menos que se faça um esforço sobre-humano para descartá-lo. como este que estamos vivendo. veio a grande depressão nacional que a gente sofre. do FHC. Tendo a encarar essa história da alegria do brasileiro mais como representação ideológica do que como constatação objetiva inegável. A minha obsessão há algumas décadas é de me ver livre de um aparato básico que me conformou e sobre o qual nunca tive nenhum poder. localizar experiência. O que é isso companheiro?. Você é co-autor de um livro chamado Os histéricos e agora escreve um livro sobre a depressão. agosto/98 . e acho que em determinados momentos. Todo mundo está em depressão e se tratando. portanto. É uma doença cultural – e não quero dizer com isso que é ilusória ou imaginária. não reagiria. esse sentimento aparece. com a vida e com o mundo. Depois. sem perspectiva (quase a mesma do jovem em 68. é uma das molas dessa personagem. CULT Essa preocupação aparece em As fúrias da mente dentro de uma reflexão sobre a geração de 68. Como diz a personagem de As fúrias da mente. É um processo errático. aderimos à nossa formatação por um conjunto cultural muito específico. se pensarmos na cultura portuguesa que herdamos e que é tremendamente marcada pela idéia de morte. um aparato básico de idéias e de sensibilidades que recebemos em bloco. apesar do real. quer o que tem por tema a literatura ou as artes. entretanto. e a sensibilidade para o detalhe que. reunidos em dois extensos volumes de mais de três mil páginas. “Cronache planetarie. de Matteo Maria Boiardo. ano da morte do escritor. “Ritratti. por uma linguagem de precisão e clareza. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação de um outro poema. sob os cuidados de Mario Barenghi.agosto/98 O escritor italiano Italo Calvino viaggio nell’Unione Sovietica (1952)”. compreendendo “Per una letteratura dell’impegno”. além de uma bibliografia da crítica e índices remissivos de nomes e de periódicos. que ficou inacabado com a morte A publicação. “Sul romanzo”. a quarta parte é intitulada Pagine autobiografiche . “Editoria e dintorni”. de um primeiro momento de súbita apreensão de singularidade. no segundo volume. a segunda inclui Narratori. “Le armi e gli amori (19551956)”. a terceira é dividida em duas seções. revelando. il patetico. Acrescente-se ainda que. o cotidiano de uma experiência.As passagens obrigatórias de Italo Calvino João Alexandre Barbosa lidades da crônica cotidiana. “Corrispondenze degli Stati Uniti (1960-1961)” e “Altre descrizioni”. contextualizando. Altri discorsi di letteratura e società . em 1995. Poeti e Saggisti. onde estão “Da Gente nel tempo (1946)”. seja na obra literária. incluindo textos escritos entre 1945 e 1985. ou o que traduz. scrivere. envolvendo as ciências de nosso tempo. dos Saggi de Italo Calvino. que é subdividida em “Classici”. mostra. para o leitor interessado. Diz Calvino: “O Orlando furioso é um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar. depois. as trivia- . até mesmo a erudição em certos casos. a variedade e a continuidade da intensa reflexão de Calvino sobre temas literários e tudo aquilo que converge para a apreensão de uma mente e de uma sensibilidade comprometidas com a literatura. “Sulla fiaba”. l’ironia”. e Descrizioni e reportages em que se encontram “Liguria”. Os dois volumes foram organizados em quatro partes: a primeira inclui os três livros de ensaios quase completos do autor (e o quase refere-se ao último. uma convergência fundamental entre o conhecimento. o Orlando enamorado. é quase sempre a expansão muito controlada. Desta maneira. quer o que registra a impressão de acontecimentos políticos e sociais. “Contemporanei italiani” e “Contemporanei stranieri”. com anotações preciosas e editados pela Mondadori na coleção “I Meridiani”. de um dos textos que escreveu sobre Ariosto. por exemplo. para quem o conhecia de modo fragmentário através da dispersão de seus ensaios pelos livros que editou ou que foram editados postumamente. Não obstante a diversidade dos assuntos e das ocasiões em que foram escritos os vários ensaios. há. “Tacuino di 1 0 CULT . e Immagini e teorie que inclui “Sul cinema”. em que o início do ensaio é já a afirmativa daquilo que. Scritti di politica e costume. pela escrita. é elevado à categoria do elemento deflagrador do movimento ensaístico. “Territori limitrofi: il fantastico. Como se pode ver. uma recorrência fundamental em todos eles: a maneira de articular. cronache. interventi”. em Note e notizie sui testi . trata-se da mais completa e exaustiva reunião dos textos ensaísticos de Italo Calvino. “Leggere. uma figura completa de intelectual para quem a curiosidade não apenas se detém nas artes. intitulado “Ariosto: la struttura dell’ Orlando furioso”. os acontecimentos políticos e sociais. a contemporaneidade da literatura ou a herança clássica européia e mesmo as convergências de culturas mais diversas. póstumo) e que são Una pietra sopra . o ensaio. Cronache italiene”. seja nos acontecimentos lidos pelo autor. tradurre”. se expande como análise da singularidade do poema: a sua recorrente incompletude. finalmente. “Intorno alle arti figurative” e “Letture di scienza e antropologia”. Collezione di sabbia e Lezioni americane. mas se expande para além. É o caso. encontram-se preciosos elementos editoriais. fazendo proliferar episódios a partir de episódios. o próprio Calvino vai elaborar. Entre a recusa de começar e a de terminar.. mas que são importantes como demarcações de um território de criação original. ele aprendeu com o poeta Leopardi e sua Operette morali. que já foram mencionadas. Na verdade. por um lado. criando novas simetrias e novos contrastes. que são encontráveis desde os seus primeiros textos e que retornam com a releitura do conjunto de seus contos e ensaios do autor. é verdade. o conceito de leveza: um certo modo de não pesar a mão. na verdade. por outro. o que parece buscar o ensaio nas mãos de Italo Calvino e é. É. e o segundo. o leitor sentisse uma certa leveza na companhia daquela primeira afirmativa que o acompanha durante toda a leitura do ensaio. o elemento deflagrador para o conhecimento da estrutura do poema. É difícil manter este tipo de tensão em obras muito longas: por isso meu temperamento faz com que eu me realize melhor em textos breves. por assim dizer. é também possível. e mesmo o seu primeiro livro. e deixando o texto correr solto. numa carta mencionada por Anselmo Pessoa Neto numa certa altura de Italo Calvino. pareceme explicar bem o método de construção de Ariosto e é para ele. a questão da tradição literária. As passagens obrigatórias (Editora da Universidade Federal de Goiânia). como ocorre na preferência pelo conto. ultrapassar as distinções entre poesia e prosa. o próprio modo de composição obsessivo de Ariosto – é. numa de suas “lições americanas”. depois. no entanto. aquilo que é percebido como um movimento entre o começo e o término do poema – envolvendo. um modo de alargar este poema de estrutura policêntrica e sincrônica. pensando bem.).” [Saggi (1945-1985). sentido como uma coleção de fragmentos narrativos que buscam se organizar a partir do ponto de vista do menino personagem.. segundo o seu próprio testemunho. passa a limpo o seu aprendizado político e social numa época turbulenta. a escolha do ensaio parece ter uma razão mais profunda: a de que. está dito explicitamente: “as Operette morali são o livro do qual deriva tudo o que escrevo”. pode ser. densa. 759] Sendo assim. em que o livro inicial parece dialogar com a narrativa neo-realista de Vittorini ou Pavese. todas as minuciosas observações que são feitas em seguida sobre o poema conservam. por seu intermédio. como observa. em ambos os casos há a busca da expressão necessária. De fato. Ao mesmo tempo. às vezes. Por outro lado. meio perdido por entre os adultos das lutas guerrilheiras.” É precisamente a partir dessas preferências de Italo Calvino que Anselmo Pessoa Neto arma o seu modelo de apreensão da obra do escritor italiano. como ele os chama. como está dito naquele trecho de uma outra “lição americana”. e que também é transcrita pelo autor desse livro: “Estou convencido de que escrever prosa não deveria ser diferente de escrever poesia. primeiro tomo. o ensaio e o conto são. aquela primeira percepção.A obra de um escritor tão inquieto quanto Calvino é marcada pela retomada de núcleos obsessivos. como se caminhasse à revelia do autor. Italo Calvino ia acumulando outros conhecimentos que vinham de outras leituras obsessivas como as do mencionado Leopardi ou mesmo de Ariosto. Como se. E recusa-se a terminar porque Ariosto nunca deixa de trabalhar nele (. pág. “passagens obrigatórias” para a leitura do escritor. com razão. Mas. e. por entre os galhos frondosos da erudição – e ela é vasta por entre história circunstancial e literária que vão sendo rastreadas para singularizar o texto de Ariosto –. muito rica para a experimentação dos valores da literatura. ecoando. Anselmo Pessoa Neto. E. em sua estrutura mais profunda. está toda a tensão que dissemina e recolhe os significados do poema. aquela sobre rapidez . sem dúvida. Esta dilatação interna. que serão autores iluminadores para a compreensão do escritor posterior: o primeiro. memorável. por assim dizer. mesmo tratando de temas graves. ensinando aquela rapidez e leveza. concisa. única. Mas foi um gênero que. incitando ao gosto pela fábula que será uma constante em tudo o que. este primeiro livro tem uma função mais larga na obra de Calvino: a de uma espécie de acerto de contas com as possibilidades e os limites da representação de uma experiência muito pessoal do escritor que. escreveu e pensou na literatura. na verdade. representada pelo poema de Boiardo. talvez por isso mesmo. a marca do próprio gênero. Mais tarde. o romance Il sentiero dei nidi di ragno. contraditória e. por uma mágica prodigiosa de estilo. agosto/98 . cujas histórias se espalham por todas as direções em contínua intersecção e bifurcação. Nada disso passa desapercebido ao autor deste livro: logo de início as marcas da leitura feita por Italo Calvino são rastreadas por indicações. bastante sumárias.CULT 1 1 Xilogravura de João Leite . autor de A metáfora crítica . A biblioteca imaginária (Ateliê Editorial). retorna de súbito numa releitura. mas por intermédio de gestos ou ações que traduzem modos de participar da própria relação. que funcionam como mecanismos de aproximação ou de distanciamento: a nomeação dos gestos e das ações é transformada em núcleos de significado que assumem os valores da linguagem usual das declarações ou recusas amorosas. por sua vez. no caso do ensaio sobre Ariosto. lidos simultaneamente por artes da memória da leitura a que a gente chama de releitura. Professor titular de teoria literária e literatura comparada. presidente da Edusp e Pró-reitor de Cultura da mesma universidade. os contos distanciados no tempo terminam por anular absolutas diacronias e se instauram como momentos atualizados pela sensibilidade. entre o conto e o ensaio.O. Italo Calvino venha a se entregar seja aos experimentos do O. o grande mérito desse livro de Anselmo Pessoa Neto: lembrar ao possível leitor de Italo Calvino. isto é. a meu ver. também pela Ateliê. o crítico lançará a coletânea de ensaios Entre livros . Ali está. é o elenco de comidas mexicanas e mesmo a ação de comer (ecoando todo um movimento antropofágico que é básico na estrutura ficcional do conto e na reflexão cultural que ele desencadeia) que responde pela intensidade da recusa ou da retomada amorosa. a meu ver. sua primeira coletânea de ensaios que parecem ao autor deste livro “passagens obrigatórias” para a leitura posterior que se vier a fazer quer do Calvino de I nostri antenati: Il visconte dimezzato. Seu primeiro romance. seja ao aberto fantástico de Le cosmicomiche. de Sotto il sole giaguaro ou das Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millenio. por exemplo. muitas vezes. movido pelo exame deste livro de Anselmo Pessoa Neto. como expansão do detalhe percebido por um ato de súbita iluminação – o que. quer em si mesmo. As ilusões da modernidade (pela Perspectiva). Deste modo. será fundamental na poética de Calvino. quer em outros leitores. as “paradas” obrigatórias. Certamente. seja a releitura de prefácios atualizadores do próprio Calvino para os seus primeiros livros. Il barone rampante e Il cavaliere inesistente. sejam as primeiras repercussões da obra do escritor. É. foi diretor da Faculdade de Filosofia.Nesse sentido. todavia. com que fecha o trabalho. No caso do conto do primeiro livro. me fizeram pensar em um dos contos reunidos em Sotto il sole giaguaro. a compreensão de um escritor tão inquieto quanto Calvino não pode prescindir do estabelecimento de tais vinculações: a sua obra é quase toda a 1 2 CULT . uma vez oferecidas à mulher.L. é possível perceber vinculações mais intrínsecas e que apontam para aquilo que. pudessem dizer de um sentimento jamais expresso pelo personagem. eu mencionaria uma espécie de difícil controle das passagens entre realidade e imaginação conseguido por força daquilo que já me referi. a meu ver. aquilo que se julgara ultrapassado por uma obra posterior. João Alexandre assina mensalmente esta seção da CULT. . no caso do conto da obra póstuma. a crítica da leitura e mesmo da cultura que está num livro como Se una notte d’inverno un viaggiatore. que. é também responsável para que. é a escolha das coisas.agosto/98 retomada de núcleos obsessivos que são encontráveis desde os seus primeiros textos e. Para ficar apenas com uma. Não são. mais do que as “passagens”. Letras e Ciências Humanas da USP. palavras ou gestos isolados. Ainda este ano. Opus 60 (Livraria Duas Cidades) e A leitura do intervalo (Iluminuras). numa espécie de perigosa leitura evolutiva. seja. de imediato. seu primeiro livro de contos. encontrei traços de composição que. enfim. Anselmo Pessoa Neto trabalha com um Italo Calvino que apenas se preparava para a realização de sua obra. o que parece fazer o autor deste livro é oferecer ao possível leitor um material que sinaliza um caminho para a leitura de Italo Calvino: seja a relação indissolúvel entre o conto e o ensaio que aponta.I. A imitação da forma . Deste modo. Mas já entre Ultimo viene il corvo e Una pietra sopra . o mesmo cuidado em deixar com que os elementos de uma possível relação amorosa apareçam não através de palavras ou de grandes declarações.P. sem esquecer. para aquela busca de rasura das diferenças entre poesia e prosa. por assim dizer. cujo nome foi inspirado no título de seu mais recente livro. Dou um exemplo: fazendo agora a releitura do primeiro dos contos de Ultimo viene il corvo. a tradução de uma longa entrevista concedida pelo escritor a Guido Almansi.. animadas ou inanimadas. muito posteriormente. O livro de Anselmo Pessoa Neto aponta para a relação indissolúvel entre o conto e o ensaio e para a rasura das diferenças entre poesia e prosa que percorrem a obra de Calvino Clóvis Ferreira/AE João Alexandre Barbosa é um dos maiores críticos literários do país. é que. idealizador e apresentador do programa Nossa língua portuguesa . o ato falho de Dunga deu a dimensão do que ocorreria com o time de Zagallo. agosto/98 . convém corrigir. lembra? –. base literal de seu ofício: “Nossa língua são os pés”. “A turma foram”. Onde entra Dunga na história? Depois do jogo do Brasil contra a Noruega – vitória norueguesa. não faltam nos bons autores exemplos contrários. consultor e colunista da Folha de S. verifica-se que há uma divisão clara: os casos genéricos e os particulares. Apesar de ser tarde. é inegável que ela causa um certo desconforto. Foi o que fez Saramago. O fato. ou seja. houve uma reunião entre jogadores e comissão técnica. falando. o que é praxe no mestre –. Entre os particulares. Apesar de o sujeito ser “cama”. o verbo está ligando coisa e coisa. certamente para enfatizar “ramo”. estão os verbos haver. Pois bem. E o coloca em evidência. ou seja. o verbo (“são”) concorda com o predicativo (“palhas”). autor da coluna Ao pé da letra . Ninguém espera o verbo no plural depois de um substantivo no singular. sem dúvida. Talvez premonitória. Foi o que fez Camilo. Por incrível que pareça. ou seja.A PREMONIÇÃO DE DUNGA Pasquale Cipro Neto “A cama são umas palhas”. porém. Soa um pouco como “A galera vibram”. lê-se: “Terei de explicar-te que. é jogar. o capitão da seleção disse que não adiantava ficar falando. substantivos comuns. ou seja. na matéria que estamos a discutir. a tendência é que o verbo ser vá para o plural. como diria outro mestre – Carlos Heitor Cony. “cama” e “palhas”. Saramago optou pelo verbo ser no singular.Paulo . do Diário do Grande ABC e de O Globo . da TV Cultura. Depois da reunião.CULT 1 3 . E o que ocorre com o verbo ser no caso? No exemplo de Camilo. de número diferente – um no singular. em Que farei com este livro? Nessa obra. fazer e ser. para que ocorresse a famosa lavagem de roupa suja. Por mais que as gramáticas expliquem essa concordância – que eu também explicarei –. enfatiza-o. As gramáticas ensinam que isso ocorre quando se quer enfatizar o que está no singular. principalmente na final. escreveu mestre Camilo Castelo Branco. disse Dunga. para que cada um dissesse o que quisesse. Pasquale Cipro Neto professor do Sistema Anglo de Ensino. a tendência dominante –. é. adequar a frase à verdadeira intenção do falante – enfatizar os pés. “Nosso negócio não é falar. outro no plural. Apesar da regra – se não chega a ser regra. Ao empregar o verbo ser no singular. quando isso ocorre. e não “princípios”. sobretudo para estabelecer o nexo entre a gramática e o que Dunga pretendia afirmar. conscientemente ou não o capitão colocou em evidência algo que ele mesmo dizia não ser o forte dele e dos demais jogadores: a língua. As gramáticas ensinam que. quando se estudam as regras de concordância verbal. Ledo e ivo engano. o ramo é os princípios e o vinho a prática?” Além de ter preferido não seguir a recomendação gramatical quanto à pontuação – faltou vírgula depois de “vinho” para marcar a omissão do verbo (o vinho é a prática). a declaração de Dunga – por meio da concordância verbal – sintonizava-se com o pífio futebol que a seleção exibiu na Copa. Qualquer gramática traz um item em que se trata da “concordância especial do verbo ser”. Nossa língua é os pés”. explicava Helena. a mulher do famoso mitólogo Eleázar Meletínski. Minhas lembranças também se unem às de outros entusiastas de Peter (é assim que os russos sempre chamaram a cidade que hoje tem uma população de quase 5 milhões de habitantes) e. coragem de ir até lá. com a arquitetura ampla e dourada pelo sol de junho de suas praças. – É diferente disso que está aqui. é “tão abstrato e perfeito a ponto de se tornar absurdo” Aurora F. com as visitas aos tesouros do Hermitage ou do Palácio de Verão e.São Petersburgo. sob o signo do classicismo A cidade russa ergue-se sobre um pântano.. de Glinka. criando uma atmosfera de irrealidade pelo contraste entre a onipresença da água e o equilíbrio dos conjuntos arquitetônicos. quando a visitei em Moscou em 1992. com as noites brancas: uma cidade feérica. quase uma nacionalidade –. de Gógol. com a música de Tchaikóvski. bem ou mal. porém. de Dostoiévski. Não tive.. conseguiu resistir. igrejas e telhados orlados de ouro de seus palácios – cujo estilo clássico. mergulhou Moscou. segundo Josif Bródski. depois da perestróika falida. como se trata de uma rememoração principalmente geográfica. não perguntei. e que se fundiu com as leituras de Púchkin. onde a realidade e a imaginação dificilmente resistem ao convite de se unirem. é a única grande cidade que.agosto/98 – Mas Petersburgo é um estado de espírito. de Mussórgski. Imagino que seja à total dissolução de valores em que. por exemplo. Preferi ficar com a recordação do que vi nas viagens de estudo que repeti entre 77 e 83. Bernardini 1 4 CULT . nada melhor do que se deixar guiar pelas do petersburguense Josif Bródski (mais . Ao quê. a melhor obra de Étienne-Maurice Falconet [1782]. a sudeste. ao norte. que lhe foi dado por Pedro I. de 1924 até a queda do império soviético. Mas este é um panorama completamente diferente: nossa viagem se dá no mês de junho. o “Guia a uma cidade que mudou de nome” (existe tradução para o português em Menos que um. setor que tem o nome do famoso prédio “cuja agulha de ouro tenta. e com a direita indicando o caminho do norte.“O cavaleiro de bronze”. Petrogrado e Viborg. como faz questão de acentuar. “forma adensada do Tempo”. alguns quilômetros rio abaixo. De fato. em abril. na margem do rio oposta [à da Estação Finlândia. na página à esquerda. Fundamentalmente. o sol desaparece do céu por umas duas horas apenas e “os palácios. em prosa e em verso “a evocação da cidade é uma categoria do espírito”. (. na América. o poeta laureado com o Nobel de 87. contendo com a mão esquerda o cavalo rampante. e que é também o núcleo da cidade original de Pedro I. A maior concentração das riquezas artísticas e culturais da cidade está justamente no Almirantado. uma língua incisiva tanto quanto o russo. A água onipresente é a do rio Nieva. que desemboca no golfo da Finlândia. São Petersburgo é uma cidade que mudou de nome: do original Sankt Peterburg. que morreu há pouco e que sempre achou que o espaço (o olhar) é o essencial: a disciplina das colunatas. o rio Nieva e seus afluentes locais dividem o centro da cidade em quatro setores principais: a ilha Vassilievski. onde até a morte de Bródski existia a estátua de Lênin]. mas em sua grande maioria estão agora unidas ao continente. a história – relata Bródski – de “um obscuro funcionário que após ter perdido sua amada numa inundação [não se esqueça de que a cidade foi construída praticamente sobre um pântano] acusa a estátua eqüestre do imperador de negligência (não cuidou das barragens) e agosto/98 . A São Petersburgo. e o Almirantado. quando a temperatura gira por volta dos 18 graus centígrados e. seu fundador. em 1703. “O cavaleiro de bronze”. pela Companhia das Letras). simbolizando a Rússia. paira do alto da rocha gigantesca de granito [vermelho] arrastada até aqui do istmo da Carélia.) É um monumento imponente [universalmente conhecido como “O cavaleiro de bronze”]. em cuja parte ocidental nos deteremos. Joseph Brodsky). durante o mês inteiro.CULT 1 5 . a Leningrado. São Petersburgo. “onde olho e memória operam com acuidade desusada”. Em meados de dezembro. quando voltou a chamar-se por seu primeiro nome. a água dos rios congela e isso vai até o começo da primavera. segundo Bródski) de seu delta. e seus numerosos afluentes: a cidade se espraia sobre as 42 ilhas (101.” A inscrição gravada no lúcido bloco de granito do pedestal diz em latim. Bródski dedicou um ensaio em 86. com cerca de seis metros de altura. para nós. anestesiar as nuvens”.. a Petrogrado em 1914. tomam o aspecto de um delicado ser viço de porcelana”. Foi este monumento que inspirou a Púchkin o poema longo mais famoso da Rússia. ergue-se um monumento ao homem cujo nome a cidade usou desde sua fundação: Pedro. PETRO PRIMO – CATARINA SECUNDA. Mas deixemos a palavra a Bródski: “Muito apropriadamente. a oeste. estátua eqüestre em homenagem a Pedro. o domo dourado do Hermitage tarde. como um raio invertido.. que tem como epígrafe uma frase de On photography de Susan Sontag: “Possuir o mundo sob forma de imagens é tornar a experimentar a irrealidade e o afastamento do real”. mas em toda sua obra. a luz pálida difusa. despidos de suas sombras e com os telhados orlados de ouro. que encomendou a obra. o Grande. o Grande. o Grande [1672-1725]. a onipresença da água. fundador de São Petersburgo. Pedro. que foi recomendado por Voltaire e Diderot à grande Catarina. Mas continuemos nossa viagem. Este tipo de influência é sobretudo claro no caso da poesia russa. que fica próximo do prédio do Senado. imortalizada pelo conto de Gógol do mesmo nome (sem falar de O capote. a Universidade construída por Pedro em pessoa e onde o homem do carro blindado [Lênin] recebeu parte de sua educação. com suas colunas e pilastras e cabeças de animais míticos ou personagens esculpidas em gesso –.. modernos. tapetes puídos. Devo dizer que daquelas fachadas e daqueles pórticos – clássicos. “Aquelas magníficas fachadas 1 6 CULT .) até os acmeístas – Achmatova e Mandelchtam.. fica o Senado. não sendo os de Ossip Mandelchtam. E lembro que. do mesmo Gógol. quadros empoeirados dentro de pesadas molduras de bronze. Tratase de uma velha idéia grega que porém.” Os versos. “tão abstrato e perfeito a ponto de se tornar absurdo”. sobras de móveis (quase inexistentes as cadeiras) devoradas pelas estufas de ferro.. O estilo clássico. vista panorâmica de São Petersburgo. aprendi mais coisas sobre a história de nosso mundo do que de qualquer livro que vim a ler mais tarde. entre outros). igrejas inclusive.. perdia-me imaginando o que poderia acontecer dentro daqueles quartos com as velhas tapeçarias infladas e flutuantes. “Toda crítica (. abriga edifícios majestosos cujas fachadas datam de 1830 e representam a última grande obra de Carlo Rossi. Por dois séculos e meio esta escola. A história da estética russa fazia com que os conjuntos arquitetônicos. de uma ordem mais conveniente.” Do Almirantado e de suas praças irradiam três grandes avenidas. hoje sede do Arquivo Histórico do Estado e a mão indica. um dos artistas italianos que embelezaram a cidade. de Lomossov e Derjávin a Púchkin e sua plêiade (. e de Crime e castigo. que se estende por cinco quilômetros .” A vasta praça do Senado.) petersburguesa. porém. adquire a autoridade particular de um espírito de cruzada e confere ao artista uma aguda consciência da forma. uma vez transferida para sob o céu do norte. de seus ornamentos e cariátides que sustentavam os balcões. durante o sítio – uma tênue vida começava a tremeluzir. ou melhor (. espécie de medida métrica-espiritual tão familiar na Rússia como o tetrâmetro na Inglaterra. em pentâmetro jâmbico.agosto/98 cheias de marcas atrás das quais – por entre pianos vetustos. uma pessoa que tenha vivido o suficiente nesta cidade é levada a associar a virtude com a proporção.) pressupõe no crítico a consciência de um plano de observação superior. De qualquer modo. todos eles sentenciados (Púchkin escapou por pouco). mais tarde chamada “Dos Decembristas” em homenagem à revolta de 1825 de alguns jovens da nobreza contra o czar. entre as quais a mais importante é a avenida Niévski. À direita do “cavaleiro de bronze” há “uma instituição militar – o Almirantado. Na página oposta. que também foi tragado pelo império um século depois de Púchkin ter sido morto em duelo”. neste século – viveu sob o mesmo signo que a concebeu: o signo do classicismo. a colunata da catedral de Kazan e o poeta Josif Bródski enlouquece ao ver Pedro soltar-se do pedestal e ir atrás dele enfurecido para pisoteá-lo sob os cascos de seu cavalo e fazê-lo desaparecer no ventre da terra. abrese outra praça que abriga a famosa Catedral de Santo Isaac com sua cúpula de mais de cem quilos de puro ouro. fossem percebidos – e ainda o são – como a melhor encarnação possível desta ordem.. de Dostoiévski.À esquerda. além do rio. À sua esquerda. dos torsos à espreita nos nichos dos átrios..” Além do “Manejo” (1804-07). ecléticos. ao passar diante daquelas fachadas para ir à escola. é – no dizer de Bródski – o signo de São Petersburgo. construída em estilo clássico por Auguste Montferrand (1818-58). são – conclui Bródski – “os mais belos que tenham sido escritos em louvor a essa cidade. num quilométrico triunfo euclidiano.” Aurora F. a cidade levou seu escrúpulo até o menor detalhe: as chapas de granito que revestem rios e canais. descritas magistralmente por Pasternak em um de seus poemas. Ao adquirir seu aspecto imperial. Além da praça da abadia de Alexandre Niévski (herói da história russa a quem Prokófiev dedicou uma ópera com o mesmo nome que tem um dos coros mais impressionantes jamais compostos). tem a estranha sensação de que não é a Rússia que procura alcançar a civilização européia.CULT 1 7 . com esculturas em mármore e granito do século XVIII. Durante a segunda metade do séc. o elaborado desenho de cada caracol de suas grades de ferro fundido são exemplo disso. esta cidade tornou-se um verdadeiro safari para os melhores arquitetos. igrejas conhecidas por seus ícones e esculturas (como a mais importante delas. o resultado era sempre inconfundivelmente russo. um denso vapor d’água.) No entanto. paisagens arquitetônicas. sobre um enorme vídeo de espaço e de água. de 1801-11). uma construção que forma uma praça irregular que dá para quatro ruas e que remonta a 1761. florestas de colunas ergueramse para o céu e se alinharam ao longo das majestosas fachadas. ou então a Grande Cascata junto ao golfo da Finlândia. no caminho. Os banhistas esfregam seus corpos com ramalhetes de capim seco chamados matchálka. escultores e decoradores italianos e franceses.. projetada em 1720 por Domenico Trezzini. De lá se vêem as cúpulas da Igreja da Anunciação. sobre a qual campeiam as estátuas de quatro cavalos. Bernardini professora de pós-graduação em literatura russa na USP agosto/98 . do século seguinte. hoje centro comercial.. a catedral de Kazan. Quem observar o panorama do Nieva da fortaleza de Pedro e Paulo.. semeadas de casarões. qualquer que fosse o modelo em que os arquitetos se inspiravam em seu trabalho – Versailles. e o de Tikhvin. e o barroco e o classicismo jorraram inundando as ruas e as margens de São Petersburgo. e o Fontanka.. os Chuvalov e Anichkov). ou melhor. mas inteiros conjuntos arquitetônicos.praticamente em linha reta até a abadia de Alexandre Niévski. cortando um meandro do Nieva de parte a parte e cruzando. respectivamente. quando aquecido e molhado.) quanto a abundância exorbitante de espaço. Fontainebleu etc. os túmulos de Dostoiévski. dois rios menores. numa ponte das mais sugestivas. e a Catedral da Santíssima Trindade. o Teatro Púchkin e o Gostinni Dvor. Já as construções do Niévski Prospect (é este o nome russo da famosa avenida) são palácios da antiga nobreza (os Stroganov. e despejam jatos de água fria uns nos outros. Isso porque o que ditava ao construtor a distribuição das várias partes de um edifício e o estilo a ser adotado a cada vez não era tanto a vontade caprichosa do cliente (. que acolhe. que eram vendidos na porta por velhinhas. Intocada até então pelos estilos da arquitetura européia. um tipo especial de tijolo capaz de produzir. os bania ou casas de banho. o Moika. como que de dentro de uma lanterna mágica. XVIII e primeiro quartel do seguinte. Mussórgski e Tchaikóvski. o cemitério de Lázaro. abre-se um curioso conjunto arquitetônico: dos lados esquerdo e direito. isolados. –. São construções que têm. As margens do Fontanka. quando foi projetada por Jean-Baptiste Vallin de la Mothe. hospedam também uma das instituições mais tradicionais do povo russo. é projetada com seus detalhes ampliados. Feito imensos órgãos de igreja. “Nas épocas sucessivas à de Pedro não se construíram mais edifícios únicos. ad infinitum. desenhada entre 1778-90 por Ivan Starov. internamente. (. por entre arbustos e flores campestres. mas que esta. a Rússia levantou suas barragens. agosto/98 EPIFANIAS POÉTICAS Haroldo de Campos fala de seu novo livro. Crisantempo. registrando experiências de viagem. e atualizando cada ocasião numa “concreção de linguagem” que ultrapassa o rótulo redutor do concretismo e revela as dicções variadas desse poeta da “agoridade” . que viaja num território poético sem fronteiras.José Guilherme Rodrigues Ferreira e Manuel da Costa Pinto Fotos de Juan Esteves 18 CULT . homenageando amigos. traduzindo desde Catulo até poetas israelenses. e revela que não desistiu da idéia de organizar uma antologia da poesia brasileira de invenção. “céu-defel”. Camões. Parmênides. Depois de conhecer vários templos no Japão. escapou a um “elogio”. Quarenta anos depois. o novo livro do poeta. E mais uma vez mostra que é capaz de manter qualidade e inventividade poética com dicções variadas. Em Crisantempo ecoam ainda as vozes de Horácio. passa pela análise da crise das vanguardas. as doses certas de paciência. com extrema dignidade. a seu modo. ao traduzir Virgílio. será lançado até o final deste mês pela editora Perspectiva (tel. participante como ele de um democrático festival internacional de poesia. obsessão. estampada na Folha Em visita à multicultural Jerusalém. com uma aula: “No sentido lato da palavra. que estavam na gaveta. empreendida por ele. amigos escritores e amigos felinos. E ele mesmo responde. “dossel bilioso”. início dos 60. incerteza. Alcman. certeza. entraram o Barroco. de Haroldo de Campos. quase invisível. muito além da propalada guerra do tráfico. Já não há diferença possível entre esses papéis (se é que algum dia houve). aos quais se soma o do ensaísta tão acurado quanto curioso. incluindo CD com leitura de poemas pelo autor. O que são Os Lusíadas ?. diz que é mesmo difícil se livrar dos rótulos. Haroldo tomou chá e descansou como um zen-budista no sofá que pertenceu a Fenollosa. Haroldo. da cidade com “céu-enfermiço”. Kaváfis… O tradutor nunca deu mesmo trégua ao poeta. “a literatura é feita de literatura”. Paulo . Pérsio. Até a poluída Cubatão ganhou palavras tensas do poeta. Encontros e momentos epifânicos como esses foram ponto de partida para muitos dos poemas que compõem e dão o tom a Crisantempo. “Sem poder sair de casa. O anjo esquerdo da história. Havia então um quê programático no ar. Concretista ele confessadamente já não é. Em Medellin. e defende seu rigor formal. Nem mesmo a térmita voraz.CULT 19 . E vice-versa. Política. se inebriou com os sons da siberiana Sainkho Namtchylak. guiado pelo arcanjo Gabriel. Haroldo deixou temporariamente de lado os infernos metafísicos para descrever a imensidão de um inferno factual. agosto/98 . pelo menos desde as proliferações barroquizantes de suas Galáxias. traduziu Homero. Maomé ascendeu aos céus num burrico alado.Crisantempo . mostra uma série de poemas de Catulo. resquício ainda das inquietações levantadas pelo movimento da poesia concreta. como carinhosamente a ele se referia seu amigo Cortázar. com seu semáforo de “olho vermelho”. demência. como num dos poemas. No final dos anos 50.. Ovídio. o exercício de rotina tem sido “atualizar cada ocasião numa concreção de linguagem”. A poesia da “presentidade” está também na série onde homenageia amigos pintores. Já traduziu mais de quatro mil versos.. por exemplo. ciência. “pósutópica”. dedicado aos sem-terra massacrados no Pará. de S. comecei a trabalhar como um louco na tradução da Ilíada”. 011/885-8388) Haroldo de Campos se emocionou ao ver de perto a rocha-plataforma de onde. Crisantempo é.” Na entrevista à CULT publicada a seguir. de todas as literaturas nele contidas e da importância dessa cadeia de tradução e tradição. Afinal. no início dos anos 60. É preciso estar factivo para se manter vivo. Safo. rememora com carinho dos amigos de ofício. uma “rapsoda xamânica”. usa essa ferramenta agora para apresentar os maiores poetas israelenses contemporâneos. na Colômbia. viajando num território poético sem fronteiras que pode incluir a Nova York dos “rasga-céus” ou a esquina mais próxima. Alceu. pergunta Haroldo. ainda tem muitos mares “nunca d’antes navegados” a singrar. Versos inteiros foram transpostos e transformados em versos latinos. mais um golpe duro na ladainha que há anos persegue Haroldo e não cansa de entoálo como poeta concretista. Mas o leque de interesses foi se ampliando. Haroldo fala de Crisantempo. Mimnermo. Haroldo teve de interromper a sessão diária de “homeroterapia” a que tem se entregado para enfrentar. Explica o conceito de “reimaginação”. Para que o nosso encontro pudesse acontecer. no ritual silencioso da destruição de livros (e estes estão por toda parte no sobrado da Rua Monte Alegre. Os Lusíadas são uma tradução da Eneida de Virgílio. a poesia russa. Dentro da estética então necessária da imitação. A poesia de Homero tinha força e intensidade garantida pela beleza sonora da língua grega. foi construído após o choque despertado pela fotografia do funeral das vítimas. no bairro paulistano de Perdizes). Virgílio era um poeta recrutador. Para isso reclama. nada amiga. para ele. ou mesmo ecológica. O novo livro também é oportunidade para a celebração de mais traduções. Haroldo se entusiasma quando fala desse poema. A “ocasião” pode ser também de outra natureza. “raio polifêmico” a perscrutar a escuridão da noite. nos moldes daquela esboçada no seu livro A arte no horizonte do provável. Na outra ponta. que já estudou o hebraico para “transcriar” textos bíblicos. que fez Eneida para celebrar a glória de Roma. lembrando as lições de Maiakóvski: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. tradutor e poeta confundem-se numa relação cada vez mais visceral. enfrenta os ataques que apontam a peça como mera ação panfletária. Na poesia da “agoridade”. que por sua vez é a continuação e a tradução da Ilíada de Homero. segundo a tradição islâmica. alguns problemas de saúde. não cansa de receitar Haroldo. tradutor e ensaísta Haroldo de Campos – que está sendo lançado pela editora Perspectiva e que é acompanhado por um CD no qual o autor lê uma seleção de seus trabalhos. diz. prontos para a revelação. O “cachalote com barbas de Netuno”. a produção pessoal dialogava principalmente com as traduções inspiradas nos modelos e no paideuma de Ezra Pound. O poeta reage bem ao lenga-lenga. Pound nunca compreendeu o barroco. embora tenham na microestrutura elementos de concreção. numa grande diversidade de opções estilísticas. há uma unidade nessa variedade. em que cada poema é uma ocasião textual atualizada. Mas há também diferenças. dizia. Keats. que. nem nas mais sofisticadas. Eu dou imensa importância ao barroco. jogos de linguagem que correspondem aos poemas concretos. Esse ensaio foi apresentado num encontro por ocasião dos 70 anos do Octavio Paz. depois Yeats. O livro abarca os últimos 12 anos de minha produção poética. CULT Qual a relação entre esse tradicionalismo e aquele que chega ao público por meio das revistas literárias? H. traduções de gregos e latinos. que exclui toda linha Pound-Eliot. que era a tradição de Milton. Não vou fazer esse juízo moralista .agosto/98 experiência completamente no outro sentido. Eu já não faço poesia concreta. Em 63. no barroco. se em determinado momento a situação sobre a qual o poema incide é uma situação lírica. da proliferação. Seria como se as revistas e jornais brasileiros privilegiassem uma produção romântica tipo Augusto Frederico Schmidt. E não estou falando do lado político.CULT Crisantempo reúne. que pode ser considerado um maneirista. Daí por que. mas sim no sentido de radicalização de toda uma poesia do Ocidente que viria desde Mallarmé). desde as “Transluminuras”. Você não vê a vanguarda poética americana nas revistas normais. que isso é evidente. muito interessante nas formulações críticas. Basta ver a coleção. foi depois publicado na Folha e. fazendo aquelas inversões. Nesse ensaio eu falo de uma poesia pós-utópica. Há nele linhas de formação do poeta que se traduzem em algumas escolhas. de certa maneira um barroco também. Você poderia falar sobre algo que unificasse ou até fosse a negação da unidade entre esses poemas? HAROLDO DE CAMPOS De fato. Milton. que significa conservadorismo em termos poéticos. que tinham ficado meio marginais. É como se. que privilegiou os poetas metafísicos. Meu dissídio com Pound. a postura de um Harold Bloom. É claro que eu tenho uma influência muito definida. valorizava muito os tradutores de Homero. Embora eu não esteja mais fazendo poesia concretista. um homem de direita. na metalinguagem. não implica aceitar as propostas de Bloom.C. Pound não aceitava Milton porque. nos moldes daquela estética específica do Plano Piloto. evocações de Crisantempo. Não se pode confundir o seu tradicionalismo com o das revistas literárias americanas. É bom lembrar que ele é tradicional no sentido sublime. mas não tenho. nos termos daquela estética de culminação (culminação não no sentido de valorização axiológica. Bloom privilegia justamente a tradição contra a qual Pound se insurgiu. o tom era Frederico Augusto Schmidt. tipo New York Review of Books. nesse particular. Elas publicam poemas sempre dentro dessa tradição neo-romântica. Wallace Stevens. de repente. Blake. ou seja. eu já comecei as Galáxias. onde falo do poema pósutópico. mas tradicional e reacionário nas escolhas.C. Crisantempo tem um paideuma embutido que serve quase como uma rosácea de referências. por exemplo. apesar do fato de ser um poeta reacionário. o tom da literatura brasileira fosse dado por esse poeta. de uma poesia da agoridade. algumas vezes até bastante grandes. A revista o elogiava como “o” poeta. Crisantempo se caracteriza exatamente por aquela proposta que formulei no ensaio Poesia e modernidade. CULT Em que medida as celebrações. “escreve um inglês como se fosse latim”. com algumas coisas mais antigas. do Pound. Pound tinha outras escolhas na literatura inglesa. no México. ou pelo menos não faço poesia concretista. Elizabeth Bishop. no livro O arco-íris branco. strictu sensu . É o caso do conjunto de traduções do Catulo. Na época da revista Clima. desde meados da década de 60. da presentidade… Crisantempo representa esse momento específico do meu trabalho. a um só tempo. A tradição de Bloom é a do grande romantismo. Ele criticava Gôngora. em relação ao Pound. não aceitava Milton. eu trabalho com uma dicção lírica. são o paideuma de Haroldo de Campos? H. mais recentemente. Trabalho com a materialidade da linguagem. Falo do lado estético. continuo fazendo uma poesia concreta no sentido lato. trabalhos que revelam diversas práticas de invenção. é uma 20 CULT . Há também uma série que funciona como uma memória nada convencional das suas viagens. ocasiões concretas de linguagem atualizadas em dicções diferentes. até poemas como o dedicado aos semterra. Haroldo de Campos explica seu projeto de uma antologia da poesia de invenção. E sim a de um poeta negro. em que o toque de escolha seria dado pela pervivência dos poemas. O Fausto é o Finnegans wake da época de Goethe. Botelho de Oliveira. Mas Gonçalves Dias tem uma outra parte da obra muito interessante. diretamente influenciada por Gregório de Matos. fazendo uma coisa corrosiva. já estou preparando uma primeira versão abreviada dessa antologia. Com a colaboração do Nélson Ascher e da tradutora Regina Alfarano. os árcades. Numa antologia de Gonçalves Dias. tupi.poema qohelético 2: elogio da térmita os cupins se apoderaram da biblioteca ouço o seu áfono rumor o canto zero das térmitas os homens desertaram a biblioteca palavras transformadas em papel os cupins ocupam o lugar dos homens gulosos de papel peritos em celulose o orgulho dos homens se abate madeira roída tudo é vão a lepra dos cupins corrói o papel os livros o gorgulho mina o orgulho assim ficaremos cadáveres verminosos escrevo este elogio da térmita (Nota do autor: Qohélet. português. • Eu nunca deixei morrer a idéia de fazer uma antologia da poesia brasileira de invenção. que na sua inteireza é chato. agosto/98 . mas não sem considerar o contexto do passado. ou seja. considerado ininteligível. o uso de várias línguas. Passaria também por todos os demais. apontando inclusive o pesado lastro da prosa alemã. O Gonçalves Dias tem uma tradução do Heine que é desprezada. O Castro Alves é muito visto sob aquela coisa retórica da poesia abolicionista. na qual ele arrasa com a prosápia dos nobres. tem de entrar. foi corroída pelo tempo. Acho. Agora Goethe tem importância e pervivência. esboçada no livro A arte no horizonte do provável. como poesia abolicionista. Um poeta como o alemão Klopstock. seria obrigatório. em anexo. por exemplo. eu colocaria “A bodarrada” na íntegra. A “Canção do exílio” não me diz nada. Luís Gama. poderia não colocar alguns daqueles famosos poemas indianistas. recorta determinados versos para mostrar a incidência da modernidade mesmo onde aquele poeta desenvolve uma dicção tradicional. “O-que-sabe”. como observava Mário Faustino.CULT 21 . Além disso. não tem pervivência. Haveria uma dimensão histórica. é o nome hebraico do autor anônimo do livro bíblico conhecido como Eclesiastes) Extraído de Crisantempo “A poesia do passado vista com olhos do presente” Nesse trecho da entrevista. por exemplo. espanhol. a de Castro Alves não é a mais interessante. dos brancos. que é muito menos considerado que Gregório. você escolhe as pedras de toque. teríamos as pedras de toque: em vez de um poema inteiro. aliás muito bem salientada por Antonio Candido. darei lugar. latim. Os poetas entrariam dentro dessa escolha sincrônica e. aos tradutores. Seria a tentativa de ver a diacronia da poesia brasileira do ponto de vista sincrônico. Eu já fiz também uma leitura extensa do Fagundes Varela e já tenho idéia de como escolher Castro Alves. que fez a famosa sátira “A bodarrada”. a poesia do passado vista com olhos do presente. algumas coisas com sabor de Gil Vicente). Ele era mesmo um artesão. que. uma das coisas mais violentas já escritas. Eu faria uma antologia em que leria todo o passado desde Anchieta (que tem coisas interessantes entre o mundo medieval e pré-barroco. o barroco. que fez O Messias. Cartas chilenas. embora tenha importância. Na antologia. em pé de igualdade. que faz uma boa abordagem do seu legado. C. Num certo sentido. aquela linha de língua inglesa que está no ABC da literatura. apreciava Ovídio. terá uma sensibilidade para a música atonal que não teria se não tivesse contato com essa tradição. Conheço o Boris através disso e ficamos amigos para a vida inteira. mas sem respeito reverencial. os poetas que eles publicavam. do simbolismo francês. Nunca ninguém foi ver o que está escrito lá. tratado como um futuro Drummond. Quando procurei o Boris. de certo modo refletidas em Crisantempo… H. instigado. A educação dos sentidos é a finalidade da história universal. Diferentemente das publicações quase oficiais desse romantismo de diluição.agosto/98 CULT Voltemos às suas escolhas pessoais. no foro universitário. me considere um aluno desse paideuma poundiano. os artigos. ele é o exemplo de mau crítico. Nós não chegamos ao formalismo russo através dos franceses. Gregório de Matos e a herança fantástica hispanoamericana. mais ela pode apreciar música. À poesia e ao fato. Eu estava traduzindo Maiakóvski com imenso sacrifício. Se você conhece os últimos quartetos de Beethoven. Depois ele fez uma memorável visita ao Brasil. Paulo. porque se ele fosse reacionário e um bom poeta… Mas era um mau poeta. Não apreciava Petrarca. E eu não estava interessado exatamente nisso. Então todos esses fatores existiam. difundindo a existência da Escola de Praga. você entende melhor Schoenberg do que uma pessoa que nunca ouviu Bach. O Bloom é um crítico de formulações brilhantes.” Nas propostas do formalismo russo. porque estou interessado em discutir esses assuntos. a semântica existia. que é o que fazem quando não sabem explicar por que o poeta é bom. para ser polêmico e fazer uma brincadeira. eu me interessei por poesia russa. Chegavam a pôr poeta com pê maiúsculo. inspirado na idéia de paideuma que Pound veicula. Mais tarde pude conhecer pessoalmente o Jakobson.e ideológico. por exemplo. que é aquele que chama atenção antes para suas idéias do que para os textos que analisa. não vou dizer nem por quem. A revista Clima é uma legenda não decodificada. só que era pensada numa dialética de forma e conteúdo.C. No Brasil havia fermentos para esse interesse. os provençais. Eu tenho outras leituras de interesse que Pound não teve. que corresponde mais ou menos àquela idéia da Bildung [formação] que vem desde Goethe. discípulo de Jakobson. não apreciava Virgílio. Ao privilegiar o grande romantismo e excluir a outra linha. nesse particular. É só ver… A revista Clima chegou a celebrar um poetaço. mas não é um analista de texto. tão cara aos poetas concretos? H. amor à poesia. Dante. Isso é uma pequena digressão… 22 CULT . Também entrei por uma vanguarda alemã que nunca interessou especificamente ao Pound. que escrevia sobre método formal no “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Tivemos também a felicidade de termos uma pessoa como o Boris Schnaiderman. Um deles era o fato do Mattoso Câmara ter sido aluno de Jakobson. Quanto mais música uma pessoa ouve. minha tradução do poema sobre Iessiênin estava quase pronta. Não sou movido por respeito reverencial. os gregos e latinos. as pessoas a aceitam em bloco. o Rossini Camargo Guarnieri. Ele trabalha com temas que muitas vezes conforma às suas teorias. E é uma revista da década de 40. Se você é ouvinte de Bach. A poesia hebraica. que não esteve no endereço do Pound. as posições tomadas. Se fosse uma revista do romantismo alemão! Eu já comprei vários exemplares em sebo e tenho toda a revista xerocopiada. que estudei por seis anos. Ele tinha as preferências dele. Então nós tínhamos aqui o principal lingüista e fonólogo brasileiro. sobretudo Catulo e Horácio. e ele ficou espantado com o trabalho que eu já vinha fazendo. me ajudou a resolver algumas estrofes e me ofereceu aulas de russo por quase dois anos. com suas várias literaturas. do ponto de vista do Pound. Sor Juana Inés de la Cruz. Fazia um curso na União Cultural Brasil-Rússia. onde a professora não sabia nada de literatura. Esse é o grande contorno. só de conversação. Então eu posso dizer que tenho um paideuma meu. Isso foi na década de 60. Propércio e a linha coloquial. O barroco é algo fundamental para mim. ele acaba oferecendo os fundamentos ao alicerce dessa gente medíocre. CULT Como se deu a aproximação com a poesia russa. sou movido por amore. Embora. Houve uma série de conjunções favoráveis a isso. . E o Bloom é hoje o grande responsável por isso. irônica. nos Estados Unidos. “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária. na época em que esteve em Nova York. mais o ideológico. Mas vejo outras possibilidades. com os poetas levados a fazer realismo socialista. como Pound e Joyce. que hoje estão nos Estados Unidos e na Europa. os poetas estão fermentando. Daqui a uns dez anos. que poderá ser modificada numa outra circunstância. não há novidade nenhuma. Acho que nós ainda estamos na modernidade. Foi a partir daí que começaram a aparecer poetas dos mais diferentes matizes. como na Rússia ou na China. tornou-se professor de literatura e lançou em 1919 um manifesto de oito pontos. Um poeta chinês chamado Hu Shi. Porque lá a ocasião está propícia. O país teve uma revolução poética praticamente contemporânea ao Imagismo e influenciada por um discípulo de Ezra Pound. um deles famoso tradutor de poemas de Rilke. aquela coisa niilista. na escolha do exílio. Nós estamos numa fase específica. que tem uma literatura poética muito curiosa. inquietações. estarão de volta. Nada obsta que amanhã um movimento de vanguarda surja lá. obscuros. Agora. no Ocidente. sendo que num deles defendia o uso da linguagem cotidiana. derivados da estética de concisão chinesa e japonesa. esses poetas todos. existe um horizonte coletivo que pode mobilizar. Outro lugar onde acho que pode estar acontecendo coisas interessantes é na China.o poeta ezra pound desce aos infernos não para o limbo dos que jamais foram vivos nem mesmo para o purgatório dos que esperam mas para o inferno dos que perseveram no erro apesar de alguma contrição tardia e da silente senectude – diretamente com retitude – o velho ez já fantasma de si mesmo e em tanta danação quanto fulgor de paraíso Extraído de Crisantempo “Nós ainda estamos na modernidade” Haroldo de Campos nega que o modernismo tenha se esgotado e afirma que uma nova vanguarda pode brotar do atual contexto pósutópico. Foi uma reversão: os princípios do Pound. Não se trata de uma diáspora em que a pessoa vai ficar no exílio. porque não faziam aquela poesia de louvação e sim uma poesia cheia de dramas metafísicos. que foi aluno de universidades americanas no período em que estava sendo publicado o manifesto dos imagistas. mas para eles era uma coisa extraordinariamente nova. Para nós. poesia proletária. aquela coisa de homenagem ao líder. • Eu não aceito o termo pós-moderno. De repente. voltou para a China. estavam voltando à China através desse discípulo. A União Soviética ficou privada da tradição de vanguarda durante anos e anos por causa da incidência do stalinismo e daquelas práticas repressivas. o leque de opções foi cortado. de repente. Os adversários os chamavam de poetas obscurantistas. agosto/98 . Uns os chamavam de poetas herméticos. no momento. Eu não vejo. E os poetas que queriam fazer experiências foram calados. que eu chamo de pós-utópica. surge esse grupo que foi reprimido na Praça da Paz. Na primeira oportunidade eles estarão de volta e. com a revolução comunista. Mas. na Rússia que emergiu da queda do regime.CULT 23 . a não ser que se entenda que Mallarmé já é pós-moderno em relação a Baudelaire. nenhuma vanguarda possível na poesia do Ocidente. podem fazer uma nova vanguarda. de Bashô [escritor japonês do século XVII]. como no caso dos poetas israelenses. Guilboa tem a minha 24 CULT . No caso do Japão. Como ele resgatara a arte japonesa num momento em que o Japão estava entrando numa fase acadêmica. de aspectos bíblicos. visitar o túmulo de Fenollosa [estudioso norte-americano da arte japonesa]. Finalmente. A educação dos cinco sentidos . às vezes aqui. segundo a tradição islâmica. duplex. Às vezes lá. Gozo Yoshimasu.C. e era a primeira vez que algumas peças voltavam dos Estados Unidos para o Japão. Isso acontece muito. É como se você fosse a Roma e o pessoal começasse a falar latim. Gostou mais de São Paulo do que de qualquer outro lugar. outros por uma viagem a Tenerife. porque tudo aquilo estava desprezado. Maomé voou aos céus. que são lindos. algumas delas marcadamente parafrásicas. Dentre esses poetas. São traduções que não cabem especificamente em nenhum livro. onde uso um falso latim. Um tipo de excursão ao Paraíso. havia uma exposição maravilhosa sobre Fenollosa. Quando recebemos o convite. onde participei de um curso de tradução. eu ponho algumas traduções numa seção que eu chamo de “Transluminuras”. templos. por exemplo. latex. que é um grande vulto de Tenerife. mostro alguns poemas sobre cidades e templos daquele país e algumas traduções. lugares? Aqui ou nos países visitados? H. levado pelo arcanjo Gabriel. Nesse meu livro. justamente ele que é o inventor da literatura brasileira. um caso único. Um poema dessa série é dedicado a Iehudá Amihai. não são nativos de Israel. têm um trabalho com a linguagem coloquial bastante interessante. da literatura de parábolas e. na cidade de Nara. Era um homem muito urbano. Na verdade. . conhecemos muitas pessoas interessantes. inclusive de um poeta meu amigo. No Japão. Então Jakobson foi da Biblioteca até a Aliança Francesa a pé [onde se deu a conferência]. ele acabou fazendo uma coleção extraordinária. A primeira razão é mesmo a questão da língua. E houve uma coincidência fantástica porque. A língua bíblica e a atual são a mesma. que já faleceu. que Dante celebra. Uma das coisas lindas de Jerusalém é que ela é uma cidade multicultural. na seção “Israel”. Fenollosa foi uma das pessoas que contribuiu para que os japoneses reavaliassem a sua arte. Foi uma verdadeira passeata com o Jakobson à frente – e em pleno 68! CULT Uma coisa interessante observada a partir de Crisantempo é que você está sempre agregando novos nomes. como o vice-presidente da Fundação Fenollosa. H. montado num burrico alado. que vem desde o meu livro anterior.C. Ele adorou. por outro lado. Um deles diz que todo israelense nasce com uma faca no coração. O que esses poetas têm é uma forte impregnação da Bíblia. jogado nos templos. mas o público não cabia na sala. CULT Onde você escreve esses poemas que evocam cidades. O mesmo aconteceu em Israel. Nesse livro há também poemas motivados por uma viagem aos Estados Unidos. Aqui ele reviu o Mattoso Câmara. que é considerado o maior de todos eles. uma série de manuscritos.agosto/98 preferência pela sua radicalidade.CULT Quando foi isso? H. as primeiras que fiz de poetas israelenses modernos. Há um lugar do qual. É aquela coisa… atualizar a ocasião numa concreção de linguagem. é claro. já havia todo um Japão na minha cabeça e fui conferir aquilo. os grandes templos de Kioto. E aí. tinha muita experiência em grandes capitais. a viagem era um sonho de mais de 30 anos. eles correspondem a um princípio dos poemas-galáxias. era uma espécie de judeu errante. Essa exposição reunia os objetos pessoais dele. Foi em 68. houve ocasiões epifânicas e eu fiz muitos poemas. nas Canárias. à exceção de Amir Guilboa. o princípio da epifania. Uma das conferências dele ia ser na Biblioteca Municipal. CULT Que tipo de radicalidade desses poetas o atraiu? H.C.C. Eu traduzi dois poemas do Haym Gúri. sobretudo Nova York. Chegamos a sentar no sofá do Fenollosa. o Tetzuo Maekawa. O mais interessante é que a maioria deles veio de fora. que nos acompanhou na visita ao túmulo de Bashô. Lá eu pude ver a estátua monumental de Anchieta. “a rosicama do teu duplex”… Há também algumas traduções de poesia japonesa. Estive com todos eles. Há aquela tradução de Horácio [“Ad Pyrrham”] em que faço toda uma modificação estrófica. eu não traduzo Dante. aqueles reforços fônicos de aspectos semânticos. esse paralelismo tem uma função semântica. agosto/98 . sendo uma língua tonal. em que faço uma coisa mais parafrásica. que você tem semantização até nos traços diferenciais dos fonemas. reproduzindo em português os jogos de organização gramatical. Fiz questão de publicar na coleção Signos [dirigida por Haroldo de Campos na editora Perspectiva] as traduções do iorubá por Antonio Risério. ele reitera. porque aquela língua que eles ouviram soava como uma espécie de “latim iorubá”: uma língua com palavras que pertenciam à memória deles. O que eu faço é reimaginar essa tonalidade na forma de orquestração. repete. em geral. em Israel. a tudo o que está semantizado. Eu considero a transcriação hiperfiel ao original. criam até uma opção de etimologia. Hoje nós sabemos. Talvez pudesse traduzir o chinês para o iorubá. não pode ser reproduzida por nenhuma língua ocidental. Eles ficaram encantados. A Josely Vianna Baptista está fazendo um trabalho bem interessante com os índios guaranis. Portanto. Já o termo reimaginação é empregado em casos bastante específicos – por exemplo. Eu concordo com a tese do Risério de que a tradição da literatura brasileira não é só a tradição ocidental e que deveríamos sempre incorporar a tradição da nossa poesia. que estão no livro Oriki orixá. Eu ouvi uma história interessante sobre uma delegação da África que veio visitar os cultos afros da Bahia. pela poética de Jakobson. mas ao travamento formal microestrutural desse conteúdo. uma livre criação paralela ao original. Etnopoético.e quindi uscimo sair deste inferno-crematório de ossadas expostas e tornar a ver não estrelas mas a luz a pino do sol de jerusalém num céu laminado de azul um olho afogueado de topázio escrutina o imperdoável perdoará? ( Nota do autor: poema composto após visita ao Museu do Holocausto. Essa dimensão sofisticada faz com que a poesia chinesa soe sempre como um canto. com tradutores modernos dessa tradição. mas dou uma versão do Reader’s Digest da Divina comédia . transformando aquilo em verso livre. nos moldes da etnopoesia americana. de quatro tons. se eu pego Dante e extraio isso. usando eventualmente uma rima. • O que eu chamo de transcriação não é uma tradução despreocupada com o original.CULT 25 . Acho que deveríamos fazer uma antologia. o título remete ao verso final do Inferno de Dante ) Extraído de Crisantempo Da transcriação à reimaginação Haroldo de Campos fala sobre as diferentes formas de tradução literária e defende a inclusão da poesia iorubá e guarani no repertório da tradição brasileira. correspondências gramático-morfológicas que devem ser recriados. Aí a tradução seria um operador transcultural e até antropológico. porque não é fiel apenas ao conteúdo do original. que é repetida da mesma maneira desde a época do tráfico dos negros. Há uma organização interna. que tem três tonalidades. Os chamados anagramas. incorporandoa ao acervo brasileiro em pé de igualdade com aquilo que existe na tradição que nos chegou diretamente do português. jogos sonoros. O chinês. a tradução da poesia chinesa. Se eu tenho um paralelismo. E agora está sendo publicado numa versão para o alemão. da Itália. Eu nunca tinha visto um auditório como aquele para poesia. É a idéia. antes mesmo de ver os quadros. Não. cuja primeira língua é maia. Parecia com aquelas leituras feitas pelo Ginsberg nos Estados Unidos. Aí é um convívio antigo. Eu fui num teatro que ficava no interior. você tem também uma preocupação política com o presente. com teatros. isolada. que é o inferno da destruição ecológica. com técnicas muito parecidas com as orientais. à música. Eu passei então para um inferno tratado como ocasião factual.C. era uma espécie de rapsoda xamânica. não têm nada a ver com o tráfico. Tozzi. em zonas 26 CULT . eles são pessoas que amam a cultura. Ele consegue um efeito de um espanhol que é descolonizado através de um aporte maia. O poema aos sem-terra nasceu da impressão que eu tive quando vi uma foto na Folha. da França. H. Esse poema chegou a ser lido pelo Sérgio Mamberti na Assembléia Legislativa de São Paulo. Rubens Gerchman… CULT Assim como você tem a preocupação epifânica dos encontros. Ela está ligada à pintura. Fleming. se vê um pouco dessa ligação. Muitos dos quadros são presentes de pintores para os quais eu fiz apresentações de exposições. H.C. na época de ouro dos beatniks. Vai ser reproduzido na revista do festival. tem poemas sobre ecologia. Ele é um poeta de expressão espanhola. teve uma repercussão tremenda. um equipamento cultural surpreendente. Há também alguns poemas que eu fiz em Medellin. ou sob a forma de poemas ou sob a forma de textos. o poema aos sem-terra… H. pelos quadros que tenho. Seria uma espécie de poesia vocal mágica. Teatros em zonas populares. Tem um caráter de feliz coincidência. Tomie Othake. numa reportagem sobre o massacre no Pará. há uma parte do livro dedicada a pintores e artistas plásticos. o inferno dentro da concepção do Signância quase céu. Uma das minhas leituras públicas foi feita num teatro ao ar livre. Ele tem um grande requinte formal e. Medellin é uma cidade linda. de que a poesia não é uma arte beletrista. organizada pelo poeta Lello Voce. numa série de trabalhos feitos naquele país sobre escritores latino-americanos. O grupo dele é que está começando a dar uma escrita a essa tradução oral. Antonio Dias. na ocasião em que houve um protesto contra a não-punição dos algozes. uma versão do maia que não tem nem gramática. É um poema longo. . CULT E o poema sobre Cubatão. CULT Além da referência aos poetas. você sabe que a guerrilha está por ali. como nasceu? H. Ela fazia uma apresentação basicamente sonora. fica num vale. e o poema foi lido no Festival de Veneza. com uma voz inacreditável.agosto/98 até meio perigosas. Foram encontros muito fraternos. Aqui na minha casa. Tinha um público de show de rock. Você tem a impressão que vai sair de Medellin levando tiros. Sacilotto. um inferno aí tratado com caráter metafísico. Havia poetas do Canadá. na Colômbia. Mas havia uma coisa bonita: o festival era uma demonstração de que ali a população de Medellin. Depois. Mira Schendel. que a poesia concreta sempre teve. Eu escolhi o Marco Gianotti. me pediram uma cópia para a Internet e já saiu num boletim do PT. CULT Há um contraste forte entre o que você viveu e a imagem de violência que se tem da Colômbia. o Museu Botero. Tenho Geraldo de Barros.C. jovens estudantes universitários. Ele me deu umas fotos e eu fiz o poema. mas seu espanhol é submetido a várias coisas típicas do maia. com jóias da sua coleção. onde eu retomo uma idéia de Nékuia. Fui convidado para aquela mostra de comemoração da Poesia Concreta que o [José Roberto] Aguilar organizou na Casa das Rosas.C. para minha surpresa. O poema saiu inteiro. desde o Grupo Ruptura. e havia uma siberiana. em que cada um escolhia um pintor. Na ocasião da mostra ele apresentaria uma série sobre os problemas lá de Cubatão. Sainkho Namtchylak. Fiaminghi.o codificador da gramática tupi e até taumaturgo no Brasil. tem um clima de primavera permanente. desde a década de 50. da Alemanha. planetário. que não era bem uma poeta. A minha relação com os pintores é antiga. do Waldemar Cordeiro. uma coisa que deixava você transido. Em Medellin conheci também um poeta da Guatemala. A Aurora (Bernardini) fez uma tradução para o italiano. onde eles organizam um festival internacional de poesia extraordinário. Aguilar. Brasiliense. 1992 “Introdução” a O livro de Jó – Giordano/Loyola. 1990 Os melhores poemas de Haroldo de Campos – Global. Paulo. a ira de Aquiles – com Trajano Vieira. Noigandres. 1983 Poesia russa moderna – com Augusto de Campos e Boris Schnaiderman. 1976 A arte no horizonte do provável – Perspectiva. 1950 “Antologia de poemas” – em Noigandres 5. Difusão Cultural do Livro. 1997 Ideograma – Edusp. 1984 A educação dos cinco sentidos – Brasiliense. 1980 Dante-Paraíso – Fontana/Istituto Culturale Italiano di S. 1993 Sobre Finismundo: a útima viagem – Sette Letras. Serviço de Documentação – MEC.inscrição para um túmulo no ar faustoinfausto faustino senha sina centauramente musamente mário te recordo esta vez em teresina e um mar de alta voltagem mar divino um mar de viva aragem repristina mário o teu ar poeta-peregrino escutando a sentença da sibila que um avesso destino contra-assina e agora sob um signo teresino de azul de luz solar de sol tigrino restituído ao ar o que é do mar à lira o que é delírio à sina o hino te compagino em céu mário faustino ( poema dedicado ao poeta morto em acidente aéreo no Peru em 1962) Extraído de Crisantempo Obras de Haroldo de Campos Poesia Auto do possesso – Clube de Poesia. 1968 Mallarmé – com Augusto de Campos e Décio Pignatari. 1994 Escrito sobre Jade – Tipografia do Fundo de Ouro Preto. Brasiliense. Agir. 1981 O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos – Fundação Casa de Jorge Amado. 1998 agosto/98 . 1982 Teoria da poesia concreta – com Augusto de Campos e Décio Pignatari. 1985 Finismundo: a última viagem – Tipografia do Fundo de Ouro Preto. 1969 Guimarães Rosa em três dimensões – com Pedro Xisto e Augusto de Campos. Perspectiva. 1993 Bere’Shith – A cena da origem – Perspectiva. 1960 Panorama do Finnegans wake de James Joyce – com Augusto de Campos. Agir. 1985 Traduzir e trovar – com Augusto de Campos. 1976 Signantia: quasi coelum – Perspectiva. 1962 Servidão de passagem – Ed. Perspectiva. Nova Fronteira. 1970 “Introduções” aos vols. 1994 Qohélet/O-Que-Sabe/Eclesiastes – Perspectiva. Siciliano. Nova Alexandria. 1977 Cantares de Ezra Pound – com Augusto de Campos e Décio Pignatari. 1997 Os sertões dos campos: duas vezes Euclides – Sette Letras. 1997 Transcriação Crítica Revisão de Sousândrade – com Augusto de Campos. 1994 Deus e o Diabo no Fausto de Goethe – Perspectiva. 1971 e 1972 Morfologia de Macunaíma – Perspectiva. 1966 Oswald de Andrade – Trechos escolhidos . 1978 Transblanco – com Octavio Paz. Perspectiva. Papyrus. 1973 A operação do texto – Perspectiva. 1971 Poemas de Maiakóvski – com Augusto de Campos e Boris Schnaiderman. Comissão Estadual de Cultura. 1976 Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana – Perspectiva. 1992 Yugen: cuaderno japonés – Syntaxis. 1993 Cadumbra – Metapoemas – com Denise Milan. 1967 Metalinguagem – Vozes. 1989 Metalinguagem e outras metas – Perspectiva. 1993 Mênis. 1987 Sousândrade – Poesia – com Augusto de Campos.CULT 27 . 1979 Galáxias – Ex Libris. Ensaios de literatura e cultura – Imago. 1962 Xadrez de estrelas – Perspectiva. 1990 Hagoromo de Zeami – Estação Liberdade. 1996 O arco-íris branco. Massao Ohno. 2 e 7 das Obras completas de Oswald de Andrade – Civilização Brasileira. 1996 Pedra e luz na poesia de Dante – Imago. eles não foram raros – em que Haroldo de Campos em público apresentou a sua produção e as suas concepções. desde o futurismo. Guinsburg 28 CULT . eventos. Mas tais aparições. o primeiro cruzamento que poderia sinalizar um vínculo mais íntimo com o universo da representação dramática e sobretudo o da teatralidade é o que se deu com a encenação. detectando a poética cênica que eclode de suas colaborações com diretores como Gerald Thomas e Bia Lessa J. de uma nova linguagem poética. tanto na poesia quanto na pintura e na música. Haroldo de Campos foi chamado a contribuir criticamente e a intervir nas discussões que acompanharam os ensaios e a exibição dessa montagem cenicamente revolucionária. Já àquela altura promotor conhecido.O teatro de linguagens de Juan Esteves Haroldo de Campos O ensaísta J. e conferências.agosto/98 relação de Haroldo de Campos com o teatro tem sido vista como um fato recente e menos relevante no âmbito de sua atividade criadora. Poder-se-ia evocar como contra-exemplo os vários eventos – e. ainda que contenham uma forte componente teatral. E. e hoje histórica. récitas. são comuns às manifestações das vanguardas. quer por trazer à evidência as potencialidades teatrais de uma dramaturgia relegada pela crítica à irrepresentabilidade no palco. Com efeito. e apaixonadamente discutido. por José Celso Martinez. com maior ou menor aproximação aos espetáculos que buscam um contato comunicativo e participativo sob a forma de happening s. Na verdade. se não houver engano. quer por instaurar o A . de O Rei da Vela . a bem dizer. exposições. no que tange particularmente ao criador das Galáxias . o concretismo. o itinerário do poeta não assinala aparentemente encontros marcantes com a arte do palco. nem sempre indicam uma incursão mais estrita nas realizações do palco. Guinsburg analisa uma vertente menos conhecida da obra do poeta de Galáxias. performances . a sintaxe e as significações da criação bíblica. Para os que puderam acompanhar de algum modo essa elaboração conjunta. o de reconstruir ou mimetizar a imagística. Desta vez. de sua abstrata solidão sonora. palavra da oralidade e da escritura. a de um hebraico do poço dos tempos. não só em um corpo transterreno de Adam Kadmon. não apenas do ponto de vista da adaptação teatral do poema. A invocação. O preço deste poder. crítico e pensador para recobrar uma escritura agosto/98 . De fato. remeteu o verso transcriado em cena a um teatro-mundo. em verbo/imagem/som corporificados ao vivo e capazes de uma comunicação por todos os sentidos do corpo no aqui-agora. Bia Lessa sentiu-se tentada a encenar o texto e pôs-se a trabalhar com o poeta-tradutor no projeto. de redescoberta da projeção e do discurso teatrais como formas expressivas que se relacionam ao seu próprio projeto poético. O engajamento do escritor com o trabalho de teatralização foi bastante estreito. no ritual cênico. de um envolvimento antes literário e crítico ou. por meio de sua carnação e expressão lingüística. julgouse. havia sido o palco. a narrativa. como do corpus entrópico do cosmos no lance de dados do começar.CULT 29 . que veio a constituir-se em A Cena da Origem . quando muito. é o sacrifício de sua corporificação na ara da presentidade. cabe assinalar uma mudança no caráter da relação. Mas. Foi o que se viu e a origem se tornou cena: A Cena da Origem. um efetivo trampolim para o mergulho no fundo escuro e primevo da linguagem.espaço cênico de uma ousada renovação do estilo de montagem no teatro brasileiro. Ato primeiro do verbo. a fundir com a cabala dos significantes hebraicos a pureza primordial dos significados adâmicos. sem dúvida. do ato inaugural do ser. históricas e na vegetação interpretativa. o interesse de um dos principais paladinos da campanha de releitura e revalorização da obra oswaldiana seria explicável. quem sabe. Lívio. Novo contato de Haroldo de Campos com o teatro deu-se muitos anos depois. na dinâmica dos sonssax. e o que isto exigiu não foi pouco devido à própria natureza do relato e à rarefação religiosa e quase metafísica do discurso hebraico que lhe dá forma. permitindo-lhe transmutar a palavra. reverbo do ato um. Origem da cena no palco: Giulia Gam. O resultado desse trabalho em colaboração foi uma encenação que fez da poética cênica. Hermes e Afrodite do ser humano. a uma espécie de verbo-ação das origens. Não obstante isso. tampouco. Mas o apelo do teatro a uma poética e a um poeta do poder alquímico de uma poesia do espacial concretizado na linguagem do corpo e no corpo da linguagem do estar-aí é uma tentação fáustica. pois. como já o incitava a literária. Gênese. A troca intelectual e artística com o diretor e seu elenco talvez tenham estimulado o poeta a aproximar-se mais da caixinha mágica que o atraía com os seus prodígios desde longe. o Hazan. o propósito teatral não era. sonoridade do verbo. num partejamento origâmico. tão expurgado de metáforas e dramaticidade míticas. na recriação drama-poiesis do celebrante e do vate. da música e do ruído. como potencialidade na escritura. anedótica e folclórica que envolveu o seu tronco poético em milênios de tradição. Nada como o teatro tem o poder de fundir em quanta de representações e significações. Bereshit. tão-somente por sua preocupação com tudo o que dissesse respeito à personalidade e às criações do inventor de Serafim . E de fato. os versículos do Gênese. ainda que belamente. Haroldo de Campos remontou por sua vasta produção de poeta. pelo menos de início. Em que conte o esforço básico da encenadora para traduzir de uma linguagem para outra a composição bíblica. Mas esta empatia talvez exprima algo mais no que diz respeito a Haroldo de Campos e a seu processo de descoberta ou. transcriados pelo poeta brasileiro. na tentativa de recaptura de uma língua dos começos. corpo do sujeito e do objeto. a propósito de um texto bíblico. tornou-se perceptível o aporte do poeta na transcrição teatral. das palavras do princípio pela arqué hebraica. A subseqüente ligação de Haroldo de Campos com Gerald Thomas e as manifestações de simpatia pelas realizações do diretor foram tomadas principalmente sob a perspectiva da amizade e de uma sintonia de suas poéticas e audácia experimental na busca de inter-linguagens e re-leituras transcriativas. mas principalmente sob o ângulo da versão cênica. tão apenas nas suas filiações religiosas. tratando-se. ainda assim. lumen-luminescente. ficou evidente o fascínio que o criador literário começava a sentir ante a metamorfose ensejada pelo palco. Em suma. porém chegar. numa síntese de ação poética concreta para o que jazia. Lucilla. das vozes-sopro. a focalização fundamental. como tampouco fora o textual. de uma afinidade estética. sob a magia simpática desse contato. conjumina tudo quanto o teatro faz e sobre o que ele versa. do pragmatismo objetivista. o que se institui aqui. mas se em geral ela é insuficiente para a plena explicitação do dramático. no empenho do procurar-se e do fazer-se em confronto com as forças inerciais e/ou repressoras da memória. do contragolpe dos interesses. acima e além da fala desgastada dos valores de troca e de uso. vencida a maior das tentações. A respeito das vicissitudes do artista à procura da livre expressão criativa no azul de Glaux. neste caso a sua economia está intrinsecamente voltada para a cena. exprimindo uma afinidade congenial do poeta com a teatralidade. quando o poeta se faz um com a áureamusa. É claro que. não nos deixa dúvida. o fizemos corretamente e não estamos sobre-interpretando. Graal só poderia terminar. no reencontro do autor com a destinação de sua obra: a cena. estes dois gêneros só podem ser fundidos no palco. Trata-se de poesia. o próprio anúncio 30 CULT . E de que este é o escopo do autor. ou seja. no gesto da atuação e nas vozes encarnadas no palco. a poesia volta a dizer “sim”. ele só se entrega à fonte de sua inspiração. a luciferiana toda-luz das razões. cálice em vidro-pele de vibrações líricas. por Zé Celso eletiva que permanecera na sombra de seu percurso como um desencanto dramático. mescla de destilações simbolistas e carnavalização oswaldiana. independentemente de seu uso histórico ou estilístico. Assim. Fundamentalmente. É isto. “eu me em ti”. Não que a escritura não o faça a seu modo. Legenda de um Cálice. Na verdade. E a questão aqui vai adiante do fato de se apontar. E que isto se deu não apenas no âmbito das relações ocultas Reprodução .Sérgio Amaral/AE A diretora Bia Lessa Montagem de O Rei da Vila em 1971. sob a figura actancial de Graal. se não heterodoxa. Haroldo de Campos as invocou. Núpcias: áureamusarondinaalúvia/eu meemmimtimesmo. e não apenas a grossa materialidade das figurações grotescas. Assaltado pelo mundo do cotidiano. caberia referir o seu sentido textual às palavras de Stephan Dédalus em Retrato do artista quando jovem: “Vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte. tudo em Graal. empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio. para a tragicomédia. para que nasça uma nova linguagem poética. composto em 1952. Graal. exílio. como de fato termina. tão livremente quanto possa e de modo tão completo quanto possa. pois somente nela adquirem configuração e sentido completos. taça e sangue de criação. porém pelo embate poético das tensões. um enlace: a palavra é rompida à margem do silêncio. na verdade. deixando patente que só o teatro pode realizar o seu espaço intrínseco de representação. porque o discurso se apresenta inteiramente assumido e distribuído pelos coros. com a acoplagem realizada. com ela. Se. das seduções dos lugares-comuns do repertório de Eros. comparsas e protagonistas. que é uma das formas maiores da poesia dramática. esta bufotragédia mefistofáustica não exibe personagens civis com carteira de identidade psicológica e direito à autonomia de arbítrio. Em que pese a qualidade poético-literária da criação haroldiana. ao comentar as raízes instigadoras de sua poesia. desde logo. aureamusarondinaalúvia . na medida em que são nomeadas por um plural indefinido: Cenas. é o poeta inventor e a poesia da invenção. que aparecem de terno e gravata no tablado realista. fazendo Graal descer da aura lírica e. ao lê-la. Seus actantes clamam pela materialização cênica. vai além do Auto do Possesso (19491950). Sim. A teatralidade deste texto. Aqui é significante a contraposição entre um gênero tão marcado pela máscara e gestualidade do cômico que sua expressão só se completa no tablado e o outro. no mínimo estranha.agosto/98 no frontispício de que o seu desenrolar se dará em “Dois Atos e Cenas”. só transpareceu ao poeta agora. Mais do que texto de uma tentativa. em desenlace dramático que é. em um jogo de falas entre as dramatis personae que as entrama. tem a vocação para a especificidade teatral. para aquela unidade de composição que. A excepcional compacidade dos enunciados do poema não deve enganar. quanto à arquitetura e temporalização do texto. modos de estruturação e agenciamento das máscaras-símbolo – pois elas o são mais do que propriamente personagens – e de suas relações dialogizadas. não pela intriga prosaica das situações. com os recursos de um teatro mental. que lhe infunde peso dramático específico. para os praticáveis da cena. associa uma referência à ordem tradicional das construções dramatúrgicas e uma alusão. a leitura da peça. Mas. Quer nos parecer que já neste registro de intenções dramatúrgicas se coloca uma promessa de abertura estética em um projeto de teatralidade. do comércio lingüístico e social. O subtítulo da peça o evidencia: Bufotragédia . sutileza” 1. É o drama do poeta no teatro da poesia. mas de poesia que pretende consubstanciar o seu poder de emissão e a sua forma final além da linha da escritura. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. E ele faz coro: “que chova sobre a nossa poesia”. Sem vincular o seu pensamento e o sentido explícito da direção de Gerald Thomas a uma necessidade positiva ou a uma razão dialética. da cena.O. dando voz e gesto ao chamado. a proposta foi objeto de uma encenação experimental no Rio de Janeiro. 1943. Não é preciso retomar o debate filosófico e estético em torno do pós-modernismo. tendo despertado o interesse da crítica e a expectativa de que suscite um espetáculo finalizado. peça baseada no texto inédito Graal. ou melhor. Como seria inevitável em se tratando de Haroldo de Campos.T. 2. do nada depois de tudo. Aliás. Sem dúvida o poeta está no domínio de Dionísio. de Haroldo de Campos O diretor Gerald Thomas com a musa do teatro comprova-se pela reflexão que efetuou a propósito de M. James Joyce. uma clara consciência de teatro. desde o Teatro do Absurdo até Grotovski e Kantor. p. para a sua interpretação. Recusa-se a ver na montagem apenas uma dança do fim. não mais como uma difusa Glaux do fundo. E O PARANGOLÉ.O. agosto/98 . com todas as revolucionárias transformações que suas formas de expressão sofreram com o advento das experimentações da vanguarda histórica e. no papel e na cena. citando Bloch.R. E a invocação da vida-obra de Oiticica é tanto menos gratuita quanto identifica no teatro do régisseur da ópera seca o mesmo princípio e élan de rigorosa composição construtivista com o rito iniciático dos sentidos “na festa barroquizante do carnaval”. Haroldo de Campos elabora neste momento. Tradução de José Geraldo Vieira. nem  refazer o  itinerário  do crítico  em A M. E se é permitido aventurar-se mais um pouco.T. Legenda de um Cálice. E O PARANGOLÉ para constatar a sua profunda consonância com os omeletes à moda de Thomas nas bufotragificações que carnavalizam o Hamlet de Shakespeare no Hamm de Beckett.E.E. Evoé! É o grito que o poeta ouve ecoar.O. J.O. Um teatro que é o de hoje. 243. Pois. Muito ao contrário. já o título do ensaio o anuncia A M. começa a se lhe propor. não apenas a transluciferação das faces do pactário e dos estilos de suas máscaras. em 1997. talvez se possa entrever nessa montagem prismática. Linguagem efetiva do teatro a encenar-se como teatro de linguagens.R. sobretudo. um “pulso” de esperança. acima de tudo. porém impositivamente. trata-se da linha de um início que se revela à luz de uma teatralidade. a transluciferação de sua alegoria pelo jogo mefistofársico de suas alegorizações. disposta a ir além de todos os limites do imaginário e de exercer toda a “crueldade” trágica e cômica para engendrar as imagens. como na versão paródica de Augusto de Campos. De fato. um tríptico poético-dramático-crítico sob o tema do Fausto. fazendo taxativamente a remessa à celebração fecundante das forças criativas na vida e na arte na performance sinestésica do artista carioca. a simbiose com a linguagem do teatro.T.R. a tentação é fazê-lo reverberar sobre si próprio em um auto da criação e da danação. e como também seria de esperar. do movimento cênico após a Segunda Guerra Mundial. No foco: o poeta. Camelot. jogando-o em um picadeiro dramático onde pode virar. em metamorfose metalingüística. O apelo é entusiástico e quem o inspira é o poeta criador que se superpõe ao espectador crítico. Príncipe da Sinamarga. Retrato do artista quando jovem. com o poder das águas. O intento. . Este jogo histriônico com o amargo desespero já rodopiava ostensivamente na dança grotesca da solidão e da alienação nos diálogos de Graal . sob a direção de Gerald Thomas e com a participação de Bete Coelho e o elenco da Casa das Artes de Laranjeiras.E. discerne em seu nexo.T. as coalescências expressivas e simbólicas da alogicidade e da contingência da condição humana. onde o viver e o morrer são ligados pelo mesmo princípio ativo. poeta maior cujo trabalho inventivo sempre caminha com botas de sete léguas teóricas. barroco-medieval. Tal qual no PostScriptum que Haroldo de Campos escreve acerca do In-Memoriam de Thomas a Samuel Beckett (em Fim de Jogo). Haroldo de Campos. Ed. em termos de metalinguagem crítica. Galáxia expandindo-se em xadrez de estrelas.R. Guinsburg crítico literário. A provocação crítica destas formas reponta a cada observação crítica sobre A M. São três versões do mesmo topos urdindo as duas cenas da transcriação haroldiana 2 do texto de Goethe. com as clivagens simbolistas do Graal e alguns quadros hiper-realistas. Edições da Livraria do Globo. Embora sem alcançar uma forma inteiramente decantada e resolvida. desta vez. pelo que o projeto3 faz imaginar. Perspectiva. e ele o transfere. 3. aflora aí. a obra de Haroldo de Campos tem a dimensão poética da palavra em ato. seu autor: aquele que fala pelo corpo com o espírito. uma opção por um certo teatro. no proscênio. salta aos olhos que o texto de 1952 não é um “fim de linha”. em sua oficina de invenções. parece dispor de tal modo os seus espelhos de representação que o caleidoscópio de imagens tematizadas enforma a imagem do ator. na encenação de Gerald Thomas. Retrato de um Fausto quando jovem (1997).E.CULT 31 Nelson Almeida/AE . ao modo de Thomas e Kantor. editor e professor de estética teatral da ECA-USP Notas 1. mas. Porto Alegre.Rosane Marinho/Folha Imagem Montagem de Graal. O estudo acaba por revelar uma visão cética quanto às possibilidades de igualdade racial no país. “Tomismo e Neotomismo na Primeira República”. Utilizando documentos do Arquivo Lukács de Budapeste. o livro reúne textos em prosa. O livro divide-se em cinco partes: “Tomismo no Brasil-Colônia”. Ana Cristina Cesar foi uma das principais poetas da chamada poesia marginal carioca da década de 70. a momentânea e a do tipo múltiplo. Costa Pinto : Editora UFRJ : 308 págs. O livro de Luiz Aguiar Costa Pinto faz um retrato minucioso dos negros na cidade do Rio de Janeiro nos fins da década de 40 e ressalta as diferenças entre o racismo vigente no Brasil e nos Estados Unidos. refutando o ponto de vista do negro enquanto “espetáculo”. Marat. Martins : Cortez Editora : 328 pág. A autora analisa o romance-folhetim do século XIX na Europa.00 : As mil faces de um herói canalha : Marlyse Meyer : Editora UFRJ : 348 págs. Max Weber. enfatizando a produção de Gilberto Mendes. como Machado de Assis e José de Alencar. publicados anteriormente em edições independentes. Tomismo no Brasil faz um estudo histórico e filosófico da corrente de pensamento ligada aos textos de São Tomás de Aquino no país.00 : O tempo nãoreconciliado : Peter Pál Pelbart : Perspectiva : 196 págs. Michael Löwy nasceu em São Paulo em 1938 e vive na França desde 1969. : R$ 21. O tempo não-reconciliado – Imagens de tempo em Deleuze discute a problemática temporal própria da obra do filósofo francês Gilles Deleuze em textos sobre escritores (como Hölderlin e Proust) e outros filósofos (como Bergson. em 1982.00 SOCIOLOGIA CRÍTICA : Título 3 4 CULT . M. extraídas do diário do escritor. Primeira pulicação do conjunto das memórias de Pedro Nava. : R$ 30. cartas. Viagem ao Egito. como Frederic Rzewski. Conjunto de “retratos escritos” organizado pelo filósofo romeno Emile Mihai Cioran. John Cage.agosto/98 : Autor : Tradutor : Editora : Número de páginas : Preço . : R$ 25. “Tomismo e Neotomismo entre 1930 e 1941” e “Tomismo e Neotomismo na época atual”. Talleyrand e Napoleão. Michael Löwy reconstitui a evolução do pensamento político de György Lukács durante os anos de rebeldia intelectual do filósofo húngaro e sua adesão ao marxismo. : R$ 16.A teus pés Ana Cristina Cesar Ática/IMS 152 págs. Além de registrar suas impressões pessoais. Entre os retratados figuram políticos franceses como Mirabeau. Phillip Glass e Luca Lombardi. traçando um paralelo de influências entre escritores europeus e brasileiros do mesmo período. os ensaios da autora não economizam digressões nas inúmeras questões que levantam sobre a literatura da época. O período coincide com a fase de maior fervor criativo de Lukács. Edição ampliada do estudo Tomismo e neotomismo no Brasil. Cioran José Laurenio de Melo Rocco 252 págs. Antologia do retrato – De Saint-Simon a Tocqueville reúne perfis de personalidades francesas escritos por diversos moralistas e memorialistas dos séculos XVIII e XIX. “O Tomismo no Império”.00 : : : : Relançamento do principal livro de poemas da autora carioca em co-edição da Ática e do Instituto Moreira Salles.00 : A evolução política de Lukács: 1909-1929 : Michael Löwy : Heloísa Helena Mello e Agostinho F. que detém os arquivos da escritora. O pequeno pomo descreve a história da música do pósmodernismo. Há ainda os que se encaixam nos dois grupos (retratista e retratado). POESIA : Viagem ao Egito. Jordânia e Israel : Pedro Nava : Ateliê Editorial/Editora Giordano : 62 págs.00 FILOSOFIA MÚSICA MEMÓRIAS Tomismo no Brasil Fernando Arruda Campos Paulus 240 págs.A. As duas editoras preparam ainda a publicação integral dos cadernos de anotações e memórias de Nava ainda inéditos. e mulheres da alta nobreza francesa como a Marquesa du Châtelet. como Mme de Genlis. publicado em 1968. Escrito na forma de um diálogo socrático. A edição conta também com um caderno de fotos inéditas da infância de Ana Cristina. Originalmente uma tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Filosofia da USP. Buckinx relaciona três grandes orientações na música do pomo: a música narrativa. Ernest Bloch e Karl Mannheim. Nava completava seus textos com desenhos. Pelbart aborda o conceito deleuziano de acontecimento e discute como o filósofo investiga a noção de tempo em seus textos sobre cinema. : R$ 29.50 : O negro no Rio de Janeiro : L. Publicado pela primeira vez em 1953. Além dos poemas de A teus pés. Foucault e Nietzsche). Intelectual de pensamento marxista. sob orientação de Bento Prado Jr. Debruçados em especial sobre dois folhetins. Esta última parte foi totalmente reelaborada à luz dos novos estudos publicados durante o período. são examinadas as relações entre Lukács. Kant.00 : : : : : : : : : : Antologia do retrato E. Saint-Claire das ilhas e Rocambole. Marlyse Meyer é professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Campinas e autora de Caminhos do imaginário no Brasil (Edusp). fotos de viagens e do primeiro lançamento de A teus pés. Em apêndice. retratada por Rivarol e autora do perfil do filósofo Jean-Jacques Rousseau.. O negro no Rio de Janeiro – Relações de raças numa sociedade em mudança causou polêmica ao contrariar a tese da democracia racial. : R$ 24. : R$ 10.00 : : : : O pequeno pomo Boudewijn Buckinx Álvaro Guimarães Ateliê Editorial/Editora Giordano : 150 págs. : R$ 23. Buckinx escreveu especialmente para esta edição um capítulo sobre música erudita brasileira contemporânea. Jordânia e Israel compõe-se de anotações elaboradas durante viagem àqueles países em 1958. páginas de diário e fragmentos. Platão. R$ 25. comentários e anotações sucintas – também reproduzidos neste volume. o autor relaciona pequenas biografias de músicos representantes desta nova fase da música. Creio que os leitores gostarão de ler esta crônica agosto/98 . Paulo Werneck e Daniel.saborosa de Gustavo Barroso. ilustrado por J. 1933). extraída de seu livro Mulheres de Paris (Rio.CULT 3 5 . Carlos. A capa é também notável já pela arte. é responsável por uma das teorias mais difundidas no Ocidente: a idéia de que a função poética da linguagem consiste na ambigüidade da mensagem mediante o adensamento do significante. assim como há objetos concebidos como poéticos e percebidos como prosaicos. depois que um teórico de orientação marxista.agosto/98 Reprodução Movimento que desencadeou uma abordagem O lingüista russo Roman Jakobson Um dos marcos da moderna teoria literária encontra-se no ensaio “A arte como procedimento”. Introduz. Movido pela pressa e pelo empenho em . Como se sabe. outro integrante fundamental do Formalismo. nos próximos ensaios. coautor do material didático do Anglo Vestibulares de São Paulo (onde lecionou literatura brasileira durante mais de 20 anos) e autor de Apresentação de Machado de Assis (Martins Fontes) e Mecenato pombalino e poesia neoclássica (a sair pela Edusp). se apropriou dos princípios do formalista russo em sua Teoria literária (1983). escrito em 1917 por Vítor Chklovski. entende a língua poética como uma oposição ao cânone literário dominante. abordou a retórica de Aristóteles e Quintiliano. O primeiro ensaio. sintático e fonológico Série destaca as principais tendências da crítica literária “Fortuna Crítica” é uma série de seis artigos de Ivan Teixeira sobre as principais correntes da crítica literária e das teorias poéticas. princípio desenvolvido a partir de pressupostos de Chklovski. da Ateliê Editorial. publicado no número 12 da CULT (julho). atualmente o manual mais popular dessa disciplina na Inglaterra. 3 6 CULT . a noção de que o valor artístico de uma obra decorre não apenas de sua estrutura verbal. Ivan Teixeira é professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP. Chklovski define a arte como a singularização de momentos importantes.F O R T U N A C R Í T I C A Ivan Teixeira 2 O FORMALISMO RUSSO lingüística da literatura teve Jakobson e Chklovski entre seus representantes e procurou mostrar como o texto poético instaura a consciência formal do discurso literário em seus níveis semântico. do new historicism e do desconstrutivismo. Chklovski é o desencadeador da abordagem lingüística da literatura. pois seu ensaio foi o primeiro a sistematizar a idéia de língua poética como um desvio da língua cotidiana. com isso. na vida prática. o morfologista russo instaura uma espécie de teoria da relatividade na avaliação da arte. Em rigor. porque. Essa noção tornouse consensual após os estudos de Victor Erlich nos Estados Unidos (1955) e. Nesse sentido. as coisas se tornam imperceptíveis em sua totalidade. os momentos tornam-se importantes somente depois de submetidos ao processo de singularização artística. não existe valor artístico em termos absolutos. serão apontadas as diretrizes do new criticism . pois afirma que há objetos concebidos como prosaicos e percebidos como poéticos. O presente texto delineia o formalismo russo e. sobretudo. Tem se dedicado a edições comentadas de clássicos – entre eles as Obras poéticas de Basílio da Gama (Edusp) e Poesias de Olavo Bilac (Martins Fontes) – e dirige a coleção “Clássicos para o vestibular”. mas também da maneira como é lida. Roman Jakobson. cuja apreciação necessariamente implica uma teoria do conhecimento. Conforme essa perspectiva. Terry Eagleton. Da mesma forma. do estruturalismo. De fato. que é o conjunto de atitudes rumo ao desvio da linguagem comum em favor do insólito e do impressupõe um mínimo de vivência com o previsto. Se algo aspira à condição de enunciado artístico. Assim. Numa palavra.essa idéia dominou as preceptivas seiscentistas. Contrariando essas noções. Embrionária em Aristóteles. precisa ser dito de forma impressionante. Conforme esse prin. em nome da rapidez. Por essa perspectiva. o desconforto dos enunciados inovadores integra o complexo de propriedades que atribuem valor estético ao texto. Nesse sentido. por virtude do marapoetas simbolistas. dos objetos e das situações. a concepção do senso comum segundo o qual literatura é expressão imediata da vida. A lei da economia das energias reduz tudo a números ou a volumes sem identidade. cabendo aos períodos e aos respectivos autores apenas a seleção de velhas imagens em novas combinações. onde se lê que o poeta reveste suas nava na Rússia a idéia de que fazer arte é matérias “de tal maneira e lhes dá um tal pensar por imagens. conceito de literatura enquanto orga. dificultoso e lento. onde o ponto do condor negreja. as imagens são um (1833-1902). em sua Arte poética D’olhos Antes do ensaio de Chklovski. domi. a finalidade da arte é gerar a desautomatização. anula-se a intensidade do ato de conhecer. agosto/98 .imediatizar o cotidiano. Ao contrário do convívio cotidiano com as coisas. o homem acaba por perder a consciência individual das ações. como ocorre nesses versos de Sousândrade. como se o texto não fosse um simulacro convencional de signos. a principal função da arte seria restaurar a intensidade do conhecimento. Esse processo – pensa Chklovski – resulta na automatização da vida psíquica.vilhoso e esquisito artifício. Chklovski negou a idéia da imagem como instrumento conhecido para se atingir o desconhecido. princípio defendido colorido que aparecem cheias de novipelo teórico Potebnia e incorporado pelos dade e de beleza. processo que objetiva o máximo de rendimento com um mínimo de atenção. enfim. Por isso. responsável pela melhor entendida. o convívio com a arte deve ser particularizado. dificuldade que atribui denpressupõe uma idéia formalista sidade à percepção estética. Nesse sentido. Ao contrário. abreviam-se palavras. mediante o estranhamento ou a singularização da estrutura que o artista oferece à contemplação. a imagem devia ser mais simples do que aquilo que explica. chegando até o século XVIII. cuja diante a produção do estrapoesia.CULT 3 7 . desenvolvem-se esquemas para tornar mais rápida a superação dos compromissos e dos contatos com as pessoas. a função da imagem é procurar da pintura e do novo ornato poético que semelhança entre coisas diferentes para lhes deu”. em busca da restauração do ato de conhecer. as coisas possuem importância apenas quando reconhecidas. as imagens são essencialmente as mesmas ao longo da história. Tomando o texto poético como metonímia de arte. nização de signos: quando encontrou clara expressão em Lá. o morfologista russo entende que a particularização do texto decorre de técnicas específicas aplicadas às palavras. sintático e fonológico: instaura-se a consciência lingüística da literatura. cuja decodificação facilitar o conhecimento. da vivacidade cípio. o artista deve criar situações inéditas e imprevistas. em seus níveis semântico. Pela perspectiva desses teóricos. promovendo a virgindade dos contatos e o encanto da descoberta. Desfaz-se. da literatura como Elas são uma das possíveis organização de manifestações da idéia de signos procedimento artístico. Nele. O escritor Joaquim Segundo a teoria de de Sousa Andrade Chklovski. para ser nhamento. pois. a história dos estilos e das escolas basearse-ia no estudo das imagens características de cada autor nos diversos períodos. criam-se siglas. dos dispositivos pelos quais o conhecido como poeta singulariza o texto. meSousândrade. vertido para o português por Cintilando no espaço como brilhos Francisco José Freire. esvaindo-se o entusiasmo da descoberta. O próprio conceito de aprendizado pressupõe o uso automático das noções e dos movimentos. assim como demonstrou que os autores e as escolas não criam as próprias imagens. Muratori.(1759). Por isso. os seguintes versos de Sousândrade servem de exemplo de enunciado poético. O simples fato de uma ação se tornar habitual basta para desencadear a inconsciência em quem a executa. quando ainda integrava o grupo dos formalistas russos. mas todos. os procedimentos buscam suas matérias. cujo resultado é a forma literária. mas como um modo especial de articulação da linguagem. na década de 10. em que a perspectiva de um defunto é responsável pelo estranhamento do texto. mas o de um cavalo. Ao questionar a arbitrariedade da terminologia da crítica precedente. alguns sim. Conforme essa visão. elimina-se a idéia de que as matérias podem ser incluídas ou excluídas de um texto. capaz de conduzir o leitor ao centro da narrativa: E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.. Dentre os inúmeros exemplos de procedimento literário. Na literatura brasileira talvez o exemplo mais evidente de procedimento artístico bem-sucedido se encontra nas Memórias póstumas de Brás Cubas. Com isso. – É impossível. fenômeno que automaticamente a insere num código de referência literária. buscando o máximo de veros- . pronunciado quatro vezes em diferentes tons de surpresa. que passou a ser definida como uma estrutura sígnica contrária ou divergente do padrão dominante. o morfologista enumera diversas acepções do termo e acaba por demonstrar que ele é praticamente nulo enquanto categoria descritiva. mas também em Jakobson. cuja idéia de valor é rigorosamente relativa. categorias preexistentes ao tema da loucura mal interpretada. se tornar corriqueiras e previsíveis. o leitor é convidado a sentir o mesmo espanto dos moradores. de estranhas e desautomatizadoras. Será sempre o resultado da adequação entre procedimento e matéria. como se fossem o conteúdo de uma garrafa. Até então.agosto/98 sonagem (leitor incluso). De modo geral. responsável por uma instigante teoria relativista da noção de Realismo. cujo espanto com o recolhimento dos loucos fora tão grande quanto com a súbita libertação deles: conhecedor do assombro em que vivia a cidade. A abertura do capítulo XI de O alienista também se constrói conforme o princípio da singularização. – Todos. O relativismo da percepção do objeto artístico encontra apoio não apenas em Chklovski e Boris Tomachevski.Transcendendo os limites das figuras e dos tropos. pois leva em conta tanto a estrutura verbal do texto quanto a percepção do leitor e o eventual desgaste das formas. o morfologista menciona o caso da novela Kholstomer. deixando a posição de espectador para assumir o estatuto de per3 8 CULT . entendida não mais como um discurso ornado e ficcional que visa à imortalidade. A desautomatização decorre também da reiteração intensiva do vocábulo todos. a literatura nunca é sobre coisas ou situações. escrito na fase inicial do teórico. O estranhamento provocado pelo texto decorre sobretudo da inclusão do leitor no universo dos habitantes de Itaguaí. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à câmara. cujas observações sobre os homens produzem um relato carregado de imprevisibilidades. de Tolstoi. Assim. jamais se chegara a um conceito tão relativo do valor da obra de arte. A abordagem tradicional afirma que O alienista é uma novela sobre a falácia da ciência. – Todos? – Todos. a precariedade do conceito de O romancista russo Leon Tolstoi (1828-1910). Os formalistas colocariam o problema de outra forma: as incertezas da ciência e a arbitrariedade dos governos são um dispositivo para o exercício da alegoria. então empregado com muita imprecisão.. objeto de análise morfológica do lingüista Chklovski loucura e o autoritarismo dos governos. autor da novela Kholstomer. com o passar do tempo. o termo se refere a obras que aspiram a reproduzir fielmente a realidade. a concepção de procedimento artístico de Chklovski pode consistir em qualquer agudeza favorável ao estranhamento da disposição e da elocução da matéria: qualquer escolha e combinação que transmita a sensação de surpresa e espanto. apresentada no artigo “Do realismo artístico”. Jakobson exemplifica essa crise mediante o exame do vocábulo realismo. Surge daí um conceito funcional de literatura. A motivação inicial de Machado teria sido a formulação da sátira ou do escárnio alegórico. que. em que o ponto de vista não é o de um ser humano. Com extremo rigor lógico. podem. Edimburgo. Dostoiévski e Aluísio Azevedo. os simbolistas. Porto Alegre. Scottish Academic Press. Paris. 1969. convém lembrar que até a poesia concreta. segundo o qual os autores propõem suas obras como verossímeis.CULT 3 9 . essas obras podem facultar ao crítico a interpretação delas como distantes da realidade e próximas dos clichês. In: Russian formalism – A collection of articles and texts in translation . O escritor alemão Novalis (à direita) expressou a idéia de que. quanto mais poético o enunciado. Bowlt. Para os críticos de vanguarda. quanto mais poético é um enunciado. editado por Stephen Bann e John E. apresentados e traduzidos para o francês por Tzvetan Todorov. não só não incorpora o real como também se afasta do padrão de bom gosto. • “Narrative composition: a link between german and russian poetics”. em nome do realismo. • Teoria da literatura: formalistas russos. editado por Philip Rice e Patricia Waugh. Novalis. agosto/98 . Entre nós. Zola. por se filiarem a um padrão tradicionalmente aceito como tal. proclamou que. afirmando (e nisso consiste o aspecto mais interessante do ensaio) que todas as escolas literárias fundamentam suas posturas com a idéia da incorporação do real: assim procederam os românticos. um escritor revolucionário pode se afastar do cânone vigente como meio de se aproximar da realidade. mais ele representa o real – formulação que teve forte impacto sobre a noção de realismo de Roman Jakobson • Théorie de la littérature: textes des formalistes russes . Como conclusão. Arnold. o que foi enfim suficientemente demonstrado pelo estudioso tcheco Lubomír Dolezel. 1971. prefácio de Roman Jakobson. Mas exatamente por se vincularem a um cânone já estabelecido. Editora Globo. 1996. os impressionistas e os expressionistas. Jakobson propõe que se tome o termo realismo como um código convencional segundo o qual as diversas gerações procuram validar seus experimentos poéticos.similhança. A cristalização típica dessa tendência observa-se na escola artística representada por Flaubert. • Russian formalism: history. doctrine . para os conservadores. O ensaio de Jakobson estuda inúmeras outras acepções do termo realismo. ao romper com a linguagem discursiva. B I B L I O G R A F I A • Modern literary theory: a reader . Os românticos alemães afirmavam que o reino da fantasia é a própria realidade. The Hague/Paris. mediante a investigação do contato da poética russa com a tradição dos retoricistas germânicos. de Lubomír Dolezel. entendida não no sentido clássico de adequação entre matéria e gênero literário. Éditions du Seuil. cuja estrutura sígnica deve ser apreendida com toda a consciência das convenções intrínsecas a seu modo de ser. Pelo que fica exposto. de Victor Erlich. Nessa mesma dinâmica. Mouton. em particular. Londres. 1973. uma obra dessa espécie será de fato realista. 1965. propondo deformações grosseiras como índices de incorporação do real. os realistas. organização de Dionísio de Oliveira Toledo e prefácio de Boris Schnaiderman. Mas não deixa de explicitar que a realidade não se confunde com a arte. Seuffert e Dibelius. Além desse sentido. o fez sob o pretexto da incorporação de certos traços dinâmicos da realidade industrializada. reunidos. evidenciam-se diversas conexões do método formal com a retórica antiga. mas na acepção contemporânea de semelhança com a verdade referencial. há um outro. tanto mais real. representada sobretudo por Schissel. os futuristas. ) foi determinado (. Poderíamos citar Homero e sua Odisséia (séc.em desenho de Johann Moritz Rugendas. de Voltaire (1759). 1911. Darwin. Os enfoques são igualmente variados. exploram lugares pouco conhecidos e divulgam suas impressões em livros que normalmente têm boa acolhida do público. analisa e antevê mudanças sociopolíticas em alguns países do Velho Continente. como fez Heinrich Heine. Os exemplos são muitos e díspares. outros se detêm num determinado interesse científico.. Destas. Há as reportagens de viagem pura e simples- mente. Mas é especialmente no sincretismo de elementos científicos. . de Montesquieu (1721). uma paciência ilimitada para refletir longamente sobre qualquer assunto. como a zoologia.História Rua direita no Rio de Janeiro. a botânica ou a antropologia.. Alguns viajantes preferem relatos pessoais. que. de Hans Magnus Enzensberger (1987). VI a. pessoais e literários que parece residir a fascinação que vêm exercendo os relatos de viagem ao longo dos séculos.agosto/98 de mais este prazer que proporciona a leitura. e uma boa porção de invenção e de senso comum. pelo diário ou até pela mistura de prosa e poesia.C. artista e viajante que veio ao Brasil duas vezes ao longo do século XIX Terra Estrangeira Claudia Cavalcanti Meu êxito como cientista (.) por qualidades e condições complexas e diversificadas. a historiógrafa Miriam Moreira Leite se detém num dos mais fecundos momentos da literatura de viagem. zelo para observar e colecionar dados.).. Em Livros de viagem – 1803-1900. a partir de observações in loco . ou para Cândido. saltar para Cartas persas. citado em Livros de viagem Desde muito tempo os viajantes correm o mundo. e chegar em A outra Europa. São muitas as formas literárias possíveis dentro desse gênero. que inaugurou uma estrutura literária que chega a influenciar obras modernas que têm como tema viagens reais ou não.. as mais importantes foram o amor à ciência. curioso por desfrutar 4 0 CULT . há a opção pela forma epistolar. Essas duas vertentes dos livros de viagem (que algumas vezes se cruzam. sobre cujos objetivos não sabiam ao certo (Humboldt nunca entrou no Brasil.” Por outro lado. seria preciso interrogá-las e elas nunca estão dispostas a responder. um erudito e humanista que esteve no Brasil entre 1815 e 1817 e dedicou toda sua vida à pesquisa da América. como conta a baronesa de Langsdorff em seu diário: “Muitas vezes. no caso de vários deles (em sua grande maioria europeus – ingleses. além de propiciar conhecimentos que os compatriotas daquela época ainda não tinham condições de oferecer. Alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. os habitantes locais se comportavam com extrema desconfiança frente aos visitantes estrangeiros. e cita a interessante lição que o historiador Lewis Hanke deu a Sérgio Buarque de Hollanda. do século XIX até nossos dias. as cartas de Binzer se tornaram. A autora pondera ter sido o estrangeiro “um observador mais atento. deixa clara a inegável contribuição dos viajantes para a difusão. quando este chegou aos Estados Unidos em 1941: a de escrever sobre o país nos três primeiros meses após a chegada. já que houve viajantes naturalistas do sexo feminino. a leitura desses livros não deixa de ter um sabor exótico e familiar ao mesmo tempo. Os dois pontos principais de análise em Livros de viagem. Parece pouco. além de americanos). franceses. surgidos com os relatos de viagem. como o da indolência da população branca ou a reclusão da mulher. por exemplo. da cultura e da riqueza natural locais. Apesar de dedicar algumas páginas ao seu trabalho. em cuidadosa edição. Outra observação pertinente de Moreira Leite leva a compreender melhor o que às vezes não gostamos de ver escrito sobre nós mesmos. cuja maioria confessou nunca ter convivido no seio de uma família do país. Tal dificuldade foi causa de alguns estereótipos sobre a vida no Brasil. As cartas que escreveu a uma amiga são uma narrativa bem-humorada de uma alemã de 22 anos que deu aulas na capital e no interior do Rio e São Paulo. Miriam Lifchitz Moreira Leite se detém num dos mais fecundos momentos da literatura de viagem. em pouco tempo de estada. como por exemplo quando fala das dificuldades dos visitantes em compreender.Em Livros de viagem – 1803-1900. a jovem Ina soube aproveitar esse convívio ao relatar a uma amiga os percalços de seu dia-a-dia. ainda jovens. mesmo não pertencendo eles à nobreza ou à alta burguesia. agosto/98 . Discípulo de Humboldt. o príncipe percorreu parte da costa brasileira a pé. como a austríaca Ida Pfeiffer) não poderiam ter sido analisadas nem entendidas pelo leitor não fossem algumas observações introdutórias extremamente cabíveis da pesquisadora. Com um tema tão amplo e diversificado. para compreender. como preceptora de filhos de fazendeiros. teria sido impossível à autora analisar todas as obras escritas e/ou editadas naquele período sobre o Brasil. assim. não será em Livros de viagem que o leitor ficará conhecendo um pouco mais sobre o príncipe alemão Maximilian WiedNeuwied (1782-1867). certos hábitos africanos/ brasileiros/portugueses que lhes eram estranhos. Apesar dos erros e mal-entendidos de outrora.CULT 4 1 . ou só depois de dez anos. ou se chegaram a viver. A concisão necessária em livros de análise como o de Miriam Moreira Leite fatalmente deixa de lado detalhes interessantes sobre a contribuição efetiva dos viajantes naturalistas em terras brasileiras. sob o título Os meus romanos. capaz de perceber o que para os contemporâneos era imperceptível. numa imobilidade que me parece sobre-humana e num silêncio que me parece eterno. se concentram nas mulheres viajantes e na sua abordagem sobre as mulheres brasileiras e nos viajantes naturalistas e sua caracterização. mas. Para os brasileiros. e só os recebiam na própria casa quando acompanhados de carta de recomendação – podendo esta ser uma das razões da tão propalada reclusão das donas de casa “portuguesas” (entenda-se “brancas”). às vezes sequer visitado uma. Com o passar dos anos. analisando os relatos sobre o Brasil feitos por mulheres e naturalistas do século XIX especialmente no que diz respeito à atenção dispensada pelos viajantes à América do Sul (encorajados e orientados pelas pesquisas de Alexander von Humboldt) e mais especificamente ao Brasil. alemães –. mas não é. por demais evidente”. Livros de viagem . Ao contrário de outros viajantes. ao avistar mulheres. acusado de ser espião inglês nos idos da revolução em Pernambuco e nem por isso desistiu de suas pesquisas. foi preso por engano. como observa Moreira Leite. eu me pergunto se essas naturezas já estão mortas. “documentos preciosos para a história da família brasileira e para a compreensão da escravidão no limiar da Abolição da Escravatura”. Há poucos anos a editora Paz e Terra reeditou o relato epistolar da alemã Ina von Binzer. por haver a suspeita de se tratar de um espião). Ina von Binzer. Goethe. os resultados iconográficos de sua pesquisa tiveram edição de luxo para poucos.Interior de uma casa de ciganos (Rio de Janeiro. Charles Darwin. tornando-se objeto do desejo e da admiração do público alemão. aquarela de Jean Baptiste Debret Livros de viagem – 1803-1900 Miriam Lifchitz Moreira Leite Editora UFRJ 263 págs. 468 pássaros e 82 mamíferos. por exemplo.agosto/98 . 1823). aquarela de Debret 4 2 CULT . Debret e Rugendas. assim como. o Príncipe Neuwied. anos depois. Maria Graham. nos deslocam para sua viagem brasileira: a singularidade de seus objetos de pesquisa parece concorrer com sua representação artística.” Wied-Neuwied. estava entre os entusiastas do trabalho do viajante naturalista: “Os desenhos de Vossa Alteza. que também escreveu relatos de viagem. Martius. 80 tipos de anfíbios e répteis. Em tempos de comemorações pelos 500 anos de descoberta. Ao voltar para a Alemanha. os dois últimos como ilustradores. do francês e do inglês. foram viajantes dignos do agradecimento dos brasileiros pela enorme contribuição que deram para que o mundo e nós mesmos conhecêssemos melhor as terras brasileiras.00 Wied-Neuwied catalogou. 1823). – R$ 25. que tal dedicar parte dos louros a estes homens e mulheres do século XIX? Claudia Cavalcanti tradutora e crítica literária Loja de rapé (Rio de Janeiro. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ POESIA O CHEVROLET e outros poemas Ruy Proença ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ agosto/98 .CULT 4 3 . A língua bífida. Procuram chegar ao sítio onde quem come cebola voa. c o m . Asas de gigantesco morcego.agosto/98 . As ventas semi-oblongas no focinho [de monoceronte aperfeiçoadas com precisão genética para expelir à máxima potência o fogo de suas turbinas. Contudo.m a i l : l e m o s p l @ n e t p o i n t . tutu-marambá. Lá é pindorama: os asmáticos andam de bicicleta ao [vento os besouros rebocam caixas de fósforo as lesmas desfazem-se no sal. S ã o Pa u l o . S P. o crânio achatado. interligadas eletricamente com os [olhos sangüíneos e com as garras pontiagudas de águia. O endereço da revista CULT é R u a R u i B a r b o s a . gravado no formato Word). mística. b r 4 4 CULT . O corpo longo e escamoso de serpente construído meticulosamente ao longo [dos anos anel por anel apoiado em sólidas patas de lagarto.OS 4 ELEMENTOS FRESTA Os olhos e atrás deles o corpo procuram sempre uma passagem para outra margem.0 1 0 . ativa como um metrônomo hipnoti[zante. 7 0 . Lá ninguém pensa em dormir. quem come beterraba vira ventríloquo. Quando o medo pega na cacunda uma cantiga de ninar vem com a brisa do pomar. A GALINHA a galinha tem pavor ao mar e mal sabe dar braçadas no ar a galinha tem garras pontiagudas para plantar-se no chão e desejar-se raiz a galinha cisca o terreiro e a cal do muro e mal distingue a quirera do sol que levantou-se no passado e migra para o escuro ciosa do ovo perfeito pois nele guarda o futuro estende sua teia de nervos e estaca como um pára-raio choca como uma árvore dia e noite para ver maduro seu fruto e quando um pé-de-vento põe a poeira em remoinho lá está ela comandante louca de olhos esbugalhados ancorados no seco da tempestade A engenharia da cabeça comprida. as pálpebras móveis e as mandíbulas enormes de jacaré entrevendo-se a grade de caninos. Os originais – contendo no máximo 150 linhas de 70 caracteres – serão avaliados e selecionados pela equipe da revista CULT. Vem e nos devolve o que nos é de direito: a coroa e o cetro da alegria. com reto[ques bíblicos. Os trabalhos e os dados biográficos do autor (incluindo endereço e telefone para contato) podem ser enviados via e-mail ou pelo correio (neste caso. contos e textos literários inéditos. uma berceuse de Frederyk [Franciszek Chopin fá-lo-á adormecer como uma joaninha. [maciça. bicho-papão. O menor atrito ou ruído pode desencadear sua natureza bélica. C E P 0 1 3 2 6 . e . quase [blindadas. Nome: dragão. A revista CULT publica mensalmente a seção CRIAÇÃO – um espaço destinado a poemas. com dispositivos de permanência [subaquática. Lá é rosicler: as aranhas usam colares de orvalho o boi zebu chama-se Quasímodo a galinha garnisé Anastácia (Anastácia morreu bem guardada dentro do criado-mudo). os originais impressos devem obrigatoriamente ser acompanhados pelo texto em disquete. Lá a morte tem seus nomes: cuca. O milagre foi banido de onde não existe pecado. Nada a fazer senão aguardar a hora da execução. Um velho poema que não envelhecera. e participa desde 90 do grupo Cálamo de criação poética agosto/98 . (Dêem-me de beber que tenho sede!) O OLHO o olho perdido na batalha um rato trouxe-o de volta preso entre os incisivos de bom grado é recebido o forasteiro ilustre: merci. Tudo em verdade é sem esperança. Não poder sentir as raízes abrindo à unha a terra da carne. O CHEVROLET O poema estava lá. A imagem central era clara: um Chevrolet bege anos 50 de linhas arredondadas. Devastado interiormente nem foi bomba a causa. merci. O corpo do universo em nada imita o corpo da mulher. A velha pasta verde na estante no fundo da pilha. No retrovisor o que ficava: o novelo de poeira desenrolado a velha estrada de terra. Quando o fogo apaga-se paisagens desoladas acumulam-se de rochas prenhes. Não poder contemplar os bois amassando as costas dos morros. monsieur le souris! merci. c’est mon oeil de poète! refeitas as conexões elétricas reaparafusado em sua órbita o olho restitui o olhar novamente se vê o cemitério de palavras até as mais faiscantes um dia encontram seu fim urge provocar o amor entre as mais [jovens para o bem da preservação da espécie Ruy Proença poeta e engenheiro de minas. nasceu em São Paulo em 1957.CULT 4 5 .O MUNDO É MINERAL O mundo é mineral. Sou um louva-a-deus sem altar. Entrei. Antes fosse a cegueira minha companheira. dei [a partida. é autor de Pequenos séculos (Klaxon) e A lua investirá com seus chifres (Giordano). estranho detalhe. Os pneus faixas-brancas rodando as marchas passadas. Talvez a cabeça de Deus tenha rolado para planícies mais [amenas. sentei ao volante. Só o vento dança a anônima valsa do gás carbônico. Enquanto ganhava altura o destino entrevisto chamava-se [Plutão. Um único poema na pasta. verdadeiro nome do autor de Os cantos de Maldoror. Até a causa de sua morte não é bem esclarecida. mas nenhuma delas pode ser confirmada.Literatura Literatura Francesa Francesa LAUTRÉAMONT o conde negro da poesia Marcello Rollemberg Sai no Brasil a Obra completa de Isidore Ducasse. – R$ 29. Sobre ele sabe-se pouco ou quase nada. Questroi et Cie. Porque sabe-se. aos 24 anos. outros escritores só têm seu reconhecimento estabelecido depois da morte e. Não mais do que isso. Assim como determinados autores ganham fama e prestígio ainda em vida. Todas as três opções fazem sentido. onze anos depois. foi mandado para a França para fazer seus estudos no liceu. um ano depois. Isidore Ducasse morreu em 1870. sofrido uma overdose ou sucumbido à saúde fraca. Apenas que nasceu no Uruguai. o pseudônimo literário de Isidore Ducasse. mesmo assim. ainda. já que não consta do atestado. escreveu algumas cartas e teve seu atestado de óbito assinado a 24 de novembro de 1870. Esse é bem o caso do Conde de Lautréamont. recebendo sua aura de gênios em um momento em que ainda podem desfrutar dela com muita conveniência. Alter ego deste.00 4 6 CULT . a primeira parte de um livro que tornaria seu pseudônimo célebre. de pais franceses. em 1846. Foi com esse livro que Ducasse/ Lautréamont entrou para a história da literatura. Entre a sua ida para a França com seus pais e sua morte. mesmo que muitos anos mais tarde : Os cantos de Maldoror. A razão é aA . envolvido em uma profunda timidez e praticamente sem biografia. apesar de essa entrée ter sido tardia. cuja escrita abissal e perversa sobreviveu a sua obscura biografia Obra completa Lautréamont Tradução de Claudio Willer 320 págs. desconhecido. por vezes devem esperar um bom tempo para que seu trabalho seja de fato respeitado. que em agosto de 1868 Ducasse entregou à gráfica Imprimerie Balitout. Poderia ter se suicidado. acabou tendo uma trajetória pessoal – por assim dizer – bem mais rica que a de seu criador. Ou quase isso. há apenas o vazio. ter sido editado na Bélgica integralmente pelos editores Lacroix e Verboekchoven. o livro pode ter tido sua primeira parte entregue em 1868 na França e.agosto/98 literatura universal tem casos curiosos. mas muita pouca gente o leu na época. Afinal. por retorcer o texto próprio e alheio – sem fazer plágio. de mais de 50 páginas.. um volume importantíssimo que encerra não só todos os seis longos cantos de Maldoror. publicada pela extinta Editora Vertente (uma segunda edição saiu 16 anos depois. também sob sua responsabilidade). Não é daqueles trabalhos que. Mas nunca da forma que Lautréamont fez. Com Os cantos isso não aconteceu. Willer não só traduziu todos os textos conhecidos de Lautréamont para esta edição da Iluminuras. do “Canto segundo”: “Ó vós.. é o seu mérito.. por exemplo.. Melhor definição. por mais desnecessária que pareça a afirmação –. É por razões assim.. Uma outra forte característica da obra de Lautréamont é a apropriação quase indébita que ele fez do trabalho de outros autores. ele próprio. com o viés homossexual que o autor imprimiu a seus escritos – por mais que tenham sido bem atenuados para a publicação. Momentos. impossível. de modo algum. mais de um século depois de sua malfadada primeira edição. Os tempos podiam ser arriscados para maiores vôos. literatura e vida. Trata-se do poeta. para que ainda tivesse a coragem de renovar. como também fez um alentado ensaio crítico-biográfico a respeito de autor e obra. contudo.) completando-os e indicando bibliografia. ao preparar esta publicação. Organizador da primeira edição de Os cantos de Maldoror no país. os grandes (re)descobridores do trabalho de Lautréamont nesse século.simples: o volume de Os cantos praticamente não circulou. autor de necessários (Ateliê Editorial) agosto/98 . é verdade.. Dessacraliza grandes cânones para criar.) Eu o disse. como esse. o novo prefácio acabou por tornar-se quase um livro. fazer que eu conheça vossa alma com a ajuda da linguagem. em 1970. Em um mar de citações enviesadas. Como fez com o Hamlet. o bastante de pesadelos sugou avidamente minha garganta. “a história da poesia moderna é a de um descomedimento.) assim como a questão das relações entre texto e biografia. pela Max Limonad. Marcello Encontros Rollemberg jornalista e poeta. Breton e seus colegas ficaram encantados com a poesia em prosa de Lautréamont. ele inverte o jogo. como também as cartas e as Poesias escritas pelo autor que muitos consideram maldito mas quem conhece bem acha genial. na verdade. no “Canto primeiro”. acontecidos alguns anos antes. se chocaram na época do lançamento. frise-se. Dizer que ele estava à frente de seu tempo pode ser um chavão. Contudo. ele transforma. ele continua instigando. com a agudeza de suas críticas e com a escrita abissal e perversa que ele imprimia a seus textos. que vossa laringe imóvel não vá esforçarse para ultrapassar o rouxinol. Para muitos livros assim. quando estiverdes a meu lado. Os processos contra Baudelaire (devido a suas Flores do Mal) e Flaubert (por Madame Bovary). é que a obra de Lautréamont chocou há um século e hoje nos parece tão atual. ensaísta e tradutor Claudio Willer. Imaginem se Ducasse/Lautréamont não tivesse tido essa preocupação.” Força e lirismo adequados a uma aparente linguagem difícil para nãoiniciados. para sua própria arte. parodia e satiriza aquilo que pareceria intocável. criação e loucura”. prosas e poemas para seu próprio prazer. entre tantos. sua voz muito particular. mesmo em pensamento. anos depois mostraram-se inofensivos como cordeiros. Afinal. desde a visão que me fez conhecer a verdade suprema. Ele acabou influenciado e apaixonado pela obra do conde negro da literatura francesa da mesma forma que um grupo de autores inquietos do começo do século (responsáveis. E o livro do Conde de Lautréamont era um grande risco. pela formação do poeta e tradutor) também o foram. perigosos eram os tempos em que chegaram às livrarias. que me persegue sem trégua com a lembrança. como disse o mexicano Octavio Paz (outro cultuador do trabalho de Ducasse/Lautréamont). mais ainda. quase um livro dentro de outro livro. Contribuíram para isso as décadas de convivência com a obra de Lautréamont (. mas é muito apropriado para o autor que tanto tem influenciado poetas de todos os naipes neste século. Filosofia à beira da cova pode não ser uma grande novidade – outros autores depois do bardo de Stratford lançaram mão do expediente.CULT 4 7 . foram. seja quem fores. também eles. A relação de Willer com Lautréamont não é aleatória nem trata-se de uma descoberta sem referências. Os surrealistas. Este. de Shakespeare. É um trabalho de muito fôlego. Seus editores ficaram assustadíssimos com a força do texto de Lautréamont e. e que não procureis. Ao lançar mão de textos que não eram seus. com sua imaginação ensandecida. até ingênuos. os sofrimentos que experi- mentei nessa hora infernal. apenas atualizar prefácios anteriores (. Um desses grandes conhecedores de Lautréamont é justamente o responsável pela publicação de toda a sua obra no Brasil. explica o tradutor na apresentação de seu trabalho. no diálogo com um coveiro a respeito da vida e da morte nos cemitérios. O astro negro de Lautréamont preside o destino de nossos maiores poetas”. Até hoje. mas o texto era – e continua sendo – bem incisivo. e não exatamente seu conteúdo. capitaneados por André Breton. que as cordas de vossa glote não deixem escapar qualquer entonação. mas que ganha forma e luz (por mais que pareça ter saído da noite) no instante da criação poética. O leitor brasileiro tem agora a chance de tirar suas dúvidas a respeito desse trabalho seminal de Ducasse/ Lautréamont com o lançamento de sua Obra completa (Iluminuras). “Pretendia. pelas noites e pelos dias. (. ainda pareciam muito recentes e continuavam provocando estilhaços para que qualquer editor ousasse correr certos riscos. albert camus redescoberto agosto/98 .CULT 53 . ” A frase de Sartre – parte de uma troca pública de cartas em torno do livro O homem revoltado (1951). você era o futuro. em meio a uma polêmica que selou a ruptura ruidosa entre Sartre e Camus. de Camus – contrapunha o escritor que havia revolucionado a literatura francesa com O estrangeiro (1942). pode-se dizer de Sartre o que ele disse de Camus. e que participara ativamente da Resistência ao nazismo. em 1994. Hoje.agosto/98 Reprodução . ousava defender princípios morais de não-violência e o fundo metafísico de toda revolta (o que. a obra de Camus atravessa nos últimos anos uma espécie de renascimento. na opinião de Camus. em plena era da guerra fria e das lutas anticoloniais. você é o passado. mais recentemente. de seu romance inacabado O primeiro homem. As razões objetivas são basicamente duas: a publicação. degenerando em tirania). e. ao autor de um longo libelo político impregnado de nostalgias pessoais e que. editado no Brasil pela Nova Fronteira.o exilado Biografia escrita por Olivier Todd assinala renascimento da obra de Camus após décadas de obscurecimento por motivos políticos e revela que as relações amorosas do escritor eram marcadas pela idéia da morte e do absurdo Manuel da Costa Pinto No início dos anos 50. em 1952. Mais do que isso. se Sartre é visto com condescendência como um autor pertencente ao passado. o autor de A náusea escreveu: “Em 1944. o 54 CULT . impediria que a história fosse sacralizada. a filha de Camus. Camus foi um adversário encarniçado das raisons d’État que justificassem regimes totalitários em nome de uma liberdade abstrata (casos do stalinismo e do maoísmo). Aliás. esse “renascimento” de Camus só tem sentido se for para recuperar o escritor que está por trás de sua obra teórica e de sua biografia. próxima da tradição dos moralistes (Montaigne. Como filho de colonos franceses pobres. (Por essa razão. cartas a suas amantes que a família só permitiu que fossem consultadas muitos anos após a morte da viúva de Camus. do existencialismo e. no acidente de carro que o matou) pudessem ser interpretados somente à luz exígua das paixões políticas – já que o romance é uma espécie de painel da Argélia colonial em que Camus viveu e cujo dilacerante processo de independência esteve na base das polêmicas intelectuais vividas pelo escritor. Entretanto. Por trás destas “razões objetivas”. No caso da biografia.CULT 55 . Da mesma forma.) As razões políticas são bem menos justificáveis. temia que os manuscritos (encontrados junto com o corpo do escritor. As razões familiares são simples. Camus de fato assumiu na questão argelina uma postura anti-radical que colidia com o sentido de eficácia política de Sartre (à época alinhado com os comunistas).Reprodução a partir de Albert Camus: Uma vida Albert Camus: Uma vida Olivier Todd Tradução de Mônica Stahel Editora Record número de páginas e preço a confirmar Albert Camus e sua esposa. lançada por Herbert Lottman em 1978. identificá-lo com um liberal como Raymond Aron ou qualificá-lo de “pragmático inglês” – como aconteceu na imprensa inglesa (et pour cause) ou norte- americana – é uma distorção que obscurece o fato de que Camus foi um comunista na juventude. serve sobretudo para assinalar a singularidade de sua escrita não-ficcional. o livro de Todd é muito mais rico em informações do que a primeira grande biografia de Camus. Chamfort). e a forte carga de subjetividade. desconstrucionismo etc. mas não serve. italianos e espanhóis. Francine lançamento de Albert Camus: Uma vida. Merleau-Ponty. Catherine. Camus temia que a identificação dos movimentos de independência com o nacionalismo árabe aniquilasse (como de fato aniquilou) aquele universo multiétnico que agregava ainda berberes. de toda a filosofia francesa do pós-guerra (estruturalismo. Camus foi acima de tudo um escritor.) – considerada “hermética” e “anti-humanista” por um certo pragmatismo rasteiro que considera “obscuro” tudo aquilo que não compreende. O homem revoltado). Pascal. Pois. de referências pessoais que permeiam seus textos filosóficos (O mito de Sísifo. biografia escrita por Olivier Todd que a editora Record lança este mês no Brasil. o motivo é mais delicado: Olivier Todd trouxe à tona uma grande quantidade de testemunhos e documentos sobre a vida amorosa de Camus – entre eles. assim como sua suposta filosofia permanece inconsistente se julgada em termos estritamente conceituais (e Sartre tinha razão ao apontar os equívocos da leitura camusiana da fenomenologia e do próprio existencialismo). Existe hoje uma certa tendência em valorizar Camus como um antípoda de Sartre. que ele sempre se considerou de “esquerda” (seja lá o que isso signifique hoje) e que partilhava as mesmas raízes filosóficas de um pensador como. No caso de O primeiro homem . em 1979. Francine. sua biografia será meramente anedótica se não estiver conectada ao sentido profundo de uma obra literária verdadeiramente assombrosa. absolutamente. por extensão. aliás. agosto/98 . há motivações políticas equivocadas e pudores familiares compreensíveis. por exemplo. porém. como “refutação” do pensamento acadêmico francês. . olhos azuis e cabelos castanhos.. Falando de sua viagem a Poncet.. Não vou. que lhe pergunta por que não publicou um relato sobre ela. Lévi-Strauss queria exportar esquilos cinzentos americanos para os parques franceses e comprar coleções de arte índia. Depois. “Ao longe”. nem Dickens. não sei nada de Nova York. Nem Cristóvão Colombo. ao mesmo tempo escândalo e deleite.” Poucos literatos viajantes têm essa humildade decente. Patricia Claude Lévi-Strauss. (. Tenho o coração tranqüilo e seco que sinto em mim diante dos espetáculos que não me comovem. que carrego Nova York em mim. O conselheiro acha o escritor “bem-pensante. Escreve alguns artigos para a seção literária do New York Times. com as cidades. Simone de Beauvoir. Depois da França metropolitana. está quase terminando seus estudos de história no Smith College. Patricia não o acompanha ao cais. árabes e franceses da Argélia. fala muito bem o francês. Madeleine Ozeray. enfim. Ela morava na Casa Francesa do Smith. Camus tem como que uma hierarquia mítica. “os arranha-céus de Manhattan num fundo de bruma. uma nostalgia exasperada. antes dele. Finalmente. nos transtornam e nos esfolam. personagens literários de um encanto de pessimismo niilista e que possuem uma fome da felicidade de viver. que publicou um retrato fotográfico mal-sucedido. como se veicula no olho um corpo estranho. Depois vêm os eslavos. por Jessica Daves.. Depois ele vai embora depressa. Camus é o único passageiro do Oregon tratado como suspeito. os homens da bacia mediterrânea.. dirá: “Por toda parte recebi uma acolhida calorosa. a operação dá certo. emprega a técnica do piloto de caça-bombardeio: lança e. Diante dos anglo-saxões. Tem diploma de bachelor of arts. e das quais trazemos em todo o corpo a preciosa queimadura. gosto das manhãs e das noites de Nova York. [.. Ele já não poderia escrever. Nova York? “Desta só guardo emoções potentes e fugazes. durante dias. Roger Caillois. Oran. vinte anos. fixas e variáveis. ele não profere demasiadas generalidades sobre o povo americano. fugitivo de Drancy. lhe foi apresentada em 16 de abril.. Camus não se pronuncia.] simplesmente porque o ar da cidade é cheio de ciscos. No alto. Veria nisso antes uma ascese. espanhóis e italianos. que nos provocam. anota Camus. Camus e um funcionário francês leva-o a seu hotel.. Precoce. Com freqüência Camus. trabalha em meio período num magnífico palacete particular e redige As estruturas elementares do parentesco. ao pensar em Nova York. com lágrimas de enternecimento e fúrias de rejeição a tudo. falar de Kierkegaard. O conselheiro arrasta Camus.” Extraído de Albert Camus: Uma vida.. Sobre Argel.” Final em forma de despedida. da Tchecoslováquia e da Itália. Antes de Camus. o funcionário de imigração pede desculpas por ter retido o Sr. e antes de tudo a Europa”. Entre ele e Camus instala-se uma amável reserva. ele diz que os Estados Unidos são “um grande país. Patricia. em suma. forte e disciplinado na liberdade.. na 70ª Rua Oeste. essa temporada de menos de três meses nos Estados Unidos foi a quarta grande viagem do escritor. Depois de tantos meses.A ilha dos três rios Reprodução a partir de Albert Camus: Uma vida O Oregon chega a Nova York à noite. O desembarque ocorre por volta das 11 horas.” Bem mais adiante: “Sim.” Atento 56 CULT . Ela aceitou – e não se separaram mais. acolheu Sartre. franceses.” A Louis Germain. como cerca de dez anos antes: “Não há prazer em viajar. Camus tem suas idéias. Talvez seja isso que chamamos de paixão. como Sartre.agosto/98 e prudente.) Camus toma o navio de volta. Conselheiro excêntrico. mas raramente o confessa por escrito: “. de Camus feito pelo famosíssimo Cecil Beaton. Dos Estados Unidos ele traz umas dez páginas dedicadas a Nova York. uma das melhores universidades femininas americanas. diante de uma mulher. perco o pé. muito bonita.] É desse modo. insuportável e delicioso.” Ele não enxerga uma espada em vez de uma chama na ponta do braço da estátua da Liberdade. O conselheiro cultural francês. Paris. com aquele amor possante que às vezes nos deixa cheios de incertezas e de ódio: às vezes temos necessidade de exílio. virtuoso de esquerda”. Camus imediatamente convidou Patricia para o dia seguinte. aperfeiçoando seu conhecimento dos autores dos séculos XVII ao XX. ocorre o mesmo que com certas mulheres.. Percebo que. Modesta copy-writer. ele se mantém de sobreaviso. os argelinos. e mais tarde Simone de Beauvoir. ele descobriu uma parte ínfima do Novo Mundo. mas notado.” Camus – Patricia o viu – chora diante dos que estão próximos. Estes últimos fecham-se numa teoria oniexplicativa do imperialismo econômico e militar americano. muitas vezes. nem Tocqueville. ganha 35 dólares por semana na Vogue. mas que ignora muitas coisas. para os cafés-concertos. missionário das relações culturais. como o Karl Rossmann de Kafka. (. managing editor da Vogue. passeei por Nova York com os olhos cheios de lágrimas [. cuspir no prato depois de ter aceito tomar a sopa oferecida. quase de adeus doloroso: “Sim. Ouviu Jean Wahl. os instantes da dilaceração. por toda Blake parte expressei-me com liberdade total. Camus acha aquele acadêmico disfarçado de diplomata muito silencioso. filha de um médico e de uma pianista. Gostei de Nova York. de Olivier Todd .. Não aplica ao poderoso país-continente a grade marxista a que o submetiam e colavam Sartre.) Patricia Blake. “Perco pé. Nouvelles . Muitos desses episódios reaparecerão nos “ensaios narrativos” de O avesso e o direito e Núpcias. Carnets II – Janvier 1942-Mars 1951. porém. que nasceu em Mondovi em 7 de novembro de 1913. Veja. com que teve um casal de gêmeos. mas que passaria a infância e a juventude em Belcourt. por exemplo. Todd reconstitui o estabelecimento da família Camus na Argélia e disseca a vida do jovem Albert.Reprodução Obras de Camus Albert Camus Por esse motivo. Mas a quantidade de informações levantadas por Todd transforma o livro numa crônica minuciosa da vida na rive gauche. as viagens à Tchecoslováquia e à Itália. seguido de “O equívoco” – Livros do BrasilLisboa • O estrangeiro – Record • O mito de Sísifo – Guanabara • A peste – Record • O homem revoltado – Record • A queda – Record • O exílio e o reino – Record • Diário de viagem – Record • O primeiro homem – Nova Fronteira agosto/98 . e Jean Grenier. Por trás do Meursault que se entrega ao prazer nas As obras ficcionais e ensaísticas de Camus estão editadas em francês nos volumes Essais e Théatre. a resistência ao nazismo como editor do jornal Combat . sob os títulos: Carnets I – Mai 1935-Février 1942. O verão – Círculo do Livro • A morte feliz – Record • “Calígula”. Correspondance avec Jean Grenier . a quem Camus dedicará O homem revoltado). mas Todd os narra com requintes de detalhe. Lope de Vega ( Le chevalier d‘Olmedo ) e Dostoiévski ( Les possédés ). “Le premier Camus” suivi d‘ “Écrits de jeunesse” . Nouvelle Revue Française/ Gallimard (Paris). cinco dias depois do acidente fatal) – estes dados da biografia de Camus já eram conhecidos. Pierre de Larivey (Les esprits). o casamento relâmpago com Simone Hié e o casamento com Francine. alguns aspectos dessa vida. de O exílio e o reino). Todd redimensiona. em que a morte de seu pai. Olivier Todd consegue satisfazer nosso voyeurismo sem nunca perder de vista o significado intelectual de seus achados biográficos. a morte no carro do amigo Michel Gallimard (que também morreria. Albert Camus: Uma vida é um sucesso completo. a paixão pelo futebol (ele foi goleiro do Racing Universitaire d’Alger). Não há no livro nenhuma descoberta bombástica – a menos que algum puritano considere bombástica a informação de que Camus sempre manteve vidas paralelas a seu casamento com Francine. Faulkner ( Requiem pour une nonne ). que será personagem de O primeiro homem. associado ao cigarro onipresente. na Primeira Guerra Mundial. Récits. turvam a todo momento o caráter hedonista que Camus dá a seus escritos. Journaux de voyage e Fragments d‘un combat – Articles d‘ “Alger Républicain” ) e adaptações teatrais a partir de obras de Calderón de la Barca (La dévotion à la croix). o Nobel de 1957. da Bibliothèque de la Pléiade. a tuberculose. As memórias de professores queridos (Louis Germain. com os acalorados debates nos cafés parisienses e os encontros de escritores na editora Gallimard (na qual Camus trabalhou no pós-guerra). assume um caráter emblemático das tensões latentes nesse enclave francês da África.CULT 57 . o sucesso instantâneo de O estrangeiro. depois aos EUA e ao Brasil (que inspirou o conto “A pedra que cresce”. O romance inacabado Le premier homme foi publicado pela Nouvelle Revue Française/Gallimard em 1994. O processo de enfraquecimento provocado pela doença. ou na ficção autobiográfica de O primeiro homem. A tuberculose de Camus. assume agora uma nova dimensão. abaixo. as edições em português da obra de Camus: • O avesso e o direito – Record • Núpcias. A mesma editora vem publicado manuscritos ( Discours de Suède . um subúrbio de Argel. Carnets III – Mars 1951-Décembre 1959. La mort heureuse. Seus cadernos de notas foram editados pela Nouvelle Revue Française/ Gallimard em volumes separados. Casarès foi uma atriz independente e autônoma Francine. argelina e sem cinema: reservas. Depois. no bulevar Saint-Germain. Mi escrevia. ele não chega Camus. de Albert Camus: Uma vida – Desenho. trago com Pierre Bénichou.. Depois. A ligação é pública.. Os amigos do tempo sem limites”. preocupado. Camus tomava um sempre é verdade que a nobreza obriga. “e no entanto nunca Segundo suas anotações. sente-se “entregue deixa de ser lastimável. de: é visto na Lipp. Agora. (. Mi é uma das raras de seus mal-estares. sua nova companheira. Francine.. o que não faz há anos. Com freqüência elas Estão perturbados. Desde sua separação. ele foi a um médico Belas-Artes de Copenhague. companheira de Jean Servais. ele consulta mulheres com quem Camus assiste a um jogo um psiquiatra.. se tranca na rua de Chanade futebol. E assim o teatro volta à vida de Camus.) “Mi”. que o trata como se ele tivesse sua idade e o descansa. Casarès torna-se toda a vida de Camus. Ele não a criou.” Admira nele “a agora a uma espécie de loucura” (. entrou na escola de falta de ar num táxi. Camus supervisiona os ateliês.. ora hostil. sente a família da mulher ora reunião. muitas vezes. a paixão. bom estrategista. deixou os amigos no horário a um encontro marcado com em casa de carro para ficar sozinho com Mi. Maria Casarès menor envergadura. – Aonde você ia? Eles encarnam um ao outro e se – Ao teatro. aqui e ali. Dostoiévski leilles. Mas a obrigação.” Mi aceita os humores de Camus.. Falam de Melville. da paixão de Mi.) O casal não se esconcom um fisioterapeuta. Francine nunca se as partes. na vida? Extraído do capítulo “Um ‘olhar míope‘?”. enobrece. escolhe os modelos.. Com fessora de desenho.) Richard Wagner chamava Cosima de “A Única”. Extraído do capítulo “A Única”. interceptadas pelo orgulho de ambas reticente.” Constatação dos apaixonada pelo marido.) Uma paixão arrebatada. atriz que se tornou (. Ela o reconheceu. Roblès. Mas elas foram. mas também um país distante e peças. desaparecem de sua vida e do palco quando viram-se de longe. mas de – Ia à casa de Gide. embora Camus tente poupar Francine. O que ela fazia Ele gosta da juventude.agosto/98 A luta contínua contra a dor física . Mi e seus amigos são testemunhas boates. telefona a Suzanne De origem dinamarquesa. Voz inimitável. 1958 começa tão mal quanto dois adoram. pouco à vontade em seu papel de por muito tempo. Francine. que.Vidas paralelas Fotos/Reprodução a partir de Albert Camus: Uma vida Ele revê seus laços com Maria: “Vivemos Francine atravessa crises depressivas. retoma as sessões de exercícios respiratórios orienta suas poses. horas magníficas em 1944. e Albert Cossery. diante da porta do café. Ele reescreve próxima e visível. ajuda Camus. e saíram para dançar. (. Eles não se largam mais. de Albert Camus: Uma vida Falaram de Piero della Francesca. pensa em suicídio. continuou estudando desenho e pintura um especialista irá constatar que ele está na Grande Chaumière. o pivô. encontra Maria Casarès. atravessa outras – e Nietzsche: “Ele falava de si mesmo como crises de asfixia e de pânico claustrofóbico. que os Para Camus. 1957. Ela o arrasta à piscina de Vilennes. O amor de orgulho tem sua queixa.) Com Maria. ou nas Catherine. ele cria com Espanha: muitas vezes uma mulher encarna uma cidade ela.. Maria Casarès ancora a fidelidade de Camus à antes de conhecer Camus. Camus vida. e Camus dá esse apelido a Casarès. filho de André. inmuito famosa. deixa ele deixa de lhes oferecer papéis. Maria.) Em 18 de junho amigos de Camus: Maria é a mulher de sua de 1948. Finalmente Camus aparece.. Camus. Pelas crianças. (O estado de sítio e Os justos). Angustiado. em para fazer uma inalação de oxigênio.. e mesmo depois de nossa marido. Sartre tem suas atrizes. Camus fixou sabe lidar com ele. no térreo. Mais tarde. Camus observa: “Nem encontraram no Flore dez meses antes. convidaram Mi para sentar-se à sua mesa. (. Eles se luta contínua contra a dor física”. tanto no teatro como no condicional. dicção o ator por Camus. mas continua dolorosamente perturbadora do amor-dom.. Mi quis ser proAgnely. A dinamarquesa Mi de Deus”. Paris. 58 CULT . embora corrija Calígula constantemente. diz Camus. (. Camus leva suas vidas paralelas. só isso. Ela teve aventuras. Geralmente tão pontual. Não era Deus. como a Nuage. no Petit-Pavé. espanhola. onde é massière : vivendo em estado de semi-asfixia. E você? confundem. e Maria trabalha em suas duas novas peças imaginário. Os dois se sentem como numa “bolha os olhos na bela moça.. não banca a mulher sofredora e pergrandeza – porém não tem a segurança dida de amor. Camus não quer deixar selvagem. • Camus. • Camus – A libertinagem do sol. La Revue de Lettres Modernes. 1984. Brasiliense. Paris. Paris. o pintor Balthus e Camus praias de Argel. Porto Alegre. portanto. Paris. de Lourival Holanda. Contra a interpretação. de Jacqueline Lévi-Valensi. da opacidade e perecibilidade do mundo diante de nosso desejo de compreender e de durar – fornece o tema dominante de sua ficção e de seu ensaísmo. 1991. de Albert Maquet. está um escritor perseguido pela perspectiva do desaparecimento. • Albert Camus. 1988. Gallimard. em 4 de janeiro de 1960. a atriz Catherine Sellers e a estudante dinamarquesa Mi. de Morvan Lebesque. Paris. • “Os Cadernos de Camus”. de Herbert Lottman. • Camus le juste. de Jean Onimus. Gallimard. • L‘effet tragique – Essai sur le tragique dans l‘ oeuvre de Camus. • “Resposta a Albert Camus” (polêmica sobre O homem revoltado) e “Albert Camus” (sobre a morte de Camus). • La pensée de Camus. pela iminência de uma morte muito menos heróica do que aquela sugerida pela “tragédia solar” do romance O estrangeiro. A partir de Albert Camus: Uma vida. Camus morria a caminho de Paris. 1978. n. Maria Casarès e Catherine. Camus escreve de sua casa em Lourmarin três cartas. Seuil. Porto. Lisboa. de Jean-Claude Brisville. de Georges Hourdin. de Fernande Bartfeld. 1979. • “Introdução” de O Estrangeiro. Situações IV. Europa-América. de Roger Quilliot. 1959. Minard. de François Chavanes. 1987. 1955. 9.Obras sobre Camus Reprodução a partir de Albert Camus: Uma vida O diretor teatral Jean-Louis Barrault. Poucos dias depois. Camus havia feito de Don Juan uma das figuras que encarnam essa plenitude trágica que brota da consciência do absurdo: “[Don Juan] traz consigo todos os rostos do mundo e seu frêmito provém de que ele se sabe perecível. Bruges. Paris. de Camus. de Raymond Gay-Crosier e Jacqueline Lévi-Valensi. 1960. Olivier Todd não se limita a uma contemplação da intimidade do escritor – percebendo ali uma nova versão dos múltiplos exílios vividos por Camus.” A insaciedade de Camus surge assim como uma vertigem. São Paulo. José Álvaro Editor. de Vicente Barreto. de Jean-Paul Sartre. Nouvelles Éditions Debresse. 1990. NRF/ Gallimard. Lisboa. Gallimard. nos dias 29 e 30 de dezembro de 1959. 1985. de Graciliano Ramos). Seuil. Paris. L&PM. • Albert Camus ou L‘invincible été. de Robert de Luppé. Livros do Brasil. 1970. s/d. a atriz espanhola Maria Casarès (que representava a maior parte de suas peças e que se relacionaria com ele por 16 anos). São Paulo. Heterodoxia. Edusp. org. como aquela clarividência desesperada que toma corpo do condenado à morte momentos antes da execução. de Horácio Gonzáles. • Camus. 1981. org. Lisboa. de Eduardo Lourenço. • La mer et les prisons – Essais sur Albert Camus. agosto/98 . • “La peste” d‘Albert Camus. de Susan Sontag. amando de forma exasperada mulheres como a norte-americana Patricia Blake (que conheceu em viagem aos EUA. Paris-Genève. falando sobre as angústias da separação. e Vidas secas. • Albert Camus: “Il faut vivre maintenant”. 1965. para Mi. • Albert Camus: Oeuvre fermée. Desclée de Brower. seja de maneira luminosa (nos ensaios de Núpcias e O verão ). • Sob o signo do silêncio. • Camus. de Maria Luiza Borralho. As crises de hemoptise acompanham Camus até nos mais intensos momentos de enlevo romântico. Assírio & Alvim.CULT 59 . 1992 (estudo comparativo de O estrangeiro. a cada dia. • Camus – Vida e obra. A idéia do absurdo – da gratuidade dos acontecimentos. Por trágica coincidência. 1959. 1983. oeuvre ouverte?. seja numa meditação sobre nossa condição coletiva e. vivendo intensamente. E se os envolvimentos afetivos de Camus são o aspecto mais inovador dessa biografia. de Raymond Gay-Crosier. Paris. Paris. por Jean-Paul Sartre. 1972. em 1946). Em O mito de Sísifo – “ponto zero” de toda sua obra –. aprendemos que a idéia de absurdo e a obsessão pela morte não eram meras construções intelectuais. dedicava-se a contorná-la. seja na forma de metáforas sombrias sobre a soberba e a crueldade humanas (A queda). Éditions Universitaires. • “A dialética trágica de Camus ou O regresso a Ítaca”. • Albert Camus. Paris. • Camus. e. Rés. Les Éditions du Cerf. s/d. ChampionSlatkine. política (no romance A peste e em O homem revoltado). 1987. Rio de Janeiro. Paris. Todd mostra que Camus viveu a cada minuto a sensação física da morte. Paris. Les Éditions du Cerf. podem dar ao leitor larga matéria para a reflexão e prazer extremo de leitura. estes textos de Camus que. por exemplo. Récits. servindo de incentivo para que outros possíveis volumes sejam organizados e publicados. de Louis Guilloux”. Nouvelles . Na verdade. exista uma seção de Essais critiques. é claro. “Roger Martin du Gard”. mas buscar uma nova organização para alguns de seus textos. um outro mérito deste livro é de ser a primeira reunião de ensaios propriamente literários de Camus que se traduz e publica no Brasil. lançado pela editora Record. um primeiro mérito deste volume: não ser a simples tradução daquilo que seriam os “essais critiques” de Camus. de servirem como elementos essenciais para uma compreensão mais A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios Albert Camus Tradução de Cristina Murachco e Manuel da Costa Pinto Editora Record número de páginas e preço a confirmar 60 CULT . embora no volume intitulado Essais. em média. seriam livros que se juntariam. com a única exceção daquele sobre Roger Martin du Gard. traz textos de crítica literária em que Camus faz uma leitura oblíqua de autores como Madame de Lafayette. no entanto. sem prejuízo das crônicas reunidas sob o título de Actuelles I. como agora se deve juntar este volume brasileiro. obras que constituem o núcleo forte do ensaísmo de Camus. o de pôr à disposição do leitor brasileiro. no volume Théâtre. que podem ser lidos como “textos complementares” a Le mythe de Sisyphe. “O artista na prisão”. vai encontrar certa dificuldade em localizar quatro dos ensaios reunidos em A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios.agosto/98 . nem “L’intelligence et l’échafaud” e “Herman Melville”. Herman Melville e Oscar Wilde João Alexandre Barbosa Se o leitor interessado for aos dois volumes das obras de Albert Camus editados pela Gallimard. de Jean Grenier” e “René Char”). Mas o mérito maior mesmo é. mas que. Na verdade. ali não estão os dois ensaios sobre Sartre. de 1977. onde se encontram sete dos textos agora traduzidos (“Introdução às Maximes de Chamfort”. além. De qualquer modo. na verdade criando um livro que não existia na bibliografia do autor. não ultrapassam. Le mythe de Sisyphe . é possível organizar outros livros e penso. em sua prestigiosa Bibliothèque de la Pléiade. publicado como apêndice de Le mythe de Sisyphe. Nouvelles. Sendo assim. L’homme révolté e L’été . reunindo-se o que Camus escreveu e que se encontra disperso nos dois volumes citados da Gallimard. “Encontros com André Gide”. que aparecem também como “complementares” a Récits. de 1974. Noces .o ensaísmo enviesado de albert camus A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios. a L’envers et l’endroit . oito laudas. “Prefácio a La maison du peuple”. Eis. e em tradução muito competente. II e III. “Sobre Les îles. sem dúvida. naquele volume. que foi reunindo de 1944 a 1958. num que começasse pelo ensaio “A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka”. portanto. de “Homero do Pacífico”. de Lafayette. imperturbavelmente. como prefere Camus. de “os prazeres da abstinência” (Forbidden Knowledge.Reprodução Albert Camus. num determinado momento do ensaio. Stendhal. seja aquela dos moralistas franceses do século XVII. É o que ele diz. e sua única preocupação parece ser a de levar suas personagens. isto é. St. de Lafayette. em que se destaca a enviesada leitura que faz de Chamfort. E esta busca de uma linguagem inteligível. seja a autora de A princesa de Clèves a merecer a leitura mais demorada: Mme. Isso não ocorre sem sacrifícios.CULT 61 . acerca de Mme. sem esquecer a leitura tensa. Jean Grenier. autor dos textos de crítica literária reunidos em A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios adequada do modo pelo qual Camus se relacionou com a tradição da literatura. seja a da angustiosa meditação acerca do lugar do escritor e do artista numa sociedade dilacerada pelas desigualdades. A obliqüidade maior está. que faz de Melville. portanto. Roger Martin du Gard. dentre os autores mencionados por ele. Em resumo. René Char e Sartre. De fato. por exemplo: “Ele [Stendhal] chama de ausência de estilo uma conformidade perfeita entre sua arte e suas paixões”. referindo-se a Stendhal. são os romancistas”. foi um exemplo único. que. levao a dizer não aquilo que lhe agrada. mas de vida. Sade. a distância que se estabelece entre os impulsos individuais e a consciência de um estilo não apenas literário. ao encontro do que as aguarda”. o que triunfa nas obras de que falo é uma certa idéia préconcebida – a inteligência. ou um “romance inconfessado”. sem dúvida. seja a de alguns de seus contemporâneos como André Gide. A recusa da entrega da Princesa de Clèves à paixão pelo Duque de Nemours é percebida por Camus como uma afirmação daquilo que virá a ser essencial para pensar o romance francês posterior. Grande parte do gênio romanesco francês está nesse esforço esclarecido de dar aos clamores da paixão a ordem de uma linguagem pura. partindo da idéia de que o que caracteriza a tradição do romance francês é uma certa “unidade da intenção” que resulta de “propriedade e obstinação no uso dos termos”. mas aquilo que é necessário. Falei antes em “enviesada leitura” que faz Camus de Chamfort e creio que se poderia usar a expressão para a maioria dos ensaios aqui reunidos. de Lafayette: “(…) parece-me que Madame de Lafayette visa somente nos ensinar uma agosto/98 . de modo saboroso. Nova York.” Não é de estranhar. para Camus o cânone daquela tradição é representado por Mme. em seguida. de prevalência do estilo e da inteligência sobre os ardores desorganizados e desorganizadores das paixões. e isto no século XVII. que é “A inteligência e o cadafalso”. Martin’s Press). que deve recobrir a desmedida de seu destino. From Prometheus to Pornography . se naquele texto a obliqüidade está em preferir a caracterização de Chamfort como “romancista”. Isto porque. entre lúcida e comovida. não deixa de ser oblíqua a maneira de perceber a tradição clássica do romance francês tal como está no ensaio magnífico de abertura. seguindo o raciocínio inicial de que “nossos maiores moralistas não são os fazedores de máximas. E. na verdade inventando um romance a partir da obra Caractères et Anedoctes do escritor. atuando nos limites daquilo que Roger Shattuck chamou. não apenas na escolha do cânone mas na identificação que o leitor é levado a estabelecer entre ele e o próprio Camus: vislumbra-se o autor de L’étranger em frases como as seguintes: “A grande regra do artista (…) é esquecer parte de si mesmo em proveito de uma expressão comunicável. como aquela que se representa na obra de Louis Guilloux ou no último e melancólico Oscar Wilde. a quem chega a chamar. Benjamin Constant e Proust. observando que “os romancistas dessa família se recusam a ‘prestar serviços’. nos antípodas de Kafka. a força. o fato deriva da imagem. é indispensável admitir que suas obras traçam uma experiência espiritual de uma intensidade sem igual e que essas obras são. obscurecidas na obra kafkiana. ao contrário (e isso mereceria um grande desenvolvimento). essa odisséia sob um céu vazio. simbólicas. que nos faz pensar em Shakespeare. quando atingem a costa. nele. o símbolo sai da realidade. um humor transbordante. vem a estranha calmaria que sobe das águas primitivas. para julgar o gênio de Melville. essa peregrinação incansável pelo arquipélago dos sonhos e dos corpos.. Omoo etc. a imagem nasce da percepção . Melville construiu seus símbolos sobre o concreto. obscuras como a plenitude do sol e. Eles não o são mais do que os gritos de Fedra. um criador de mitos. Depois da publicação e fracasso de O vigarista (1857). Quando a tempestade passa e a destruição é total. como a demência de Lear. e em seguida habitada por uma angústia cada vez mais ardente e errante. a experiência espiritual. Nela fulguram a saúde. Em Kafka. são claros. não deve desviar ninguém do verdadeiro gênio de Melville e daquilo que é soberano em sua obra. ao contrário. “consente na aniquilação”. ainda encontram força para arrasar aldeias inteiras. Eles são obscuros somente na medida em que a raiz de toda dor e de toda grandeza penetra na noite da terra. Podemos dizer. Eu acrescentaria que esses mitos. Ele mistura a Bíblia e o mar. O lirismo de Melville..). ou os silêncios de Hamlet. antes de tudo. ultrapassa a expressão e a invenção. desencorajado. além disso. em parte. Seus admiráveis livros. por exemplo. Ele é inesgotável como esses ventos que percorrem os oceanos desertos ao longo de milhares de quilômetros e que. a piedade silenciosa que transfigura as tragédias. ensaio pertencente ao volume A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios . que não parece mais discutível. Trecho extraído de “Herman Melville” . que são recebidos com indiferença e incompreensão. Ele terá que esperar por nosso tempo para que a América e a Europa lhe dêem enfim seu lugar entre os maiores gênios do Ocidente. Mas é preciso acrescentar que. ao passo que o gênio. cai num silêncio quase completo (apenas alguns poemas. É quase tão difícil falar em poucas páginas de uma obra que tem a dimensão tumultuosa dos oceanos em que nasceu quanto resumir a Bíblia ou condensar Shakespeare. ao mesmo tempo evidentes e misteriosas. A história do capitão Acab. De volta à América. de tempos em temHerman pos) que vai durar uns trinta anos. depois contra seus semelhantes e contra si mesmo. o jovem Melville (22 anos) embarca num deles. então não devemos duvidar que Melville é. por exemplo. Billy Budd (que termina em abril de 1891). ele está. num oceano “em que cada onda é uma alma”. são dessas obras excepcionais.O Homero do Pacífico Reprodução No tempo em que os baleeiros de Nantucket passavam muitos anos no mar. embora insubstituível. fazem de Melville o Homero do Pacífico. pode sem dúvida ser lida como a paixão funesta de uma personagem enlouquecida pela dor e pela solidão.. o riso dos homens. seus relatos de viagem são lidos com um certo sucesso e ele publica em seguida seus grandes livros. Como os maiores artistas. Em Melville. Mas. cujos limites artísticos nos faz sentir. acima dos mares selvagens em que se escondem Moby Dick e o espírito do mal. que Melville não escreveu senão o mesmo livro indefinidamente recomeçado. embora deva ser dito. A criança e o sábio encontram igualmente nelas seu alimento. serve-se.. Ulisses nunca reen- contra Ítaca. Transformado em funcionário de alfândega e pai de família. a poesia dos dias e uma grandeza atlântica. põe-se a escrever apressadamente sua obra-prima. aquela se equilibra com estas. e percorre os oceanos. A realidade que Kafka descreve é suscitada pelo símbolo. Melville. Ele sopra. encontrando constantemente seu sangue e sua carne. em Melville. Se é verdade que o escritor de talento recria a vida. dos quatro elementos. (. Um dia. que se lança do mar austral ao pólo norte no encalço de Moby Dick. ou os cantos de triunfo de Dom 62 CULT . límpidas como as águas profundas. contrariamente ao que se diz. Ele não abriu o viveiro de alegorias sombrias que hoje encantam a triste Europa. que assim permanecem monótonas. Mas também podemos pensar nela como um dos mitos mais perturbadores que já se imaginou sobre o combate do homem contra o mal e sobre a lógica irresistível que acaba por armar o homem justo primeiramente contra a criação e o criador. O criador de mitos só atinge a genialidade na medida em que os inscreve na espessura da realidade.agosto/98 Melville Giovanni. a música das torrentes e das esferas. depois num navio de guerra. a coroa com mitos.) Mas tudo isso. Por isso Melville nunca se apartou nem da carne. a baleia branca que lhe cortou a perna. nem da natureza. e não sobre a matéria do sonho.) Esse livro reescrito sem trégua. que não podemos ler de modo diverso. e não nas nuvens fugidias da imaginação. Certos críticos discutiram essa evidência. (. Como criador. Esse livro único é o de uma viagem inicialmente animada pela curiosidade alegre e simples da juventude (Typee. morrendo esquecido (três linhas no necrológico do New York Times) alguns meses depois. entretanto. o modo de recepção da obra de André Gide. mas ninguém teve a idéia de levar sua lógica tão longe quanto Madame de Lafayette o fez. num momento em que o romancista sofria as agruras de um esquecimento por parte do público. é uma enriquecedora releitura daqueles textos camusianos em que a presença de um estilo. De um sentimento único que os invadiu para sempre. Seu postulado singular é a de que essa paixão coloca o ser em perigo. Em A princesa de Clèves. Por todos o ensaios. de uma independência calculada e de uma recusa clarividente. mais precisamente Os frutos da terra. Talvez por aí se explique melhor as restrições que faz Camus aos dois livros de Sartre: a fratura que encontra entre as paixões sartreanas e uma linguagem ficcional que fosse adequada para deixálas passar ao leitor.” Não é outra coisa o que. entre o que é dito e a intenção de dizer. Proust e em alguns raros contemporâneos o ensinamento de um estilo de vida. percebemos em ação uma desconfiança constante com relação ao amor. sem que a operação se transforme numa retórica vazia. para uma geração de jovens argelinos que melhor se adequavam à crueza da obra de Jean Grenier do que ao paganismo telúrico gideano. É o que faz a beleza dos ensaios quer sobre Gide. o ensaio é a expressão de uma busca por entre inquietações. quer sobre Grenier: a leitura destes autores por Camus. por isso. ou a de toda a dramaticidade que sabe apontar na última obra de Oscar Wilde. passa a trepidação de uma linguagem sempre desconfiada daquela adequação várias vezes referida pelo próprio Camus. E. mas. é dependente de uma tarefa incessante de dar comunicabilidade à desmesura das paixões.Fotos/Reprodução Jean-Paul Sartre Stendhal Jean Grenier e Camus concepção muito particular do amor – nada mais lhe interessando no mundo. Podemos de fato dizer isso no decorrer de uma conversa.” Aquela “busca por uma linguagem inteligível que deve recobrir a desmedida de seu destino”. para nós. logo adiante e durante todo o ensaio. Camus acentua como o clássico no romance francês e a sua aproximação enviesada permite que ele o detecte também em Sade e em Proust: “Encontraríamos facilmente em Sade. mas sempre feito de uma escolha. Mais do que certezas. agosto/98 . Stendhal. sem perda do exercício de uma inteligência controladora. nos demais textos desta antologia. como está em texto transcrito anteriormente. por exemplo. é também responsável pelas sinuosidades. não é oferecida ao leitor de modo distanciado mas estabelecendo uma relação de grande intimidade para com as diversas fases de desenvolvimento intelectual e artístico do próprio Camus.CULT 63 . para aproveitar os termos de sua reflexão sobre Stendhal. para Albert Camus. em que a esterilidade final é articulada à própria construção de um mito artístico que se sabia condenado pelas transformações históricas e sociais. seus leitores. tal como ele se revela. fazendo. ou seja. a todo momento. ou a sua ausência. as litanias da energia em Stendhal. ao contrário. como em A princesa de Montpensier. de que a maneira enviesada do ensaio é um espelho. Assim. com maior ou menor intensidade. obliqüidades do ensaísmo de Camus. bem diferente em cada um. entre a comunicabilidade e a desmedida. a ascese heróica de Proust para remodelar a aflição humana numa existência inteiramente privilegiada – todos eles dizem uma única coisa e não dizem nada além dela. também é capaz de uma leitura recuperadora de Roger Martin du Gard. eles fazem uma obra com rostos aos mesmo tempo diferentes e monótonos. A obstinação no pecado tornado legítimo em Sade. ou em A condessa de Tende. ecoar a desmesura. embasbacado com tamanha qualidade gráfica e de material. RJ Futebol e literatura na Internet Parabéns pela edição número 11 (junho) da revista CULT. naturalmente sendo uma representação do autor deste último. SP Quando soube da existência desta revista. O “Dossiê” sobre Cruz e Sousa [CULT nº 8 ] foi fantástico! Desejo muito sucesso à CULT. Gostaria de ler matérias sobre Guimarães Rosa. Luiz Marcelo por e-mail É de uma grandeza excepcional a revista CULT.com) tem uma coluna especialmente dedicada a divulgar a relação do futebol com outras artes. uma poeta fantástica. Assim sendo. para o e-mail “lemospl@netpoint. Além de termos bons poetas e tradutores. fruto de experts no assunto. com um poema inédito. na excelente seção “Biblioteca Imaginária”.futiba. de João Alexandre Barbosa. Conto com vocês! Cristiane Garcia por e-mail Novos escritores Resposta da redação O quadro reproduzido na página 10 da CULT nº 11 é do escritor Émile Zola e foi pintado por Édouard Manet entre 1867 e 1868. deparei-me.Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Clarice Lispector da revista Leia deixou um vazio que a nova revista vem preencher. quem é. sugiro que a revista faça matéria sobre a nova geração de contistas e romancistas brasileiros. uma publicação que há muito faltava no meio.br”. via correio eletrônico. e textos de grandeza extraordinária. Aristides de Souza Herz Curitiba. Rui Barbosa. 70. gostaria de fazer um pedido: que tal uma matéria sobre Albert Camus na seção “Dossiê”? Seria maravilhoso. A coluna pode ser acionada a partir do link presente no fundo de cada página aberta em www. Espero que a iniciativa seja um pleno sucesso e um elo entre a cultura brasileira e seus admiradores no estrangeiro. MA Biblioteca Imaginária Sugeriria a criação de uma página de poesia. CEP 01326-010). com a chamada “Gol de Letra” e o ótimo Dossiê sobre futebol e literatura. Luiz Antonio Campinas. de Rainer Maria Rilke (coleção Clássicos de Ouro. com um retrato de Émile Zola. Suíça Departamento luso-brasileiro Críticas consistentes Faço doutorado sobre a obra de Clarice Lispector na Unicamp e fiquei encantado com a edição sobre a escritora. PR . Um grande abraço. equivalente em qualidade a revistas européias e americanas do gênero. São Paulo.com. o retratado? Zola ou Rilke? Continuem com o belíssimo trabalho. Preenchendo um vazio Meus parabéns pela revista CULT que acabo de assinar! A tão chorada morte 6 4 6CULT 4 CULT .agosto/98 . Luis Paulo Bresciani São Paulo Nota da redação O “Dossiê” sobre Clarice Lispector foi publicado na CULT nº 5 (dezembro de 1997). diagramação e acabamento de primeira. Sou estudante do curso de letras. sob minha responsabilidade e de Marlene Merichelli. afinal. estimulante. Mensagens via fax podem ser transmitidas pelo tel. Antonio Coutinho Soares Filho Imperatriz. Albert von Brunn Biblioteca Central de Zurique. Mas este cidadão é o mesmo que se encontra na capa do livro Alguns poemas e cartas a um jovem poeta . e assim tem-se acesso à última resenha publicada (filme Rio 40 graus ) e ao índice que leva às resenhas anteriores. sofisticada sem ser pesada ou “acadêmica”. da Ediouro). Que tal uma entrevista com Augusto de Campos? José Carlos Pinheiro por e-mail Acabei de receber meu primeiro número da revista CULT (nº 11) como assinante e. Como assinante. E bem resolvida visualmente. Aliás. tal acréscimo à edição não seria de grande vulto por limitar-se apenas a uma página. a CULT é ótima. tratei logo de assiná-la. Escrevemos também para informá-los que há mais de um ano o site FUTIBA (www. Albert Camus Primeiramente. gostaria de parabenizálos pelo excelente trabalho que vem sendo desenvolvido. Sugestão: por que não fazer um “Dossiê” sobre Clarice Lispector? Seria bárbaro. Virgínia Woolf.agosto/98 Como leitor da CULT. nacional ou traduzido. coluna esta batizada como “Batendo de Letra” ou simplesmente “Deletra” nas chamadas e links. e a revista veio atender a um anseio daqueles que sentem a necessidade de conhecer um pouco mais sobre o universo literário.futiba. críticas consistentes. em especial com a literatura. Dirceu de Amorim Marinho Pavuna. a exemplo do que fez com os novos poetas na edição de janeiro (CULT nº 6). Mary Shelley e sobre a contemporânea Orides Fontela. a cada mês. é perfeita em tudo. Sem dúvida não existem adjetivos para tanta perfeição. 011/251-4300 e.com. Parabéns pela aquisição de João Alexandre Barbosa para o quadro da revista.
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