Culpabilidade e Estado Democrático de Direito

June 9, 2018 | Author: H. Gonçalves Ferraz | Category: Documents


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Culpabilidade e Estado Democrático de Direito Culpability and Democratic Rule of Law

H amilton G onçalves F erraz *

RESUMO: Analisa-se a culpabilidade a partir da ideia de Estado Democrático de Direito, desenvolvida principalmente por Klaus Günther e Urs Kindhäuser. Para tanto, o artigo estuda o desenvolvimento da culpabilidade e suas reformulações contemporâneas; analisa as principais contribuições do pensamento de Jürgen Habermas para a reformulação da culpabilidade, para, ao final, estudar as construções de Günther e Kindhäuser, verificando sua aplicabilidade. PALAVRAS-CHAVE: Culpabilidade; estado democrático de direito. ABSTRACT: The paper studies the conception of culpability in the light of the Democratic Rule of Law, mainly developed by Klaus Günther and Urs Kindhäuser. Therefore, it is studied the development of culpability and its contemporary redefinitions; it is analyzed the main contributions of Jürgen Habermas towards the reformulation of culpability and, finally, it is studied the category of culpability by Günther and Kindhäuser, when it is verified its applicability. KEYWORDS: Culpability; democratic rule of law. SUMÁRIO: Introdução; 1 Breve retrospectiva da culpabilidade na teoria do delito; 2 A culpabilidade no Estado Democrático de Direito: as contribuições de Jürgen Habermas; 3 As construções da culpabilidade por uma matriz habermasiana: Klaus Günther e Urs Kindhäuser; Considerações finais; Referências.

*



Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Advogado. Currículo lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/ visualizacv.do?id=K8562411T7. E-mail: [email protected]. 147

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INTRODUÇÃO Um dos maiores desafios contemporâneos da teoria do delito está no aprimoramento da culpabilidade. Neste tema, há um verdadeiro mosaico de construções doutrinárias distintas, não apenas nos pontos de chegada, mas, principalmente, nos pontos de partida teóricos e epistemológicos. Com esse cenário, destacam-se duas propostas de reformulação da culpabilidade. Tais propostas buscam ventilar a categoria a partir da filosofia política e da sociologia do direito, visando a um chamado “conceito material de culpabilidade”, à luz do Estado Democrático de Direito: são as propostas de Klaus Günther e Urs Kindhäuser, que ora pretende-se estudar1. Para tanto, primeiro, situar-se-á a culpabilidade na teoria do delito e as principais propostas jurídico-penais de reformulação do instituto; na sequência, adentrando na base filosófica e sociológica de uma abordagem conforme a ideia de Estado Democrático de Direito, apresentam-se os principais contornos do pensamento de Jürgen Habermas, importante base teórica para essa concepção; feitas essas considerações preliminares, apresentam-se as linhas básicas da culpabilidade em Günther e Kindhäuser; e, ao fim, será feita uma apreciação crítica dessas construções. 1 BREVE RETROSPECTIVA DA CULPABILIDADE NA TEORIA DO DELITO

1.1 A culpabilidade no direito penal Antes de se empreender a uma retrospectiva histórica da culpabilidade, é interessante notar como a culpabilidade se situa no direito penal. No que toca aos princípios basilares do direito penal, desponta o princípio da culpabilidade, que veda a mera responsabilidade pelo resultado, objetiva, e impõe a existência de liame subjetivo entre o autor e o resultado de 1

Dado o viés didático do presente artigo, pretende-se concentrar nos trabalhos de Günther e Kindhäuser, com maior repercussão para o público brasileiro (GÜNTHER, Klaus. A culpabilidade no direito penal atual e no futuro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 6, n. 24, p. 79-92, out./dez. 1998; KINDHÄUSER, Urs. La fidelidad al derecho como categoría de la culpabilidad. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 72, v. 16, p. 9-52; KINDHÄUSER, Urs. Culpabilidad jurídico-penal en el Estado democrático de derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 17, n. 78, p. 75-92, maio/jun. 2009), sem prejuízo de se analisar outras obras de relevo ao longo do trabalho. 148

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sua conduta e, de outra parte, exige que a inflição de pena não se dê a menos que a conduta do sujeito lhe seja reprovável2. Em relação às categorias do delito, ao lado dos juízos de tipicidade e da antijuridicidade, a culpabilidade caracteriza-se por ser um juízo de censura endereçado ao agente por não ter agido conforme a norma, quando podia fazê-lo. Ela é composta pelos elementos da imputabilidade, do potencial conhecimento da ilicitude e da inexigibilidade de conduta diversa3. Por fim, quando da aplicação e fixação da pena, a culpabilidade, como circunstância judicial de aplicação da pena4, busca conferir proporcionalidade entre o mal causado e a intensidade da medida a ele correspondente5. A culpabilidade é, portanto, uma categoria muito abrangente. Ademais, ela possui uma complexa operacionalidade, já que, como princípio fundamental, desempenha uma função de limite ao poder punitivo; como elemento da teoria do delito, figura como fundamento da pena; e, como circunstância judicial de aplicação da pena, se coloca como grau da sanção criminal6. Para os fins do presente artigo, o foco é a culpabilidade situada nesta zona de interseção entre a teoria do delito e a aplicação da pena e, portanto, importa enxergá-la como uma censura pessoal pela realização de um injusto em circunstâncias que se podia atuar conforme as exigências do ordenamento jurídico. Ou seja, seu pressuposto necessário seria a evitabilidade individual do fato, considerado concretamente7.

2

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 103; 64.

3

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 20-21.

4

CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 162.

5

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 20.

6

CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 162; abordando igualmente este triplo sentido, com nuances diversas, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 21. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 64.

7

PRADO, Luiz Régis et al. Curso de direito penal brasileiro. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 341. 149

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1.2 A culpabilidade ao longo do desenvolvimento dogmático 1.2.1 A culpabilidade do causalismo ao finalismo Conforme leciona Davi Tangerino, a inauguração da culpa como um elemento inserido em uma perspectiva sistemática, integrante de uma teoria do ilícito penal, teria se dado com Karl Binding, em 1872, no seu As normas e suas violações8. Tratava-se de uma concepção positivista-normativista que, apesar de dar continuidade a tradições anteriores por cindir a culpabilidade em dolo e negligência, trazia de forma inédita a necessidade do conhecimento da norma como pressuposto da capacidade de ação (e do delito), dando, assim, um importante passo rumo a uma culpabilidade individualizadora9. Avançando em direção ao mencionado juízo de imputação individualizado, o sistema Liszt-Beling concebia a culpabilidade, essencialmente, como uma relação subjetiva ou psíquica entre o autor e o fato10. Tratava-se de um conceito psicológico, uma formulação causal-naturalista inserida em uma teoria do delito que concebia pela primeira vez as quatro categorias centrais (ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade)11. Aqui, injusto e culpabilidade se relacionavam como dimensões objetiva e subjetiva do fato punível, e a última era constituída por dois elementos: a) capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de querer conforme a compreensão do valor do fato, excluída ou reduzida em situações de imperfeição (imaturidade) ou de defecção (doença mental) do aparelho psíquico; b) relação psicológica do autor com o fato, existente como consciência e vontade de realizar o fato típico, ou como causação de um resultado típico por imprudência, imperícia ou negligência12. 8

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 63-64. Importante apontar que nem todos os autores partem de Binding; em realidade, a grande maioria começa esta análise pelo sistema Liszt-Beling (TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da pena. In: BATISTA, Nilo; NASCIMENTO, André (Org.). Cem anos de reprovação. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 125; TAVARES, Juarez. Teoria do delito. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2015. p. 95; CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 162-163; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008. p. 283; BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 441; PRADO, Luiz Régis et al. Op. cit., p. 345).

9

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 69.

10 PRADO, Luiz Régis. Op. cit., p. 345. 11 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 71. 12 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 283-284. 150

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Tal concepção teria sido adotada em nosso País por vários penalistas ilustres, como José Hygino, Galdino Siqueira e Nelson Hungria13. Entretanto, tratava-se de um sistema deficiente, uma vez que era incapaz de abranger a culpa inconsciente, em que não há qualquer relação psicológica entre autor e resultado; e era, igualmente, estrutura insuficiente para compreender e valorar situações de anormal motivação da vontade, definidas atualmente como hipóteses de inexigibilidade de comportamento diverso14. Ainda no início do século XX, já no neokantismo, agregaram-se a essa culpabilidade causal e subjetiva elementos normativos, de modo a retratar-se a culpabilidade como um juízo de valor sobre o comportamento injusto, concludente de uma reprovabilidade jurídica imposta ao autor pelo fato praticado15. Nesse período firmou-se uma concepção psicológico-normativa da culpabilidade16. O trabalho pioneiro desse movimento é o de Reinhard Frank, no seu Sobre a estrutura do conceito de culpabilidade, de 1907. Tecendo uma série de observações acerca do estado de necessidade exculpante, da concepção de imputabilidade, da culpa inconsciente, chegou à conclusão de que a culpabilidade não seria integrada apenas pela relação psíquica do sujeito com o resultado, senão por três elementos de igual peso, quais sejam, a normalidade mental do sujeito, a relação psíquica concreta do sujeito com o fato ou ao menos a possibilidade da mesma (dolo ou imprudência) e pela “normalidade das circunstâncias em que atua o sujeito”. Frank, assim, assevera: A culpabilidade é reprovabilidade. Esta expressão não é bonita, mas não conheço outra melhor. [...] Um comportamento proibido pode ser imputado a alguém quando se lhe pode fazer o reproche por o haver aceitado.17 (tradução nossa) 13 BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação. In: BATISTA, Nilo; NASCIMENTO, André. Cem anos de reprovação. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 166-169. 14 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 284. 15 TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da pena. In: BATISTA, Nilo; NASCIMENTO, André (Org.). Cem anos de reprovação. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 125. 16 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 532-536. 17 FRANK, Reinhard. Sobre la estrutura del concepto de culpabilidad. reimp. Trad. Gustavo Eduardo Aboso e Tea Löw. Montevidéu-Buenos Aires: B. de F., 2002. p. 39-40. 151

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James Goldschmidt18, a partir de seu estudo nas chamadas “normas de dever” (normas de conduta interna), em contraposição à “norma jurídica” (norma de direito, externa), concluiu pela existência de uma ideia de inexigibilidade de conduta, que seria a ideia diretriz das causas de exculpação19. É exatamente a norma de dever que ordena que alguém se abstenha regularmente de pôr em prática a vontade contrária à norma de direito, sendo o descumprimento da norma de dever que fundamenta, portanto, o elemento normativo da culpabilidade20. Nas palavras de Goldschmidt21, com efeito, se expõe, como uma coisa aceita, que a reprovabilidade de uma conduta de alguém pressupõe uma obrigação de omitir tal conduta. No entanto, se nega que deste modo se exija uma culpabilidade ética e que a culpabilidade constitua um vício do caráter. [...] O não fazer-se motivar pela representação do dever apesar da exigibilidade é contrariedade ao dever ou [...] segundo a formulação de Frank, reprovabilidade. (tradução nossa)

Baseando-se nos ensinamentos de Frank e Goldschmidt, desenvolveu Berthold Freudenthal22 a inexigibilidade como causa geral supralegal de exclusão da culpabilidade23, podendo-se definir a mesma como a “desaprovação do comportamento do autor, quando podia e devia comportar-se de forma diferente”24. É interessante perceber, ainda, que exigibilidade de conduta diversa, como esse fundamento geral da reprovação, consiste em um desdobramento da noção de “circunstâncias concomitantes” de Frank, como o próprio Freudenthal o admite25. 18 “A concepção normativa de culpabilidade”, 1913. 19 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. 2. ed. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, t. I, 1997. p. 796. 20 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna doutrina alemã. Ciências Penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 7, n. 12, p. 269, jan./jun. 2010. 21 GOLDSCHMIDT, James. La concepción normativa de la culpabilidad. 2. ed. Trad. Margarethe de Goldschmidt e Ricardo C. Núñez. Montevidéu-Buenos Aires: B. de F., 2002. p. 86/104. 22 “Culpa e reprovação”, 1922. 23 ROXIN, Claus. Op. cit., p. 796. 24 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 445. 25 FREUDENTHAL, Berthold. Culpabilidad y reproche en el Derecho Penal. reimp .Trad. José Luiz Guzmán Dalbora. Montevidéo-Buenos Aires: B. de F., 2006. p. 72. 152

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Edmund Mezger, jurista emblemático e com uma produção teórica dinâmica antes e depois da Segunda Guerra26, firmou a relação entre a existência de um conteúdo da culpabilidade, associando-o ao caráter da reprovabilidade, como juízo de valor negativo daquele conteúdo. É dele a concepção da chamada “culpabilidade por condução de vida”, uma nova modalidade de culpa para aqueles que usualmente se conduziam de modo socialmente desvalioso, onde se suprimia a exigência de que o dolo incluísse a consciência da ilicitude – cuidava-se de uma variável do direito penal de autor, que, entretanto, foi largamente adotada no período nazista na Alemanha27. Dando prosseguimento a esse percurso de normatização, o finalismo, a partir da concepção de ação final, realocou o dolo e a culpa no tipo penal. Isso fez da culpabilidade não mais do que uma reprovação pessoal contra o autor, uma vez que não omitiu o comportamento antijurídico, embora tenha podido omiti-lo, reprovando-se, assim, não o autor, mas a formação de sua vontade. A essa concepção de culpabilidade denominou-se “teoria normativa pura”, que desenhava a culpabilidade pelos elementos da imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa. Nas palavras de Welzel: A reprovabilidade da culpabilidade pressupõe, portanto, que o autor tenha podido adotar uma resolução de vontade antijurídica de modo mais correto, ou seja, conforme a norma, e isso não no sentido abstrato de um homem qualquer no lugar do autor, mas no sentido concreto de que esse homem, nessa situação, teria podido adotar uma resolução de vontade de acordo com a norma.28

O principal embaraço do conceito de culpabilidade delineado pela teoria normativa pura é sua base ontológica calcada no livre-arbítrio29, que 26 O aprofundamento neste autor ultrapassa os limites do trabalho; dessa forma, por todos, conferir FRAGOSO, Cristiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 247-249. 27 BUSATO, Paulo César. Op. cit., p. 535-536. 28 O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4. ed. rev., atual. e ampl. Trad. Luiz Régis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 118. 29 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 18. tir. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 242-244; SANTOS, Juarez Cirino dos. Culpabilidade: desintegração dialética de um conceito metafísico. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, 15/16, p. 59, jul./dez. 1974; CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 38; abordando a problemática, com uma posição crítica do debate entre determinismo e indeterminismo, HASSEMER, Winfried. Introdução 153

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não poderia ser provado nem de maneira geral, nem tampouco com relação a um caso concreto; igualmente, a vinculação estreita entre direito e moral que a construção provoca levanta inúmeros questionamentos doutrinários, ensejando uma miríade de novos trabalhos em busca de reformulações do conceito e novos paradigmas30. Por essa razão, a seguir, serão abordadas as tendências inovadoras de maior relevo, seguindo a proposta de Davi Tangerino: (i) culpabilidade como limite a prevenção; (ii) culpabilidade como infidelidade ao direito; (iii) culpabilidade como motivabilidade31.

1.2.2 Tendências contemporâneas 1.2.2.1 Culpabilidade como limite à prevenção Amparado pela ideia de prevenção, que norteia toda a sua dogmática, Claus Roxin vislumbrou a culpabilidade como um meio para limitação das sanções orientadas a objetivos preventivos32. A culpabilidade deixava de ser um elemento autônomo para constituir-se em uma parte de um conceito maior: a responsabilidade, que representaria um juízo de valoração que pode fazer um sujeito ser considerado penalmente responsável33. Essa construção tem sua razão de ser no pressuposto político-criminal de que o Direito Penal deve ser funcionalmente orientado por finalidades preventivas (que, ressalva Roxin, não podem conduzir à imposição de pena sem culpabilidade34), o que provoca uma mudança metodológica significativa, qual seja, a formação de um vínculo entre a teoria do delito e a teoria da aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 306. 30 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 95; sobre a crítica ao moralismo da ideia de reprovabilidade, BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 173-180; ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Aplicação da pena: limites, princípios e novos parâmetros. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 139; FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 458-459. 31 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 95-110. 32 Idem, p. 104. 33 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Op. cit., p. 283. 34 ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del Derecho Penal. 2. ed. 1. reimp. Trad. Francisco Muñoz Conde. Buenos Aires: Hammurabi, 2002. p. 8. 154

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pena35, o que acontece no momento da responsabilidade. O grau de responsabilidade torna-se, portanto, o âmbito em que a política criminal referida ao agente penetra diretamente na dogmática do Direito Penal36. Na busca pela superação da ideia fundante do “poder atuar de outro modo”37, Roxin aceitou a indemonstrabilidade do livre-arbítrio e passou a redefinir a culpabilidade em face das demais categorias do delito38, harmonizando-a aos fins da pena. Tangerino percebeu que o esforço de Roxin pretenderia reunir em um só pensamento deterministas e indeterministas, agnósticos e pios, já que tal construção contemplaria todas as correntes existentes quanto à culpabilidade39. Embora seja uma proposta respeitável pela coerência e solidez de seus argumentos, ela não é isenta de críticas. Isso porque se percebe que a necessidade preventiva da pena não ofereceria, em realidade, um melhor critério para a limitação da pena, já que a necessidade da pena seria fenômeno cientificamente incerto, o que debilitaria a culpabilidade enquanto garantia individual ante a pretensão punitiva estatal40. Ademais, ela mantém o poder de agir de outro modo como limite da pena.

1.2.2.2 Culpabilidade como infidelidade ao direito Davi Tangerino identifica uma segunda variação, cujo maior expoente seria Günther Jakobs, a partir da vinculação pura da pena à ideia de prevenção, o que repercute na culpabilidade41. Baseado em seu funcionalismo sistêmico (também chamado de radical ou extremado), que se baseia na estabilização de conflitos sociais por meio do resgate da confiança normativa, violada pela infração penal, a culpabilidade passa a corresponder a uma infidelidade ao direito, conceito determinado normativamente42. 35 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. 2. ed. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, t. I, 1997. p. 793. 36 ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevención en Derecho Penal. Madrid: Reus, 1981. p. 72. 37 BUSATO, Paulo César. Op. cit., p. 541. 38 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 98. 39 Idem, p. 100. 40 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 467-468 41 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 107. 42 MELLO, Sébastian Borges de Albuquerque. Op. cit., p. 284. 155

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Segundo Jakobs, do ponto de vista específico do Direito Penal, apenas existe a expectativa de que não haja culpabilidade, o que, formulado de forma positiva, significa existir a expectativa de uma fidelidade suficiente ao direito ou, respectivamente, que apenas existe um dever de prestar uma fidelidade suficiente ao direito43. Portanto, com a medida da culpabilidade não se mediria um sujeito, mas sim uma pessoa cujo papel consistiria em respeitar o Direito44. Sobre o assunto, percebe Paulo César Busato que se trata de uma proposição dogmática que abandonaria completamente a dimensão humana, reconhecendo a culpa e submetendo o homem ao império do paradigma normativo45; por isso o autor critica essa construção, por ela partir do falso pressuposto de igualdade de todos perante a norma, desconhecendo a real desigualdade entre os homens46. Bitencourt entende que essa funcionalização extremada proposta por Jakobs promoveria um esvaziamento do conceito material de culpabilidade. Isso ocorreria com a retirada de referentes valorativos tangíveis e estáveis, apresentando como principal aspecto negativo a excessiva formalização do conceito de culpabilidade, o que abriria as portas do direito penal à instrumentalização do indivíduo em função de expectativas sociais difíceis de controlar e limitar a partir de critérios racionais47.

1.2.2.3 Culpabilidade como motivabilidade Tangerino também apresenta uma terceira linha contemporânea, capitaneada por Muñoz Conde, que, buscando uma alternativa ao “poder agir de outro modo”, se baseou na capacidade de reação diante de exigências normativas. Ou seja, o conteúdo material da culpabilidade adviria da relação entre o indivíduo e a norma penal, em virtude da qual o comando normativo penetraria na sua consciência e poderia ser determinante de seu comportamento, fazendo da culpa a última fase de um processo de motivação e socialização, que começaria desde a educação familiar e se estabeleceria ao longo da

43 JAKOBS, Günther. Sociedad, norma y persona en una teoría de un Derecho Penal funcional. 1. reimp. Trad. Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijóo Sanchez. Madrid: Civitas, 2000. p. 63-64. 44 Idem, p. 65. 45 BUSATO, Paulo César. Op. cit., p. 545. 46 Idem, p. 546. 47 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 469. 156

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vida por meio da introjeção das demandas sociais48. É essa “motivação”, essa capacidade para reagir frente às exigências normativas, que Muñoz Conde considera a faculdade humana fundamental que, unida a outras (inteligência, afetividade, etc.), permite a atribuição de uma ação a um sujeito, e, em consequência, a exigência de responsabilidade pela ação por ele praticada49. Bitencourt entende que, sob essa perspectiva, a motivabilidade não se presumiria de um standard generalizado de comportamento, mas em função das condições de participação do indivíduo na vida em sociedade. Dever-se-ia levar em consideração as circunstâncias sob as quais realizou o injusto, uma vez que, a partir do Estado Social e Democrático de Direito, não se objetivaria punir aqueles que não podem participar em condições de igualdade na configuração da vida social, devendo-se antes promover as condições para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos nos quais se integra sejam reais e efetivas50. Muñoz Conde conclui, ainda, que, na estrutura do Direito Penal nos Estados Democráticos, a culpabilidade deve ser o final de um processo de elaboração conceitual destinado a explicar por que e em que medida se deve recorrer a uma forma de intervenção tão grave quanto a pena, não devendo ser utilizada como meio para o atingimento de determinadas metas político-criminais; dessa forma, não apenas a culpabilidade, mas todas as demais categorias da teoria geral do delito devem servir para realizar essa tarefa limitativa do Direito Penal51. Vale notar que as concepções até aqui apresentadas investigam a culpabilidade por um ponto de vista formal, isto é, pelo conteúdo de reproche de culpabilidade formulado ao autor como resultado da imputação dogmática de um delito52. Trata-se, em suma, do juízo de imputação de um fato ilícito a um autor determinado53. 48 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit., p. 110-111. 49 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Régis Prado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 130-131. 50 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 470. 51 CONDE, Francisco Muñoz. Introducción. In: ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevención em Derecho Penal. Madrid: Reus, 1981. p. 27. 52 KINDHÄUSER, Urs. La fidelidad al derecho como categoría de la culpabilidad. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 72, v. 16, p. 11, 2008. 53 BORGES, Sebástian. Op. cit., p. 290. 157

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Com a pretensão de investigar a culpabilidade em seu fundamento material, isto é, o princípio teleológico fundamental que aglutina o conjunto de elementos que nosso concreto direito positivo acolhe na posição sistemática da culpabilidade54, a razão da própria possibilidade de imputação da pena a um indivíduo55, passa-se a desenvolver novas concepções baseadas na noção de Estado Democrático de Direito. Entre elas se destacam as contribuições de Klaus Günther e Urs Kindhäuser. Contudo, para que se possa compreendê-las adequadamente, importa fazer uma sucinta imersão no pensamento de Jürgen Habermas, filósofo que dialoga diretamente com essas construções. 2 A CULPABILIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: AS CONTRIBUIÇÕES DE JÜRGEN HABERMAS Conforme verifica Sebástian Borges56, as concepções jusfilosóficas e sociológicas de Jürgen Habermas57 guardam íntima relação com modernas conceituações da culpabilidade na doutrina germânica – em especial, as construções de Klaus Günther e Urs Kindhäuser. Importa situar Habermas, primeiramente, no âmago das tendências contemporâneas na filosofia constitucional. Nesse campo, delineiam-se duas correntes a respeito do papel da Constituição e da jurisdição constitucional: (i) substancialismo, que propugna uma maior proatividade de juízes e tribunais na implementação de direitos fundamentais, admitindo-se pleno controle de deliberações políticas que os contravenham; e (ii) procedimentalismo, que destaca maior autocontenção do intérprete constitucional, ressaltando seu papel de fiscal adequado do processo

54 ACHENBACH, Hans. Imputación individual, responsabilidad, culpabilidad. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Org.). El sistema moderno del Derecho penal: cuestiones fundamentales (estúdios em honor de Claus Roxin em su 50º aniversario). Trad. Jesús-María Silva Sanchez. Madrid: Tecnos, 1991. p. 134-135. 55 BORGES, Sebástian. Op. cit., p. 290. 56 Idem, p. 286. 57 Entre as obras de Habermas, selecionamos para esta introdução: Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989; Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. I, 1997; Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. II, 1997. Complementa-se a abordagem pela consulta a destacados estudiosos e comentaristas do filósofo. 158

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político deliberativo58. Em outras palavras, em uma visão procedimentalista, o papel da Constituição é de definição das regras do jogo político, eximindo-se da cristalização de decisões substantivas no campo moral, econômico ou político, assegurando-se sua natureza democrática – o que inclui a defesa de direitos fundamentais, tidos como pressupostos da própria democracia; já, em uma visão substancialista (na qual situam-se o neoconstitucionalismo59 e a teoria da constituição dirigente60), ocorre exatamente o inverso, o que justificaria uma atuação mais agressiva da jurisdição constitucional61. Habermas é um procedimentalista. Para ele, diante de um mundo plural e marcado pela ausência de consensos materiais acerca de grandes questões, a legitimidade das decisões políticas deve se assentar no processo democrático de produção normativa, tomando os direitos fundamentais como condições da democracia e, consequentemente, reconhece que devem ser protegidos pela jurisdição constitucional, de modo a não serem desintegrados pela atividade legislativa de maiorias eventuais62. Partindo de duas tradições, kantiana (preocupada com a defesa das liberdades individuais e da autonomia privada do cidadão) e rousseauniana 58 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 117. 59 Sobre isto, conferir: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 9, mar./abr./maio 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 set. 2015; SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Disponível em: . Acesso em: 4 set. 2015; STRECK, Lênio Luiz. Uma leitura hermenêutica das características do neoconstitucionalismo. In: STRECK, Lênio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: Unisinos, 2013. p. 121-141. 60 Chama-se constituição dirigente o tipo de constituição que não apenas dispõe sobre o estatuto do poder, como também traça metas, programas de ação e objetivos para as atividades do Estado nos domínios social, cultural e econômico (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 89). 61 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 221. 62 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 118-119. 159

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(direcionada à defesa da soberania popular e autonomia pública do cidadão), Habermas busca a construção de um sistema em que autonomia pública e privada se irmanem e complementem63. Nesse sentido, Habermas sustenta que a ordem jurídica não pode se limitar apenas a garantir o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um. Isso depende também de leis legítimas, ou seja, marcadas pela participação política dos cidadãos, em uma prática intersubjetiva de entendimento64. Essa participação deve ser compreendida à luz de um processo comunicativo, caracterizado pelo “agir comunicativo”: interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, e esse acordo alcançado sendo medido pelo reconhecimento intersubjetivo das respectivas pretensões de validez, isto é, cada um sendo motivado racionalmente pelo outro para uma ação de adesão, em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita65. Por conseguinte, a compreensão procedimentalista habermasiana de direito, marcada pelo agir comunicativo, busca mostrar que os pressupostos comunicativos e as condições do processo de formação democrática da opinião e da vontade são a única fonte de legitimação do direito66. Dessa forma, esses pressupostos comunicativos dependem da efetivação das garantias do Estado de Direito: sem liberdade e sem igualdade não há diálogo verdadeiro, e a deliberação perde seu potencial legitimador e racionalizador67. Habermas aponta, então, uma série de condições procedimentais a serem respeitadas para que se possa obter um direito legítimo – notadamente, direitos fundamentais relacionados à liberdade, igualdade, acesso à justiça, participação política igualitária, e a condições de vida sociais, técnica e ecologicamente para que se possa desfrutar desses mesmos direitos civis e polí63 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de e SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 223. 64 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. I, 1997. p. 52-53. 65 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 79. 66 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. II, 1997. p. 310. 67 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 224. 160

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ticos68. O desrespeito a essas condições autoriza, inclusive, a deflagração de controle de constitucionalidade, tratando-se mesmo de exigência normativa constitucional69. Assim, os direitos fundamentais em Habermas são pressupostos da democracia e devem, por isso, ser mantidos dentro de uma esfera de intangibilidade, a ser protegida pelo Poder Judiciário contra eventuais abusos de maiorias políticas de ocasião70. Importa ressaltar que Habermas – como ele mesmo faz questão de frisar – não pretende, com sua teoria do agir comunicativo, construir uma teoria cega para a realidade das instituições e tampouco ela implica em anarquia71. Ao formular seu pensamento, Habermas tem em mente a ideia de um Estado de Direito que separa os poderes e apoia sua legitimidade na racionalidade de processos de legislação e jurisdição, hábeis a garantir imparcialidade; há também que se distinguir entre validade do direito e validade social do direito aceito ou implantado de fato – assim, obtém-se uma medida crítica para a análise da realidade constitucional72. Adota-se, nesses termos, um modelo ideal para o qual se deve pender, de forma que a Constituição seria sempre um projeto não totalmente realizado73. O segundo aspecto a se relevar em Habermas é sua concepção de razão no âmbito de um agir comunicativo, e, de forma mais ampla, no âmbito de uma teoria do discurso. Se a legitimidade do direito se alcança por meio de um entendimento racional e intersubjetivo, a obtenção desse acordo racional é concebida por Habermas através de um modelo contrafático universalizante, denominado “situação ideal de fala”, na qual os indivíduos estariam no mais puro estado de performance comunicativa, livres de coações, constrangimentos, violên68 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. I, 1997. p. 159-160. 69 Idem, p. 346-347. 70 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 225. 71 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Prefácio. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. I, 1997. p. 11. 72 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. II, 1997. p. 246. 73 BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro, I. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 644. 161

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cias e com manifestações pautadas pela seriedade74. A partir desse modelo, Habermas formula um parâmetro de aferição da universalidade das normas, como critério de sua aceitabilidade: é o chamado “Princípio U”, assim enunciado: Toda norma válida tem que preencher a condição de que as consequências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos.75

A observância desse princípio traduz-se, portanto, em um acordo racionalmente motivado entre os implicados pela norma, acordo esse que fixa a moralidade da norma assim produzida76. Em conclusão, Habermas sugere uma concepção de direito marcada pela participação intersubjetiva, pelo agir comunicativo, que produz sua legitimidade. Trata-se de um modelo ideal, capaz de criticar a realidade empírica subjacente e potencializar a efetivação de direitos fundamentais, e que busca, essencialmente, tratar o sujeito não apenas como destinatário, mas como autor do direito77. Desse modo, essas ideias passam a repercutir no direito penal em dois pontos principais: na teoria da ação (com o desenvolvimento de uma teoria da ação comunicativa78, que foge do escopo deste trabalho) e na culpabilidade, como se observará a seguir.

74 GÓES, Silvana Batini César. Novas tendências para o conceito de culpabilidade – Uma abordagem da teoria argumentativa no direito penal. In: MAIA, Antonio Cavalcanti; MELO, Carolina de Campos; CITTADINO, Gisele; POGREBINSCHI, Thamy. Perspectivas atuais da filosofia do direito. Rio de Janeiro, 2005. p. 427. 75 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 147. 76 GÓES, Silvana Batini César. Op. cit., p. 431. 77 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. I, 1997. p. 157. 78 No Brasil, o principal expoente desta teoria é o Professor Juarez Tavares (Teoria do crime culposo. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; Teoria dos crimes omissivos. Madri/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo: Marcial Pons, 2012); estudando as concepções de Tavares, por todos, SOUZA, Artur de Brito Gueiros. A teoria da ação na doutrina de Juarez Tavares: a construção de um direito penal de garantia. In: GRECO, Luís; MARTINS, Antonio (Org.). Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 281-300). 162

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3 AS CONSTRUÇÕES DA CULPABILIDADE POR UMA MATRIZ HABERMASIANA: KLAUS GÜNTHER E URS KINDHÄUSER

3.1 A culpabilidade em Klaus Günther O pensamento de Klaus Günther guarda forte conexão com as pesquisas de Habermas. Isso não apenas porque trabalharam juntos em Direito e democracia – Entre facticidade e validade79, mas, sobretudo, porque Günther desenvolveu e aprimorou a teoria procedimental de Habermas (dele distinguindo-se em alguns pontos que por hora dispensam aprofundamento80), levando-a para o direito penal. Ao investigar a culpabilidade, Günther se vê diante de um dilema: de um lado, a tentativa de fundar a culpa na liberdade do autor de agir de outro modo no momento do fato aproxima a culpabilidade de uma autodeterminação moral, e, na medida em que a isso se vincula uma mesma censura moral, tende-se a violar a separação entre direito, costume e moral, constitutiva para um Estado de Direito Liberal e Democrático; de outro lado, a tentativa de, renunciando a significar a culpa pela perspectiva do autor e de sua liberdade de agir, assimilá-la pelos fins preventivos da pena cria uma lacuna de legitimidade, pois se toma a necessidade da pena como dada, sem outra fundamentação81. A solução a esse dilema, para Günther, encontra-se na possível relação entre o conceito jurídico-penal de culpa à ideia da legitimação democrática das normas jurídicas e à pessoa do cidadão como titular do direito de participação política no processo democrático de formação do pensamento e da vontade sobre a positivação das normas jurídicas82. Günther, então, se volta ao próprio conceito de pessoa, que deve servir de ponte entre a pretensão de legitimidade da ordem jurídica e as exigências de obediência à norma, cuja lesão seria imputada como “culpa”83. Elabora-se, assim, o conceito de “pessoa deliberativa”: em apertada síntese, uma concepção comunitária e comunicativa de pessoa, que parte da ideia de serem os cidadãos não apenas destinatários, mas autores das normas jurídicas, e que, 79 GÓES, Silvana Batini César. Op. cit., p. 431. 80 Idem, p. 432-434. 81 GÜNTHER, Klaus. A culpabilidade no direito penal atual e no futuro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 6, n. 24, p. 79-80, out./dez. 1998. 82 Idem, p. 80-81. 83 Idem, p. 81. 163

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elencando uma série de características e requisitos específicos, como o direito de participação no processo democrático de elaboração normativa e a possibilidade de trazer à validez, em tais processos, a rejeição à norma, permite a exigência de observância da norma e de evitação do injusto84. Vale notar que Klaus Günther tem o cuidado de ressaltar que a observância da norma não depende apenas da postura da pessoa deliberativa em relação a ela, mas também do fato de que os processos de formação de opinião e vontade sejam jurídica e democraticamente institucionalizados, nos quais a pessoa capaz de direito e obrigada a evitar o injusto possa tornar válida sua atitude de rejeição à norma. Sem esses processos, não há dever de observância da norma e igualmente qualquer culpa – de forma categórica, Günther afirma: “Só há culpabilidade jurídico-penal num Estado Democrático de Direito”85. O conteúdo material da culpabilidade em Günther passa a ser, dessa maneira, o círculo prático no qual os cidadãos reconhecem uns aos outros sempre como pessoas deliberativas, livres e iguais86. Na percepção de Silvana Góes, a censura se forma, portanto, sobre a afirmação de que, sendo um indivíduo deliberativo, e vivendo em um contexto democrático, a expressão de seu eventual descontentamento com o direito pode e deve ser viabilizado pelos meios institucionalizados democraticamente, nunca pelo crime87.

3.2 A culpabilidade em Urs Kindhäuser Ao estudar a culpabilidade, Kindhäuser se indaga acerca da possibilidade de haver um conteúdo material para a culpabilidade em uma sociedade pluralista e democraticamente constituída. Percebe o jurista que o direito penal, em paralelo com as atribuições informais de responsabilidade da vida cotidiana, parte da capacidade de motivar-se a atuar de modo normativamente adequado, e apenas excepcionalmente, em condições excepcionais de ausência de liberdade, nega essa imputação88. Além disso, sua indagação é 84 Idem, p. 82-89. 85 Idem, p. 90. 86 Idem, ibidem. 87 GÓES, Silvana Batini César. Op. cit., p. 439. 88 KINDHÄUSER, Urs. Culpabilidad jurídico-penal en el Estado democrático de derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 17, n. 78, p. 81, maio/jun. 2009. 164

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desafiada por uma imposição normativa fundamental: o mandado kantiano de neutralidade do direito frente aos motivos de sua obediência89, que consagra que a mera legalidade pode e deve ser obtida pela força, mas as razões de obediência à norma devem deixar-se ao arbítrio de cada um, respeitando-se a separação entre direito e moral, entre o reproche jurídico e o reproche moral90. A superação desse desafio está, para Kindhäuser, na construção de uma razão que vincule os indivíduos à norma sem que se restrinja a liberdade em relação aos motivos de sua obediência. Essa razão passa a ser buscada a partir da ideia de integração social concebida a partir de compreensões comunicativas discursivas91: aqui entram, entre outros autores, as contribuições de Habermas já apresentadas. Kindhäuser parte, assim, de certas premissas. Primeiro, trata a compreensão comunicativa das normas em uma perspectiva na qual cada pessoa seja autor e potencial destinatário da norma92; e, segundo, entende que seu processo democrático de estabelecimento não é perfeito, e aceita que só se pode almejar uma racionalidade provisória93. Combinando, então, autonomia pública e privada no bojo de uma ampla autonomia comunicativa, Kindhäuser percebe que a culpabilidade, em tais circunstâncias, necessita de uma medida de lealdade que contenha a disposição geral de admitir o possível parecer dos afetados por uma pretensão de validez sustentada, sem a qual a compreensão comunicativa não seria possível; delineia-se, assim, o conceito de “lealdade comunicativa”94. Aplicando essa ideia à culpabilidade, Kindhäuser entende que, em um Estado Democrático de Direito, a culpabilidade envolve uma ação que expressa uma falta de fidelidade ao direito, isto é, um déficit de lealdade 89 KINDHÄUSER, Urs. La fidelidad al derecho como categoría de la culpabilidad. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 72, v. 16, p. 10-12, 2008. 90 KINDHÄUSER, Urs. Culpabilidad jurídico-penal en el Estado democrático de derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 17, n. 78, p. 85, maio/jun. 2009. 91 KINDHÄUSER, Urs. La fidelidad al derecho como categoría de la culpabilidad. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 72, v. 16, p. 24-26, 2008. 92 KINDHÄUSER, Urs. Culpabilidad jurídico-penal en el Estado democrático de derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 17, n. 78, p. 77, maio/jun. 2009. 93 Idem, p. 88. 94 KINDHÄUSER, Urs. La fidelidad al derecho como categoría de la culpabilidad. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 72, v. 16, p. 34-35, 2008. 165

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comunicativa que torna possível a compreensão comunicativa expressada juridicamente – assim, dado que o direito só pode cumprir sua tarefa de integração social não violenta por meio da compreensão comunicativa, a proibição do desapreço desleal da autonomia comunicativa dos demais se dá pela falível norma fundante do direito, norma essa que não se pode demonstrar mediante uma fundamentação última absoluta ou um raciocínio subjetivo, mas, sim, que se justifica juridicamente a si mesma como parte de nossa forma de vida95. Se em uma sociedade democraticamente constituída faculta-se à pessoa a apresentação de razões contra a norma, articulando seu protesto como cidadão, resulta exigível dessa mesma pessoa que, caso não obtenha êxito na articulação de suas razões, que se comporte exteriormente, pelo motivo que seja, de modo conforme à norma96. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o propósito de analisar as reformulações da culpabilidade em torno da ideia de Estado Democrático de Direito, fez-se uma retrospectiva histórica do desenvolvimento dogmático da categoria, passando pelos influxos do pensamento de Jürgen Habermas, para, finalmente, apresentar os principais contornos das contribuições teóricas de Klaus Günther e Urs Kindhäuser. Diante dessa exposição, impõe-se uma análise crítica de ambas as propostas. Primeiramente, importa notar como ambas as construções se dedicam menos ao conteúdo interno do juízo de censura da culpabilidade e mais ao seu fundamento político externo. Tanto a deslealdade ao direito de Kindhäuser como o reproche dirigido à pessoa deliberativa de Günther são tentativas de justificar a culpabilidade não na liberdade da pessoa, ou nos fins da pena, mas no próprio processo de formação político-jurídica do Estado Democrático de Direito – assim, são construções importantes do ponto de vista externo ao direito; já, do ponto de vista interno, se, por exemplo, o Estado Democrático de Direito propor ao direito penal a função de garantia de valores ético-sociais, ou a tutela de bens jurídicos, reprovar alguém porque se agiu de forma desleal ao direito ou porque se devia obediência à norma por se tratar de uma pessoa deliberativa não é muito diferente da reprovação pela exigibilidade de conduta conforme ao direito, pela falta de motivabili95 Idem, p. 42-43. 96 KINDHÄUSER, Urs. Culpabilidad jurídico-penal en el Estado democrático de derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 17, n. 78, p. 89, maio/jun. 2009. 166

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dade diante da norma, ou pela responsabilização da pessoa à luz da proteção a bens jurídicos, ou qualquer outra construção interna contemporânea. Isso não desmerece o fascinante labor doutrinário de Kindhäuser e Günther, mas apenas redireciona e orienta sua adequada leitura e discussão. Embora baseado, entro outros, em Habermas, com o acréscimo da ideia de lealdade comunicativa, Kindhäuser enfatiza mais a relação intersubjetiva comunicacional do que as condições necessárias para que ela seja ideal – o que, a uma, inverte o pensamento de Habermas, que edifica sua teoria deliberativa com o propósito de torná-la um instrumento crítico da realidade (o que não ocorre em Kindhäuser); e, a duas, na leitura de Busato, sua construção termina por reduzir a expressão comunicativa a um conteúdo de delimitação legislativa, presumidamente infalível porque oriunda de uma opção legislativa formalmente legitimada, desprezando fatores externos que podem influenciar no marco da própria formação dos limites da legalidade por ele interpostos – em suma, o processo de comunicação, de cuja existência depende a validade da norma, se converte em instrumento de sua validação97. Conforme destaca Sebástian Borges, a tese de Kindhäuser desvincula o dever de obediência ao direito de qualquer conteúdo, senão o da obediência em si mesma em face da legitimidade do processo de formação das normas98 – provável consequência da preocupação com o respeito ao mandado de neutralidade do direito e com o dever de lealdade a normas presumidamente legais e legítimas. Porém, ao buscar separar rigorosamente o direito da moral, Kindhäuser acaba hiperdimensionando o primeiro em detrimento do segundo, perdendo-se no processo a controlabilidade externa ao direito. Termina-se em uma tautologia: a lealdade se funda na legitimidade presumida da norma, que, por sua vez, é legítima porque oriunda de processos comunicativos presumidamente leais – a circularidade do raciocínio compromete as próprias estruturas da construção. Klaus Günther, mediante o recurso ao reconhecimento à capacidade da pessoa deliberativa de atuar como cidadão e como pessoa capaz de direito, faz depender a validade da norma do processo democrático de sua produção, e, assim, desmistifica o suposto conteúdo ontológico da culpa para orientá-lo por meio de uma visão política; na leitura de Juarez Tavares, trata-se de uma

97 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 549. 98 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna doutrina alemã. Ciências Penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 7, n. 12, p. 289, jan./jun. 2010. 167

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construção que vale para uma sociedade democrática quanto aos processos de elaboração legislativa e, ao mesmo tempo, alicerçada em sólidas bases de igualdade econômica, social, cultural, étnica e religiosa99. Entretanto, qualquer que seja a interpretação que se dê a essa abordagem política da culpabilidade, é indispensável que se possa pensá-lo não apenas dentro de um processo de participação democrática, mas dentro das diversidades materiais do contexto social no qual se desenvolvem essas pretensões de validade; do contrário, o discurso será meramente formal, formulado para uma sociedade democraticamente ideal, quando a realidade demonstra exatamente o contrário100. Compreendendo-se a culpabilidade como resultado de um discurso político-jurídico, resultado do entrecruzamento entre direito, moral e política, chega-se necessariamente à conclusão de que o grau de participação fática no discurso democrático (muito mais amplo do que a mera participação em pleitos eleitorais) determina as possibilidades de um juízo legítimo de culpabilidade – “quem não tem fala não pode ser forçado a ouvir”. Assim, o juízo de culpabilidade será tanto menos legítimo quanto menos desenvolvida a prática democrática, e a violência exercida pela pena será eivada da mesma ilegitimidade, não se promovendo o reconhecimento, no autor, de um cidadão responsável101. Este é o cuidado a que toda forma de ventilação democrática da categoria da culpabilidade deve atentar. REFERÊNCIAS ACHENBACH, Hans. Imputación individual, responsabilidad, culpabilidad. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Org.). El sistema moderno del Derecho penal: cuestiones fundamentales (estúdios em honor de Claus Roxin en su 50º aniversario). Trad. Jesús-María Silva Sanchez. Madrid: Tecnos, 1991. p. 134-146. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. ______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, 99 TAVARES, Juarez. Culpabilidade: a incongruência dos métodos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 6, n. 24, p. 155, out./dez. 1998. 100 Idem, ibidem. 101 MARTINS, Antonio. Culpabilidade como instituição política: um esboço. In: GRECO, Luís; MARTINS, Antonio (Org.). Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 402. 168

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