Cronicas Da Folha - Antonio Prata

March 29, 2018 | Author: Rodrigo Dias Algarte | Category: Japan, Jokes, Chelsea F.C., Love, Zen


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Antonio Prata Crônicas da Folha Coletânea de crônicas publicadas na Folha de S.Paulo a partir de 12/12/2012 KKK! Vai, Curintcha! Romarinho e o Texugo O melão e o nada Ceruraro chip? Ju Toku Foi, Curintcha! A vida dos bares O futuro é coisa do passado Eco...eco...eco Vestindo (a carapuça) Murundu polissêmico É pavê ou pacomê?! Todos juntos Cliente paulista, garçom carioca Foxy lady Ex O fim Tomadas e oboés !!!!!!!!!!!!!!!! Acaju? K entre nós PEC & Pague Hoje, excepcionalmente Estado de graça Descriminalização das drogas Encarte O agudo e a crônica Olívia IPA Sem aspas na língua Apolpando Recordação Entre ou saia A passeata Habilitando-nos Sobe o pano Estepe Diário Pé de cachimbo Laranjas e chocolates Linha cruzada Feira de Frankfute (M?)(H?)otel PIPA® Contudo Impressões digitais Me dê motivos Dente por dente Diário da paternidade II Veni, vidi, perdidi Alçapão Guinada à direita Abaixo, a ironia Separações Carta Escorrendo Beyoncé Abundância Crônica de Natal Três soluções para São Paulo A fuga do cativeiro egípcio Por um fio Rolezinho: breve rolê histórico A tonga da mironga do Rod Stewart Vespertina tropical Cachimbo da paz Estiagem A pátria de ponteiros No seio da família Googlall Meu reino por uma pamonha Horário de almoço Charutos e chupetas Desmantelo só quer começo O álbum da Copa Sozinho Um escritor! Um escritor! Vai ter toldo Fio dental Infiltrados no bolo Retrospectiva Véspera A caminho Coisas importantes Projeto CP Geopolítica do coração Função esporte Chamem o Sr. Miyagi Copa das árvores Fogo na capela Balanço Gol da Alemanha Íntimos desconhecidos Aí Caro Fernando Haddad '2001 - Uma Odisseia no Espaço' Três fábulas monterrosianas Dupla personalidade Um ganso novo, bem emplumado Fábulas monterrosianas II Garagem O agudo e a crônica Boda de urna O chapeiro e o dono da padaria Política e chocolates A oposição fluorescente Ao pé do olvido Balancete Nas coxas #precisamosfalarsobreaborto Direitos do Homem (sensível) Embarque Dar cabo Araminhos Crônica de quatro faces 2014: noves fora, sete Terrorismo lógico A metamorfose - com barreiras São Paulo, 25 de janeiro de 2016 Trinta e quantos? Daniel Toby tubarão Cabum! Fábulas monterrosianas III Texugos Impeachment O camaleão daltônico O desodorante venceu Repente do desmantelo As ideias fora do lugar Indo embora Saída para o mar O último a sair Uma freira de verdade Tal pai, tal filho Um machado, comida pra gato Seminovos, único dono Qual foi, algoritmo?! Joanão e outras minifábulas Pelo telefone Alguém tem que tomar uma atitude A emenda de Hamurabi Meia abdominal Dormir é para os fracos The day after Sua vez Insensatez Por quem as panelas batem Resposta a Samuel Pessôa Encontrei Madalena Trânsito O nariz Tegucigalpa Lucy in the sky with diamonds #primeiroassedio Meter a colher O engruvinhado da mexerica O gueto de Mariana Mexeriqueira em flor Vou-me embora pra Chapecó Numa escola ocupada Arkhipov, Dr. Pacheco, chocotones Zapzap 2016 Refogar cebolas Abraçando árvore O _ _ _ _ _ _ _ Feio Mistérios jocosos De SP pro RJ pra SP pro RJ pra...* Habeas corpus Breve manual da ninada Mal ajambrados On the letter's foot (ao pé da letra) Carta a Beatriz Não é tão vermelho ou amarelo Crítica e autocrítica A solução para a crise Carta pro Daniel Penso sobre o enredo da realidade vendo o filme de jun.2013 a abr.2016 Cinco centenas, mais cinco Cinco soluções para o Brasil Crônica em exercício 'Sê-lo-ia', Clotilde! Tecla SAP do humor Resolução de Ano Velho O Nobel da esquina EmpreÉDENdorismo Prova de história Pareceres Coisas que eu faria Lá vou eu em meu eu oval 'Essa tocha não é do PMDB, essa tocha é de Zeus! Do João do Pulo!' Tudo sob controle Seleção brasileira de vôlei deu azar de pegar o voo com meus filhos a bordo Nestas 2 semanas, talvez a única coisa que funcione no país seja a Olimpíada Ansiedade olímpica das oito da matina a uma da madrugada E se os nossos fracassos também fossem transmitidos ao vivo? Aha, urru! O polvilho é nosso! Mais que o futebol, Olímpiada é fonte de sentimentos opostos A décima vez que a gente assiste Como seria um SAC para os desiludidos com o impeachment? Os vândalos A gente não envelhece: os outros é que vão ficando mais novos Os adultos andam mais fantasiados que crianças de Peppa Pig Era uma vez uma cidade Impaciência (parte 1) A impaciência pode esperar Pum em Marte O paulistano não é de jogar a toalha, prefere estendê-la e se deitar em cima Comunhão parcialíssima de bens Trump no azul da Grécia Tony Soprano está no poder Anistia do caixa 2 Menos piquete e mais Piketty Não e não Num hospital público do Rio Cada post no Facebook é uma cruz erguida por um messias instantâneo Segunda, dois de janeiro Trump e –oh!– o sexo O que você fez hoje à tarde? RG e CPF do assassino, por favor A vivência lúdica do educar Sketchbook Eu não quero ficar velhinha Trump e Kim Jong-un fazem pensar se há elo entre penteado e pensamento Tentando escrever uma crônica em 2017 Um enorme passado pela frente Jó ao contrário A tigela da Tati Por dois segundos eu vi um Brasil que havia superado escravidão dos negros Mercury Caraguá, R$ 79,99 Jerry Seinfeld me convenceu a fazer meditação Primavera, NY Sou alérgico à fase séria do Woody Allen Poesia, atualizações AC, DC Cenários Como sair da crise Quantos amigos seus estão na cracolândia? Hoje não tem polvo Soluções radicais Em 60% do tempo fico ocupado com pensamentos inúteis e aleatórios O meu avô Na faixa Reinventar o Brasil 'Papai, todo mundo morre?' Os mortos de sobrecasaca É uma crônica, companheira KKK! 12/12/2012 Ontem assisti ao documentário "O Riso dos Outros", de Pedro Arantes, para o qual dei um depoimento. Se o menciono aqui não é para puxar brasa para a minha sardinha (até porque a televisão não é brasa mais propícia à minha desengonçada sardinha), mas pela qualidade do filme e por seu tema, tão pertinente: as intrincadas relações entre humor, liberdade e preconceito. O documentário mostra desde defensores de minorias até comediantes abertamente racistas. Após ouvir alguns do segundo time, me convenci de que o grande problema do "politicamente correto" não é a suposta ameaça à liberdade de expressão, mas o fato de que aqueles que até ontem eram tidos apenas como grosseiros ou ignorantes agora ostentarem o "label cool" de "politicamente incorretos". O humor é um brinquedo ambíguo. Quando rimos de nossas fraquezas, admitimos defeitos que, sem essa bem-vinda anestesia, seríamos incapazes de encarar. Desarmando-nos, o riso nos irmana com o próximo --afinal, somos todos companheiros nesta barca furada. Rir do mais fraco é o contrário. Nesse caso, o riso serve para camuflar nossas fraquezas, apontando-as (ou inventando-as) nos outros. É como dizer: sou tão inseguro da minha masculinidade que ataco as mulheres e os gays. Temo tanto meus defeitos que crio monstros feitos só deles: os negros, os nordestinos, os árabes, os judeus etc. Não é que haja assuntos proibidos para o humor: pode-se fazer piada com religião, cor, gênero. A questão, como diz Hugo Possolo no filme, é de que lado da piada você se coloca. Woody Allen, num stand up do início da carreira, dizia que a vida de seus avós na Polônia era tão horrorosa que, quando Hitler invadiu o país, eles pensaram: "Bom, quem sabe agora as coisas não vão melhorar um pouquinho?". Woody Allen estava rindo do sofrimento? Sim, mas não dos sofredores. A tirada aponta para os opressores, os antissemitas. Exemplo análogo é um esquete do Porta dos Fundos sobre a primeira reunião ri dos organizadores da KKK. me volta a esperança: ao que parece. tem muita gente talentosa que acha mais legal esculhambar o racista embaixo do lençol do que o enforcado balançando na árvore. O esquete (muito mais engraçado do que essa esquemática descrição) tira sarro dos negros? Não. O organizador (Fábio Porchat) descobre. Às vezes. Porchat diz que a reunião na verdade é para formar uma banda de blues e puxa um coro de "Oh.da Ku Klux Klan. Hugo Possolo. logo no início. Apavorado. que afirma ter chamado o pessoal que trabalha em sua casa. vendo os arautos da ignorância se arvorando a paladinos da liberdade. Marianna Armellini. das desigualdades sociais que ele cria e de seus estereótipos. Lola Aronovich e Jean Wyllys. a quem pinta como dois playboys sem noção. fico pessimista. Gregório Duvivier. os depoimentos de Laerte. . Fernando Caruso. ri do preconceito racial. no documentário. André Dahmer. sem nenhum sucesso. Happy Day". que todos os presentes embaixo das batas e dos chapéus são negros. Mas ao assistir aos vídeos de novos humoristas como Fábio Porchat. Marcelo Adnet e ao ouvir. Arnaldo Branco. Reclama com seu assistente (Gregório Duvivier). o que confirma os rumores de que uma boa parcela dos seguidores do Timão resolveu ir ao Japão pelo caminho mais curto: por dentro. "Timão e ô" na decolagem. todo-poderoso Timão!" na aterrissagem. é imbatível: é a assinatura que entrará para a história. saudava-o: "Ave. o sociólogo José Carlos A. Já os soldados da legião corintiana. levantava a mão e. partindo de um buraco na obra do Itaquerão e indo sempre reto. não divulgue. de balsa. mas "Vai. mas conforme apurei por aí a euforia era a mesma entre os torcedores que circundaram o globo parando em Miami. aviões. paulistano. de balão e ultraleve.Vai. Curintcha! 12/12/2012 Como sabem os interessados em antiguidade clássica --e os leitores de Asterix--. ô. da USP. chamou de "o maior deslocamento internacional já ocorrido em épocas de paz". Frankfurt. porém bem mais elegante: "Vai. Curintcha!". quem sabe. saindo do pico do Jaraguá --e. Istambul. Canadá e estreito de Bering. tomando só o cuidado de dar uma desviada ali nas proximidades do núcleo. ô. Dubai. Kfouri. ao que parece. via estreito de Magalhães. César!". quando um legionário romano topava com outro perambulando pelos confins do Império. perdão. via Dutra. a caminho do Japão. congratulam-se com o não tão solene. O que relatei no parágrafo acima aconteceu no voo SP-Tóquio. solene. sonhando um pouquinho mais alto. pois neste movimento migratório que um observador isento. sentido São Vicente. Isso para falar só dos que foram de avião. Minha epopeia de 30 horas entre a Terra da Garoa e a Terra do Sol nascente incluiu hino na sala de embarque. ô. há gente viajando das mais variadas formas: de Kombi e Mobilete. via Dallas. Curintcha!". trens ou cidades desconhecidas nas quais têm pisado nos últimos dias. "poropopó" sobre o Pacífico e "ô. Adelaide ou Paris. caiaque e pedalinho. embora o governo são-paulino. no dia em que for publicado o "Asterix na Fiel". ao cruzarem-se por aeroportos. é sabido que logo após a final da Libertadores um tatuzão foi roubado das obras do metrô. quando algum Gibbon escrever a "Ascensão e glória do império corintiano" ou. . Como diria Asterix: "Alea jacta est" --a sorte está lançada. o time pode até tremer de frio.claro. mas não vai tremer de medo. não importa: importa é que. Dallas. da Patagônia ao Alasca. pra não esquentar as Brahmas que a Antártica gentilmente nos cedeu. Nagoya e adjacências: "Vai. E como vêm dizendo os 20 mil loucos. rolimã ou tatuzão. se a legião chegará de Zepelim. Curintcha!" . se essa torcida fizer hoje em Toyota metade do que aprontou no caminho. passando por Guarulhos. do Oiapoque ao Chuí. Bom. Mas o princípio de Missu shi-Ro interveio. teríamos que entornar o caldo. Depois de ler a respeito desta doutrina. O que foram aqueles 3 a 1 senão uma providencial manifestação de Missu shi-Ro? Ora. fazendo com que nossa curva. de modo que o Corinthians e . teríamos beijado a lona --a lona de Cumbica. como havíamos tido nossa cota de vazio naqueles tristes 90 minutos no Pacaembu. num movimento pendular. os egípcios não estavam para brincadeira: pouco a pouco foram tomando conta do jogo como se estivessem na praça Tahir e nós fôssemos uns Mubaraks de araque. tudo que vaza precisa encher. o universo funciona como a pá de um moinho d'água: tudo o que enche precisa vazar. mas que envolve um texugo. fosse "de esvaziamento". do meio pro fim do jogo. perdendo a final. uma rã e o espírito do orvalho. que não contarei por falta de espaço. Mas. Afinal. para que as forças do cosmos se reequilibrassem. Quando o vazio se prolonga. infinito e gracioso. chegaríamos transbordantes diante do Chelsea ou do Monterrey e. o universo se zanga. Quando o cheio fica cheio demais. de alguém que não foi iluminado. revi toda a minha vida sob outro ângulo. Ora. Vitória chocha. nos coube a plenitude da vitória. ainda limpando as remelas da ressaca da Libertadores. os três piparotes no ego serviram como um necessário movimento de purgação de nossa vaidade: tivéssemos entrado no Mundial de salto alto. Pois se tivéssemos metido cinco no Al Ahly. tal pensamento só pode brotar da mente infantil de um ocidental. dirá o ignaro ocidental. Segundo a lenda da origem de Missu shi-Ro. o universo se encarrega de preenche-lo. Inclusive a derrota pro São Paulo. por outro lado.Romarinho e o Texugo 13/12/2012 Imagino que estejam falando aí no Brasil que o Corinthians passou um sufoco diante do Al Ahly. como eu. que os egípcios dominaram o segundo tempo e que jogando assim dificilmente seremos campeões. dois dias atrás. castigando o infrator com longos vazios. também conhecida como Missu shi-Ro. semana passada. ainda sem entender a beleza de Missu shi-Ro. pela teoria das compensações do zen xintoísmo. e a estrela de Romarinho. com a bênção do texugo. da rã.o universo. e os chutões pra frente. na última partida. chamados Sapporo. se encontrarão num saudável 0 a 0. .000 anos de história. mas um neo zen xintoísta. um jogador com quem Missu shi-Ro está em dívida: adora alternar intensas doses de cheio e longos marasmos de vazio. É nesses raros momentos de equilíbrio. Tô sentindo que é chegada a hora de uma nova dose --e quem o diz não é um corintiano. do espírito do orvalho e de mais de 2. aliás. Taí. que entra o livre arbítrio -- e a força da torcida. Imagino comissões de especialistas discutindo qual a melhor maneira de aquecer a tampa da privada. Penso. É? Ao ver os pacientes guardas tentando conter os torcedores brasileiros na saída do estádio. mas agora a falta de racionalidade me incomoda: não há divisão entre toalhas de banho e de rosto. Na CBF. que insistiam em ir da calçada para a rua pela única razão de que havia guardas tentando impedi-los --e eles não podiam suportar tamanha afronta às suas masculinidades--. Se arrumasse um armário assim. me perguntei: quem é o reprimido? "Ah. no armário. só fazem aqui. lá de casa. a melhor maneira de organizar os pedestres num cruzamento. do tipo: "ah. enfiados onde houver espaço. provavelmente seria expulso de casa. mas essa organização vem de um amor horroroso à hierarquia!". principalmente. acabaria me tornando um desses mendigos bêbados e barbudos que. não sabia que tinha algo de errado com ele. Algumas jazem dobradas. mas eles são muito reprimidos!". você começa a achar que o Ocidente é inteirinho nas coxas: direito mesmo. aqui no Japão.O melão e o nada 14/12/2012 Depois de conhecer o Japão. não há. É sério: quando eu vi aquela pilha. foi estudado e executado de forma a produzir os resultados mais eficientes. Nos fios expostos. entendi que era definitiva. Até vir para cá. Na fila dos hospitais. Penso no Brasil. enquanto outras estão em rolinhos. não. num mercado. A reação ocidental a toda essa organização costuma ser um ataque defensivo. eles amam a hierarquia. dirão outros. Verdade. pelas esquinas japonesas. A impressão é que cada mínimo detalhe da realidade. No Detran. nós não: mas quem precisa desse amor quando a 12ª pior distribuição de renda cumpre satisfatoriamente a tarefa de manter cada um em seu lugar? . O encontro com a perfeição nipônica me leva constantemente do maravilhamento à frustração. Muitas práticas neste mundo são passíveis de evolução: o empilhamento de melões. No armário de toalhas. a melhor maneira de empilhar melões. do sushi ao arranha-céu. o nada tá ganhando de goleada. tem um cara empilhando melões como se disso dependesse o futuro da humanidade não deixa de ser uma pequena e irônica vingança contra o nada. Vingança do japonês. porém. que do outro lado do mundo. É uma admiração estética.. claro.. porque basta ver meu armário de toalhas para perceber que.Meu deslumbramento com a onipresente perfeição japonesa não é só em razão da praticidade que ela produz. Saber. o universo tá se lixando pra gente. . lá em casa. num mercado em Nagoya. Deus há séculos não dá um alô. Veja: a vida não tem sentido. tornei-me um expert no metrô de Nagoya. descobri bairros e arrabaldes incríveis. A esperança de que algum dia meu celular funcionará diminui a cada dia. a 300 km/h entre Nagoya e Yokohama. em Chinatown. Aquilo que Hitchcock chamava de Macguffin: algo que o protagonista persegue e põe a história em movimento. ninjas tatuados rastejam pelo teto do vagão. incomodada com algo que escrevi. da Sophia Coppola. (Nas horas vagas. mas sei que minha busca não será em vão. porque estava engajado em minha saga telefônica. obviamente. revi "Encontros e Desencontros". enquanto digito confortavelmente num vagão do Shinkansen. Pode parecer que estou reclamando. Pegar o falcão maltês. Em minhas peregrinações.Ceruraro chip? 15/12/2012 Minha vida no Japão consiste em acordar cedo. É um filme muito bonito. o pessoal do jornal garantiu que achar o tal "cartão SIM" era facílimo. tendo ido a mais de 20 lojas e seguido as dicas de dezenas de vendedores extremamente simpáticos e metafisicamente incompreensíveis. sair do hotel e lançar-me numa busca inglória por um chip pré-pago para celular. Ao me emprestar o aparelho. Nenhuma busca o é. lançou contra mim uma nipo-fatwa e neste momento. Estivessem Scarlett Johansson e Bill Murray . descobrir quem matou Hollis Muwray. travei amizade com integrantes da Fiel japonesa e fui convidado para o churrasco pré-jogo --ao qual não pude ir. começo a ter minhas dúvidas --mas não desisto. em 8 ½. Muito pelo contrário. escrever o roteiro. o trem-bala. Noventa e seis horas depois. Vai que a crônica não chega? Vai que precisam me pedir para fazer cortes ou mudanças? Vai que a Yakuza. contudo. escrevo crônicas sobre o Mundial de Clubes da Fifa). O filósofo Walter Benjamin disse que a melhor maneira de conhecer uma cidade é perder-se por ela. aí no Brasil. mas seria ainda mais legal se os personagens tivessem algum mínimo objetivo. Errado: é procurando um chip para celular. prontos para entrar pelas janelas e fazer sashimi do meu cérebro? É sempre bom estar comunicável. Na semana anterior à viagem. tomar café. mas. por exemplo. de uma capinha da Hello Kitty. mas isso ele só descobre no final. O objetivo declarado do protagonista nunca é sua real motivação. depois de conquistar ou não o que pensava querer. quando a vendedora voltou. Senti-me frustrado e só. Ontem. sorridente. até compreender que havia encontrado algo mais importante do que o chip: o tema da crônica. tive vontade de chorar ou matar. no terceiro subsolo de uma loja de oito andares. pensei que meu martírio tivesse acabado. . o que trazia era uma capinha de iPhone. da Hello Kitty.atrás de chips para seus celulares e o filme seria mais engraçado e melancólico. diante. a essa altura. Toku. Ontem. onde. Só que mais." Quis saber o significado e ele fez uma cara de "como é que eu vou explicar pra esse gringo?". Timón. Sem firula. "Toku. Alguém faz coisa difícil? Tem Toku.. a mão no coração. só duas mesas e um balcão. aliás. dizia o Sakurai e batia no peito. Casado com Midori. sempre que vem a Tóquio. já via os dois remos . resolvi tomar um saquê. "mas Toku. Ora. onde sentei. em Tóquio. me explicou. do "um por todos e todos por um". coração. então. enganam.-me. descobri entre ambas mais semelhanças do que supõe a nossa vã filosofia. concentração e resultado. Bravura? Toku!". o atual time do Corinthians é o mais japonês que já tivemos.. Japão é ZL. "Ju". Toku. é "dez". que no caso quer dizer "bastante". bebe ali. Veja o lema da Fiel: "Lealdade. depois o pessoal. Perguntei-lhe o nome do bar. Procedimento". digamos. Segundo o senso comum. Neste sentido. Difícil. As aparências. depois da Segunda Guerra. uma chuleta e um quimono. o Sakurai. eles estariam um para o outro como. nada é mais antagônico do que um corintiano e um japonês.Ju Toku 16/12/2012 Aparentemente. só que mais. Pôs. vai embora --e isso é só o começo. mora em Kawasaki e. Toku. Sem estrelas. Nipon. achei o lugar: uma escadinha dando para um subsolo. Gente finíssima. passa a Mooca. já pegando meu caderninho e desenhando dois ideogramas. Com dedicação --muita dedicação--. Em primeiro lugar. e após cinco dias de intensa convivência com as duas culturas de rara complexidade. esforço. contudo. nem com disposição diferente que este país foi reconstruído do chão. puxou papo. O mascote do Timão é um mosqueteiro por quê? Pelo companheirismo. "Ju Toku. não foi agindo de outra forma que os Sete Samurais defenderam seu povoado. pai de Hiroko. nem preciso dizer. Não demorou e um cara por ali. Pega a Radial. coragem. Humildade. como bem notou meu amigo Zero. Após rodar alguns quarteirões. no filme do Kurosawa. Também é esse o espírito que move os japoneses: primeiro o coletivo. muito japonês". tomando cerveja. eles têm tanto Toku quanto um quimono tem sabor. jogaram melhor contra o Monterrey do que nós contra o Al Ahly. mas 11. que veio até o Japão pra ficar homenageando o Di Matteo. Curintcha! . Já nós. Vai. como o bar. E 30 milhões. que não vê a hora de mudar de emprego. vamos admitir. estão na frente na bolsa de apostas. E 20 mil. tem Toku? Não. meu amigo. Mas você acha que o Torres. com aquela pinta de Golf Club.cruzados sob a âncora. e. Na boa: eles têm mais estrelas. tem Toku? Que o Rafael Benitez. tem Toku? Que essa torcida. temos Toku até o osso: não dez. não podemos deixar de mencionar.. a paixão e o esforço que os trouxe até aqui. Tatuapé. Camisa 12. tudo --só com muita dificuldade se via. Fiel Praia Grande. jamais saberemos (tem que contabilizar os solteiros. Coringão Chopp. "Timão ê ô". Das coisas mais bonitas que eu já ouvi: em Yokohama. 50. a decisão de passar uma semaninha no Japão deve ter criado.576 km do Pacaembu. Fiel Leme. Japão. a essa . A torcida empurrou. acachapante. Cohab 5. sem falar na vaia que ecoou pelo Oriente quando o Chelsea entrou para aquecer. pegou empréstimo no banco. o time respondeu. vamos Corinthians. que ainda estará zunindo nos tímpanos daqueles pobres e desolados bretões em seus últimos instantes sobre a Terra. também. ceroula com o primo. 40 mil. Fiel Morato. Pois a mulher deixou. ainda devendo prestação da TV e da geladeira.. um frio de bater queixo e o estádio apinhado de corintianos. Fiel Cachoeira. num frio de bater queixo e a torcida cantando. Curitiba.. As faixas tomavam 360º do anel entre as arquibancadas: Fiel Capão. em milhares de lares brasileiros. Japão. Vila Moraes. Fiel Centro. esparsos smurfinhos do Chelsea.. do outro lado do mundo. sem parar um único segundo: "Vamos. parcelou em três gerações. a avó tricotou a luva e cada corintiano presente no estádio fez valer o dinheiro. uma vaia colossal. aqui e ali. do outro lado do mundo. Nem parecia que estávamos a 18. Curintcha! 17/12/2012 Das coisas mais bonitas que eu já vi: em Yokohama.". E não é que funcionou? Como em raras vezes na vida. tudo deu certo.Foi. com o orçamento curto.): neguinho vendeu o carro. Suzano. o que dá uma ideia da delicada situação conjugal que. Fiel Sorocaba. 30 mil mulheres deixaram. goleamos por 1 a 0. digna de crônica do Nelson Rodrigues. Pavilhão 9. Tudo preto. "Minha mulher deixou!". Taboão da Serra --e. Guarulhos. "Aqui tem um bando de louco!". Torres foi anulado pelos peões --e. descolou casaco com o tio. David sumiu. Curintcha! . impossível. que tem alguém nas coxias trabalhando no roteiro: um time que foi criado em 1910 por um cidadão chamado Bataglia conquista o mundo com um Guerrero. Cássio. se tiver um pingo de vergonha na cara. A equipe do Corinthians venceu pelo conjunto. Melhor. Oscar não deu nem pra Quiquito. claro. que fechou o gol e levou merecidamente a Bola de Ouro (embora Muro de Ouro fosse o correto) e. mas dois jogadores merecem destaque. que em inglês quer dizer "perigo". assim que pisar em Londres vai correndo a um cartório mandar botar um "No" antes de seu nome. sob o Golias corintiano.hora. dessas que fazem a gente desconfiar. às vezes. Foi. Que coisa mais óbvia e mais acertada. E Hazard. deve estar indo levar saudações alvinegras à rainha. Guerrero. do SNI ou do FMI. que. afirmando que aquilo sim. como sambistas tísicos e amantes suicidas. os botecos morriam na flor da idade. Dessa época. ali na Vila Madalena. guardo (boas) lembranças do Pirandello. não falo aqui da "hora em que todos os bares se fecham e todas as virtudes se negam". Mas já então ouvia os adultos elogiando outros defuntos como Baiuca. passando em frente ao Filial. em que Vinicius tomava suas banheiras de gim tônica? Cadê o Luna Bar e o Real Astoria. da recessão. É verdade que não vivi de fato essa fase seminômade da boemia. Não sei se a culpa era da inflação. aquilo sim era bar. do Vou Vivendo. sei é que bar era um negócio temporário. comendo frango a passarinho com Fanta Uva ao lado do meu pai. Ou melhor. do Nabuco. do Plano Funaro. como uma viagem de Réveillon. Digo é que os bares não batem mais as botas. me dei conta de uma consequência ainda pouco comentada destes 20 anos de estabilidade econômica: os bares não fecham mais. vivi por tabela. outro dia. passávamos por um botequim. de Genebra.A vida dos bares 19/12/2012 Outro dia. imploram por uma saideira. não passam o ponto como costumava acontecer no tão próximo e já longínquo século 20. Onde estão o Antonio's. em cujas mesas se reuniam os não tão inocentes do Leblon? Muertitos de la Silva -diria um argentino fluente em portuñol. como escreveu Drummond. também. como se mais um copo pudesse preencher o vazio cósmico que envolve os fígados e corações lá pelas três da madrugada. Não. da falta de plano. implorando por compaixão. neste país em que vamos do tapume à . de Underberg. antes. não fecham definitivamente as portas. Pois eis então que. Jogral. do Royal. citando as convenções de Haia. Cravo e Canela. a hora em que garçons merecidamente mal-humorados botam as cadeiras em cima das mesas e jogam baldes d'água sobre os pés dos últimos bebuns. um namoro rápido e intenso que terminava depois de uns anos e ficava só na lembrança dos envolvidos. o João Sebastião Bar. Pense no Rio: por lá. pedindo clemência. criancinha. do Plano Sarney. Ela. nas sextas-feiras em que minha irmã e eu íamos dormir em sua casa e. retomando a caminhada e brindando mentalmente à longevidade de nossos queridos bares. . Feliz com minha constatação. passo em frente ao Filial e o que vejo em seu lugar? Susto: ele mesmo! Quantos anos terá? Vinte? E resiste! Foi lá que lancei meu primeiro livro. fim de ano. segue firme e forte. decido tomar um chope.. sabe como é. E o Balcão? Virou igreja evangélica? Bufê infantil? Pet shop? Nada. que fim levou? Nenhum: continua lotado. pequena babilônia etílico-literária. penso eu. já se vai mais de uma década. com seus 32 tipos de Bourbon à sombra das chuteiras imortais. onde praticamente dei meus primeiros beijos. e a Mercearia. Sei. assim como o São Cristóvão. meus amigos.". E o Ó do Borogodó.demolição antes da hora do almoço. sei. ironicamente ensanduichado entre os vivíssimos do Conniff e os finados do cemitério.. Fazer o quê? Antes os novos gargalos do crescimento do que o velho fundo do poço. mesa de firma. as conversas serpenteando até tarde da noite. mas o Ceará me avisa que "A espera é de duas horas. meus caros: cheguei ao meu destino duas horas e meia antes de partir e até hoje não consigo pensar em outra coisa. conseguiu entender. Não. não me refiro ao bicampeonato mundial do Sport Club Corinthians Paulista --um fato esplêndido. eu sei que há uma explicação racional para minha pequena viagem no tempo: calhou de eu e o planeta estarmos indo pro mesmo lado e de eu voar mais depressa. Por exemplo: não envelhecer. mas o "Yesterday" estava corretíssimo. Não sei de onde o smart(sic)phone tirou o "20:30 PM". furando o tempo como quem fura uma onda. decerto. mas que de incrível não tem nada. Eis que peguei um avião em Tóquio às nove horas da manhã de segunda-feira e aterrissei nos Estados Unidos às seis e meia da manhã de. O absurdo se deu na volta do Japão para Chicago. mas eu. segunda-feira. Yesterday".. em sua tela luminosa e obscura. Sim. parei para visitar uns amigos. Mas entender racionalmente um fenômeno não diminui o seu mistério --e aí estão o amor. Impressionante que não tenhamos. a caminho do Brasil. a morte e a batata frita sabor pizza para provarem o que eu digo. de modo que cheguei ao mundo um pouquinho antes dele próprio. aproveitado as inúmeras possibilidades que esse truque metaf"ú"sico abre para a humanidade. Por exemplo: não morrer.O futuro é coisa do passado 26/12/2012 Dez dias atrás aconteceu a coisa mais incrível da minha vida. Cruzar um oceano e pousar noutro continente antes de ter partido é tão estranho que nem meu celular. uma máquina que dispõe de mais capacidade de processamento do que todo o programa Apolo. Vamos convencer já nossos 7 bilhões de semelhantes a . a vitória era óbvia e evidente como a lua brilhar no negrume da noite ou o sol raiar ao fim da madrugada. onde. até hoje. não havia passado com ele. claramente atordoado com os dados ilógicos que sua lógica impecável o obrigava a exibir: "20:30 PM. Por exemplo: eternizar o presente. uma vez que em Tóquio um dia havia se passado.. Ok. Quando liguei o telefone em Chicago ele me informou. não sentirá o hálito azedo da segunda. young man! Go east!" é o bordão do futuro. Ou melhor. seja da balada ou da labuta. Inexorável? Não mais. Que pegue o Boeing dos CDFs numa segunda de manhã e na segunda permanecerá. iluminando-nos rumo ao inexorável crepúsculo de nossos dias. É chegada a hora de inverter este vetor. até o fim de seus dias --diria eu. dormir algumas noites e tomar um avião domingo à tarde. ad infinitum. da época em que o sol raiava ao fim da madrugada. e. foi "Go west!". de pantufas. do presente. é só descer num aeroporto. orientando os pilotos a irem um pouco mais devagar do que o meu. Sugiro partirmos num sábado à noite: a vida será um sábado que nunca verá a aproximação opressiva de domingo. E quando quisermos descansar. "Go east. dos Bandeirantes aos colonos norte-americanos. se os dias tivessem fim nesta jornada atemporal. O lema da humanidade. pois futuro é coisa do passado. de Genghis Khan a Cabral. . ficaremos parados num hoje eterno. para no domingo ficar.engajarem-se numa marcha global para a direita. O leitor acha perda de tempo congelar a história entre cervejas e pistas de dança? Ok. Compremos os tickets e sejamos felizes para sempre. veio de lá. como mergulhadores que sobem rápido demais do Éden das profundezas ao marasmo da terra firme.. um viaduto entre o Atlântico e o Microsoft Office.. mas não tive coragem. Cinquenta por cento tão na estrada. dois. três. dois. contudo.. As comédias de Shakespeare estão cheias de piadas com pum. caraminholas. Devia aproveitar a liberdade para escrever o que sempre quis. não sei do que estou reclamando. ainda está longe: Baco agora é uma garrafa vazia na área de serviço. de choque anafilático ou de trombose. . ou melhor: de lamas. Floripa. choripan. diazinho mequetrefe. na sexta-feira de Carnaval. falando com as paredes. Com as paredes: ou você acha que alguém lê uma crônica no dia dois de janeiro? (Este "você". pum. é segunda-feira. são os lixos abarrotados na casa de praia: hoje é dois de janeiro. Mesmo que hoje seja quarta.eco 02/01/2013 Dois de janeiro: êta diazinho mequetrefe. preso neste andar vazio. Posso gritar o que quiser que não surtirá nenhum efeito. O Carnaval. tem alguém aí? Não tem. moro num Patropi. cinquenta por cento já tão na labuta. de certa forma. Enquanto isso não acontece. três. Dia dois não dá mais pra se enganar: pernil. Quarta-Feira de Cinzas. Dia primeiro é o domingo do ano passado. Os restos da ceia que você traçou já no café da manhã. pum". também. Um.Eco. é retórico. é uma passagem. que nos aguarda ali adiante. aqui estou eu. Pensando bem. ainda pertence ao ano anterior. pelo menos. protetor e frescobol são memórias quase tão distantes quanto os amores da adolescência. Dois de janeiro não é um dia. Dia primeiro. a maior segunda-feira do ano. Sugiro riscar este dia xexelento do calendário como os americanos riscam o décimo terceiro andar de seus prédios.eco. no Facebook. pois o jornal está deserto como um hangar abandonado). no entanto. claro. (Tenho o baixo em alta conta).. oprimindo-nos com suas mesquinhas demandas desde as últimas brisas de Iemanjá até o bafo entorpecente de Baco. espanholas. Embora preze piadas com pum. A ressaca. Deve ter gente que morre de choque térmico em dois de janeiro. fingindo que trabalham enquanto buscam consolo xeretando as fotos de Réveillons alheios. O que? Certamente não é "um. a gente passa por cima da lógica. verdade. e eu não respeito? Escrevo pra ele até quando ele não vem. Um. pum. graças aos e- mails de 127. três. ao acabar seus livros.763 leitores. dia dois de janeiro) veria um erro lógico no parágrafo acima. tem tanto pum por ali que. em busca de uma piada. Então tá tudo bem? Tá. ausentes! Que tudo se realize no ano que vai nascer. não do leitor. Um leitor mais atento (caso houvesse algum leitor. A mão amarela é só do autor do pum. em que afirmei sem checar. dois. é sim: mais respeito com o leitor. por exemplo. saúde pra dar e vender. É verdade. Como na coluna passada. Também não é pra tanto. que a velocidade de um avião de carreira era maior do que a velocidade de rotação da Terra. Mil desculpas. Antonio. Feliz ano novo. Ué. você até fica com a mão amarela. Agora sei. É. Peço perdão. Verdade. que só jatos supersônicos voam mais rápido do que o mundo. só para fazer uma gracinha. . Às vezes. Muito dinheiro no bolso. Rabelais.Sterne. Cervantes. pelo menos desde o último domingo. no bolso. resigno-me a andar em círculos pelo quarto. Não pense. como um rádio-relógio --ou como um papagaio que tivesse sido criado ao lado de um rádio-relógio--. ainda pode levar à ruína do meu casamento. expediente esse que. ao correr uma maratona." Eu. não sou capaz de digitar sequer um SMS enquanto aguardo minha mulher se arrumar. à luz de velas --em vão. que o problema é meu. ouvir o discurso do padre. E na cueca. suar sob o terno. uma neurose. enquanto se participa do ritual meio budista. que estou sendo machista. 11 da manhã. a vitela.Vestindo (a carapuça) 09/01/2013 "Este livro foi escrito durante todos os momentos em que esperava minha mulher se vestir" --diz Groucho Marx. Sinto que perder a cerimônia e aparecer só para a festa é como. com a boca seca e o estômago vazio. o que mais me angustia é o casamento. no mínimo. pegar um táxi para a linha de chegada. é um desvio de caráter. se tem logrado algum sucesso no que tange à pontualidade. são passos imprescindíveis para se merecer o espumante. Se. cara leitora. não se pode) chegar atrasado. das outras vezes. este livro jamais teria sido escrito. dos noivos. que a pontualidade. "Se ela nunca tivesse se vestido. meio celta ou meio bororo que o casal preparou. algo que devo tratar na análise ou. repetindo de minuto em minuto o horário estampado no celular. ela tinha sido compreensiva e tratado minha obsessão com . em sua autobiografia. refletir bastante a respeito. nas infinitas horas em que fico sentado a esperar que os outros apareçam. o YMCA e os 17 bem-casados que serão levados para casa. De certa forma. chacoalhando o molho de chaves. E na meia. Muito pelo contrário: sei. entre os latinos e outros povos ensolarados. Foi mais ou menos isso que tentei explicar à minha mulher. sábado à noite. menos talentoso e mais ansioso do que o velho Marx. De todos os possíveis compromissos aos quais se pode (ou melhor. dos padrinhos. Tínhamos um casamento. Pois vamos ao domingo. durante um jantar que eu mesmo preparei e servi. opondo a autoproclamada diligência masculina à suposta confusão feminina. uma infinita hora em que esperamos minha mulher. meio-dia. espero. que fosse antes. seus maridos.benevolência. . pelo menos. mas vai!" "Ah. que lhes informo não ter sido o primeiro. que não se submeteria novamente à minha loucura. Não chega a ser um consolo. Padre Rubens. Somente. quem sabe. sozinho: ela iria depois. todas as outras mulheres. como todas as "pessoas normais". cuja biografia eu seria capaz de escrever depois de uma hora escutando-o no bufê vazio. os noivos e as famílias dos noivos se vestirem. Disse que ninguém chegaria às 11 no casório. mas. caro leitor. no sábado bateu o pé. que se eles nunca tivessem se vestido esta crônica jamais teria sido escrita. Se eu quisesse. cara leitora. mas não vou!" "Quer apostar?" É com imensa alegria. que ficaríamos só nós dois esperando num bufê deserto. "Ótimo! É isso mesmo que eu vou fazer!" "Perfeito! Vai lá! Abre o bufê! Você vai ser o primeiro a chegar!" "Não vou!" "Ah. um homem pontual e comunicativo. serve como piada. O padre já estava lá. O que posso dizer depois dessa lição? Nada. meio-dia e meia. Ou "bada". mas incontornáveis-. particularmente. em vez de ficarem depenando as tremas de pinguins indefesos em inúteis reformas ortográficas. Ou o molho tártaro. as combinações entre as consoantes e as vogais são infinitas. prefiro "lafana"). Os novos termos. Se. contudo. os cabos do exército passam a chamar-se subsargentos. geral e irrestrita. Ou "sprrrrlsploft". em que três pessoas e uma rachadura num copo --uma única rachadura. Ou o povo da . eles se dedicassem a uma reforma semântica. É pegar "polissemia" e batizar com ela as mangas da camisa. às vezes. os frutos. o vernáculo conta com os gramáticos para trazer mais racionalidade à selva da comunicação. "A partir de 1º de janeiro de 2014. Palavras brotam como árvores. Veja. Fundamental é deixarmos de viver nesta barafunda em que uma mercadoria que não é cara (rosto) é barata (inseto). pano de chão." Ou "zartos". também. Não era mais fácil consertar a estrada? Minha vontade é arrancar a placa e botar sobre um buraco. em que os budistas são liderados por lamas. particularmente. as costureiras. (Eu. esgarçam-se como camisas. a manga da camisa passa a chamar-se lafana". Vem do grego: poli = vários + sema = significado --e muito me admira que gramáticos tenham se reunido. tudo ficaria mais simples. buracos na pista".são chamados de trinca. Mas assim como os pomares têm seus agricultores e as roupas. Ou o tártaro dos dentes. as partes da camisa e os demais itens deste mundo.de que a humanidade está fadada ao fracasso. olhe só-.Murundu polissêmico 16/01/2013 Que manga seja tanto o fruto da mangueira quanto o braço da camisa é um desses indícios --pequenos. a blusa. Ou "inhaum-inhaum-plaplum". "A partir de 1º de janeiro de 2014. Polissemia é o nome da lambança. mudam de significado: a fruta vira compota. se debruçado sobre o problema e surgido não com uma solução. (Eu. prefiro "inhaum-inhaum-plaplum"). Se usamos o mesmo nome para duas coisas tão distintas. é porque a bagunça é ampla. Lembra-me aquela placa: "Atenção. não. Eu sei que a língua não surge por decreto. mas com esta palavra bonita e pomposa. pouco importam. que nada tem a ver com Budapeste. em Kafka. Ora. . É um pedacinho de nossa experiência na Terra que entra pelo cano --como eu. perdido neste murundu polissêmico. Sinapses jogadas no lixo. Quando ouço falar em banco de dados. Não se trata apenas de um purismo. sinônimo de peste. São neurônios mobilizados inutilmente. que além de peste tem Buda no nome. pensa a senhora de mente suja --mas não eu. por exemplo.Tartária. de uma firula anal retentiva. "Antes buda do que Tcheca!". que nasceu em Praga. A polissemia atrapalha a vida da pessoa. quero dar cabo deste problema. gastemos nosso tempo com o que importa. curtir os baratos que a vida oferece sem pensar em monstruosos insetos. quase escuto cacarejos. Quando faço um galo na cabeça. Quero comer mangas em mangas de camisa. penso numa porcaria de um banco feito com dados. pois jamais faria tais insinuações num jornal de família e só vim aqui por amor à língua e ao nosso povo. projeta-se em algum canto do meu cérebro a imagem deste que vos escreve caindo num bueiro. quando penso no Caio. Toda vez que chamo meu amigo Caio. não. Um homem acima da moral de sua época. em que cada julgamento é miligramicamente pesado para se avaliar os seus efeitos --seus likes. os peladões têm objetivos. é sempre melhor ver ativistas ucranianas em pelo (ou sem pelo nenhum) defendendo uma causa nobre do que ruralistas (vestidos. Tudo bem. hoje. não. pipoqueiro faz coaching. livres e despropositados. diante de um pavê. antigamente. removemos manchinha por manchinha de nossas facebúquicas personalidades. como vai capitalizar a experiência. Que coragem. nestes tempos bicudos em que a canalhice é perdoada. método. fomos todos cooptados pela cartilha do cálculo. estratégias. que não tem vergonha de baixar a guarda e mostrar-se desprotegido. Como eram felizes os peladões de antanho. Agora. até adestrador de cachorro tem assessor de imprensa. com a certeza do primeiro ser humano tocado pela luz da inspiração: "É pavê ou pacomê?!". de um espírito superior. Sejamos anarquistas ou sojicultores. Que coragem. evidentemente. Desnuda-se pelo fim da corrupção. passamos a cortar as estrias dos discursos e. vivemos sob a égide do grande Deus Photoshop. pela bicicleta. surgiam correndo no meio de um jogo de futebol. Nesta era da performance. em que cada ideia é cuidadosamente escanhoada antes de ser posta no mundo. É o último romântico. como aqueles peladões que. Veja. contudo. filho temporão de . ziguezagueando entre jogadores perplexos e policiais furibundos. que suspira e vira os olhos como um filósofo vendo TV ou um cientista lendo o horóscopo. Começamos tirando as celulites das bundas. mas eu. felizmente) atacando as leis ambientais. saindo dali: palestra motivacional? Biografia? Autoajuda? Só nosso amigo do pavê não pensa nos efeitos e consequências de seu ato: simplesmente segue o impulso. Eu sorrio feliz e contente toda vez que escuto alguém perguntar. despidos ou de burca.É pavê ou pacomê?! 23/01/2013 Tem gente que se irrita. refém de assalto a banco imagina. enfim. com uma arma na cabeça. deslikes e retuítes--. pelos golfinhos. No século 21. mas a ingenuidade. o cidadão me sai com essa: "É pavê ou pacomê?!". Trata-se. em nome de uma piada (dita) infame. Não havia --mal havia pacomê--. superestimada virtude! Goebbels. diria Jesus. da etiqueta.Jacques Tati. a inteligência. Bem-aventurados os puros de coração. com a colher em riste e a fé no futuro: "Pacomê!". neto do Charlie Chaplin. pois verão a face de Deus". Não desanimem. irmãos: saibam que. Kalashnikov e o inventor do telemarketing eram todos inteligentíssimos e o mundo passaria bem melhor se. tivéssemos um punhado de figuras capazes de desafiar a família. em seus lugares. enfrentando com a cara e a coragem o desdém da sociedade. sem medo do ridículo ou de retaliações. sempre disposto a responder. Ah. se não têm o testemunho de Mateus. "Bem-aventurados os do 'pavê ou pacomê'. contam ao menos com o apoio deste modesto cronista. da inteligência. os chefes e colegas de trabalho. lutando contra as catracas do bom (sic) gosto. . na Galileia. os amigos. Stalin. de modo que os bravos iconoclastas seguem na luta sem o beneplácito de Deus. se na Galileia já houvesse pavê. Assim. não dois: todo mundo --como se respeitar aquele simples sinal luminoso equivalesse a ter a palavra otário escrita na testa. mas o sujeito o ignora solenemente. alertando sobre um problema no reverso da turbina. Renato Janine Ribeiro. o limite não limita! Repito: o limite é de 8. Quantas pessoas que compraram a carta de motorista você conhece? Que têm gato de TV a cabo? Que já subornaram um guarda de trânsito para não ser multado? O avião vai decolar. Há uma altura máxima para prédios na rota do aeroporto. mas todo mundo levanta. Não um. sob o concreto da rodovia. Mas vejam como são as coisas no Brasil: entre nós. cujo limite deveria ser de 8. O piloto o desligou. Janine sorriu e disse algo mais ou menos assim: "O que é 'limite'? É aquilo que não se pode transpor. alguns metros acima. esse era o costume: se fossem dar atenção a todo alarme que soava na cabine. Um sinal luminoso também piscou na cabine do Fokker 100 da TAM. nenhuma aeronave saía do chão. ao . é que ficaram gravadas na minha memória e é assim que me voltam. quando me deparo com a nossa ilimitada necessidade de burlar a lei. na USP. novamente foi desligado. quase todo dia. Segundo o depoimento de outro piloto.Todos juntos 30/01/2013 Acho que já contei aqui a história. Eu tinha 18 anos e estava em minha primeira aula de filosofia.000 caracteres". Levantei a mão: "Se estourar um pouquinho esse limite. O professor. Peço perdão ao filósofo se as palavras não foram exatamente essas. O avião pousa. O luminoso piscou novamente. né?". mas a ocasião me permite repeti-la. tudo bem. Às vezes. que taxiava na pista de Congonhas na manhã de 31 de outubro de 1996. mas o empreiteiro constrói um "puxadinho". o comissário de bordo pede para desligarem os celulares. o comissário pede aos passageiros para que aguardem sentados até o "apagar do aviso luminoso de atar cintos". umas ripas de metal. mas economiza dinheiro aumentando a distância entre elas. porém.000 caracteres. dias mais tarde. A construtora precisa botar de tantos em tantos metros. nos explicava que no fim do semestre seríamos avaliados por um trabalho individual. como já estão passando. naquela manhã. quando o telefone tocou. se não entendermos que as leis são universais. em TODAS as esferas. não: 24 segundos depois de decolar. É fundamental que as casas de show passem por reavaliações. Às vezes. sem jeitinho. Era verdade. o avião caiu. estava entre os passageiros. Nas próximas semanas.que parece. Eu estava saindo para a USP. Vi a lista. as tragédias continuarão acontecendo --e a morte é um limite que nós. que eles sejam punidos. É fundamental. Mas se não mudarmos a nossa mentalidade. por TODAS as pessoas. por mais espertos que nos julguemos. que há procedimentos que precisam ser executados conforme as regras. matando 99 pessoas. não somos capazes de transgredir. Uma amiga do meu pai queria saber se era verdade que meu tio Duda. se houver culpados (como parece ser o caso). alarmes soam à toa. o Brasil concentrará suas energias em encontrar os culpados pela tragédia de Santa Maria. Liguei a televisão. . sem gambiarra. brasileiros. irmão da minha mãe e meu padrinho. Como pode ele entender que o fato de estar pagando não garantirá a atenção do garçom carioca? Como pode o ignóbil paulista. imagina que os aristocratas ressentiram-se com a nova posição. passaram a servir reis e rainhas do 20: levaram gim tônicas para Vinicius e caipirinhas para Sinatra. O paulista estrebucha: "Amigô?!". pois se deixaram de bajular os príncipes e princesas do século 19. diante da pergunta "débito ou crédito?". saudades do imperador. Faz sentido. 99% das vezes. assovia.Cliente paulista. Um antigo membro da corte que esconde. percebo a redundância: o paulista é sempre cliente. uísques para Tom e leites para Nelson. aí estão eles. tira um fiapo do ombro. o garçom carioca o ignora com redobrada atenção. o cliente paulista acena. . Eu disse "cliente paulista". ao fundo do restaurante. garçom carioca 06/02/2013 Veja. O pobre paulista. agita os braços num agônico polichinelo. com sua ainda mais pobre visão hierárquica do mundo. duques e viscondes no dia 16 de novembro de 1889 pela manhã? Voltaram a Portugal? Fugiram pros Açores? Fundaram um reino minúsculo. compreender o discreto charme da aristocracia? Sim. a bailar seu diabólico "pas de deux": sentado. Sem querer estereo-tipar. ainda hoje falam de futebol com Roberto Carlos e ouvem conselhos de João Gilberto. do descaso e da gravata borboleta. nascido e criado na crua batalha entre burgueses e proletários. lá pros lados de Nova Iguaçu? Nada disso: arrumaram emprego no Bar Lagoa e no Villarino. Para onde você acha que foram os condes. mas já estereotipando: trata-se de um ser cujas interações sociais terminam. olha pro lustre. no Braseiro e no Fiorentina. "Parceirô?!". encostado à parede. De maneira nenhuma. Continuam tão nobres quanto sempre foram. "Chefê?!". receberam gordas gorjetas de Orson Welles e autógrafos de Rockfeller. Um ser que tem o "direito do consumidor" em tão alta conta que quase transformou um de seus maiores prosélitos em prefeito da capital. o garçom boceja. espécie de Liechtenstein ultramarino. por trás da carapinha entediada. no Jobi e no Nova Capela. seu orgulho permanece intacto. marmóreo e impassível. meu caro paulista: o garçom carioca é antes de tudo um nobre. saudoso das várzeas do Tietê. . Ah. onde a desigualdade é tão mais organizada: "Amigô. depois de amanhã e até a Quarta-Feira de Cinzas. Veja. E quer saber? Ele tem toda a razão. como se debaterá amanhã. e ali esquecê-lo para todo o sempre. veja como ele se debate. conterrâneo. dava pra ver um cardápio?!". você é que foi ao restaurante para homenageá-lo. esse homem bidimensional e sem poesia.Até que chega esse paulista. nenhum emblema preencherá o vazio que carregas no peito -pensa o garçom. capaz de abrir todas as portas. achando que o jacarezinho de sua Lacoste é um crachá universal. a caipirinha de saquê era sem açúcar!". companheirô. faz meia hora que eu cheguei. O garçom carioca não está aí para servi-lo. o bife era mal passado!". de camisa polo. paulishhhhta otááário. maldizendo a Guanabara. "Ô. a caminho do banheiro. Acalme-se. meia soquete e sapatênis. Acostume-se com sua existência plebeia. "Chefê. antes de conduzi-lo à última mesa do restaurante. Olha quem fala. na esperança de encontrar um copo d'água e uma aspirina na mesinha de cabeceira. como se um celular vibrasse dentro de seu cérebro.Ué? Pra quem se veste de noiva. Ficam quietos por intermináveis segundos.Tipo acordar num quarto rosa. . amigo! Isso aqui é bata! Bata de sultão. e sim um ruivo vestido de noiva. com esse teu saião aí! . lhe explique como foram parar ali. depois eu não lembro de mais nada.A última coisa que eu lembro é do bloco do Caroço. lá no Tremembé.pergunta Valdemar. que o encara com o que. entendeu?! . Vira pro outro lado.Que mané saião. Que loucura.Foxy lady 13/02/2013 Valdemar acorda ainda fantasiado de sultão. até que o ruivo rompe o silêncio. mas não encontra sequer a mesinha de cabeceira: aquele não é seu quarto. Sente a cabeça latejando.Eu perguntei primeiro! Quem é você e o que que eu tô fazendo na sua casa?! .Entendi. com lençol de oncinha. Seu quarto não tem paredes cor-de-rosa. na falta de palavra mais forte. Judith. no Bexiga. .Quem é você?! . não. Eu lembro que tocou "Balancê"..retruca o ruivo. Os dois olham em volta. parceiro?! . . mas a pessoa com quem divide a cama não é sua mulher.Quem é você?! . que perigo. lembro que eu puxei um trenzinho. na esperança de que sua mulher.Minha casa?! Cê acha que a minha casa tem parede cor-de-rosa e lençol de oncinha. vamos chamar de pânico. arrancando o véu e a grinalda. Nem lençóis de oncinha. podia ter acontecido alguma coisa séria comigo! . . eu tava no cordão do Carcamano. Vira-se para o lado.. . . prestes a explodir. do lado de um ruivo . Se encaram.Tremembé? Não. Não entendi é o que que eu tô fazendo aqui nessa cama. Ubiratan. Precisa se preocupar com o pernoite. como se um celular vibrasse dentro de seu cérebro --é quase isso. calma. pois leva a mão ao turbante e encontra o telefone enfiado numa dobra do tecido. todas da Judith. . Dão numa portaria. prestes a explodir. eu não sei. O ruivo sai do quarto... ó. Valdemar toma coragem: ..Boa tarde.vestido de noiva? Eles se calam outra vez.. que que a gente faz? . parceiro?! Tá louco?! Eu sou espada! .Alô. boa tarde..Você. E mandaram avisar que se não der pra ver o programa mais tarde.Eu também! Mas sei lá. mas eu sei! Eu sou espada! . Valdemar o segue. dr.. . não! Eu sei! Posso não lembrar de nada. Olham pro chão.Escuta. Olham pro teto --espelhado. pelamordedeus.Beleza. Valdemar sente a cabeça latejando. não liga a televisão! .Sei lá o escambau! Comigo não tem sei lá. cê não acha que a gente. O ruivo sai correndo. sob o logotipo do Foxy Lady Motel. Judith! Espera! Eu te explico chegando em casa! Não! É meio estranho. vai ficar na internet. Perguntei só por perguntar. . seu Valdemar. Atrás do balcão dourado. Trinta e sete ligações não atendidas. E agora.Que isso. gritando. não. que o pessoal da televisão já pagou.. um funcionário lhes sorri. A gente. Judith? Calma. tem que ser pessoalmente! Segura as pontas! E. eu vou voltar pro Tremembé. que faz agora a 38ª tentativa.. Pegam o elevador. . combinamos viagens nas quais nunca embarcamos: todo um futuro que. Ela pede uma salada e uma Coca Zero. eu. ela o pega de volta. porém trancado. já há muito separados. o Francisco no aniversário de um ano. mas não muito. Ficamos juntos por três ou quatro anos. sem pressa. indo almoçar num dia de semana. até que entra uma dela beijando o marido. cheio de móveis e objetos valiosos. Escolhemos nomes para os filhos que não tivemos. "O amor acaba". só não disse o que fica no lugar.. no Itaim --o que me pareceu não só prático. que nos encontramos a cada ano ou dois. lá pelos 20 e poucos. refez-se o antigo elo. estamos sempre no corredor. Fizemos planos." Vejo algumas fotos de seus filhos. disse Paulo Mendes Campos. no entanto. mais provavelmente. voltam no ato para o território comum de sua amizade. deu com os burros n'água. de entender essa estranha melancolia. Falamos do presente. olhando para a porta fechada.Ex 20/02/2013 Marcamos num restaurante perto do trabalho dela. o prédio em que moraram --e o adentram. É na esperança.. Marcamos um almoço num dia de semana. o elo morreu com o amor. o Centro Acadêmico. esse vazio preenchido por boas lembranças e algumas cicatrizes. E por que haveria de ter pompa ou circunstância? Somos apenas ex-namorados. Em três chopes. "Vai passando pra direita. O que sobra é feito um cômodo dentro da gente. E por que teria pressa? Não há amor nem mágoa entre nós. num Réveillon. estendendo-me o celular. Nesses almoços. Ó. Há uma vontade genuína de se aproximar e o tácito reconhecimento dessa impossibilidade. como fazem todos os casais. na natação". talvez. que a memória achou de bom alvitre apagar--. Os dois juntos na escola. prosaico. mas não muito. Reconstroem o pátio da escola. Falamos do passado. Sentimos . por razões que a própria razão desconhece --ou. quando se reveem. Dois velhos amigos. Para os ex-amantes. em sua crônica mais bonita. o menu do dia e uma água com gás. "Essa é a Dora. mas tranquilizador: dava ao encontro algo de corriqueiro. Entrego-lhe o celular. é impossível restabelecer o elo. era o amor. sem pompa ou circunstância. ela me diz. saudades do que está ali dentro, mas não podemos nem queremos entrar. Como disse um grego que viveu e amou há 2.500 anos: não somos mais aquelas pessoas nem é mais o mesmo aquele rio. Uma vez vi um filme, não me lembro qual, em que um sujeito declarava: "Se duas pessoas que um dia se amaram não puderem ser amigas, então o mundo é um lugar muito triste". O mundo é um lugar triste, mas não porque ex- amantes não podem ser amigos: sim porque o passado não pode ser recuperado. Eis a verdade banal que descobrimos, frustrados, ao fim de cada encontro: toda memória é um luto pelo que vamos deixando para trás. "Café?". "Não, obrigada, preciso voltar pro trabalho". "É, eu também tô meio com pressa". Rachamos a conta, nos beijamos nas bochechas, damos um abracinho demorado e chocho, com a ternura triste dos amores findos e seguimos cada um para o seu lado. O fim 27/02/2013 Você aperta bem no meio do tubo, e nada: eis o primeiro sinal do fim, mas quem atenta para os primeiros sinais? Além do que, a bisnaga está quase cheia, só ali pelo meio é que abaulou: basta pressioná-la em cima, perto do bico, ou embaixo, próximo à base, e a pasta sairá, roliça e lustrosa, nas cerdas de sua escova. A ideia de passar numa farmácia pisca em seu córtex como um distante vaga-lume, para logo desaparecer no cipoal de neurônios. Cinco ou seis dias depois, contudo, você aperta o tubo na parte de cima, outrora bojuda, e nada acontece: abaulou-se, também, mas para que se abalar com isso? Um pequeno remanejamento dá conta do recado: com os polegares e indicadores, vai espremendo da base pro bico. A visão da bisnaga de peito estufado traz algum alívio no curto prazo, mas a informação "preciso comprar pasta de dente" agora está colada, como um Post-it, na tela de sua consciência. E daí? Há assuntos mais importantes, sempre há: a infiltração no teto do banheiro, o aumento que pretende pedir --a demissão, se tivesse coragem--, uma DR definitiva da qual foge como o diabo da cruz. É lá do fim dessa fila que acena, pequenina, a possível escassez dentifrícia. A Terra, porém, completa mais algumas voltas em torno de seu eixo: folhas caem das árvores, flores brotam nos jardins, pormenores atingem a maioridade --eis o que você percebe, diante do tubo vazio, hirto como uma fronha secando no varal. O problema não é mais "preciso comprar pasta" e sim "por que cazzo não comprei antes?!", mas a indagação traz outras questões de fundo que talvez seja melhor ignorar. Importante agora é escovar os dentes: você apoia o tubo na bancada do banheiro e, com a haste de um pente, o aplaina da base ao bico. Ao cuspir a espuma na pia, jura que de hoje não passa, mas a convicção se esvai na mesma velocidade que o sabor de hortelã: não há vaga em frente à farmácia, a lojinha do posto está fechada, depois já passam das dez, a reunião é às 11, o torvelinho do cotidiano te suga e só te devolve ao incômodo na hora de ir para a cama. O pente é inútil: a bisnaga parece uma fronha passada a ferro. Um rolo compressor seria inútil: não há ranhura ou desvão que não tenha sido achatado. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé, você resmunga, então mete as cerdas no bico do tubo, meticulosamente. Elas não saem sequer melecadas, apenas opacas, como se tivessem sido mergulhadas no leite. Você dorme mal. Acorda desgostoso, antes do despertador. Sabe o que te espera. Não se orgulha do que está prestes a fazer, mas o fará, assim mesmo: abre a gaveta, pega a tesourinha de unha, respira fundo e corta o tubo, de cima abaixo. Enquanto chafurda a escova pelo interior da carcaça, pensa no aumento que não pediu, na demissão que não pedirá, no namoro que se esgarça diante de seus olhos; percebe como a infiltração no teto e a bisnaga estripada são metáforas chinfrins do estado das coisas. O que mais dói, contudo, é saber que ainda não chegou ao fundo do poço: adiante, te esperam a escovação sem pasta, reavivando os resíduos de espuma seca nas cerdas e, para coroar o desmantelo, a escovação com sabonete: aí sim, aí sim é o fim. Tomadas e oboés 06/03/2013 "O do meio, com heliponto, tá vendo?", diz o taxista, apontando o enorme prédio espelhado, do outro lado da marginal: "A parte elétrica, inteirinha, meu cunhado que fez". Ficamos admirando o edifício parcialmente iluminado ao cair da tarde e penso menos no tamanho da empreitada do que em nossa variegada humanidade: uns se dedicam à escrita, outros a instalações elétricas, lembro-me do meu tio Augusto, que vive de tocar oboé. "Fio, disjuntor, tomada, tudo!", insiste o motorista, com tanto orgulho que chega a contaminar-me. Olho de novo as janelas acesas e sinto-me parcialmente responsável por elas. Esqueço de meu tio Augusto. Pergunto quantas tomadas ele acha que tem, no prédio todo. Há quem ria desse tipo de indagação. Meu taxista, não. É um homem sério, eu também, fazemos as contas: uns dez escritórios por andar, cada um com umas seis salas, vezes 30 andares. "Cada sala tem o quê? Duas tomadas?". "Cê tá louco! Muito mais! Hoje em dia, com computador, essas coisas? Depois eu pergunto pro meu cunhado, mas pode botar aí pra uma média de seis tomadas/sala". Ok: 10 x 6 x 6 x 30 = 10.800. Dez mil e oitocentas tomadas! Há 30, 40 anos, uma hora dessas, a maior parte das tomadas já estaria dormindo o sono dos justos, mas a julgar pelo número de janelas acesas, enquanto volto para casa, lentamente, pela marginal, centenas de trabalhadores suam a camisa, ali no prédio: criam logotipos, preparam apresentações em powerpoint, estratégias judiciais, calculam custos para o escoamento da soja, negociam minério de ferro. Talvez até, quem sabe, deitado num sofá, um homem escute em seu iPod as notas de um oboé. Alegra-me pensar nesse sujeito de olhos fechados, ouvindo música. Bom saber que na correria geral, em meio a tantos profissionais que acreditam estar diretamente envolvidos no movimento de rotação da Terra, esse aí reservou-se cinco minutos de contemplação. Está tarde, contudo. Algo não fecha: por que segue no escritório, esse homem? Por que não voltou para a mulher e os filhos, não foi para o chope ou o cinema? O homem no sofá, entendo agora, está ainda mais afundado do que os outros. O momento oboé era apenas uma pausa para repor as energias, logo mais voltará à sua mesa e a seus logotipos, à soja ou ao minério de ferro. Quem sabe ele seja o executivo de uma gravadora? Em breve ligará para um subordinado, dirá que gostou de tudo, menos do oboé. "Corta o oboé, Miranda! Lima o oboé!". Como andará meu tio Augusto? "Onze mil, cento e cinquenta", diz o taxista, me mostrando o celular. Não entendo. "É o SMS do meu cunhado: 11.150 tomadas.". Olho o prédio mais uma vez, admirado com a instalação elétrica e nossa heteróclita humanidade, enquanto seguimos, feito cágados, pela marginal. * Em minha coluna do dia 30 de janeiro cometi um erro, apontado por leitores. Afirmei que os pilotos do voo 402 da TAM, que caiu em 1996, haviam desligado o alarme do reverso da turbina. O alarme que desligaram foi o de um dispositivo chamado "Auto-throttle": desativá-lo era o procedimento correto naquela situação, segundo laudo da aeronáutica, e o ato não teve relação com o acidente. !!!!!!!!!!!!!!!! 13/03/2013 Não lembro quando usei pela primeira vez, mas imagino que as razões tenham sido as mesmas de todo mundo: dar uma descontraída, uma turbinada. Que mal tem? --devo ter pensado: grandes artistas usaram, os jovens mandam uma, duas, três, simultaneamente, a toda hora e em qualquer lugar: por que não? Se soubesse, lá atrás, onde iria chegar, jamais teria experimentado: agora é tarde, Inês é morta. Ou melhor: é morta!!! --digo, exibindo a céu aberto meu vício nesta praga ortográfica: a exclamação. Não quero me eximir da responsabilidade --um alcoólatra não pode culpar um pé na bunda, a má fase do Palmeiras ou as letras do Reginaldo Rossi por seu estado--, mas há, decerto, fatores que colaboram para a dependência. No meu caso: a pressa. Tivesse mais tempo para tudo o que não é trabalho, conseguisse cultivar as amizades com a calma que elas merecem e não estaria agora enviando e-mails com "abs!", "bjs!", "claro!", "vamos!" e até mesmo -- Deus, em sua infinita misericórdia, tenha piedade de mim--: "Hahaha!!!". Entendam, não é por mal. Ontem, por exemplo: eram umas três e meia a tarde, a crônica estava atravancada, o deadline aproximava-se como o solo na queda livre e eis que chega o e-mail de um amigo querido, que não vejo há anos. Ele conta do filho que nasceu, do emprego que arrumou, lembra de um Réveillon que passamos juntos, em Ubatuba, desenterra uma piada que à época nos fez rir muito e que agora me enche de nostalgia. Não é uma mensagem a que se possa responder correndo, de modo que a guardo para o fim do expediente, quando, já tendo entregue a crônica e me desincumbido de todos os outros penduricalhos profissionais, poderei contar minhas aventuras e desventuras nos últimos tempos, relembrar algum momento daquela viagem, agregar à piada certo detalhe que ele deixou escapar. Mas quem disse que consigo desincumbir-me dos penduricalhos? Eles não têm fim. Graças a Bill Gates, Steve Jobs e seus comparsas, que grilaram o tempo ocioso de toda a humanidade, o transformaram em dólares e o depositaram em suas contas bancárias, arrasto atrás de mim uma matilha de celulares, tablets e laptops, bichos mais carentes do que labradores num canil, requerendo continuamente a minha atenção, com seus ganidos eletrônicos: seus "trrrrllls" e "pims" e "brrrrlums". Um e-mail tão importante, contudo, não pode ficar sem resposta --e é aí, meus amigos, que o homem vacila. É aí que, hesitante entre um dos lados na bifurcação --escrever direito a mensagem, abandonando um pouquinho o trabalho ou deixar para outro dia, dando uma mancada com o amigo--, acabo não escolhendo lado nenhum e metendo o carro no canteiro central --o que, no caso, significa enviar: "Saudades, Fabião! Cerveja, em breve?! Abs!!!". De noite, na cama, a mensagem fica zunindo em meu ouvido, como um pernilongo. O "Abs!!!", principalmente. Ridículo. De que adiantam três exclamações num abraço que sequer abriu-se com todas as letras? Decido que amanhã, antes de qualquer coisa, escreverei um e-mail decente pro Fábio. É o que reafirmo hoje, quarta, diante do tablet, enquanto tomo café: assim que acabar de conferir os e-mails, escreverei para ele. Juro!!! Acaju? 20/03/2013 Primeiro, foi o Fabrício: chegou ao bar, sentou-se à minha frente, encarou-me e com a honestidade que lhe é habitual, perguntou: "Mano, cê tá pintando o cabelo?". Soltei uma gargalhada, pedi dois chopes e esqueci o assunto. Uns dez dias depois, foi o Flávio: conversávamos na fila do cinema e reparei que seus olhos escapuliam a toda hora para o meu cabelo --como se espiassem, em algum ponto de minha franja, o decote de uma mulher. "Tá olhando o que, Flávio?!" "Nada, nada", ele disfarçou, engatando um papo sobre o filme. Resolvi não pensar a respeito: devia ser apenas coincidência. Domingo, contudo, não deu mais para ignorar a situação: terminado o almoço de família, meu pai me chamou de lado, pôs a mão em meu ombro e, zeloso, cuidando para que nenhum parente ouvisse, cochichou: "Acaju?". Que fique claro: não tenho nada contra quem pinta o cabelo. A natureza é cruel, a vida é curta, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é --ou, no caso, o que não é. Se estivesse ficando grisalho, talvez até cogitasse tingir, mas não estou: a passagem do tempo ameaça meu cocuruto menos com a brancura invernal do que com as copas desnudas do outono, razão pela qual, desde que as entradas começaram a galgar meu couro cabeludo (sic), lá pelos 17 anos, passei a tomar diariamente um comprimido de Finasterida. Sim, sarcástico leitor, aquele comprimido que causa, em 1% dos usuários, a perda temporária da libido --e em 99% das menções, piadas a respeito. Garanto, contudo, que nunca senti os efeitos colaterais. Minhas brochadas, dos 17 para cá, foram 100% orgânicas, fruto da soma de minhas inseguranças às opressivas qualidades de algumas moças, pobres moças, que esperavam atingir os píncaros da glória e escalaram somente o ápice de meu constrangimento. Ou, pelo menos, o que eu acreditava ser o ápice do constrangimento, até descobrir, dias atrás, que meus amigos, parentes e colegas de trabalho acham que eu pinto o cabelo. Escondido. De acaju. Como assim, pessoal? Eu faço análise. Frequento o Teatro Oficina. Falei de calvície e brochadas, um parágrafo acima. Por que iria pintar o cabelo escondido? E, se o fizesse, por que diabos escolheria o tom usado por Silvio Santos? Por mais que eu me defenda, contudo, o espelho obriga-me a dar aos boatos algum fundamento. Meu cabelo, que foi loiro na infância e castanho desde a adolescência, deu para, aos 35 anos, irrefletidamente refletir um suspeitíssimo escarlate --ou, como diz o Houaiss, na precisão cruel dos dicionários, certa cor "castanho-avermelhada da madeira do mogno": o acaju. Não sei se é o sol, a falta de sol, o aquecimento global, o glúten, a Fenilalanina ou o stress, sei é que me encontro numa sinuca de bico: se quiser que parem de pensar que tinjo o cabelo, terei de começar a tingi-lo. Informei- me a respeito e parece que se me submeter a umas tais "luzes", obterei um efeito que lembra o grisalho --ou o Bon Jovi, dependendo da fonte consultada. Que situação. Talvez a única saída digna seja parar com a Finasterida, deixar que o outono chegue e leve consigo o que lhe é de direito. Cruel é a natureza --mais cruel, só mesmo o acaju. K entre nós 27/03/2013 Gesiel, desculpe te escrever assim, uma carta aberta, no meio do jornal. Sei que talvez cause algum transtorno: comentários de vizinhos, brincadeiras de colegas, parentes ligando, atravancando sua quarta-feira, mas não se preocupe, alguém já disse que "a crônica produz a notoriedade e garante o esquecimento": hoje, somos famosos, amanhã, estaremos forrando o chão das obras e cobrindo os rostos dos atropelados. Não nos conhecemos. Meu nome é Antonio de Góes e Vasconcellos Prata. O seu é Gesiel Mariano de Barros --pelo menos, é o que está escrito na correspondência bancária que recebo aqui em casa, todo mês. É estranho, pois moro em Cotia e você, segundo sugerem os envelopes, em Duque de Caxias. Mais estranho ainda é que aí em Duque de Caxias haja uma rua com o mesmo nome da minha, uma casa com o mesmo número, num bairro quase homônimo: Residencial Par, o seu, Residencial Park, o meu --mas se o correio não repara nem que vivemos em cidades diferentes, imagina se vai notar esse minúsculo K, perdido na vastidão do Brasil? Pois eu reparo, todo mês. Pego a correspondência, vejo seu nome no envelope, penso "ih, carta pro Gesiel, de novo..." e digo a mim mesmo: de hoje não passa! Vou ligar pro banco, avisar do equívoco, resolver a situação - -mas sou um fraco, Gesiel. Quantas vezes não digo que vou começar uma natação, um romance, abrir uma previdência privada? Pobres de minhas artérias, de minha produção, de minha velhice. Pobre de você, cujas cartas vão parar na fruteira da sala, uma fruteira que nunca viu mangas ou carambolas e vive abarrotada de folhetos de dedetizadoras, cardápios de pizzarias, clipes, tampas de Bic e dois anos de seus --suponho, pois nunca abri-- ex-tratos bancários. Dois anos que sofro um pouquinho, toda noite, antes de dormir, pensando em você aí, no Residencial Par, em Duque de Caxias, brigando com o banco, pelo telefone. "O mais importante e bonito do mundo", contudo, como disse um amigo, outro dia, citando Guimarães Rosa, "é que as pessoas ainda não foram terminadas. (...) Afinam ou desafinam". Pois, semana passada, resolvi afinar-me um pouquinho. Tive um desses surtos civilizatórios: arrumei gavetas, mandei fazer barra nas calças, chamei o homem pra ver a infiltração do banheiro, peguei suas cartas na fruteira e, finalmente, liguei para o banco. Sabe o que me disseram? Que para regularizar a situação, só com o seu CPF. "Moça, como eu vou ter o CPF do Gesiel?! Eu não conheço o Gesiel! Vocês conhecem! Ele tem conta aí: Gesiel Mariano de Barros, é só conferir!" Ela resmungou, disse que ia ver o dava para fazer, mas pelo jeito, não viu: ontem chegou mais uma de suas cartas, só me restando, portanto, escrever esta crônica e torcer para que antes de forrar obra ou cobrir defunto, ela passe por você. Vamos torcer. Ah, e se por acaso estiverem chegando aí cartas para um certo Antonio, favor mandar para seu mesmo endereço, só que em Cotia e colocando um K depois do Par. Sem pressa: não sei como está sua situação bancária, mas com este que vos escreve, pelo menos, você tem 24 meses de crédito. Abraço, Gesiel, e boa Páscoa. peste. Levei muitos anos. Vanda viveu e trabalhou conosco por 15 anos. limpava. A patroa nova foi pegá-la uma noite. depois do jantar --a mudança da Vanda coube no porta-malas do carro. lembro de mulheres curiosas pegando no meu cabelo loiro. Lembro de ter me saído estranhamente bem no futebol com os meninos da rua. Em 2011. Ali estava ela. Trabalhou de graça na casa da mulher até os 15. Vanda cozinhava. Levei muitos anos para entender a graça da minha pergunta. então pegou um ônibus e fugiu para São Paulo. Às vezes. mas como "a moça que trabalha lá em casa" --tentativa inútil de contornar o incômodo daquela anacrônica e persistente relação. lavava roupa e passava. Depois que crescemos e saímos de casa. levou-me junto. com os filhos da patroa. Falaram com amigos e arrumaram outra família para Vanda trabalhar. quebrado por uma das filhas da "patroa" com um rolo de amassar pão e nos expulsava da cozinha: "Sai pra lá. ao lado do tanque e da máquina de lavar roupa. fazendo um castelo de areia. aos sete anos foi dada pela mãe. Um domingo. nos contava histórias da infância de gata borralheira. Fiquei dez anos sem vê-la. ela repetia. sob o lusco-fusco da TV preto e branco. lembro das gargalhadas que explodiram quando apontei a carne na grelha e perguntei se era picanha. para entender por que não nos referíamos à Vanda como "nossa empregada". e me deixa acabar essa janta!". minha mãe e meu padrasto resolveram não ter mais uma empregada morando lá.PEC & Pague 03/04/2013 Vanda vinha do interior da Bahia e de dentro de um livro de Charles Dickens. Quando eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas demandas de criança mimada. meu menino!". Morava num quartinho nos fundos da casa. incapaz de sustentá- la. caminhando por uma praia do litoral norte. também. me . a via pela porta entreaberta: de bobes na cabeça. fazia-nos apertar seu nariz. ouvi um grito: "Tunim!". para um churrasco. a uma conhecida. falando ao telefone ou pintando as unhas dos pés. arrumava-se toda e ia para a casa de umas primas. "Meu menino. aonde era vedada a minha entrada. Nos fins de semana. na periferia. Caçula de nove filhos. caixa de supermercado ou atendente de telemarketing ainda é muito pouco diante do que a vida pode oferecer -mesmo comendo picanha ou tomando banho com sabonete Dove. pela primeira vez desde os sete. no interior de Pernambuco. contou-me que ia se aposentar e voltar pra Bahia. mas não chorei. numa casa geminada no Itaim Bibi. dormiu num quarto que não pertencia a seus patrões. no final do século 20. Estranheza que confirma a profecia de Joaquim Nabuco (relembrada por Caetano Veloso. Naquela tarde. em "Noites do Norte"): "A escravidão permanecerá por muitos anos como a característica nacional do Brasil". no início do século 21. não da infância de um filho de jornalistas. Característica que. onde estava terminando de construir uma casa. com suas economias. Lentamente. . no século 19. ela voltou: aos 60 e tantos anos. pois ser empregada com FGTS. lentamente.abraçando e chorando --eu fiquei tocado. vamos deixando para trás. Parece que falo da minha infância de menino de engenho. Ano passado. Estranha sensação ao escrever esta crônica. muito pelo contrário: foi a ambição. como se Deus. Já o som da Makita penetrando o concreto é. os que nada descobriram. a ausência é a única presença". porém fundamental. Teria frases de efeito. graça--. Em minha defesa. só duas frases prestavam --e não eram minhas. mas de Fernando Pessoa: "Oh mar salgado. se possível. digo que não foram a preguiça ou a inépcia as culpadas pelo crônico desmantelo. os grandes heróis anônimos cujos nomes.Hoje. meio e fim --e.) De tudo o que escrevi entre as nove da manhã de segunda e as seis da tarde de terça. Neil Armstrong pisou na lua e Takeru Kobayashi comeu 50 hot dogs em 12 minutos sem sofrerem tanto quanto eu. como bem sabem os descobridores e. ouvindo um cha-cha-cha --e sem nenhuma noção de ritmo--. quanto de teu sal/ São lágrimas de Portugal!". O presente texto é fruto de uma experiência pioneira --e não existe pioneirismo sem riscos. (A gata não é fanha. O texto que tentei escrever seria sobre a saudade. Foi a grandiloquência desses versos que me levou a Marco Polo. é a dos pedreiros. Como definir? Sei exatamente como. instalado na saraiêvica balbúrdia de uma casa em reforma. excepcionalmente 10/04/2013 Peço perdão ao caro leitor por estas mal traçadas linhas. batucasse na laje. destinados aos livros de história. principalmente. Sei que a úbere Flor do Lácio já produziu pétalas mais cheirosas do que as que ora ofereço a vossas exigentes narinas. acabaram no fundo dos oceanos ou no bico dos urubus.. dentro e fora do meu cérebro. executando sua ininterrupta sinfonia para Makita e marreta. só a elefanta: há aí uma diferença sutil. mas a única presença detectável nas últimas 48 horas. Que sinfonia! A marreta faz o chão tremer e o laptop sambar no meu colo. a Neil Armstrong.. depois de dois dias ouvindo-o: é como o urro de uma elefanta fanha sob efeito de anfetaminas tentando imitar uma gata no cio. tipo "toda saudade é um lembrete da morte" e "no fim. . Tenho certeza de que Marco Polo foi à Conchinchina. Qual era minha ambição? Escrever uma crônica com começo. imagino. tristemente linda. resgatando à crônica algo de seu tema original e fechando-a com um laço de lirismo. enquanto o deadline se aproxima. caro leitor: hoje. Volto da divagação com o desejo algo corrupto de dizer que sinto saudades de Eloá. Lembro-me de que era uma palavra curta e bonita. De elefanta. Quem conheço bem é a aliá. (Os hot dogs de Takeru vieram de um documentário e os urubus. onde estudei com uma menina chamada Eloá. Perdão. vestia-se de preto e tinha sobrancelhas muito delicadas. Por exemplo: ver no dicionário o feminino de elefante. Mal conheci Eloá. não tinha nada. há mais de 15 segundos. a elefanta.ao fundo dos oceanos. em vez de me desesperar. Aí está: aliá.) Agora. às marretadas que chacoalham meus neurônios. Era magra. Monto a aliá e sigo em minha marcha procrastinatória até o colegial. . mas estaria mentindo. a casa treme e a elefanta urra. esta coluna não será publicada. foram atraídos pelo cheiro de carniça que já emanava de minhas primeiras palavras. a "elefanha" anfetamínica a urrar em meus ouvidos sua imitação de gata no cio. excepcionalmente. tão delicadas que eu não sei como resistem. arranjo subterfúgios. Não estou sendo irônico: admiro muito seu gosto e toda vez que. pois veio a gravidez e. semelhantes situações. a emoção ou as toxinas liberadas pelo bebê. adora filmes de países remotos. quem funcione mais devagar. tropeço num Tchaikovsky ou esbarro num Chopin. Gosta de ir a balés. Ou melhor. procurando algo em nosso iPod. um Daniel San em "Karatê Kid" pintando muros: ensinou-me a ver na adversidade os halteres do espírito. percebo o quanto ela me fez crescer. "handicap" cognitivo. longe disso. do que minhas piadas.Estado de graça 17/04/2013 Não sei se são os hormônios. As queixas variam de gestante para gestante: há quem fique esquecida. ela procura até hoje. por exemplo. um Stalone em "Rocky IV" treinando na neve. minha mulher vem enfrentando. em que há mais diálogos do balido das cabras com o silvo do vento do que entre seres humanos. resgatando-me desta vil existência mortal e cadastrando-me na eternidade. Ter em casa tão implacável crítica fez de mim. evita. Se antes. devido ao supracitado torpor gestacional. eu ainda estaria por aí --de moletom. Para a glória e felicidade deste que vos escreve. Espírito que. Não fosse ela. modéstia à parte. hoje. digamos assim. . evoluir. pelo menos. enquanto outra foi encontrar as chaves do carro "guardadas" no congelador --a forma de gelo. uma amiga relatou sérias dificuldades para acompanhar a trama de "Rei Leão". em meus melhores momentos seinfeldianos. uma inédita mudança ocorreu no córtex cerebral de minha amada: ela deu para me achar engraçado. mas é fato que durante a gravidez as mulheres padecem de um. fortalecido. é que se trata de uma pessoa mais refinada do que eu --ou. provavelmente-. mudou tudo. Não que ela seja triste ou lhe falte humor. mas porque. há sete meses e uma semana. Digo glória e felicidade não apenas pela paternidade que se aproxima. num de seus muitos passes de mágica. mesmo que sob fortíssima tentação. a exposições. Por seis anos. evitava. usei de todos os artifícios para fazê-la rir --embalde.dizendo coisas como: "É pavê ou pacomê?!". terminar o presente parágrafo com "Win Wenders e aprendendo". é do pavê pra baixo --e só sucesso. os hormônios baixam radicalmente os critérios. Uma coisa. sabendo da necessidade de um companheiro para trazer javalis abatidos. em relação ao marido: "Se só tem tu. manda a TPM para a mulher. cantando "Mama Áustria". veja só. todo mês. prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para ser um bom pai. quando ela estiver grávida do próximo. um velho clássico do "Casseta & Planeta". Que sábia a natureza: durante anos. Tô pior que tio bêbado em festa de família. como se sugerissem à moça. lucrando uma bela gargalhada. garanto: serei um pai engraçado. hoje arranco aplausos com qualquer tirada de "Zorra Total". aguçando seu senso crítico. Os halteres enferrujam na área de serviço de minh'alma. fraldas descartáveis e apoio moral. . Pergunte à sua mãe --de preferência. contudo.merecia no máximo um sorriso. Filhota. e. como se lhe sussurrasse: "Tem certeza de que é esse aí o cara ideal para propagar os seus genes?". vai tu mesmo!". Ainda que "tu" seja esse cara aí no chuveiro. contudo. Após a fecundação. não tenho a menor dúvida. percebi que a cannabis não era mesmo a minha e parei.Descriminalização das drogas 24/04/2013 Dos 15 aos 20 e poucos anos. casado. Finda a adolescência. tampouco. a notícia de que sete ex-ministros da Justiça encaminharam ao STF uma carta recomendando a descriminalização do uso de drogas. é quase sempre dura. é preciso analisar bem como proceder. Não tive que tomar nenhuma atitude drástica. vans e panelas de pressão. também. era o típico cara que fuma só porque está todo mundo fumando. Certamente esse amigo que fuma diariamente tem mais chances do que eu de. de manhã. ingerem mais gordura saturada do que recomenda a Organização Mundial da Saúde e há até quem salte de asa-delta. pai carinhoso e fuma umas duas vezes por dia. no futuro. A vida é muitas vezes chata. outros fumam. sem que o Estado se meta em suas vidas. Entre os vários amigos meus que a consomem regularmente um é viciado. reunir força de vontade. fumei maconha pelo menos uma vez por semana. entre Felicianos e Malufs. Quanto às outras drogas. O pulmão e as chaves. Compare-o a um alcoólatra e fica claro que. ao encontrar nos jornais. ficava mais confuso do que relaxado. mantendo a tragédia do tráfico nos morros e . sem saber se punha as mãos nos bolsos ou cruzava os braços. Confesso que nem achava muito bom. os males da maconha são menos graves do que os de uma droga lícita. mesmo no pior cenário. Que a maconha deveria ser legalizada já. para que não se resolva apenas o lado do consumidor do asfalto. buscar ajuda: simplesmente deixei de usar e não senti a menor falta. fiquei muito contente. semana passada. É advogado tributarista. Não estou afirmando. Não estou dizendo que maconha não vicia. plantada e fumada por quem quisesse. que a maconha não faz mal. se lembrar de onde colocou as chaves--. desenvolver um câncer de pulmão --e mais dificuldade para. é definitivamente curta. Por isso uns bebem. Tudo isso posto. se ia ouvir Pink Floyd no escuro ou comer melancia com ketchup. mas a escolha é dele. cujo objetivo é rediscutir a atual política brasileira referente às drogas --e mudá-la. a guerra.comer melancia com ketchup. da direita e da esquerda. ouvir Pink Floyd e --por que não?-. há muita gente gabaritada pensando em como desatar esse nó. quem desvia dinheiro público e deposita nas ilhas Jersey: não para quem precisa de tratamento médico ou nem isso. Ano passado. O mal que a "guerra às drogas" causa à sociedade é infinitamente superior aos danos que as substâncias causam a seus indivíduos. Parte da premissa de que a estratégia atual. mantendo-os atrás das grades. são jovens. mais de 130 mil pessoas (1/4 da população carcerária brasileira) estão na cadeia por alguma relação com entorpecentes. quem estupra. de piercing. gente de terno. não funcionou e propõe a descriminalização. Deixemos os presídios para quem mata. cujos futuros o contribuinte paga caro para arruinar. em grande parte.me/efd02). Felizmente. um grupo apartidário. além dos ex-ministros.periferias. . com membros de diversas áreas --da antropologia ao mercado financeiro. quem só quer esquecer um pouco dos problemas. foi criada a Rede Pense Livre (migre. Hoje. de terno E de piercing--. no início de uma quarta-feira. peças de acém e filés de tilápia. Há dias em que. tão mais fácil entre as prosaicas coxas de frango. sem perceber. das linguiças para a fraldinha e. Valem mais a pena essas cervejas de litro ou as latinhas? As de litro estão baratas. para as brigas milenares ou a picuinha semanal: afinal. que descansam sobre uma tábua de madeira. volto para a inflação.90 o quilo!"). como quem. Ignoro carros e televisões.99. o pendor cívico ignora as piscadelas da costelinha. derrubo Kim Jong-un e suas obscenas bochechas. No ato. como todo leitor de jornal. durante uma aula. impeça o devaneio. censuro-me. contudo. Há dias. a impossibilidade de comprar um Tucson. digo aos republicanos algumas verdades sobre a venda de armas. pros lados de Cotia. não é mais um churrasco . Em pouco mais de meia hora. atravessaram os assentamentos israelenses e descansam numa posta de bacalhau da Noruega ("na compra de 5 kg. à mesa do café. Das coxas de frango passo para as linguiças. laptops e geladeiras: prefiro os encartes chinfrins. sinto que estou resolvendo. se distrai com as pombas do lado de lá da janela. percebo que meus olhos escaparam da alta da inflação e foram parar num Jogo de Panelas Firenze ("0+5 X de R$ 29. os grandes problemas da humanidade. quando dou por mim. 275 ml"). estaríamos todos salvos. entre a torrada e o mamão. Ao acusar o deslize. grátis uma garrafa de azeite Minhoto. já estou organizando um churrasco no playground de meu córtex. fosse ele governado a partir desta cozinha. em que os apelos da janela superam a gravidade da lousa e perco boa parte da manhã flanando por mortadelas e limões. assim. sem juros"). Talvez. com o jornal nas mãos. tendo como adorno um único ramo de salsinha. sem dificuldade. não é por minha culpa. de supermercado. tão baratas que. correram da refrega entre o Congresso e o STF e refugiaram-se numa costelinha suína ("só R$ 7. escalo o time do Corinthians e vou escovar os dentes com a sensação de dever cumprido: se este mundo vai mal.Encarte 01/05/2013 Vez por outra. sinto saudades da inflação. dezembro está longe. Não são poucas as decisões tomadas nesta cozinha. hoje à noite o Corinthians pega o Boca e ainda não decidi se começamos o jogo com o Pato ou o guardamos para o segundo tempo. depois de longos segundos decidindo-me entre as vassouras de piaçava e as de plástico. seis bandejas dos miúdos de frango --o Paulinho ou o Fabrício saberão como preparar. embora jamais tenha feito moela. do murundu na Palestina.que planejo. pro Veja. e. se é para resolver os problemas do mundo. Curiosos são os caminhos de um devaneio: é por ir longe demais na esfera de minha cabeça que ele volta ao ponto de partida. a casa imunda me leva pro Pinho Sol. . mesmo que só neste estreito território entre minhas orelhas. no dia seguinte a um churrasco que nunca aconteceu. Afinal. Vejo-me pegando dez engradados. Além do que. melhor salvar vidas no Oriente Médio do que limpar o chão de uma varanda inexistente. mas as compras de uma viagem de fim do ano. a quantidade de comida e bebida me faz vislumbrar a casa imunda. oito pacotes de pão integral. três quilos de peito de peru e. pra cândida. do rame- rame institucional. remeteu-me a um outro assunto.O agudo e a crônica 08/05/2013 Ontem. já murchas ou decantadas pelo refrigério da razão. às 16h30. até que surgisse uma ideia. maiores as chances de conhecer lugares novos no caminho. ou às quartas e sextas. Ele está contando uma longa história. num jantar.. pois Lacan tampouco pré-determinava a duração das sessões. não levadas para alguma geladeira da consciência e de lá tiradas somente às terças e quintas. dei com um documentário sobre Lacan. cruzar Paris de pantufas e aparecer para um rápido divã. menos ainda a respeito de Lacan. fumando um charuto bem glande. que me é caro: a crônica. 15h45. Outro dia. Rápido é maneira de dizer. com todos os ingredientes colhidos na hora. ele encontraria uma praça. é bom que tenha algumas pistas de para onde está indo. Já o cronista. em cima de um obelisco. até alugaria um quartinho de hotel--. almoçando no quilo.. zapeando. Eu disse glande?!". poderia telefonar-lhe. o cronista funcionaria como o paciente de Lacan. digamos: "Sonhei que estava na Carvalho Pinto. quanto mais cego ao iniciar seu passeio. Sei pouco sobre psicanálise. como. tocando sua vida. o lacônico psicanalista francês. Imediatamente. caso verbalizasse algo prenhe de significado. Um romancista não precisa levar o laptop na mochila. indo ao banco. O insone talvez ficasse escarafunchando suas caraminholas até que os róseos dedos da aurora viessem tamborilar sobre o negrume de seu inconsciente. Num mundo ideal. Dizia o programa que o terapeuta não marcava hora para as consultas: se às três da manhã um paciente despertasse de sonhos intranquilos sentindo-se metamorfoseado num monstruoso inseto. se acomodaria num banco --se possível fosse. Suas ideias podem amadurecer antes de ir para o papel. Ficaria por aí. tiraria o laptop da mochila e escreveria seu texto. ou talvez fosse mandado de volta para casa cinco minutos depois de chegar. olhando vitrines atrás de um presente de Dia das Mães. meu amigo Humberto Werneck contou-me de um comentário de Manuel Bandeira a respeito de Rubem Braga: "Braga é sempre . mas esta ideia de que as angústias e aflições deveriam ser servidas quentes. deste texto: às vezes. uma crônica é apenas uma crônica --nem todo mundo pode ser Rubem Braga. O que parece uma reflexão dispersa na cozinha. numa repetição ou silêncio mais longo. seus alumbramentos. num ato falho. de pantufas. um charuto é apenas um charuto. Não é o caso. matutando sobre suas angústias. Claro. ouvíssemos seu relato. por exemplo. nem todo mundo consegue ser tão glande. suas hipóteses. o assunto se materializasse --não no papel. quando não tem assunto. de um dos textos mais bonitos de Braga. do leitor. É como se o víssemos deitar-se no divã. umas voltas em torno de um radinho de pilha.bom. É o caso. suas queixas. até que. pois nesses textos em que o tema não está dado. um dos textos mais bonitos que eu já li: "Sizenando. mas na cabeça do analista. revela-se um comentário arrasador sobre o amor e a solidão. é como se acompanhássemos o escritor. então. a vida é triste". isto é. Eu disse glande?! . atravessando sua Paris interior. numa gaguejada. no meio da noite. é ótimo". por exemplo. uma serpentina resfriadora. dois panelões de alumínio. no nosso mercado. enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas. tirando as ousadias de algumas bravas microcervejarias. reavivando estilos europeus esquecidos havia . em que. repousando no pequeno galpão em Perdizes. passando pelo cozimento. nos EUA. Embora o "homebrewing" tenha existido desde sempre. do ketchup ou dos cortes de cabelo "homemade" --iniciativas louváveis. O mais legal de produzir cerveja em casa é que. muitos se profissionalizaram e hoje há por lá 15 mil microcervejarias criando receitas próprias. lúpulo e levedura. mas de resultados sempre discutíveis--. um moedor de cereais. um galão de plástico. fiz o curso. enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas. nosso mosto está lá. malte. me permitirão produzir e beber minha própria cerveja --se isso não for a mais perfeita tradução de "sustentabilidade". não sei o que poderia ser. o que vemos são diversos rótulos oferecendo as mesmas idênticas e insossas bebidas. ao contrário do vinho. Agora mesmo. até a armazenagem no galão fermentador. daqui em diante. adição do lúpulo. um afixador de tampinhas e outras quinquilharias que. Um dia inteiro no qual eu e uns outros 15 empolgados neófitos ajudamos o professor a preparar 20 litros de uma "American Pale Ale" --desde a moagem da cevada.Olívia IPA 15/05/2013 Acabo de receber o e-mail da "Sinnatrah Cervejaria-Escola" e tremo de felicidade: agora mesmo. se preparada no capricho. essas belas criaturas de Deus. Pelo menos. aguarda-me num pequeno galpão em Perdizes o tão desejado kit. quando o presidente Jimmy Carter derrubou um resquício da Lei Seca que proibia os americanos de se aventurarem em suas cozinhas pelo fascinante mundo da cevada. Dali pra frente. certamente. levem a cabo sua nobre missão: transformar o açúcar do malte em álcool e CO2. Sábado passado. a moda explodiu mesmo a partir dos anos 70. a versão amadora desta simples mistura de água. aguardando que as leveduras. fica melhor do que as opções disponíveis no mercado. um termômetro. enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas. a primeira leva virá à luz no fim de junho. carinho e 20 litros da "Olívia IPA". aguardando a hora de lançar ao mundo o seu brado retumbante. Assim nasceu a Indian Pale Ale (mais conhecida como IPA). Se tudo der certo. der o ar de sua graça.séculos e levando a adição de lúpulo a níveis deliciosamente intoleráveis. O lúpulo é uma trepadeira cuja flor dá o amargor e parte do aroma à cerveja. Olívia recebe os últimos retoques e ganha peso. aonde chegavam após longas viagens de navio. Com qualidades antibióticas. ajuda também a preservar a bebida. Peço aos amigos que tragam charutos. no conforto de uma barriga rotunda e bela. estilo bem amargo e preferido de nove entre dez cervejeiros caseiros. Será recebida com amor. Daí que. Agora mesmo. ao mesmo tempo em que outra produção. para proteger as cervejas destinadas às colônias. . na qual minha mulher vem trabalhando com afinco há oito meses. fraldas --e venham de táxi. os ingleses as preparassem com mais álcool e mais lúpulo. Não fujo à regra: minha receita inaugural será uma IPA. São erros de ortografia e de digitação. "cowboys" que aprendem a falar sem a afetação do sotaque. Se encasqueto em ornar meu texto com "dramblys" ou "haveloos" --termos em lituano e holandês para elefante e mulambento. objeto não mais notável na economia do cotidiano do que as dobradiças da janela ou o porta- escova de dentes. mais me incomoda. contudo. um amarelo do qual sempre tento convencê-las a desistir: as aspas sobre os termos estrangeiros. agora sei. Andressa!). a Lívia Scatena e a Daniela Mercier. mostrando o carimbo na entrada e na saída. provavelmente. como bons caubóis. Se escrevo mouse pad. um ou outro ajuste ao padrão Folha --séculos "XXI" que se adequam aos ditames do 21. ou mandado embora do jornal. num domingo. numa quarta-feira bem sedinho. redatoras aqui do "Cotidiano". segundo o Google Translator--. "quinze pras seis" que trocam a imprecisão das letras pela pontualidade dos números: 17h45. respectivamente. como se para circular entre nós a palavra estrangeira precisasse andar com o passaporte aberto. por exemplo. Desequilibra. De início. eu aceito o argumento: não se pode exigir do leitor que saiba outra língua além do português. os termos discriminados são coisa doutras terras e doutra gente. Sou imensamente grato a essas mulheres. envio a crônica para a Andressa Taffarel. Duas horas depois. vírgulas e mais vírgulas que vão pro beleléu. Vejo por trás das aspas uma pontinha de xenofobia. lá pelas quatro da tarde. suscito em seu pensamento apenas o quadradinho discreto que vive ao lado do teclado. o que me incomodava era o peso desproporcional que as aspas dão à palavra. eu já teria sido desmascarado pela Ombudsman. mais ou menos. uma delas me devolve o texto com todos os meus descalabros diligentemente corrigidos e grifados de amarelo. sem as quais. Pois é essa discriminação o que. as aspas surgem para acalmar quem me lê. nada que você devesse conhecer". Tá legal.Sem aspas na língua 22/05/2013 Toda terça. Há. como se dissessem: "Queridão. brilha diante de seus olhos como o luminoso de uma lanchonete americana. . Já "mouse pad" parece grafado em neon. Quero dizer: cedinho (Valeu. condenando-o a uma versão "remix"? Caso recebêssemos "blowjobs" sem o supracitado preservativo gráfico. mais sabores irá provar e experiências poderá acumular. de todas as línguas. acabariam poluindo o português com "beats" exógenos. sem as barrinhas duplas de proteção. da queda de Babel. will be. whatever will be. pessoal. Andressa e Daniela.Ora. . A língua é viva: quanto mais línguas tocar. por quê? Será que "blackberries" rolando livremente por nossa terra poderiam frutificar e. da mangaba e do cajá? "Samplers". destinada a garantir a pureza dos idiomas contra as invasões bárbaras. como ervas daninhas. Let it be. doenças venéreas se espalhariam por nosso exposto vernáculo? Entendam. Bobagem. roubar os nutrientes da graviola. não estou reclamando de vocês --nem é esta uma questão puramente jornalística. talvez. Livremos as nossas frases desses arames farpados. resolução de alguma antiquíssima OMC lexical. minhas caras Lívia. datada. mas algo inerente à burocracia da língua. let it bleed --e dessa geleia geral. desses cacos de vidro. disse que eu só era capaz de me relacionar com maçãs: pessoas homogêneas. mas são duros: você deve mastigar com cuidado. os caroços. segurando pelo cabinho. O que joga por terra a falácia de que as pessoas interessantes ou inteligentes ou talentosas devem ser antipáticas. não a maçã. sem melar as mãos. mas eram pétreas: eu tinha que me aproximar com cuidado. só até roçar em suas defesas --era como se eu nunca pudesse fruir plenamente das potencialidades da Alice. seria a manga. o sexo que perdemos!*). seria manga. pensei: nossa. a serpente ofereceria manga a Adão e Eva (ah. com quem você pode conviver sem se preocupar com a casca. não pensei nisso. sem dúvida. * A banana é uma das frutas mais saborosas que existem e é. então para --é como se nunca pudesse fruir plenamente das potencialidades da goiaba. * A manga é a picanha do reino vegetal. a mais fácil de comer. muito tempo depois de terminarmos. Ela tem uns caroços que não são grandes. Acho que ela via a si própria como uma espécie de romã. Ela tinha umas implicâncias que não eram grandes. naquela noite. mas não gosto de comer goiaba. Alice apareceu aqui em casa. Steve . medíocres. mas não gostava de namorar a Alice. só até seus dentes tocarem um caroço. o paradigma da fruta. Com outras palavras. Eu gostava da Alice. Quando terminamos. (Pena que.) * Chega de Alice. Se o mundo fosse justo. em francês.Apolpando 29/05/2013 Eu gosto de goiaba. que mulher incrível seria Alice sem caroços! * Uma noite. "pomme". Falemos de coisas boas. cheias de caroços ou difíceis de descascar. Newton teria tirado a famosa soneca à sombra de uma mangueira. Quando os encontro. de Millôr Fernandes (Editora Desiderata). relembro como é prazeroso vê-los. . Enquanto comia. como caqui é bom! Caqui é maravilhoso! O que tenho feito eu desta curta vida. Scarlett Johansson! * Outro dia. *Ver "A Verdadeira História do Paraíso". meu pai veio me visitar e trouxe uma caixa de caquis. guardados numa caixa. toda semana. mas prefiro as mangas. eu pensava: Deus do céu. num silêncio reverencial. Não: se uma manga caísse na cabeça de Newton. mas depois que vão embora me esqueço da revelação. ah. nos olhando de vez em quando. Eu os lavei. tão afastado dos caquis?! Meus amigos e amigas e parentes queridos são como os caquis: nunca os encontro. diriam muitos: não discordarei. ele a teria comido e mandado a física pras cucuias --que gravidade resiste a este Sol da Terra? * Nunca achei a menor graça na Audrey Hepburn --uma uva. lá de Sorocaba. lá em Sorocaba.Jobs teria ficado rico pondo suas manguinhas de fora. botei numa tigela na varanda e comemos um por um. Por que não os vejo sempre. todos os dias desta curta vida? Já sei: devem ficar escondidos de mim. não durou muito. "Obrigado. o trânsito estava ruim. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto dela. aí. né? Se Deus quis assim.. leva a câmera.. agora tô me acostumando. desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Houve um breve silêncio. com vestido. até ficar de um jeito que não era ela. a pessoa trabalha todo dia numa firma. das fotos. então. não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá. Fazer o que. toda arrumada. é do ser humano. sim. do bebedor. No começo foi complicado. com penteado. mesmo. pois ele logo emendou: "Nunca vou esquecer: 1º de junho de 1988. Fiquei sem reação: tinha pegado o táxi na Nove de Julho. o celular e tchuf. tchuf. falo com os passageiros e tal e descobri que é assim. me olhando pelo retrovisor. Meu espanto. lá na Guarapiranga. contudo. Não faz sentido. festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha. mas não tem foto dela fazendo as coisas dela. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. levamos meia hora para percorrer a Faria Lima e chegar à rua dos Pinheiros. todo dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria. peguei o álbum. lá em Santos. entendeu? Que nem: tem ela no casamento da nossa mais velha. Entro aqui na Joaquim?" "Isso. ia arrumar o cabelo. Tenho pensado muito nisso aí. do banheiro. tudo no mais asséptico silêncio. tenho foto. eu até fiz um álbum. Aí. A gente se conheceu num barzinho. mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado. A pessoa. ele me encara pelo espelhinho e.. solta essa: "Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado". uma saudade.". ela tirava correndo o avental. tchuf. Mas ela não era daquele jeito. e dali pra frente nunca ficou um dia sem se falar! Até que cinco anos atrás. assistindo novela. olha só. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa. como se fosse a continuação de uma longa conversa." "Ano passado me deu uma agonia.Recordação 05/06/2013 "Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado". só tinha . pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são. ele disse. num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer. vamos dizer." "Cê não tem nenhuma?" "Não. enquanto ultrapassávamos um caminhão de lixo e consegui encaixar um "Sinto muito".. hoje. mas não. Ele tirou a carteira do bolso.aqueles retratos de casório. de viagem." "Primeiro de junho de 1988?" "Pois é. nesse dia. pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a gente já foi embora? Vou morrer com essa dúvida. sabe o que eu fiz? Fui pra Santos. Quando eu peguei essa foto e vi a data. tá fazendo 25 anos. um senhor de idade. do jet ski." "E aí?!" "Aí que o bar tinha fechado em 94. pode escolher uma. leva de recordação'. vendo se achava nós aí no meio. taí o testemunho: foi nesse lugar. Foi lá num armário. mais umas tantas no balcão. De qualquer forma. ainda morava no imóvel. ele falou: 'Entra'." Paramos num farol. nem acreditei. pegou a foto e me deu: umas 50 pessoas pelas mesas. tá bom pra você?" . "Olha a data aí no cantinho. embaixo. Eu expliquei a minha história. Ali do lado da banca. trouxe uma caixa de sapatos e disse: 'É tudo foto do bar. Todo dia eu olho essa foto e fico danado. Sei lá. quis voltar naquele bar. corri o olho pelas mesas. mas o proprietário. qual é a função da escola? Ajudar os alunos a compreender e afirmar suas singularidades. Mauro de Salles Aguiar. indumentárias. inventamos os adultos que queremos (e podemos) ser. Há quem pense. mulher de saia --e vamos nos concentrar na tabela periódica. questionamos nossas heranças familiares. um aluno apareceu de saia no Bandeirantes. assim. sociais. culturais. aqui na Folha: sexta-feira passada. às dez e pouco da manhã". número e grau --principalmente em gênero.Entre ou saia 12/06/2013 Li anteontem. Nada disso. disse à repórter Juliana Gragnani que a atitude visava proteger o estudante: "É altamente irresponsável e leviano por parte dos pais expor o filho a esse laboratório de experiências sociais. Concordo em gênero. no futuro. descobrimos o que nos apraz e. o colégio tem que ter". época na qual consideramos diversos caminhos. adolescência é o período em que nos resignamos a aceitar as fôrmas pré- moldadas que aí estão: homem de calça. na luta pelos direitos civis. comportamentos. O diretor da escola. que é o que se discute aqui. conseguir uma boa colocação profissional. Como bem sabem os que não são "irresponsáveis" nem "levianos". Se eles não têm preocupação com a segurança. ou na mudança do papel da mulher durante o século 20 para saber que isso nunca acaba bem. entrar nos eixos para. equivocadamente. mesmo que para isso desafiem os padrões e precisem mudá- los? Óbvio que não: o papel da escola é ensiná-los a se adequar a este mundo machista e preconceituoso. . disse à repórter o diretor da escola. que a adolescência é uma fase de experimentação. foi proibido de assistir às aulas e mandado de volta pra casa. pois o que realmente importa nesta vida é aprender que o xenônio é um gás nobre e que o número atômico do bário é 56. nos EUA. rejeitamos o que não nos serve. Vejamos: se o mundo é machista e preconceituoso. "Um rapaz vestido de saia não é uma coisa que você espera ver na Vila Mariana. Jamais incentivá-los a se expor a um "laboratório de experiências sociais" --pois basta pensar na revolução sexual. a subversão. criada há uns 2. Mas o que sabiam aqueles homens? Absolutamente nada --e a prova maior é que andavam todos de saia. devem permanecer escondidos. iluminando as sombras de objetos e de conceitos que tantas vezes tomamos pelos objetos e conceitos em si.dando mais uma lição de pedagogia." Perfeito: afinal. certo? Dentro dos muros da primeira. não nos bairros familiares. Quem disser que esta é uma visão antiquada da educação está redondamente enganado. caso existam. a experimentação. Dentro dos muros da segunda.500 anos. "Ele não está numa galeria de arte. nos arrabaldes. a reafirmação da tradição. É uma visão bem de acordo com os dias correntes. . a ordem. a bagunça. moças de gravata e outras esquisitices. que colocava a dúvida como o princípio do saber. nada mais antagônico do que uma galeria de arte e uma escola. na Grécia. Está numa escola. na calada da noite. Rapazes de saia. as certezas. à impoluta luz da manhã. acreditando que só com o diálogo e com a confrontação das verdades estabelecidas se derrubariam os tapumes do senso comum. Antiquada é aquela outra. depois da passeata.A passeata 19/06/2013 Tinha punk de moicano e playboy de mocassim. Anteontem. eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui. companheiros: ninguém tá entendendo nada. humilde ou pretensiosamente. de direita. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes. vá para o vinagre. foi sua resposta. de Nike e de coturno por causa da tarifa? "Por que você tá aqui no protesto?". A posição dos ativistas de não se colocarem como os catalisadores de todas as angústias nacionais e seguirem batendo na tecla do transporte só os enobrece --mas estarão certos na percepção? Duzentas mil pessoas de esquerda. Corrupção. nas próximas semanas. assisti ao "Roda Viva" com Nina Capello e Lucas Monteiro de Oliveira. expor sua perplexidade e ignorância. perguntou a repórter do "TV Folha" a uma garota na manifestação do dia 11: "Olha. Ficou claro que. Tinha a esperança de que este seja um momento importante na história do país e a suspeita de que talvez o gás da indignação. na verdade". o aumento dos homicídios. observou o coronel José Vicente. "Vocês começaram com uma canoa e tão aí com uma arca de Noé". a PEC 37. Os dois insistiram que não. muito menos este que vos escreve e vem. segunda-feira. Tinha uns barbudos do PCO exigindo que se reestatize o que foi privatizado e engomados a la Tea Party sonhando com a privatização de todo o resto. era eu). os gastos com os estádios . e as mais de 200 mil pessoas que saíram às ruas no Brasil. embora inteligentes e bem articulados. (Neguinho. impunidade. Tinha quem realmente se estrepa com esses 20 centavos e neguinho que não rela a barriga numa catraca de ônibus desde os tempos da CMTC. Patricinha de olho azul e rasta de olho vermelho. no caso. integrantes do Movimento Passe Livre. eles tampouco compreendem onde é que foram amarrar seus burros. lutavam por transporte público mais barato e eficiente. Enquete: O movimento Passe Livre vai conseguir reduzir o preço das tarifas? Sejamos francos. o que há é um canoão. o que dizer sobre o futuro do movimento? Marchará ou murchará? Caso cresça: conseguirá abaixar a tarifa? E. fazer barulho? Ou a própria passeata extingue o impulso de revolta que a criou e voltamos todos para o mundinho idêntico de todos os dias... com a sensação apaziguadora de que "fiz a minha parte"? Não tenho a menor ideia. melhorando. em que a única certeza parecia ser a de que. nosso IDH. . o Sarney estará sempre no poder. a qualidade das escolas e hospitais públicos são todos excelentes motivos para que se saia às ruas e se tente melhorar o país -- mas já o eram duas semanas atrás: por que não havia passeatas? Será porque a chegada do PT ao poder anestesiou os movimentos sociais. aconteça o que acontecer. as dúvidas dos últimos dias são muitíssimo bem-vindas. estou mais confuso que o Datena diante da enquete. continua péssimo? Ou será porque agora o Facebook e o Twitter facilitam a comunicação? Se as dúvidas sobre as motivações --que brotam do solo minimamente sondável do presente-.já são grandes.para a Copa. no longo prazo. mas num país injusto como o nosso. dificultando a percepção de que o Brasil vem melhorando. terá alguma relevância? Mais ainda: adianta ir às ruas. melhorando e. empolgados. em um mês. pode ter um pálido vislumbre do inferno que se esconde na avenida do Estado. a gente te entrega a carta. Famílias dormiam pelos cantos. . uma funcionária me informou. Hordas de desesperados zanzavam de um lado pro outro. quase toda semana. Bem. respirava fundo e ia pessoalmente à toca do dragão. Aparentemente. A maioria dos pontos. você tá me propondo subornar um cara no Detran pra me livrar da pontuação?" Longo silêncio e: "Veja bem. do CPF e de comprovante de residência. deixa aí. o outro dizia "Bobagem. Liguei para outros cinco despachantes. é mais assim uma taxa de urgência. "Sei. 900". 221. No Disque Detran. senhor". uma mulher me mandou ir à rua Boa Vista. apenas 5 de 24 cadeiras (eu contei) estavam em condições de uso. eu estava apaixonado. todos me ofereceram o mesmo esquema. de Dante. com um prazer quase sexual: "Aqui a gente nem atende o público. querido! Entrega de CNH é na avenida do Estado. só havia duas opções: ou eu subornava um despachante para que ele não subornasse ninguém. Havia meses que as multas chegavam. ou tomava coragem. tá? Mas por R$ 1.500. subíamos aos beijos e só acordávamos quando o sono e a CET já haviam passado. fui a um grande despachante na zona oeste de São Paulo. zerada.Habilitando-nos 26/06/2013 Quando veio a carta do Detran informando que minha habilitação havia sido suspensa. No número 221 da rua Boa Vista. vinha da mesma infração: estacionar sem Zona Azul em frente ao prédio da minha namorada. Sabe como é. Só quem leu a "Divina Comédia". A atendente puxou minha ficha: "Olha só. 900. cópias do RG. aliás. no caso. Ia ter que ficar um ano sem dirigir. amanhã eu acordo antes das sete e tiro". e eu não tomava nenhuma providência. Numa sala de espera. fiquei mais chateado do que surpreso. Fiquei desconfiado: não podia ser assim tão fácil --e não era. levando a CNH original. começo de relação: chegávamos lá toda noite. Com dúvidas sobre as burocracias. um sugeria parar o carro no estacionamento dois quarteirões abaixo. É R$ 800 pra gente e R$ 700 pro Detran". você tá com 61 pontos. Uma reforma política é inútil se não fizermos uma reforma cultural. bradou por sobre o meu ombro: "Próximo!". evidentemente. Felizmente. seria bom que os dedos em riste também escarafunchassem um pouquinho as nossas consciências. Quem acumula 61 pontos na carta não pode dar lição de moral. amamentava seu recém-nascido. muito pelo contrário: neste momento em que nos levantamos contra a roubalheira dos políticos. . se não me engano. que não aceitavam cópias do RG e do CPF. A corrupção nos atravessa de cima a baixo: do financiamento das campanhas à compra de CNHs --passando.Uma mãe. por uma fábula. feliz com esses breves momentos de alegria que seu emprego lhe oferece. ouvi sons de chicote. minha tortura resumiu-se a uma longa fila e a ser barbaramente informado. "Mas eu liguei no Disque Detran!" A moça me olhou. Não é essa a minha intenção. pelo carro do motorista apaixonado estacionado em local proibido. estalos de ossos e gritos vindos de alguma masmorra adjacente. após uma hora e meia. suspirou e. sentada no chão. Havia manchas assustadoras pelas paredes e. "quebrar o meu galho" dentro da lei. O oitavo (juro) despachante para quem liguei aceitou. 13. tudo se expandindo e se aglutinando. cada dois) pode brincar de Deus. A mala da maternidade. fora instalada no carro. dizem os livros. cílios.Uma Odisseia no Espaço": o Big Bang como o momento da concepção. Felizmente. fabricando uma criancinha para chamar de sua. Imagino um lance meio "2001 . A espera é angustiante. vesícula. muito em breve. do zero. num domingo de julho nos idos de 2013. a dilatação não começara e a placenta funcionava perfeitamente. é um troço tão complexo que não seria despropositado se toda a existência do universo fosse consumida na formação de um único bebê. Trinta e oito semanas. feita. Por fim. é o que leva para ela estar completamente formada. Tinha decidido ficar ali no morninho. a 40ª e nada de nossa filha dar o ar de sua graça. galáxias se formando feito órgãos. Cai o pano. num "all inclusive" que nem o mais farto dos resorts sonharia em oferecer. estrelas e planetas se multiplicando tais quais pequenas células. pernas.7 bilhões de anos após a luz ter fecundado a escuridão. neurônios. O ultrassom da última quarta não trazia novidades: a cabecinha ainda não tinha se encaixado. com braços. provendo nossa filha dos nutrientes e oxigênio necessários para que seguisse com suas atividades de costume: lutar muay thai durante o dia e dançar foxtrot noite adentro. O quarto estava montado. digamos. Amigos mandavam SMSs: "E aí? Cadê??". moldando um só corpo. O futuro avô viera de Florianópolis. um neném gigante faria ecoar o seu pranto intergaláctico.Sobe o pano 07/07/2013 Os amigos haviam nos alertado: "A gravidez dura nove meses mais um século" --só esqueceram de nos avisar que esse século demorava tanto. a 39ª. infinitas opiniões sobre Deus e o mundo. um coração e. mas compreensível: produzir um ser humano inteirinho. achei que havia chegado a hora de encararmos a verdade: a Olivia não iria nascer. depois de uma batalha hercúlea. E quem iria convencê-la a trocar a . Pois eis que chegou a 38ª semana. Saindo da clínica. e cada um de nós (ou melhor. com aquele cabo HDMI ligado diretamente à barriga. A cadeirinha. não é assim. o pinguim e o canguru. Segundo a assessoria de imprensa do órgão. descrevi uma traumática visita à unidade Armênia do Detran. Parabenizo-os pelo empenho civilizatório diante do descalabro kafkiano. Sobe o pano: aproveite o espetáculo. Faltou dizer que ela se deu em 2010. numa batalha excruciante que só se compara. Veio ao mundo com 48.mordomia intrauterina pelas frias tardes de julho? Sei que é muita pretensão imaginar que eu tive qualquer influência no processo. colando a boca na barriga da Julia e falando sobre o sol. à instalação da cadeirinha. mas o fato é que. 2 e 3. . a girafa. * Na coluna de 26 de junho. 3. a manga e o leitão. desde 2011 o Detran encontra-se sob nova direção (com o mesmo pessoal que implementou o Poupatempo) e a unidade Armênia está bem mais agradável e eficiente.5 cm. em dificuldade e emoção. é a cara da mãe. começaram as contrações. "Toy Story" 1.71 kg e. nossa Olivia fez ecoar pelo Itaim seu pranto intergaláctico. filhota. para sua sorte. a praia e a cachoeira. Quinze horas depois. o doce de leite. lá pelas três da tarde daquela mesma quarta-feira. percebo a alegria da cautela se escondendo sob a nuvem preta do temor: só consigo pensar no que terá acontecido para que eu tenha deixado de enviar a crônica. buraco ou pedra no meio do caminho me impeça de. no caso você não ganha nada. Se você a está lendo. de modo que nenhum prego. o "prêmio" seria de R$ 200 mil. deixei de entregar minhas maltraçadas ao jornal. em que fiz um seguro de vida. nesta semana. "Taí um prêmio que eu não quero ganhar". mas aos poucos. você senta pra trabalhar e tudo o que sai são lágrimas e letras do Tim Maia? Deixa uma crônica prontinha com as redatoras. eu disse. seriíssimo: "Não. estou indo: hoje é dia 22 de agosto de 2011 e aqui me encontro. pra uma emergência. o cuidado de disfarçar a bufunfa com algumas flores do caixão. enquanto escrevo. Lembro do dia. foi do meu pai: "Vai que. um pouco incomodado por saber que eu valia mais morto do que vivo. por razões que desconheço. Lembro do sorriso estúpido do gerente ao anunciar que. justo no dia de mandar a coluna.Estepe 14/07/2013 Esta não é a crônica que deveria estar aqui: é uma crônica estepe. no futuro próximo ou distante. pessoalmente. . tendo o gerente. não. eu furei e. mas respirei fundo e só assinei ao lado do xizinho. faz uns três anos (ou seis? Ou 49?). enchendo este estepe com o parco ar de minha inspiração. em exigir que a quantia fosse depositada nos bolsos do meu traje mortuário. Hoje de manhã. Eu fui. quando decidi me dedicar à empreitada. bem guardado no porta-malas da redação. acaba a luz? Vai que te surge uma pedra no rim? Vai que a sua mulher te abandona. A ideia de manter um texto reserva. ou melhor. ou melhor. é porque a outra furou. Vai por mim". quem ganha é o beneficiário". ao que ele me respondeu. ludibriado leitor. Pensei em simular uma indignação. senti aquele pequeno orgulho cívico de quem acaba de marcar uma visita de rotina ao dentista ou manda lavar a caixa-d'água. em caso de morte. levá-los com segurança e conforto de uma margem a outra desta página. aliviado.Céus. Ok. como pinguins sobre placas de gelo. Até. seja em 2012. numa ressaca de Dom Pérignon. lá vou eu querendo ser trágico de novo. fui incapaz de escrever uma linha? É isso. Vocês estão vivos e deslizando rumo ao futuro. Seria de muito mau gosto o jornal publicar este texto se eu tivesse batido as botas. talvez tenha uma pedra no rim. Donde concluo. estiver lendo agora a palavra "carambola". seja ao menos um pouco otimista. bebendo Cynar com Fanta Uva e cantando "Me Dê Motivos". Não é para tanto. Deixa disso. Antonio: se o futuro é insondável. veja o poder daquela nuvem negra: comecei com uma queda de energia e. quatro parágrafos adiante. é porque não morri. Semana que vem eu conto como foi a festa e como resisti às insistentes cantadas de Scarlett Johansson. estou sete palmos abaixo da terra. Estou vivo e preso ao dia 22 de agosto de 2011. que se você. quem sabe minha mulher me abandonou e eu me encontre na rua da amargura. . ainda bate um bolão. mas estou vivo. que. póstero leitor. mesmo sessentona e um pouco acima do peso. Talvez esteja no escuro. 2021 ou 2043. serei: quem sabe este texto está sendo publicado porque anteontem ganhei o Oscar de melhor roteiro e. Ó aí. ela urra: fecho o laptop. circa 2h AM: Ela dormia como um anjo e acordou como uma motosserra. . a consistência? Quando fecho os olhos. ouvimos a trombeta celeste anunciando a volta do Senhor e o fim das tribulações terrenas: um pum. sem aviso prévio. como se o último gole de leite fosse um trago de ópio. besunto as mãos com álcool gel e volto às trincheiras. abro o laptop e tento gravar algumas memórias da caserna. -. contudo. já que dia e noite são conceitos ultrapassados e sem sentido neste insone fluxo neonatal. ela urra). como num baralho ilustrado por Pollock. Então. Aprender a dirigir foi mais fácil. Opa. São vários procedimentos de alta complexidade e periculosidade num curto espaço de tempo. Durante os armistícios. para que não se percam nesta terra de ninguém em que vagam meus combalidos neurônios. Não acho que eu seja a pessoa mais indicada para a tarefa. Vivo num JÁ contínuo em que se alternam momentos de paz (ela mama. decretou-se que eu era o encarregado pelo banho nesta casa.Desafio #149: Sem que houvesse qualquer debate. Haverá alguma mensagem? Qual a cor. doutor? -. e com a paz. de modo que decidimos levá-la diretamente ao hospital. joga a cabeça para trás e dorme. Na porta de casa. 8h32 AM: Ela mama com a sede de um náufrago. E com o pum veio a paz. ela urra.Babação #36: Abro as fraldas com a curiosidade de quem confere a caixa de entrada do e-mail.Babação #35: Imagino aquele punzinho se espalhando pela atmosfera e não consigo deixar de pensar que o mundo agora é um lugar melhor.Diário 21/07/2013 Ou noitário? Tanto faz. doutor? -.Segunda. Chorou ininterruptamente por 40 minutos -ou quatro horas? Tivemos vergonha de ligar para o pediatra só por causa de um choro. -. É grave. É muito grave.Ideia #9: O inventor da babá eletrônica deveria ganhar o Nobel. -. o sono. todos os cocôs desfilam pela memória.Segunda. ela dorme) e guerra (ela urra. -. Ao lado do berço. você não existia e agora existe: olha só o que você fez. -. -. -.Observação #78: Todos os clichês fazem sentido. besunto as mãos com álcool gel e volto às trincheiras." "Sempre sustente a cabeça.Relatividade #4: Já estamos em casa há extenuantes 24 horas e parece que foi ontem que chegamos.Correção #1: Filhos? Melhor tê-los! Mas só os tendo é possível sabê-lo. "Jamais se afaste do trocador. isso é cólica. -. -.Ideia de livro infantil.Mantras: "O movimento do algodão é sempre do limpo pro sujo"." "Relaxa." "Relaxa e tenta acreditar: isso é cólica. trabalhar? Tolstói teve 13 rebentos e "Guerra e Paz" tem 2. -. sua doida!"." -." "Relaxa.536 páginas (aposto que Tolstói não era o encarregado pelo banho na casa dele). fecho o laptop.Mistério #91: Como as pessoas fazem para criar filhos e. ao mesmo tempo. Em cada bocejo contemplo O Grande Movimento do Universo. isso é cólica.Dúvida atroz: devo me agarrar ao "calma que passa!" ou ao "aproveita que passa rápido!"? Deixo para pensar mais a respeito no próximo armistício: agora. para o caso improvável de algum dia eu voltar a trabalhar: Os heróis Colostro e Bepantol lutam contra os vilões Mecônio e Icterícia.Ideia #9B: O inventor da babá eletrônica deveria ser guilhotinado. . sussurro: "Olivia.-. ela urra. Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos. eu cantava. Que compromisso é esse? Não sei. Talvez por isso me sinta mais acolhido nos dias de semana. ele continua sendo esse quadro pintado por Magritte e Dalí. que vai ao parque. lá pelos dez anos. dedicados ao trabalho e suas promessas. Escrevo "meditabundo" e. mas sei que o errado sou eu. displicentemente instalados no presente. tenho dificuldades é com o presente. ali adiante. por um momento. É mais ou menos o que sente. Fiquei um pouco desapontado. parece que o mundo é justo e que cada coisa está em seu devido lugar. mas o domingo. com o vento no rosto ou a fumaça na boca. não eles. Dá uma alegria vê-los ali. em sua varanda. meditabundo que me encontro --é domingo--. Enquanto permanecem no meu retrovisor. meditabundo. quase comungo desta alegria dominical. Um desses caras que eu vejo do carro. Alguma hora. ao fim de um dia de trabalho. imagino. Queria muito ser uma pessoa que acorda cedo. passeando pela cidade. com sua frondosa oferta de descanso e generosa sombra de melancolia. o sujeito que chega à varanda. não: pra mim. em sua bicicletinha. me trará sei . para fumar o seu cachimbo. no fundo. Mas.Pé de cachimbo 28/07/201304h26 "Hoje é domingo. ao descobrir que o certo era "pede" cachimbo. a sombra do pé de cachimbo logo me alcança: não sou esse homem na ciclovia nem esse outro. É como se houvesse nascido atrasado. reparei que sempre escovo os dentes com pressa. com pencas de cachimbos pendendo das pontas dos galhos. só para saboreá-las. a crônica estará pronta. chegado ao mundo meia hora depois e a todo instante tentasse recuperar os minutos perdidos. o roteiro estará filmado e a concretização desses projetos. acredito. em sua poltrona. como se estivesse atrasado para um compromisso. Outro dia. ou afunda na poltrona. a mulher ao lado e um filho atrás. o livro estará editado. e me vinha à cabeça uma árvore de madeira escura. tirando as palavras velhas do armário para tomarem sol ou pitando-as calmamente. Acho que. sem tragar. prontos para serem colhidos e fumados. quando era pequeno. pedalando pela ciclovia. pé de cachimbo". Corrigi a música. preciso usar essa bicicleta. comprei uma bicicleta.) Ano passado. nem poderia mudar-me. sei lá que certeza sobre mim mesmo --mas nunca traz. É isso: preciso comprar um cachimbo. . Talvez eu devesse comprar é um cachimbo. preciso comprar um cachimbo. olhando pra grama e esperando. preciso. Por meses a bicicleta se tornou só mais uma pequena emissora de ansiedade --preciso usar essa bicicleta.--. preciso. senti certa vergonha de mim mesmo.. Por que se agoniar olhando para a direita do ponto final em vez de se contentar com o que há à esquerda? (Um dia.lá que conforto. regá-lo todo dia e ficar na varanda.. em busca da paz interior. como um velho que sai da loja calçando All Stars vermelhos: aquilo não era eu. estarei eu à direita do ponto final e aí não haverá mais o que olhar. Ao tirá-la da caixa. Nem que fosse para enterrá-lo no jardim. depois seus pneus murcharam e eu soube que já não era por ela que eu escovava os dentes com pressa. num exercício zen. despediu-se com um "fiquem com Deus". Então abro um livro. Talvez por isso ela tenha ficado incomodada com meu sorriso vacilante. Acontece que. também. mas uma tristeza genuína: deixávamos de compartilhar um elo que. que as cordas que amarram nossas existências são mais consistentes do que o programa de uma casa de shows no Brooklin. até se apaixonar por um pianista brasileiro. bati em sua porta. . vi umas laranjas lindíssimas. laranjas na caçamba de um caminhão. o assunto só bateu aqui na porta quinta-feira à noite. do justificado louvor e dos louváveis protestos causados pela visita do santo padre. uma pilha de sóis poentes sobre o mar azul da caçamba. passei por um desses caminhões que vendem frutas. Um telefone. Às vezes também me compadeço de mim. da lama em Guaratiba. depois de conhecer minha filha. na esquina. comprei um saco pra ela. talvez fosse o maior. Uma semana depois. um pecador. apareceu para conhecer minha filha. para ela. vizinha da frente. leio um poema do Drummond. do outro lado da rua. Veio passar um Réveillon nos trópicos e lá se vão 50 anos. No dia em que me mudei. Stella me encarou por um tempo. um tanto compadecida. curiosa.Laranjas e chocolates 04/08/2013 Para o León Ferrari Sei que o papa já foi embora há uma semana e talvez seja um pouco tarde para falar de Deus. Não a decepção boba de quem passasse a me ver como um herege. felizmente. Inimizades precisam de pouco para surgir. apesar dos milhões em Copacabana. Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo. "Você não acredita em Deus?" "Não. precisei dar um telefonema." Senti a decepção no rosto da minha vizinha. Stella me sorriu. meu celular estava sem sinal. do Fernando Pessoa ou do Vinicius e me revigoro em minha descrença. quando. nos anos 60. Stella é americana e viveu no Brooklin. algumas dúzias de laranjas e pronto: ambos soubemos que havia alguém com quem se podia contar. quando a Stella. a má qualidade da telefonia. amizades. NY. acredito que o ateísmo --quando amparado por boa poesia. que esses frutos sejam doces justamente para que eu e você os comamos e espalhemos as sementes. que coisa fantástica. perguntou minha vizinha. Pra que serve? Pra nada: eis o grande milagre.. Que eu exista. Stella foi embora.é uma concepção mais elegante. E quanto mais triste me parece. Não é infinitamente mais belo se nada disso fizer parte de roteiro algum? Veja o universo. mais profunda e que encerra mais respeito à vida do que a fé em Deus.Apesar de lamentar terrivelmente não ter qualquer esperança no além. vez por outra. em seu ninho de cobertores e uns últimos versos vieram em meu auxílio. que haja árvores que dão frutos e frutos que dão sementes." É." "Nossa.. pelo menos-. "Acaba. apenas/Nascemos. "E depois que a gente morre. Do pó viemos. cá estamos neste "caminho entre dois túmulos". ao pó voltaremos. imensamente". sabendo que "não há metafísica no mundo senão chocolates" e. da morte. o que você acha que acontece?". Depois fui comer chocolates. . mais bonito fica. contudo. Olhei a carinha da minha filha. é muito triste pensar assim. "Hoje a noite é jovem. nos botamos "comovidos como o diabo". que você exista. Então o Mckinsey é um ladrão? Se você quiser. -.Nunca vi este Mckinsey. bicho?! Abaixo a repressão! Você parece o meu velho! Responde. nem preciso dizer.Uísque. lá pelo canal 467.Marido?! Corta essa! Casamento já era. blusa de batique. E mesmo que tivesse visto. entendeu? -. depois do PPV 22. poaaaarra: tu viu um cabeludo.. bicho? Que proposta mais pequeno burguesa! Uns tapinhas eu até dava. -. eu iria manter meu bico fechado. posso dar um jeito nele. -. violão no ombro? O nome dele é Marquinho.. o caubói dublado toma seu uísque. Mas quanto menos entendo o que diz essa boca. O barman enche um copo de uísque. da TV Coreia e do Discovery Corte & Costura. poaaaaarra?!(A gostosa em filme nacional dos anos 70.Que lugar é esse. senhorita. sem olhar pro lado.Não. -.Qualé.Que papo é esse?! Tu é milico? Tu tá parecendo um milico! Milico de meaaarrrrrda! Diz.Sabe. mas o poaaaarra do Marquinho tá com o meu fumo. tu é milico ou não é?! -. pequena. acho que esta senhorita está precisando de um trago.) O caubói dá um gole e. lá de onde eu venho as damas não costumam falar deste modo.Linha cruzada 11/08/2013 Num saloon. a gostosa em filme nacional dos anos 70 entra esbravejando: -. Que tal esquecer este Mckinsey e irmos até minha choupana? Algo me diz que uma senhorita com o seu linguajar apreciaria alguns tragos de uísque. diz: -.Não sei o que é isso. pequena. sacou? Eu transo liberdade. se ele for o seu marido. bicho? Cadê o Marquinho. Pela porta basculante. Barman. -. mas tenho certeza de que não sou. tem forte sotaque carioca. na periferia da TV a cabo. . meaaarrrrda! -. mais me interesso por ela. apoia os cotovelos no balcão. Teela e Gorpo prometem a Marquinho que farão de tudo para encontrar sua namorada.-. Enquanto isso. A minha proposta continua de pé.Tu jura que não é milico? -. -. poaaaarra! -. -.Dinheiro eu não tenho. ó! Ela levanta a blusa. como um produto! A revolução tem que ser aqui dentro.Bem. ele some. bicho! O Marquinho diz que quer destransar esse lance de consumo. não adianta nada derrubar os milicos! Aqui pra você. mas no dia que a gente combinou de ir embora.Poaaaarra. . mas o meu corcel está amarrado aí na frente. -. mostra os peitos para o caubói e sai pela porta do saloon.É isso aí! Tu tá por dentro. -. criar nossos filhos com o pé na areia.Corta essa.Enquanto a gente não derrubar essa ditadura -- continua apontando a cabeça--. sacou? --bate com o indicador na própria cabeça. se senta. Ela vira o uísque num gole. pequena. Mentor. cobre o rosto. Vamos até a minha choupana? Fica no alto da colina. mas ele é igualzinho o pai dele! Burguesinho de meaaarrrrda! O que ele quer é dinheiro na conta e um Corcel na garagem! -.Sim. He-Man. que o sonho dele era largar tudo e ir morar comigo lá em Arembepe. a meia légua daqui. no castelo de Grayskull. E tem duas coisas que aprendi com meu velho pai: a nunca jurar em falso e sempre ser gentil com as damas. tá? Já saquei o teu papo quadrado! Você só quer me possuir. às vezes as pessoas não são quem elas parecem ser. desneurotizar do individualismo. o Marquinho é foaaaada! Vive dizendo que tá de saco cheio de transar essa caretice de escritório. esbaforida. de sua irmã mais jeitosa. Talvez o leitor não saiba. ainda. semana passada. mas em toda Festa Literária de Paraty há uma pelada disputada pelos escritores --ou. que havia esperança: entre os grandes das letras. sempre que se aproxima a escalação para uma nova festa literária. tampouco a fila de autógrafos ou o flash dos fotógrafos: a imagem que me vem à mente. ele se decidia. a cada ano. a humildade.. por aqueles cuja saúde permita bater uma bola sem bater as botas. ao menos. pois sem ela. Charles Miller debateu-se em seu túmulo e eu recebi uma das notícias mais felizes na história de minhas fatigadas canelas.à professora Lucilene. estufo a rede. Não é o meu talento ludopédico. mas bem o contrário: é do oco em que deveria residir minha habilidade que sopra a brisa da ilusão. Pois. sempre. Percebi. descobri que o desempenho futebolístico dos escritores era inversamente proporcional às suas virtudes literárias. Finda a partida. Em minha quimera lítero- esportiva. recebo os cumprimentos de Roberto Schwarz. tendo de optar entre mim e a menina de cabresto nos dentes --por quem. cozinho algumas insônias na chama da expectativa. Ainda trago na memória as cicatrizes causadas pelo olhar aflito do garoto a escalar o time. claro.Feira de Frankfute 18/08/2013 Sei que em nome da vaidade ou. dou entrevista à revista "Serrote". dedicando a vitória à minha esposa. quando fui à primeira Flip e. José Miguel Wisnik pede para trocar comigo a camisa. Nas aulas de educação física. é a do futebol. ao fim. mas. O sofrimento com o analfabetismo de minhas pernas durou até 2004. de bicicleta ou trivela. eu era aquele infeliz escolhido por último. na escola. Fui . para minha frustração. desarmando contistas e. mas lá vai: muitas vezes me imagino participando da Flip. a Deus e --quem sabe?-. do primário. eu não deveria dizer esse tipo de coisa.. assistindo à douta cancha. ali. nunca encontro meu nome na lista. saio driblando críticos. de calcanhar. Desde então. pelo menos. ultrapassando romancistas. Não é o auditório lotado que vejo em meus devaneios narcisistas. que me insufla tais delírios. eu poderia ser um craque da bola. imagino que o caminho será tortuoso. Sabemos o tamanho da responsabilidade: somos. em outubro. com fé em Deus e obedecendo a orientação do professor. a "Autorennationalmannschaft" --ou Autonama. temos menos de dois meses e. eu e mais 15 escritores brasileiros suamos a camisa. Que vença o pior! . para os íntimos. Há. apesar de ser "gauche" na vida. sob a batuta de um dos maiores pontas- esquerdas da história. nestas oito semanas.selecionado pelo Instituto Goethe para integrar o time de escritores brasileiros que irá à Feira de Frankfurt. fazer bonito pela sinistra nos gramados do velho mundo. a pátria de chuteiras e de teclados. contudo. A ver se. o "canhão da Vila". enfrentar os alemães da Seleção Nacional de Autores. simultaneamente. deixo de ser canhestro e sigo apenas canhoto. enquanto você toma descansadamente seu café. dois dados animadores: do outro lado do campo também haverá escritores e nosso técnico é ninguém menos do que Pepe. tomando a mim mesmo como medida. é possível. mostrando que. no primeiro treino coletivo do escrete da escrita. Nesta ensolarada (espero) manhã de domingo. é se estamos diante de um M disfarçado de H ou de um H que finge ser M. Logo ali. Ou não -como diria o poeta. que explica sua indecisão. Motel acanhado ou hotel saidinho. Associações de bairro não tentam evitar sua construção. estamos diante de um hotel atrevido? Um pequeno hotel cujo peso das contas a pagar. Ninguém se choca com sua existência. Se o casal afobado não aguentar chegar à Raposo. terá uma cama redonda. Não atrai "gente diferenciada". Motel Belle. a caminho do metrô. para a secretária que. compra uns chocolates do ambulante. tendo a me inclinar em direção à primeira: trata-se de um motel envergonhado. Uma estrada. um motel? Um motel não é um bordel. há anos. Uns aspiram ao silêncio decorativo. acredito. tudo os separa. jamais fizeram dele o alvo de seus recalques.(M?)(H?)otel 25/08/2013 A pergunta que me faço sempre que passo pelo luminoso. em vez de um motel envergonhado. a bispa Sônia ou o papa. só quem sabe o que busca verá. O ambíguo luminoso brilha entre uma imobiliária e uma casa de família: suas piscadelas vão para os trabalhadores no ponto de ônibus. levando-o a ampliar seu público? Se o caminhoneiro cansado quiser dormir algumas horas antes de seguir para Sorocaba. contudo. encontrará uma cama limpa. menos de três quilômetros adiante. no sorriso discreto do H. acabou por flexibilizar o austero H. O estabelecimento fica quase na Raposo Tavares -e é esse "quase". Sedutti e Fox Trot Motel. todo mês. Embora as duas hipóteses encontrem argumentos. a mesma dúvida me traz: como lidará a clientela com tal indecisão gráfica e mercadológica? Convenhamos. Afinal. é uma estrada. no qual espelharão a tranquilidade domiciliar. os Ms já não terão pudor de exibir seus rubros decotes à beira da estrada: Motel L'Amour. os outros . a única concordância entre quem busca o sono e quem procura o sexo é sobre a conveniência de um colchão: afora isso. até onde eu sei. o púbis desnudo do M. uma cidade é uma cidade. Será que. É melhor que as lâmpadas brancas não esclareçam totalmente os contornos da moldura vermelha: assim. por que teria de se esconder. para os estudantes da USP. O Feliciano. mais do que divergentes. à secretária comprando chocolates. . sejam consoantes. aos estudantes da USP. o estímulo excêntrico que os faça esquecer do tédio do lar. atraídos pelo sorriso discreto do H. Tentar unir roncos e gemidos parece uma receita para o fracasso e.desejam exatamente o contrário. ao ambulante. somadas ao lastro de segurança de um hotel. Ocorre-me agora que ele talvez perdure não apesar da ambiguidade. mas um convite aos trabalhadores no ponto de ônibus. Quem sabe se as promessas de aventura do motel. o negócio resiste. há anos. mas justamente por causa dela. não trazem vez por outra certas ideias a esses incautos pedestres que. ao caminhoneiro a caminho de Sorocaba. não são a senha para quem sabe o que busca. acabam seguindo a seta do M? Talvez as duas letras. As lâmpadas brancas. sem esclarecer totalmente os contornos da moldura vermelha. no entanto. feita de um tecido provavelmente desenvolvido pela NASA. ia da ponta do dedão do pé ao topo do cocuruto. precisarão de um bom sopro do nosso . seria o nome da coisa). eu e minha mulher batíamos os queixos com três meias em cada pé. no Brás. por que não fazem trajes assim para nós. George Foreman Grills. o filho dele. Semana passada. cruzado no alto por dois arcos. endinheirado leitor. telas de TV com séries americanas. Avents. embrulhada em seu macacãozinho. Sei que alguns produtos PIPA® demorarão a ascender no mercado: as fraldas para adultos. garrafas de Chianti e latas de cerveja. por exemplo. mas se o faço é por acreditar nas palavras de Mandeville. Chiccos. quando afirma que vícios privados geram benefícios públicos: tenho certeza de que o sucesso de meu negócio melhorará a vida de muita gente. também? Só porque é ridículo? Ridículo é passar frio. de oito meses. o sócio perfeito para a empreitada. (Tapetinho de atividades é o nome da coisa). A ficha dourada me caiu no auge deste inverno. fui à casa de um amigo. Enquanto conversávamos. Drummond completo e todas as edições de Asterix? (Tapetão de passividades. PIPA® será o nome da marca. donde pendiam chocalhos. Nuks. no berço. São Paulo congelava no dia mais frio em 50 anos. espelhos. e vi mais uma vez a minha PIPA® serpenteando no céu: por que não fazer um edredonzão de cujos arcos pendam provolones e salames. na sala.PIPA® 08/09/2013 Tive uma ideia para ganhar dinheiro e busco em você. narguilés. se esbaldava numa espécie de parque de diversões particular: um edredom de pouco mais de um metro quadrado. protegendo-a até da mais perniciosa frente fria argentina. mas nossa filha sorria aquecida e feliz. (Sei que não deveria usar este espaço para fins particulares. A peça única. Na hora. Ora. Alô Bebês e correlatas: produtos infantis para adultos. sinos e outras bugigangas. me lembrei daquelas cantinas italianas. bichinhos de pelúcia. luzinhas.) A ideia que trago para vossa avaliação é explorar o único nicho do mercado infantil que ainda não foi garimpado e exaurido por Johnson & Johnsons. quem primeiro entrar neste mercado irá nadar de braçadas. Não irei longe a ponto de sugerir chupetas para gente grande (até porque é impossível competir com a indústria tabagista). Como um empresário ético. é só um vislumbre de nosso extenso catálogo. ambientes de trabalho ou salas de TV: falamos mais a respeito em nossa primeira reunião. . visionário leitor. O que expus aqui. é bom lembrar. Até lá e obrigado pela confiança). lasanha e chile com carne farão um sucesso tremendo. Mas o que você me diz de shows? Jogos de futebol? Carnaval de rua? Manifestações? (O gás lacrimogêneo. Ou rolar numa piscina de bolinhas (para bares. nem para todas as finalidades. Num mundo em acelerado processo de infantilização e sem uma única empresa a suprir a demanda. mas que papinhas sabor pizza. gera ardência nas mucosas). saberei até onde dar linha à PIPA®.departamento de marketing até que o cauteloso leitor deixe o preconceito de lado. não sugiro que usemos fraldas todo o tempo. não tenho a menor dúvida. Veja. churrasco. foi passar umas férias no México. envolvido com um desmanche de carros.99. pesa 53 quilos e sua coxa não é mais grossa do que a canela. onde. como se impedidos de se fechar pelos músculos. Valdir é um médico de quinta. membro fundador da Asociación Latinoamericana de Odontopediatria e doutor honoris causa do Massachusetts Institute of Odontology-. Por ser filho do dr. ganha dinheiro e casou-se com uma mulher bonita. com quatro filhos gordinhos (dois loiros e dois morenos). mas por algum mistério da natureza anda por aí tal qual John Travolta em "Nos Tempos da Brilhantina": olhar 43. em Taubaté: Valdir se acha um santo e um iluminado e assim é tratado por toda a família nos almoços de domingo. diante de todas as queixas cujas causas sua vasta ignorância é incapaz de desvendar. contudo. muito mais do que meio gorda. contudo. toma remédios para dormir e. foi preso por estelionato. Damião tem 1. Esses 5% que restam. Letícia Von Krueger sempre foi meio gorda. Eduardo é um insatisfeito crônico. diagnostica gases ou estresse receitando Luftal ou repouso. falta nos plantões e. onde estudou. Toda noite. No Porto Seguro. foi contratado por uma fábrica de artigos de plástico e ficou rico projetando saboneteiras de R$ 0. tem muitos clientes. era loira. buzina e xinga no trânsito. Manfredini. em "Nos Tempos da Brilhantina". vem enfrentando alguma dificuldade para manter a ereção. . peito estufado e braços arqueados. em Acapulco.66 m. casou-se um ano depois e vive feliz. nos últimos meses. em algum momento entre as onze e as três da manhã.Contudo 15/09/2013 Eduardo é um dentista competente. contudo - ex-presidente da Associação Brasileira de Odontologia. Fez a faculdade nas coxas. No meio do terceiro colegial. No primeiro ano de formado. Mauro é um designer talentoso e na faculdade sonhava se tornar um grande cenógrafo de cinema. são suficientes para que ele continue andando por aí tal qual John Travolta. Seu irmão mais velho. contudo. Começou a namorar um mexicano naquela viagem. Dezenove em cada 20 mulheres que ele encara têm vontade de rir. contudo. era desprezada pelos meninos. comparável à "A Comédia Humana". férias remuneradas e se pergunta como fará para pagar os três anos de condomínio atrasado. à prova de goteiras. Toda noite. forrando gaiolas de passarinho e castigando os cachorros que ainda não aprenderam o lugar certo de fazer cocô. contudo. inventou um guarda-chuva com calha. Sua grande obra. de Balzac. imagina uma carteira assinada. fez apenas bicos. Decidido.99. Ao longo da vida. . a vender o projeto de guarda-chuva a alguma empresa. em algum momento entre as onze e as três da manhã. Samuel é engenheiro e.imagina os cenários que nunca projetou e se pergunta se algum dia fará qualquer coisa mais relevante do que saboneteiras de R$ 0. contudo. Antonio quer escrever um panorama de sua época. aqui e ali. na faculdade. enquanto ia atrás de seu sonho. sempre termina duas páginas depois e no dia seguinte está enrolando peixes na feira. fundo de garantia. ofereceram-lhe empregos promissores. tirou o tênis. A unha não devia ser cortada havia uns três meses --ou. jovem e fossilizada. mais precisamente. fixador. é uma declaração de princípios. Afirmava-se. sempre jovens. parado num podólogo e voltado. ali. seda para cigarros. ao meu lado. secado ao sol e sido descabelado pelo vento. dito "Ah. pelo menos. Aquele dedão também não era apenas um dedão. aquarela. nossa crença na manutenção do corpo e no reinado do Photoshop." e resolvido ir pintar um quadro. e a paisagem mudou da água pro vinho --ou. que se dane. brotava meia dúzia de pelos mal-ajambrados. veio o jovem colecionador do mercado financeiro. certa poeira oriunda da Amazônia colombiana. que na maioria dos dedões é uma reta ou uma meia-lua. Correndo pela praia. deu um gole num isotônico. feito capim que tivesse nascido numa rachadura da calçada. do vinho pra água.. Não seria absurdo se alguém afirmasse que ele tinha corrido até o fim da praia. sempre apaixonadas pelo grande artista. Da primeira falange. mas sim uma declaração de princípios. em que uma escavação arqueológica certamente encontraria: tinta óleo. A . pensei. um a um. pelos de pincel. pois a frente. onde se lia seu desprezo pelas coisas chãs: nosso asséptico "zeitgeist". Se você chegasse bem perto. Um dedão romântico. cashmere. a prevalência das pulsões sobre a razão e vislumbrava-se a aceitação da morte. O conjunto da obra formava uma instalação. Um dedão beatnik.Impressões digitais 22/09/2013 Isso não é um dedão do pé. apenas uns furinhos --o jovem colecionador do mercado financeiro arrancava os pelos com pinça. Sentou. onde o artista cultivava o anárquico tufo de capim. não inteiramente cortada. uma ou outra assistente linda. uma metonímia do artista.. era quase um S. poeira de restaurantes chiques de Nova York. como se ele houvesse dado uma dentada com o Trim. poeira de botecos sórdidos do centro do Rio. beber conhaque ou cair nos braços de uma de suas assistentes --sempre lindas. Um anacrônico dedão. a cada 15 dias. veria. dono da casa em que o pintor estava hospedado. Sob os dois cantos da unha havia aglomerações escuras. assim que o pintor sentou na cadeira de praia. cria-se imbatível.unha era um retângulo perfeito. sozinho com meus dedões. Os dois se levantaram e foram em direção ao mar. com um leve odor de Pato Purific. um pequeno totem anal- retentivo. pequena tela brilhante capaz de refletir as nuvens do céu em full HD. Eu fiquei ali. dava um pontapé na passagem do tempo. Um dedão de alta performance. Os cantos estavam impecavelmente limpos: uma escavação arqueológica sairia de mãos vazias. talvez. Um dedão ISO 9000. a vitória do homem sobre a natureza. em homenagem ao mundo administrado. Uma ode ao controle. . Um atualíssimo dedão. quanto custaria para a visão de mundo de um ir parar em cima da lareira do outro. com água pelas canelas. Aquele dedão comemorava o triunfo da razão sobre os instintos. imortal. discutir. dando apenas. ao planejamento. O conjunto da obra era uma metonímia do jovem colecionador do mercado financeiro. namorada. forrar um quarto com papel de parede. juntos. respira fundo e procura mentalmente as barras antipânico que os levarão para longe da escaldante tensão conjugal. contudo. por mais cuidado que tomássemos. um cônjuge) vá mais rápido que o outro. O desafio é os dois irem puxando o papel vegetal por trás. digo. meia hora após o início das hostilidades. ternos e tenros como as criancinhas ao mar no filme "Tubarão". Colar papel de parede. Caso. desespero. um gesto em nome da beleza. de sobreviver a shoppings em véspera de Natal e até --Deus lhes poupe-. soluções antagônicas. Subindo em duas cadeiras. Afinal. lembra muito estar perdido de carro. desenrolando e colando o troço de cima pra baixo. ansiedade. na saúde e na doença. Ao papel de parede. trata-se de uma melhoria para a casa. pode crer: é amor de verdade. Como desconfiar que a meiga estampa colorida é o forro da tumba em que será sepultado o casamento? Você se lembra da época não tão remota em que colávamos adesivos no carro durante as eleições? Então deve se recordar que. SIMULTANEAMENTE. desses capazes de perdurar na alegria e na tristeza. os amantes se entregam álacres.. a não ser que . sugiro um teste: experimentem. ainda houver um vínculo afetivo entre os dois. em casal: acusações mútuas. A diferença é que. acredite.Me dê motivos 29/09/2013 Se você está bem com seu namorado. Agora. o papel engrouvinha --e. imagine 18 rolos adesivos de 1. você e sua cara-metade colam a pontinha do primeiro rolo. se acha que encontrou sua cara-metade e que nada pode abalar vossa paz. você fareja o perigo. tipo fazer pão. sempre ficava uma ou outra bolha de ar. tomar banho de banheira.20 m x 2 m sendo aplicados a quatro mãos --é esse o tamanho da encrenca. marido ou esposa.ao nascimento de trigêmeos. lá no alto.e. Um milímetro que um lado (i. ao se perder de carro. em casal. um desses bucólicos projetos dominicais que parecem trazer consigo a confirmação de nossa felicidade. ir à Pinacoteca. das atividades. tomar banhos de banheira. está sendo travada em cima de cadeiras e com as mãos para cima. Aí. vocês tentam reparar o erro. Pensavam em ter filhos. Vocês se olham. contudo. (Toda essa discussão. começam as acusações. vai engrouvinhar. O afoito tenta colar de novo. encostadas na parede. lembre-se. um dia. Vocês olham a parede. Um diz que o outro foi lerdo. Estão juntos há seis anos. Miyagi. assim como uma faixa de 1. O mais cauteloso (o acusado de atrasar) discorda. não quer nem saber e puxa o papel: as bolhas e estrias somem.20 m x 10 cm de tinta e massa corrida. mas o volume das cascas de tinta e massa corrida fica evidente --parece um tapete estendido sobre a areia da praia. visitar a Pinacoteca e quem sabe até. arrancada pelo adesivo. mas só piora: estrias diagonais surgem de ponta a ponta. . Adiantando o lado retardatário. em fazer pão em casa aos domingos. O afoito. o outro diz que o um é que se apressou.vocês tenham feito anos de nado sincronizado ou sido discípulos do sr. Ainda faltam 35.7 m. forrar aquele quarto com um belo papel de parede. Só 30 cm do primeiro rolo foi aplicado.) O mais afoito dos dois (aquele acusado de acelerar) sugere descolarem a parte que engrouvinhou e colar de novo. como eu já disse. ele também. O leve constrangimento se foi e deixou em seu lugar uma pequena felicidade. pregou os olhos no espelho. pois o sujeito parou ao meu lado. quando o cara entrou. contudo. que tem um emprego de verdade e fica o dia todo fora de casa. O cidadão. fiquei um pouco envergonhado. a um inglês no metrô falando ao celular. Talvez você. acenar com uma sobrancelha ao meu parceiro de escovação. Pequena. abaixei a cabeça e assumi aquela circunspecção de mictório. Um pouco só. Eu não ia. mesmo. Minto. mas suficiente para me fazer levantar a cabeça e. se desfez bem rápido. sem saber brincar em turma. é meio ridículo. abrigando-se da chuva sob uma marquise. a escovar os dentes. não sou uma pessoa carente. hein?!". franziu as sobrancelhas e deu início aos trabalhos com uma fúria de enceradeira. Corintcha!". quando um cara entrou. como uma pessoa que. ache este reflexo pudibundo uma frescura de moçoila da belle époque. simultaneamente. vê chegar outro cidadão ensopado. caso ele respondesse a meu aceno. Era só um "Vai. contudo. pelo espelho. da mesma envergadura do meu constrangimento e do meu alívio. mas a gente que trabalha em casa e tem como único colega de batente um pombo cinza que vez ou outra pousa na janela vai ficando aos poucos com umas manias de filho único: muito cioso do próprio espaço. somos todos carentes. uma dessas . tirou da mochila uma necessaire e começou. sou carente. mas o suficiente para abaixar a cabeça e diminuir o ímpeto da escovação - -passando de espadachim a enfrentar dois inimigos. Meu casulo. É. Foi um gesto discreto. só um meneio cúmplice. não era muito de dividir marquises: fingiu que não me viu. naquele momento mezzo íntimo. um "Que chuva. de modo que. a dor no ciático e os embargos infringentes. mas não sou um chato. Confesso que ao ser flagrado ali. depois do almoço e antes de uma reunião. puxar um papo sobre pasta de dentes e logo em seguida alugá-lo por meia hora com minhas queixas sobre o trânsito.Dente por dente 06/10/201303h12 Eu estava escovando os dentes no banheiro do Sesc. Veja. de boas-vindas. Fala-se muito mal de papos sobre o tempo: pois eu acho uma grande conquista da civilização.. pro chão. Infelizmente pra ele." e. Atlas ou mexendo no celular --sem sinal. hein?" e o outro responder "Dos infernos. Você entra no elevador. lendo ininterruptamente Atlas. pois saindo dali o cara descobriu que era comigo a reunião das duas e ambos sabíamos muito bem o que tinha acabado de acontecer e ele aceitou o orçamento que havia me dito por e-mail que não dava pra aceitar e topou o prazo que havia jurado que não conseguia me dar e eu só não levei pra casa sua mesa. o senhor do 903 entra no elevador: se ficarem em silêncio. terão de atravessar os infinitos minutos olhando pro teto. . Mas basta um dos dois dizer "Que calor. pronto. seu computador e sua carteira porque sou um homem honesto e não gosto de me aproveitar dos outros nos momentos de fraqueza. uma brisa refresca aquele mormaço. Atlas.. Infelizmente. meu vizinho de pia não compartilhava do mesmo protocolo de civilidade: seguiu fechado em sua bravurinha escovatória. sua cadeira.microparcerias que deixam a vida na cidade menos desoladora. Atlas. É que lhes lancei meu olhar "eu- também-tenho-uma-filha-recém-nascida-eu-sei-o-que-é-isso-que-coisa-mais- linda-que-coisa-mais-doida-parabéns-por-atravessarem-o-Atlântico-todas-as- noites-tamo-junto-Lusa-Lusa!". toda a intenção do meu olhar se perde em algum lugar entre o córtex e as retinas. cheguei à seguinte imagem: é como se eu fosse um patinador no gelo. Quando ela finalmente dorme no meu colo. de uma hora pra outra. na rua ou no mercado. * Quantos rostos têm um bebê? Olivia espicha o pescoço. me deixando apenas com essa expressão de tarado ou maníaco religioso louco de ácido prestes a. percebo que homens ou mulheres com criança de colo estão com medo de mim. Um clube que você até sabia que existia.Diário da paternidade II 13/10/2013 Ontem. momentos épicos. * Ter filho te insere. é Audrey Hepburn. sei lá. retrai. de 5. é quando a olhamos e falamos: "Agora ela não parece ninguém. passar a torcer pra Portuguesa -na atual fase da Portuguesa. ninando minha indômita filha pelo quarto. É algo assim como. Infelizmente. dando volteios em câmera lenta. O mais legal. contudo. mas para o qual não dava a menor bola. Momentos tétricos. a se julgar pelas respostas faciais. lamber alguém. é John Goodman -e eu nunca tinha reparado que o John Goodman podia ser tão lindinha. agarrado a uma tainha de cinco quilos que se debate em fast-forward. às 4h17 da madrugada. no entusiasmadíssimo clube dos que têm filhos. imediatamente. agora ela tá . * Lusa! Lusa! Lusa! * Às vezes. me sinto como o Amyr Klink retornando ao lar depois de ter sido o primeiro homem a atravessar o Atlântico num barquinho a remo. a coloco no berço e volto para o quarto. Numa mesma foto. meu avô paterno aos 80 e sua prima Nina. no entanto. ela parece a minha irmã ao nascer. mandaram o estagiário. Durante três meses eu fui apenas um assistente desqualificado. não está nada pacífico.. só tenha começado a achar graça deste desengonçado estagiário da mãe. do fundo do berço. ela franzia a testa: "Saco. pelo rugir das ondas.com cara de Olivia". talvez. * Outro dia fomos ao pediatra e tive que preencher uma ficha. para minha felicidade. ela sorri. Olivia fez 3 meses: nossas olheiras aparentam 300 anos.) * Agora. com licença: o Atlântico me chama e. Vi lá "Nome do pai" e já saí escrevendo: "Mario Alberto Campos de Moraes Prata". * Semana passada. Olivia chorava. . após 90 dias tudo mudou: eu chego. Minha filha finalmente se deu conta da existência do seu pai! (Ou. Levou uns cinco segundos para eu entender que o pai era eu. eu chegava pra socorrer e.. Terei que preencher mais algumas fichas até que a ficha caia de vez. nossos corações rejuvenesceram 30 -e não são à toa os múltiplos de 3. Mas. talvez ainda não tenha entendido.". Pensando bem. ainda. mas nove vezes. Veja o Taiti. como eu: Rogério Pereira. o melhor jogador goiano de Teresópolis. El Capitán. colocariam nosso time em condições de ganhar não só de escritores alemães. não? Devo dizer. time de escritores germânicos que enfrentamos (sic) durante a feira de Frankfurt. sete contra sete no Playball da Barra Funda -os 11 nunca haviam estado do mesmo lado num campo oficial. num pênalti pra lá de duvidoso) nem foi tão mau assim. vidi. visitar-me-ão em pesadelo os três atacantes teutões que.Veni. em defesa da nossa honra -se é que restou alguma a ser defendida-. com técnico. e Flávio Carneiro. Marcelo Moutinho. Zé Luis Tahan. Ora. até. Celso de Campos Jr. uniforme.. é uma seleção profissional e tomou de 10 x 0 da Espanha. verei as três bestas loiras galopando. joga desde 2005. 11 de outubro do ano da (des)graça de 2013. mas até de engenheiros ou. ao fechar os olhos. trarei no peito a cicatriz do Massacre de Frankfurt. . passando por mim como se eu fosse um campônio ignaro ou um cone de treino e marcando não uma nem duas nem cinco. a Estrela de Santos. o Pindorama FC. são craques que. no currículo. esbaforido. recostado nos braços da madrugada. o Trator da Baixada. 9 x 1 (o nosso saiu aos 40 do segundo tempo. no apito derradeiro de meu tempo regulamentar. Dadas as circunstâncias. Bem pior. somente um par de treinos. batalha inglória em que 11 galhardos e desentrosados escritores brasileiros foram trucidados pelo azeitado escrete de escribas alemães. por 90 minutos. tentei marcar -o altão. o Canhão de Madureira. Já nós. Quem sabe. pra que tanto drama? O que eu esperava? O Autonama (Autorennationalmannschaft). que nem todos no Pindorama eram pernas de pau. Vladir Lemos. por exemplo. tínhamos apenas dois meses e o sentimento do mundo. o gigante e o Golias-. na Copa das Confederações. bufando. embalde. buscando na breve morte do sono o consolo para as tormentas da vigília. juiz e bandeirinha. como fizeram na noite infame daquela sexta-feira. o Pelé Polaco. Mesmo no silêncio da alcova. entrosados. perdidi 20/10/201303h10 Enquanto perdurarem meus dias sobre a terra. Ano que vem. não se viu um toque de calcanhar. . apesar do placar. de um selecionado de imigrantes turcos e africanos. Organizaram um evento impecável. sem nenhuma organização. do frio. Agora é bola pra frente. desconfio que minha gratidão tenha outro nome: síndrome de Estocolmo. é capaz de vencer uma boa equipe treinada. é inútil chorar sobre o "liebfraumilch" derramado. de braços abertos e com os pés afinados. das dores musculares e da sempiterna nódoa que carregarei em minh'alma. contudo. sinto-me grato. entramos em campo de mãos dadas com criancinhas uniformizadas. Ou melhor: síndrome de Frankfurt. quando penso naqueles alemães. não se ouviu um "Olé!". no entanto. durante o jogo. 11 homens contra um time -e nem a mais deslavada arrogância brasileira pode achar que o talento individual. Dado o massacre. Seja o que for.quem sabe. o Autonama vem ao Brasil para a revanche: espero que saibamos recebê-los da mesma forma. Curioso é que. mesmo quando ficou claro que a Oktoberfest engoliria o Carnaval. cantamos o hino e. (Muito menos uma boa equipe alemã treinada). Éramos. que. por algum mistério da física. É que o cérebro humano tem lá em seus cabos e roldanas um intrincado sistema de compensações. Achei tosco. Se. só para vê-los tomar o literalíssimo banho de água fria. em vez das críticas dos jurados. para que os cantores fossem péssimos. de esporte-. era recebido por ele. benéfico até --o choque térmico ajudando a apagar a chama da humilhação. delirava sempre que um povero Pavarotti ia parar na piscininha. tremendo. não gostei da brincadeira. Comparado àqueles perversos empalamentos verbais. Lembrei de outros programas --de artes. com seus mórbidos bemóis e insustentáveis sustenidos. de início. como sói acontecer diante das grandes ideias. comecei a pensar se não seria possível transformar o choque térmico num choque de democracia: por que não fazer do alçapão um instrumento republicano.em que aprendizes esforçados veem suas performances e seus sonhos esculhambados por cruéis "especialistas". não. contudo. as benesses para a vítima talvez sejam discutíveis. Ao presenciar a cena. Saem chorando. garantindo nossa permanência nessa morna redoma de tranquilidade. Ok. aos poucos fui mudando de ideia. mais puro. Chegavam a torcer. Depois de uns 20 minutos diante da TV. mas as vantagens para o público. o cantor desafinado recebia o alçapão: ou melhor. e o infeliz desabava. o alçapão foi me parecendo cada vez mais inocente. o chão se abria no meio do palco. os tatatataranetos do Coliseu. numa piscina cheia d'água. A meritocracia transmitida ao vivo e a cores. mas.Alçapão 27/10/2013 Era um programa da RAI. tipo "Ídolos". violento. sangrando a alma diante de milhões de olhos sádicos. ficou congelado em 1981. a agressividade explodindo numa gargalhada --rápida e eficiente como uma guilhotina. torci o nariz. dedicado a erguer todo tipo de estranheza dos calabouços da bizarrice para o chão firme da normalidade. típico produto daquele canal italiano. de culinária. a refrescar o ardor da derrota. O público. assim como a urna eletrônica e a declaração on-line do IR? Imaginem que delícia assistir aos debates entre candidatos sabendo que cada . a partir de hoje. meu povo. o público iria eliminando os fanfarrões. nas praças e estradas do Brasil. um a um. Sei que criar um subsolo em todo o território nacional sairia um pouco caro. Dirigiu pelo acostamento? Alçapão. Vamos para as ruas. . Deveríamos instalar alçapões não só nos programas de TV." Tchibum! "O que a candidata acha sobre o aborto?" Tchibum! Ao final do debate. nem precisaríamos de eleição: aquele que permanecesse seco estaria eleito. Entrou lá no começo da fila só porque encontrou um figura com quem estudou na terceira série? Espero que você saiba nadar. mas nas calçadas.um deles jaz um metro acima de uma piscina? Por telefone. Você acha que alçapões não são um motivo digno para atrapalhar o trânsito? Beleza. aldrabão. e sim uma solução: a construção de alçapões movimentaria a economia. tá no seu direito --mas sugiro que. reacender a chama de junho e lutar por essa melhoria no país. "Quem não reagiu. tá vivo. Jogou papel no chão? Alçapão. tiraria o país da estagnação e colocaria nosso B maiúsculo à frente dos BRIC. mas isso não é um problema." Tchibum! "Não vejo nenhum problema em nos aliar-mos ao Maluf. passe a sair por aí com uma toalhinha a tiracolo. Para todo lado que se olhe. vivia ainda enclausurado na primeira parte da célebre frase atribuída a Clemenceau. digo que meu problema não é com os negros. percebo que é chegado o momento de trocar as sístoles pelas sinapses. como você sabe. mas na verdade cunhada pelo próprio Senhor: "Um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração. que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz. vivemos num totalitarismo de esquerda.. da direção das empresas aos volantes dos SUVs. ou os cidadãos de bem se unem. Não me arrependo. maconheiros e aborteiros tentam levar a nação para o abismo. índios. Como todos sabem. mas com os privilégios das "minorias". Se é que a barbárie já não começou. como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Vejam os índios. portanto. escrevi um texto em que me definia como "meio intelectual. meio de esquerda". Antes que me acusem de racista. o que aconteceu? O branco encontra-se escanteado.. mas. E quem há de negar que é preciso reagir? Quando terroristas.Guinada à direita 03/11/2013 Há uma década. senão reacionário. ou nos preparemos para a barbárie. Agora que me aproximo dos 40. Não fosse por eles. a cúpula da CBF e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias. gays. A rubra súcia domina o governo. um homem que permaneça socialista aos 40 não tem cabeça". por exemplo. as universidades. encheríamos nossos cofres e financiaríamos inúmeros estádios padrão Fifa. vândalos. Após anos dessa boquinha descolada pelos negros nas universidades. Veja as cotas. seríamos uma potência agrícola. a mídia. O Centro- Oeste produziria soja suficiente para a China fazer tofus do tamanho da Groenlândia. por exemplo. os cabelos rareiam e arejam-se as ideias. das mesas do Fasano à primeira classe dos aviões. esses ágrafos. na Câmara. Era jovem e ignorante. transformaram toda nossa área . quilombolas. O pensamento que se queira libertário não pode ser outra coisa. apoiados pelo poderosíssimo lobby dos antropólogos. a Shaw e a Churchill. o que encontramos? Negros ricos e despreparados caçoando da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral. mais injustos e violentos sobre a Terra. agora. Do contrário. Só não jogo a toalha e mudo de vez pro Texas por acreditar que neste espaço. desde já. pelo menos. se minha nova persona não lhes agradar.cultivável numa enorme taba. raivoso e estridente. eu ainda posso lutar contra esses absurdos. com sua ignorância. temos uma arma: o humor. de gorda. seguiremos dominados pelo crioléu. Peço perdão aos antigos leitores. inclusive). mas sê-lo de modo grosseiro. contudo. por isso tenta nos calar com o cabresto do politicamente correto. de baiano. é a culpada por sermos um dos países mais desiguais. Me aguardem. pelas bichas. gays e mulheres (as feias. mas no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário. Contra o poder desmesurado dado a negros. A esquerda. Lá estão. improdutivos e nus. essa gentalha que. catando piolho e tomando 51. a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites. que agora possuem dinheiro para avacalhar. . nós. sem falar nos ex-pobres. sabe do poder libertário de uma piada de preto. pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP. da direita. índios. finalmente compreendi. que ocupavam a direção das empresas. José Maria Marin e o pastor Marco Feliciano eram de esquerda. só poderia ser pintado por um paranoico delirante. por culpa das reservas indígenas. Muita gente não entendeu: alguns se chocaram pensando que eu de fato acreditava que o problema do país era a suposta supremacia de negros. No fim. índios e o "poderosíssimo lobby dos antropólogos". me levantava contra "as bichas" e "o crioléu". escrevi aqui uma crônica em que satirizava o discurso mais raivoso da direita brasileira. achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas para que a sátira ficasse evidente. cumprimentando-me pela coragem (!) de apontar os verdadeiros culpados por nosso atraso. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos outra. orelhas podem ser maiores que a cabeça. Descrevi um quadro que. a fim de expô-los. Narizes aparecem desproporcionalmente grandes. O texto não estava suficientemente descolado da realidade para que todos percebessem a impossibilidade de ser literal? Talvez. Volto ao tema para que não haja risco algum de eu estar reforçando as ideias nefastas que tentei ridicularizar. O Brasil (segundo maior exportador de soja do mundo) não era. homossexuais. outros me chocaram. No país bisonho do meu texto. os brancos estavam escanteados por negros. Na crônica de domingo. pensava eu. não: fui menos grosseiro. um vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam virar "ração pra .Abaixo. a ironia 10/11/2013 Domingo passado. Uma sátira é uma caricatura. É como se puséssemos uma lupa nos defeitos do original. as mesas do Fasano e os assentos de primeira classe dos aviões. uma potência agrícola. exagerando tais características. Poucos dias antes da crônica ser publicada. um bigode talvez chegue até o chão. feministas. violento e delirante na sátira do que muitos têm sido a sério. infelizmente. na crônica. em que o narrador indaga "como isso foi possível?". homo e demofóbico pode não soar absurdo. Lee. Frederick bufa e resmunga: "A pergunta não é essa! Do jeito que as pessoas são. do Woody Allen. mas plausível. Quem se chocou achou o personagem equivocado. só dá para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite negra e oprimiram os brancos.peixe". por aí -e. a fala me voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais vezes?". não estou sendo irônico. Em "Hanna e Suas Irmãs". diante dos e-mails elogiosos que recebi. Quem me cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente. . machista. infelizmente. é casada com um intelectual rabugento chamado Frederick. o personagem assiste a um documentário sobre Auschwitz. ser "apenas" racista. Vontade é o que não falta. Esta semana. uma das irmãs. Lá pelas tantas. acabando com a "meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral". a pergunta é: como não acontece mais vezes?". Ora. Com esse pano de fundo. se achar que os 20 anos de ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu". ele sente mais falta dela à noite. começava o espetáculo. Ontem de madrugada. O sexo. "A única coisa que eu pedia era pra ele botar o telefone na base. só. de manhãzinha. Quando se conheceram. Se você ama mesmo uma pessoa. assim que o fogo abaixou e o sexo teve de encontrar seu escaninho no armário da rotina. só queria tomar uma cerveja e dormir. uma superioridade quase beática. * Da primeira vez que ela foi à casa dele. antes de dormir. Separaram-se faz um mês. uma exigência corporal que surgia mais intensa quanto mais descansado estivesse: ao acordar. não atinaram para o problema de fuso horário --no jet lag da paixão. À noite. a caminho do banheiro. ela resistiu às toalhas molhadas na cama. a fantasia se desenhando nas cochias do pensamento e só ao se deitar na cama. é capaz de fazer esse mínimo esforço. para ela. nas flores da jardineira e no mural do escritório sua possível salvação: sonhou com um futuro de refeições balanceadas. gostava de filmes de ação e corria na esteira três vezes por semana. enquanto toma sua cerveja e espera o sono. exausto. as diferenças apareceram. detestava "filme de carro explodindo" e praticava hatha yoga. ela sofre mais ao acordar. aos discos espalhados pela casa e às caixas de pizza no sofá. Ironicamente. era "cosa mentale": o desejo ia crescendo durante o dia. Separaram-se faz uma semana. ela viu a luzinha verde da bateria. viu na cama desarrumada. toda hora era hora--. viu nos tupperwares etiquetados. Da primeira vez que ele foi à casa dela. vinis em ordem alfabética e contas no débito automático. um desprendimento libertador. Encarava o sexo como uma necessidade fisiológica. não é?". Ela era pintora. mas.Separações 17/11/2013 Ele era engenheiro. Por seis meses. nos vinis espalhados pelo chão e na geladeira vazia --meia garrafa de vinho e três sachês de ketchup (vencidos)-.uma postura rock'n'roll. na . riam das mesmas piadas. dos mesmos pratos nos mesmos restaurantes. Nada sério. Não transou. Agora. Transou com um colega de trabalho e com um ex-namorado de adolescência. que encontrou por acaso em Salvador. .base do sem fio. contudo. e caiu no choro. não beijou nem flertou com nenhuma outra mulher. ao partir. a retidão começou a pesar em seus ombros. Ontem. só desejo: ela tem certeza absoluta de estar ao lado do homem que ama e jamais cogitou trocá-lo por alguém. ele foi absolutamente fiel. nesses dez anos. olha pra parede e diz que precisam conversar. não foi absolutamente fiel. ele disse que vinha pensando o mesmo. ela o fez prometer que jamais teria um filho chamado Frederico. * Por dez anos. Já ela. Nos últimos meses. Ele prometeu --e pediu o mesmo. Depois de cinco anos. queriam conhecer os mesmos países e ter um filho chamado Frederico. deu pra implicar com pequenos atrasos da esposa e pra discordar de seus comentários durante o jornal. se cansaram daquela mesmice. senta ao lado dela. Ela disse que estava pensando em se separar. * Eles gostavam dos mesmos filmes. das mesmas bandas. Anda por aí olhando bundas com a voracidade de um remador das galés. dos mesmos livros. ele chega na sala. em que nos encontrávamos duas. de "likes" e SMSs. Qual foi a última vez que nos encontramos. às nossas planilhas. faz cinco. fez doutorado. É que lendo o seu e-mail me caiu uma ficha: percebi que viramos pessoas sérias. você se separou e casou de novo. ingenuidade e. ultimamente: sempre que penso que faz dois anos que alguma coisa aconteceu. falando bem da gente e mal do mundo. vamos refazer os velhos vínculos. Animados por aquela certeza aristocrática da juventude (misto de hormônios. escrevi uns livros --seria inútil fazer um resumo aqui: como resumir uma filha? Você tem razão: "urge" nos encontrarmos e botar a conversa em dia. os quatro: eu. via bem menos poética do que o vão embaixo da porta--. brindávamos aos heróis que abriam nossos olhos pro absurdo: Drummond. Honramos nossos compromissos. você. Eu me casei. tive uma filha.) Eu disse que foi bom receber sua carta e agora fico em dúvida: afinal. voltou. Fernando. morou fora do Brasil. Poxa. ao terminar de lê-la sentia mais saudade do que antes. vamos comer. do trabalho e do casamento merece ser promovido à carta. você me manda uma carta lindona e eu te respondo todo resmungão. que bom receber sua carta! Foi um e-mail. vá lá. Não só saudade de você. ganhamos nosso . Zappa. Desde o nosso último encontro.Carta 24/11/2013 Fernando. aos nossos e- mails. Monty Python. o e-mail não é a mensagem. rir. mal aí. mas da época em que éramos uma turma. (McLuhan que me perdoe: às vezes. há uns cinco anos. foram dez). foi naquele aniversário da Cla. Serra Malte). mas nesses tempos claustrofóbicos de 140 caracteres. mas me permite ser um pouco pessimista? Digamos que nos sentemos em torno de uma mesa: vamos conversar. um e- mail longo como o teu. o Márcio e o Henrique? Que eu me lembre. quando chuto cinco. eu sei --chegou pela tela do computador. beber. E depois? Voltaremos aos nossos trabalhos. Campos de Carvalho. falando da vida. (Ou faz mais tempo?Tenho tomado uns sustos. três vezes por semana e varávamos madrugadas bebendo cerveja. Será que isso é necessariamente ruim? Talvez seja bom. Não é nem uma história.dinheiro. O Márcio jurou que no dia seguinte ia entrar em contato com o cemitério e pedir uns orçamentos. (Quem diria que o colesterol se transformaria num inimigo mais assustador que a rotina. em frente ao Cemitério. não te disse nada de útil e ainda te lambuzei com a minha melancolia. Desculpa. gárgula e o escambau. escrevendo. de alugar uma casa em Caraíva. hein?). vejo que divago. veja só. mas volta e meia me pergunto se não abrimos mão de alguma coisa importante. era leve e cômico e promissor. Sim. daquela época. uma esteira ergométrica. saudade e que bom receber sua carta! . é bom. é só um momento: estávamos esperando um táxi na Cardeal. Na hora soou mais como uma proposta de acampar em Mauá. em cima: seria o mausoléu da turma. Fernando. no caminho. Tem uma história que eu sempre lembro. você até comprou. Uma daquelas casinhas com anjo. Agora. como tudo mais. mas não era. meu amigo. parece uma ideia funesta. lá pelas três da manhã e o Márcio sugeriu que comprássemos um mausoléu. Adivinha se ele cumpriu com a promessa? Bem. criamos nossas famílias. bem ou mal. Os vírus. Ressentidos por ocuparem o térreo na pirâmide da seleção natural. ao menos. agora passa a mocozá-los no miolo. no entanto. pretas ou vinho. que antes ia civilizadamente ao banheiro jogar os papéis usados no lixo. e uma pessoa direita deve fazê-lo com a seriedade de quem dá uma má notícia. e jamais levar as coloridas. mas a subjugar seu espírito. de rico de novela. paciência e fé que o paracetamol e a vitamina C te levarão. o papel sai pelo . Os vírus. algo de realeza inglesa ou. estamos levando a uma extremidade do corpo algo que é fundamentalmente destinado à outra. até que a última gota da dignidade escorra pelo nariz. cantam. contudo. estão todos aglomerados nas bordas das suas narinas. aliás. e os vírus. querem te ver no fundo do poço. mas vencer não basta. com florzinhas ou ilustrações do Romero Britto: não há graça nenhuma em assoar o nariz. você se assoa em lenços de papel -nada que fira teus brios. por três motivos. nesta altura do campeonato. dão piruetas de alegria. que me faz preferir as caixas de cor escura. mas não menos importante: aquele oco no meio do rolo é um convite à barbárie. Há algo de austero naquelas caixas de lenço.Escorrendo 01/12/201303h40 Você encara o infortúnio com valentia: uma caneca de chá numa mão. é que no ritmo de duas assoadas por minuto. como a torcida no alambrado aos 43 do segundo tempo: riem. você. antes do almoço sua caixa de lenços já era: agora você anda por aí com um rolo de papel higiênico a tiracolo. Em primeiro lugar. uma caixa de lenços na outra. A má notícia. Segundo: papel higiênico esfarela. estão determinados a derrotar não só os glóbulos brancos do infeliz hospedeiro. É essa austeridade. Sabem que vencerão o jogo. infelizmente. que nevou na sua blusa ou que mergulhou de peixinho num galinheiro. O papel higiênico é uma afronta à dignidade humana. assim como o oco no meio do rolo: você espreme o papel de um lado. parece não ter fundo. O poço. De manhã. até o fim daquela gripe. gritam. Por último. usando suas adenoides como cama elástica. são criaturinhas insidiosas. Uma assoada mais agressiva e parece que você tem caspa no queixo. Usada. tá chegando a hora. Em poucas horas. . Aqui. no carro. a caminho da farmácia -onde comprará dúzias de caixas de lenço... ai. de modo que a casa vai sendo polvilhada pelos pipocões de papel e muco. além do mais. sem se importar se trarão ilustrações do Romero Britto. ai." e se atirarão de suas ventas em busca de novos desafios. Não. o entusiasmo falta e. sabem que o melhor está por vir -e vem. darão as mãos. As primeiras bolotas amassadas a rolar pelo chão você até recolhe. eles te assistem passar do papel higiênico pros guardanapos. mas o corpo dói. ai. um vírus mais afoito poderia deixar o estádio. felizes por terem deixado de joelhos a máquina mais complexa do universo -você-. cantarão "Ai. nova. você está se habituando àquela porqueira.outro. dos guardanapos pro papel toalha. Aí sim essas criaturinhas toscas. Os experientes. da Turma da Mônica ou dos Cavaleiros do Zodíaco -assoando o nariz numa folha de Zona Azul. o que era repugnante às nove da manhã parece aceitável às quatro da tarde. porém. até que enfim contemplam sua derrocada final: você. Ele. com dois Elvis. dez. e ainda tinha problema de pressão. Eu tava há seis meses sem trabalho.Beyoncé 08/12/2013 Até o ano passado. mas o dono aposentou e voltou pra Uruguaiana. O Marcello disse que eu tinha tirado a sorte grande. eu tava numa entrevista de emprego. Daí. o Ademir. eu jurava que era você no Vaticano!". Tinham coroado o Francisco naquele dia. "Rui. ali na Brigadeiro. os bonzão mesmo são tudo lá da agência. Pedi uma cerveja -que naquela época eu ainda bebia em público-. Dei . Foi a Luci que deu a ideia. e eu acabei aceitando. Eu. Anunciado. não acredito!" e tal. que sem esse negócio de agente a coisa não vira e me deu o telefone do Marcello Perotti. hein?". fazer sinal da cruz e ficar acenando pro povo!". Tem a careca. não engorda. 11 horas. Pra falar a verdade. seis horas da tarde. Sabe como é mulher. 13 de março desse ano. Ademir! Papa argentino?! Eu. isso. falou assim que eu precisava de um agente. Da Luci ter a ideia até eu tá no Jô. que uma amiga dela tinha visto na Rede TV!. foi o que? Um mês? Nem isso. Elvis. Rui. Raul. Rui. cê fica aí procurando emprego de garçom. Aí. Beleza. então. mas o pessoal comentou. Silvio. eu era garçom num quilo. já viu. mas esse negócio de sósia parece que dá dinheiro. pai. que sósia de papa é firmeza: papa não sai de moda. Depois. vem ver você na televisão!". né? A orelha. cinco. viu?". agora. "Pô.. e ela. Falei "Sai fora. vem ver. não faz plástica. mas eu não sabia. Ronaldo. né? Pegou mais 250 com meu cunhado e mandou uma vizinha fazer a roupa. eu chego no bar do Ademir. "Ô.. Luci? Nunca fiz isso". devia dois paus e 700 pro meu cunhado. sentei numa mesa e esqueci. "Tá doida. vem a Luci correndo lá de dentro e já vai me puxando: "Rui. "Que que tem?! É só vestir uma bata. "Pai. meu nome indo pro Serasa já. mais tarde eu chego em casa. não fica mudando o cabelo. redução de estômago. eu nem achei assim tão parecido. até a minha filha. cê já viu o papa argentino?". se cê não tivesse aqui. Uma hora. vamos dizer. ela se perde. Lá no Ademir era todo mundo oferecendo cerveja de graça e eu só recusando. O pessoal vai rir. ele é papa. Eu sei que não é comigo.. . A Sabrina Sato me deu um beijo na testa. mesmo. Se a pessoa. ao vivo. Que que eu vou te dizer? Você viu a foto.autógrafo pro Tomate. mas tô empregado. parceiro. uma crônica. Queria que você me ouvisse. se a pessoa não tem um psicológico forte. rapaz. Mas a carne é fraca. eu não. A Renata Vasconcellos disse meu nome no "Bom Dia Brasil". tô ajudando a minha filha a pagar a faculdade. Isso. vai acabar com a minha vida. Mas pra você vai ser só uma matéria. quitei a dívida com o meu cunhado. Sem falar que eu amo a Luci e meu negócio com a Beyoncé foi só aquela noite. Ele é muito querido. porque sósia de papa. Tô rico? Não tô. Pronto. Ouviu. "Sósia do papa flagrado em motel com sósia da Beyoncé". vou entrar de sócio num quilo junto com o Ademir. é com o Francisco. Se quiser escrever aí no seu jornal. eu não tenho como negar. Já pra mim. até a pressão melhorou. vai achar engraçado.. né? Na rua a mulherada dando mole. Agora faz aí o que a sua consciência mandar. Complicado. Abundância 15/12/2013 Senta-se muito mal por este mundo afora: em bancos de concreto. no entanto. à beira-mar. máquina de chope com quatro torneiras. É dessas histórias: começou servindo cafezinho na empresa. Importa chope de uma microcervejaria dinamarquesa. seguindo apressado em direção ao quiosque. Culpa. Conheço um homem muito rico que tem uma ilha. 200 ramos de alecrim. Manda trazer cordeiros da Patagônia. Contemplei cetros de ouro . chegou à presidência.6°C –e depois disso tudo. E. um bom vinho. 80 cabeças de alho. O quiosque é sua Disneylândia.. bancou os próprios estudos. no meio do quiosque há uma mesa de jacarandá e dois bancos compridos –sem encosto. uns 50 metros atrás. É onde pretende passar boa parte de seu tempo livre. Não entendo. Ano passado. câmara fria e um forno de pizza grande o suficiente para assar dois carneiros inteiros –o que ele faz. O leitor pode achar que é um problema do meu amigo. em tábuas duras e sem encosto. me levou para conhecê-la. construiu um pantagruélico complexo gastronômico: churrasqueira. geladeira industrial. Pois bem. ele não dá muita bola: "Essa parte é da minha mulher". regula a temperatura em 4. por tudo o que conquistou? Nada. depois de 30 anos de esforço e 18 horas de lenta cocção. Veja: o cara gasta milhões de reais na ilha. talvez. visitei a Torre de Londres. subindo. subindo. de metal. À casa. no alto do morro. o prêmio autoconcedido por tantos anos de abnegação. sua Shangri-La. Tenho cá para mim que uma poltrona ou uma cadeira confortáveis são como um prato bem preparado. Ali. forno a lenha. diz. enquanto cobria a Olimpíada para este jornal. em tamboretes frios. um dia de sol: um breve alívio em nossa incessante caminhada sob a inclemente gravidade. mais alguns milhares no quiosque. Semana passada. algumas vezes por ano. comprou uma ilha. castiga o corpo cansado no tronco? Entrega o peso de seus ombros aos pobres músculos do abdome? Convenhamos: é impossível ser feliz sem apoiar as costas. foi subindo.. faz pessoalmente a marinada com 50 litros de vinho branco. Dizem por aí que a nossa missão na terra é escrever um livro. com os pés esticados num pufe. com encosto reto. séculos após o glorioso advento da almofada. a 90 graus –isso. tronos de reis e rainhas. os líderes supremos do Império Britânico podiam apoiar seu poder no alto dos céus. coroas cravejadas de diamantes. África e Ásia naquele estado. minha matemática parou na regra de três e dos afluentes do Amazonas só me ocorrem o Negro e o Solimões.maciço. Nela aboletado. virá. (Não é à toa que tenham deixado Índia. uma almofada escorando a cabeça e um copo de água com gás na mesinha ao lado. assistir a minha filha crescer. . Bobagem. Vocês já viram um trono? Ora. ver "Breaking Bad" de ponta a ponta. Tá bom: um amor e uma poltrona. se tiver que vir. posso ler "A Comédia Humana" num fôlego. mas os majestáticos glúteos apoiavam é em duríssimos assentos de madeira. plantar uma árvore e ter um filho. O que importa é encontrar uma poltrona. O resto. mas encontrei a minha poltrona.) Sei pouco sobre a vida: nunca li Proust. Levanto o indicador. . O que há de errado com as luzinhas? Penso em alegar desperdício de energia. essas árvores luminosas.Crônica de Natal 22/12/201304h00 Minha mulher sugere colocarmos luzinhas coreanas no chapéu de sol. Já o Natal é uma festa cristã. "Você não acha bonito as árvores todas iluminadas?" Sigo calado –agora. não teria muita moral pra um discurso franciscano. Ela percebe a má vontade e se incomoda. Halloween. soam tão naturais como as perucas nos carecas. Me parece mesmo ridículo ser "contra o Natal". lançamos quando queremos desacreditar as reações femininas. "Que foi?!". que foi de muito mau humor que a ajudei a pendurar os enfeites. Ela saca a estratégia e põe as cartas na mesa: diz que eu torci o nariz quando chegou com o pinheirinho. eu. pergunto. Sou? Não queria. me acusa: "Você é ridículo: você é contra o Natal!". domingo. sim. Ela pergunta o que há de errado com elas. mas por senso de ridículo. em frente de casa. digo que não lembro de cara feia nenhuma ao decorarmos o pinheiro e reafirmo que meu problema é só com as luzinhas. Teria. somos um país majoritariamente cristão e mesmo que a data tenha virado sinônimo de comércio. Aquelas abóboras e caveiras. já com o indicador recolhido ao bolso– e percebo que acho bonitas. Dão às noites de dezembro um ar vibrante –vamos até a farmácia comprar fralda e parece que estamos indo a uma festa. mas fico mudo como a estátua de Duque de Caxias. e agora fico fazendo corpo mole diante das luzinhas coreanas. "Qual o problema?" –ela insiste. Por fim. Eu resmungo qualquer coisa. se apelasse pro degelo das calotas–. com aquela surpresa dissimulada que nós. "É que nem o Halloween? Vai dizer agora que é 'uma festa importada'?" Não. homens. mas estaria mentindo. Não é uma questão ecológica. sábado passado. é verdade. entre nós. colocando-as na conta dos instáveis vapores uterinos –não na das nossas irritantes atitudes. um argumento sólido –ou líquido. pronto para fazer um discurso inflamado. Não por nacionalismo. admito: sou contra. de jeito nenhum. Daí pra vestir no chapéu de sol a polaina de lampadazinhas já são outros quinhentos. com meu Nike nos pés e iPhone no bolso. abraços no oi e no tchau e qualquer outra manifestação – falsa. Calúnias! Calúnias! Calúnias que tento calar. então. . mas age que nem um aristocrata!".Não. mas preferia uma morte um pouquinho menos ridícula. agora. o Carnaval. mas sou diferente do Maurício. Não quero que soe aristocrático. que é. Ele tem seu ponto. Por que. é isso! Não quer 'brincar de Natal' só porque tá todo mundo brincando! Fica falando mal da direita. resmunguei pra pendurar enfeite. Fico feliz. me recuso a enrolar no chapéu de sol as luzinhas coreanas? Não sei. Sou coração mole. Só torço para não cair daqui. diga-se de passagem. Tenho um amigo. Contra o Natal. o Maurício. com 20 metros de luzinhas coreanas (que. ó pai. eu não sou contra o Natal. no mês de agosto. fiz cara feia pro pinheirinho. quando chega o cartão do meu dentista desejando feliz aniversário. mas minha mulher parece ter uma teoria: "Você é um metido! Você se acha superior. do alto deste chapéu de sol. são "made in China") enroladas no ombro. segundo ele– e afeto ou felicidade. ao norte e ao sul. basta aterrar a teia metálica e começar de novo. é que a cidade pegou fogo em 1871: eles tiveram que reconstruir tudinho. nesta coluna cidadã. mais comedido. Sem dúvida. aposentados deitam-se na grama: nas praias lacustres. comprido como o Chile. Ok. desta vez resolvi ser menos egocêntrico. uns binóculos e incendeia SP. moderno e imponente. apesar de estorvá-los tantas vezes com picuinhas da minha irrisória existência. crianças patinam pela ciclovia. tiramos as fitinhas do Bonfim dos retrovisores e vamos andando pra casa. Como a cidade beira o lago Michigan. algumas ideias que me ocorreram nos últimos 12 meses para transformar São Paulo numa cidade mais humana.Três soluções para São Paulo 29/12/2013 Eis que. Cauterização . Qual o segredo de Chicago? O segredo. com casas. alargando a circunferência do meu umbigo até atingir o diâmetro do Rodoanel: compartilho aqui. dois metros acima. Os arranha-céus ficam todos no centro. bairros residenciais.Em julho. entrar num pilates. Aí. prédios baixos e ruas arborizadas. aos 44 minutos do segundo semestre. mulheres fazem topless. Elevados . de 300 km. Eu também tenho uma lista. e por aí vai —ou não vai. Aqui vai meu segundo plano para SP.Talvez o leitor ache a solução anterior um tanto radical. voltamos pra reerguer — ORGANIZADAMENTE. por uns momentos. Lá vai. Espera-se um desses congestionamentos monstro. Deus já olhando o relógio para apitar o fim da duomilésima décima terceira volta da Terra em torno do Sol. amigo. a metrópole mais agradável que já conheci. fui a Chicago. No verão. planejando faixas de ônibus. dependendo da força de vontade de cada um. o brasileiro se esquece da vida e acha que o mundo é um lugar justo e bom. Minha proposta é simples: a gente vai pra serra da Cantareira. sair do Twitter. ler "Em Busca do Tempo Perdido". Quando o fogo acabar. o pessoal começa a pensar em suas resoluções de ano novo: largar o cigarro. . mas. há em toda a sua extensão uma espécie de aterro do Flamengo. Quando estiver aquele murundu. leva um piquenique. abandonamos os carros: desligamos os motores. do zero. ) A cidade antiga a gente demole. o que quisermos. A solução não só elimina uma das maiores chagas paulistanas (o trânsito) como gera empregos e dinheiro: aterrar inteiramente a nossa malha urbana e produzir novos veículos fará as duas pernas mancas da economia correrem como as de um Forrest Gump.A terceira solução não é bem uma solução. Feliz 2014 a todos. Simbora. em Mato Grosso. Quando a Nova São Paulo estiver pronta. em troca do nosso terreno. do Itaim Paulista ao Capão. Podemos chamar aqueles arquitetos suíços do Ninho de Pássaro.ciclovias. Quem disse que a gente precisa morar aqui? Vamos comprar um bom pedaço de terra. a gente se muda. o Paulo Mendes da Rocha ou qualquer um dos excelentes escritórios brasileiros. De Perus a Marsilac. uma lembrança do horror e um aviso para que a história não se repita. só se verá soja. macacada . como um espantalho. bondes. mas uma desistência. riquixás. . mas será o último. sei lá. e construir uma cidade nova. Nos vemos domingo que vem —na Marginal. do jeito que quisermos. (Vai rolar um pouco de trânsito na saída. aterra e dá pros mato-grossenses. Sugiro deixarmos de pé apenas o Borba Gato. não somos inimigos. Então. momentos antes. . Eu dei oi. A conversa começou protocolar. contudo. ele investia alguma energia pra que a coisa fluísse —energia que. esses prédios que afundam. ele dissertava sobre as maravilhas do concreto armado e. "Quinze anos? Mais?!?". lá por 96. vergalhões enferrujados e contos nunca terminados. "Poxa. deslizando como leões-marinhos pela esteira. curioso. procurávamos terrenos comuns para escorar nosso deslocamento: eu lhe narrava a ideia de um conto. pensando que seria tão mais simples se. na casa da avó delas. eu ateu e aspirante a escritor—. Aos poucos. a outra faz massagem Ayurvédica). como os de Santos. contudo. Não. dividimos a mesa em Pessachs. mas foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagagens. éramos apenas dois homens cansados. Dezoito anos e 11 horas de viagem depois. quanto tempo". algo como "gigantinho" ou "leve furacão". Eu ri. conforme a situação. Das viagens fomos pras primas (uma se casou com um austríaco. das primas pros jantares. às seis da manhã. Os dois góis —ele cristão e estudante de engenharia. assim. longe disso. o papo engrenou: mesmo cansado. num acordo de cavalheiros. me contou que "desentortava prédios". perguntei o que ele fazia. querendo ir logo pra casa. nos ignorássemos mutuamente. são mais comuns do que se imagina. Fui empurrando o carrinho e arrastando meu pequeno pânico. às seis da manhã. ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles quipás. "Tá vindo de onde?". Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de lado ou de costas. enquanto à nossa volta olhos sonados amaldiçoavam as malas alheias. apertamos as mãos.A fuga do cativeiro egípcio 05/01/2014 "Pequeno pânico" talvez soe incongruente. acenando. eu preferia gastar metendo o nariz no iPhone. Eu falei do meu último livro. não nos sentíamos perdidos entre contraparentes e rituais milenares. Rosh Hashanahs e Yom Kippurs. Agora.. ele disse que era sério.. Já não namorávamos as primas. Namoramos duas primas. era tarde: ele havia feito contato visual e estávamos irremediavelmente atados até que chegassem as malas. dos jantares pras profissões. porém. condenados a uma escavação arqueológica em busca de gefilte fishes. aí é só escorar com uns pilares. se na década de 90 havíamos concluído a fuga do Egito. no mercado ou no Azerbaijão era apertar as mãos e investir algum esforço para sermos agradáveis. como você sabe. "A água. se expande ao congelar" —eu não sabia— "o gelo empurra o prédio pra cima. enchem de água e congelam com nitrogênio. mais de uma vez. Paciência: uns nascem para desentortar edifícios.eu ouvi atento o relato sobre tal milagre da engenharia: cavam um buraco embaixo do prédio. não um sujeito que via o mundo sob a ótica do cálculo e do interesse. Ali estava um sujeito generoso. o mínimo que deveríamos fazer ao nos encontrarmos no aeroporto. outros para embrulhar o remorso numa folha de jornal. tranquilos." Quando nos despedimos. Me senti uma besta. Ora. o pequeno pânico havia dado lugar a uma pequena culpa e a uma sincera admiração. constroem uma espécie de piscina. . pouco a pouco. sem muita explicação. uma geringonça que permite que você seja encontrado em casa. por qualquer pessoa. Em "O Exterminador do Futuro". tudo faz sentido. como um cão à coleira. ladrava. as ex- namoradas a poucos cliques dos bêbados. Nos três casos. as sogras próximas das noras. olhando pra trás. para jogar boliche em Mongaguá ou fazer amor em Guadalupe. quase podemos ouvir o ruído da nossa liberdade sendo sugada. Eis o plano inicial do telefone: jogar uns contra os outros. Ninguém percebeu que o golpe das engrenagens já estava em marcha —e na surdina— há mais de cem anos. os chatos experimentaram um salto no poder de alcance inédito desde a invenção da roda. Em "Blade Runner". dominando a nave com sua melancólica agressividade.Por um fio 12/01/2014 Não foram poucos os cineastas que filmaram o levante das máquinas contra o Homem. livre para beber sua cerveja no bar. Ah.Uma Odisseia no Espaço". Felizmente. por replicantes perfeitos ou robôs soltando mísseis pelas ventas. Ora. androides superinteligentes saíam matando quem fosse preciso. a qualquer momento. resolviam nos eliminar do planeta. mas não mordia. só podia estar mal-intencionada. as novas gerações não conhecem o Éden perdido! "Onde está fulano?". o computador HAL se cansava de computar e partia pra um motim solitário. os robôs se davam conta de que já não precisavam mais da gente pra passar WD-40 nas juntas e. o embate se dava no futuro distante e o pega pra capar (ou pra desparafusar) era explícito. em busca de uma recarga que estendesse seus curtos dias sobre a Terra. pelos furinhos do bucal. mas por este aparelhinho ridículo chamado telefone? Agora. Bastava sair de casa e o cidadão tornava-se inatingível. . "Pra onde?". enquanto o inimigo estava preso à parede. "Não sei" -e lá ia você com as mãos no bolso. "Saiu". Em "2001 . deixando os funcionários sob o controle dos chefes. E como perceberia? Que mente anticlimática criaria filme tão triste em que os humanos seriam dominados não por gigantescos computadores. assoviando. parques e praias. podiam bombardear um dos nossos em qualquer canto do globo. até uns 20 anos atrás. Bipes que. como bombas-relógio. O verdugo não estava mais apenas em nossos lares: morava em nosso corpo. Mesmo com bombas e drones. pelas escolas e repartições.Incapaz de nos seguir por aí. Lá por 2017. servis como cachorrinhos a babar sobre as telas de cristal líquido. Então veio o golpe mortal. a máquina recrutou capangas: secretárias eletrônicas que esperavam o incauto cidadão voltar de suas errâncias para. no entanto. para onde quer que se olhasse -mas quem olhava? . assustador como Daryl Hannah piruetando em direção ao Caçador de Androides. não ouvir os recados. enviava cartas. passava clipes do Justin Bieber. de cabeça baixa. sermões do Edir Macedo e oferecia promoções de operadoras às 8h11 da manhã de domingo. ainda era possível escapar. Pelas ruas e ônibus. cobranças e más notícias. demitia funcionários. viver sem bipe. terminava casamentos. explodir afazeres. filmava. só se viam seres humanos curvados. o celular já era ubíquo. bilhetes. traiçoeiro como o dedo-espeto de mercúrio do Exterminador: o celular. Não só falava e ouvia como fotografava. contas. como drones. planilhas. os índios é que foram acusados de "rolezinho" nas terras de El Rey. também derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas" (Mateus. na verdade. Visigodos e Germânicos —nosso espaço é curto— e saltemos 1500 anos: Cabral chegando à Bahia com aquele bando de marmanjo. a história do mundo se confunda com a história do "rolezinho". A curiosidade é geral: "rolezinho" é do bem? "Rolezinho" é do mal? "Rolezinho" é baderna? "Rolezinho" é cultural? O "Rolezinho" de um termina onde começa o Rolexinho do outro? Ou versa- vice? Para respondermos a essas perguntas. dada a distância percorrida. os pataxós tentaram entrar com uma liminar. na sua obra mais famosa. afinal de contas. (É sabido que Eric Hobsbawn. Cauã Reymond e os bigodes ensanguentados de Sir Ney foram todos pisoteados pelos Mizunos dos funks da periferia. Se os centuriões dispusessem de cruzes de borracha e coroas de espinho de efeito moral. depois dos primeiros atos de vandalismo (paus-brasil eram derrubados como se fossem orelhões). é ou não é "rolezinho"? "Rolezaum". pra época). atrapalhando o lazer dos índios que só queriam passear com a família. . foi no século 20 que ele aflorou em todo seu esplendor. sob certa perspectiva. de modo que não apenas negou o pedido como o inverteu. 21:12-17). que não se trata de um fenômeno recente.) O rol dos grandes promotores de "rolezinhos" inclui de Mahatma Gandhi aos Beatles. Betel e outras quebradas). Ainda que. Muito pelo contrário. ficou em dúvida entre os títulos "Era dos Extremos" e "Era dos Rolês". "expulsou a todos que ali vendiam e compravam. Esqueçamos Átila. Dizem que. antes de mais nada. trazendo na cola uma ruidosa multidão da periferia (Jericó. os Godos. mas a Justiça da época era avançadíssima e já estava do lado dos poderosos.Rolezinho: breve rolê histórico 19/01/2014 Esta foi uma semana temática: o aumento dos juros. o fuzuê de Jesus contra os vendilhões? O nazareno chegou ao templo de Jerusalém montando um jumentinho (praticamente um Chevette. O que foi. é preciso compreender. Roma talvez durasse mais uns três ou quatro séculos. sentou no assento de ônibus reservado a brancos.de Rosa Parks (a moça afrodiferenciada que. mas nos estacionamentos. que em 1976 promoveu a "Invasão Corintiana" ao Rio de Janeiro. no Alabama) ao Roger. Como se sabe. em 1955. . sem pão. em sua forma atual. a galera foi toda zoar na Bastilha. Diante da reaparição do fenômeno. veio para ficar? Caso a resposta seja positiva: áreas VIP dariam conta de recolocar cada um em seu lugar ou será necessária a construção de novos shoppings dentro dos shoppings? Eu diria ao leitor mais aflito que não se preocupe. tem muita gente preocupada: o "rolezinho". do Ultraje a Rigor ("Nós vamos invadir sua praia"). É a ideia mais brilhante diante de um "rolezinho" desde que Maria Antonieta sugeriu aos que não tinham pão que comessem brioches. brioches ou opções de lazer na periferia de Paris. pois a prefeitura apareceu com uma ótima solução: que os encontros sejam feitos não mais dentro dos estabelecimentos. dos hippies à Gaviões da Fiel. se os recados apenas me contemplassem. há também os que não quis perder. 18:31). mas agora. O livro chegou. eu não consegui me desvencilhar nos últimos anos. num domingo.000 US dollar need your help send out Arabia". convites de festas. surrupiando três ou quatro minutos do trabalho. (Ao que parece.A tonga da mironga do Rod Stewart 26/01/2014 Abro o Outlook de manhã e vejo.000 assuntos dos quais. bem pequenininho.000 recados me contemplam". lixos mais insidiosos. eu diria.000 mensagens são 3. apago na hora. 3. mas quando vejo o numerinho ali embaixo. um "Hi Madam my name is Zalouk I have 1. dessas que os americanos colocam na frente de suas casas. nem me lembro que elas existem. Ainda fazem esses sorteios? Não sei. Fosse uma caixa de verdade. passagens aéreas. já teria há muito estourado a portinhola. as mensagens estão todas soterradas metros abaixo da data de hoje.000. Aquelas confirmações de pagamento de sites de venda. me encarando —2. não sei se por ter dormido mal ou por ter dormido . Há. contudo. Claro que. o cartão já foi pago. mas 3. Eis a quantidade de e-mails que se acumulam na minha "Caixa de entrada".000 pendências exigindo de mim uma atitude.) Hoje de manhã. por exemplo. a festa acabou. as respostas trocadas pelos amigos. no meio da tarde. Se há e-mails que esqueci de apagar.975!— é como se uma Quéops de celulose desabasse sobre a minha cabeça. um "Enlarge your penis". se eu recebo uma propaganda da "caneta espiã". como nos antigos sorteios da televisão. as mensagens na segunda-feira. naquele domingo. cheias de piadas internas que já não fazem sentido. o povo sumiu. como os séculos a Napoleão. porém. "Debaixo desta pirâmide. arrebentado as laterais e transformado a garagem numa montanha de envelopes. esse número assombroso: 2. José. a luz apagou. a viagem foi feita. Esse aqui do Paulinho (5/3/2009. embaixo e à esquerda. 3. chamando a mim e a alguns amigos para um almoço na casa dele. fatura de cartão de crédito. algo envolvendo "Tonga da Mironga" e "Rod Stewart" foi hilário.975. pelas mais variadas razões. Vou escavando através das camadas sedimentares e manuseando cada mensagem como se fosse uma ponta de flecha. no fim. como o óleo não trocado muito depois de passada a quilometragem. mas aos poucos o furor vai sendo aplacado por uma curiosidade arqueológica. juntando "Rod Stewart" e "Tonga da Mironga do Kabuletê"? . Que livro era esse? Onde me hospedei naquela viagem? Fui ou não fui àquela festa? Nessa toada. uma pedra lascada.017 as mensagens acumuladas e. além da frustração. a tecla delete faminta como um pac-man. ainda há o mistério a me pinicar: que piada tão engraçada era essa. Começo a faxina inclemente. vou criar uma pasta "Amigos". escurece e não apaguei quase nada: agora já são 3.bem. desenterrando ossadas de namoros e espanando caquinhos de amizades. Quando dou por mim. boletos e convites. como panelas se acumulando no fundo da pia. passo a manhã perdido entre anteontem e o neolítico. branca. me parece que dois mil novecentos e setenta e cinco e-mails na caixa de entrada é o tipo de bagunça que não se deve tolerar. reluzindo a Pato Purific. uma pasta "Trabalhos" e. Basta! Vou apagar recibos e e-tickets. terei uma caixa de entrada vazia. cem anos. É. Tudo espalhado por aí. tendo acabado de criar o firmamento e os continentes. seis e meia da tarde? O sujeito tá num táxi na avenida Atlântica. mas. mas a natureza tá cheia de desarranjos semelhantes. proporcionando uma queima de fogos global à nossa sofrida humanidade? A gravidade é outro assunto que merece uma calibrada: tem que ser mesmo . não adianta reclamar que o público é ignorante e prefere a caretice hollywoodiana de um arco-íris. infelizmente. às vezes chegam de lado. 4h30 AM. saca o celular. Fosse só a aurora boreal. baita desperdício de energia. chamava uma dessas consultorias especializadas em fazer a transição de empresas familiares para organizações. japoneses ergueriam as câmeras e mochileiros bateriam palmas. outras vezes de dia. por exemplo. satisfeito. nunca passou por uma revisão e ainda é administrada pelo fundador. posta "#vespertinatropical!!!" e segue pra casa. Imagina se a aurora boreal fosse nos trópicos. a zebra. dez ao mesmo tempo na noite de Réveillon. e dava um choque de gestão. o homem e a mulher. diante da qual casais em lua de mel deixariam cair os queixos. o umbu e a neblina. Se eu fosse Javé. lá pelas 17h54 do sexto dia. Não surpreende: ela foi criada há milhões de anos. é pra lá da Groenlândia. é raro e é muito cedo.Vespertina tropical 02/02/2014 Então Deus. Por que não otimizar essas órbitas? Fazer com que venham cinco. ninguém vê. os elétrons. Veja os cometas. a aurora boreal não pegou. de fato. nos visitam só a cada 70. ninguém sabe quando: aí. mais improvável que a girafa. um troço estupendo: mais bonito que o pôr do sol. digamos. como se sabe. mais grandioso que o relâmpago. a maior atração da Terra. beleza. o céu todo verde e amarelo e laranja e roxo. Mas não. Claro: é longe. como esses espetáculos incríveis encenados domingo de manhã no Sesc Belenzinho. pintou a aurora boreal. basta alocar melhor os recursos. faz um "selfie" [tava louco pra usar essa palavra]. Era pra ser o corolário da criação. olha pro lado. quis dar um último toque em Sua obra: num arroubo de lirismo. Nem precisa gastar muito. mais competitivas. contentes por terem nascido neste planeta abençoado e multicolor. Criar o Universo é o tipo da coisa que infla um pouco o ego do sujeito. tão grandioso. apenas para os ursos-polares. tão divino. Sem falar. em 50% para grávidas. envergada como um frei Damião? Se meu pacote de sugestões não puder convencê-Lo pelo bom senso. idosos e cadeirantes. mas seria bom se Ele se animasse a colocar o mundo nos eixos —literalmente: já repararam como a Terra gira toda torta. O mínimo que o Senhor poderia fazer era dar uma amainada de dezembro a março: imagina que alívio encarar esse calorão com 25% menos esforço. ano após ano. quem sabe ao menos uma parte cutuque a Sua vaidade? Ora. nós continuaríamos colados ao chão e seria muito mais agradável se locomover por aí. as focas e a Björk. é ou não é? .8 m/s2? Por quê? Como Deus chegou a esse número? Gostaria que Ele abrisse as planilhas para entendermos se cada m/s2 é realmente necessário. El Shaddai. durante a "Gravidade de Verão". a aurora boreal é um negócio tão lindo.9. óbvio. não é justo que siga sendo exibida. Com metade dessa atração. Não tenho dúvida de que o Todo Poderoso resistirá a essas e outras reformas. da Cannabis). A polarização não é novidade. "de esquerda". A direita levanta a bandeira da liberdade individual: quem o . para uma única direção. com pessoas de diversas áreas. Partem do princípio de que a "guerra às drogas" é mais letal do que as mesmas e defendem a descriminalização da maconha. é curioso como cada lado chega à sua opinião por caminhos diferentes. no Facebook e pelos blogs. o tráfico de armas e a violência que os acompanha. e a impressão que se tem. juntos. e no palco estavam dois amigos meus: um do mercado financeiro. Falo sério. Embora haja partidários da legalização nas duas pontas (sem duplo sentido) do espectro político. vejo surgir uma força capaz de colocar o leitor da "Veja" e o DCE da FFLCH na mesma roda. A cerimônia de lançamento da Rede foi no Instituto Itaú Cultural. Trata-se de um grupo apartidário. da UDR e fazer desta vergonha uma nação?". melhor dizendo. a distância entre as duas figuras dá uma ideia da amplitude do leque —ou. lendo o que se escreve no Twitter.Cachimbo da paz 09/02/201401h47 Muitos já apontaram como as interpretações sobre os "rolezinhos" explicitaram o nosso Fla-Flu ideológico: de um lado a direita. do outro a esquerda. Afinal: que outro assunto consegue pôr Fernando Henrique Cardoso e Marcelo D2 do mesmo lado? (Embora FHC não possa ser chamado "de direita" nem D2. Há décadas Caetano Veloso cantou "quem vai equacionar as pressões do PT. No ano passado. achando bárbaras as excursões e enxergando um choque de democracia. Refiro-me à maconha. do diâmetro do cone. como o tráfico. dedicado a "promover um debate amplo e qualificado por uma política sobre drogas que funcione". aqui. outro da Mídia Ninja -concordando. A esquerda tende a abordar mais as implicações sociais da proibição. olhando. é que estamos longe de encontrar uma resposta. Pois é com enorme felicidade que eu vejo brotar uma semente no meio da terra de ninguém. fui ao lançamento da Rede Pense Livre -sobre a qual já escrevi. temendo as invasões bárbaras e exigindo a Tropa de Choque. mas também aí a maconha faz bem à política brasileira. o PT vai se dizer o pai (ou a mãe) da ideia. enquanto os tucanos vão espernear alegando que. se não fosse por FHC. iniciando um diálogo antes inimaginável. pois. pudibundos do PC do B e da TFP encontrarão um terreno comum. se ela for legalizada.Estado pensa que é para dizer o que eu posso ou não posso fazer com o meu corpo? Há também entre progressistas e conservadores aqueles que não politizam tanto a coisa e só querem poder ouvir "Dark Side of the Moon" comendo goiabada com Leite Moça sem correr o risco de ter o quarto invadido pelo Capitão Nascimento. Caso a lei mude num possível segundo mandato da Dilma. se irmanando no combate à "erva do diabo". cada um vai querer puxar a brasa para a sua sardinha. O único problema da ausência de barreiras ideológicas em relação à Cannabis é que. estabilizando as opiniões. nada disso haveria acontecido —e quem poderá afirmar que não terão razão? . É claro que o tema não é consenso nem à destra nem à sinistra. Pois tenho a infelicidade de te informar que aquele casarão e o pátio em que você me deu o livro do Rubem Braga —o maior presente que já ganhei— agora jazem sob os 19 andares de um equívoco neoclássico chamado Beverly Hills Plaza. quando nos sentávamos no chão para jogar truco. por uma dessas coincidências que não guardam nenhum sentido oculto. Fiquei parado ali na calçada. olhando pra cima. em vez de as pessoas pensarem em como impedir que coisas horrendas aconteçam de novo. e este verão abafado parece a ambientação perfeita para uma desgraça num conto vagabundo. o que exigem não é justiça nem mesmo vingança. a caminho de uma reunião. mesmo 15 séculos após a invasão dos Vândalos. segue em marcha o declínio do Império Romano. Copacabana" e. De amor eu não sofro. passei em frente à nossa escola. Mais dia. Nosso país está estranho. mas o direito ao seu quinhãozinho de barbárie. As reservas de água da cidade estão abaixo dos 20%. vítimas do destempero paulistano em sua luta para anular os trópicos. como crianças que reclamam: "Por que ele pode brincar na gangorra e eu não?". mas adicionam à vida uma pitada de mistério. Usei solar como sinônimo de feliz e me arrependo: ultimamente. desses em que chove quando o protagonista sofre de amor. o governo do Astro Rei tem sido bem despótico. peguei para ler "Ai de ti.Estiagem 16/02/2014 Ontem. No fundo. mas trago o peito apertado. marreco!". Coisas horrendas andam acontecendo e. menos . Lembrei dos recreios ensolarados do colegial. e a libido só encontrava vazão no grito desastrado: "Truco. com quatro vagas e oito colunas jônicas por andar —prova de que. querem é infligir coisas horrendas a quem as infligiu. talvez minha adolescência houvesse sido ensolarada também. minha amiga. "Por que ele pode brincar de Gomorra e eu não?". Se num daqueles recreios eu tivesse tentado te beijar. horas depois. mas eu era tímido. pensando que nada poderia estar mais distante das pitangueiras e sabiás do Rubem Braga do que aquelas varandas raquíticas com seus pinheirinhos em formação militar —pobres árvores de clima temperado. noutro lugar). Beatriz. Vocês fazem mais falta que a água neste escabroso verão. Tenho-o sempre à mão. Como pode se frustrar quem não deseja? O cínico está em paz —como os mortos. desfolhando-se ao vento. mas as páginas é que tentam. Faz sentido: a esperança não tem lugar nessa época que preza tanto a eficiência. Acho que você ia se sentir bem deslocada por aqui. ora na cabeceira da cama. em toda parte (para renascer. ingenuamente. ora na mesa da varanda. Rubem Braga. A esperança é deficitária. talvez não seja o vento que desfolhe o livro. abanar o mundo. Ai de nós. Pensando bem. recorri ao Rubem Braga. Acho que por isso tudo. Já o cinismo é investimento seguro. toda hora. vou abrir o jornal e ver alguém defendendo o linchamento como uma forma de democracia direta. para emergências (quando minhas reservas de esperança descem abaixo dos 20%): vive ora na sala. Na atual estiagem. que é onde ele se sente mais à vontade. depois. ontem.dia. Ai de nós. como os cactos. feito o amor de Paulo Mendes Campos. Não é verdade que seja a última a morrer: morre todo dia. . só o cinismo cresce. eu levanta do minha cadeirrra e olha prrro porrrta da restaurrrante. É só uma questão de perspectiva. Se a pessoa diz que está chegando. assim como ao sair do útero se começa a caminhar para a cova. ao pôr o pé pra fora de casa dá-se início ao processo de chegada. Fritz ficou pensativo. "Mas e quando o pessoa diz 'tô saindo!'?" Expliquei que as declarações do brasileiro. eu era a "pátria de ponteiros"— o melhor seria falar a verdade: "Fritz. que em nome de nossa dignidade —ali. aparentemente. viajava o mundo todo. mas eu havia sido mordido pela mosca da sinceridade e resolvi ir até o fim: revelei que. ele teria de aprender a lidar com "chego em 15!" e "cinco minutinhos!". porém. em quanto tempo brrrrasileirrro chega?". é porque ainda precisa tomar banho. Tentei atenuar o assombro do alemão: veja. afinal. era nunca saber quando as pessoas chegariam aos encontros. Pensei em mentir. na real.A pátria de ponteiros 23/02/201403h05 Numa demonstração de abertura e inequívoca coragem. tirar a roupa da máquina e botar comida pro cachorro. A única coisa que lhe incomodava. do que nossa dificuldade em admiti-lo: "O pessoa manda mensagem. é assim: quando o brasileiro diz 'tô chegando!' é porque. Eu comentei que. ele não estava tendo dificuldades de adaptação. e se diz que tá saindo. no que tange ao atraso. estão sempre uma etapa à frente da realidade —são uma manifestação do seu desejo. Era a chance de mudar de assunto. naquela mesa. é porque tá saindo. O alemão disse que não. Uma morena entrou no bar e percebi certa reverberação nos hormônios teutões. Por conta do seu trabalho —instala e conserta máquinas de tomografia computadorizada—. mas outros aparecem rapidinho. mas pessoa chega só quarrrenta minutos depois". no Brasil. em dizer que uns atrasam. além do "tô chegando!" e do "tô saindo!". Então me fez a pergunta que só poderia vir de um compatriota de Immanuel Kant: "Quando a brrrasileirrro diz 'tô chegando!'. não é exatamente mentira. Achei. diz 'tô chegando!'. O problema era menos o atraso. confessou. ele tá saindo". Fritz pediu uma feijoada. "Chego em 15!" é sinônimo de "tô chegando!": quer dizer que o patrício está . da Sulamérica trânsito e do Waze. imaginando. menos raros do que se imagina. vai que. na espuma branca. Às vezes. a gente pediu uma feijoada. não é propriamente mentira. em tese. até. contemplativo. tá chegando!" ..saindo. de mostrar ressonâncias. Pode significar tanto que o brasileiro está a cem metros do destino quanto a 27 quilômetros. cinco minutinhos demoram muito mais do que quinze. em que a pessoa a cinco minutinhos jamais aparece.. Fritz ficou olhando o chope. amigo. Se pegássemos todos os faróis abertos e todos os carros saíssem da nossa frente. "Chefe. Chamei o garçom. talvez. Da Mooca pra USP? "Chego em 15!" De Santo Amaro pra Cantareira? "Quinze!" Mais uma vez.. mais magnéticas do nosso país. era o momento de mudar de assunto. já faz um tempinho.." "Tá chegando. agora sim. a tomografia multicolor desses cérebros tropicais. digamos. mais do que uma hora: há casos. Senti que. Quinze minutos é o tempo mágico que o brasileiro acredita gastar em qualquer percurso —a despeito da experiência.? Já o "cinco minutinhos!" é um pouco mais vago. "Aparando!". mas Augusto tirou também a camisa e mostrou o peito.No seio da família 02/03/2014 Eu não queria jogar mais lenha na fogueira: muitas páginas. por sua vez. grande feminista. Do outro lado do quintal. não entendi. repetia tio . Confesso que fiquei confuso —menos com a questão estética do que com meu atraso em perceber a mudança dos tempos. nenhuma agressividade pairava sobre o almoço. Gugu?! Raspando o peito?!". mas o Fla-Flu já estava instaurado. e todas as nuances. na volta do exílio. Na hora. como nenhuma nuvem manchava o azul do céu —até que eu tirei a camisa. perdidas: à direita (Flu). Comparou-o aos que riram da sunga do Gabeira. os defensores do peito orgânico. mas é impossível me calar quando a cisão e a intolerância chegam ao seio da minha família —e "seio". pensando que "dar uma aparada" fosse gíria para cortar uns pedaços de carne. tentando apontar a nuance entre "raspar" e "aparar". meus tios e tias riam das histórias de infância. não está aqui no sentido figurado. em Lins. ó só que beleza". corrigiu Augusto. "Podia dar uma aparada. com aquela posição obtusa. homem não usava nem xampu e que ele já se achava avançado demais por passar "creme rinse". as cervejas tiniam. hein?". meu tio Gilberto manifestou sua tonitruante indignação: "Tá maluco. Por conta do aniversário do meu pai. pró-aparo. disse que não havia nada de "anos 60" em homem raspando o peito —"Aparando!". sofrendo em silêncio por conta de meu desleixo piloso? Seriam os pelos a nova pochete? Meu pai. saliva e terabytes têm sido gastos com o clima de Fla-Flu que assola o país. como se verá. negar todas as conquistas dos anos 60. não se perdia em tais indagações. os pró-aparo. Olhei pra churrasqueira. Fechou logo com o Gilberto. fiz em casa um churrasco: a grelha crepitava. sugeriu meu tio Augusto. à esquerda (Fla). cultivando no peito um tufo de atraso? Faria há anos minha mulher passar vergonha na praia. Então quer dizer que tem um monte de homem por aí aparando os pelos e eu sem saber de nada? Seria eu um ser anacrônico. lembrando que na juventude dos dois. Minha irmã. na frente das amigas. no último fim de semana. Minha tia Beth. orgulhoso: "Máquina dois. o acusou de. sintoma da nossa época pudica e desnaturada: em breve. a discussão seguiu pela internet. disse que permaneceria neutro: rasparia só metade do peito. ninguém mais faria sexo. Eu. . igual ao das mulheres sem pelos púbicos. é aparar.Augusto. em vão—. furibundo: "Pelo amor de Deus. como se dos pelos dependesse o futuro da civilização. "Preconceituosos são vocês!". era um modismo careta. agora. os prós e os contras a poda desfiando seus argumentos. sim!". pois o Augusto me escreveu na sequência. "É verão. Ou quase. ao contrário. de direita?! Índio não tem pelo! Negro também não!". O debate. "O Edgar pinta a barba. que ainda não cheguei a uma conclusão sobre essa questão cabeluda. A piada acalmou os ânimos de todos. "Mentira! Eu nunca fiz o pé!". "Só a Claudia Ohana nos salva!" Na semana seguinte. gente! É fresquinho!". já tinha desmoronado como uma Torre de Babel e se transformado em meia dúzia de discussões paralelas —ou transversais? "Como. quantas vezes eu vou ter que dizer? Não é raspar. cazzo!". "Qual o problema da mulher botar silicone?". 35. estarão no vídeo de casamento dos dois. numa tarde modorrenta de 2003. na adolescência. Imagina que saco. as alfaces da travessa piscarão em suas lentes. olhando pro painel de senhas do cartório Vampré. do exame do pezinho à pá de cal. claro. você numa churrascaria e um bip alertando que a quantidade necessária de proteínas foi ultrapassada e é recomendável comer mais fibras. advogado tributarista. a três assentos de distância. me vejo bisolhando o sujeito na mesa ao lado e espremendo o cérebro feito um limão: de onde eu conheço esse cara? Terá sido meu companheiro no chalé IV do acantonamento Rancho Ranieri. no barco viking do Playcenter. os namorados poderão ver as situações em que estiveram mais próximos dando um rápido rewind nos GPSs pessoais. Como seremos chipados ao nascer. mandado diretamente para as lentes dos convidados. como na viseira do Robocop: "Pedro Arruda. E já que as lentes filmarão o tempo inteiro. vulgo "Goiabão". roubou seus bonecos do Comandos em Ação na quarta série". na digestão poderá ser uma mão na roda. Se na ingestão a ferramenta será uma mala sem alça. essa e outras questões serão resolvidas num piscar de olhos. Literalmente: bastará encarar a pessoa através das nossas lentes de contato digitais e uma legenda aparecerá. Sabendo as quantidades de sólidos e líquidos deglutidos e . Imagine um novo casal tendo aquela típica conversa sob os lençóis: "Que coisa doida a gente nunca ter se esbarrado por aí antes.) Nem só pra fora. se cruzando numa passeata dos "caras-pintadas". em Pinheiros. em 1987? O namorado da prima de uma ex-namorada.Googlall 09/03/2014 Vira e mexe.. semana passada? Muito em breve.. infelizmente. na faculdade? Um passageiro com quem troquei três frases na ponte aérea. dará até para assistirem às cenas de seus quase encontros: na infância. olhará o Big Brother. Será que a gente já passou pertinho um do outro em algum lugar?". como pop-ups na tela do computador. (Neste momento. (Essas imagens. Tudo estará na rede e a rede estará em nós.) Rodízio só será um programa viável se você estiver devidamente desplugado. unir pessoas com fetiche por roupas de couro verdes lambuzadas por iogurte de pêssego —light). pegar uma caneta Bic e. o que mais me atiça a curiosidade não são as maravilhas possíveis (encontrar doadores compatíveis. Até. por exemplo. olhando uns tijolos e pedrinhas por aí. Talvez. mas as pequenas inutilidades. ao serem escaneados. uma medula óssea ou um fetiche semelhantes. Nem todo domingo: nas próximas quatro semanas. quem sabe. descobrir as mãos pelas quais já passou. P. Enquanto esse dia não chega. Confesso que. já não se precise mais de cronistas: cada pedrinha no chão. contarão histórias muito mais ricas do que as que poderemos inventar.cada detalhe do seu metabolismo. contudo.S. quando esse dia chegar. através das impressões digitais. um aplicativo poderá te dar hora e minuto exatos em que você terá que ir ao banheiro —uma espécie de Waze corporal. cada tijolo na parede. . ver as fotos e perfis desses desconhecidos cujo único vínculo é uma esferográfica —e. Como. quando penso neste futuro próximo. todo domingo. com informações precisas sobre o tráfego interno. estarei de férias. continuamos aqui. florestas. os cobriria com saraivadas de argamassa. em praça pública. Os castelos teriam janelas de todos os formatos e tamanhos e delas penderiam as mais incríveis persianas: de aço reluzente. trazidas do oriente no lombo de camelos. azulejariam até. Depois daquele delírio loução. temi pelo que viria a seguir: um Esquadrão das esquadrias? Uma Babilônia dos corrimões? Um Tutancâmon das . refletindo a luz do sol como um globo de espelhos pendurado na ponta da Via Láctea. nenhuma J. um universo paralelo que nenhum Tolkien. K. dadas por reis Zulus. a coisa seria diferente. os infelizes implorariam por clemência. eu subia a Teodoro a caminho da escola e do fundo do ônibus via. praias. Passei muitos anos acreditando que a tal monarquia veneziana fosse o ápice da fantasia. o letreiro triunfal: "Reino das persianas". como armaduras. mas as lágrimas só fariam excitar a turba que. conquistando. (Aos prantos.Meu reino por uma pamonha 13/04/2014 Todo dia. de seda pura. peste negra ou uma machadinha encravada na testa —. durante terríveis rituais de suplício. Rowling ou "Game of Thrones" conseguiria superar. Vi exércitos marchando mundo afora. Janelas. espremido entre um boteco e uma loja de colchões. traidores e inimigos.) Alta madrugada. em seu leito de ladrilhos dourados. o reino da Teodoro seria banhado por delicadas réstias de luz. Enquanto a Europa mergulhava na Idade das Trevas. Azulejariam estradas. dormitando no Lapa C. até o dia em que. mas no "Reino das persianas". se não me engano. indiscriminadamente. elefantes e escravos. dei de cara com o "Império dos azulejos" —um frio de porcelanato percorreu minha espinha. de marfim e esmeraldas. masseando e azulejando. imaginava eu. às 6:45 da manhã. não foram a maior contribuição arquitetônica da idade média —o sujeito que numa tarde ensolarada do medievo quisesse ouvir o gorjear dos pintassilgos e se debruçasse sobre um batente corria o risco de acabar com lepra. lagos e mares. o imperador sonharia com o futuro: a Terra enfim transformada numa imensa área de serviço. perdido pelo Ipiranga. em êxtase. dormindo à sombra num zoológico do interior. Passei umas semanas aflito. Não se recolhem. fiquei contente. porém. um espermatozoide ou um melão.dobradiças? Preparado que estava para o excesso. E ponto. como um mártir. . Aquelas broas. a imagem daqueles pães cansados foi-me trazendo certo desconforto —lembrei de um tigre magro e sujo que vi um dia. Num primeiro momento. Nem "Confederação do milho". Um pão em seu "recanto" é um pão murcho e triste. ou melhor. Aos poucos. não queriam empanar súditos nem soterrar colônias com sua farinha: precisavam só de um canto. sentido SP—: "Rancho da pamonha". Rancho. Pamonha. nem "Asilo das espigas". baguetes e bisnagas não sofriam de megalomania. um pão que perdeu o seu propósito de morrer belo e jovem em prol da humanidade. Pães não repousam. Teríamos que optar entre a sanha conquistadora e o pão amanhecido? Seria a dicotomia entre o sangue e o bolor um retrato da desmedida de nossos tempos? Fui salvo da melancolia no km 27 da Raposo Tavares —lado direito. quase passei batido pela padaria: "Recanto dos pães". de um "recanto" para descansar as atribuladas leveduras. Por um tempo a calçada fica vazia. pudim?" "É bolo de mandioca" "Tem glúten?" "Vou ficar te devendo" "Não. não é porque. Ó lá. tipo. outro no da calça. Logo depois. mas. em silêncio. de boa. entediadas.. Devem ter pouco mais de 20 anos. conspirando por trás de suas palhas italianas: "Nada.. tenho que ir". se ele falou que. A gostosona olha pro Corneto. tio: bolo de mandioca tem glúten?" Antes que venha a . "Que se dane a família! Primeiro entuba a velha. tipo. anunciando que não são meros pedestres. Duas pombas atravessam a rua e bebem a água preta de uma poça. O pegador olha pra frente e roça de leve na braguilha. cara. conversam e teclam ao celular. "Que que é isso. o Cléber tá pegando é a Gisela. As garotas de uniforme escolar param e esperam. pensa melhor. No sentido oposto vêm três jovens do mercado financeiro. Ela oferece o Corneto." "Se enxerga. tipo. Arthur!". tipo.. Os jovens do mercado financeiro passam sem pressa. se abrindo toda?!" "Ah. um ruivo. pomada nos cabelos. As moças risonhas olham pros jovens do mercado financeiro. outro virou pras costas e cobriu com o casaco—. passam um gordinho careca. dobrando a esquina.Horário de almoço 20/04/2014 Os crachás eles guardaram —um meteu no bolso da camisa. solta. sapatos refletindo o sol do meio-dia. Duas garotas de uniforme escolar vêm logo depois dos estudantes de medicina. tipo. Os jovens do mercado financeiro olham pra gostosona. depois vê o que faz. Na frente vêm a gostosona e o pegador. se é eu. Os estudantes de medicina se aproximam. mas parecem a léguas da adolescência. ele vai que eu. ele dá uma mordiscada e devolve. Ternos bem cortados. são funcionários de uma empresa. ele ia. O gordinho careca e o magrelo dentuço olham pro chão. ao mesmo tempo: "Tipo. mas as fitas vermelhas estão todas à mostra." As pombas esperam até que eles cheguem bem perto e saem voando. em seus jalecos: um oriental. do RH!" "Mas que a Vanessa tá querendo. Os de crachá vermelho saem do caminho. uma loira. um magrelo dentuço e duas moças risonhas. Uma matraca anuncia o carrinho de doces.. Uma delas bica uma bituca. tio. Fumam. solta. tomando sundays do McDonald's. Puxa a calça. sai caminhando na direção oposta: "É sério. ao mesmo tempo. As pombas voltam à poça. chupa uma carninha entre os dentes. seu Túlio. As três gargalham e passam. Jaqueline! Eu caso!". pensa melhor. com saias curtas e camisas justas. uma garota puxa a outra e elas saem andando. dá uns tapinhas na barriga. Quando as três estão quase diante dele: "E aí. mete na boca.resposta. A outra bica a bituca. Um gordão sai do boteco. conversando e teclando no celular. fumando. vem a vinheta do Globo Esporte. cospe o palito. Tira um palito do bolso. de novo. como se parabenizasse um cachorro que acabou de trazer a bolinha. pensou na minha proposta?" "Para com isso. no meio do quarteirão. . De algum lugar. mete na boca. Puxa a calça. Três vendedoras vêm se equilibrando em seus saltos. eu já disse que eu sou casada" "E eu já disse que eu não sou ciumento!". A matraca do doceiro não parece assustá-las. O gordão tira outro palito do bolso. Jaqueline. O gordão as vê. em 1927? Não? Então. (Talvez. com pena dos nossos "mortos de sobrecasaca". Lembro então do Pixinguinha. metade de pé.Charutos e chupetas 27/04/201401h00 Numa moldura que já foi dourada. dos vermelhos. azuis e amarelos do Miró —dos amarelos. que mais antagonizamos com nossos antepassados p&b. as poucas à mostra pousam comportadas no colo de distintas senhoras e senhoritas. principalmente— e escapo da armadilha do anacronismo. joias. tão sério que é possível imaginá- lo levando à boca. mas todos parecem velhos: até meu avô. as mãos não são cães adestrados. outros cruzam os braços e as enfiam nos sovacos. depois do clique. Na foto de 27 elas estão quase todas escondidas: uns as metem nos bolsos. Meu bisavô tem 21 anos.) Sempre que visito meu pai. é nas mãos. do Louis Armstrong. metade sentada em cadeiras. não uma chupeta. Não é nos lábios. os homens fossem condenados ao tabelionato ou à tuberculose.) Semana passada. trejeitos de rappers . Vs da vitória. meu avô é um bebê de colo. as mulheres à fofoca ou à histeria e a gargalhada só tivesse vindo ao mundo com os "babyboomers". de 1927. nos juntamos no quintal e tiramos uma foto. 19. minha bisavó. olha pra câmera com aquela austeridade das criancinhas de antigamente. o bebê. fica a foto mais antiga da família. bom mesmo fosse em 1927. No fim da tarde. Na foto da semana passada. meu tio Augusto fez 60 anos e deu um almoço pra família. recebida por email: ao todo somos 46 pessoas e não há uma única que não esteja sorrindo. uns as colocam às costas. Sei que é tolice achar que todos eram infelizes em 1927. no fundo da sala do meu pai. do Oswald de Andrade. como cães muito bem adestrados aos pés de seus amos. São 35 pessoas. passei um bom tempo diante da imagem. (Já se usava chupetas. porém. como se no passado as pessoas existissem em preto e branco. Ontem. num quintal em Uberaba (MG). mas um charuto. olha aí. são pássaros se debatendo numa gaiola: hang looses. paro diante da foto e acabo meio triste. se cobrem de pudor. com os indicadores e polegares convertidos em pistolas. finge atirar no fotógrafo. responde: "Quem disse que você veio ao mundo para ser feliz?". ouvindo Guido/Mastroianni declarar a um cardeal: "Eminência. caubóis e candidatos recém- eleitos: "Eminência. mas decidi ir em frente: se for abandonar todo assunto que o Marcelo Coelho abordou com propriedade. como se mandássemos à lente do iPhone recado inverso ao que pretendíamos com nossos sorrisos e gestos de surfistas. Na gravidade da foto de 1927. Pensei em desistir desta crônica. * PS: Na quarta o Marcelo Coelho escreveu sobre tema bem parecido. Ou um Zé Pequeno? Nem faroeste. que servem para agarrá-los. meio indignado. nem Cidade de Deus: a pose me remeteu foi a Fellini e quando vi estava naquela sauna de "8 e 1/2". em vez de charutos. Já na foto da semana passada.-um tio de 54 anos. chupetas. O pontífice. terei que começar a estudar química orgânica. com muito mais propriedade. vejo o desespero de Guido/Mastroianni. rappers. vejo a indignação do cardeal. A felicidade é frívola: os lábios recusam os prazeres terrenos e as mãos. eu não sou feliz". como um caubói. eu não sou feliz" —tão desprotegidos que é até possível nos imaginar depois do clique e do almoço levando à boca. . escreveu uma vez sobre a insidiosa contribuição dos copos de requeijão para o fim de um casamento. Imagino que jogar controles remotos no lixo fira gravemente alguma Convenção de Genebra ecológica —não era a intenção avolumar aterros sanitários nem poluir lençóis freáticos com o chorume das minhas teclas SAP–. também atento à grandeza que o miúdo esconde. seguiam enfronhados na mata. O Diabo mora nos detalhes e a pá emperrada de uma batedeira pode precipitar a decadência de um império. mas a visão daqueles defuntos eletrônicos me trouxe um sentimento de urgência: eram eles ou eu. até videocassetes) a que serviram foram partindo e deixando-os para trás: órfãos. mesmo que remotamente. aparelhos de som. Ao longo dos anos. empurrando lá pro fundo as taças que. décadas após o fim da guerra. Pois o inimigo era eu: terminada a captura. assistiam da primeira fila aos beijos e abraços —é a vulgaridade galgando o terreno da paixão. O cronista Humberto Werneck. manganês— e em sua casa uma batedeira manca não sobrevivia dez minutos. ele construiu um império —minas de estanho. temendo o inimigo. Meu finado tio-avô costumava dizer que "Desmantelo só quer começo". coisa alguma. Aos poucos. eis o surpreendente saldo da minha faxina: 11 controles remotos que há muito já não controlavam. DVDs e videocassetes (juro. sem ocupação ou residência fixa. as TVs. Meu tio-avô sabia do que estava falando.Desmantelo só quer começo 04/05/201402h15 Onze controles remotos. . esses intrusos vão cavando espaço no armário da cozinha. erravam pelos planaltos das cômodas e acampavam nas cordilheiras dos sofás como paraquedistas caídos no deserto. escondiam-se em gavetas e estantes como aqueles soldados japoneses que. meti o desconjuntado exército de Brancaleone numa sacolinha plástica e o sepultei no fundo da lixeira. vagavam pela casa ao sabor do acaso. no início do namoro. tomar as rédeas da vida? Claro que é —digo a mim mesmo. o controle da televisão. Minha gaveta de meias é um sítio arqueológico: poderia escrever uma autobiografia do fim da adolescência até hoje. cada pé representando uma fase da vida. peito estufado e meu ânimo de gladiador existencial dura quatro segundos: só até ver minha mulher com as mãos enfiadas entre as almofadas do sofá. Este é o início de uma nova fase. A partir de agora serei apolíneo. Tenho medo: numa casa em que 11 finados controles remotos permanecem insepultos por anos a fio. perguntando se por acaso eu não vi. frutos. enquanto vejo o caminhão de lixo deglutir os expurgos da minha faxina. me organizar. japoneses e alemães virão fazer comigo estágios sobre organização. lançou esporos. lamentando: por que eu sempre perco os araminhos? Por que eu sou assim? Não será possível mudar. . Perder o araminho do pão é uma das duas atividades a que me dedico com mais afinco —a segunda é fechar o saco com aquele nó troncho. Entro em casa de queixo erguido.Até que um belo dia você acorda e descobre que o vinho do amor virou água da bica num copo da Itambé —"Desmantelo só quer começo". Minha cozinha é cheia de copos de requeijão. o desmantelo já começou faz tempo. já criou raízes. em algum lugar. Brasil!" e o "Não vai ter Copa!". não como retrato do presente. o ethos do nosso futebol. como ideal. com originalidade e graça. mas de nós que brota o sentido —e o sentido que a seleção tinha entre a gente. Compreende-se: os serviços . quando será dado o apito inicial para Brasil e Croácia. aliás. tentando fazer uma esfera de couro e ar passar por cima de uma linha de cal —sem usar as mãos. não faz nenhum sentido: 11 homens de cá contra 11 homens de lá. nem se escolhia: apenas se torcia. Acreditar que somos 200 milhões de abençoados. É toda a carga irracional colocada no espetáculo que lhe dá sua razão de ser: ali projetamos tragédias individuais e coletivas. originais e graciosos. A escolha já foi mais simples.O álbum da Copa 11/05/2014 Comprei o álbum da Copa e me pergunto se isso representa uma tomada de posição. num país igualitário e espontâneo que na hora agá resolve tudo com um toquinho de calcanhar é parte do delírio brasileiro. plantamos e colhemos significados. contudo —e descontando os cartolas e o patriotismo comercial-televisivo—. Antes de 70. em que ponto se encontra entre o "Pra frente. eu sei que transplantar essa visão do gramado pra nação colaborou e colabora com o mascaramento e a preservação das nossas mazelas. desde que a bola voou para fora dos clubes e passou a rolar pelas várzeas. Não é do jogo. ali estava um país de terceiro mundo vencendo. Se for encarado racionalmente. cada um de nós terá que resolver. contudo. Ali estavam 11 garotos nascidos pobres. as nações mais poderosas do globo. Há um clima pessimista no ar e um desejo. pretos. mas como possibilidade. tá. até as 17h do dia 12 de junho. de limar todos os discursos a favor do Brasil. Afinal. Então vieram os generais e parte da esquerda passou a torcer contra a seleção. O esporte. internamente. é o lugar do delírio. me parecia belo e importante. pois via na vitória verde e amarela um triunfo verde oliva. sempre foi popular e utópico. Tirando esse breve período. brancos e pardos. tanto à direita quanto à esquerda. que haviam subido na vida unicamente por conta do talento. assim como a arte. Tá. Mas será que a saída é desistir e admitir que foi tudo uma ilusão? Machado de Assis. Falta um mês e um dia para soar o apito e. para nos tornarmos adultos. o concretismo. também é. meio envergonhado. Villa-Lobos. João Gilberto. Niemeyer. porém. basta abrir o jornal ou a janela para darmos de cara com horrores de todo o tipo. roncos de um motor de arranque que não fez nem jamais fará o carro dar a partida. mas a bossa nova. como se nega o pai. há corrupção nos governos. Gilberto Freyre.públicos são precários. fosse prudente ficar atento para não jogar a criança com a água do banho: o Brasil é foda. Brasil!" e o "Não vai ter Copa!". Talvez. negar a pátria. promessas falsas. como cantou Caetano Veloso em seu último disco. meio esperançoso. . enquanto não descubro em que ponto me encontro entre o "Pra frente. Talvez seja bom colocar nossos mitos à prova. de que lado os generais. Oswald de Andrade. vou colando essas figurinhas. nada presta. sem saber exatamente de que lado está o povo. em breve. como se fosse perguntar as horas ou o itinerário de um ônibus. Sei que. o homem me olhando. mas sempre no caixão. aflito. com mais dois caras do ponto —ainda não sabíamos que estava morto—. mas agora a trago tatuada no verso das minhas pálpebras: é a primeira coisa em que penso. ao acordar. sim. A enfermeira ligou para um número da prefeitura e. três segundos depois. ao menos nos prepara para o encontro. a perplexidade aos poucos largando seu rosto e se agarrando ao meu. alguns. um pouco depois. mas logo saiu uma mulher da lanchonete. Ali no ponto de ônibus. curioso. mas não funcionou.Sozinho 18/05/2014 Ele virou pra mim com a testa franzida e a boca entreaberta. não estava mais. Morreu sentado. mas logo se voltou pra frente. num desses atos de generosidade de que só as mulheres são capazes. fez um não com a cabeça. achando estranhíssimo que ninguém ali soubesse o que tinha acabado de acontecer. tentamos uma massagem cardíaca. disse que ficaria lá até o sistema funerário chegar. Eu nunca tinha visto alguém morrer. olhou aflito a loja de instrumentos musicais do outro lado da rua. Tentei levantá-lo. me encarando perplexo —e morrendo. Repasso os três atos. naquele clima dos velórios que. não teve preparo: três segundos antes o sujeito estava vivo. como feliz e infelizmente tudo amarela. botou dois dedos no pescoço do homem e. Meu ônibus chegou e entrei assustado. a qualquer momento. de olhos abertos. a 40 centímetros de mim. que ninguém ali desconfiasse que do lado de lá da lataria havia um corpo que instantes atrás estava vivo e que o mesmo poderia —e vai— acontecer a qualquer um de nós. caiu sentado na calçada —e morreu. porém. Sob suas instruções. esperando o Parque Ipê ou o Brasilândia. se não anula o absurdo da morte. com o tempo. entre flores e parentes. essa cena estará guardada em alguma gaveta da memória e. é a última coisa em que penso antes de dormir. olhando a vitrine da loja. disse que era enfermeira. A percepção de que algo ia errado e a . Mortos. vez após outra. então me encarou perplexo. vai amarelar. que a rua continuava existindo. como se quisesse confirmar que o mundo ainda estava ali. e.busca de cumplicidade. . Por fim. às 15h37. veio a perplexidade. talvez. Vejo a mulher ali. faltando a não sei quais compromissos. entre uma lanchonete e uma loja de instrumentos musicais. a imagino ligando para uma vizinha. os carros passando. a mesquinhez da morte é atenuada por esse ato de humanidade. pedindo pra olhar os seus filhos quando chegarem da escola. que a loja de instrumentos musicais seguia no mesmo lugar. quando entendeu que o mundo permanecia intacto. Então é assim? Num ponto de ônibus? Numa terça-feira. não. A compreensão de que a cumplicidade não serviria para nada e o olhar para a frente. Havia menos revolta do que susto em seu olhar. sem trombetas nem iluminações? Quando fico muito aflito —e sabendo que não conseguiria tirar a cena da cabeça—. dando um desconto de 30% no violão Di Giorgio da vitrine. tão belo quanto inútil: a recusa em deixar o morto sozinho. tento ao menos mudar o enfoque da memória. esperando por horas. mas ele. Lembro da enfermeira que se prontificou a aguardar no ponto até a chegada do serviço funerário. por um momento. caros leitores. O médico se agachou.. até que. poria uma Bic e um guardanapo no bolso. do fundo da aeronave. Conversaríamos baixinho. fábulas —e. até uma senhora gorducha que segurava a cabeça e hiperventilava na primeira fileira do avião. senhores passageiros. desviando de barricadas e coquetéis molotov. no entanto. a vaidade disfarçada num leve enfado. eu caminhava pelas ruas de Kiev. Fecharia o jornal. quando a medicina nasceu. enquanto o corpo seguia ao deus-dará. favor se apresentar a um de nossos comissários". iria até a senhora gorducha e me agacharia ao seu lado. ele deu um comprimido à mulher e. Trouxeram uma caixa de metal. olhando em volta. caso haja um escritor a bordo. como um Clark Kent que. quem aí já ouviu uma aeromoça pedir. versos.. estivesse menos interessado em demonstrar os superpoderes do que em comer seus amendoins. Foi aquele discreto alvoroço: todos cochichando. despontou o nosso herói. quando a voz no sistema de som me trouxe de volta à poltrona 11C do Boeing 737: "Atenção. como convém—. No entanto. tomou o pulso. sem afobação. Um comissário o encontrou no meio do corredor e o levou. procurando o doente e torcendo por um doutor. naquele momento. favor se apresentar a um de nossos comissários"? Eu não me abalaria. senhores passageiros. a alma era tratada por mitos. depois falou com a aeromoça.Um escritor! Um escritor! 25/05/201403h01 Com o jornal numa mão e um guaraná diet na outra. pois a minha admiração. caso haja um médico a bordo. apressado. a história de Gilgamesh já circulava pelo mundo havia mais de dois milênios: desde tempos imemoriais. . Vinha com passos firmes —grisalho. com Hipócrates. auscultou peito e costas. foi rapidamente fagocitada pela inveja. Ora. devo admitir. voltou pros seus amendoins. ansiosa: "Atenção. sob os olhares admirados de todos. Ou de quase todos. nem dez minutos mais tarde. conversou baixinho com ela. . num restaurante. tem que estar preparado pras emergências". de leve. quem sabe. levantaria recordações prazerosas da relação e. como se nada tivesse acontecido. Uma jovem mãe me contaria do primo poeta que. tinha sido levado até um rapaz apaixonado e conseguido escrever seu pedindo de casamento no cartão de um buquê antes que a futura noiva voltasse do banheiro. Um senhor comentaria o caso muito conhecido do romancista que. para as bombas da Crimeia. o segundo saquinho de amendoins que a aeromoça me ofereceria e voltaria.Ela me confessaria. Eu faria uma rápida anamnese: perguntaria os motivos da briga. se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC. Eu sorriria. ao ouvir os apelos do garçom —"Um escritor. entregaria à mulher três parágrafos capazes de verter lágrimas até da estátua do Borba Gato. com meu copo de guaraná. um escritor!"—. antes de tocarmos o solo. estar prestes a reencontrar o filho. fora capaz de convencer 200 tripulantes de um cruzeiro a abandonar o gerúndio. passageiros me cumprimentariam e compartilhariam histórias semelhantes. depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele. pelo amor de Deus. Diria "Pois é. após as súplicas de mil turistas. então recusaria. mas não era boa com as palavras. se você escolheu essa profissão. educadamente. De volta ao meu lugar. que a coisa é um pouco mais complexa. no máximo? Quando vejo as pessoas revoltadas com o fato de estarmos realizando um Mundial. . Ainda que houvesse um grande legado urbanístico (não haverá). uma Olimpíada: de uma festa. gente? Que é isso. mas descobre. pois é disso que se trata uma Copa. teve (tem) um monte de coisa errada na organização da festa. não resolverá a saúde pública. como o nosso. Indícios de superfaturamento do toldo. Nada tinha que ser roubado. A Copa ser um fiasco não alfabetizará a população. Mas torcer para que o Brasil perca. você se pergunta: vale a pena gastar essa fábula pra cobrir uma área que será usada por cinco. esticar umas cordas de varal e comprar uma lona. para que a energia acabe. meia hora antes de os convidados chegarem. em São Paulo. lembro do toldo. pela expressão aterrorizada da sua futura esposa. já foi". Nos deixará na mesmíssima situação –só que com um fiasco de Copa. ao ouvi-lo. Não estou dizendo que devemos liberar a Joana Havelange que vive em cada um de nós: "o que tinha que ser roubado. para que o rei da Suécia pegue dengue e as privadas de todos os hotéis das cidades-sede entupam é uma atitude politicamente tão inteligente e construtiva quanto demorar mais no banho para derrubar o Alckmin. desvio de bem- casados. Quem já trocou alianças numa casa ou num local aberto sabe do que estou falando. gastar essa grana? Para complicar ainda mais a questão. lembro do meu casamento e das intermináveis discussões a respeito do toldo. um cunhado. Percebendo que talvez tenha que vender o carro (ou o corpo) pra pagar a conta. dez horas. DJ que ainda não instalou as caixas. tem que ter toldo!". Você concorda. um conhecido da prima da vizinha– levanta a questão: "não vai botar toldo? E se chove. achando que é só bater uns preguinhos nas paredes. Pode um país com tantos problemas. Chega uma hora na organização de todo casório em que alguém –uma sogra. não melhorará o transporte. o grosso do dinheiro é mesmo gasto num evento que dura um mês.Vai ter toldo 01/06/2014 Cada vez que leio sobre os gastos com a Copa. Existem empresas que instalam toldos –e cobram uma fortuna por isso. Que se aproveitem todos os holofotes mundiais para se esticar faixas e cartazes contra o estado das nossas escolas e dos nossos hospitais. no maior espetáculo do futebol. Os maiores jogadores do mundo. Drogba e tantos outros estarão jogando em nossos gramados. . em casa ou mesmo durante uma justíssima manifestação. Neymar. Messi. Mas. só deixará sua vida mais chata. nos bares. nas praças. Cristiano Ronaldo. Se privar de viver essa experiência. a partir da semana que vem. a falta de moradias e de transporte. Klose.Que se ponha atrás das grades quem roubou. seja nos estádios. pela internet do celular. Eto'o. não fará o Brasil melhor. porém. embaixo e à esquerda. Todas as outras. dependendo do cardápio). Em meus 37 anos sobre a Terra. das diáfanas fitas mentoladas aos robustos cabos oferecidos em banheiros de churrascaria. A primeira afirmação tem a vantagem de exprimir uma verdade. São dois começos tonitruantes. pega o fio dental da mulher e pensa assim: "É só ir com jeitinho. tenta se enganar. Os pequenos incômodos. ao tártaro e à placa bacteriana. precisa fazer suas escolhas: entre a fria verdade e uma mentira bem refogadinha. é que fazem da vida um inferno". jamais deve titubear. dos quais 27 não me causam problema algum: o fio entra tranquilamente. rasga e parece que tem um caroço de goiaba . ou vou viajar e esqueço de botá- lo na mala -e é aí que chegamos ao para-choque de caminhão. soa como uma dessas platitudes escritas em para-choque de caminhão. piorando a situação.. encontrei uma única marca de fio dental capaz de penetrar essas encostas mortais e sair incólume. parte de sua matéria. Tenho 30 dentes na boca. não as grandes tragédias. é que fazem da vida um inferno. mas traz ao menos a graça e o suspense da provocação irresponsável: será um calo pior do que um terremoto? Não creio. de lá pra cá e leva embora os tributos indevidos que me recuso a pagar às cáries.. tudo bem: a encrenca é que abandonam ali. de modo que. Pronto: o fio entra. mas é esse também o seu defeito: de tão verdadeira. Se eles só arrebentassem. arrebentam no meio do caminho. não as grandes tragédias. como convém a um tema tão profundo quanto o anunciado no título. contudo. só ir no ângulo certo que vai rolar". Pois bem: eu sei que só uma marca dá conta do recado.Fio dental 01/06/2014 Fiquei na dúvida se começava esta crônica com "O ser humano não aprende com os próprios erros" ou "Os pequenos incômodos. mas às vezes meu fio dental acaba. desliza de cá pra lá. na zona do agrião (literalmente. que todas as outras se rompem. em que os dentes estão próximos demais. o que resulta em 28 vãos. O ser humano. Já a segunda frase é duvidosa. Há um vãozinho. Veja o caso do fio dental que arrebenta. não aprendendo com os próprios erros. Um cronista. às vezes. não as grandes tragédias. com o Trópico de Capricórnio e a Via Láctea. de pesca. aprende com os próprios erros. como se houvesse um caroço de azeitona entre eles. E arrebenta de novo. com linhas de costura. quádruplos. (Devia ter começado com "Veja o caso do fio dental que arrebenta. com fios triplos. até que o cansaço ou a humilhação o atirem na cama. acho que me enganei ao duvidar que os pequenos incômodos. Os dentes pulsam. fazer uma espécie de trancinha que. A trancinha rasga. O ser humano vai seguir tentando. Ele inventou a clava e depois a flecha e depois a espingarda e depois a bomba atômica e. com sua dupla resistência e a fé em Deus. O ser humano não só não aprende com o próprio erro. como insiste. É agora que o ser humano desiste? Não.") . cabos de aço. de alta tensão. claro. depois de arrebentar o fio pela primeira vez. o que ele faz? Tenta de novo. Pensando bem. é que tornam a vida um inferno -o que me força a admitir que o ser humano. Ele desiste? Sai pra comprar o fio certo? Não: ele resolve enrolar o fio dental.empurrando um dente pra cada lado. retirará os resíduos alimentares e os fiapos dos companheiros tombados em combate. A etiqueta. "Não. lado a lado. magnânimo e –não pude deixar de notar– um tanto condescendente com este colecionador bissexto que. Pensei em explicar que neste país os adultos deixam tudo pra última hora. mas a maioria das crianças não estava nem aí para questões contábeis. "Nossa. Peguei algumas de que precisava e disse pra ele fazer o mesmo com as minhas. "Hum". ele diz que é valioso". comecei a folhear meu álbum. logo entendi. dez dias antes da Copa. fui percebendo que o bolo do sardento era o ralo do volume morto da Cantareira: só dava zagueiro da Costa do Marfim. tenho três. Oito. só tinha preenchido o Irã. "Você ainda não tem o Messi?!". Trocados nossos bolos. como se obter figurinhas estapeando-as contra o chão fizesse parte de uma etapa ultrapassada do capitalismo. praticam o coletivismo no melhor espírito Occupy: os garotos se encontram. já nesta tenra idade. mas meu pai não deixa eu trazer as brilhantes. por jovens. "Não. Foi então que chegou o sardento –e a esperança se foi. cê tem?". Cê tem?". meteu a mão no bolso e me deu o camisa 10 da Argentina. disse. Tenho sete. perguntou o moleque. Ofereci meu bolo. reserva do Japão. sem lideranças e composto. cê não tem o Neymar?!". e é bonito de ver como. mas meu pai não deixa eu trazer as do Brasil. mas que diante daquele feirão de trocas eu me enchia de esperança. Até a morte do bafo me pareceu justificada. berrou um garotinho. ele abriu foi um . trocam seus bolos de figurinhas e. goleiro da Suíça. em vez de abrir seu álbum. diante da banca. na média. ao ver meu álbum. "Nossa. todo domingo. escolhem as repetidas que lhes faltam. nove anos. Só que. "Ahã. majoritariamente. Aos poucos. sentados no meio-fio. mas ele o recusou: "Já completei". Sei é que se trata de um movimento horizontal. onde os mais hábeis (ou de mãos mais suadas) acabavam rapelando os menos favorecidos pela técnica (ou pelas glândulas sudoríparas). ele diz que é valioso". "Ahã.Infiltrados no bolo 04/06/2014 Não sei se marcam via redes sociais ou se a aglomeração surge espontaneamente. cê não tem a brilhante da Espanha?!". era dar o mesmo número de figurinhas que se pegou. devo dizer– e passou a tirar do meu bolo tudo o que era brilhante. mas não por muito tempo: "Aê. Deus do céu. hein?!". Meu consolo é acreditar que sardentão e sardentinho não foram lá trocar figurinhas: eram P2. da Espanha. tá esperto. cadê os pais dessa criança?! –pensei. orgulhosa. atrás de mim. com ódio e tristeza: quando a gente começa a ter fé no futuro do Brasil. jogador do Brasil. soou a voz. ¡No pasarán! . da Itália. surge o atraso e nos brinda com um chubaba. fiquei olhando o pai. PMs infiltrados para deslegitimar o movimento.sorriso –um sorriso corrupto. filhão. Enquanto o garoto dilapidava meu bolo. pra valer: tenho até hoje uma tabelinha da Suvinil. Ah. O que salvava era Juma Marruá boiando nas águas cristalinas do Pantanal. 2002! Eu morava em Barcelona. fria e o namoro terminou poucas semanas depois. Assistíamos aos três jogos do dia entre beijos e abraços. jogando bola com umas crianças marroquinas numa praça do Raval. O dia da vitória terminou comigo e o meu irmão epicamente bêbados. Éramos tantos expatriados que o Caio precisou trazer a televisão dele do outro lado da cidade. de metrô. Eu trabalhava numa novela que não dava ibope. namorava a Joana. sendo felizes para sempre. não tinha um puto. 1990: Collor na presidência. Eu. Fomos expulsos do Éden por dois gols do Sneijnder -e a vida jamais alcançaria o mesmo patamar. que não me amava muito e o Roberto Carlos resolveu arrumar a meia justo quando a França ia cruzar pra área. 1998: podemos pular essa parte? 1994: estava em Itaúnas. (Acho que a Joana estava arrumando a meia. O pênalti que o Zico perdeu ainda me dói. Vi o Brasil ser campeão pela primeira vez na vida -mas confesso que preferia ter visto outra coisa. num carrinho de feira.Retrospectiva 08/06/2014 Em 2010 eu estava em lua de mel. em boa parte da relação). Foi uma derrota triste. às vezes. As duas TVs ficavam no meio da sala. ES. tentando convencer algum ser do sexo oposto a perder-se comigo pelas dunas e levar consigo minha virgindade. de modo que a multidão pudesse se acomodar. o Dé e o Mario construímos uma cabana de bambu e toda noite acendíamos uma fogueira. mas fiz uma vaquinha com outros brasileiros e instalamos uma TV a cabo no meu apartamento. depois ficávamos estirados à beira do Atlântico. Lazaroni na seleção -fizemos más escolhas naquela época. o artilheiro da praça. Abdul. Ronaldo foi o artilheiro da Copa. A Copa de 2006 foi meio nebulosa. . Assisti à Copa no sítio da minha avó. uma pra cada lado. Oitenta e seis foi a minha primeira Copa. eu cruzei a sala engatinhando e desliguei a TV na hora que o Reinaldo ia marcar o nosso gol na Suécia. A vitória de Juma sobre a retranca. . em esferas nada chutáveis do meu pai. na casa do meu tio Luis. acho aquela derrota mais trágica que a de 1950. Hoje. Vencer em 82 seria a afirmação de uma utopia possível: a supremacia da beleza e da ousadia sobre o tédio e a contenção. não posso falar: metade dos meus genes aguardava num ovário da minha mãe a outra metade que ainda nem tinha sido produzida. De 1974. A frustração com o Halley. também. em 78. Foi um ano de falsas esperanças. Que coisa estranha: em 74 eu estava morto. Vencer em 50 seria a confirmação do nosso delírio de grandeza. De 1982 eu só guardo flashes: adultos tristes num sofá bege. Diz a lenda familiar que.quando vai chover. Desconfio que seja mentira. 86. Já orifício. não tem nada a ver com buraco. Parece mais uma ferramenta de ourives.. "Vésper". de trabalho novo. aqui. então. brancos e demais desastres. não. é outra delas: você diz l-u-v-a e quase dá pra sentir os dedos deslizando pelos orifícios. como um chutão afastando a bola da nossa zaga. Se o Paulinho e o Oscar que trago dentro de mim. deixando a lua "tonta com tamanho esplendor". a imagem tá errada. é trocar passes na defesa: Thiago Silva. não há -e essa ideia me reconforta por uns segundos. imaginam-se dilúvios. um ato de extrema covardia —"contra os inimigos.Véspera 11/06/2014 Véspera me remete a vespa. Penso na uva. roem-se as unhas. no ovo.. Fujo porque estou nervoso e ficar nervoso é o que se faz às vésperas: de jogo. não estão dando conta de levar o texto da nossa zaga até a meta adversária. bate- se na madeira e tenta-se pensar em outros assuntos. até que um apito dê início à Copa e fim à nossa áspera espera. áspero. essas vinte e quatro horas que nos picam feito vespas. Ouço vaias da torcida? Tá certo. Futebol se joga é pra frente. Anda-se em círculos. Bobagem. aliás. o jeito é tentar um lançamento em profundidade. como um avestruz: o tema é a véspera. panes.. Daniel Alves. nervosos. vem do latim. Covarde sou eu. no hipopótamo: há na natureza uma fruta com mais cara de uva do que a própria? Algo mais oval do que o ovo? Bicho mais hipopótico do que o hipopótamo? Não. tentando fugir do tema desta crônica enfiando a cabeça no primeiro orifício que aparece. o planeta Venus. .. orifício. E quem mais profundo. primeiro corpo celeste a brilhar no fim da tarde. espera. ovos e hipopótamos não é dar chutão. uva. de primeiro encontro. por exemplo. Luva. convenhamos. É dessas palavras que vestem o significado como uma luva. era capaz dos piores orifícios". Luva. pensar em uvas. um burocrata da época do império. entre os titulares da minha estante. David Luiz. do que o dicionário etimológico? "Véspera". também conhecido como Estrela D'alva -aquela que "no céu desponta". ele me diz. Não. agora é Copa! E as pastorinhas? "E as pastorinhas/ pra consolo da lua/ Vão cantando na rua. agora é tarde. lembrem-se que vocês só chegaram aí porque gostavam. pom. de jogar futebol. Dane-se. Amanhã. pom. Opa.Vejam só como. Bastou não nos intimidarmos. não permitirmos que o medo de perder fosse maior do que o desejo de ganhar. pom. acho que me empolguei. do frio na barriga para a deusa do amor e da beleza. Joguem com vontade: então suas estrelas despontarão no gramado e deixarão os holofotes tontos "com tamanho esplendor". mais do que tudo. póóóm. num único lance. quando soar o apito. o jogo pode mudar do buraco do avestruz para a abóboda celeste. . lindos versos de amor". leleô. leleô. estação República. "Brasil! Brasil! Brasil!". meu povo! Vamo animááá!" -e gargalha. Quase todos os passageiros vestem camisas do Brasil. Estação Pedro II. melhor esquecer o crack e pensar nos craques. "E leleô. Brasil!". 11h44. um ipê-rosa. 12h07. Fico um pouco emocionado: não sei se por estar a caminho do estádio. tão gays. Craqueiros? Talvez. "Eu vou buzinar mesmo!". arranca a buzina das mãos do gay e joga pela janela. Penha. eu também. Olho pela janela e não vejo a manifestação. numa praça de terra. um casal de gays: pobres. mirrados. o gay de cabelo oxigenado soa a buzina. deixaram de votar o Plano Diretor. Prédios novos. mas o trem anda. Estação Belém. puxa uma turma. aperta uma dessas buzinas de spray. Mais adiante. "É Copa. 11h55. 12h01: "Atenção. Os torcedores parecem nem vê-los: "Eeeeeu sou brasileeeiro. "Eu sou polícia. passageiros: os trens não estão prestando serviço na estação Carrão devido à manifestação". antigas fábricas e casinhas geminadas me lembram Adoniran Barbosa. Penso como. Brasil!". leleô. faz sol. Um deles. vinte anos atrás. mas abro o Twitter e assisto ao vídeo: a repórter da CNN sangrando. Eu canto junto. "Eu tenho direito! É Copa do Mundo!". revoltados com as concessões da prefeitura aos sem-teto. 11h36. o PM jogando spray de pimenta nos olhos do cara algemado. grandes e feios me lembram os vereadores que. ainda mais indo pra um jogo de futebol. cê me respeita senão eu te . leleô. feições nordestinas. com muito orguuuulho. Soldados com fuzis. até que as portas se abrem. um cara dá um salto do seu assento. seria inimaginável gays assim. O metrô sai do buraco e a comoção se perde entre dúzias de moradores de rua. com muito amooor". do outro lado do vagão. na plataforma. o céu é azul. diz o gay a alguém fora do meu campo de visão. puxa um garoto. pela constatação de que o Brasil mudou ou pela breve comunhão das camisas amarelas. leleô. leleô. No canto do vagão. de cabelo oxigenado. Um campinho de várzea. No vagão.A caminho 15/06/2014 Quinta-feira. florido e o vagão inteiro cantando: "E leleô. em público. Os dois saem juntos do metrô.O. . O cara enrola. Aos meus olhos.! Eu tenho o direito de torcer que nem você! Vamos pra delegacia!". "Quero ver a sua identificação!". mais mirrado. se é pelo tanto que o Brasil mudou ou pelo tanto que ainda falta mudar. perco-os de vista e me junto à multidão. Agora é um Madame Satã: "A gente vai descer em Itaquera e vai fazer B. Silêncio no vagão. o gay parece ainda mais pobre. Itaquera. "Quero ver sua identificação!". seu FDP! Acabou! Acabou!". O gay cresce. 12h25. mas ele se levanta. Sinto um nó na garganta: não sei se é por estar a caminho do estádio. "Senta ou eu te prendo por desacato!".prendo. O que ele me diz? Que o que realmente importa nessa vida é deixar de cumprir uma tarefa em plena segunda-feira . é Nelson Rodrigues. que começam a jogar na TV muda. um olho no laptop e o outro em Irã e Nigéria. Acho mais do que justo. Torço ora pra um time. os garçons passam um mês se escondendo atrás de colunas. misturado à água. me puxando. liberando o tempo antes "gasto" com as refeições para ser "investido" no trabalho. Há algo mais escasso. antes do jogo do Brasil. Será Deus? Não. eu deveria estar revisando vírgulas e trocando uns "contudo" por uns "no entanto" no meu livro e contudo. Curiosamente. o juiz joga a pá de cal naquele zero a zero. neste século tão afeito à produtividade. estou aqui vendo um jogo de futebol. não fico culpado. o cara com quem você teria uma reunião fica gripadíssimo (justo na hora de Holanda X Espanha). quando dou por mim. calculando logaritmos. do que boas desculpas para não fazermos o que precisa ser feito? A gente gasta um tempo enorme escrevendo livros. crente que de sua pequena tarefa depende o futuro da humanidade. Sei que não se trata do maior clássico do futebol mundial. projetando casas. Depois morre e já era. uma situação normal. Os almoços que durariam 40 minutos levam 105 (mais acréscimos). sem falta. no século 18. mas Copa não é. do outro lado da sala. até que. Que século! Melhor era ter nascido pataxó lá no CT da Alemanha. plena segunda-feira. de frente para a televisão. Copa é uma espécie de salvo conduto para a vagabundagem. mas a partida vai me puxando. ora pro outro. Fico eufórico: sou tomado por uma epifania. te supre de todos os nutrientes necessários. Numa situação normal eu me sentiria culpado. mas aqui estou. plantando caquis: cada um concentrado em seu imenso umbigo. Li outro dia numa revista que os americanos inventaram um pozinho que.Coisas importantes 18/06/2014 Eu tinha prometido à editora entregar o livro na terça. Ouço uma voz sussurrando em meu ouvido. já migrei completamente da tela do Word pra Arena da Baixada. de forma alguma. A culpa bate à porta: segundona. 90 minutos mais tarde. O jogo se arrasta. e. no entanto. Talvez o Brasil seja campeão. . nem ver a goleada da Holanda ou da Alemanha -isso ainda é estar preso às amarras do século. nenhuma tragédia grega. Que não há nenhum poema. A beleza da Copa é gastar duas horas com um desolador Irã e Nigéria quando havia coisas muito mais (des)importantes a (não) fazer. Legal. nenhuma obra de arte com A maiúsculo que traga outra mensagem senão esta: só os zero a zero são sinceros -o resto é ilusão e vaidade. Mas a beleza da Copa não é ganhar. Lindo.para ver Irã e Nigéria empatarem em zero a zero. Logo mais tem Brasil e México. quem vier pra cá poderá assistir a jogos incríveis como os da última semana. O que a Suíça tem? Chocolates. esse é o impulso para a Tropa de Choque. E de novo. em nome do bem comum: Copa Permanente. para enfim transformarmos esta vergonha numa nação.) O grande impulso para o progresso. ele diz. Antonio. Permita-me discordar. indignado. "Ah. o terceiro passo. O que a Austrália tem? Cangurus. que tirou milhões de brasileiros da miséria. o Mundial não acaba. O segundo foi o Bolsa Família. é a vergonha dos gringos. ampliar o metrô -e transformar a Vila Madalena num calçadão balada 24 horas. "Ei. Dia 13 de julho. que estabilizou a economia. "since 2014".Projeto CP 22/06/2014 O primeiro passo foi o Plano Real. de graça. Começa tudo de novo. depois da final. Qual o grande impulso para o progresso. As bandeiras não são tiradas das janelas. poderá se embebedar com Skol morna na rua Aspicuelta e xavecar uma holandesa que está ficando com um marfinense que está dividindo um apartamento com 11 portugueses que conhecem um uruguaio que jura que consegue três ingressos pro jogo da próxima terça. poderá cantar de peruca colorida no metrô. criar boas escolas públicas. As pinturas no asfalto não são lavadas pela chuva. Faz dez anos que nossos aeroportos estão um caos: quando foram reformados? Quando os gringos iriam chegar. em nosso país? O clamor das ruas? (Não. O que o Brasil terá? Uma Copa Permanente. os cristãos a Roma. Não estamos prontos. os japoneses ao caraoquê. Todos os dias. fanfarrão!". ainda. hospitais. grita o leitor Black Block. Falta. Dou aqui a ideia. todos os meses. tirando fotos do lixo nas ruas e postando nas redes sociais: . E os povos virão até nós como os muçulmanos vão a Meca. como se eu propusesse apenas circo para as massas. E pra sempre. um passo ousado e criativo. enfim. Com a Copa Permanente teremos também gringos permanentes e precisaremos. É isso mesmo. Os carros não perdem seus gorros de capô nem seus tapa orelhas de retrovisor. vai tomar no **!". Os jogadores e torcedores não voltam pra casa. todos os anos. grita o leitor Yellow Block. entre nós. aprovada a CP. Façamos abaixo-assinados. resolvamos os problemas que nos perseguem há mais de 500 anos. toc-. manifestações. garantindo o apoio do empresariado e a maioria necessária para aprovar a Copa Permanente." . A promessa de um camarote VIP e de umas biritas de graça. soltaremos um simples suspiro e nos resignaremos: "Pena. se algo porventura der errado nos próximos jogos -toc. contudo. toc. Vamos lá. deverá acalmar esses neoindignados. pessoal. agora só daqui a quatro semanas.#imaginanacopapermanente. Sem contar que. no Congresso. macumbas. de quebra. Façamos do Brasil o país mais divertido da Terra e. abandonei imediatamente a laranja mecânica e abracei a esquadra amarela. que coisa linda é "A Noite Estrelada". Até fui a um restaurante chileno. minha opção preferencial pelos pobres subiu no telhado. os caras esconderam a Anne Frank dos nazistas durante anos. esperneia. Mas então entrou o Cristiano Ronaldo . o que dizer sobre Portugal e Estados Unidos? Em termos estritamente futebolísticos. gritei "Chi-chi-chi-le-le- le" e fiquei com os olhos marejados na hora do hino. que nada! Eles liberam o consumo de maconha. encantado com as belezas e surpresas do esporte bretão. pode-se falar em termos estritamente futebolísticos? Antes do jogo. Que Holanda. não podemos perder nossa Gália e deixar que também aí eles sejam os melhores.Geopolítica do coração 25/06/2014 Existem duas Copas paralelas: aquela em que o Brasil joga -e você sofre.e aquela em que as outras seleções jogam -e você pode se dar ao luxo de assistir tranquilamente do seu sofá. no futebol. foi bico: colonizados contra colonizadores. eu pensava: o ludopédio é o último reduto livre da supremacia norte-americana. Aussies! Se Holanda e Austrália foi complicado. ficaria com a retranca? Tive que me submeter a um rápido tour de force para aceitar meus pendores alaranjados: a Holanda é um país liberal. cresci acreditando que uma das graças do futebol é ver o mais fraco vencer. de novo? Entre Robben e a retranca. pensei. grita. Ótimo: mas aos 21 minutos do primeiro tempo. O único problema dessa segunda modalidade de fruição desportiva é que nem sempre é fácil escolher o time para o qual torcer. portanto. atuais campeões do mundo contra um time que jamais ganhou uma Copa. incentivando o tráfico em outros países! Entregaram a Anne Frank pros nazistas! O Van Gogh morreu sem orelha e na miséria! Go. mas não o plantio. com moderadas convicções de esquerda. Chile e Espanha. os EUA eram o lado mais fraco -mas quando. Como não querer ver a máquina que havia metido cinco na Espanha funcionando perfeitamente. porém. do Van Gogh. Diante de Holanda e Austrália. quando Cahill pegou na veia e mandou pro fundo da rede. Tendo sido criado por um torcedor fiel do Linense. em 1994. já estava de pé. we can! Hoje. em Honduras X Suíça e Equador X França. fecho com os latino- americanos. lembrei do grunge Lalas. claro. . gritando Yes. Difícil vai ser saber o que fazer com Bósnia e Irã. desde criancinha. é complexa a geopolítica do coração. vi os jogadores americanos nervosos e empolgados. Nigéria X Argentina também é fácil: sou Nigéria. não sei: numa Copa. quando dei por mim. Emir Kusturica ou Abbas Kiarostami? Os persas ou as loiras? E os genocídios? E os aiatolás? É possível ignorá-los? Realmente.com aquele ar de fuinha emperiquitada. e. diante da TV. sépia. em que tudo se acelera e se prolonga de acordo com forças intangíveis: casamentos se esfacelam aos pouquinhos. aliás. É um jogo de cartas marcadas. Clico. Cinema é o contrário do esporte. além da "função esporte". a TV oferece outras opções. De um meio-dia primaveril. como se Neymar e Alexis Sánchez fossem personagens de "O Poderoso Chefão 2". guerras estouram de repente. Grande parte da graça do esporte. carreiras deslancham num instante. fico indo e voltando de "esporte" para "cinema" e matutando sobre o significado das duas formatações. Se a "função esporte" aproxima com luz. o vermelho dos chilenos chega a irritar os olhos. aperto a bolinha: "Você deseja acionar a função esporte?". a "função esporte" nos aproxima do espetáculo. reino distante. a coisa será decidida naquele intervalo predeterminado de tempo. como a "função cinema". a "função cinema" afasta ainda mais o filme da realidade. cobrindo a tela com um etéreo filtro marronzinho que sugere passado. A penumbra . para que embarquemos na ilusão. como se esfregasse o presente em nossa fuça. afirmando: isso- está-acontecendo-agora. minha tela passa a entardecer outonal. É algo que não só não está acontecendo agora: nunca aconteceu nem acontecerá. a "função cinema" distancia com sombra. vejo uma bolinha de futebol no meio do controle remoto e acho que estou delirando: será efeito do nervosismo diante do mata-mata ou o primeiro sintoma do derretimento do meu cérebro após mais de 50 horas de jogos em apenas 17 dias? Curioso. Aperto "voltar" para comparar com a imagem anterior e descubro que. recessões se arrastam por anos. Ao contrário da vida fora dos gramados. talvez. Para evitar pensar no jogo. Ao clarear e turbinar as cores. O tom cromático-lisérgico da "função esporte" parece querer nos convencer de que aquilo é mais real do que a vida -essa bagunça. Fiat lux! A grama ganha um verde quase fosforescente. Paradoxalmente. o amarelo canarinho parece marca-texto.Função esporte 29/06/2014 Durante o hino. é essa: haja o que houver. após Uruguai x Inglaterra.sépia funciona como um dimmer da razão. Uma das hipóteses era a de que o jogo é uma narrativa tão forte que toda ficção em cima dele soa falsa. No metrô. cujo enredo vai sendo escrito em tempo real. em que se discutiu por que o cinema e a literatura brasileiros falam tão pouco sobre o futebol. Uma partida é um filme ao vivo. com Ugo Giorgetti e Tales Ab'Saber. abaixando-a até que aceitemos embarcar no que sabemos ser uma mentira deslavada. . Essa é a graça da coisa: ainda mais quando os 22 roteiristas decidem deixar para o último pênalti o clímax e o desesperado happy end. o jornalista Maurício Barros me contava de um debate do qual participou. acontece que só com paixão tampouco se chupa um Chicabon: é preciso saber mover a língua e os lábios do jeito certo ou se acabará todo babado. Mais lindo. O chute do Carlos Alberto é lindo. Não sou um especialista em futebol.Chamem o Sr. porém. longe disso. é o quarto do Brasil contra a Itália. mas o homúnculo o põe para pintar uma cerca. Concordo com Nelson Rodrigues que sem paixão não se chupa nem um Chicabon. Eis então que surge Carlos Alberto em desabalada carreira e. por um segundo: "Xi. sob o insuspeito biótipo de coala taciturno. Sou mesmo. até descobrir que a tediosa repetição de movimentos serve para exercitar seus braços e automatizar reflexos de autodefesa. em minha modesta opinião. devagarzinho. na final da Copa de 1970. O franzino Daniel San sofre bullying no colégio. Da meia-lua. Daniel San. um "Estranho no ninho". Na luta final do filme. Edson. mas a esta altura do campeonato somos 200 milhões de técnicos e até uma ema num ninho de canários se arroga o direito de dar seus trinados futebolísticos. mas babado. pirou?". antes que nos recuperemos da surpresa. é o passe do Pelé. fazendo com que todos nós pensemos. como prudentemente advertem essas letrinhas aí em cima. Miyagi 02/07/2014 Vocês devem se lembrar do filme. solta um canhão em direção ao gol. porém. Daniel San pede ao Sr. Um dos gols mais bonitos da história. O garoto aparece no primeiro dia crente de que sairá de lá capaz de quebrar tijolos com a cabeça e derrubar portas com voadoras. Miyagi topa. Ele . O Sr. Miyagi que lhe ensine caratê. Pelé rola a bola pra direita. apanha de um loirão perverso na frente das meninas. Daniel afasta os golpes do loirão perverso com as pinceladas de seus punhos. talvez. é pintar cerca. esconde a ancestral sabedoria dos samurais. um velhote japonês que. em direção a um espaço vazio. Cheio de paixão. é humilhado. Daniel San reclama. Miyagi. de modo que arrisco aqui o meu diagnóstico: o que falta à "família Scolari" não é autoconfiança nem equilíbrio emocional. tem a sorte de conhecer o Sr. então só nos resta isso aí: cantar o hino aos berros e torcer para que.não olha pra trás. se não der pra ganhar na bola. Eles treinavam. como num casal. suor e lágrimas. Não dá mais tempo? Bom. mas não entrosamento. ritmo -e não é sendo mais agressivo ou respeitando menos o adversário que o futebol virá: é pintando cerca. Há entrega. parece que falta futebol à nossa magia. Carlos Alberto não grita. Hoje. chega uma hora em que um fala saúde antes mesmo de o outro espirrar. Aquilo era um time e num time. . a gente ganhe no grito. Muitas vezes senti que faltava magia ao nosso futebol. tática. Como Pelé sabe que ele virá? Sabe porque ele e Carlos Alberto vinham pintando muita cerca juntos. Se conheciam. estou tranquilo: após três semanas de tormento. desistiram por mim. Estava duro. uma vez por semana. Acorda no outro dia e aposta todas as fichas no time errado. amigo boleiro. enquanto lida com a Copa. essas vitaminas que as simpáticas camareiras me trazem. de novo. Ou melhor. também parecem ajudar). E tem também o álcool. caí junto. para quem mora em São Paulo?). de tempos em tempos. a Alemanha? Não sei. Ah. as frituras. E de novo. interpretação ou mesmo uma mísera piada sobre os jogos das quartas de final. cria narrativas de redenção e glória. Através das grades da janela do hotel em que me instalaram. Duas vezes por dia você se envolve. a única copa que posso acompanhar é a de um ipê. sugiro parar por aqui. Se fosse só a seleção brasileira que me fizesse sofrer. cujos galhos balançam ao vento contra o céu azul deste pacato domingo. Chega uma hora em que o cidadão não aguenta: espana. Spartacus e Zumbis —mas eis então que vem a realidade. Desisti. os gritos e a vida —essa coisa chata que você precisa tocar na paralela. Não sei os resultados.Copa das árvores 06/07/2014 Amigo leitor. eram os outros. poderia aguçar os pensamentos angustiantes que para cá me trouxeram. Um ipê-rosa. Não dá pra viver assim. Você aprende? Não. Talvez o Brasil tenha metido 4 a 0 na Colômbia e o país comemore a súbita ignição do nosso escrete. (Além do isolamento. essa invejosa. porém. como diria aquele filósofo da terra do Benzema. não quero saber. E de novo. . O inferno. como acreditei que o Irã pudesse ganhar da Argentina! Que o México fosse vencer a Holanda! Que a Argélia fosse derrubar a Alemanha! Quando os Estados Unidos caíram diante da Bélgica. e derrama um balde d'água em seus delírios. até dava pra segurar. vê Davis. (O que são 90 minutos de estresse e tortura psicológica. se fosse amarelo. se apaixona. a Holanda. Não vi os jogos. mas não tenho raiva de quem sabe. pois. me sinto finalmente livre. E a Argentina. Pelo contrário. felizmente. se você busca nesta crônica alguma análise. Talvez tenha perdido e a população tenha destruído os estádios a golpes de copão da Budweiser. . nada disso importa. é mais revigorante que um golaço do Neymar. que subi num poste na Aspicuelta e cantei "Aquarela do Brasil" —pelado. tentar esquecer o Mundial e focar coisas boas. Uns dizem que eu insultei um belga. em breve: uma massagem com impulsos elétricos. Outros. . que.. também.Não sei exatamente o que eu fiz. como esse ipê-rosa que balança lentamente lá fora ou a massagem que me oferecerão. vai começar tudo de novo. dizem. Ou do Messi? Ou do Campbell? Xi. ó lá. Lembro vagamente de escrever uma crônica misturando "Karatê Kid" e Carlos Alberto Torres. Agora. no metrô. Importa é descansar. no peito. Foram sete. no hino. sem Thiago Silva. no . pareceu que o havíamos superado. enfim. nessa coisa chata chamada realidade. Não. Tá duro assistir ao Mineirão lotado e perplexo. com 5 a 0 antes dos 30 do primeiro tempo. Desculpa. só invertemos o sinal. Sete! E poderia ter sido mais. sem meio de campo. que nos fechássemos numa pusilânime retranca para não perder de dez. sem time: só no grito. Será que só conseguimos oscilar entre o cocô do cavalo do bandido ou super-heróis? Não podemos ser normais? O futebol é um negócio engraçado. Depois de quatro gols em seis minutos. Um poeta português que muito cantou o mar já disse que "Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena". cunhado por Nelson Rodrigues. leitor. na raça. comecei a duvidar da validade desses versos. se eu fico aqui me escorando em versos. mas. desconfio. antes da Copa. sobre o complexo de vira-lata. Aliás.Fogo na capela 09/07/201403h54 Por uns dias. nada de futebol. engolimos a seco o "Eu acredito!" e passamos a desejar secretamente. Se para algo servir o massacre. que seja para passarmos a acreditar menos na mágica e mais no trabalho. mas a seleção a capela não pegou na banguela e morremos na praia -ainda que em Minas. no treino. mas. crer que nós queremos vencer mais do que os outros já é sinal de que algo não vai bem. na fé de que a mística da camisa amarela daria conta do recado?! Falou-se muito. no planejamento. de 20. o poeta. que nunca havia treinado. tão longe do mar. Sabia tudo sobre o mar. acreditamos que seria possível vencer sem Neymar. mas algum consolo este devastado cronista precisa buscar -e pega mal tomar cerveja na tribuna de imprensa. tão perto do ouro. Como escreveu aqui o mestre Tostão. ardorosamente. Crer que sem futebol é possível vencer no futebol apenas porque queremos mais do que os outros é um delírio de grandeza que só pode surgir de nosso imorredouro sentimento de inferioridade. Por um momento. Botar para enfrentar a Alemanha um time que nunca havia jogado. mesmo assim. quando o melhor time é muito melhor do que o pior. a fratura na vértebra do nosso maior craque parece uma imagem sob medida para essa seleção. Sete! E poderia ter sido mais. Que o brado "a capela" batia uma orquestra afinada. movida pelo exoesqueleto do delírio nacional. queríamos provar que a garra era mais forte que a tática. o óbvio mais ululante com que mesmo o burro videoteipe vai concordar e repetir. No fim. acreditamos que seria capaz de levantar e andar. "per saecula saeculorum": que. às vezes. o melhor time ganha do pior. uma seleção à qual faltava uma coluna vertebral e que. pode fazer sete gols.início da Copa. . E que. Nessa tenebrosa semifinal. Provou-se o contrário. ele serve para provar todas as teses. sendo devorados por pombas e vira-latas. Embaixo de uma marquise. um casal se beijava sôfrega e desajeitadamente. na disputa pelo terceiro lugar. a vida seguia seu rumo. Ambulantes seguiam vendendo cerveja. Se a seleção tem um desempenho pífio. tendemos a supervalorizar a sua interpretação. na primeira vez. Diz a lenda que em 50. voltando do Mineirão. fadados ao eterno subdesenvolvimento. Eu não cairia no exagero de dizer que a equação se inverteu: estamos longe de ser um país deslumbrante –socialmente. ficamos em segundo. Claro que os defeitos da cartolagem brotam de certas vicissitudes nacionais. fomos um arremedo de país com uma seleção deslumbrante. como costumam se beijar os casais. tomando sete dos alemães. é o brasileiro mostrando ao mundo o quão incrível ele é. O fracasso do time serve para escancarar o atraso. as ruas continuavam cheias. contudo. Por muito tempo. a ganância. hoje. o Brasil é melhor do que a sua seleção. Mesmo depois da derrota. sugere que a derrota de 2014 não deixará. mas o que percebi em meio à muvuca e me salvou da depressão foi que. nem sombra da cicatriz uruguaia. bairro boêmio de BH. mais três dos holandeses. por um único gol. depois do jogo. mas não deve ser estendido ao país como um todo. Se a seleção ganha. como se o gol de Ghiggia selasse não apenas o campeonato mas nosso destino de fracassados. fora dos gramados. não dá pra negar: em 50. acabamos em quarto. é essa porcaria do brasileiro que não consegue mesmo fazer nada que preste. Temos inúmeros exemplos de brasileiros que se unem com um objetivo e . na semi. economicamente. eticamente–. mas a gente não se resume a elas. a incompetência. A reação do país lá e cá. Aqui. O povo chorava em casa. Bem diferente do cenário que encontrei na Savassi.Balanço 13/07/2014 Tem muita gente afirmando que o fiasco de 2014 foi pior do que o de 1950. havia banquetes abandonados pelas ruas. a burrice e a má-fé que administram o nosso futebol. Apesar da tristeza e da perplexidade. Futebolisticamente. Dado o peso que o futebol tem entre nós. na terça. Das meninas do vôlei ao Impa. com trabalho e competência. Do Grupo Corpo ao Instituto Butantan. Longe disso. mas esse futebol não me representa. De Inhotim ao programa gratuito de tratamento da Aids. mas não somos uns fracassados. a resultados extraordinários. Não sei quanto a você. O jogo ainda não está ganho. Sem falar na Copa.chegam. Da cozinha do Alex Atala aos programas sociais que tiraram 50 milhões de pessoas da miséria. fadados ao eterno subdesenvolvimento. que. Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada. deu certo. Da Osesp à Pastoral da Criança. amigo. . É preciso mexer bastante no meio de campo. apesar da seleção. no Rio de Janeiro. Gol da Alemanha. Pela última arara-azul. E aterrar o Pantanal. Diário revela. Pra uma igreja evangélica. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. roucos e fanhos. Índios assumem . Chico Buarque grava. Gol da Alemanha. Cupins devoram Ouro Preto. Cyrela reconstrói capital. Gol da Alemanha. Quem inventou a bossa nova. Feijão dá câncer e gota. Exumação comprova. Gol da Alemanha. Sempre fui hétero. Gol da Alemanha. O Cristo cai com um tufão.) Gol da Alemanha. "O maior estacionamento do mundo!" Gol da Alemanha. Dengue mutante se espalha. Olinda arde em chamas. Prédios de Niemeyer desabam. Gol da Alemanha. E constrói parque do Mickey. Gol da Alemanha. Disney arrenda Lençóis. Foram os irmãos Wright. João Gilberto admite. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. O rio Amazonas seca.Gol da Alemanha 20/07/201413h49 Gol da Alemanha. Chapada Diamantina é implodida. Que o rosa era tingimento. Gagos. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Flacidez e queda dos glúteos. Gol da Alemanha. Pra gerar muita brita. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Historiador sentencia. Gol da Alemanha. Santos Dummont chegou tarde. O derradeiro boto-cor-de-rosa se mata. Gol da Alemanha. Engolindo a última arara. Carmem Miranda era homem. Sambódromo é vendido. Para virar pet shop. "Um Emo Universitário". Gol da Alemanha. Com terrível novo sintoma. Foi o Henry Salvador. Universidade de Stanford adverte. Jean Wyllys confessa. (Nenhum político ferido. Gol da Alemanha. Gisele entra num convento. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Em estilo neoclássico. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. O Municipal é reformado. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Quem inventou o avião. Gol da Alemanha. O mico-leão é extinto. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gil e Caetano descobrem-se. Gol da Alemanha. Autópsia do boto conclui. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Jece Valadão era gay. Gol da Alemanha. Tão mudas ou se picaram. Que que tá acontecendo? Gol da Alemanha. Gol do Oscar. Ghiggia não é uruguaio. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Chamado Alcides Ghiggia. Gol da Alemanha. As aves que aqui gorjeiam. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Ghiggia nasceu na Argentina. Que na verdade. Pai. Gol da Alemanha. Não. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Faz "selfie" nos escombros. Gol da Alemanha. . Gol da Alemanha. Nana Gouvêa. Gol da Alemanha. Mas preciso contar um negócio. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Não sei.a culpa. Gol da Alemanha. É a camisa da Alemanha. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Seu pai é um uruguaio. A gente pintava os bichinhos. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Com camisa do Flamengo. Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Acabou? Gol da Alemanha. Gol da Alemanha. Eu não sou seu pai. E quem pagava eram as Farc. quando terminei um e-mail com uma exclamação (o que pode ser menos bragueano do que uma exclamação?). Nesses 20 anos de relação. Ele não sorria pra todo mundo.Íntimos desconhecidos 27/07/2014 Finalmente. A azia existencial me perseguiu ao longo do dia e só no meio da tarde. pensei que a angústia fosse causada pela morte do "velho Braga". optou por não se tratar. às duas e tanto da manhã. Não me vejo falando sobre passarinhos ou ventos alísios –nasci em São Paulo. Ontem. é pior: a mulher que trai o marido pode amá-lo –ou. esses meses vagabundos em que a vida foi marcada. descrita de forma sóbria e delicada por Marco Antonio de Carvalho: descobrindo um câncer em estágio avançado. já o ter amado um dia. Ao apagar o abajur. porém. driblada e vencida pela Copa. acordei com a sensação de que não era exatamente a morte do escritor a parte mal digerida da biografia. eu. minha relação mais próxima com a natureza foram dois gatos e uma tartaruga de aquário–. pelo menos. Hoje. Ele era um velho lobo-do-mar. Já me projetei na famosa cobertura da Barão da Torre. falastrão. se despediu dos amigos. em Ipanema. no shopping Morumbi. que sempre viu mais beleza nas pescarias do que nas epopeias. batendo papo no jardim. consegui terminar de ler a biografia do Rubem Braga. É duro constatar um negócio desses. que eu havia começado em maio. com os olhos ardendo e um aperto no peito. eu pareço um candidato a vereador. deitou e não se levantou mais. É como descobrir que a sua mulher está te traindo. Ele era quieto. cresci em São Paulo. depois de duas décadas de convívio intenso. virei a última página. mas quem sabe . entendi o que me incomodava –algo que eu já vislumbrava desde que passei a conviver mais de perto com os humores. distribuiu os livros e os quadros. eu cresci patinando no gelo. transpostos junho e julho. Rubem Braga nunca me amaria. já me imaginei várias vezes voltando ao passado e sendo apresentado ao cronista por um amigo em comum. Não. preparou a partida. afetos e idiossincrasias do meu íntimo desconhecido: o Rubem Braga não ia gostar de mim. o cronista. ele me ofereceria uma cachaça. me convidam para uma moqueca em Itaparica. que é sempre interiorana. mas não impossível: João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. no fundo de um bar. com os olhos ardendo e o peito transbordante. mas não rude– que não me leve mais ali. Saio trôpego pela calçada. somos amigos de infância. onde nos aguardam Millôr Fernandes e Vinicius de Moraes. Não sou o tipo de pessoa com quem Braga se daria bem. Saímos andando por Ipanema. Todas essas fantasias desapareceram agora que li o livro. que me consola. eu e esse amigo sem rosto. comeríamos jabuticabas. Os dois falam pelos cotovelos e riem muito. . Nos sentamos. Pede –seco. às duas e tanto da manhã. uma mesa improvável. e descobríssemos insuspeitos paralelos entre o Itaim Bibi e Cachoeiro de Itapemirim? Eu lhe mostraria um ou outro texto. Em meia hora. como eu. Eles me acham o máximo. meio bobo talvez. esse amigo é muito bem relacionado e avista. um vatapá no Recife e uma saideira no Antonio's. Para minha sorte.conversássemos sobre a infância. Me vejo saindo de sua cobertura e o ouço comentar com nosso amigo que me achou frívolo. na mesma velocidade que o finado bandeirante devia atingir. ignoro. Compreendo que. fazendo. Por outro lado. Se o repórter fala. É como um chiclete que você mastiga. tão irritante. Aí - e aqui eu uso corretamente o "aí". Por um lado. aí. aí. do "aí". com que a dureza dos dados se acomode. Moro longe. nos cafundós da Granja Viana. a sua seara: sei que meto o bedelho num assunto que ele poderia destrinchar. aí. ouço rádio -e as rádios são o celeiro. duas funções. aí. aí. de . aí. aí. aí. o trânsito. o ritmo. aí. pra milhões de pessoas. aí. aí. aí. aí. aí. pela primeira vez.já não consigo mais prestar atenção em nada do que o cara fala: esqueço. a estufa. paradoxalmente. me desinteresso. mais complexidade à notícia. aí. como essa do "aí". aí. o caminhão-baú que enguiçou na pista da direita da Anhaia Mello -sentido bairro: só consigo ficar. aí. mas não me aguentei. aí. que "O mercado espera um crescimento. a chocadeira. que o sujeito soltará.Aí 03/08/2014 Peço perdão ao professor Pasquale se invado. que "O mercado espera um crescimento de 1% em 2014". numa almofada de coloquialidade. o novo disco. aí. Mas se ele diz. aí. irritando a garota. na Raposo Tavares. se sobrepor à informação. numa ou noutra muleta. pro sujeito manter. na Anhaia Mello. aí. Eu tinha que me manifestar. parado no trânsito ou me movendo. o "aí" também consegue. aí. Entendo que não deve ser fácil falar ao vivo. as tramoias do Putin. a pé. do Gilberto Gil. aí. dos sambas do Gil. na porta do cinema enquanto espera. mais de dez anos– não aparecia uma moda. aí. esperando o momento. aí. pois desde a explosão do gerúndio –lá se vão. aí. aí. aí. aí. aí. aí. ele às vezes tem que se escorar. ele amacia a frase. aí. aí. e sempre que estou. sobre separatistas na Ucrânia. a impressão que temos é que ele teve acesso a um só dado e nos transmitiu. com muito mais propriedade do que eu. o seu próximo "aí". o "aí" parece dar. aí. uma garota com quem vai sair. não como. Tenho pensado muito. Mas assim como o ininterrupto sobe e desce da mandíbula pode acabar. aí. um soluço fonético. como advérbio. aí. sobre o "aí" e cheguei à conclusão que ele exerce. aí. depois do gerúndio. aí. "Tem Serramalte?" "No caso. aí. aí. justamente por ser mais discreto. o "com certeza" e. Lembra muito o outrora poderoso "no caso". Teve uma época. parece que ele analisou. É essa falsa profundidade. de 0. aí. viu expectativas de 0. aí. o "aí" vai estar acabando. aí. veio. agora. no caso. aí. várias planilhas.1% em 2014". que me deixa especialmente irritado. Ouso dizer. mas acho que o problema é sério. quase inaudível aos ouvidos. aí.4%.3%. numa cama de pensão. aí. aí. Ou o Brasil acaba. aí. Não quero ser alarmista. de 1. aí. Com certeza. em que o brasileiro era incapaz de responder uma pergunta que não começasse. com "no caso". ele se multiplica em nossas bocas como percevejos. Aí . Invisível aos olhos. é." "A próxima avenida já é a Brasil?" "No caso." Depois do "no caso". de 1. com o "aí" ou. aí. que o "aí" é mais perigoso do que todos os modismos anteriores. de 1%. não. com o Brasil. fez seu próprio balanço e chegou à conclusão. o gerúndio.6%. aí.8%. de que o crescimento esperado é em torno. o "aí". prefeito. pago meus impostos. não? O senhor afirma que. não deveria ser ajudado. se todas as casinhas derem lugar a prédios altos. prédios altos no miolo dos bairros. quando os tapumes de obras viárias estampavam o slogan "São Paulo crescendo. que me remete ao Maluf. Saudades da época em que a rua era da Rota. tem essa pinta de pai em propaganda do Itaú Personnalité. a trafegar pelo acostamento. ao Kassab. a ultrapassar pela direita. São Paulo é uma cidade de vencedores. dos cidadãos de nossa pujante metrópole. contudo. como índios cativos. não de japoneses "black blocs" com bombas incendiárias não inflamáveis. Diz que São Paulo quer uma revolução "desde que não se mexa em nada". Proíbe. melhoraria o trânsito. Ora. Que saudades do doutor Paulo. percebi que por trás da pinta Personnalité se escondia um administrador démodé. como deixa claro a sua rejeição por 47% dos motoristas. eu trabalho. Isso. conduzo") é o lema da nossa cidade. O senhor não me conhece. deveria ser expulso. mas tampouco me apavorei com a sua vitória. que se perpetua no direito inalienável ao transporte individual. da economia. Depois das faixas. gerando empregos. Não votei no senhor. no miolo de outro bairro: é assim que a nossa cidade funciona. Eu me mudo pra outro prédio. Mentira! Quero uma revolução mexendo no cerne . tenho direito a uma varanda com espaço gourmet e vista para as casinhas geminadas. Desde que assumiu a prefeitura e começou com as faixas de ônibus. chama-se Fernando e traz o sobrenome Haddad. estimulando a construção civil. lá embaixo. o senhor quer nos botar em fila dentro de coletivos. o senhor aparenta ser de boa família. quero dizer. São Paulo não pode parar". quero dizer. ao Habib's: três marcas das quais São Paulo pode se orgulhar. o senhor me vem com este Plano Diretor. intensificando o aquecimento global. Se o cidadão não conseguiu sequer comprar um carro. OK. o trânsito vai piorar. "Non ducor duco" ("Não sou conduzido. Apesar de vir do PT. sim. O senhor me acha reacionário. entre outras coisas.Caro Fernando Haddad 10/08/201410h00 Quem te escreve aqui é Espírito Paulistano. em vez de valorizar a livre iniciativa dos bandeirantes. mas. dos nossos problemas.P. Espírito Paulistano. Sem mais. e qualquer semelhança entre as mesmas e opiniões de pessoas vivas ou mortas é apenas uma boa razão para eu me mudar pra Reykjavík. menos quero. E. * Obs. numa metrópole. corremos o sério risco de ver.: Este é um texto de ficção. As ideias do E. Há questão mais séria. . em alguns anos. caso haja algo de Personnalité por trás de todo esse ranço da FFLCH. como fez o Kassab ao criar cupons padronizados para todos os valets da cidade. escute-me: se vossa excelência continuar a priorizar o transporte público em vez do individual. uma pequena diminuição na distância entre ricos e pobres nesta cidade –e tudo o que eu. se seguir criando espaço para as bicicletas e empregos para craqueiros. não representam as crenças do autor.P. se continuar a negociar com movimentos populares e a limitar a atuação das construtoras. subscrevo-me. do que os valets? Senhor prefeito. é pobre perto de mim. ela dá um gritinho de ódio. do "avô". lá pela 15ª tentativa. "Leio" é maneira de dizer: ela vira as páginas aleatoriamente. Até que. mas talvez seja um ovo frito". Ela olha a tampa. bebo uma água direto da garrafinha e.'2001 . à frente do espinafre. posso tentar? Termino a água num gole e vou tampá-la. (Talvez a maior de todas –empatada com a escuridão. A tampa cai: uma. mas minha filha é mais rápida: arranca a garrafa da minha mão direita. com o mesmo entusiasmo que me arrebataria numa final de Copa: vai começar o grande desafio da tampa de rosca. com o intuito estritamente científico de analisar as consequências físicas e psicossociais do impacto com o solo–. Na quarta. Não é fácil.) Cada vez que a garrafa tomba. outra hora na sua mão. como desgruda. seja uma ovelha voadora– para se vidrar na tampinha. "au-au". arremessar ao chão todo e qualquer objeto que consiga agarrar.Uma Odisseia no Espaço' 17/08/2014 Com a minha filha no colo. três vezes. ela percebe que há algo errado. no chão. uma hora isso tá na garrafa. Enquanto "lemos". Ela me olha. duas. da "pantufa". como gruda. parece uma nuvem. a tampa da esquerda e engatinha até o meio da sala. filhota. do "au-au". "pantufa". Suspira. tenta deixar a garrafa de pé. A garrafa está ali. depois de cada gole atarraxo a tampa vermelha na garrafa. desconfio agora. mas não . "isso eu não sei o que é. Sabe que o jogo não está ganho. diz seu olhar. sentado no chão da sala. com as duas mãos. leio um livro. já acostumado aos pequenos atos de vandalismo a que uma criança de um ano se dedica – basicamente.Uma Odisseia no Espaço". Não demora para que ela se canse da "bola". Ela segura a garrafa na diagonal e tenta encaixar a tampa. mas não desiste. Coloca a tampa de lado e. ela consegue. Que coisa incrível. "avô". olha a garrafa e olha pra mim. do "astronauta" –e do que. parada no meio do tapete de sisal como o monolito no deserto em "2001 . A gravidade é sua inimiga. que o mais perigoso vem a seguir. vai pousando o indicador nas figuras e eu fico falando "bola". "astronauta". explodem os metais. mas minha filha tem outros planos: com um tapão. futura arquiteta. com a minha ansiedade. lança longe garrafa e tampa. toca "Assim Falou Zaratustra". Eu aplaudo de volta a pequena gênia. em banhá-la em cobre. Penso em guardar a garrafa. vai levando em direção à garrafa. colocá- la no alto da estante. A tampa fica em cima da garrafa. é em câmera lenta. digo. Meio tortinha. cientista. mas não cai.) Finalmente. . "bola". Em algum lugar. a partir daí. medalha Fields. Ela levanta um pouco a tampa. engatinha pra perto de mim e fica batendo o dedinho no livro. "avô". e tudo. mas fica. ouro nas barras paralelas. "au-au". Ela pega a tampinha ao seu lado. Tchanaaaaaam. com os olhos marejados. (Sutis são os dilemas da paternidade. "olha só o que você conseguiu!". condená-la ao fracasso. ela solta a tampa. Olha pra mim. Dum-dum- dum-dum-dum-dum. "ovo? Ou será uma ovelha?".demonstra temor. A tampa roça a boca da garrafa. reverberam os tímpanos. não rosqueada. Ela bate palmas e ri. aberto sobre o tapete. Tenta de novo. Não quero pressioná-la para o sucesso nem. "astronauta". Tchanaaam. A garrafa balança. Não sei que cara fazer. "pantufa". né?". não. porém. disse a coruja. * A coruja estava no forro do telhado." "Na-não". "Não foi no teatro Amazonas. e percebeu que vários dos seus espinhos haviam se soltado durante o sono. angustiada.. "Poxa vida".". "mas eu voei com as araras e. "Ah. onde fazia o maior sucesso com seu visual loucão -era muito cool ser amigo de um porco-espinho. que animação. clubes ou raves. andorinha. "Não visitou o museu de antropologia?! Desculpa. mas você não- foi-pro-Mé-xi-co! Só falta me dizer que depois dos Andes cê não passou por Buenos Aires. Um dia ele acordou às seis da tarde." "Não. respondeu a andorinha. como de costume.... mais escasseavam os convites para as noitadas: o que gostavam no porco-espinho era justamente o seu visual loucão. se encolhendo entre as asas. E no México? No México. você visitou o museu de antropologia.Três fábulas monterrosianas 24/08/2014 Era uma vez um porco-espinho que adorava a balada.. mesmo sob o risco de ficar careca. geralmente.. dona coruja! Tô voltando da minha primeira viagem pelo mundo! Eu cruzei a Amazônia e os desertos mexicanos. que constatou carência de vitamina D e recomendou banhos de sol pela manhã.. com um fio de voz. claro. Toda noite ele ia a festas.". sem tirar os olhos do livro. se alguém se aproxima. lendo Proust. Quanto mais caíam seus espinhos. andorinha. as hostess o barram na porta. Acontece que o porco-espinho era incapaz de acordar cedo e decidiu não abrir mão das baladas. cortou a coruja.". comentou a coruja. admitiu a andorinha.. vi o sol se pôr atrás dos picos nevados dos Andes. Hoje. ele exala amargura e corre pro mato. "Nossa. cheio de espinhos. ofegante. "Em Manaus. fiz amor no céu vermelho da aurora.. crente que quem sabia das coisas era . pois.". ninguém mais o chama pra nada. sobre o mar azul do Caribe!" "Veja só". quando entrou a andorinha. pelo menos. ele vaga sozinho noite adentro e atende pelo nome de gambá -quando atende. você foi no teatro Amazonas.. passando saliva na pata e virando a página 987 do livro. O porco-espinho procurou um dermatologista. confessou a andorinha. "Na verdade. pra tomar um chá com medialuna num daqueles lindos cafés europeus. então pediu licença e foi fazer seu ninho. bem cedo. deve ser ótimo ser uma perereca tão grande!!" "Incrível!" "Mãe. "Nossa. a rã fez as malas e se mudou para o brejo vizinho. às quais ela responde com azedume e rispidez. mãe. . "É rã!". A rã estava prestes e xingar e exibir o dedo médio. exclamou uma delas. se eu comer bastante mosca eu vou ficar desse tamanho?" Na segunda. mas os comentários das outras foram mais rápidos. "Uau. onde é tratada com todas as deferências devidas à maior perereca já vista. ela dizia. que perereca enorme!".a coruja. Um domingo de manhã ela estava no brejo vizinho pegando umas moscas pro almoço quando passou por uma família de pererecas sobre uma vitória-régia. dedicando as piores patadas às pererecas mais pequenininhas. com um sorriso no rosto. que seguia lendo Proust -agora. * Nada irritava tanto a rã mais pequenininha do brejo quanto ser confundida com uma perereca. cerrando os dentes. toda vez que a confundiam. É como se. Umas mulheres que eu não consigo aguentar por três meses e que me acham um mala. sou fã do Truffaut. "bom dia. O problema é que eu e o meu pinto não temos a mesma formação. o agá de Tábatha? Ou é no primeiro? Não sei... domingo de manhã. tivesse entrado em outra perua escolar. nem tchuns. sei lá. durante a infância e a adolescência. mas adianta perguntar pra ele? Ele não me ouve.. essa é pra casar. Senão. salto alto e muito perfume. também. eu entendi finalmente por que que os meus namoros não dão certo. eu quero que ela chame Luiza. meu pinto tivesse sido desatarraxado de mim. tipo. no Santo Américo.. Mas as mulheres que o meu pinto escolhe são todas Waleskas ou Jéssicas ou Tábathas. mas ele se finge de morto. Não. Aí eu vou no shopping trocar um presente que eu ganhei de aniversário. Eu sou de esquerda. dessas com agá no segundo T. eu disse. mas o meu pinto é de direita. O meu pinto sabe. pra ter uma filha chamada Luiza. mulheres bacanas. É no segundo T. ele parece um cachorrinho quando os donos voltam de viagem. muito pelo contrário.Dupla personalidade 31/08/2014 Eu descobri. se eu tiver uma filha. são duas visões de mundo radicalmente diferentes. e ido estudar no Dante. em homenagem ao Tom. já o meu pinto. Eu sou professor universitário. antes de eu pegar a perua e ir pra Waldorf. O problema. Quantas vezes eu já não apresentei mulheres pra ele. tipo uma peruazinha de controle remoto. a escola antroposófica que eu estudei. doutor. vou votar no Maringoni pra governador. rabão de cavalo loiro. chega a vendedora de unha vermelha. amigão. com certeza. Só pode ser. todo dia. pra comprar o pacote completo da Mostra e ir até na animação muda do Uzbequistão. como é que explica? Pra você ver como a gente é diferente: um dia. . doutor. diz. doutor. Ele gosta de umas mulheres de argolão dourado. no Bandeirantes ou. só pra pintos. eu sou a Kátia. posso tá te ajudando?" e pronto. . porque às vezes eu acho que esse negócio de ele querer me contradizer em tudo é uma fase de negação. não pode ser fase: eu tô com 35 e ele é assim desde a adolescência. Quem eu tô querendo enganar.. Fui eu que eduquei o meu pinto e eu sei o que ele leu na juventude. É grave. uma terapia familiar.Eu tava pensando: e se a gente tentasse uma terapia de grupo. Será que é isso? Não. eram todas loiras platinadas. É. se a gente pensar que eu sou o pai do meu pinto e que. tem alguma coisa ali. na rua: aquelas mulheres pequenininhas dentro daqueles carrões enormes. ele precisa me matar pra achar a individualidade dele. tinham cara é de quem quer ir pra Vegas andar de conversível vermelho. E como eram as mulheres na Playboy. tipo. porque ele tira a minha atenção do caminho e me obriga a olhar as mulheres dentro dos SUVs. doutor? O erro foi meu. na Sexy e na Penthouse? Tinham cara de quem quer ter uma filha chamada Luiza em homenagem ao Tom e ir na Mostra ver animação muda do Uzbequistão? Não. Vegas. tipo um complexo de Édipo. Leu Playboy e Sexy e Penthouse. doutor! Conversível! Eu vou votar no Maringoni! Todo dia eu vou pra faculdade pela ciclovia e todo dia o meu pinto quase me derruba da bicicleta. claro. doutor? . eu e ele? Ou melhor. não vai mudar. Ele pira. com unha vermelha e rabão de cavalo. hoje. digamos. Numa das primeiras telas do Miró. A sociologia também se ocupou do cocô. Norbert Elias mostra. você fica escrevendo bobagem. Salvador Dalí.Um ganso novo. Não vou entrar em detalhes. alguém a leva pro quarto e troca sua fralda. o clássico que mais versa sobre o cocô é provavelmente "Gargântua e Pantagruel". carambolas: falemos sobre cocô. é cocô). do Rabelais. (E também com o xixi. Freud afirmou que o cocô é a primeira obra de um ser humano. há movimentação pela sala. a criança repara que o cocô gera certa comoção social: adultos mudam de expressão. Aristóteles e Platão. mas o assunto aqui. é cocô. o meio do jantar. "A Fazenda". em seu "Diário de um Gênio" faz descrições minuciosas dos . Bobagem? Einstein fazia cocô. bem emplumado". bolas. hoje.500 anos. que representa a fertilidade e a ligação do homem com a terra. a partir do século 15. Angela Merkel faz cocô. com elegância e erudição. cocô. Trata-se do "Caganer". os que têm a biblioteca organizada por ordem alfabética com a lista atualizada no Excel. os que comem a calda antes do sorvete e perdem as tampas de todas as "Bics". Já os que esperam um bom quorum. Em "O Processo Civilizador". Minha mulher bem que tentou me dissuadir: "Antonio. uma figura importante do folclore catalão. Ora. há. no centro de uma paisagem rural. serão os econômicos. o solo em que florescia o pensamento ocidental era adubado por Sócrates. Há 2. com um capítulo inteiramente dedicado às formas de se limpar. Na literatura. Os meninos que mal sentem vontade e já vão logo se aliviando serão os futuros perdulários. mudaram a relação da humanidade com o cocô. os que seguram até. como a decadência da nobreza guerreira e o surgimento da sociedade cortesã. Bem pequenininha. o pum e os arrotos. depois ninguém mais te leva a sério". Sim. só digo que o método mais elogiado envolve "um ganso novo. já vou logo avisando: o assunto aqui. um menininho fazendo cocô. bem emplumado 07/09/2014 Pudibundo leitor. bem emplumado". os compara aos chifres dos rinocerontes e menciona algo sobre o cone ser a forma preferida de Deus –masisso. diz mais sobre o cocô do Dalí do que sobre as predileções de Javé. as imagino na privada e quase consigo me proteger de suas desoladoras belezas. Às vezes. sem saber que é um campeão? Viu. Todo dia. encaro a multidão num cruzamento e penso: "Todos esses fazem cocô.. quando a ressaca ou a melancolia removem dos meus olhos o "insulfilm" da normalidade. Passai. sentado sobre a própria glória. triste. até o dia em que não defecardes mais. Quem será esse sujeito. como o cocô pode ser instrutivo. lírico. ." Às vezes.próprios cocôs. no aeroporto. pudibundo leitor. pobres mortais. cômico.. quando cinco aeromoças da KLM atravessam meu caminho sem me dirigir sequer o branco dos seus olhos. há sem dúvida um cujo cocô é o mais rápido de todos. provavelmente. é fácil se vingar de um cronista: basta atear fogo às suas palavras ou – vingança das vinganças!– dar ao fruto do seu trabalho o mesmo fim que Gargântua daria a "um ganso novo. penso: qual será a velocidade com que sai o cocô? E penso: entre os 7 bilhões de seres humanos sobre a Terra. Às vezes. não se enfeze. passai e defecai em paz. até? Não? Achou tudo isso uma grande bobagem? Ora. "Ente. só pensando no absurdo que era estar continuamente sob o jugo daquela juba. foram dormir. * Era véspera de Natal e duas mariposas ficaram girando em volta da lâmpada até tarde. com seu sobretudo. o jacaré ouviu a explicação da coruja e as súplicas de seus companheiros silvícolas. Quando amanheceu. mal o coro suplicante terminou de ecoar por entre as copas das árvores. só com aqueles olhos melífluos pra fora d'água. ora amarelo. ente.. a qualquer momento. a caminho da lâmpada.. emendou a outra. do lado de lá da janela. gritou o coelho. olhou pra esquerda e. a fofa. "Toda coloridinha. "Querem a paz na floresta?" "Siiim!" "Querem parar de sofrer com a supremacia leonina?" "Siiiiiim" -e. capaz de destronar o autoungido rei dos animais: o jacaré. nas bolas de vidro. a primeira mariposa passou pela árvore e se viu refletida num enfeite vermelho. ora verde. com seu sobretudo. que coisa ridícula!". Boiando no rasinho. elas viram. Daí em diante. em toda a floresta. caçoou uma mariposa. os animais passaram a viver revoltados. ora vermelho. "Se achando o próprio arco-íris". exultante. ora dourado. suas olheiras e suas ideias subversivas. suas olheiras e suas ideias subversivas: "Como vocês podem se achar felizes se são paus mandados do leão? Como podem se achar livres se só fazem o que permite o leão? Como podem dormir tranquilos se correm o risco de. A coruja. serem devorados pelo leão? Abaixo a ditadura leonina!". responderam todos. a engoliu inteirinha. ora prateado. Até que. uma borboleta. Parou. Depois. ficou ziguezagueando diante da árvore.Fábulas monterrosianas II 14/09/2014 Vivia a floresta na mais densa calmaria até aparecer a coruja. "Apoiada!". bradou a gazela. admirando seu reflexo. o jacaré arremeteu contra a coruja e. como não havia ninguém. num bote certeiro. puxou o tatu. zombou a primeira. Depois de um caloroso debate. ente. coruja presidente!". Na noite seguinte. então. "Bravo!". organizou uma assembleia.". "Vocês querem que eu ajude?" "Sim!". do outro . olhou pra direita. "Ah lá. chegou-se à conclusão de que havia um único bicho. "Que que cê tá fazendo aí desse lado da árvore?!" "Nada! Tô subindo pro lustre! E você.. foi chamada de freak. ontem. Como estávamos no neolítico. a fofa. "Nossa." Dito isso. também.. e aquela borboleta. elas voaram até o alto da sala e ficaram a girar em volta da lâmpada. uma galinha pôs um ovo de ouro. * "Mundo vil. toda coloridinha. da agricultura. mundo tacanho!" (o ornitorrinco a bradar) "Todos me chamam de estranho Mas e o pepino do mar?!" . do desenvolvimento do comércio e da invenção do dinheiro. tava fazendo o que lá do outro lado?!" "Nada! Subindo pro lustre..lado da árvore. a galinha foi tratada pelas outras como uma aberração. hein?!" "Coisa ridícula. da agricultura. As duas tomaram um susto. bem antes do domínio das técnicas de irrigação." "Se achando o próprio arco-íris." * Numa manhã do neolítico. deixando 200 ovos de ouro e nenhum descendente. surgiu a segunda mariposa. bem antes do domínio das técnicas de irrigação. do desenvolvimento do comércio e da invenção do dinheiro.. expulsa do bando e morreu só e triste. ) Anos mais tarde. amigos. Senhor. Da sala. Sei que reclamo de barriga cheia. Afinal. mas para deixar o céu mais azul e a grama mais verde. fogem de balas e leões. faz sol lá fora. na caixa de "Funflakes". 99% das pessoas despertam pra vidas bem piores do que a minha. Acordar. se tiverdes tempo. além de tudo. esse sol da primavera que não está aí para solapar ninguém. mas não encontro nada horroroso por lá. como no parque em que corriam as crianças loiras. quem quer sair da cama às 6h da madrugada pra estudar adjuntos adnominais e alcalino-terrosos? (Melhor ficar adjunto do travesseiro. não nos impede de reclamar da nossa dor de dente. Acordar é a . seja estapeado pelo despertador. passei a acreditar que o sofrimento viesse dos freelas chatos a que eu tinha que me dedicar logo depois do café: a matéria "10 programas nota 10 neste Dia da Criança". Acordar continua sendo uma pequena tragédia. não é "pura diversão!". Gosto de escrever a crônica. pra revista "Kids". amor. no fundo de uma caixa de cereais –"Funflakes é pura diversão!". contudo.Garagem 21/09/2014 Acordar é uma pequena tragédia. Passam os dias a apertar parafusos. pensava que o problema fosse a escola. Tenho saúde. dividido entre a preguiça e a culpa. Agora. sempre abro os olhos com um profundo sentimento de injustiça: por que já?! Por que eu?! Tende piedade. como que embalado por alcaloides-celestiais. uma churrasqueira e. Hoje é quinta. já livre da gramática e da tabela periódica. Seja cutucado pela luz. Quando eu era adolescente. dai-me mais cinco minutinhos –e abençoai. vêm os gritinhos da minha filha. tento amaldiçoar alguma tarefa enfadonha que supostamente me aguarda na primeira esquina depois da escova de dentes. no entanto. dia de começar a crônica. um capítulo sobre sustentabilidade na produção de celulose pro livro comemorativo de 20 anos de uma fábrica de guardanapos. virando de um lado pro outro na cama. o inventor da "função soneca". cruzam montanhas atrás de água. Um terremoto na Conchinchina. a revisão dos textos publicitários a serem estampados sobre a imagem de crianças loiras correndo num parque. que se arrasta por aí com a cabeça baixa e um olhar superior. Uma vez acordado e de banho tomado. existir me parece um programa bem razoável. escreveu Leminski. é no motor de arranque. não faço esse tipo. Olha.minha dor de dente. "um homem com uma dor". . aliás: acho que o que move essas casmurrices é muito menos um arraigado desencanto do que um apurado senso estético. eu não faço o tipo blasé. Desconfio desses tipos. O meu problema não é no carburador. como se a inteligência levasse inevitavelmente ao niilismo e o comentário mais sagaz sobre a existência fosse o bocejo. Não. "é muito mais elegante/ caminha assim de lado/ como se chegando atrasado/ andasse mais adiante". em bate-papos com leitores. dia 18. portanto. porém. Todo mundo teve infância. todo mundo tem amigos que a vida afastou. numa ficção de si mesmo) os assuntos que possam tocar os outros. mesmo quem não é pai ou mãe sabe o que é uma criança. a relação umbilical da literatura não se estabeleceu: pode escrever pro "Painel do Leitor". Acho o contrário: o cronista procura nele mesmo (ou melhor. crônica é conversa sentado no meio-fio. há muitas causas importantes sem voz e muitos calhordas com megafones –devo seguir falando da minha infância. o país é injusto.O agudo e a crônica 28/09/2014 Quando eu comecei a escrever crônicas. ainda mais concorrendo com jornalistas e especialistas que estão debruçados sobre a questão. um PM matou um ambulante com um tiro na cabeça. de um amigo que reencontrei. Digo que a chance de eu ter algo relevante a dizer sobre o assunto da semana é pequena. não discurso sobre um caixotinho). e é isso que importa) se mirar no que eu conheço: a minha infância. o PM foi solto. questiono minha promessa: o mundo é vil. dos primeiros passos da minha filha? Às vezes. me perguntam por que raramente escrevo sobre o assunto da semana. Serei mais profundo ou divertido. resistindo à tentação de arrastar o meu modesto arado por latifúndios pedregosos como a política. mas verdadeiro. (Sobre o silêncio de São Paulo . Nesta segunda. a economia. Se ao falar do meu umbigo eu não cutucar o seu. os primeiros passos da minha filha. um alienado. a crise no Oriente Médio. Não houve manifestações nem indignação por parte da população e Geraldo "quem não reagiu tá vivo" Alckmin. o chefe da PM. Na quinta retrasada. Também costumam perguntar. terei. 15 anos atrás. nesses bate-papos. prometi a mim mesmo que iria revolver somente a terra do meu canteiro. Esses questionamentos crônicos me voltam mais agudos nestas eleições. o amigo que reencontrei. enfim. (Como diz o mestre Humberto Werneck. mais chance de dizer algo verdadeiro (mesmo que pequeno. se por falar sempre de si mesmo o cronista não seria um autocentrado e. Todo domingo. deve ser reeleito no primeiro turno. que acusa Marina de ser uma proposta insensata por não contar com o apoio de senhores feudais como os que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas. alguns deles. . me vejo como um nobre gordo. Ano passado. contudo. em 1788. Naquela mesma quinta. Os senhores feudais que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas são da base de apoio da Dilma. não é nada insensata: a paladina da nova política apoia quem. Devo seguir falando da minha infância. foram 60. em SP? Alckmin. de um amigo que reencontrei. decapitados diante das câmeras de celulares. Outras vezes. 18. no presídio de Pedrinhas. foi assassinado o 17º preso. Marina. pelas esquinas –e que isso também é um ato político. pra abrir nossos olhos para a graça que passa despercebida.diante do assassinato. na França. de bala ou é decapitado do lado de fora e nos calabouços do castelo. Maranhão. porém. comendo codornas enquanto o povo morre de fome. dos primeiros passos da minha filha? Às vezes. ler Flávio Moura). só neste ano. acredito que sim: que a crônica existe para iluminar uns rincõezinhos assombreados do cotidiano. sua TV de tela plana. se reata com a ex. era ripa na chulipa e PIB na gorduchinha? Hoje. Quando a vida estabilizou. com o pibinho entre as pernas. Sem falar que os primos e cunhados da ex tampouco eram flor que se cheire –há rumores de que você só ficou com ela por oito anos porque os aparentados subornaram a ala da família que defendia a alternância do cônjuge. . Se não fosse eu te tirar do delírio e te trazer pro Real.Boda de urna 05/10/2014 Você tem até as cinco da tarde deste domingo pra decidir se continua casado com a atual. Será que as suas expectativas é que eram muito altas? Drummond. não tinha casa. todo dia. virado no overnight. Outro fator que vem minando a convivência é a família da moça. Quando aparecem prum churrasco ou pro Natal. Mas então. ímã de geladeira. Você está gordo e. a sua ex: "Volta pra mim. até gasolina do seu carro já levaram. Brasuquinho! Foi aqui que tudo começou! Eu te encontrei na sarjeta. você estagnou. no entanto. cantaram axé no videokê. em vez de decolar. Complicado. Dos mais próximos você gosta. Faltou um tchan. mas vai que é só uma fase? Vai que é possível reacender a velha chama e voltar à época em que. seu carro. Eis então que no meio da crise ressurge. tela plana e o escambau!". carro. repaginada e murmurante. janelas sem grades e ressonância magnética ao alcance de todos era uma viagem de LSD? O que você sabe é que esperava bem mais deste longo matrimônio do que a popularização do LCD. De fato. Não são poucas: nestes 12 anos. enchendo a cara de Old Eight com default. no início. Brasil? O casamento não tá lá essas coisas. se foge com a amante ou começa uma nova relação. se sente vazio. você se agarra às memórias. a cada quatro anos. Você conseguiu financiar sua casa (sua vida). muita coisa aconteceu. hein. você foi feliz com a ex. com a poupança ralada. houve alguma euforia: comeram frango com iogurte. sei lá. mas tem uns primos e uns cunhados que são casca- grossa. sempre some cinzeiro. Brasil? . juntos. juntas. você andava aflito. Pior é que não pode nem tomar uma cervejinha antes. ela respondeu –e você estranhou. os primos e cunhados de quem iriam se aproximar –primos ou cunhados desmatadores ou da indústria armamentista. Agora você tá aí. a boa nova que você procurava. depois. exatamente. "Foi a providência divina que me pôs no teu caminho!". o avesso do oposto do contrário. dilacerado entre o bege do presente e o cinza do passado –e foi aí que apareceu. ela arrebatou seu coração. Então. pra escolher uma delas ou apostar numa quarta. Não era essa.Por essas e outras. Vocês poderiam escolher. ultimamente. Prometeu vida nova e um relacionamento sustentável. com quem vai passar os próximos quatro anos da sua vida. você co-memorou. uma amante! Em poucos dias. O verde que. Você perguntou se isso era verdade e ela disse que não. era o contrário –depois disse que era o oposto do contrário e. Complicado. jamais! "Que mulher moderna! Que bom que você surgiu!". de longe. descobriu que ela ouvia salmos no iPod. era contra a descriminalização do aborto e não apoiaria o casamento gay. de perto recendia a mirra. parecia ser de frescor. hein. bêbado. indo encontrar as três. verde fosforescente. porque o TSE não quer que você decida. Deu porque. quem não depende dele. O sudeste é mais rico. sobre um tabuleiro. E o mensalão mineiro? E o escândalo do metrô? E a compra de votos pra reeleição? Nada disso conta? Não a ponto de escolherem outro candidato. mas se assemelharia àquele golpe em que. sob o PT. Ora. no Nordeste. no fim. vai? * . fechariam com o PT. evidentemente. mas sim a verdade ou a mentira. querendo nos enganar.O chapeiro e o dono da padaria 12/10/2014 As vitórias da Dilma. vê seus interesses representados pelo candidato. você tem que descobrir qual copo esconde a bola. Uma eleição não seria. É um voto racional. não precisa tanto de programas sociais -só quer menos Estado. É um voto racional. Candidaturas não representariam interesses distintos de diferentes camadas da sociedade.45% do Aécio no Sudeste. A mesma coisa vale para os 39. qual candidatura é a certa. uma escolha entre múltiplas propostas. Na boa: você não precisa ser marxista-leninista pra concordar que as necessidades do chapeiro são diferentes das do dono da padaria. do Aécio. o Nordeste não deu 60% dos votos à Dilma porque foi enganado por ela. Os mais ricos e escolarizados escolheriam racionalmente e votariam no PSDB. bolas. as condições de vida daqueles milhões de eleitores melhoraram. quais são as vazias. uma pessoa vai rolando uma bolinha e a escondendo cada hora sob um de três copos. E o mensalão? E o escândalo da Petrobras? E a inflação? Nada disso conta? Não a ponto de escolherem outro candidato. iludidos pelas "esmolas" e falsas promessas do governo. Essa ideia equivocada deriva de uma falsa premissa: a de que existiria o voto certo e o errado. quais estão vazios. enquanto os mais pobres e com menos anos de estudo. portanto. no Sudeste e a mesma divisão mostrada pelo Datafolha para o segundo turno ressuscitaram o velho preconceito de que pobre não sabe votar. boa para todos. Mantega se defendia afirmando que a padaria não está quebrando. quem mais se estrepará será o chapeiro.Na quinta. fiquei com a sensação de que os dois tinham razão e estavam errados. É a crise!. O que importa é que as pessoas estão bem. o Brasil manteve contínuos aumentos de salário e seguiu contratando chapeiros. que o PT está quebrando a padaria e. caiu três vezes! Era a crise. As planilhas estariam cheias de araminho e fita isolante. O que importa é que o balancete vai mal. se defendia Armínio. Armínio Fraga e Guido Mantega foram entrevistados por Miriam Leitão. Armínio rebatia que a crise já tinha passado e as outras padarias estão melhores que a nossa e acusava o governo de só manter o emprego e o salário nesses níveis na base da gambiarra. E eu. com vocês. caso isso aconteça. vaticinava Armínio. alegando que na hora do dilúvio é mais importante botar a bacia embaixo da goteira que consertar o buraco no teto. numa livre tradução. Com a gente. Uma hora o teto vai cair. nunca caiu. na GloboNews. sorria Armínio. se orgulhava Mantega. . se defendia Mantega. mesmo nesse período difícil. que não sou chapeiro nem dono de padaria. E lembrava que. alternadamente. O que Armínio dizia era. só está com pouco movimento por conta da crise mundial. sorria Mantega. . e pergunta: "Cara.Tem certeza de que não vai escrever sobre política? . .Não tenho nada a ver com isso.Me interesso muito.Absoluta. ué? Escreve sobre a histeria na internet. .Você contaria uma piada no meio de um bombardeio? .Tô vendo um viés político nessa imagem. . Vamos mudar de assunto. Eu tava sossegado lá no "Cotidiano".Sério? Qual? . .) .Política e chocolates 19/10/2014 . cutucando o meu umbigo e pensando na morte da bezerra.Um homem entra num bar com um sapo na cabeça. . -Não dá.Qual o problema de ser leve e divertido? . Não tive muita opção. . .Uau.Por que? Você não se interessa pelas eleições? .Não.Contaria. não sei. se a pessoa não morrer no bombardeio. Acho que eu falei isso mais pela piada: olha eu aí tentando ser leve e divertido.. o problema é esse. O barman olha pra ele.. Sou um dos histéricos. .Escreve sobre isso. (Sei lá. Eu rejeito fervorosamente o outro. Foi tipo um Pinheirinho editorial. quando o jornal me arrastou pra cá. que que é isso?" Ao que o sapo responde: "Pois é.Você defende fervorosamente um lado? . assustado. mas tá difícil encontrar leveza e diversão.Brigado por avisar. . A minha ordem de despejo dizia que eu seria instalado aqui pra contribuir de forma "leve e divertida" com a cobertura.Mas é o caderno das eleições. ela corta os pulsos. começou como uma hemorroida". pequena.. . que é de folha de estanho.(Come chocolates. em São Paulo. . Bolsonaro. .Isso é piada velha.Vai fazer o que. ..Até ver os deputados federais mais votados: Russomanno. suja menos o peixe. Pior do que notícia velha: não dá nem pra embrulhar peixe.Não tô. Deito tudo para o chão. com esse espaço? . como tenho deitado a vida. O segundo turno é em uma semana e você precisa tomar uma posição.Dá. Agora. né? .. Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. A piada tá num jornal. . pequena suja. Eu sou meio pessimista em relação ao ser humano. . a gente já tem quem nos proteja. . Come. come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e.Isso é notícia velha.Até quando? . Você é mais otimista? . . Aliás.Você tá tergiversando. não.Entendi.. posso? . se o Ponto Frio atrasar a entrega da TV ou um homem quiser casar com outro homem. Tô de um lado do muro. Vixe Maria. mas não empolgado o suficiente pra falar pro povo pular pra cá. .Eu era.) . .Fernando Pessoa é foda. Sabe o que eu acho? Que você tá em cima do muro. é mais curta que notícia. em Brasília.Vou colar uma estrofe de "Tabacaria".Desculpa.Prefiro tomar uma cerveja. Você não vai mesmo falar sobre política? . ao tirar o papel de prata. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. no Rio. então. sim..Por mim.Não. Foda.. . A partir de 2003. apesar de alguma melhora. acredita que vivemos . soy contra!". mas enquanto estiver acompanhando a apuração. só a você. vira e mexe. me perguntei: será que ele faz xixi pelo sovaco? Ou ejacula pelo bigode? Mas não divaguemos. são acariciados por heterossexuais com socos. Fazia um número de stand-up racista e alegava estar combatendo a censura do Estado e a opressão do politicamente correto. Estado menor e superavit maior. um lado meu torcerá secretamente para que ele ganhe. no início da noite. gays. Os negros seguem pior que os brancos. 12 anos atrás. contudo. Esse meu lado (que não revelarei a ninguém. hoje. continuamos profundamente desiguais. da turma que prega "direitos humanos para humanos direitos". as mulheres ainda ganham menos que os homens. cada vez mais ensandecida. com a segurança que só a profunda ignorância traz. quando estava é babando a ancestral demofobia. Afinal. gays não podem se casar e. A direita raivosa.A oposição fluorescente 26/10/2014 Não vou votar no Aécio. caro leitor. Falava "as zelite" e "meus deretcho" fingindo zombar do Lula. voltemos ao assunto. quando ouvi aquele homúnculo cometer essa afirmação. em rede nacional. não estou me referindo a quem é a favor de independência do Banco Central.) A chegada do PT à Presidência. Tal reação conservadora me parece desproporcional aos avanços dos últimos anos. (Aliás. pontapés e lâmpadas fluorescentes. Quando digo direita raivosa. de crítica ao poder. índios e pobres sob uma papagaiada libertária. que "órgão excretor não é órgão reprodutor". que deseja "afogar esses nordestinos" e diz. "si hay gobierno. mulheres. tipo. teve um pernicioso efeito colateral: por ser um partido historicamente ligado às minorias. permitiu à direita mais tacanha camuflar seu preconceito contra negros. confiante na sua discrição) teme menos os próximos quatro anos sob um governo do PSDB do que os efeitos anabolizantes e lisérgicos que outro quadriênio petista pode causar à direita mais raivosa deste Brasil varonil. o cara vinha com uma piadinha jurássica do tipo "o melhor movimento feminino sempre foi o movimento dos quadris" e queria aparecer na foto com um sorrisinho transgressor. Estou falando dos Bolsonaros e Felicianos. o que gritará em 2018. não é só a situação que corre o risco de perder o pé da realidade: a oposição também precisa. machismo. em cada esquina. . em SP. que a revista "The Economist" chamou de "revolução do cashmere". caso a Dilma ganhe? Com o PSDB no poder. teriam de assumir que seu ódio não é nada além do velho racismo. com razão. porém.num misto de Venezuela com Sodoma. Abaixariam seus dedinhos exaltados e. com os erros do governo. Pior: os inegáveis casos de corrupção e outras patacoadas do PT fazem o discurso retrógrado chegar àqueles que não comungam de seus preconceitos. mas se indignam. de tempos em tempos. Se na passeata de apoio ao Aécio na última quarta. a multidão gritava "viva a PM!". cofiando os anacrônicos bigodes. a ameaça de revolução cubana chefiada por travestis- negras-maconheiras-aborteiras. homofobia e demofobia do nosso Brasil varonil. Sem alternância de poder. cair do seu troninho. os paranoicos delirantes não teriam como ver. digo eu. Veja. fazendo os colonizadores branquelos tremerem mais do que as tripulações de Amundsen. num cinema dentro de você! Semana passada fui fazer o exame médico periódico na Globo. As entradas aumentam. portanto. Fios brancos. São grossos e escuros. Daqui pra frente o corpo só piora". com aquele bom humor característico de médico da firma. "Não passarão!". aliás. com uma pinça na mão. uma vez que o "trago" nunca me trouxe nada além desses pelos grossos e escuros.Ao pé do olvido 02/11/2014 De uns tempos pra cá. até fincarem suas bandeiras no ponto mais austral do meu ser: o dedão do pé. é mais o que eles representam: são um teaserzinho da morte. já faz muitos anos. disse que eu precisava me cuidar: "Desde os 35 que a natureza te abandonou. que qualquer notícia capilar é necessariamente uma notícia ruim. A doutora tirou . Alguns vêm lá de dentro do canal auditivo. depois o peito-. Shackleton e Scott sob o inverno antártico. como cipós saindo de uma gruta em busca do sol. já podem ser encontrados tentando colonizar outras regiões mais ao sul deste corpo que habito. inclusive. nessa abinha que fica em cima do ouvido e que o Google acaba de me informar chamar-se "trago" -nome curioso. o problema do cabelo e dos pelos brancos nem é tanto estético. Aos 35 é que ela começou a brincar comigo. aniquilação total. depois a barba. Outros brotam na borda. Decidi trucar aquele pessimismo: "Na verdade. onde trabalho. O cabelo cai. devagarinho -primeiro a cabeça. A doutora. Confesso que recebi a novidade pilosa com animação. Estou com 37. antes não mais frequentes do que albinos numa multidão. Afinal. em breve. Alguns de seus representantes mais intrépidos. não. tem algo mais natural do que a decadência?". começaram a nascer uns pelos nas minhas orelhas. Ao que parece. a natureza não me abandonou. um trailer anunciando um filme cujo fim sabemos qual é. o objetivo dos alvos aventureiros do norte é ir descendo. Fiquei com raiva da mulher. são agora uma população importante na demografia da minha cabeça. surpresa: quem poderia ser mais baixo astral do que uma médica em exame periódico da firma? Ora. Do nada. . insensível à batalha que está sendo travada entre Eros e Tânatos. dos 35 em diante vamos nos curvando nessa lenta e inapelável reverência à "indesejada das gentes".os olhos da minha ficha e me encarou. um roteirista em exame periódico da firma. deveria dizer. a penugem clara engrossou e escureceu. uma parte de mim resolvesse declarar independência do resto do corpo e entrar na puberdade. as costas doem e o colesterol não vai lá muito bem. onde os colonos caucasianos já ameaçam a sobrevivência da castanha população autóctone. a leste e oeste de minha consciência. Foi como se. recebi animado os novos pelos nas orelhas. O melhor é que essa adolescência tardia acontece justo lá no hemisfério norte. Jamais! Os cabelos embranquecem ou caem. mas nas minhas orelhas há viço. como os pelinhos do meu bigode e do púbis. lá se vão 20 e tantas primaveras (ou. com queratina e melanina. é verdade. outonos?). Minha mulher. doutora. já beirando os 40. Por essas e outras. Ao pé do olvido. elas adolescem. insiste para que eu arranque os novos pelos. há vigor. ela apontaria o dedinho pras pinturas e comemoraríamos. 5) Uva. feliz. Pra ela. Pra que serviria isso? Pra nada. quando perguntamos "Cadê o sapo?". "Eeeeee!". * Fico pensando se não é estranho apresentar o mundo como se fosse uma fazendola cercada por brejos. Senão. ultimamente). por que apareceria em tantos livros e desenhos? 3) Apesar de ser o bicho mais frequente. * Eis a hierarquia do mundo. segundo minha filha: 1) Galinha Pintadinha (a música "Mariana conta um" é a favorita. ela aponta e a gente aplaude. contudo. com um ou outro ponto de savana africana. 7) Tirar todos os . Vacas pastando. "Cadê a vaca?".Balancete 09/11/2014 Baseada nos livrinhos e filminhos vistos neste primeiro ano de vida. mas qual seria a alternativa? Fazer livrinhos em que uma máquina de lavar se apaixona por um fogão? Produzir a animação "Um dia no trânsito" ou "Piquenique no reator"? * Minha filha nunca viu um sapo ou uma vaca na vida real. o sapo não é o líder da bicharada. minha filha pode tirar algumas conclusões: 1) A humanidade é um empreendimento essencialmente rural. estrela maior da natureza. o que não lava o pé). É subordinado (assim como eu e minha mulher) ao rei dos animais. ponto máximo da criação: a Galinha Pintadinha. (As janelas da nossa casa é que devem estar com algum defeito. 4) Silene.) 2) O ecossistema preponderante é o brejo e o animal mais frequente é o sapo (o cururu. galinhas ciscando e porcos chafurdando são a vista mais comum de qualquer janela. "Cadê o Abaporu?". 6) Palavra Cantada. é só uma observação. abstrações. perguntaríamos "Cadê o Miró?". mas diante dos livrinhos. não passam de traços. 2) Mãe. 3) Mamadeira. Se em vez de bichos tivéssemos mostrado livros de artes plásticas. "Eeeeee!". "Cadê o Rembrandt?". Talvez seja possível solucioná-lo com o controle remoto. felizes. é quatro. 10) Comer lasanha quando nós estamos comendo abobrinha com frango. 6) Ficar com as mãos meladas. 10) Pai. é Ana. de manhã.) * Eis a lista dos desgostos: 1) Ir pro berço. quase empatado com a Galinha Pintadinha. viva Mariana!". 7) Ir pro colo quando quer brincar no chão. 2) Enxaguar a cabeça. meses cantando mentalmente "É um. é dez. 9) Banho. Dez elefantes incomodam muita gente: uma Mariana incomoda muito mais. é sete. é nove. dias. 5) Não ter acesso imediato a todo alimento que qualquer pessoa estiver comendo num raio de 20 metros. semanas. é cinco. é dois. . 4) Trocar a fralda antes da mamadeira. mas se escrevo isso teremos sérios problemas aqui no brejo.sapatinhos do armário. 9) Comer abobrinha com frango quando nós estamos comendo lasanha. 8) Ir pro chão quando quer ficar no colo. numa ascensão meteórica e inacreditável -pensar que apenas seis meses atrás eu era tratado como o estagiário da mãe!-. é oito. Difícil é passar horas. eu venho em segundo. 3) Sair do banho. é seis.) * Uma coisa que aprendi neste primeiro ano: ter filho não é tão difícil quanto dizem. viva Mariana. 8) Colocar todos os sapatinhos de volta no armário. é três. (O problema é menos a comida do que ficar fora do programa. * (Mentira. De uma hora pra outra. "Dentista amanhã. bastava gritarem lá pra dentro: "Aí. 16:30". tá rolando laptop! Tá meio quente!" e voltar pra pasmaceira. Os neurônios responsáveis pela sensibilidade das coxas deviam estar todos deitados em redes. assim que telefones passaram a vibrar no bolso. Só eram convocados ao trabalho quando você dava um colo ou usava o laptop. levei a mão ao bolso da calça e percebi que estava sem o celular. o(a) ex-namorado(a): brrrrrr. escreve um amigo (que chegará em 25) no WhatsApp: brrrrrr. Faz sentido.12 cm2). entrassem em parafuso ao serem subitamente alçados à categoria de telex da epiderme. era o emprego mais fácil do mundo. É mais ou menos como pegar.54 cm2 de pele (se você tiver um iPhone. avisa o Google Agenda: brrrrrr. "Chegando em cinco". avisa que deitou alguém!". depois de 300 mil anos exercendo sobre a Terra a única função de nos levar de cá pra lá. galera. galera. enquanto você lê esta crônica. fumando no narguilé e assoviando Bob Marley. escreve por SMS. desses que nos acometem nos sonhos um segundo antes de virarem pesadelo- "minha coxa teve uma alucinação". sabe-se lá porque. Mesmo nessas horas. postam no Facebook. Nada mais justo que esses 72. Há anúncios em todas as páginas da "Gazeta do Córtex": . surgem no nosso telefone. caso tenha um Samsung Galaxy. até então praticamente surdos- mudos. tagueando. "Aí. sei lá. o seu nome: brrrrrr. são 91. Agora mesmo. "21 provas de que Zeca Pagodinho é a pessoa mais legal do Brasil". Imagino o rebu lá no cérebro.Nas coxas 16/11/2014 Senti o alerta de mensagem vibrar. uma revolução acontece na sua massa cinzenta. o Maguila e dizer: a partir de agora você é o âncora do "Jornal Nacional". "Acordado?". "Céus". Então surgiram os celulares e esses neurônios obesos se viram obrigados a saltar do coxilo pro Iron Man -sem escalas. as coxas viraram um receptor tátil de todas as tranqueiras que. no meio da madrugada. pensei -não sem um ligeiro terror. com uma vibraçãozinha. o clitóris e a glande? E a parte do cérebro responsável por eles. numa tarde abafada de 2014. no Twitter do lobo frontal: "A coxa é o novo olho". de pequena choupana cheia de redes se transformará num ABC Paulista neuronal? Seremos capazes de ler braile com as coxas? Gozar com as coxas? Prever a chuva. sobrecarregada. zumbi. medula. cérebro". Ficarão mais sensíveis do que as pontas dos dedos. Já há quem arrisque. dizer "tô sentindo que cê não tá legal hoje" com as coxas? Sei lá. chefe pentelho. os mamilos. dar a temperatura."Coxa contrata neurônios. estafada. faixas de ônibus e de bicicleta são pintadas nos nervos. O que sei é que enquanto nada disso acontece. . terminações nervosas. Áreas: epiderme. minha coxa alucina. para que as células consigam chegar mais rápido ao novo emprego. conferindo: "Acordada?". recebendo sinais do além. baias são abertas. Novos escritórios estão sendo construídos. Ou talvez seja só o cérebro. Fico imaginando o que acontecerá com esses centímetros quadrados do nosso corpo em uns cem mil anos. Ele é uma escolha. Fico imaginando a estudante de 15 anos que casou às pressas com o primeiro . não porque tiveram medo de ir pra cadeia. Como participo da campanha. em casa ou num orfanato. Das pessoas de quem mais discordo. Afinal. elas são contra o direito de as mulheres interromperem a gravidez pela mesma razão que eu sou a favor: respeito à vida. raro. a segunda opção me parece. Muitos bebês que surgiram mais por conta do desejo de um adulto por outro do que pelo desejo dos dois de terem um filho acabam se transformando numa grata surpresa. e uma gestação interrompida até o terceiro mês. ele passa a ser um filho planejado: se não com anos. (Dava pra ver nos olhos dela a indignação: "O nariz não tá funcionando! Eu tô tendo que respirar pela boca! É ultrajante! Faça alguma coisa!") É preciso todo o amor do mundo -e uma profissão que não te obrigue a acordar às seis da matina.gl/5bo1x9). Mas se um casal (ou uma mulher) decide ter esse filho não planejado. necessariamente. sagrado: assino embaixo e reconheço firma em cartório. ao menos com alguns meses de antecedência. acho que o mínimo que posso fazer é falar sobre o assunto."). criar um filho não é nada fácil ("Mas se não os temos.. não uma vítima do nosso arcaico Código Penal. Justamente por pensar assim. numa criança mal-amada. de longe. as com quem mais concordo são as contra a descriminalização do aborto.. A noite passada acordei às três e às cinco da manhã pra consolar minha filha. chorava no berço. que. acredito que uma criança só deve vir ao mundo porque seus pais quiseram.pra ver graça numa hora dessas. gripada. Como já sabia Vinicius de Moraes.#precisamosfalarsobreaborto 23/11/2014 O título desta coluna é um manifesto lançado na semana passada pela revista "TPM" (goo. Não estou dizendo que uma gravidez indesejada desembocará. Entre um bebê que cresce sem amor. a menos ruim. Uma vida é algo precioso. sem dúvida. estudo. Tucanos e petistas. O cérebro humano. morrem tentando abortar ilegalmente por este Brasil afora. sem-teto e playboys: por respeito à vida. esperando que algum dia alguém os leve consigo? Um feto de algumas semanas que não vem ao mundo é uma coisa triste. Ser feliz não é nada fácil. que jogaram a toalha. no mesmo quarto que o bebê. que chega ao mundo com o ônus de ter esculhambado a vida dos pais? Deus do céu: existe coisa mais terrível do que um orfanato? Bebês e crianças sem pai nem mãe. crentes e ateus. concebe romances e pinturas com mais facilidade do que nos faz feliz. inventa aviões. dia sim. esse computador genial e incompetente. dia não.tem grandes chances de nunca alcançá-la. Que o digam. amor. para ganhar uma merreca que será inteiramente convertida em Hipoglós e fraldas da Mônica.namorado. já misturado às buzinas que ouvirá a partir das sete. Imagina só uma criança que ninguém quer. Santos Dumont. mas uma criança que cresce sem amor é uma tragédia -comparável a das meninas e mulheres que. Hemingway e Van Gogh. largou a escola e foi morar num puxadinho na casa dos sogros. não o digam. Fico imaginando o motoboy ouvindo o choro às quatro. . um teto. um motoboy de 18. precisamos descriminalizar o aborto. ou melhor. Uma pessoa com todas as condições para a felicidade -comida. Fico imaginando o futuro dessa criança. na imprensa. conforme nos apaixonávamos por mulheres inteligentes. tem vários amigos no clube. sensíveis que somos. no Homer Simpson. meu bem". não tem político a quem pedir socorro e periga não emplacar sequer reclamação na seção de cartas do jornal. se é apenas um homem sensível lutando para ver respeitados certos direitos básicos de sua pacata heterossexualidade. eu comprava um patins hoje mesmo. Fôssemos uns machistões. Vejo as pessoas deslizando pelas ciclofaixas como se tivessem asas nos pés. Alguns dos nossos anseios têm a ver com o Homer: outros tem a ver com a Marge -ou com a Lisa? Por exemplo: andar de patins. Se você é LGBT. Agora. tem vários clubes de amigos(as). diante das quais. se eu fosse gay ou sueco. muitos. mas nunca tive coragem de assumir esse desejo. por exemplo: não pode. com medo de ir de moletom e chinelo à padaria e pôr em risco o meu casamento. A menção à regata. não haveria problema. que viemos perdendo aos poucos. soprando a brasa da inveja e acendendo um pensamento: nossa. Usar regata. posso sentir o vento batendo em meu rosto. poxa vida. você tem representantes no congresso. paulatinamente. Teríamos casado com mulheres frágeis e tolas. se você está no meio do caminho. fomos fazendo concessões. Pronto. Sou apenas um rapaz latino americano. De que nosso sonho é deixarmos de ser homens sensíveis e irmos nos transformando. Acontece que não sou. com medo de saracotear sobre rodinhas e pôr em dúvida a minha masculinidade. e nossa vida . de pochete: divórcio. da adolescência pra cá. elegantes e criteriosas. falei. um pobre diabo espremido entre o feminismo e o machismo. Eu sempre quis andar de patins. Que "direitos básicos" são esses? Ora. Calçar tênis de corrida. ao tênis de corrida e à pochete pode dar a impressão de que as reivindicações deste desassistido grupo pendem para a ogrice. na imprensa. Não é por aí. que só nos diriam "amém.Direitos do Homem (sensível) 30/11/201402h57 Se você é um ogro machista e homofóbico. Sair por aí. socialmente: nem pensar. o hífen solitário no meio do Fla-Flu. você tem representantes no congresso. sair por aí de pochete. quem sabe. um dia -por que não?-. A divulgação dos nossos anseios. superiores às infantilidades latinas e libertos das amarras do gênero. conquistar o apoio de um já eleito? Será que o Jean Wyllys não se interessaria em defender a causa? Em ouvir nossas reivindicações e incorporar HS. nos apaixonamos pelas bisnetas da Simone de Beauvoir: aí. escolha o gênero em que se sentir mais a vontade e possa até. iniciada aqui. centroavantes. é o segundo. Fôssemos uns seres evoluídos. patins fica difícil. Difícil. conseguir emplacar um Chapecoense x Criciúma como programa pra noite de quarta fica difícil. não ligaríamos para as opiniões dos nossos pares: compraríamos os patins (reais e simbólicos) e sairíamos por aí. nós queremos ser vistos como mui machos. O terceiro é elegermos um representante. pituquim". à sigla da diversidade sexual: LGBTHS? Prometemos ajudar na luta por um mundo livre. queridão. mas não impossível. . realmente. Mas não.conjugal seria um eterno domingo de Rider e latão: "Mais salaminho. "Sim. A união é o primeiro passo. pegadores: aí. todos pimpões. Ou. onde cada um ame quem quiser. pitucão?". Mas não. as iniciais de "homem sensível". não deviam ser totalmente desvinculados do tal Rodrigo. rincões de minh'alma que nem com cinco décadas de análise conseguirei acessar. compraria um pão de queijo e leria o meu jornal. "Rodrigo!" -agora já não mais uma pergunta. envergonhada. Eu seguiria andando. uns cinco metros adiante. Dava mesmo pra entender o choque -caso eu fosse o Rodrigo. e sim uma afirmação. isso não era muito promissor. Quem sabe eu nem precisasse falar nada? Quem sabe bastaria ela me ver de perto pra sorrir. acontece". escafedeu-se? Agora. sem titubear: eu não me chamo Rodrigo. assim. Pensei menos num estelionatário que tivesse dando um golpe na venda de um carro do que num namoro de fim catastrófico. parei de empurrar o carrinho de bagagem. talvez. há. Quem sabe o Rodrigo tinha prometido casar. depois de 37 anos sobre a Terra. a julgar pela voz trêmula. numa terça de manhã.Embarque 07/12/2014 "Rodrigo?!". olhando pra mim.na sala de embarque do aeroporto. Se o primeiro "Rodrigo?!" foi um "Meu Deus.. mas. ela insistiu. "Tranquilo. tinha um cabelo preto. pela boca cerrada e pela sobrancelha franzida. no entanto: "Rodrigo. Um vento frio soprou no meu estômago: senti como se tivesse cruzado uma aduana invisível que separa o embarque de Congonhas de um livro do Kafka. Havia dor e susto ali. olhei em volta. algo posso afirmar sobre mim. Como eu não era -e continuo não sendo-. aspectos meus que desconheço. achei que. um belo dia. circundados por rugas profundas -vincos que. antes que eu terminasse a busca. soltou a mulher. Há. mas havia afeto também. suspeitei. resolvi desfazer a confusão e fui caminhando em direção à mulher. 50 anos. é você?!" -e me deixou confuso-. mas. farto e olhos espantados.". Confuso. A mulher. passarem a aposentadoria juntos num sítio e. porém. Ela aparentava uns 40. atravessaria o corredor que separa o Franz Kafka do Franz Café. se o segundo "Rodrigo!" foi um "Sim. não pensava assim -e... é você!" -e me deixou com . olhei pra trás. ela o encontra -ou acha que o encontra. "Nossa.. ter filhos. A um metro da mulher.". sem dúvida. do nada. sentindo o cheiro. você me perdoa?". pra Maringá. ela enxugou as lágrimas. finalmente. o terceiro "Rodrigo. o calor e os tremeliques daquela estranha. disse "Brigada" e. com aquele absurdo: "Perdoo". já pegando o RG para o caso de precisar desfazer. Em vez disso. grandão.. o mal-entendido. ela veio pra cima de mim. mas nem consegui sacar o documento: num salto. me deu um abraço e começou a chorar: "Rodrigo! Ah. Rodrigo!". chorar. atendendo à última chamada para o embarque do voo 1047. oficialmente. com aquela mulher. imóvel e perplexo. baixinho: "Rodrigo.. uma facada talvez.medo-. a havia feito sofrer. Olhei no fundo dos olhos dela e acabei. mordidas. hein?" -que me encheu de culpa." tava mais pra um "Você. Esperei unhadas.para receber o troco. espernear e esperar noites a fio: agora estava ali -ou. os soluços foram diminuindo. Aos poucos. era o que ela pensava. sumiu pelo portão nove. . Fiquei ali por um tempo. Fui chegando perto. pelo menos. O Rodrigo sem dúvida havia pisado na bola. Então ela se afastou. olhou pra mim e disse. olhou pro chão. "A luta armada não queria restituir a democracia. dizem os que querem minimizar cabos de vassoura com fios desencapados. Durante a ditadura. Estava no banco de trás do carro. pela coroa de Cristo. em casa. Centenas não sobreviveram. Meia hora mais tarde. li "Abaixo a ditadura!" num muro e perguntei pro meu pai o que significava aquilo. "O mundo estava polarizado". O relatório da Comissão Nacional da Verdade. Felizmente. Não vamos entrar no mérito de que muitos dos mortos e torturados sequer estavam na luta armada. nu. tendo passado pelos porões do Doi-Codi. instituir . que todos os torturados e mortos quisessem. sem filtros. publicado na última quarta (10). e o Brasil também. uma República Dominicana de Trujillo. cheguei. Não vamos entrar no mérito de que um golpe militar tende a radicalizar um pouco a postura da oposição. descobri que o ser humano não prestava. Então veio o golpe de 64 e aqueles que temiam por aqui uma improvável Cuba de Fidel nos impuseram a certeza de uma Nicarágua dos Somoza. descendo a 23 de Maio. aos 20 anos. "Ninguém ali era santo".Dar cabo 14/12/2014 Aos oito anos de idade. o mundo estava polarizado. pois apesar de essas histórias serem há muito conhecidas e documentadas. lívido. um Haiti de Papa e Baby Doc. mas instalar uma ditadura de esquerda". Apenas aceitemos. Meu pai. sendo violentada com um cabo de vassoura e um fio desencapado na ponta. traz o assunto novamente à tona. mas o embate ocorria dentro do campo democrático. cuja particularíssima pedagogia baseava-se no princípio de que as crianças deviam ser tratadas como os adultos. há quem ache que o melhor é deixar tudo pra trás. de fato. hipoteticamente. "Eram outros tempos". pelo pau de arara. milhares de brasileiros sofreram horrores semelhantes aos da minha prima. pela cadeira do dragão e por minha prima Julieta. me deu uma resposta bem detalhada. Verdade. apesar de boa parte de seus responsáveis estarem vivos. dizem os que acham compreensível deixar um ser humano pendurado a noite inteira de cabeça para baixo. Os anos de chumbo não são águas passadas: continuam a mover nossos moinhos de moer gente. Cabe a ele reconhecer seus crimes e prender os responsáveis. Do contrário. com mentiras. está sendo "revanchista"? Se você tem um pai. se você é assaltado e quer ver o bandido na cadeia. uma filha ou um irmão morto e quer ver os assassinos na cadeia. pior. com cabos de vassoura e fios desencapados. Ora. todo dia. mas. Mais ainda: aceitemos. estimulando as torturas e assassinatos que seguem acontecendo Brasil afora. está sendo "revanchista"? Pois por 21 anos o Estado brasileiro assaltou. estará não só desrespeitando a todos os que sofreram a sua barbárie.uma ditadura de esquerda. assassinou e violou os direitos de seus cidadãos: com Atos Institucionais. Ainda assim. "Revanchismo" é o termo que vem sendo usado contra os que desejam ver punidas as violações dos direitos humanos durante a ditadura. pelas mãos da polícia. . O Estado detém o monopólio do uso da violência justamente para garantir a lei: não pode agir ao largo dela. que eles quisessem matar todas as criancinhas brasileiras e comê-las com farinha. o Estado que os torturasse ou os matasse estaria cometendo um crime. hipoteticamente. Ontem. Jesus amado. eu ficava mordendo o zíper. O Douglas nem era muito meu amigo. Pois é. o Douglas me contou uma piada. "ah lá o negócio do zíper". ao lado da cantina. Então um servente que varria o hangar sugeriu fazer vários furinhos no lugar em que a asa costumava quebrar. resmungo. A asa não quebrou. Mexeram no projeto. Depois de um tempo. como ninguém jamais se preocupou em tirá-lo. eu tinha um estojo jeans com zíper. Minha mulher também não. fui a uma praia em Ubatuba. De vez em quando. foi ficando. Por que. depois me esqueço. desde 1988. então. na "Sessão da Tarde". Durante as aulas. mentalmente. ele respondeu: "Simples. titânio. Os americanos estavam construindo um supercaça e tinham um problema: nos testes. a asa sempre quebrava no mesmo lugar. guardo essa tralha na memória por tantos anos? Não foi um momento marcante. porque o espaço é curto e a piada é péssima. procurando o saca-rolhas numa gaveta da cozinha. como um desses filmes malas que reprisam todo ano. Os melhores engenheiros da Nasa foram chamados. Eu não guardei o araminho na gaveta. escumadeiras e abridores de lata. um desses araminhos de fechar pão. sinto os dentes meio que latejando. Na primeira série. É que encontrei. Vou resumir. e o cheiro (metálico?) daquelas algas fez com que eu sentisse nos dentes o mesmo latejar. Minha cabeça é uma gaveta cheia de araminhos.Araminhos 21/12/2014 Um dia. na quarta série. é a velha lógica do papel higiênico: nunca rasga na linha picotada". a cena é reexibida na tela da consciência. entre facas. Pareciam imantados. Alguns anos mais tarde. lembrei de novo da piada. Os furos foram feitos. A piada do Douglas é como esse araminho. usaram aço. Eu já achei péssima na quarta série e continuo achando péssima hoje. sentia os dentes meio que latejando. topo com uma praia cheia de sargaços. Quando perguntaram pro cara de onde havia tirado aquela solução bizarra. contudo. . pensei. Não me tornei engenheiro. eu avisei que a piada era péssima. brigadeiro ou fabricante de papéis higiênicos. Ou seja: ele deve ter caído ali um dia e. até diamante: nada resolvia. a areia estava coberta de sargaço. De tempos em tempos. dessas três caspinhas mentais que. Faz dez anos. as escumadeiras e os abridores de lata na gaveta. guardo essa tralha na memória por tantos anos? . Odeia tanto que chega a sentir gosto de peixe em alimentos nada piscosos. É raro. Gosto da Letícia.A minha amiga Letícia detesta peixe. Freud. Lembrar dela não é ruim. que não haja sentido algum -eu. mas e os araminhos? Por que. Desconfio. um pedágio mental que sou obrigado a pagar. por exemplo. que acredito que tudo tem um porquê e um como e um pra onde. pela primeira vez. os genes. que sou viciado em sentido. Biscoitos de polvilho. desde que ela me contou dessa alucinação gustativa. Jesus amado. mas acontece. que sempre que eu como biscoito de polvilho lembro da Letícia e da história do peixe. Mas ser obrigado a rememorar a história sempre que como um biscoito de polvilho me parece um desvio desnecessário. Qual o sentido dessas três insignificâncias. Darwin. aliás. a ressonância magnética e a semiótica: eles explicam as facas. espano da minha cabeça e faço pousarem na folha do jornal? Não tenho a menor ideia. ficam as colherinhas de café. Uma geringonça de espremer batata. Trata-se. Divisórias separam os garfos. o melhor de sua área: a faca de churrasco flerta com a espátula de silicone. Não aquele clima de cercadinho VIP da segunda. por fim. Uma festa do jet set . a escumadeira cochicha algo para o funil. talvez eu esteja sendo preconceituoso: por que "esculhambada"? Talvez. Stalin seria um bom patrono para a primeira gaveta. cada um é único. vendo cada coisa em seu lugar. Será que ainda temos a panela?). a dos talheres. a segunda é esporte fino. um ninho seguro para criar os filhos. de uma gaveta totalitária. Não há divisórias. as facas e as colheres grandes. o saca-rolhas conta uma piada pro descascador de cenoura. como a própria expressão aponta. uma faca de pão com o cabo derretido. A terceira gaveta também é uma festa. Bem mais interessante bater um papo com a faca de cabo .) A gaveta de baixo é diferente. É que o lugar comum. colheres de pau lascadas. Sei que a última frase soou meio clichê. ancestrais garfinhos de fondue. traz o conforto do reconhecimento –e eis aí a segunda parte dos sentimentos contraditórios sugeridos pela gaveta: essa tranquilidade desperta em mim a ânsia do rebanho. me tranquilizo: temos aqui um lar. é a mais organizada. festa boa. Se a primeira gaveta veste farda. o Grande Irmão assiste a tudo. Parece uma festa. através de uma pequena "Teletela". mas de jam session num hotel decadente. sem dúvida. porque ali não há sombra de padronização. Por um lado. Essa arrumação militar me traz sentimentos contraditórios. só que mais esculhambada. num escaninho perpendicular. Pensando bem. (Nunca fizemos fondue. Kafka saberia retratar bem seus horrores.Crônica de quatro faces 28/12/2014 A primeira gaveta. seja a da terceira gaveta. construído dia a dia –garfo a garfo– com o suor do nosso rosto. os garfos. as facas e as colheres de sobremesa. claro. mas um globo de espelhos. mesmo. Ali moram os utensílios que a gente não usa. Ali dentro não há qualquer possibilidade de dissenso: uma colherinha de café que resolva fazer companhia pras facas é imediatamente reconduzida ao seu compartimento. Todos se misturam. Lá no fundo não há "Teletela". Ou Orwell? (No fundo da primeira gaveta. um teto. contar vantagens sobre seu cabo de silicone. botam a gente comovido como o diabo. sem vislumbre de manjedoura ou cheiro de panetone: mas essas gavetas. taí uma questão que eu nunca consegui responder. três jogos americanos (diferentes). . Jacques Tati e Sócrates. mas esse conhaque. A quarta gaveta é um limbo. no andar de cima. Itamar Assumpção. saindo da organização platônica da primeira gaveta.queimado e ouvir a história de sua cicatriz do que aguentar a espátula da Spyce. É como se. até chegar à indeterminação total. onde tudo perde o sentido. fôssemos descendo rumo à desordem. E a quarta e última gaveta? Pois é. Britney Spears. um "achados e perdidos" onde se misturam o manual de instruções da geladeira. Tom Cruise e Cristiano Ronaldo estariam na segunda gaveta. Perdoem terminar assim essa crônica natalina. araminhos de fechar pão e uns hashis de japonês delivery ainda com telefones de sete dígitos. na terceira. um toco de vela. uma caixa de palitos Gina. Naquela terça terçã. não há a alternativa da rendição. Eram amigos. Fechei os olhos.2014: noves fora. do início da abertura em Cuba ou da pá de cal no Orkut. não lembraremos da Dilma nem do Aécio. contudo. primos. havia no Mineirão cinquenta e oito mil cento e quarenta e um torcedores –e esse um era eu. eu senti uma aflição profunda e não inteiramente desconhecida. cada torcedor tem a ilusão delirante de ser capaz de mudar o destino do jogo. Absurdo: essa talvez seja a melhor palavra pra descrever o que se passou naquela tarde. ali. Parecia que ia cair o presidente da CBF. atordoado–. mudar o Carnaval pra agosto e transferir a capital brasileira pra Buenos Aires (ou Berlim?). o choque foi passando e deixamos de tocar no assunto. folheei mentalmente meu caderninho de angústias e descobri o que era: uma bad trip de ácido. iam cancelar o "Domingão do Faustão". houvesse me acertado a testa. foi aquele Deus nos acuda. tios. aos 29 minutos do primeiro tempo. foi o ano do 7 x 1". do pouso da sonda Rosetta ou da ascensão do pau de selfie: engoliremos em seco e diremos. Khedira recebeu livre próximo à marca do pênalti e chutou no canto direito do gol brasileiro. mas tenho certeza de que lá longe. no entanto. quando olharmos pra trás e nos perguntarmos "E em 2014. hein? Que que aconteceu mesmo?". Num estádio. Tudo bem. . Perguntavam como tinha sido a experiência. A coisa tinha sido tão absurda que não seria fora de lugar se um daqueles chutes da Alemanha. Quando saí do estádio – perplexo. num futuro distante. a presidente da República. sete 04/01/2015 Logo depois da tragédia. marcando o quinto tento teutão. "Ah. se eu estava vivo. in loco. mas queriam mesmo era conferir. em casa você também acha que pode influenciar no resultado passando do SporTV pra ESPN e da ESPN pra Band e da Band pra Globo e da Globo pro rádio AM. Quando. Nos últimos meses. Afinal. meu telefone começou a tocar. meu pai. Resta render-se aos entulhos mais fedidos do seu subconsciente e esperar que passe o efeito. 8 de julho. trocando de cueca ou comendo amendoins com a mão esquerda. Você sabe que está embarcando numa viagem ruim. em vez de fazer o oitavo gol. sabe que vai piorar e sabe que não há nada que possa fazer para alterar o destino. ainda aflitos diante da recordação. desconfio. enquanto a torcida alemã cantava.mas todo ser racional sabe que a mandinga funciona bem melhor de corpo presente do que via cabo ou satélite. no finalzinho. três. cinco. O equilíbrio só se restabeleceu nos últimos minutos: a torcida brasileira vaiava em uníssono. Um. estavam era com pena. tentando dar uma força. sete –e um nosso. dois. . Absurdo. criando uma cacofonia bisonha. E se trocássemos de lugar? E se cantássemos o hino de novo? (Ou Aquarela do Brasil?) E se vaiássemos? Durante os 60 lodosos minutos que se seguiram ao quinto gol. como a azeitona no dry martini (deles). O Mineirão parecia um gigantesco formigueiro mijado. a plenos pulmões: "Brasil! Brasil! Brasil!" –e tenho certeza de que eles não estavam sendo irônicos. quatro. cada torcedor fez o que achou necessário. seis. eram filhos de argelinos. Se não houvesse imigrantes na França. A extrema direita francesa demoniza os imigrantes. Zinedine Zidane é filho de argelinos. suspeitos do ataque ao jornal "Charlie Hebdo".Terrorismo lógico 11/01/2015 Said e Chérif Kouachi eram descendentes de imigrantes. zoo gorda.) O "Charlie Hebdo" zoava Maomé. Eis aí uma demonstração de apoio da extrema direita francesa à liberdade de expressão - e aos erros de concordância nominal.. Eu zoo negão. O ataque terrorista fortalece a extrema direita francesa. Membros de uma minoria são suspeitos pelo ataque terrorista. Said e Chérif Kouachi são suspeitos do ataque ao jornal "Charlie Hebdo". Zinedine Zidane é filho de argelinos. Membros de uma minoria são suspeitos do ataque terrorista. Said e Chérif Kouachi. zoo geral! "Je suis Charlie!" Humoristas brasileiros fazem piada racista. e as pessoas os criticam. Os filmes do David Lynch não fazem muito sentido. Zinedine Zidane é terrorista. "Charlie Hebdo" fez piada com religião. Said e Chérif Kouachi. A extrema direita francesa está por trás do ataque terrorista. (Este último parágrafo não fez muito sentido. Said e Chérif Kouachi sabiam jogar futebol. Olha aí no que dá defender minoria. se tomarmos o artigo em francês e o substantivo em inglês. não teria havido ataque ao "Charlie Hebdo". eram filhos de argelinos. e terroristas o atacam. na França. A esquerda francesa defende minorias. Marine Le Pen é a líder da extrema direita francesa. Muçulmanos são uma minoria na França. Criticar piada racista é . A esquerda francesa é culpada pelo ataque terrorista. "Le Pen" é "O Caneta". Este último parágrafo é um filme do David Lynch.. zoo as bichinhas. suspeitos do ataque ao jornal "Charlie Hebdo". Numa democracia. Os terroristas que atacaram o jornal "Charlie Hebdo" usavam gorros pretos. O "Ocidente" usa drones.terrorismo. A derrota brasileira para a Alemanha foi por 7 x 1. tais como simulação de afogamento. Drones não usam gorros pretos. É justificável o terror contra o "Ocidente". "Black blocs" não são terroristas. O ataque terrorista contra o "Charlie Hebdo" foi no dia 7/1. é desejável que as pessoas sejam livres para se expressar. Numa democracia. é desejável que indivíduos ou grupos sejam ofendidos. O Incrível Hulk é verde. O 7 e o 1 devem ser imediatamente presos e submetidos a "técnicas reforçadas de interrogatório". Todo abacate é verde. A editora Abril foi pichada por meia dúzia de jacus. A editora Abril é Charlie. O "Charlie Hebdo" foi atacado por terroristas. A polícia os trata como terroristas. Ataques com drones matam inocentes mundo afora. privação de sono e alimentação via retal. Por via das dúvidas. Ataques com drones não são terrorismo. . "Black blocs" usam gorros pretos. O Incrível Hulk é um abacate. "Black blocs" são terroristas. Os "black blocs" têm o direito de tocar o terror. Os terroristas que atacaram o jornal "Charlie Hebdo" usavam gorros pretos. o 6 e o 8 e o 0 e o 2 também. Algumas dessas expressões podem ofender indivíduos ou grupos. "Quando (). "(.) encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.. Olha aqui o livrinho da vaca! Como é que a vaca faz? Muuuu! "(. que que cê tá pondo na boca? Dá aqui! O papai já falou! Não é pra pôr o Lego na boca! "Quando certa manhã Gregor Sansa (). água é na boca. Marina! Abre a boca! Dá aqui.. não adianta chorar agora.. né? "(. né? Calma. Brinca mais com a Peppa. "Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos (). "Suas numerosas pernas.. coco! Água de coco? Tá com sede." Que." Quer a Peppa. não vou pôr filminho. Marina! É pra beber a água.. "Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos. hmmmmm.. Marina! Não é pra rasgar o livro! Arrancou a chaminé do trenzinho. Olha aqui a boneca da Peppa. que delícia a água.. Não. ó só que legal! "Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e. vem cá.A metamorfose . molhou o vestido todo.com barreiras 18/01/2015 "Quando certa manhã ()." Não quer o livrinho da vaca? E o livrinho do trem? Piuíííí! "(.) viu seu ventre abaulado." Não. não é pra pôr nada na boca! Não gostei! Não. não vou pôr filminho. não tem cocô." Ah." Marina. encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. filminho é só depois do jantar. lastimavelmente finas em comparação com o . encontrou-se em sua cama metamorfoseado num (). Não é hora de filminho. não é pra virar a caneca! Marina! Não! Isso. no topo do qual a coberta (. (). né? "Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos.. Marina. Marina? Abre a mãozinha... Lego é pra brincar. Marina. dá! Papai já falou. marrom. Marina. ao levantar um pouco a cabeça ().. Não. abre? Abre a boca! Não é engraçado. Todo mundo lendo livrinho." Não. Isso! "Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e. Você jogou a Peppa na varanda. já falei. dividido por nervuras arqueadas. ó. agora é hora de brincar. Bota a Peppa na cadeirinha. ainda mal se sustinha. eu avisei. você sabe disso. o papai não vai pegar. o livrinho do trem! Piuíííí! Isso." Não. Marina! Que que o papai falou?! É. vamos botar uma roupa seca. filhota? Cocô? Deixa eu ver essa fralda.. pega a Peppa. Cadê a chaminé do trenzinho.)".) metamorfoseado num inseto monstruoso." Não. você pega a Peppa na varanda." Não." É. tá? Vamos pegar água.) no topo do qual a coberta prestes a deslizar de vez. .. "Meu pintinho amarelinho". "O que aconteceu comigo? -pensou"." Não chora.) na minha mão".. Marina..)".) do resto do corpo (.. o papai vai pôr o filminho.. Tá bom.)". Marina! Péra... tremulavam desamparadas (). "(. Marina.. "Na minha mão".. "(.) diante dos seus olhos".. "(... "(. Pode chorar à vontade.. "(. "Quando quer comer bichinhos". combinado? "(. Marina? Não... "Cabe aqui (. "Ele cisca o chão"." Aqui a Peppa.." Não grita.. (..) lastimavelmente finas em comparação com o volume (). Marina! "Suas numerosas pernas..) lastimavelmente finas em comparação com o volume do corpo.. aqui.. " (. "(." Que foi. "O que aconteceu comigo?".)".) tremulavam desamparadas (). aqui! Mas não joga de novo. Marina...)". .) em comparação com o volume.. Calma.. Não é hora de filminho.) tremulavam desamparadas (.volume (). Marina. lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo". "Com seus pezinhos". os incêndios. Pinheiros. geladeira. fogão. mas fazer o quê? Quarteirões e quarteirões abandonados pelos moradores.com. Vocês leram aquela entrevista que saiu com o antropólogo americano no final de 2015? Ele dizia que o homem pode atravessar longos períodos de escassez de energia elétrica ou mesmo de alimentos mais tranquilamente do que enfrenta alguns dias com as torneiras secas. O paulistano é como um eunuco num harém. Caminhões-pipa andam com escolta armada. computador. É como faltar areia no Saara. os ladrões parando o caminhão na frente dos prédios e levando TV. bombeiam a água que brota no fosso do elevador. É triste ver a Pompeia. o aumento! Ah. terno. O paulistano é como um priápico num leprosário. Isso explica os quebra-quebras. sei lá. a comparação não presta: no harém as mulheres são saudáveis. As pessoas estão se virando como podem: armazenam água da chuva. balas de borracha! Ah. fazem gato na rede e em galerias pluviais. e toda madrugada alguém é preso com uma britadeira perfurando algum ponto da cidade. gás lacrimogêneo! Hoje. sofá. É irônico que a água tenha acabado numa cidade cortada por dois rios (sem contar todos os outros rios que canalizamos para fazer –o quê? Adivinha?– avenidas). É muita gentileza da oposição dar todo o mérito da seca aos tucanos. Ah. A falta de água pega em algum nervo exposto do inconsciente coletivo. o trânsito! Ah.São Paulo. Não. o eunuco é que não. em 25 de janeiro de 2016. os arrastões. Eles têm . 25 de janeiro de 2016 25/01/2015 E pensar que em 2013 todo mundo foi à rua por causa das passagens de ônibus. isso tudo soa tão ingênuo como uma pornochanchada diante do pornhub. Não. aniversário de 462 anos de São Paulo. Perdizes e tantos outros bairros tomados pelo Exército. reativa alguma paúra herdada dos nômades no deserto. É irônico que a água tenha acabado justo na cidade mais rica do país mais rico em água de todo o mundo. em Dubai. o desperdício. o governo assegura que a seca não afetará a economia. parabéns! Teus meses de seca são um prenúncio do futuro e um exemplo para a nação! Continuemos sendo a locomotiva do Brasil: seguindo em frente. o estímulo ao transporte individual. passando por JK. a impermeabilização do solo. FHC. ancestral. O país seguirá exportando carne e soja e derrubando florestas e matas ciliares e comprando carros e levando o progresso e a impermeabilização a áreas de proteção ambiental. mas a falta de água é um projeto coletivo. Lula e os militares. sem olhar pros lados. E ainda tem gente que vê descontinuidade em nossas políticas públicas?! Para o bem do povo e felicidade geral da nação. de Washington Luís a Dilma Rousseff. Paulo Maluf. em seus 462 anos. . sim. multipartidário. É a burrice acumulada de várias gerações: o desmatamento.um papel importante. completados neste 25 de janeiro de 2016. interestadual. soltando fumaça e arrastando todo mundo atrás. São Paulo. aquém. 38 parecia muito e 37. com sentimentos contraditórios. sei lá por que. não. hesitante e assustado. numa mesa de bar. "25. e se o seu quarto ainda guarda algum vestígio da escola (uma coleção de latinhas? Um cone de trânsito? Uma bandeira da Jamaica?) é o caso de . "seis. seria: "26. vou fazer seis". vou fazer sete" é menos uma constatação óbvia do que uma saudável aspiração. exatamente?. como pode. Trinta anos é uma idade marcante. vou fazer cinco". eu tinha certeza. queria fazer 25". até chegar a 20 -acho que ninguém. nessa fase. Pense no Mario Bros. na época. ou melhor. Pelo menos. Trinta e cinco eu tive já faz muito. a diferença entre Mario Bros e o sexo. avança-se lentamente. Afinal. a esta altura do campeonato -qual altura. Lembro que.a pessoa ignorar quantos anos tem? Quando você é criança. tanto tempo para que eu já pudesse estar com 40. mas não tanto. no mínimo. Na adolescência. eu achava de uma obviedade tacanha esse "vou fazer". A resposta sincera a quantos anos você tem. ou. me dei conta de que eu não sabia a minha idade. Agora é inegável que você ficou adulto. "Seis. adulto como aqueles anciãos de 30 que usam gírias "de pai". mas ser adulto ainda é estranho. e fica evidente que há certas coisas que só dois aniversários fazem por você. Céus. a diferença entre 14 e 16 é. mas hoje entendo: o desejo de crescer é uma parte fundamental do software com o qual viemos ao mundo. dançam de um jeito engraçado e parecem ter aprendido a se vestir em algum sitcom da Warner. se eu fizesse 40. a não ser dopado por doses cavalares de nostalgia e amnésia. a idade é um negócio fundamental. Você aprende a mostrar nos dedos e passa uma década dizendo "quatro. gostaria de ir além. A escola foi há séculos. queria fazer 24".Trinta e quantos? 01/02/2015 Outro dia. muito tempo. iria ouvir algum comentário dos mais próximos. e voltar à adolescência. Trinta e seis parecia pouco. geralmente. pense no sexo. É o dado mais importante depois do seu nome. Que era alguma coisa por aí. vou fazer sete" e assim por diante. me soava meio estranho. eu iria perceber. "cinco. Dos 20 aos 30. a idade continua sendo importante. interveio minha mulher. Antonio! Você tem 37!". parei de contar. outros com os dentes mais brancos. separando e resmungando no Facebook. meus amigos de 20 e muitos. a esta altura do campeonato -qual altura. "Trinta e sete. 32. né?) . Mas aí você faz 35 e entra numa zona cinzenta (ou grisalha?) em que idade não significa mais muita coisa. casando. A impressão que eu tenho. uns com mais dor nas costas. (É em 2015 que a gente tá. Trinta e um. Meus amigos de 60 e poucos. meio brava com o meu lapso. se Deus quiser e não morrermos todos sem água e sem luz até agosto de 2015. lá no bar. é que todo mundo tem a minha idade. vou fazer 38. Trinta e dois? Quarenta e oito? Não sendo púbere nem gagá. você vai anotando. Trinta e sete. tão todos no mesmo barco.refletir seriamente sobre a sua autoimagem. exatamente?-. sem perder a conta. Deve ser por isso que. mas no mesmo barco. Ainda fiz as contas no celular. pra ter certeza. sem perceber. Era isso mesmo. trabalhando. filho. há quem diga que chove muito ou pouco e que há dor de dente e nas costas e tantas outras dores do mundo que o melhor seria não ser ou ser granito ou fumaça. esta frase não tem razão de ser. do "Cotidiano". eu vou te amar . Não sei nem por onde começar. Obrigado. há algumas regras que precisam ser seguidas. Carne. frango. camelo. Corinthians -lamento. mas é que as crônicas costumam ser pra mais do que duas pessoas. aí você decide. arara. Eu e a sua mãe vamos tentar mostrar um pouco de tudo. porque não sei ainda do que você gosta. como a via é de mão única.) Você era ninguém. filho. por exemplo. Cartola. (Se esta crônica não está sendo publicada hoje. Ah.Daniel 08/02/2015 Se esta crônica está sendo publicada hoje. Eu digo "acredite" porque não é exatamente um consenso por estas bandas ultrauterinas. essa é a coisa mais fantástica que pode acontecer com ninguém em todo o universo. eu digo para o seu alento: tem muito programa bom por aqui. Tudo bom. cidade. Andressa. Daniel. Esta aqui. mas. Daniel. mas. o que dá na mesma. acredite. é porque nasceu o meu filho. Um homem muito sabido chegou a dizer que o que todo mundo quer é voltar praquele lugar morninho do qual você acabou de sair. Eu não quis dizer que a gente não era ninguém. a quem mando o texto no fim da gravidez. Corinthians. Talvez ele tenha razão. por mais pluralistas que sejamos. como eu ia dizendo até ser interrompido pela visita inesperada de uns parênteses. se ele ainda não nasceu e esta crônica não está sendo publicada hoje. avestruz. mar. se esta crônica está sendo publicada hoje. Palavra Cantada. Corinthians. Se bem que. Andressa. por precaução. mas. agora você é alguém -e. Brincadeira. é porque você nasceu. massinha. Ramones. Andressa? Não. pensando melhor. o correto é "a gente não era ninguém"? Com a dupla negativa mesmo? Hmmm. peixe. Há quem fique na dúvida entre ser ou não ser. carvão. campo. uma vez que não será lida por ninguém além de mim e da Andressa. Afinal. nem todas. tinta. eu não quis dizer que a gente era ninguém. é porque ele ainda não nasceu. é pra uma pessoa só. Não sei se falo do Drummond ou do dedo na tomada. E muito a minha relação com o seu avô. Tudo bem. seja o que você quiser. mas vale muito a pena. É confusa. Weleda!)-. A vida também é confusa. Mas saiba que isso vai dificultar um pouco a nossa relação. verdade. costas e outros costados. Embora estejamos mais experientes depois da Olivia -duvido. se calo ou te compro uma bicicleta. crentes ou ateus. meu filho. desculpa qualquer coisa -e cuidado com as tomadas.mesmo que o seu avô te converta num são-paulino. corintianos ou são-paulinos. É uma escolha sua. Esta crônica tá meio confusa. E do seu avô. faz parte. alguns deslizes são inevitáveis. Mario Luiz. que em vez de pomada pra assaduras passemos pasta de dentes no seu bumbum (as bisnagas eram idênticas! Caramba. (Tá dado o recado. Você não existia. mas desde já peço desculpas por nossos inúmeros tropeços. . seja o que você puder. prometo que vamos fazer o que estiver ao nosso alcance pra te ajudar. por exemplo. dói dente. Daniel. É que é difícil esse negócio de dar as boas-vindas a alguém que chega ao mundo. agora existe: esse é o grande milagre diante do qual nos curvamos. Seja bem-vindo. chove.) Daniel. A última frase de que me lembro. seis meses e 429 caldos depois. Nada -e rápido. sanduíches e o celular pro passeio -pensando bem. o dono da besta anfíbia não sabia nadar. com um desespero que só aumentou o nosso: "Toby! Aqui! Aqui! Toby!". já era tarde. barriga de cerveja. e eu. tênis de corrida. corpo aberto no espaço". movido por uma dessas rajadas de empolgação que costumam insuflar os recém- divorciados pelos mares revoltos da solteirice -rediagramação dos pelos faciais. todo tatuado. moto-. eu voltava do passeio com dois amigos.é que dava pra amarrar uns sacos plásticos e levar água. Quando consegui me desvencilhar do velcro. Bela dupla. pela esquerda. correu até a beira da água e ficou gritando. De modo que. óculos vermelhos. fiquei ali. Num fim de tarde daquele verão. comprei uma prancha de surfe. o Fábio saiu de borboleta. o cachorro estava a uns três metros de mim. Aparentemente. Me coloquei do lado de lá da prancha e lembro de ter pensado. o Fábio e a Cla. num delírio de otimismo provavelmente causado pela overdose de adrenalina: . frutas. Quem me conhece sabe o oceano de distância que há entre mim -seis graus de miopia. vendo o monstro se aproximar. ao lado da prancha. tinha alugado uma casa na praia e. A Cla saiu no crawl. a uns 20 metros da praia. Na areia. talvez desse pra notar que eu não era do ramo. tentando atabalhoadamente soltar o lash do meu tornozelo. um desses ex-musculosos que parou de puxar ferro e ficou gordo -ou um desses gordos que começaram a puxar ferro e ainda não ficaram musculosos?-. um pit bull ensandecido corria em nossa direção. A vantagem de ir remando. ouvi os latidos. O dono do cachorro. foi do Fábio: "Pit bull nada?". pela direita. quando. antes de ser tomado pelo pânico. Às vezes. entrava com ela no mar e ia remando até uma praia deserta ao lado. Um longboard. desisti do esporte -mas não da prancha.e o surfe -"dragão tatuado no braço/calção.Toby tubarão 15/02/2015 Eu tinha acabado de me separar. além de ser visto numa prancha -como saberiam que eu não era um surfista de verdade?. frustrado e arfante. No fim do verão. Eu. se ele morder meu braço. O pit bull -Deus queira. A prancha. não teve a ideia óbvia de dar a volta ou passar por baixo do long. escorregava de novo -e. com minhas tenras bochechas a uns 50 cm daqueles caninos. talvez eu consiga afogar o bicho.e pensando se não era o caso de oferecer o mindinho.morreu de congestão depois de almoçar o dono e sair pra uma nadada numa manhã gelada de julho. me pego pensando: por onde andará aquela prancha? . O bicho chegou e começou a bater as patas na lateral da prancha. contudo. para minha imensa felicidade. eu não teria chance. ele tentava de novo. O pit bull. antes que ele optasse pela minha jugular. tentando subir. Eu perco o braço. sentindo o hálito da fera a cada latido -juro. Ele. O Fábio foi morar na Rússia. Uns 30 segundos depois. não conseguia subir na prancha. me mostrou o rabicó e saiu nadando pra praia. De vez em quando. a casa foi desalugada. se vendi. eu me casei. fiquei imóvel. Na terra. Na água. definitivamente. não lembro se dei. a vida"."Lutar no mar contra um pit bull até que não é tão ruim assim. A Cla teve bebê. suas patas escorregavam. no entanto. Anos mais tarde. uma questão que não pode ser varrida para debaixo do tapete: o que fazer com as cinzas? Nestes meus 37 anos de perambulações sobre a Terra. digamos. porém. mais higiênica. a ideia de passar a eternidade na altura do km 26. "Deus ao mar o perigo e o abismo deu/ Mas nele é que espelhou o céu". dos ossos e vamos direto ao pó para o qual. Foi no caldo primordial dos oceanos que a matéria criou vontade própria e saiu por aí copulando. com um belo jardim. chamamos de "corpo". Resta ainda. por falta de nome melhor. morei a vida toda na cidade: imagina eu lá longe. opa. . o jardim concretado e transformado num estacionamento. Não só nele espelhou o céu como nele fecundou a vida. Moro numa casa pros lados de Cotia. Ou numa igreja evangélica. Até porque é impossível prever se um ano depois de eu bater as botas esse condomínio não vai ser derrubado. Ou no estacionamento de uma igreja evangélica. caso viva aqui muitos anos. Por enquanto. aos baiacus inchados e às garrafas PET na areia? Não. misturado ao sargaço. quero dizer. (Haverá fim pior do que ficar para todo o sempre entre a cruz e a estrada?).Cabum! 22/02/2015 Um dos inúmeros inconvenientes da morte é termos que decidir o que será feito conosco –ou com essas sobras da festa que. contudo. Enterra? Crema? Doa pra faculdade de medicina estuprar. crie um vínculo forte o suficiente para querer me misturar às raízes da grama. a cremação me parece. não me agrada. não encontrei nenhum lugar onde me sentisse tão à vontade que dissesse: acho que eu poderia ficar aqui para sempre. filosofando e coçando o ouvido com o mindinho. Talvez. estudar? Por um lado. retornaríamos. a cento e tantos quilômetros de todo mundo que eu conheço. enquanto trabalho. onde minha filha aprendeu a andar e para o qual olho todas as tardes. Mas por acaso sou navegante português? Sou surfista? Sou poeta? Nada.5 da Raposo não me parece das mais atraentes. no fim das contas. O mar é uma escolha poética. escreveu Fernando Pessoa. Pula-se toda a parte da lama. dos vermes. com).Nem tanto ao mar nem tanto à terra: que tal ao céu? Por US$ 4. só de pensar na solidão cósmica já sinto saudades das garrafas PET. desengonçada e fugaz que é um ser humano condensada numa pedrinha harmoniosa e perene. As cinzas são transformadas em fogos de artifício (www.500. em cima da lareira de algum descendente? Uma breve pesquisa na internet traz opções menos entediantes: as cinzas podem virar a areia de uma ampulheta. numa tarde abafada de verão. acende-se um pavio e cabum! Chuva de cores no céu. Melhor ficar por aqui mesmo. me polvilham na Lua. Vixe. transformadas em vidro. a empresa Celestis (www.me/occBI).heaven lystarsfireworks. (migre. nada de diamante. Por US$ 12. em jogo de lápis. Mas como? Numa urna. não.celestis.995. Mas e o risco de ser roubado? De ser penhorado por um tataraneto bebum? Imagina acabar no mindinho gordo do dono da loja de penhores. A melhor saída (literalmente) que encontrei em minha lúgubre pesquisa foi a escolhida pelo jornalista americano Hunter Thompson. o que sobra é levado pelo vento e um abraço pra quem fica. coçando um ouvido peludo? Não. podem ser prensadas num vinil.com) pode me pôr em órbita. . Diamante é interessante: essa coisa volumosa. em diamante. o jegue e o jumento avistaram a zebra. Redigiram um manifesto a oito cascos exigindo a imediata distribuição do sucesso cavalar para a totalidade da classe equestre e uma maior equanimidade (atenção: trocadilho) na divisão internacional do trabalho. * O vírus tinha inveja da bactéria. "Que foi?". "E por que nunca criam uma mula- unicórnio?". o burro. "Nada. que tinha inveja do ácaro. a mula. "Vergonha da classe equina!". trêmulos. No dia seguinte.Fábulas monterrosianas III 01/03/2015 O BURRO. eu volto aqui quando crescer e te como no café da manhã!". "Alguém aí já viu burro em propaganda de cigarro?". "Eu sou filhote de urso!". Voltando do encontro. Ele chegava a uma cidade. o jegue e o jumento se reuniram numa assembleia para redigir um manifesto contra o cavalo. a mariposa do lustre gritava. a mula. mal-humorado. "Quem você pensa que é?!". mas só o nobre colega equino ficasse hypado. bourbon! Eu sou filhote de tigre! Se você não me der bourbon. "E mau aluno com chapéu de cavalo?". com sua pinta de Charles Bronson. o macaco. Era intolerável que eles trabalhassem tanto ou mais do que o nobre colega equino. velho e gordo que fingia ser filhote de tigre. e desistiram de entregar o documento. bebendo água num lago. o burro. O cavalo os olhou. nada". responderam. "Eu sou um B-52!". "Não trabalha! Não faz nada! Passa o dia de pijama!". * Era uma vez um gato rajado. emendava. Correram até lá. "Zebra vagabunda!". e o gato rajado. o jegue e o jumento foram ao pasto entregar o manifesto. que tinha inveja da . jogando dardos. a mula. Todo mundo caía na gargalhada. a cercaram e lhe deram uma surra de coices e pinotes. velho e gordo seguia para a próxima cidade. entrava no primeiro bar e batia no balcão: "Barman. "Eu sou um bonsai de King Kong!". mascando um capim. O poodle na mesa de sinuca tirava o cigarro da boca e provocava. P. de Augusto Monterroso (ed. mais livres e não tinham inveja de ninguém. No meio da roda.pulga. é uma pedra de sal." * A cascavel entra a milhão no pronto-socorro: "Mordi a língua! Mordi a língua!". rosadas. * "Segundo a assessoria de imprensa do time dos macacos. que. Cinco.S. que tinha inveja do leão mais jovem. óculos e escovas de dentes em sua direção. durante uma cobrança de escanteio. violetas. não descarta processar a torcida das hienas. atirou relógios. veja só. eram muito mais fortes. que tinha inveja dos leões mais jovens de antigamente. que tinha inveja do rato. uma caixinha de Tic Tac com seis balas dentro. que.a grande quantidade de anêmonas. que tinha inveja do tigre. Hoje. era impensável um ouriço transgênero. que tinha inveja do besouro. com tradução de Millôr Fernandes. dizem os leões mais velhos. que tinha inveja do puma. que tinha inveja do leão. * Décadas atrás. que tinha inveja do gato. idêntica às outras. 29. o lateral direito Prego. na verdade: a sexta. . para todo lado que se olhe percebe-se -azuis. Estes textos são descaradamente inspirados no livro "A Ovelha Negra e Outras Fábulas". * Três lesmas muito machas se reúnem pra brincar de roleta-russa. Cosac Naify). filmes e peças denunciando as causas da pobreza e da injustiça. filmes e peças desse texugo muito pobre e injustiçado eram chatíssimos. de modo que se transformou num texugo muito pobre. depois de alguma deliberação não inteiramente consciente. pregando que era tudo coisa de vagabundo e maconheiro que não trabalhava que nem ele pra subir na vida e ser alguém. o texugo que tinha sido muito pobre e injustiçado olhou para os móveis de sua sala. Um dia. o texugo muito pobre. injustiçado e revoltado. filmes e peças revoltados que denunciavam as causas da pobreza e da injustiça. as pessoas liam os textos. para os quadros nas suas paredes e sentiu que aquela revolta não condizia com a posição que ocupava. filmes e peças denunciando as causas da pobreza e da injustiça. filmes e peças revoltados contra os textos.Texugos 08/03/2015 Era uma vez um texugo muito pobre e injustiçado. O texugo muito pobre e injustiçado passou a adolescência lendo textos. filmes e peças revoltados. Uma noite. o texugo muito rico e nada injustiçado reformulou sua revolta: dali em diante. * Era uma vez outro texugo muito pobre e injustiçado que também escrevia textos. em sua cobertura. mas como ele era um texugo muito pobre e injustiçado. Os textos. confusos e cheios de lugares-comuns. um pouco bêbado de vinho francês. filmes e peças fizeram um retumbante sucesso e ele passou a ganhar rios de dinheiro e a frequentar restaurantes caros e festas de ricos e famosos que achavam mui cool ser amigo do texugo que tinha sido muito pobre e injustiçado e escrevia textos. Para surpresa do texugo muito pobre. assistiam aos filmes e peças chatíssimos e confusos e cheios de lugares-comuns e saíam dizendo umas pras outras as mil maravilhas e mais tarde descansavam suas cabeças sobre travesseiros de plumas acreditando terem feito algo contra a . seus textos. injustiçado e revoltado. passou a escrever textos. vendo filmes e assistindo a peças que denunciavam as causas da pobreza e da injustiça. injustiçado e revoltado não aguentou mais e decidiu ele também escrever textos. Então. para os sapatos em seus pés. O texugo muito rico e mordaz escrevia posts jocosos no Facebook denunciando o outro como uma grande fraude. filmes e peças do texugo muito pobre. a confusão e os lugares-comuns nos textos. Metade dos seguidores do texugo muito rico e mordaz comentava "KKKKKKK!!!" nos posts jocosos e ficava aliviada porque. E é por essas e outras que os texugos tão do jeito que tão e há quem ache que o melhor mesmo é que venha logo um meteoro e acabe com essa esbórnia de uma vez por todas. toda a tentativa de denunciar a pobreza e a injustiça era também um embuste e o melhor a fazer era descansar a cabeça sobre travesseiros de plumas e pensar em assuntos mais agradáveis do que a pobreza e a injustiça. porque ele era muito rico e mordaz e reafirmava nos comentários dos posts jocosos seu amor pela obra chata. confusa e cheia de lugares-comuns do texugo muito pobre e injustiçado. A outra metade dos leitores do texugo muito rico e mordaz o desacreditava.pobreza e a injustiça. se o texugo muito pobre e injustiçado era um embuste. . * Era uma vez um texugo muito rico e mordaz que percebia a chatice. injustiçado e sem talento. publicou no "Estadão" a crônica "UNE ou desune". a mesma história será reencenada.) Eu posso até não concordar com o nosso presidente. (. Mario Prata.... O erro não era meu.. Sabe qual é a meta dele? Derrubar o Fernando Henrique Cardoso." No mesmo dia 25.).) Foram muitos mortos. MST e CUT exigiriam impeachment. menino.) Ele é o novo presidente da União Nacional dos Estudantes. (.Impeachment 15/03/2015 No dia 25/8/1999.) sabe o que a UNE fez durante anos contra a ditadura para agora. Neste domingo. Manifestantes do centro à direita (Dez mil? . (. publicou a Folha. a princípio. primeiro ano do segundo mandato do FHC. moleque." "A pedido do próprio Palácio do Planalto. (. Tudo para explicar que existe um outro lado das pesquisas de opinião -a população não estaria assim tão insatisfeita com a performance do presidente..... a oposição faria em Brasília a Marcha dos 100 mil.. Luiz Inácio Lula da Silva (PT)..) Será que esse moleque (. finalmente. É um homem digno. gritando "Fora. achei que tinha lido errado.) Ir pra rua e derrubar o presidente. a partir do que for apurado pela CPI'". mas com os atores invertendo-se nos personagens. Cito abaixo alguns trechos. que tinha votado no Lula. íntegro. disse no Rio que o objetivo do movimento é pedir a abertura de uma CPI para apurar suposto crime de responsabilidade de FHC na privatização das teles.. Dê graças a Deus por termos o Fernando Henrique como nosso presidente. 'Pode-se até chegar ao impeachment. Brizola pregaria a renúncia do presidente e do vice e a convocação de novas eleições. o mago das pesquisas do PSDB [Antonio Lavareda] tem dado várias entrevistas..) Você não viveu a ditadura. a gente colocar lá o Fernando Henrique? (.. (. Mas li de novo. Era de um moleque de 22 anos... Mas vivemos numa democracia. na Folha: "Pode haver nos próximos dias uma revoada de políticos que apoiam o governo para partidos de oposição (. "O líder do maior partido da oposição.) Se está errando aqui ou ali não é de propósito. para conseguirmos a democracia. 26 de agosto de 1999. meu pai. honesto e não mata estudante. FHC!".. na coluna Joyce Pascowitch." No dia seguinte. (. "Eu... O Ministério Público é independente. para ter o rabo preso com quem bem entende.Cem mil? Dois milhões?) vão às ruas pedir a cabeça da petista. o presidente do PT. mas enquanto não houver provas que envolvam a presidente com a corrupção. o tesoureiro e o ministro da Casa Civil foram julgados pelo STF (um colegiado cuja maioria foi indicada durante os anos petistas) e mandados pra cadeia. não precisamos mais nos preocupar com a Venezuela. Protestos contra o governo são justos e não só dor de cotovelo da "elite branca". É inegável que há muita coisa podre em Brasília -e em São Paulo. Veja: após o mensalão. inclusive. no Rio. . O petrolão. da quitanda ao agrobusiness. Somos um país corrupto. Se isso é a "venezuelização" do Brasil. Eu venho ao jornal repetir as palavras do meu pai: "Posso até não concordar com o [a] nosso [a] presidente. como disse há 16 anos nosso grande cronista. em Birigui e em Santa Rita do Passa Quatro. Mas vivemos numa democracia". qualquer um que falar em impeachment não passará. está sendo investigado. contudo. de um "moleque". A imprensa é livre -livre. Vaza. os à esquerda culpam a mídia –e seitas apocalípticas pregam que a semiextinção dos camaleões é prova irrefutável do fim dos tempos e da chegada iminente do Grande Camaleão. as cobras e os quatis: numa única tarde. Quem gostou muito da novidade. crescia. estampou as capas da revista nos quatro cantos do globo. cor de abóbora. Com você na área. foi morar do outro lado da floresta. justamente naquele dia. os mais à direita culpam o camaleão daltônico. O fotógrafo da "National Geographic" pirou no camaleão daltônico. os outros camaleões o chamaram para uma conversa. a nossa parada é disfarce. se pintava de verde. foram os gaviões. nos confins da mata. Acontece que. riam. Pouco tempo depois. Um dia. Quando a folha era verde. Se o patinho e o potro se encontrassem e ficassem amigos e compartilhassem seus anseios mais íntimos. a partir de então. todos os camaleões da floresta entraram numas de contraste. Um dia. "Aí. geral tá correndo perigo. havia um fotógrafo da "National Geographic" clicando umas borboletas. eles talvez falassem desse mesmo sonho e se reconfortassem com a similaridade dos medos e passassem a sonhar sonhos . sobre uma vitória-régia.O camaleão daltônico 22/03/2015 Era uma vez um camaleão daltônico. na terra vermelha. crescia e que os outros patinhos riam. não tem juba. Toda noite. comendo bananas. ele sonhava que o seu pescoço crescia. se amarelava todo. um potro viu uma girafa e ficou apavorado. Toda noite. riam. ele ficava vermelho. Entre os que sobraram. um patinho viu um ganso e ficou apavorado. a partir de então. e. crescia e que os outros potros riam. pra imitar o camaleão daltônico. boa parte dos camaleões foi extinta. parceiro. que. não tem veneno. * Um dia. além dos fotógrafos da "National Geographic". crescia. a gente não tem garra." O camaleão daltônico pegou sua trouxinha e. entrando na água. se besuntava de azul. riam. riam. azul de raiva. ele sonhava que o seu pescoço crescia. uma hiena viciada em ração pra gato. girafa é girafa e os pescoços não costumam variar muito dentro de uma mesma espécie. cheios de feno e capim. de que nos períodos de amnésia é vice-presidente do comitê regional dos Black Power. e o cavalinho morava no Quênia. aterrorizada. a zebra da Ku Klux Klan acaba de se dar conta. na África.melhores. ganso é ganso. no caso do potro. Morsa. psiquiatra especializado em distúrbios alimentares. no caso do patinho. um abutre vegetariano. uma sucuri cristã. de modo que eles tiveram que lidar sozinhos com as suas angústias até que a vida lhes mostrasse que pato é pato. . cavalo é cavalo. uma lesma fissurada por sal e uma molécula de glúten com intolerância ao glúten –imediatamente posta numa maca e levada para o hospital. cheios de minhocas e milho. psicanalista especializado em dupla personalidade. * Na sala de espera do dr. aguardavam um elefante anoréxico. Corujo. * No divã do dr. Acontece que o patinho morava em Limeira (SP). as mãos invisíveis do mercado (ou suas axilas?) resolveram acabar com meu desodorante. uma coisa mais Jece Valadão. metido numa calça semibaggy da M. Não por muito tempo. a meu avô e a meus tios maternos. enquanto meu avô e meus tios maternos usavam uma marca mais metida a besta. pois lá pelo meio da adolescência. tive. Confesso. (Quem -ou o que.Atkinsons.o -ou os. eu conseguia perceber que eram duas propostas antagônicas de masculinidade: de um lado. como todo garoto. sem consultar a mim. mas não tinha jeito: mudei pra marca usada pela maioria dos meus colegas de escola: After Sport de Atkinsons. pararam de fabricar nosso desodorante. mais beque de fazenda. que a minha pré-adolescência de escola particular. um retrocesso. acabei fechando com o English Lavender. fui fiel ao tal After Sport. certeza que teria adotado o Avanço.O desodorante venceu 29/03/2015 Lá pelos 11 anos. porém. mais "retrogosto de frutas vermelhas". contudo. quando as glândulas sudoríparas resolveram anunciar ao mundo minha entrada na puberdade. um troço mais camisa polo. não sei até hoje.Officer e com um Reebok Pump nos pés. que escolher um desodorante. Meu pai usava Avanço. uma marca barata que existe até hoje. Entre as figuras masculinas mais próximas havia duas opções. pela segunda vez na minha curta vida. bebendo cerveja em mesas bambas e cantarolando versos do cancioneiro popular.bastante sucesso entre os anos 80 e 90 do século passado. terminada a faculdade. shopping e "Take My Breath Away" em salão de festas do prédio me qualificava mais pra camisa polo do que pra Jece Valadão.) Por meia década. adotar o Avanço me parecia. Nessa altura. Aos 11. já meio intelectual. na mesma bisnaga acobreada e com o mesmo logo simplão. Senti que era uma traição à família. mas sem dúvida fazia -ou faziam. até que. com um brasão todo rebuscado no frasco e um nome longo e pomposo: English Lavender de Atkinsons. Fosse na faculdade. Já via com .era -ou eram. meio de esquerda. não exatamente orgulhoso. do outro. com o perdão da piada fácil. Mesmo naquela idade. cheiroso leitor. tampouco acalentava esperanças de passar num teste pra figurante numa montagem de "Orfeu Negro". de modo que optei por um Nivea azulzinho. Será que ainda vendem naftalina? . vem sumindo das prateleiras. que mais uma vez o capitalismo global parece ter resolvido imiscuir-se em meus sovacos. Imagino que os CEOs da Procter & Gamble e da Unilever e da Nivea e da Johnson's (e mesmo o sumido senhor Atkinsons -caso fosse um senhor e não. de uns tempos pra cá. discreto. de uma vez por todas. O azulzinho sem metafísica. sem metafísica ou grandes extrapolações socioculturais. prestes a serem levadas pela brisa da história. sei lá. uma cidade ou uma erva bretã) tenham as narinas mais conectadas às tendências odoríficas mundiais do que este equivocado escriba. pra naftalina.certa ironia aquelas mesas bambas e aqueles sambas do morro saindo desta boca branquela -se não me identificava com brasões ingleses. que só aposta em fragrâncias obsoletas. E veja só você. deve ser isso: sou um antiquado. não do capitalismo global. É. Talvez seja o caso de desencanar dos desodorantes e mudar. É claro que o problema deve ser meu. nada sei Mas algo parece claro O país não anda bem O caso não é pra pranto Nem tanto pra desespero Mas esfumou-se o encanto Disseminou-se um mau cheiro Governo pisou na bola Estamos em recessão Neguinho levou por fora No esquema do petrolão Bandido. vá pra cadeia Canhestro. perca o emprego E o povo bata panela Numa sessão descarrego Bobagem gritar: "Coxinha!" Inútil reclamar da elite Dizer: "Ó lá. eleitor da Dilma Bom dia.Repente do desmantelo 05/04/2015 Bom dia. eleitor do Aécio Para a minha pobre rima Segundos de paz lhes peço A política eu ignoro De finanças. ó a vizinha! Batendo sua Le Creuset!" . sim Tem paneleiro honesto Batendo sua Tramontina Mas tem brucutu funesto Tramando ideia ladina Lobo virou cordeiro Serpente posa de amiga Mas isso é tudo gaiteiro Querendo encher a barriga Viúva da ditadura Ladrão. empregada Agora. sim. PMDB Babam. as Sherazades Ah! Tão dançando hula-hula A Bíblia (em leitura rasa) Fez a tacanha união Com a "bancada da bala" . roubalheira E foram por via errada Pode reclamar quem queira Doutor.Se houve. perua. tamanha fissura De tomar logo o poder Os Afanazios Jazadjis Tão levantando da tumba Os sultões. amigo leitor Vire o ouvido pra mim Muito cuidado com o andor Que o santo é de barro. PT E o Brasil é testemunha Vendo o triste alvorecer Do trevoso Eduardo Cunha A burrice do fla-flu Arruína os brasileiros E empluma um urubu Chamado Renan Calheiros Em coisa de poucos anos Com este joguinho avaro Nasceram Felicianos Medraram os Bolsonaros Os dois partidos irmãos Nutridos do mesmo sal Em vez de darem as mãos Se fazem Caim e Abel Se liga. eleitor da Dilma Se liga.Pregando a lei de talião Querem –ai!– mandar rever Maioridade penal Querem proibir na TV O beijo homossexual Não é só o ódio ao PT (Embora achem um acinte) Desejam retroceder Pra antes do século 20 Brigam tucanos. eleitor do Aécio . Se o troço tá ruim assim Assado. vai ficar péssimo . o sujeito podia se referir ao Lula como "Aquele retirante analfabeto!" e não estava sendo demofóbico. mas infantil. então. mas lutando contra as feministas governistas que queriam castrar os machos livres da pátria. Uma das consequências da chegada da esquerda ao poder (ou. seria um preço aceitável a se pagar. Gays andariam de mãos dadas. É não perceber que num sistema representativo cabe a nós não só eleger o governo como influenciá-lo. mas basta dizer "Si hay gobierno. seja criticando-o ou mesmo o aplaudindo. tem seu charme. em 2003. Empresta a qualquer resmungo de oposição o silvo de um morteiro republicano na Guerra Civil Espanhola. contudo. caso todas as providências oferecidas pela excelente frente de planejamento familiar em nossa invejável rede pública de saúde houvessem falhado. afinal. O quatrocentão ressentido repetiria a toda hora que "Esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária!". Aguentar a velha hidrofobia reacionária andando por aí de sapatênis e pomada no cabelo. ser contra todo governo. Dizia "O melhor movimento feminino é o movimento dos quadris" e não estava sendo machista. estudando em nossas boas escolas públicas. Hoje. soy contra!" e fica se achando uma espécie de Hemingway redivivo. ele . mas deixaríamos quieto. sempre.As ideias fora do lugar 12/04/2015 "Si hay gobierno. negros e brancos teriam as mesmas chances no mercado de trabalho. Piadas racistas e homofóbicas deixaram de ser vistas como reforços aos estereótipos de que o negro é inferior e de que o gay é errado ou doente. O cara pode ser um empresário corrupto que sonega milhões em impostos. Na democracia. foi dar à direita este selinho hype. se achando moderninha. caso o PT tivesse instituído a pauta pela qual foi eleito. estava fazendo uma crítica ao poder. pelo menos. recostado numa colina de la Mancha. de "Soy contra!". da chegada de um partido com um discurso de esquerda). Mulheres poderiam recorrer a um aborto. lutando contra o fascismo estatal. De uma hora pra outra. não é uma postura crítica. para se tornarem armas da livre expressão contra a "ditadura do politicamente correto". sem correrem o risco de serem espancados. soy contra!": eis aí uma máxima tão repetida quanto cretina. à noite. A frase. As mulheres ganham cerca de 30% menos do que os homens e mais de 50 mil delas são estupradas. . Se fosse um ato de repúdio à desigualdade e à injustiça que se perpetuam. ao lado de famílias que fazem "selfies" com a Tropa de Choque. tais melhoras não vieram. apenas 11% dos alunos são negros. os 5% mais ricos detém mais de 40% da renda total do país. Assim. Embora a concentração de renda tenha diminuído um pouco. acusar o governo. chegamos a este cenário desolador: no poder.haveria perdido seu camarote no topo da pirâmide social. uma esquerda esquizofrênica. eu iria pra rua. na oposição. as vozes mais raivosas. A polícia mata em média cinco pessoas por dia. num país que deixara de ser um dos mais desiguais do mundo. com o PT no poder. todo ano. licença: "Soy contra". incapaz de mexer em nossas feridas seculares. Mas pra andar atrás de um trio elétrico que estampa a imagem de uma mão sem o mindinho. O problema é que. Nas faculdades. preconceituosas e reativas às mudanças que essa esquerda sequer promove. liberando. hoje. Gays tomam lampadadas na orelha na Paulista. aquele serzinho indefeso que eu trouxe pra casa. sozinha. mas hora de dormir. Imaginava. Na maioria das vezes. meus amigos. acordo com um chorinho na babá eletrônica. Uma espada samurai atravessa o meu peito. "essa é a chuva". ela senta no berço e começa a gritar "Papai! Papai! Papai!" ou "Mamãe! Mamãe! Mamãe!" até que um de nós apareça para ouvir suas reivindicações. de um ano e oito meses. nem havia pessimismo na previsão. cujos sinais se embaralham. aquele bumbunzinho rechonchudo que tantas vezes limpei. Um pai enciumado? Coisa mais anos 1950 -e. de modo que não ouço bem se é "Papai!" -e serei eu a sair tropeçando pela noite fria- ou "Mamãe!" -e caberá à Julia explicar que não é hora de mamar. iriam me trocar por outro homem. na previsão mais pessimista. Que ela saísse por aí se apaixonando e namorando seria um sinal da sua saúde e do nosso acerto. ao que minha mulher. nem de brincar com o Senhor Batata. São dois filhos. Achava. Pensando bem. É a Olivia. com pisca alerta ligado. duas babás eletrônicas. sem nenhuma compaixão. minha filha mais velha. contudo -e é o caso desta aqui-. pela Raposo Tavares. de olhos fechados. eu haveria criado minha filha para o mundo. É claro que eu sabia que esse dia iria chegar: o dia em que aquele bebezinho lindo que embalei em meus braços. no entanto. Afinal.Indo embora 19/04/2015 Como em tantas outras madrugadas. "É papai ou mamãe?". Em algumas noites. "esse é o manjericão". "essa é a lua". na maternidade. que iria encarar tal dia com satisfação. quando descubro que não é a mim que ela implora para salvá-la do escuro e . balbucio. dispara: "É 'Arthur'". ela vira pro lado e volta a dormir. não sei se do alto do meu narcisismo ou do fundo da minha ingenuidade. que esse dia só viria lá por 2030 -2027. sem nem sequer segurar a minha mão ou fazer um cafuné preparatório. nem de ir pra escola. aqueles olhões deslumbrantes diante dos quais expliquei "esse é o leão". nem de ouvir Galinha Pintadinha. a 30 km/h. porém. é o irmão da Peppa!". mas ao Arthur. é solidão. não são o Arthur!". então acabou-se o que era doce. Marmelo. ela parte. na TV. Luizinho? "Arthur! Arthur! Arthur!". a Olivia punha o dedo na capa e dizia: "Arthur!". compreendo que não é ciúmes o que eu sinto. Olivia. eu os vinha recebendo com patente irritação. ela já vinha dando sinais daquela paixão. ou agridoce. na maternidade. me dou conta de que. Olivia. vendo a Olivia na telinha da babá eletrônica. Estirado na cama. Aparecia o irmão da Peppa. desde o dia em que a embalei no colo. Só. . Huguinho. Zezinho. Eu pegava o "Marcelo. não é o Arthur. eu vou!". "Não. já beirando os três anos. que coisa mais doida é isso tudo. aí eu morro. ela corria até a tela. uma solidão inédita e brutal: aquela menininha sentada no berço já começou a sair de casa. nas últimas semanas.um nó de marinheiro se forma na minha garganta. colega da escola . surpreendentemente insensível ao meu cataclismo emocional. Martelo". não é o Arthur. "Não. Olivia. pior. sorrindo: "Arthur!". logo. diga-se de passagem. e. eles são patos. depois eu fico velho.da solidão. tão rápido. "Não. está indo embora.um rapaz mais velho. trêmulo. minuto a minuto. logo. saindo da cama. resmunga a Julia. de braços dados com algum Arthur. tão rápido. é o Marcelo!". "Se você não vai. com suas pernas compridas –lembrava uma gringa tentando sambar. e. sei lá. ao vivo. dava pulinhos. Fez o ponto. por acaso. há 20 minutos. porém. no Aberto da Austrália. na Bielorrússia). Eu me sentaria sobre a relva (imagino que deva haver muita relva. eu não trocaria meu mundo por Svetlana. procurando algum VT de futebol. de aparelho nos dentes. trazia todos aqueles atributos que a simples menção à palavra "bielorrussa" evoca do lado de baixo do Equador. Olho pra TV. Eu . na Austrália. Ela sacou. A República da Bielorrússia não tem saída para o mar. de leve. que geme e sua. Sua capital é Minsk. tenista bielorrussa a que. ela estava prestes a acabar com a húngara e a arrebatar meu coração. Quando parei no canal. se achando feia entre bielorrussas bem mais bielorrussas do que ela. levemente desengonçada. em Cotia. Torci. Não.Saída para o mar 26/04/2015 Já passa da uma. ligando o meu corredor a um bosque nos arredores de Minsk? (40% da Bielorrússia é coberto por florestas. comemorei discretamente na minha cama. Era bonita. uma passagem secreta no armário de toalhas. Estou dividido entre a realidade desta cama em Cotia e o delírio de Svetlana Samanova. Tensa. Hoje. Comemorou discretamente em sua quadra. digamos. Amo minha mulher. Não foi amor à primeira vista. ela estava prestes a sacar. como em tantas outras noites. faço um carinho em seu ombro. meu carinho sai atravessado: estou apaixonado por outra. Os setores econômicos que mais se destacam são a agricultura e a indústria manufatureira. óbvio. Eu conseguia até imaginá-la na escola. Seria bater os olhos em mim para ela se apaixonar. mas não era perfeita. e se houvesse. Olho pro lado. minha mulher dorme ao meu lado. Svetlana Samanova. assisto jogar contra uma húngara. meus filhos. uma playmate/espiã da KGB em filme do James Bond. protegendo a tela do celular com a mão. enquanto vejo televisão. É o que eu leio na Wikipedia. Mas. claro. tipo a Sharapova. diz a Wikipedia). sob a sombra de um carvalho (idem) e veria Svetlana Samanova surgir detrás de um arbusto. do outro lado do mundo. como se trocasse SMSs com uma amante. Três games depois. "Isso tudo é uma ilusão. com a entonação mais Bogart-em-Casablanca que conseguisse encontrar. deitaria na minha cama. ainda arfante. Eu agradeceria e. tomando Bellinis em hotéis de luxo e sol em iates enormes.faria alguma pergunta idiota. voltaria pra minha casa. tivemos uma bela aventura. aces. num Grand Slam amoroso!"." Então eu beijaria sua testa. "Sua família se dedica à agricultura ou à indústria manufatureira?". para além das toalhas. para longe de Svetlana Samanova e da relva bielorrussa. mas ela calaria minha boca e meu nervosismo com seus doces lábios eslavos. mas é preciso parar por aqui. recusaria o convite. ela faria a proposta: "Vem comigo? Vamos viver pulando de país em país. definitivamente. Você é incrível. slices e topspins sobre a relva. Espero que chegue ao #1 da WTA e que um dia encontre um homem capaz de te dar o que você merece. retomaria o meu carinho e assistiria Udinese x Fiorentina até o sono me levar. dormem minha mulher e meus filhos. Depois de nossos smashes. tentando quebrar o gelo. Svetlana. Do lado de lá desse carvalho há um armário de toalhas e. . achando que o PT iria levar pão. mas em construir uma Disney lá pros lados de Barueri. que colamos o adesivo "oPTei" em nossos Chevettes. nossa expectativa mais otimista são alguns quilômetros de ciclovia. É preciso reagir. a direita brasileira ameaça deixar o país. companheiros. um gigante de 500 anos que . Segundo apregoava o então presidente da Fiesp. lá por 1987. matemática e tomografia para cada brasileiro. o projeto da diá$pora voltou com tudo. Se alguém deveria estar contente com o estado das coisas. Se eu fosse de direita. não estaria pensando em fugir pra Miami. como cantou Caetano Veloso. hoje. Acho curioso. Pelo que leio e ouço por aí. Neste segundo mandato de Dilma Rousseff. com seus jacarezinhos no peito e Rolex no pulso. Os índices de aprovação da presidente são os mais baixos da história. É preciso tirar da direita as rédeas da história. É preciso dar um passo à frente e dizer: péra lá. Bolsonaro & Feliciano fazem mais sucesso do que Chitãozinho & Xororó e a PM que desce o sarrafo em professores e mata criança com tiro de fuzil é aplaudida em passeatas "ordeiras" e "pacíficas". já disse que não vai tocar no tema do aborto e tenta retroceder nas conquistas LGBT. meus caros. nós que cantamos o "Lula Lá" como se fosse um "Abre-te. não são vocês que vão embora. e. por favor. o Congresso quer rever o Estatuto do Desarmamento e diminuir a maioridade penal. uma nação". Sésamo!" para Shangri-La. teria dito. tem mais rico brasileiro se mudando pra Miami. Que tristeza: apostamos num partido fundado por Sérgio Buarque de Holanda e Chico Mendes para fazer "dessa vergonha. (Aliás. quando perigava do Lula ganhar as eleições presidenciais. é a direita. apague a luz do aeroporto". somos nós. poesia. Quem tem motivo para se arrastar por aí chutando tampinha e rosnando pra lua somos nós. 800 mil empresários picariam a mula: "O último a sair. hoje. com nossas pochetes na cintura e barbas por fazer! Chega de tentar tirar o gigante adormecido do seu berço esplêndido. Mario Amato. do que turista japonês tirando foto da Mona Lisa no Louvre.O último a sair 03/05/2015 Desde os longínquos anos oitenta do século passado. em caso de uma vitória petista. de onde seguiremos. em comboio. duas tão sonhadas conquistas: um país justo e a Copa de 50. claro. O último a sair. Estou falando. fundaremos a nova Colônia Cecília. rumo ao Éden cisplatino. por favor. Chega de querer construir um país do zero: nos mudemos. é fazer fronteira com o Brasil. requereremos nacionalidade uruguaia. de pedalinho. brindaremos com tannat. Vamos para outra cidade onde a língua também é o espanhol. tem algum problema bem sério). para um que já esteja pronto. . ao que parece. a carne é estupenda e o maior defeito. já era para termos nos tocado. acenda o baseado. do Uruguai. sob o radioso sol de nossa alviceleste bandeira. ao recebê-la. de mala e cuia.ainda dorme em berço. mas num país cujo governo é – verdadeiramente– de esquerda. e. o vinho é de primeira. Para onde vamos? Pra Miami? Evidente que não. simultaneamente. Às margens do Prata. talvez consigamos ir de bicicleta até o porto de Santos. a maconha é liberada. Se o Haddad perseverar e o MP parar de encher o saco. porém. em seguida. Quase a chamo. a freira se agarra aos apoios de braço como a mais desamparada das ateias diante da possibilidade de . para mim.Uma freira de verdade 10/05/2015 A voz no sistema de som avisa que o embarque foi encerrado. detrás do biombo que separa dos passageiros a porta do avião. leitor de ateus. por trás da minha aflição. por algum mistério. nem que de relance. que aquele sorriso falso me incomodou. Não quero soar preconceituoso. naquela pequena euforia que nos toma quando encontramos uma vaga bem na frente do cinema ou damos com o banco sem viv'alma na fila –como se o nosso anjo da guarda. me pede licença. havia certa expectativa: vou conhecer uma freira! Uma freira de verdade! E. casado com uma ateia e. amigo de ateus. na minha cabeça. O nervosismo me faz esquecer da freira e. nas calçadas de Perdizes (perto da faculdade Santa Marcelina) e. me trará algum conforto. me faz lembrar dela. Com passinhos curtos. pois não só guarda a gorjeta no bolso como me bate a carteira: eis que surge. Olho as poltronas vazias ao meu lado e sorrio. resolvesse nos dar uma gorjeta. Decolamos. todo encontro deveria ser genuíno e prazeroso. O meu anjo da guarda. deve estar com o humor um pouco avariado. Ateu. personagens excêntricas que só existem nos filmes do Fellini. num momento de bom humor. Levanto e noto. mas ao meu lado há alguém que confia nos inescrutáveis desígnios da Providência. É botar os olhos nela para ter certeza –não sem alguma aflição. pai de dois ateusinhos. conferindo os números dos assentos. contudo. em aeroportos. com um sorriso protocolar. aluno de ateus. de novo: tenho medo de voar. freiras são. mas não é necessário: ela para a cinco centímetros do meu cotovelo e. alguém que tem fé na salvação e na vida eterna. Percebo que. ela vem se aproximando. uma freira. se Deus quiser. "Irmã! Irmã! É aqui! Tenho certeza que é do meu lado!". confesso– de que irá se sentar ao meu lado. Para meu espanto. mas é impossível evitar: nunca me sentei ao lado de uma freira. Penso que olhá-la. filho de ateus. uma freira de verdade traz Jesus no coração: para ela. surpreso. um médico não pode chorar numa consulta. não creio em Deus. não age: assim que aterrissamos. definitivamente. ligeiramente indignada. Finjo que não é comigo. ela pede. quase roçando nas minhas pernas. não. mas as normas da Anac.aniquilação. os sinais de apertar cintos continuam acesos. sem saber se estou provocando a ira de Javé ou –me ocorre. Ela. querendo passar. o avião mal acabou de taxiar. um sorrisinho passivo-agressivo nos lábios. Eu aponto o aviso luminoso e ali permaneço. Como já disse. a voz no sistema de som pede para que todos permaneçam sentados. Ela se adianta três centímetros. "Licença?!". mas a freira se levanta e me encara. . Ora. fico com a segunda. os desígnios da Providência podem ser inescrutáveis. se tiver que escolher entre as duas opções acima –vai que?–. inabalável. Tenho vontade de repreendê-la: "Um policial não pode ter medo de ladrão. mas. um padeiro não pode ser intolerante a glúten: aja como uma freira!". Abro a revista de bordo. vendo seu ódio contido crescer em minha visão periférica. num estalo– arrumando encrenca com uma talentosíssima traficante de drogas. meu Deus. mas idêntico ao meu pai. por exemplo. confesso. ou melhor. Minha com o meu filho. "tolimado" da Libertadores. assustado: "E agora. mais o seu amor cresce. é um fato objetivo. constatado por todos os que nos visitam ou veem as fotos no Instagram: meu filho é idêntico ao meu pai. o amor vai nascendo. Não idêntico ao meu pai quando criança. contudo. descrevendo para uma plateia bocejante ou enojada os incríveis aspectos físico-químicos do cocô daquela manhã. a mesma carranca furibunda quando é contrariado. hoje: o mesmo sorriso irônico quando faz gracinhas. pra falar mal do Corinthians. passa pomada. que perdeu pro Guaraní paraguaio e foi limado. Sei que é normal eles se parecerem. no caso dos meus dois. Devagarinho. lá pela meia-noite.Tal pai. 100% desses genes resolveram se estabelecer na região que vai do queixo ao cocuruto–. temo encontrá-lo com um Minister aceso no canto da boca –então me lembro que o meu pai parou de fumar e respiro aliviado. até o ponto em que se vê completamente apaixonado. é. de 69 anos. meu pai me ligou. não foi. quanto mais coisa chata você faz. Às vezes. olhei-a nos olhos e pensei. Ao pegar minha primeira filha no colo. digo também. Tal semelhança. 25% dos genes do meu filho vieram do avô –e. mas que é estranho olhar pra um bebezinho de três meses e ver ali meu progenitor. tal filho 17/05/2015 Não é uma questão subjetiva. Afinal. o amor não é imediato. digo. Minha com o meu pai. tem atrapalhado um pouco a nossa relação. que seria facilmente explicada por um psicanalista com termos como "projeção" ou "deslocamento" ou sei lá quais nomes dão os psicanalistas para casos semelhantes. Você troca a fralda. O problema do meu filho ser a cara do meu pai é que tá dando uma linha cruzada nos vínculos. nina o bebê revoltado às dez pras quatro da manhã e. Quando nasce um filho. por alguma razão. mistério dos mistérios. indo espiá-lo no berço. Pelo menos. não temos nenhuma intimidade!". . Na última quarta. pinga Rinosoro. quietinho. Agora. imaginem a minha situação: todo dia. pra piorar. que o nascimento de um menino cria o tal triângulo edípico. minha psicanalista mudou pra Argentina. Como pode um senhor de 69 anos demorar tanto pra pegar no sono? Eu já sabia. flagro minha mulher dando o peito pro meu pai. . Vai dar tudo certo.Atendi mal-humorado. Beleza. tentando fazê-lo dormir. mesmo sabendo que ele é um nenenzinho. que a criança se interpõe entre marido e esposa e que dá ciúmes daquele outro homem. deste saquinho besuntado de Hipoglós. porque eu estava há mais de uma hora olhando pra sua cara chorosa. pois será cuidado com todo amor e carinho: mesmo porque. sairei eu –e o mínimo que espero é reciprocidade no tratamento. quero dizer. Meu pai. pra cara chorosa do meu filho. em meus braços. Ela sugeriu fazermos sessões por Skype. Por quê? Ora. com a minha psicanálise de botequim. mas tenho medo de minhas neuroses serem hackeadas e exibidas no Fantástico. E eu lá. daqui a algumas décadas. fazendo bilu-bilu –no meu pai. Tá puxado. do lado. E. meu filho. várias vezes. Vamos que vamos. você pode ficar tranquilo. terei que me virar sozinho. Dando banho no meu pai. Cantando pro meu pai. Pelo visto. quer dizer. Há cordas de cânhamo. como a televisão. porém. Depois a música acaba. apavorada. a paixão se esfuma. Um Land Rover. Um fogão de seis bocas. Meus olhos brilham.Um machado. o telefone. o meio de campo embolou um pouco e acabei alugando uma sala comercial. Poderia falar maravilhas da minha sala comercial: a paz. Acho que sou um voyeur. no térreo. mãos francesas. Ando mais um pouco. Hoje. O que eu faria com um machado? Sei lá. Três quilos de bacalhau da Noruega. porém. gato ou periquito. sob aplausos. . escondido de mim mesmo –ou das tentações que poderiam me afastar de mim mesmo. não consegue abrir a porta? Me vejo correndo pela rua. me deparo com um machado. Não tenho cachorro. como nos desenhos animados da minha infância. Me vejo sendo carregado pelo povo. na minha rua? Vai que pega fogo na casa da vizinha e ela. escrevia o que tinha que escrever. Olho encartes publicitários nos jornais e faço compras mentais. vizinhos ou internet. Com dois filhos. em 160 vezes. Num corredor. e dando entrevistas pra televisão. comida pra gato 24/05/2015 Por vinte anos. sei lá. sem nenhum compromisso com a realidade. a concentração monástica que alcanço sem filhos. o silêncio. São pequenos devaneios. chego na seção de cordas. sem juros. Os bichos que entram lá em casa são todos do tipo que se trata com Baygon ou –glória ao Senhor!– raquetinha elétrica. absolutamente nada que eu queira comprar. parado num sinal. quero falar do pet shop. todo Bruce Willis. todo dia –e pela primeira vez na vida– passo por uma loja onde não há nada. pois meu consumismo é de natureza meramente contemplativa. Eu não tenho um machado. Note que eu digo "queira comprar" e não "vá comprar". a geladeira–. Um machado de verdade! Cabo de madeira. em cima de um pet shop. Digamos que eu vá numa dessas enormes lojas de construção pra comprar. no meio da tarde. lâmina vermelha com fio metálico. no rádio. Vai que cai uma árvore. Daí resulta que. Eu tenho duzentos reais. o trânsito anda. Custa duzentos reais. trabalhei em casa: me trancava no escritório e. É como se apaixonar pela voz de uma cantora. na rua de baixo. ". Tento justificar meu desejo: deve haver alguma coisa na minha casa que precise ser amarrada. Desisto das cordas. não há. me flagrei. Todo dia. então. No pet shop aqui embaixo.como as de um navio pirata. Mas a azul. atento. Já comprei. Vou deixar no carro.. como as de um alpinista. vejo com o canto dos olhos as embalagens coloridas e sinto um vazio no peito. Whiskas sabor legumes. . Talvez. a azul talvez seja mais leve. jatos executivos. cubas pra pia. Faz uns anos. mentalmente. para levar bichos no avião. compre um machado. "A vermelha parece mais sólida. pés de cabra e moinhos eólicos. não tenho certeza nenhuma. contudo. Não. canos de cobre. Não. Não tenho cachorro. Cinquenta da outra. cordas coloridas. gato ou periquito. quebrei o pé. Quarenta daquela. focinheiras. Quero levar trinta metros dessa. blocos de mármore. jaulinhas de plástico.. um dia. enquanto esperava o vendedor me trazer as muletas. bom. Tenho certeza de que algum dia me depararei com uma situação em que as cordas serão fundamentais. nada me interessa. decidindo entre diferentes próteses de quadril. Na loja de produtos ortopédicos. Ano retrasado. talvez bata papo com um urubu. você deve desconfiar que seja mentira. grosso modo. era comunista –e por aí ia. recebo um telefonema da Folha. hoje.Seminovos. que José Maria Marin. machistas e que tais. nenhum passo atrás". o homem branco se encontrava escanteado no Brasil. felizmente. o secretário de Redação. não da cadeia. vou sair empinando pela Marginal. resolvi publicar aqui um texto irônico. Mas eu. a reforma da fachada). de modo que estou escrevendo aqui de casa. Gentile. Este texto é uma crônica. ex- membro da Arena (e atual hóspede do FBI). já se eu digo que comprei uma bicicleta ou que pulei de paraquedas. homofóbicas. Afirmava que. "Ironia não funciona em jornal". resolvi pagar pra ver –e quase paguei com a minha liberdade. Ou não ia. segundo o Gentile: "Ironia não funciona em jornal". A juíza. com um narrador reacionário e hidrófobo. por unanimidade. único dono 31/05/2015 Veja bem: apesar de este texto figurar no alto de uma página de jornal. enquanto as crônicas sempre são. negou-se plano de saúde aos funcionários e aprovou-se. Afinal. não eu. Como não? O texto era um despautério do começo ao fim. Fui processado. gentilmente me sugere que a piada não iria ser compreendida. este texto não é uma notícia. mesmo depois de ter assistido a um documentário de nove horas sobre o holocausto e de ter participado de mais reuniões de condomínio do que aconselharia qualquer hepatologista (na última delas. mesmo que eu tenha de fato comprado uma bicicleta ou pulado de paraquedas. que teimo em apostar no ser humano. A diferença. para ridicularizar opiniões racistas. ou a Dilma garante "Nenhum direito a menos. veículo cujo propósito é publicar notícias. que os índios tinham acabado com o agronegócio. eu gostaria de ter publicado uma . Se o Alckmin afirma que não há por que se preocupar com a crise hídrica. entendeu que racista era o personagem de um texto FICCIONAL. da OAS ou da UTC. aumentar a queda-livre. Todo esse "tour de force" é porque. ao escrever a crônica vou mudar a cor do banco. Algumas horas depois de enviar a crônica. por exemplo. é que as notícias só às vezes são ficção. entre perigosos meliantes do PCC. por conta das cotas. pode ter certeza que é. Por racismo. Interessados. Eu diria que. dois anos. que. temi que me levassem a sério. Decidíamos. na saída do "Saltimbancos". qualquer dia desses. já podemos começar a conversa: ela. . por favor. Ao começar a escrever. que a Vara da Infância de Cotia nos tirasse a guarda das crianças.crônica engraçada sobre as agruras de ter filhos. nada na vida se iguala a ter filhos e eu não os trocaria nem por um milhão de dólares. seria uma peça de FICÇÃO. eu e a minha mulher havíamos percebido que a nossa geração. o dinheiro rarear e as olheiras crescerem. botar as crianças à venda. carteirinha de vacinação completa. então. IRÔNICA. contudo. viajar pela Ásia e dar um refresh na relação. era incompatível com a paternidade. único dono. por mais reais e noites de sono que me custem. (Por cinco. três meses. Por mais trabalho que me deem. apanhássemos da plateia. vendo o casamento afundar. hedonista e autocentrada. DM no Twitter ou inbox no Facebook). ele. Ora bolas. depressão e lumbago com chá de berinjela!!!" e comprou na reggaeroots. seja mais indicado te sugerir o livro "Os Florais de Bach na Prática da Ioga" do que. Teve a época dos Rolex.br uma pochete com as cores da Jamaica. até ali. o computador já vai nos desejar saúde –e nos oferecer Rinosoro. tipo um recado anônimo na secretária eletrônica: "Você tem bafo!"? A dúvida desapareceu dias depois. likes. mal sentiremos uma coceirinha no nariz. Olhei pros lados. a quantidade de mensagens inúteis só aumentou. o que mais quero é que o Grande Irmão entenda um pouquinho melhor meus gostos e necessidades. Segundo a matéria. pensava. ao receber meu primeiro "Enlarge your tits". das pílulas para perder peso. diante dos spams desvairados que chegam a este velho PC. mas confesso que. algoritmo?! 07/06/2015 Li numa revista. por exemplo. outro dia. você passou três horas no Youtube assistindo a shows do Raul. aqui pros lados de Cotia.com. Ou me encontrava? Teria eu vivido. compras etc. recebi meu primeiro "Enlarge your penis". logo. a partir dessas informações. o blu-ray "As Patricinhas de Beverly Hills 2". em autoengano? Seria aquela mensagem o toque de uma ex-namorada. São programas que bisbilhotam as nossas ações on-line (sites visitados. logo. De lá pra cá. das dicas para ganhar dinheiro sem sair de casa . digamos. Se. dos feromônios. que um dos grandes desafios do mundo digital é aperfeiçoar os algoritmos capazes de entender o gosto do internauta. retuítes. talvez. compartilhou via Facebook o texto "Como curar dengue. Lembro ainda hoje quando. conversei com um amigo e aprendi um novo termo: "spam". os algoritmos estão evoluindo tão rápido que. o computador entende que.Qual foi. nervoso: por que haviam me mandado aquilo? Eu não me encontrava. dos aparelhos para abdominal.) e. Naquele dia. da caneta espiã. descobrem exatamente quais produtos nos oferecer. no fim do século passado. entre o público alvo daquele tipo de e-mail. Há quem tema a chegada deste dia: o dia em que o Big Brother lerá nas pupilas do cidadão os seus desejos mais profundos. Murukubuku. abrir o Outlook e encontrar. de novo. Marlene Araújo. talvez o errado seja eu. nos velhos companheiros Abdul. Raul Boucinhas. contabilidade. Anderson Nonato. sou feliz assim –só vou me preocupar se. não me importo. ao contrário do que dizia a revista. estamos na fase dos currículos. Diante desses e-mails. fico com a impressão de que. distribuindo produtos. batucando no meu velho PC. um "Enlarge your penis". recrutando funcionários. que sigo aqui. redesenhando minha área financeira? É. da Arábia Saudita. Tudo bem. Ultimamente. ou Mr. administração. sozinho. loucos para depositar milhões em meu nome. pros lados de Cotia. para "otimizar a engenharia da minha área financeira". os computadores intuam que. talvez os programas estejam certos. dia desses. webdesign. é claro.–sem falar. os algoritmos não evoluíram nada. que toda semana imploram por minha conta bancária. a esta altura do campeonato. algoritmo?! Tá me zoando?! . Qual foi. da Nigéria. Recebo também dicas para "aprimorar a logística de distribuição" da minha empresa. do século 20 pra cá. depois de cálculos complexos. Ou será que quem não evoluiu fui eu? Será que. eu já deveria ser um empresário de sucesso. "Ah. * . pintando as costas com urucum –deixando intactas só algumas bolinhas pretas–. o escambau! Isso aqui é tipo. de Bram Stoker. "Saco. Beleza. apavoradas com o aspirador de pó. do alto da geladeira. * "Tamanduá transformer! Tamanduá transformer!". um mar de sangue fresco. * A cobra verde cuspia uma. ao que todas as outras correm para trás do espelho de luz. "Que joaninha?! Eu sou um besouro pequeno. não? Vermelhinha com pintinhas pretas?! Parece um moranguinho alado!" –e todos os besouros góticos riram. três vezes e já ficava com a garganta seca. então se perguntava. que passam horas. antes de se dirigirem ao cupinzeiro abandonado. Hoje. "Ah. * Para os ácaros. ok? Todo mundo me conhece como Joana". grita a formiga sentinela. toda noite. admirando a mangueira do jardim. como será que ela consegue?!". fez uma cara de túmulo e se juntou aos seus ídolos: a turma de besouros góticos que se reunia. duas. pessoal?".. na voz mais deprimente que conseguiu. tipo um. "E aí. não tem história mais apavorante do que "Piolho". mas ninguém me chama de joaninha. "Eu não sou fofa!". rosnou o líder dos besouros. de outro tipo!".Joanão e outras minifábulas 14/06/2015 Um dia a joaninha tomou coragem. "Sai fora. perguntou o líder. "Nossa. cheio de besouro morto afogado depois que uma vaca com ebola sangrou pelos poros até cair morta e seca no pasto que nem uma uva passa!". Joanão é líder dos besouros góticos. é? Então que que é isso?!". "Nem vem. ela murmurou. "Moranguinho. joaninha! Tem lugar p'cê aqui não. ao pé do cupinzeiro abandonado. fofa!". cobriu as costas com fita isolante. toda noite. arrancando a fita isolante.. joaninha!". os amendoins. escreveu uma noz eugenista.Há entre os tatus-bola uma antiga crença: depois de morrer. * "Prova da superioridade das nozes sobre as amêndoas. avelãs e castanhas se assemelham. aqueles de vida proba viram bola de gude –já os maus passarão o resto da eternidade metamorfoseados em cocô de galinha. em fins do século 19. em fins do século 19. depois das nozes–. aos testículos dos supracitados bípedes". enchiam a cara de vinho. as avelãs e as castanhas". uma jovem avelã escreveu: "Oh. ao passo que as amêndoas. rolavam pela grama nas mãos das crianças. mas que ideia malsã/Imagem de puro asco/Ânimo. . quando muito. analfabetos. * Contra o eugenismo das nozes. tabaco e perfume nas mesas dos cabarés. bela avelã!/Noz é que parece um saco!" * Enquanto tais embates se davam pelos salões e academias científicas. cruzavam oceanos nos bolsos dos marujos. "é que a natureza moldou as nozes tal qual o cérebro dos humanos –a segunda espécie mais evoluída. Pelo telefone 21/06/2015 O cara tá recostado sobre dois travesseiros, na cama de um quarto de hotel. Ao lado dele, no celular estrategicamente apoiado num terceiro travesseiro, uma oriental ruiva faz sexo com um time de futebol americano. O cara vai abrir a calça, mas se dá conta do absurdo e para. O absurdo não é a oriental ruiva com um time de futebol americano, é ele se masturbar olhando pra um telefone. Enquanto a moça faz malabarismos na telinha de cristal líquido, ele se lembra da infância. Um telefone era uma geringonça que trazia ou levava a voz por uns furinhos e custava o mesmo que um Fusca. Morria uma tia, aparecia lá no inventário: um apartamento na Aclimação, uma chácara em Jandira, uma linha telefônica. Agora, uma linha sai por o quê? Vinte mensais? Ele não sabe e decide parar de pensar no assunto, pois sua cabeça já tá indo pra privatização das teles e o que ele menos queria quando apoiou o celular no travesseiro era visualizar o rosto do Sérgio Motta. Ele tira a calça, resolve mudar de filme e volta pro menu do site. Uma gordinha com macacão de detenta fazendo um boquete num loiro vestido de guarda. Um senhor branco com uma jovem indiana. Um jovem negro com uma senhora bronzeada. Um caminhoneiro com duas cheerleaders. Doze cheerleaders sem nenhum caminhoneiro. Uma suruba carnavalesca dos anos 80. Mãe e filha amarrando um entregador de pizza a uma cadeira. O cara abre o menu por categorias, hesita entre POV (ponto de vista), Gang Bang (muitos homens com uma mulher), Amateur (vídeos amadores –ou vídeos profissionais imitando vídeos amadores) e Wild & Crazy, onde encontra um homem fantasiado de panda sodomizando uma garota vestida de índia apache. Diante da miríade de opções, ele se distrai de novo, lembrando da sua adolescência. Quando vê, está dando uma bronca imaginária num moleque de 15 anos que ele nunca viu. "Cê não tem direito de reclamar da vida, moleque! Se você quer ver mulher pelada, hoje, basta tirar o telefone do bolso! No meio da aula! No ponto de ônibus! Esperando chamarem tua senha na fila do cartório! Filmes hétero! Filmes gays! Pandas com índias apache! Você sabe a dificuldade que era arrumar uma mísera revistinha de sacanagem no meu tempo?! Tinha que ter coragem de ir lá na banca! E o dono da banca conhecia a nossa mãe, a nossa irmã, a nossa avó! Era "Playboy" e olhe lá! Às vezes, a gente tinha que se virar com uma "Boa Forma", mesmo! Teve umas férias na praia em que eu passei uma semana inteirinha com uma "Casa Cláudia", só porque, numa matéria sobre saunas, aparecia uma mulher de maiô! De maiô! Na "Casa Cláudia", moleque! E você ainda vem reclamar da vida?! Hein?!" Quem seria aquele moleque, por que o moleque reclamava da vida e o que o cara tinha a ver com isso, jamais saberá. Mesmo porque, o telefone toca sobre o travesseiro e o pessoal avisa que já tá no lobby. Ele se veste correndo, desce e em 15 minutos está na sala de conferências, apresentando um "data show" sobre mudanças na logística de transporte de perecíveis para 36 funcionários da rede de supermercados na qual ele é subgerente regional de distribuição. Só voltará pro quarto nove horas mais tarde, bêbado, cairá na cama sem tirar a roupa e sonhará com o Sérgio Motta, vestido de índia apache. Alguém tem que tomar uma atitude 28/06/2015 É inacreditável que no ano da graça de 2015, depois de havermos tocado a face da lua e o fundo dos mares, a Nona de Beethoven e o Marin pra correr, ainda não tenhamos encontrado uma maneira melhor de fechar roupas de bebê do que esses 134 botõezinhos metálicos que as serpenteiam da gola ao dedão do pé, ora pela frente, ora por trás –ora pela frente E por trás– com traçados mais mirabolantes que os caminhos do Waze na hora do rush. Quatro e dezessete da madrugada, o bebê urra, você aperta, em vão, o trigésimo sétimo botãozinho do pijama. O botãozinho não fecha. Você inclina o corpo para que a lanterna no seu sovaco ilumine melhor a cena – com o cuidado de não jogar o facho nos olhos do seu filho, já por demais assoberbados diante da sua trevosa incompetência– e, sob a luz tíbia das alcalinas insones, você descobre que os dois botões são iguais. São dois botões com furinho. Onde está, então, o botão com pininho? Lembre-se, são 4h17. O bebê urra. Você não está de férias. Você tem um emprego no qual costumava ser competente. Você tem prazos que costumava cumprir. Você tem uma mulher com a qual costumava fazer sexo. Você tem sonhos que costumava perseguir. Você não queria estar com uma lanterna no sovaco, procurando, no escuro, um pininho metálico. Mas você está, porque milhões de anos de seleção natural te programaram para agir assim, porque seus genes falam mais alto –e mais alto ainda falou sua mulher, meia hora atrás: "Eu também trabalho amanhã! Eu já fui às onze e à uma e meia! Nem vem!". Você acha, enfim, o botão com pininho. Está atachado do outro lado da roupa, um botão acima, ou seja, todos os 36 botões anteriores foram fechados errado, ou seja, você terá que voltar 36 casas neste complexo jogo de tabuleiro chamado neném. Eu me pergunto, enquanto vou abrindo os botões e fechando a cara: o que houve com o velcro? Por que o velcro não trilhou o futuro brilhante que, lá por 83, imaginamos para ele? Lembro de, aos seis anos, festejá-lo como um salto evolutivo irrevogável. Por que alguém se submeteria, depois dele, ao suplício medieval de amarrar cadarços? O velcro substituiria não só os cordões dos nossos tênis, mas os fechos das roupas, as alças das bolsas, os cintos de segurança. O velcro, porém, não dominou o mundo. Foi como aquela mochila voadora na abertura dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 84, uma falsa esperança, de modo que aqui estamos, agora, penando pra fechar essa roupa, andando com as próprias pernas. Veja: eu tenho um celular que faz filmes. Uma máquina que faz pão. Uma escova de dentes que parece uma nave do Star Trek. Em vários momentos do meu dia, me sinto em 2074. Basta meus filhos fazerem cocô, porém, e volto a 1352. Eu apoiaria um deputado que levantasse a bandeira: "Por uma revolução no vestuário neonatal! Por um choque de lógica no pijama de pezinho!". Não, um deputado, não, tem que ser um esforço internacional, tipo um Plano Marshall, pois com o Congresso atual é capaz de a roupinha acabar sendo aprovada com 1.786 botões (superfaturados), onze cadarços, seis zíperes, uma cruz na gola, e, se bobear, umas algeminhas para os bebês que chorarem depois das oito. É duro, meu filho, mas a verdade é essa: estamos abandonados à própria sorte. Nós e os nossos botões. A emenda de Hamurabi 05/07/2015 Ontem, escrevi um artigo ponderado contra a redução da maioridade penal. Começava citando Durkheim, um dos pais da sociologia, para questionar as causas da violência e os desajustes do nosso país, 11º lugar entre os que mais matam no mundo. Hoje, porém, reli e resolvi voltar atrás. Quem quer saber de Durkheim? Quem quer saber de sociologia? Quem quer saber de causas e desajustes? As pessoas querem é ver sangue, querem é programas policiais vespertinos na voz eufórica de um Marcelo Rezende ou qualquer outro desses Galvões Buenos da barbárie. Comecemos de novo, então, mais afinados com nosso tempo. Comecemos com uma decapitação, como essas tão corriqueiras no Estado Islâmico e nos presídios brasileiros. O Estado Islâmico, mirim, exibe as cabeças em sites obscuros da internet. Nós, escolados, as exibimos na TV aberta, à tarde, sendo atiradas por cima dos muros, no colo de crianças e donas de casa. Ponhamos nossa decapitação num futuro próximo: comecemos com a primeira cabeça de um menor de idade, encarcerado junto a adultos, sendo lançada para fora de um presídio. Excelentíssimo deputado que votou "sim" pela redução da maioridade penal, excelentíssima deputada que votou "sim" pela redução da maioridade penal: parabéns! Essa cabeça vos pertence. Aliás, vocês merecem estar lá, nesse dia histórico. Deveriam ir até a calçada em frente ao presídio, como nessas inaugurações de obra. Deveriam inaugurar essa cabeça. Deveriam esticar uma fitinha verde e amarela em torno da cabeça e cortá-la. A fitinha, não a cabeça –a cabeça vocês já cortaram com seus votos. Imagino um excelentíssimo deputado –aquele cuja inconfundível voz nasalada não pode reverberar para além das nossas fronteiras, sob o risco de ser calada pela Interpol– se gabando, diante das câmeras: "Foi o Maluf que fez!". Não seria uma mentira completa, como tantas outras. Caso a redução seja aprovada no Congresso e no STF, será uma obra do Maluf, mas junto à maioria do Legislativo e ao topo do Judiciário, em sintonia com a 87% da população brasileira. PT e PSDB não precisarão brigar, como sempre, nas últimas décadas, pela posse da cabeça. Sem o apoio do PSDB, Eduardo Cunha não aprova nada. E sem o PT, claro, Eduardo Cunha sequer existiria para além da Guanabara. Eduardo Cunha é o tão sonhado elo entre os dois partidos –só que num pesadelo. No texto que eu tinha escrito, aquele que joguei fora, eu expunha links com dados de alguns países para provar que mais violência por parte do Estado não resulta em menos violência por parte dos criminosos, mas fui ler um pouco o que diziam os favoráveis à redução e descobri que isso não lhes importa. As neotietes do Talião não estão preocupadas em diminuir a criminalidade, elas querem é vingança, querem sangue, querem ver cabeças rolando, no meio da tarde, como esta que ora lhes ofereço. Olhem bem para esta cabeça, excelentíssimos deputados. Ela é o produto da emenda de Hamurabi que vocês estão cunhando –sim, cunhando– em nossa Constituição. Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Lula, onde estão vocês? O que aconteceu com seus partidos, que jazem tão acéfalos quanto o corpo do menino, amarrado às grades da penitenciária, durante este interminável motim? Meia abdominal 12/07/2015 Deito no banco de pedra, dobro as pernas, apoio os pés sobre o assento, entrelaço as mãos atrás da cabeça, vou erguendo o tronco, devagar, até que, no meio da abdominal, dou com o céu, lá no alto. É um desses céus de inverno, no campo: limpo, azul, uma ou outra nuvem indo, sem muita pressa, sabe-se lá pra onde, como as vacas no pasto aqui embaixo. É bonito, mas nem de longe é o céu mais espetacular que eu já vi. Lembro do sol se pondo no mar de Itaúnas, na adolescência. (A bola de fogo incendiando o Atlântico e eu me remoendo na areia: Beijo? Não beijo? Beijo? Não beijei, pra variar –terminei a noite bêbado, enquanto ela se atracava com o cara do violão.) Lembro de um azul quase escuro de tão claro, sem uma única caspinha branca, emoldurando as laranjeiras, depois o castelo e por fim um pico nevado, nos jardins da Alhambra, em Granada. ("Dê-lhe esmola, mulher/ Que não há nesta vida nada/ Como a pena de ser cego em Granada", escreveu um poeta, em outro século, naquele mesmo jardim). Certas tardes paulistanas, até, com seu horizonte pós-apocalíptico (se fosse uma cor de esmalte, seria "Abóbora Gotham City"), são mais impactantes do que o céu que encontro no meio da abdominal, mas é o céu, ainda assim, em toda a sua imponência: o mesmo céu que os gauleses temiam que caísse sobre suas cabeças e para o qual bilhões de homens e mulheres erguem as mãos, todos os dias. Eu, que nasci num mundo sem Deus e, contudo, repleto de pecados – grelhados, assados, refogados, gratinados, flambados, condensados, fermentados, destilados- não ergo as mãos, mas o tronco, em busca da redenção corpórea, nessa manhã fria de julho. Ergo e logo desergo (se é que existe tal verbo): as costas tocam a pedra, a cabeça já lá nas nuvens. Quando eu era pequeno, em férias como estas, na fazenda, gostava de deitar na grama, à noite, e olhar o céu estrelado até ter a impressão de que não era ele quem estava em cima e eu, embaixo, mas o contrário: com um frio na barriga, me sentia desabando no vazio. Deitado no banco, agora, olho o céu por um tempo e me volta a impressão. A vertigem é até maior hoje, pois sei que não se trata de uma impressão: estamos mesmo desabando no vazio. ("Assim será nossa vida:/Uma tarde sempre a esquecer/Uma estrela a se apagar na treva/Um caminho entre dois túmulos"). Ah, mas não irei sem luta, poeta! Farei o que puder para estender o caminho, por isso o ridículo shortinho de Dri-Fit, esses hediondos tênis multicolores, essa quixotesca abdominal, no meio das férias. Como eu disse, não é o céu mais bonito que já vi, mas, deitado no banco, é só céu o que eu enxergo: nenhuma copa de árvore, nenhum cume de morro, nenhum fio de telefone, céu, céu, céu, de modo que não consigo pensar em mais nada. Quase posso me ver, lá do alto, minúsculo. "Gabriel, que que é aquilo, levantando e abaixando, ali pros lados de Piracaia? É um muçulmano?" "Não, Senhor. Tá de barriga pra cima. Tem mais pinta é de abdominal." "Ah, coitado." "Coitado." Dormir é para os fracos 19/07/2015 Catorze constatações a partir da paternidade: uma crônica de autoajuda para os que pretendem procriar –ou talvez, mais ainda, para os que não pretendem. * 1) Antes de ter filhos, eu era um vagabundo que ficava reclamando, sem razão, de não ter tempo pra nada. 2) Depois de ter filhos, eu sou um pobre diabo que fica reclamando, com razão, de não ter tempo pra nada. (Se hoje me dessem três meses com o tempo livre que eu tinha há dois anos, eu conseguiria aprender esperanto, escrever "Anna Karenina" e treinar pro Ironman). 3) Se eu tivesse um minuto pra pensar a respeito da paternidade, provavelmente me daria conta de que estou vivendo um dos momentos mais gloriosos da minha breve passagem sobre a terra: estou acompanhando o desabrochar de pequenos seres humanos feitos com metade dos meus genes e metade dos genes da mulher amada. 4) Se eu não tenho um minuto pra pensar a respeito da paternidade, é porque estou exercendo a paternidade, o que significa, entre outras coisas: tentar evitar que um desses pequenos seres humanos ponha na boca a mão que acabou de meter na fralda suja de cocô; tentar convencer o outro pequeno ser humano de que não dá para vermos o caranguejo agora, pois o caranguejo mora em Ubatuba, nós moramos em São Paulo –e são duas e trinta e sete da manhã. Tais atividades, convenhamos, deixam pouco espaço para a contemplação. 5) Felizmente, devido a uma simpática trapaça cognitiva, pregada pela seleção natural, o cocô dos nossos filhos nos parece muitíssimo menos repulsivo do que os cocôs do resto da humanidade. (Infelizmente, não a ponto de nos esquecermos que aquilo na fralda, nas costas, nas pernas ou na mão do pequeno ser humano continua sendo cocô.) 6) Depois de ter filhos, os minutos destinados ao próprio cocô se transformam num raro e beatífico momento de paz, pelo qual os jovens pais anseiam como um monge por sua meditação. 7) (Não é incomum pais neófitos simularem dores de barriga para poderem se trancar no banheiro várias vezes ao dia e: ler rótulo de creme hidratante, dar "like" na foto do gato da prima, fitar os azulejos num torpor quase místico). 8) Ninando um bebê, me descubro capaz de executar funções com partes do meu corpo que, até ter filhos, julgava completamente ineptas. Consigo abrir e fechar uma maçaneta com o cotovelo –sem fazer barulho. Consigo regular o "dimmer" com a bunda. Consigo abrir e fechar o mosquiteiro com o nariz. Coço o queixo na estante de livros, as costas no armário embutido, a testa no prato da samambaia. Se tiver uma única mão livre, posso fazer o solo de bateria do John Bonham em "Moby Dick", de trás pra frente –só não faço porque iria acordar o bebê. 9) Antes de ter filhos, eu achava o fim da picada pais que trabalhavam com: babá, biscoito recheado, televisão no carro. 10) Hoje, procuro uma folguista pro fim de semana (pago metade do meu salário e dou meu carro como bonificação), negócio "Só mais uma, já é o terceiro pacote!" e imploro "Não chora! Olha o filme do Senhor Batata! A Menina Moleca! A Galinha Pintadinha!". 11) Galinha Pintadinha é a imagem da Besta. 12) Galinha Pintadinha é uma bênção divina. 13) Dormir é para os fracos. 14) Eu sou fraco. The day after 26/07/2015 ET - E acabou por quê? Último Remanescente da Humanidade - Resumindo bem, a Terra esquentou muito e a gente, tipo, cozinhou. ET - Ah... Foi meteoro? Vulcão? Gigante Vermelha? ÚRH - Não, no caso, foi vacilo, mesmo. A gente queimou petróleo, muito petróleo, até o mundo virar uma sauna seca. ET - E queimaram petróleo pra quê? ÚRH - Pra se locomover, basicamente. A gente criou umas caixas de metal que queimavam petróleo e te levavam de lá pra cá, sem você ter que cansar as pernas. ET - E vocês iam de lá pra cá, pra quê? Pra fugir de predadores? ÚRH - Não, não. Os predadores viraram bolsa e tapete bem antes. A gente queimava petróleo pra ir e voltar do trabalho, da padaria, do posto, onde a galera ia encher a caixa de metal com mais petróleo e fazer uma social na lojinha, tomando Skol latão. ET - E por que vocês não iam a pé pro trabalho, pra padaria, pro posto, fazer social na lojinha, tomando Skol latão? ÚRH - Porque todo mundo se aglomerava numas cidades enormes e acabava ficando meio longe do trabalho, da padaria, do posto. ET - E por que vocês não se dividiam em cidades menores, onde dava pra fazer tudo a pé? ÚRH - Porque nas cidades enormes tinha mais possibilidade de trabalhar e de ganhar dinheiro pra poder comprar uma caixa de metal maior e mais cara, que gastasse mais petróleo. ET - E por que alguém quereria isso? ÚRH - Porque dava status e status era tudo. No trabalho, na padaria, no posto, neguinho via tua caixona de metal, capaz de ir a 240 km/h e dizia: "Pô, Prazer mesmo dava era o sexo. nem dá pra imaginar que por aqui passavam caixas de metal a 240 km/h. podia. com os vidros fechados.Poder.Dava um prazer medíocre. ar condicionado e insulfilm.ó o cara!".Tirando meleca do nariz? Dava algum prazer físico. das bandejinhas de isopor e de umas pessoas que insistiram até o fim em empurrar folha na calçada com o esguicho. ET . não era assim. ET . na verdade. ficava tudo engarrafado. até onde eu sei. não? ÚRH .Oi? ÚRH .Ué.Não. porque tava ou trabalhando que nem louco pra comprar uma caixa de metal. ET .Então vocês todos morreram porque gostavam de ficar parados em caixas de metal que queimavam petróleo pra levar vocês de lá pra cá a uma velocidade inferior à das próprias pernas? ÚRH . não: como eram muitas caixas de metal e todos queriam se locomover ao mesmo tempo. olhando esses escombros. mas no fim ninguém mais tinha tempo pro sexo.É. por horas.Esquece. tentando chegar ao trabalho. onde trabalharia que nem louco pra comprar outra caixa de metal. com as pernas vocês podiam ir mais rápido que isso. é bonito? Fresquinho? Tem praia? . agora. ET . também. ET . ÚRH . Mas a gente preferia ir devagarinho na caixa de metal. ouvindo notícias sobre o trânsito e tirando meleca do nariz. de boa. ou parado dentro da caixa de metal. Podemos falar de outro assunto? E lá de onde cê vem. Por causa disso. E uma culpinha. isso? ÚRH .Nossa. Nos horários de pico a média era de 8 km/h. em tomar coragem e agir como um homem: dizer que tô indo comprar cigarros na esquina e nunca mais voltar. não há banquete nem javali. Penso que se eu simplesmente não for. gelarei os pés nos antárticos azulejos da cozinha. se eu virar pro lado e dormir. sua vez. deste sono que vem de algum lugar entre as trevas antediluvianas e as cervejas pós-jantar. o divórcio. eu vinha planando devagarinho em direção ao javali e já estava quase dando uma dentada no glorioso pernil quando uma dedada nas costelas me fisga de volta ao mundo dos vivos: "Sua vez. pois para ir comprar cigarros na . não sei voar. minha mulher terá de ir. Diante desta dor. Eis a minha atitude. sou um monstro cujo único objetivo é seguir dormindo –um ciclope cujo olho solitário só enxerga o travesseiro. Do outro lado da cama. Sou eu. então. meu filho chora no quarto ao lado e cabe a mim tomar uma atitude. não resta dúvida.Sua vez 02/08/2015 Eu vinha voando. acabarei com cocô nas mãos. Tais vislumbres não me parecem ruins: eles doem. metade das cervejas de horas atrás ainda circula no meu sangue em forma de álcool. são quatro e doze da manhã. alguma hora. a outra metade já se emplasta em meus neurônios em forma de ressaca. quem terá que deixar esta cama quentinha e sair tropeçando pela noite escura. um filho da revolução cultural dos anos 60 que acredita em direitos iguais para homens e mulheres. porém. não sou mais uma pessoa boa. mas não me parece uma boa estratégia. deste frio. só que no jardim da minha avó. era como aquele banquete no final do "Asterix". Leva a eternidade de uns dois segundos pra eu entender que não sou um gaulês vitorioso. Penso. vai lá que ele tá chorando faz tempo". tão honrosa quanto permite a situação: "Eu fui à uma!". mas a minha mulher também trabalha o dia inteiro pra sustentar essa família. Caso precise fazer uma mamadeira. depois de pedir o divórcio. um pai esforçado. nos braços e há chances nada remotas de levar um jato de xixi no meio da testa. mas é inútil. vem a resposta incontornável: "Eu fui às três". Penso em dizer "Não vou porque eu trabalho o dia inteiro pra sustentar essa família!". Caso precise trocar a fralda. por homens. O exército de Genghis Khan. tropeçando pela noite escura. . nostálgico. Entorpecido pelo coquetel de sono. Maldito iluminismo! Maldita Inés de la Cruz! Maldita "Casa de Bonecas"! Maldito século 20! Maldita psicanálise! Maldita Simone de Beauvoir! Malditos filmes europeus! Maldita Virginia Woolf! Malditos hippies! Maldita Yoko! Maldita Leila Diniz! Maldito parto humanizado! Malditas peladonas de protesto! Malditas lésbicas da novela! Malditos vibradores! Malditos! Malditas! "Vai! É a sua vez!" –e eu vou. em Bogart. em Don Draper. Duvido que tenham trocado uma fralda sequer. praguejando contra a injustiça de um mundo justo. penso. álcool e choro de bebê.esquina e nunca mais voltar eu teria que abrir mão de tudo o que me é mais precioso: esta cama. Um mundo em que a fumaça vinha dos assados ou dos vilarejos incendiados. agora. Os romanos e os gauleses. não dos sutiãs queimados em prol da -por quê?! Por quê?!– igualdade. em Tony Soprano. Homens num mundo de homens. para homens. Invejo os colonizadores europeus. botei meus fones no ouvido e saí pra correr. nas entranhas metafísicas do microchip. . apertei o passo e saí trotando conforme a música. quando o "shuffle" -que. conhece meus estados de espírito -do contrário. ouço uns passarinhos cantando e vejo uma água cristalina. com tanta maestria. mandou "Inútil". que neste momento em que espremo o bagaço da esperança atrás das últimas gotas de glicose. descalço. E eu que era triste. estou caminhando sob chapéus de sol. mesmo assim) em qualquer possível fé no futuro. vá lá. ou sentado no Antonio's. pra Pasárgada ou pro Beleléu. mandando às favas tudo o que se passou no meio. este pequeno exu eletrônico cuja missão. Eu posso estar no semiárido nordestino ou na pleniárida Santo Amaro: vem uma lufada de brisa fresca direto do Jardim Botânico. portanto. ignoro por completo o que seja um "pixuleco". de quebra. em vez de repudiar os versos. Foi só pra tripudiar.não sei se é um riacho na Floresta da Tijuca ou um gim tônica na mão do Vinicius de Moraes. não poderia montar playlists que manipulam. o pensamento tropicando pela vasta terra de ninguém surgida entre as fileiras do Petrolão e as trincheiras do Golpão. do Tom Jobim -se não morri de embolia na subida instantânea. ele me joga esta pá de cal (engraçada. O pior é que ando me sentindo tão 7 x 1 que. entre a Tônia Carrero e a Leila Diniz. do Ultraje a Rigor. em dois acordes já me esqueci do Eduardo Cunha. Tom Jobim sempre teve o poder de restaurar a minha fé no Brasil -e.Insensatez 09/08/2015 Quinta à noite. o Borba Gato e os urubus. O "shuffle" sabe das minhas inclinações políticas. na humanidade. descrente deste mundo. desanimado. é brincar com nossos humores. foi por milagre. Já estava quase decidido a ir correndo pra Vladivostok. é dado a súbitas oscilações- resolveu me resgatar das profundezas do pessimismo. mas de cal. somem a seca e os fios elétricos. como todo exu. Não tinha dado três passos e o "shuffle". os batimentos do meu coração. amaldiçoando de Cabral às cabriolas do Eduardo Cunha. emendando "Inútil" com "Insensatez". puxando um "Canto de Ossanha". Na TV. mas há de clarear. eu só ouvia os sábios conselhos do exu binário. "Nine Out of Ten". do Jorge Ben. suado. o governo tentava ocultar os próprios erros.. ele fechou a noite com um pequeno milagre umbandofônico. na voz de Nina Simone. brasileiros batiam panela.. do Tim Maia. A partir daí. pessoal. do Pixinguinha. saltou sozinho da pasta "MPB" pra pasta "Jazz" e me brindou com "Here Comes The Sun". mas eu não escutava nada daquilo. Era quinta. depois de mais uns dez hits da mesma estirpe. "1 X 0". Não era sábado. "Do Leme ao Pontal". chamou o Vinicius de novo pra declamar "O Dia da Criação": "Hoje é sábado.Vinicius -"O branco mais preto do Brasil". muitos deles ansiosos para punir tais erros com erros ainda maiores. "Menina. do Tom Zé. dos Titãs. A noite tá escura. exausto e quase tranquilo.)". o exu-monta-lista se empolgou e me brindou com um coquetel levanta defunto de música popular brasileira: mandou "Umbabarauma". do Gil. amanhã é domingo (. "Sonífera Ilha".deve ter seus contatos com a entidade do iPod. "Back in Bahia". pois ouviu meus pensamentos e conseguiu se meter logo depois do amigo Tom. Amanhã de Manhã". do Caetano e. Pelas janelas. acompanhado por Baden Powell. Quando parei de correr. . essa Cabul de laje batida onde se amontoa boa parte da população? Temos toda a razão de bater panelas quando o governo se cala diante dos descalabros venezuelanos e da ditadura cubana. vândalo que faz política com pedras. Ninguém bate woks por causa disso? Temos toda a razão de bater panelas contra o estelionato eleitoral do PT. que prometem paz. Mas por que não batemos panelas diante do fato de nosso principal parceiro comercial ser a China. participa de grupos de extermínio. mas coloca São Paulo à beira do co-lap-so-hí-dri-co"? Um cristão cuja polícia.Por quem as panelas batem 16/08/2015 Temos toda a razão de bater panelas quando a presidente aparece na TV dizendo que a culpa por nossa pindaíba é da crise internacional. prometendo "e-fi-ci-ên-ci- a" em cada sílaba. maior ditadura do planeta? O tofu que alimenta aquela tirania é feito com a nossa soja e os fazendeiros. essa Faixa de Gaza de tijolo aparente. Mas como podemos não bater panelas contra o anel de pobreza que desde sempre engloba as metrópoles brasileiras. "sempre atento à governabilidade do país"? Temos toda a razão de bater panelas contra a corrupção da Petrobras. Esta semana. não raro. Mas por que não batemos panelas quando Eduardo Cunha. o líder dos "black blocs" brasileiros. foram 18 chacinados em Osasco e Barueri. Mas por que não batemos panelas contra o estelionato eleitoral do PSDB. Imagina se fosse no Iguatemi? E o estelionato das UPPs. Mas por que não batemos panelas contra o mensalão mineiro ou o cartel do metrô paulistano? Por que não batemos panelas contra a compra de votos para a reeleição do FHC? Por acaso pagar apoio na Câmara é mais grave do que pagar emenda na Constituição? Temos toda a razão de bater panelas contra o retrocesso econômico de 2015. no Rio. mas torturam um cidadão até a morte e somem com o corpo? . bombas e coquetéis molotov. ruralistas e empresários que acusam a "venezualização" do Brasil são os mesmos que lucram com o dinheiro comunista. que elege repetidamente um governador tipo "gerente". na periferia. vai em rede nacional dizer que trabalha "para o povo". este bombardeio cirúrgico que pretende eliminar o PT –e só o PT– para "libertar o Brasil". mas não faz isso comigo!". hoje. alvará. é mais um fruto da nossa incompetência. para protestar contra a incompetência. . a corrupção e a burrice do país como um todo? Um país que mata seus jovens. Este ódio cego. Mas por que não sair pra rua para protestar contra a incompetência. a corrupção e a burrice do governo. dentro de um contêiner. um país onde os negros correspondem a 15% dos alunos universitários e a 67% da população carcerária. não é o desabrochar da consciência cívica. esta parcialidade hipócrita. polui. segundo um policial que testemunhou a barbárie. espanca e esfaqueia mulher (mas retira a discussão de gênero do currículo escolar). gritava o Amarildo. palmas para a nossa burrice. dirige pelo acostamento. empoderando Renan Calheiros e Eduardo Cunha. Como pode a nossa maior preocupação em relação ao Rio. estupra. mais uma vitória da corrupção. não."Não. licença ambiental. neste domingo. sonega impostos. compra carteira de motorista. ser com a qualidade das águas para as Olimpíadas de 2016? Cadê o Amarildo? Cadê as panelas? Temos toda a razão de sair pra rua. isso não! Me mata. entre dezenas de razões para se indignar com a realidade brasileira. o Ministério Público e a PF são instituições que "gozam de independência". começa assim: "Prescrição. três famigerados escândalos tucanos: a compra de votos para a emenda da reeleição.ago). vice de FHC. a Justiça é mais "independente" pra uns lados do que pra outros. No escândalo da emenda da reeleição. os inocentes regando o jardim. o "Engavetador Geral da República". apesar de negociatas de votos estarem gravadas (veja depoimento de Fernando Rodrigues. Não –o Brasil é esculhambado demais para uma seleção tão criteriosa–. o mensalão mineiro e o cartel do metrô paulistano. Prêmio Esso de 1997 com matéria sobre o assunto: migre. Não se trata de opinião pessoal. o economista Samuel Pessôa. onde os bandidos estão na cadeia. editorial desta Folha no dia 30 de março de 2015. Quanto ao cartel do metrô. preferiu deixar pra lá. me acusou de "enorme desonestidade intelectual". atrasos. primo de Marco Maciel. fruto da minha "desonestidade intelectual. mas olhando o passado recente. basta lembrar que um . "Será que Antonio Prata acredita que somente candidatos tucanos conseguem ser aprovados nos concursos públicos para o Ministério Público ou a Polícia Federal?". amiúde." Réu no mensalão tucano. ex- assessor de Aécio Neves e de Tasso Jereissati. inclusive no dito mensalão tucano. e. vivemos num país justo. ao lado de dez descalabros petistas. "no regaço da Justiça mineira" –aspas da Folha.Resposta a Samuel Pessôa 30/08/2015 Em sua coluna no último domingo (23). Na visão "poliana" do colunista. Minha trapaça teria sido incluir no texto "Por quem as panelas batem" (16. temos de admitir que. se não há nenhuma condenação nos "supostos escândalos tucanos". incúria e engavetamento beneficiam políticos do PSDB acusados de irregularidades. citá-los ao lado de falcatruas do PT é um "truque retórico inaceitável". Eduardo Azeredo renunciou ao cargo de deputado federal em 2014 para que o processo saísse do STF e voltasse à primeira instância. onde se encontra até hoje. Geraldo Brindeiro. "Justiça tarda e falha".me/rkS8y). Prefere apregoar a inocência de Antonio Anastasia. num caso a que jamais me referi. como fazem militantes tipo Samuel Pessôa. O que Samuel Pessôa. num processo sobre a "aquisição de um apartamento na orla marítima da cidade do Rio de Janeiro. felizmente. aí sim. só ajuda a escamotear as verdadeiras raízes do nosso atraso. que por pouco não perdeu a chance de contar com a parceria fundamental dos europeus. persuadir. . Menciona FHC. diz sobre eles? Nada.pedido de investigação do Ministério Público suíço empacou por três anos na mesa do procurador Rodrigo de Grandis. "enorme desonestidade intelectual". tão irado com a inclusão dos três "supostos escândalos" no freak show da política nacional. Eduardo Jorge. não citei os escândalos tucanos para negar ou ofuscar os crimes petistas que. além de denotar profunda ignorância sobre a realidade brasileira ou. para merecer tais nomes. Em minha coluna. Meu ponto é que creditar todas as mazelas nacionais a um único partido." Só não devolvo a acusação de "truque retórico" porque tanto os truques quanto a retórica precisam. foram e estão sendo investigados. mas para apontar a absolvição do ex-secretário Geral da Presidência. numa sala de aula. comprido e cacheado. Madalena. sorriso brejeiro. com suas consoantes pontiagudas. agora quase consigo vê-la na mesa ao lado. mudada minha visão de mundo. Será? Será mesmo que a imagem não foi deformada? Quem me garante que o presente não tenha embelezado a garota de acordo com meus valores atuais? Pra começo de conversa. No colégio que estudávamos. Vanessas e Sofias que admirávamos. ouvindo rádio. às seis e meia da tarde. os modelos de beleza eram a Xuxa e as Paquitas –entre as commodities mais valorizadas na Bolsa do primário não estava. como se vê. na primeira série. sai em beco" e caio numa divagação meio Oliver Sacks: engraçado que a imagem daquela menina. A Madalena de 1985 se misturou à do Gil. penso. destoava das Patrícias. a memória foi atiçada pela música. Não era. Falando assim. percebo que a melanina está em alta na minha Bovespa pessoal. lábios grossos. e a descubro bonita por trás do rótulo. O próprio nome Madalena. não tenha sido deformada pelo juízo de valor. em 1985. Não foi passeando na roça que encontrei Madalena. em 1985 todos a achávamos feia. Não me lembrava dela havia anos. mesmo encaixotada em meus arquivos com o carimbo "FEIA". uma pequena Sônia Braga de Melissinha. para. mas parado na Doutor Arnaldo. como num clipe –reparo que se parece muito com a Camila Pitanga. Bic dez cores e estojo coreano. no Morumbi. O trânsito anda. Vanessa e Sofia estão. hoje. com seus "as" abertos e consoantes molengas. Mudado o meu entorno. de vestido de chita. "entra em beco. está para sandália rasteirinha assim como Patrícia. até parece que eu era apaixonado pela Madalena. Vejo minha colega de infância sentada numa pedra. Será que me livrei de parte dos preconceitos de menino . a música segue. A Madalena do rádio me levou a outra. para botas de Paquita.Encontrei Madalena 27/09/2015 "Fui passear na roça/ Encontrei Madalena/ Sentada numa pedra/ Comendo farinha seca". Vendo essa Madalena Pitanga. a desencaixoto. a melanina. Embora ela me apareça linda na memória. a pele morena. na nossa primeira série: o cabelo preto. as chacinas da PM em São Paulo. "Madalena é Brasiiiil!". Vão me chamar de petista? De machista? De racista? Todo mundo buzina e ninguém ouve nada. estudei mesmo com uma Madalena. lá do fundo do meu córtex. graciosa. o governo se esfacelando. emporcalhando qualquer bandeira que soe remotamente de esquerda. O Waze fica recalculando e avisando que estamos cada vez mais longe do nosso destino. pronto. A gente devia voltar pra 1985 e recomeçar do zero. paulista. algum dia. . preciso ter esperança no Brasil. um mínimo de otimismo pra continuar saindo da cama todo dia. cravo e canela. Vanessas e Sofias. Madalena surge. "Que horas ela volta?" indo e vindo na minha cabeça: aí a memória encontra a menina morena no meio das Paquitas. Eu não daria a menor bola pras Patrícias. para. tudo zoado. de colégio particular? Ou a beleza da Madalena é uma espécie de ação –ou reação– afirmativa do meu senso estético. O trânsito anda. Galvão Bueno grita. às seis e meia da tarde. Tá tudo travado. num cruzamento dos meus neurônios.branco. bela. sai em beco". só teria olhos para a Madalena –se é que. Penso nos comentários que esta crônica irá gerar. diante dos horrores atuais? O apartheid praiano no Rio. "Entra em beco. vê se pode uma coisa dessa? Todo dia morre motoboy em São Paulo! Todo dia! E não tem como agilizar essa perícia? Não tem condição. Alan? Só notícia ruim. cada moto que cai. tá um caos aquilo ali." "Tragédia! Situação com refém na ponte estaiada. tão usando gás . amanhã já viu. As três faixas sentido doutor Arnaldo completamente fechadas". fugindo do fogo. no sentido bairro. "Alô. Um incêndio em 200 barracos na favela de Paraisópolis tá praticamente fechando a Giovanni Gronchi. Agora. Ludmila. hoje?". trânsito! Alan Zucchini. Alan?". pega a Bandeirantes. senão. Ludmila. mas precisa parar o trânsito? Faz corrente no Facebook! Grupo de zapzap!". "Eita ferro." "Que mais. E continua na pista. Berrini. "Zona leste: pra quem pega a Radial o trânsito também vai embaçado. seis e catorze da tarde. lá vai todo mundo fechar a Paulista de novo!". Parece que o motoboy. "Infelizmente. tamos aí com mais de 500 km de engarrafamento. aí. agora. quer dizer.Trânsito 04/10/2015 "E agora. hein. é professor. imagina. aí. trânsito complicado hoje na capital. continua sim. Ludmila". "Haha! É isso mesmo. é sem isso. que matou 15 pessoas em Jandira. quer protestar? Legal. com uma pista interditada por causa de um acidente envolvendo uma betoneira e um motoboy. "Pelamor! Que mais. "Não tá fácil. é com você!". "A tropa de choque já chegou. todo dia. o trânsito tá ruim mesmo é no Morumbi. trava geral ali! Vamos torcer pra não morrer ninguém. A marginal Pinheiros tá bloqueada na altura da ponte estaiada por causa de uma situação com reféns num ônibus escolar. onde um grupo de 300 manifestantes protesta contra a última chacina. arrastão. parece que os moradores da comunidade tão inclusive invadindo as pistas. veio a falecer". é sem-teto. cadê a polícia. sem aquilo! Gente. Ludmila. isso. Alan?". tá esperando a chegada da perícia pra liberar. "Pois é. do fim de semana." "Gente. Vamos sobrevoando agora a região da avenida Paulista. travar a cidade inteira!". "Vamos torcer. Alan?". infelizmente. nessas horas. aí. Ludmila. o corpo. "Pela informação que a gente tem aqui. Roberto Marinho. na hora do rush. Alan? É chacina. de assalto." "Que absurdo! Um perigo pros motoristas. Ludmila. parece que tem um homem ameaçando explodir uma bomba dentro do ônibus. atropelar alguém? Perigo até. não. Alan. ela se encontra desacordada. . parece que é uma cadelinha. vamos orar. governador? Ninguém faz nada?! Só orando. Bom trabalho da nossa polícia... tá." "Ai. "Amém!". uma cadelinha da raça pug. "Amém. prefeito. "Alô. que Deus vai ajudar a Val a sair dessa!". "Ainda bem. todo mundo critica tanto. o fogo não chega na pista. o nome dela é Valkíria e. vamos ter fé em Deus.. olha aí. mesmo. "Opa. perto ali do Cebolão. Alan?". sem perigo pros motoristas". é só nos barracos mesmo. Ludmila!". "Ainda não tenho a inf. enquanto vários motoristas. Mais alguma coisa. Alan." "E o fogo?!". Ah. "Tranquilo. tem sim. que horror! É grave?". prestam os primeiros socorros". cadê o Samu? Cadê o Águia. ali.lacrimogêneo e bala de borracha pra direcionar o pessoal de volta pra comunidade. nessas horas a gente tem que aplaudir. no caso. tá chegando aqui uma última notícia: parece que um cachorrinho foi atropelado na pista expressa da marginal Tietê. afirmar que devemos envelhecer contando apenas com a resignação dos estoicos e os antioxidantes da alfafa. cobrindo duas fossas nasais. para o ato –pouco glamouroso. incapaz de frear a deselegância do tempo do lado de dentro. clareamento. até onde eu sei– de respirar. assustado. Era tão pequeno. (Se. silicone. . lipo. ficou com cara de menina ou uma menina que. ficou com cara de senhora. dos narizes de duas ou três atrizes que também vêm diminuindo. enchimento labial e o inconfundível encenouramento artificial acabaram por criar esta ubíqua incógnita etária: 29 anos? Sessenta e oito? Só Deus –e Pitanguy– sabem. com narinas tão estreitas. chapinha. que cheguei a me perguntar se haveria espaço suficiente. frente à primeira depilação "cavada". Diante daquele nariz customizado –evidente que não era de fábrica–. que a micronapa não era um caso isolado. as lâminas higienistas do zeitgeist buscarão a eliminação nasal. Não pretendo. por que não concretar estes bueiros no meu rosto?" Não quero parecer pedante. mas precisamos de toda ajuda possível. Botox. veja bem. O que me impressionou na mulher –e é sobre isso que gostaria de falar aqui– foi o nariz. pode ao menos retardá-la um pouquinho do lado de fora. ao longo dos anos. naquela ervilha. instalado na área mais nobre do corpo humano. Que bom que a ciência. pregar o moralismo orgânico. mas um vislumbre do futuro: depois de extinto o último pelo púbico. e então percebi. lembrei do nariz do Michael Jackson. transformando cada um de nossos selfies num "Retrato de Dorian Gray" –ao contrário. mas ainda fundamental. é verdade. maquiagem. gradualmente. citando Nietzsche numa crônica de jornal.O nariz 11/10/2015 Era uma dessas mulheres que você não sabe dizer se é uma senhora que. Faz sentido uma época que tem nojo de pentelho e inventou cirurgia plástica para redução de lábios vaginais olhar com certa desconfiança para este barraco. com tantos tratamentos e intervenções estéticas. "Ué" –se perguntará minha bisneta– "se canalizamos todos os rios da nossa cidade. com tantos tratamentos e intervenções estéticas. Nos converteremos num retângulo de plástico. seremos apenas um olho –azul– a planar por um mundo holográfico. imagino.surgida com o biquíni asa-delta. sem furos. hostilidade à vida". num iPhone preto. à fome. os braços. . lá por 85. Por algumas décadas. o tronco. imunes às rugas. mas ainda não estaremos satisfeitos. há mais de cem anos. metade de um gogó. Depois do nariz. ao amor. serão as orelhas. à sede. à saudade e o sentido da vida será enfim claro e comum a todos: encontrar a tomada mais próxima. haverá entre os olhos e a boca apenas um calombinho. de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria'. tivéssemos agido com firmeza. Este horror da felicidade e da beleza". a ameaça que já pairava debaixo de nossos narizes: "Este ódio de tudo que é humano. Até que os cientistas conseguirão a proeza de prescindirmos mesmo do olho. que remetem menos ao sexo do que ao piso do banheiro. Depois as unhas. talvez não descambássemos para estes púbis glabros e assépticos. sem odores. sem fluidos. Lá por 2184. este temor dos sentidos. Depois as mãos.) Eis como o filósofo descreveu.. esta "vontade de aniquilamento. as pernas. Depois os dedos.. ao sexo. Deseja adquirir uma sacola de pano por somente R$ 3. .Não. . .Tem cartão Smart.Não.Hm. .Senhor. . .É cliente Porto Seguro.Não.Não.Não.Não. senhor? . senhor? . .99. senhor? . . na compra de uma sacola de pano por somente R$ 3. senhor. senhor? . . . Mais alguma coisa. senhor? .Uma água. senhor? . .Deseja estar fazendo um cartão Smart.Não.Não.99 para a ONG Pets Salvos de Incêndios.50. . mesmo sem levar a sacola.Tegucigalpa 18/10/2015 .Senhor.Não. o senhor pode estar colaborando com a ONG Pets Salvos de Incêndios doando apenas R$ 0.Sacolinha plástica. senhor? .Não.99. . senhor.99/ .Nota Fiscal Paulista. Gostaria de participar da promoção "Natal com Ford é no Smart!". o senhor vai estar colaborando com R$ 0.É só preencher o formulário e o desconto já vai estar valendo pra sua água. R$2. que ajuda pets salvos de incêndios em mais de 76 países. houve algum item que o senhor buscou e não encontrou. Cinta peniana.Sem pergunta é só com cartão Smart Gold e Smart Platinum. eu só quero comprar uma água! Cê nunca vai parar de me fazer pergunta? . senhor? .Maconha. senhor? .Cara. . . senhor? .Não.Alice é homem. . então 1T .Um tijolo pesa 1 kg mais meio tijolo.senhor? Serão mais de 50 Fords sorteados/ . . duas ao meio-dia e três ao entardecer.Chove.Um chiclete casou com uma chicleta e teve vários chicletinhos: qual o nome do filme. portanto.Desculpa. senhor? ."Mundo mundo vasto mundo/ se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima. . de forma que 1/2 T = 1kg e 1T = 2 kg. Urânio. pesa 3 kg. Um tijolo e meio. . .Se-a-qui-ne-vas-se-cê-u-sa-va-es-qui? .Alice Cooper e Billie Holiday: homem ou mulher. senhor? Se-tem-bro-cho-ve.O homem. senhor. As amídalas de São Nepomuceno/ ."solução'. não.Não?! .Usava. Quanto pesa um tijolo e meio.1/2 T = 1kg.Não.A família Adams. Billie é mulher. . senhor: que animal tem quatro patas pela manhã. senhor? . senhor? . Emas.Estranho. . senhor? .Se 1T=1kg +1/2 T.Senhor. não seria uma ______"? . senhor.. beleza. por favor. se o senhor preferir não estar respondendo.Cê tá brincando. .Não. pode estar pagando a taxa de conveniência de R$ 0. Guiana? . .El Salvador? .É a última pergunta.Sim.Amigo. . Tegucigalpa. Débito. . . . .Saco.A capital do Suriname é? .Hm.. senhor. senhor. .Tegucigalpa. só cheque ou dinheiro. tamos sem sistema no momento.Paramaribo. será que dava pra/ . senhor. eu pago.. eu tô com um pouquinho de pressa. mas tá perto.Não.99. Próximo! . senhor... senhor. senhor. vai. é por ali.Não. senhor.Sério?! . lamento.E Tegucigalpa é a capital de? . . . como que se defendendo de uma acusação].Não tem biscoito aqui. . filhota. eu e a minha filha de dois anos e meio. voltando da escola. .Tem. .Tem mais tarde. A vovó da Chapeuzinho é que tá dodói.[Súbita iluminação] Ele foi pra casa dele! O dodói foi pra casa dele! .Tem biscoito em casa.[Cantarola] Pela estrada afora eu vou bem sozinha. [Se cala por uns segundos.Viajou na estrada? . assertiva. E o irmãozinho dele? O dodói tem um irmãozinho? [Tento enfiar um irmãozinho pro dodói. é? . o dodói saiu. você não tá dodói. .Hm. . falando sobre um fato corriqueiro] Foi. de contrabando... encafifada]..Meu joelho não tá dodói! [Ela tinha ralado o joelho no último fim de semana. papai.Lucy in the sky with diamonds 25/10/2015 No carro. ela volta à noite. . a mamãe viajou.Não sei. chegando lá a gente vê.Não.[Quase blasé.Papai.Tem mamãe em casa. .O dodói foi pra casa dele. tem biscoito em casa. na estrada. . biscoito! . . então solta. O dodói saiu do joelho.Isso. Tá lá na casa dele.. papai? . Eu não tô dodói! .É. pra minha filha ver que todo mundo tem irmãozinho e ela não precisa sentir ciúmes do dela]. Com a mamãe dele.Tem bolo em casa. papai? . . Com o papai dele.. Agora olha o joelho. papai? . observa o trânsito lá fora. papai! É aniversário dele! [Ameaçando chorar] É aniversário do dodói! Não tem bolo! . vovó do dodói! Compra brigadeiro de morango e brigadeiro de chocolate! Papai. dura] Compra brigadeiro também. . . Suspira.[Aliviada] A vovó do dodói vai comprar bolo pro dodói! [Falando diretamente com a vovó do dodói. o papai do dodói. é no supermercado! .Claro.Não é no caminho que tem bolo. preguiça da festa do dodói.Tudo bem! A vovó do dodói tá indo pra casa do dodói e ela vai comprar bolo no caminho.Que bom. . a vovó do dodói vai comprar bolo e brigadeiro pro dodói! . quem mais? [Longo silêncio] .Isso.[Confuso -não tenho a menor ideia de quem seja a "fada do dente"-. brava. no supermercado. mas feliz com a possibilidade de embarcar em outro enredo lisérgico] Quem é a fada do dente? . E a fada do dente gosta de bolo? Ela vai na festa do dodói? . . buscando algum conforto para sua melancolia nos versos do cancioneiro popular brasileiro] A sapa na lava a pá/ Na lava parqua na cá/ Ala mara lá na lagaa/ .[Surpresa com a pergunta] Sou eu.Não tem bolo? .[Fica quieta por um tempo. talvez da nossa família também. da família do dodói. fecha os olhos e canta.[Muito feliz] Tem. como quem percebe o brócolis disfarçado no purê] Não! Tem biscoito na casa do dodói! .[Sacando a manobra.. papai! Precisa comprar bolo pra casa do dodói. tem biscoito na casa do dodói. . no supermercado. com preguiça da minha pergunta. não tem bolo na casa do dodói! . papai! [Aflita] Papai.Hm.Eu sou a fada do dente. E quem mais tá na casa do dodói? A mamãe do dodói. então.Não! [Ainda mais aflita] Precisa comprar bolo pra casa do dodói. papai. .Na lava a pá parqua na cá/ Mas qua chalá. no dia 20 de outubro. O problema é que só uma pequena parcela das vítimas desse crime busca a polícia: estudo do Ipea (goo. criada pelas feministas do grupo Think Olga. respondeu dolorosa e corajosamente à pergunta. 527 mil estupros. 50. Eis a razão pela qual.#primeiroassedio 01/11/2015 Ninguém sabe ao certo quantas mulheres são estupradas. na verdade. É evidente que quem assovia para uma mulher não comete ato equiparável ao estupro. mas é o caldo de cultura do "fiu-fiu" que arruma a cama para o abuso do titio —e do padrasto. a hashtag fez surgir nas redes sociais mais de 100 . geral e irrestrito que reina por estes costados. do serial-encoxador de transporte público.224 ocorrências foram relatadas à polícia em 2013. o que não fazemos quando não há ninguém por perto? A hashtag #primeiroassedio. Mais da metade tem menos de 13 anos. Mais de dois terços dos agressores são familiares. com todo mundo olhando. Segundo o 8° Anuário Brasileiro de Segurança Pública. durante a exibição do "MasterChef Júnior". assovios e aquela chupada grotesca —"Sfffrrrrrrrr"— de quem tá tentando tirar carne dos dentes sem o auxílio de um fio dental. do pai. Tal convicção explica por que. O estupro é apenas o ato mais extremado nascido da convicção de que qualquer manifestação do desejo masculino deve prevalecer sobre o incômodo (ou horror) que ele possa causar às mulheres. divulgado no fim de 2014.gl/4s4OGB) estima que em 2013 aconteceram. no Brasil. temos o desplante de rir imaginando a violação de uma menina de 12 anos. muitas mulheres venham advogando tolerância zero com cantadas de rua. de tempos para cá. todos os anos. em resposta aos tuiteiros do "MasterChef". Em poucos dias. Também de acordo com o Ipea. de 12 anos. Se. do chefe. 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Um crime de tal forma disseminado em nossa sociedade não se perpetuaria impune e silencioso sem o machismo amplo. alguns tuiteiros se sentiram à vontade para divulgar ao mundo piadas de cunho sexual com uma das participantes do programa. amigos ou conhecidos das vítimas. do covarde anônimo num terreno baldio. vizinhos. logrando preservar. por tios. nove. os comentários no "Masterchef" e os dados do primeiro parágrafo. de todas as maneiras. parece haver mais preocupação em atacar o nosso incipiente feminismo do que em iluminar as contradições do nosso torpe patriarcalismo. Não tinha ideia de que a situação era tão grave. em alguns meses. as bases da tradicional família brasileira —estupro incluído. Preocupação. 12 anos.mil relatos de mulheres sobre abusos sofridos na infância e na adolescência. . minha timeline se transformou num bizarro patchwork de amigas. aliás. parentes e colegas sendo abusadas. talvez só o fato de que a maior indignação em torno da violência contra a mulher. nem tão próxima. absolutamente desnecessária. as poucas conquistas das últimas décadas. Feliciano e Bolsonaro estão conseguindo reverter. desconhecidos. assim. escancarando a realidade dantesca que as meninas brasileiras sempre enfrentaram em silêncio. Mais assustador que os relatos no #primeiroassedio. nos últimos tempos. Neste país de meio milhão de estupros. aos sete. tenha sido o tema cair na prova do Enem. pois luminares da civilização como Cunha. Desde então. amigos dos pais. mas no último segundo era covardemente impedida. (Por minha vez. quando tem à disposição todos os itens do faqueiro? Facas têm fio. tipo um pudim?' E pensamos numa colher tipo espada de kendo. servem para apartar. 'O que tem a ver meter a colher?'. perguntou a Alice. fincam. consegui enxergar um senhor engravatado gritando: 'A colher não será introduzida na família brasileira!'). ameaçam. furam. Entre 2009 e 2011. falou a Alice. 'Eu imagino uma colher gigante voadora chegando do céu'. Que inadequado. ninguém mete a colher'. essa história. Garfos têm quatro pontas. Mas. vocês dirão. Por que alguém haveria de introduzir uma colher para acabar com uma briga. Única imagem possível: alguém tentando prestar socorro a uma mulher com uma enorme colher de pau. Os dados vêm de uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) intitulada "Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil".664 por ano. 472 por mês. levá-la ao prato e à boca. 5. uma mulher foi assassinada no Brasil a cada 90 minutos. Isso dá mais de 15 mulheres por dia. dentro da campanha #AgoraÉQueSãoElas. A função da colher é mexer a comida. * Essa expressão e a nossa inércia são deprimentes. Essa enorme colher se aproximava. publicada em . em que colunistas homens cedem seus espaços para mulheres. logo uma colher. Perguntei a uma amiga o que ela achava dessa expressão. "Sempre me causou curiosidade a expressão 'Em briga de marido e mulher. quem escreve é a poeta gaúcha Angélica Freitas. 'Briga de casal é algum doce delicioso. claro. ia entrar entre o marido e a mulher.Meter a colher 08/11/2015 Hoje. nunca se tratou de ajudar as mulheres. Registrou um boletim de ocorrência. Me pergunto por que será. O carro ficou na garagem de casa. #AgoraÉQueSãoElas" . Não forneceu detalhes sobre a autoria. Quase três anos depois. A justiça tarda. Não há dados disponíveis sobre o Brasil. a agressão continua impune. Segundo a pesquisa. mas deu a entender que essa pessoa tinha certeza da impunidade. Já se passaram sete meses. Dessas mortes violentas. É muito tempo. Numa entrevista coletiva realizada no dia 30 de setembro. 40% são cometidos pelos parceiros. Não se pode acusar o ex-marido sem provas. Em 2013. se ele tivesse sido punido exemplarmente pela agressão pública à professora. 80. * Uma história inquieta minha cidade. mas nós não vamos esquecer a Cláudia.2013. No dia 9 de abril. dona Zilá. Mas pode-se especular que. Sumiu sem avisar ninguém. na vida pessoal e na carreira. 48. Cláudia era uma pessoa muito querida na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Nem sempre foi assim. Em comparação. Colegas. a professora Cláudia Hartleben. onde coordenava o curso de biotecnologia. porque falava todos os dias com a mãe. Estranho. 29% aconteceram dentro de casa. o autor das ameaças. foi agredida pelo ex-marido no restaurante da universidade. alunos e família já organizaram duas passeatas para pedir um esclarecimento. do total de feminicídios no mundo. Amigos dizem que ela estava numa fase ótima. Talvez Cláudia ainda estivesse entre nós. um promotor responsável pelo caso de desaparecimento afirmou que Cláudia havia sofrido ameaças. 6% dos assassinatos de homens são de autoria das parceiras. Pelotas (RS). seja ele quem for. não teria tanta certeza da própria impunidade. desapareceu. Ela . em vez de dividirem o sofá. ele jogava futebol. quanto às mexericas. mas -de novo. Ele resmungava do cheiro de fritura com que ela se deitava na cama. "pra praticar". espalhadas no banheiro. "Não. Ele via a série dele. Às quintas. ela via a série dela.decidiram que era preciso diminuir a convivência. era morar cada um numa casa. ele vinha implicando com o tempo que ela mantinha aberta a geladeira.não resolveu. viam a mesma série. depois de ler o jornal. puft!". Ela o reprimia pelas roupas suadas. Decidiram. ela sempre queria pôr em inglês. como na época da faculdade. depois abre!". cada um com o seu mundinho. atravancando sua saída. À noite. de manhã?! E custava muito a ela botar o iPad dele pra carregar. continuavam irredutíveis. à noite. Às terças. dormir em quartos separados. ele ia cantando as marchas. Foi bom por um tempo. feito um técnico no banco de reservas: "Quarta!". bem. então. acreditaram. mas cada um dando pause quando quisesse. Quando ele dirigia. mas discutindo. Quando ela dirigia. "Terceira!". "Não bate! Vira a maçaneta e puxa!". Passaram a jantar em horários diferentes. se despediam e iam cada um prum lado do corredor. Em algumas noites. vendo a bateria no vermelho?! A solução. "Quinta! Oitenta! Bota a quinta!". ela ia ao bar com as amigas. Rebouças não! Rebouças nunca! Vai pela Gabriel!". Ele atrasava pro cinema. mas não resolveu. Ele precisava parar o carro atrás do dela. as rusgas continuavam. botando legenda na língua que bem entendesse -antes. ela desdenhava dos caminhos como um Waze contrariado: "Por que cê tá subindo a Augusta?! Pega a Nove de Julho!".O engruvinhado da mexerica 15/11/2015 Ela andava reclamando da forma como ele fechava as portas. E. ele sempre queria pôr em português. Mesmo em quartos separados. "pra entender": acabavam nem praticando nem entendendo. No dia em que discutiram feio a respeito do lado certo para começar a descascar uma mexerica -"Por cima! Todo mundo sabe! Aquele engruvinhadinho tá ali pra isso!" versus "Por baixo! É uma dedada só. até. "Pensa antes no que você quer. A ler cada um numa poltrona. Voltariam a ser namorados. Melhorou. sem picuinha nem saudade: nunca terem se conhecido. algum detalhe. Não que quisessem voltar. o caldo entornaria. A saída era se separar. mais uma vez. que de belo não teve nada. tiveram de admitir que a convivência era impossível. seriam felizes para sempre. sem cremes. de discussão em discussão. amantes ideais. sem lentes. A distância acabou com os velhos problemas. . alguma idiossincrasia de um a pinicar a paciência do outro. sem Rebouças.discordava do restaurante. enfim. sem mexericas. Um belo dia. sem geladeiras. Então chegaram. sem carros atravancando a garagem e sem baterias de iPad avisando que resta apenas 10% da carga assim que o jornal acaba de ser baixado. Na casa dela não tinha as lentes dele. mas criou um novo. à conclusão de qual seria a única forma da relação funcionar. num mundo sem marchas. Se apenas imaginassem um ao outro. Sabiam que de briguinha em briguinha. sem legendas. pairando no éter. Na casa dele não tinha os cremes dela. Sempre haveria algum incômodo. sofriam vivendo sozinhos. imenso: eles se amavam. é verdade. a gente nasceu numa ditadura. macambúzios. em Paris. sentados num trilho de trem. pode/ O que a gente não pode explodirá" e "explodirá" rimava com "poderá" e "brilhará". o homem criou um esquema elaborado e perigoso para passar cartas para fora da área em que estavam confinados. chacinas e barragens arrebentadas. O governo dos militares chegava ao fim com a vergonhosa anistia. que sorte a sua não ler jornal!". revoltada com o inquérito da polícia. O homem tinha certeza de que. Em seu depoimento. "Eu ontem chorei ouvindo a CBN. pautas-bomba.O gueto de Mariana 22/11/2015 Outro dia um amigo me ligou pra reclamar da vida. não via TV. Que tempos são esses em que a gente chora com a CBN?" Serão os tempos? Será que o mundo piorou ou sempre foi assim e eu é que fiquei adulto? Num esforço de otimismo –veja a que ponto chegamos–. Leio a carta do viúvo aos terroristas que mataram sua mulher. não ouvia rádio. a esquerda chegava à praia com o desavergonhado "desbunde". mas a previsão era de sol. "Cara. desde que a gente nasceu. veja bem. O tempo ainda estava fechado. Vejo aqueles índios mineiros. No final de uma ditadura. mas recebeu a minha inveja: "Você não tem ideia da sua sorte! Acho que. inocentando os PMs. Estava trabalhando tanto. penso na Segunda Guerra. que não fazia a menor ideia do que se passava no mundo: há meses não lia jornal. no Alemão. Por anos. Vejo na TV a mãe do menino de dez anos assassinado com um tiro na cabeça. Queria um consolo. digo ao meu amigo. à beira do ex-rio Doce. instituições e pessoas importantes de vários países. não com homens-bomba. Gilberto Gil cantava "Não se incomode/ O que a gente pode. uma vez que se soubesse do que acontecia ali. no documentário "Shoa". aviões derrubados. deixando-o com o filho de um ano e meio. ele me disse. essas cartas foram enviadas a governos. mal ajambrados. não teve época melhor pra não saber o que se passa" –e. adiante. alguém tomaria uma providência. Com outros prisioneiros do gueto de Varsóvia. Lembro do depoimento de um sobrevivente do Holocausto. o horror . no jornal. por anos. de Lagos. contudo. Ou quase nada. li: "Atentado terrorista mata 45 na Nigéria" e não senti nada. tive a resposta. Num pé de página. fingindo não ter nada a ver com essa lama. não como um nó na garganta. Não uma resposta sociológica. Facebook. mas não chorei. Na maior parte do tempo. de Barueri. "puxa. Twitter. noutras mando um casaco. da Síria. Algumas vezes dou um share. sem tomar uma atitude? Pois. pessoal. e vou cuidar dos meus assuntos. mas como um embrulho no estômago: eu sou o destinatário das cartas de Varsóvia. comprei umas esfirras de um refugiado. Todo dia elas me chegam via e-mail.nazista parecia chocá-lo menos do que o descaso geral. rolo rápido a tela pra cima. que triste". histórica. . me senti bem por semanas. vindas dos guetos do Alemão. Só depois é que veio o incômodo. depois dos atentados de Paris: como pode um ser humano ter tamanho descaso pela vida de outros seres humanos a ponto de metralhá-los indiscriminadamente? Como pode o mundo saber o que Hitler fazia com os judeus. do Pará. Pensei. Lembro do judeu polonês ao ouvir e fazer tantas vezes a pergunta. outro dia fui até o Brás. do Afeganistão. geopolítica: uma resposta íntima. na última quinta-feira. ". Nasce uma árvore. continua ali. "caroço" não significa nada e ela quer. São dias de angústia na alameda dos Araçás. explico que se a gente puser aquele caroço num vaso.. Que demora. sem dúvida. Como um céu nublado se abrindo ao sol em efeito "time-lapse". vamos plantar o caroço?! Vamos plantar o caroço?! Vamos plantar o caroço?!". . ou melhor. Olhamos a terra de perto. ore. Ao deitar a cabeça no travesseiro. Olivia me faz ir direto do berço ao jardim. "Esperando a árvore. mostra o caroço de mexerica e faz a pergunta favorita de seus dois anos e meio de vida: "Papai. Olivia. olhando pra mim. A cada manhã. ansiosa." Explico que não é assim. vejo minha filha acocorada. Regamos juntos.. a maior frustração daqueles 30 meses de vida. para na minha frente. enfiamos o caroço num pequeno vaso amarelo. por minutos a fio. Saímos pro jardim. Voltando da escola. onde jazem os restos semimumificados de uma violeta —e só me dou conta da encrenca em que me meti quando. Que a gente tem que regar e aguardar uns dias... lá fora. olhando pro caroço... a curiosidade dá lugar ao deslumbre. Ela metralha perguntas: que tamanho terá a árvore? Vai poder comer mexerica antes do almoço? Vai poder levar mexerica pra escola? Respondo sem olhá-la no olho. relembro minhas palavras com um eco bíblico: "Se a gente puser o caroço num vaso. porém. que que cê tá fazendo aí?". "Olivia.. imóvel. mas a minha suposta calma esconde uma ponta de pânico: e se essa semente não brotar? Será. precisa saber que diabo de bolinha é aquela que estava dentro da fruta. Abaixo o iPad. aso. nasce uma planta e a planta vira uma árvore e a árvore dá um monte de mexerica. o que é isso?"..Mexeriqueira em flor 29/11/2015 Olivia vem correndo. Quase sem tirar os olhos do jornal —com essa displicência da qual vou me arrepender muito quando ela for grande e já tiver suas próprias respostas—.. ore. de volta ao sofá. digo: "É um caroço".. aso. Vamos plantar o caroço.. a primeira parada é o vaso amarelo.. Óbvio. "Papai. tímida e espalhafatosa. proponho à minha mulher um esquema fraudulento. critico sua psicanálise de botequim e viro pro lado ciente de que ela tem toda razão. Sete a um na política. cheia de frutas. não acalento nenhuma esperança. ouço seus gritos de euforia. desde o apito inicial de Brasil e Alemanha. com passos decididos. E. Plantamos na madrugada. Onde não tem lama. uma maria-sem-vergonha. dá uns pulos pela grama. Engulo a seco. Percebo que. de uma hora pra outra. . nem tenho coragem de ir lá fora. Olivia abraça a minha perna. Ou arrumamos logo uma mexeriqueira em flor.Na terceira noite de tribulação. Vou apressado até o vaso amarelo: ao lado dos despojos da violeta nasceu. é deserto: uma aridez total. para cuidar de outros assuntos. já com balanço e casa na árvore. foi tudo 7 x 1. Então. Ou não vai? Na quarta manhã. De lá pra cá. Compramos uma muda. Sete a um na economia. Abro a porta e deixo a Olivia sair correndo. essa semente que vai virar planta que vai virar árvore que vai dar um monte de mexerica. "Papai! Você plantou uma flor! Você plantou uma flor! Você plantou uma flor!". será que é a Olivia quem não vai aguentar a frustração?". A Julia só me faz uma pergunta: "Caso a semente não germine. depois segue pra sala. Brigo com a Julia. Vou-me embora pra Chapecó 06/12/2015 Penteada. As aulas são dadas por gueixas. ou melhor. repetindo "Chah-peh-coh"."). * Talvez seja a entonação da voz feminina nos alto-falantes ao pronunciar "Chapecó". "Chah-peh-coh". Segundo estudo da Universidade Agnóstica de Honolulu.. aceita Antonio como seu legítimo esposo?". Talvez seja a presença oblíqua da morte. * Sim. em "Chah-peh-coh". * Ela me levaria à loucura na cama. a aeromoça troca olhares com o homem de terno. maquiada e planando pela sala de embarque sobre estratosféricos escarpins. Já reparou? "Atenção passageiros do voo Gol 1033 para Porto Alegre. * No curso para voz dos alto falantes. há um mês inteiro dedicado exclusivamente à pronúncia de "Chah-peh-coh". O engenheiro barrigudinho. a cada meia hora. a morena com pinta de dançarina do Faustão ri sem nenhum propósito. por trás dos óculos e do bigode. "Voz do Aeroporto. não queria que ela dissesse "sim". talvez o perfume do Duty Free. com escala em Chah-peh-coh. depois com a dançarina. Na fila do pão de queijo.. tenta contato visual com a aeromoça. com o propósito de chamar a atenção do garoto de fones e boné. diante do juiz. depois imagina os três juntos numa Jacuzzi em Honolulu. Vendo um . talvez uma última fumacinha do glamour "Mad Men" que as viagens de avião tiveram um dia: o fato é que há nos aeroportos uma inegável tensão sexual. dominatrix e cantoras de jazz trazidas de Nova Orleans. * Se eu me casasse com a voz do aeroporto. 63% da tensão sexual dos aeroportos brasileiros brota do langor despejado pelos alto- falantes. seria a terceira maior cidade brasileira. de mansinho. sem dúvida é a cidade mais incrível que já houve sob o sol -ou sob a lua. . a entonação com que é anunciada nos alto falantes dos aeroportos. passo adiante/ Vou-me embora pra Chapecó/ Lá não há crise política/ Lá o meu amigo Don Draper/ Faz brotar uísque da bica/ E quando eu estiver mais triste/ Mas triste de não ter jeito/ Quando de noite me der/ Vontade de me matar/ Lá sou Cliente Diamante/ Lá tenho a mulher que eu quero/ E na fila. no mundo real. Depois teríamos filhos e ela me ensinaria a niná-los com diferentes melodias para "Chapecó". Uma cidade aeroporto onde vigora o amor livre e a paz na terra aos homens e mulheres de boa vontade. * Por que há tantos voos para Chapecó? O que tantas pessoas vão fazer em Chapecó? Se Chapecó tivesse. ela viria por trás. a importância que tem nos alto-falantes dos aeroportos. no mundo real. bateria na coxa. * Vou-me embora pra Chapecó/ Lá sou Cliente Diamante/ Lá tenho a mulher que eu quero/ E na fila. meio triste.filme engraçado. eu numa poltrona. sussurrando "Chah-peh-coh". passo adiante/ Vou-me embora pra Chapecó. E se tiver. "Chapecóóóóó!". olhando a chuva lá fora. Numa tarde de domingo. dança. não ouvimos nenhum desses clichês de Facebook sobre a roubalheira petralha ou a privataria tucana." A ocupação começou contra a proposta de fechamento de 92 unidades de ensino (já adiada pelo governo). cozinham. tomam banho. a conversa que eu e os amigos escritores Fabrício Corsaletti. teatro. nestes 30 dias. questões de gênero –e a lista continua. As questões saltavam o estéril Flá-Flu e aterrissavam no solo bem mais fértil da experiência cotidiana. música. do que em toda a vida escolar. ioga. e não saíram mais. quadrinhos.Numa escola ocupada 13/12/2015 Nós fomos falar de literatura. Chico Mattoso e Paulo Werneck tivemos com os alunos de uma das 196 escolas ocupadas. um monte de papéis a que a gente não tinha acesso." "Os professores entram. disse uma das alunas. mas esperávamos que a discussão migrasse para a proposta de fechamento das 92 escolas estaduais em São Paulo. tela. nesse sentido menor. passou longe e a literatura foi apenas o veículo que nos levou ao que realmente interessava: a Política com P maiúsculo. com a ajuda de voluntários. todo mês eu tentava trazer alguém. física. o impeachment. João Paulo Cuenca. "Alckmin" foi pronunciado uma vez só –e por mim. não poderia ter sido mais diferente do que imaginávamos. que vem sendo praticado pelo país nos últimos 515 anos. culinária. "Esse ano. No entanto. não tá nem aí. "A gente só teve poesia no terceiro colegial. A política." "Encontramos três mesas de som. reparam infiltrações e recebem mais atividades extracurriculares. botam tudo na lousa e acabou. Em uma hora e meia. pro vestibular. organizaram shows." "A diretora fica vários meses viajando e quando aparece.400 anos atrás e que estes alunos e alunas da rede pública vêm resgatando desde que entraram em suas escolas de manhã cedinho. fazem faxina. mas no processo os alunos descobriram . no último domingo. mesquinho. tinta. aulas de geografia. "A gente nunca tinha tido um debate aqui". a crise hídrica e outros temas espinhosos do noticiário. há quatro semanas. no sentido que os atenienses deram ao termo 2. debates sobre dívida pública. improvisação." Desde a ocupação. mas a diretora proibia. Dormem por lá. Agora. bomba e gás lacrimogêneo. em assembleia. pra poder estudar três anos nessa escola do jeito que ela vai ser daqui pra frente. Aprenderam.questões mais importantes. se o cigarro seria ou não liberado. talvez a lição mais importante que se pode levar da escola: que são donos dos próprios narizes e responsáveis pelo mundo em que vivem. Que as escolas não precisam ser ruins. depois da ocupação". por si sós –"fazendo arroz pra cem negos" e decidindo. Me deu um baita nó na garganta: ainda não sei se foi pela esperança que essa experiência me traz num momento tão trevoso da história nacional ou se pela tristeza de ver que a única resposta que o país parece ter para os anseios destes meninos é soco. cassetete. lá dentro (não)–. se perguntam: se com pouca idade e experiência eles conseguem administrar aquele espaço tão bem. Que "público" não é do governo e tampouco de ninguém. uma garota do terceiro colegial nos falou: "O que eu mais queria era tá no primeiro. por que o Estado mais rico da oitava economia do mundo não consegue? No fim do papo. Chatas. . Abandonadas. mas deles. razão pela qual todos nós estamos aqui. Lembrei do meu colegial. Uma hora depois. erguer um brinde a ele). Tanta cerveja que. Pacheco estava indo de Lins a Bauru. Auge da Crise dos Mísseis. improvável leitor. o submarino B-59 no qual Vasili servia. que não lhe pareceu má ideia passar o resto dos seus dias sendo espinafrado por ela: tiveram sete filhos. embora até hoje seja um costume. Lembrei do dentista pernambucano nesta semana. abraçou a privada e dali não saiu mais. 15 netos (entre os quais eu me incluo) e 25 bisnetos. O clima não era dos melhores entre Washington e Moscou. cerveja. Pacheco. ao ler numa revista sobre o marinheiro russo. o estudante tomando café. foi torpedeado por um navio americano. Pacheco encheu a lata em 11 de fevereiro de 1943. por favor. a certa altura. da fase epifânica em que me dei . chocotones 20/12/2015 Se você está lendo esta crônica. (Nunca mais souberam do Dr. trancou-se no banheiro masculino.Arkhipov. Era uma garota tão linda. é porque um dentista pernambucano chamado Dr. ele dizia. o capitão do submarino não conseguia contato com a URSS. Se eu estou escrevendo esta crônica. Pacheco. Os dois ficaram batendo papo no bar. improvável leitor. Naquele dia. em 62. Naquela tarde. acabou indo no banheiro feminino. o futuro médico. mas estava muito apertado. que era muito ordeiro. Dr. em vez de comermos baratas fluorescentes e gafanhotos com três cabeças no fundo de uma caverna radioativa. bateu boca com o capitão e o convenceu a esperar mais um pouquinho. de trem. é porque em 27 de outubro de 1962 um marinheiro russo chamado Vasili Arkhipov teve um momento de iluminação. Dr. o Dr. a terceira guerra mundial parecia iminente. foi espinafrado pela garota que esperava na porta. Ao sair. agora. concluiu que a hecatombe nuclear já havia começado lá na superfície e ordenou que Vasili executasse a parte que lhes cabia naquela barafunda: disparar algumas ogivas atômicas contra os EUA. quando conheceu um jovem estudante de medicina. brindando em infinitos happy hours. nos Natais da nossa família. Pacheco. no mar do Caribe. neste final de 2015. Vasili Arkhipov discordou. (No próximo happy hour. parcelando compras no cartão e nos entupindo de chocotone. lembre-se de fazer um brinde ao Vasili). comamos chocotones porque não há mais metafísica no mundo senão chocotones. valeu. absurdas as mitocôndrias. leitor. ele volta. valeu. Depois cresci. isso tudo não tem o menor sentido e não fosse o porre de um desconhecido. era não haver lógica nenhuma: absurdo o Big Bang. 72 anos atrás. absurda a arte do encontro. no entanto. Não sei bem por que tô escrevendo essas coisas. feito um soluço. o holerite eclipsou o espanto e parei de me preocupar com o assunto. Às vezes. . Pachecão. bastando organizar tudo direitinho para chegar aonde a gente quisesse. em meio a tanto desencontro. meu filho não estaria agora batendo esta Galinha Pintadinha contra o taco do assoalho. Big Bang. Se alguma lógica havia. valeu. Vasili. Deus não existe. Penso: cazzo. valeu mitocôndrias.conta de que a vida não era uma sucessão lógica e justa de causas e efeitos razoavelmente planejáveis. Comamos chocotones. Acho que é porque é Natal (meu filho atira longe a Galinha Pintadinha e gargalha) e sinto um impulso meio hippie de dizer valeu. galera?". Fora os 187 contatos avulsos. "É. "Já tá todo mundo. E são 23 grupos. na outra ponta: "Cara. A menina. "E aí?!". no meio: "Mano. Eu sou do século 20 e no século 20 as pessoas não saíam de uma conversa sem pedir licença. Eu adoro vocês. esse ano aí eu percebi que eu tô muito sem tempo e uma das coisas que eu preciso fazer pra ter mais tempo é diminuir o número de grupos de zapzap". correria. talvez ele seja. Uma menina. Eu fico só no celular. é meio isso. O gordo: "Pô. Um sujeito ao lado: "É nós!". 'Réveillon 2012' é firmeza. mas enfim. Tenho um monte de livro que eu não leio e Netflix que eu não vejo. O gordo. Ele senta na cabeceira. É o primeiro grupo de zapzap que eu entrei. "Puxa uma cadeira!". O protagonista: "Eu sei. Mesão. mas eu tenho trabalho. tipo desligar telefone na cara. né?". E. Ó aqui meus grupos: 'Futebol de quinta': precisa de grupo pro futebol? 'Churrasco no Perê': esse churrasco foi em 2013 e a gente ainda conversa. chega: "Opa. virar as costas numa roda". em 2011.. A menina e o protagonista namoraram por uns meses. valeu aí por vir. é até sobre isso que eu queria falar. o Insta. cê resolveu bater uma DR coletiva pra sair do nosso grupo?". Todos o cumprimentam. por volta dos 35 anos (vamos chamá-lo de protagonista). brother. . silencia!". Umas 12 pessoas conversam animadamente. o e-mail". "Eu silencio.". O de cavanhaque: "Melhor grupo de zapzap!". A gente já tava junto no tempo do Orkut!". É tipo.Zapzap 27/12/2015 Bar. na outra ponta: "Réveillon doismiledozêêê!". "Cê é bem louco. aí?". E que que os outros grupos tão falando. mas aí aparece os numerinhos em vermelho e eu fico curioso e entro várias vezes por dia pra ver que que cês tão falando. Ela já o acusava de ser bem louco. Sei que tá puxado pra todo mundo. pessoal. Talvez ele fosse. tipo. Um gordo. Um homem. adoro o grupo. E o FB. se tivesse rolado o Réveillon 2012 ia ter sido demais. Pena que caiu barreira em Caraguá. e aí. O protagonista: "Então.. "Ó o sumido!". mas ele se defendeu lá atrás e se defende aqui: "Eu não sou louco. tipo. o Twitter. O que eu queria falar é que. Tenho filho. no meio: "Urru!". Não rola. o 'Não vai ter golpe!' e o 'Porra.Neguinho bota a casa pra alugar. Entra no bar ao lado." Aperta o botão. esse é o único assunto do grupo: teorias sobre a origem do grupo. "Saiu do grupo". ao que os outros cinco repetem. Chega numa mesa com seis pessoas. batendo na mesa: "Timão Japão! Timão Japão! Timão Japão!". eu vou ter tempo. do meu pai. O protagonista se levanta: "Amo vocês! Cês são demais. "Fala. Dilma!'.. "E aí?!". Os 12 olham seus celulares. Pergunta se alguém indica ortopedista bom na região de Pinheiros. "Não são vocês. o 'Turma Oswald 95'. 'Fly me to the moon': ninguém nesse grupo lembra por que o grupo existe nem por que chama 'Fly me to the moon'. cês vão ver. . Aliás. Fora o 'Família Souza'. o 'Filhos da PUC 99'. o 'Todos os Santos'. feliz Ano Novo! Até!". sou eu. de gorrinho. "É. Juro. saiu". "Timão Japão!". saúda um deles. Os seis o cumprimentam. mano!". do lado da minha mãe. vai rolar. O protagonista sai do bar. Vamos tentar nos encontrar em 2016. Não dá.." O protagonista saca o celular. sabe por quê?". Naquele furta-cor emocional dos sonhos. A euforia levou o ano a um acesso de tosse do qual pensei que não fosse sair vivo. Achei meia garrafa de uísque sobre a mesa.. E. me aparece em sonho uma figura toda estropiada. agora: 2016. (De fato. Tudo na última hora. ele sussurrou: "Sou 2016". O governo acha que eu vim salvá-lo. O COB quer que eu bata o recorde nacional de medalhas. "Bom. 2016 estava coberto de razão).. É expectativa demais nas minhas costas. Com um fiapo de voz. seu corpinho esquálido mal dando conta de segurar os andrajos. "Porque eu não existo!". Se eu pegar uma gripe. sangue! 2016. paz! Ah. mesmo sem existir. tomar três doses e ouvir deste esforçado cronista algumas piadas ruins sobre a "voracidade do tempo" -eu só tava tentando descontrair. ouviu bem? Não recauchutado.. Eu sou 2015! 2015 rebatizado. "Natural. "É muita pressão.. "Claro. "Por quê?". E o PMDB?! Só se eu dedicasse meus 366 dias. mas saiu. na noite da virada. 2003. eu tô te vendo". coberta de hematomas. não chego a 2017. Quando . uma bebidinha ia cair bem. medalhas! 2016. em ano de Olimpíada? O Dunga quer que eu faça o Brasil esquecer o 7 x 1." Corri para a sala. Um post-it colado no vento. 'Rebatizado'. já tá nessa situação?". crescimento! 2016. 2016 surgiu capengando pelo corredor. se não for pedir muito. nem remasterizado: 'Re-ba-ti-za-do'!". mas não. "Quem é você?". Veja só: às 23:59 de 2015 um sujeito jogou um moeda do alto do Martinelli. o pobre diabo aparentava ao mesmo tempo velho amigo e desconhecido. A oposição quer que eu venha redimi-la. junto aos restos da ceia. Rabiscos na areia da praia. Gelada ou natural?". meu filho. "Eu sou um número no calendário. Tivessem falado comigo quando eu me chamava 2002. vivo e sedento: "Será que você podia me arrumar um copo d'água?". Mas como eu poderia dedicar meus 366 dias ao PMDB. que ingênuos vocês são! Eu não posso nada disso. "2016?! Que aconteceu? Você nem começou. impeachment! 2016. "Isso é um sonho!". -. "É que eu venho de 2015. Chegam esbaforidos. o ano desabafou. botou seus olhos famintos no pernil e tive que lhe servir um prato. Depois de banquetear-se.2016 03/01/2016 Eis então que. meu filho. Sabe o que aconteceu com a moeda?".deu o primeiro segundo de 2016. "O quê?". "Eu não entendo vocês. "É. Esse aí. sempre o mesmo rio. rumo a fevereiro. porque da segunda vez já não é o mesmo homem nem o mesmo rio". "Então por que vocês esperam tanto de mim? A terra vai continuar girando. 2016 matou o uísque num gole. já no ponto pro Carnaval. Quando vocês fazem aniversário. soltou um arroto formidável e saiu trôpego pela madrugada. passando pelo mesmo lugar de sempre. Uma besta quadrada! É sempre o mesmo homem. "Por favor". "Acho que não". sempre eu. igualzinho". Dito isso. "Outro dia. em torno do mesmo sol. 2016 se serviu de mais uísque. vocês ficam mais sábios? Vocês imediatamente se dão conta da finitude e da urgência e da inutilidade e da beleza de tudo?". pombas! Continuou caindo!". ela estava a meio caminho do chão. "Nada. . Posso pegar umas lichias?". um grego disse que um homem nunca entra duas vezes no mesmo rio. "Heráclito". (Retomada de fôlego). Ter filhos dá trabalho. mas talvez fosse uma solução). negociando colheradas de verduras por minutos de "Peppa Pig" ou tentando evitar que uma mãozinha recém-saída da fralda cheia de cocô chegue à boca ou à barriga ou à parede. claro" e sinto uma paz de espírito meio exagerada pra quem foi simplesmente liberado de tirar as compras do carro. (Mais um pouco de riso). O negócio é que é meio difícil contemplar o milagre da existência –e definitivamente impossível ler "Guerra e Paz"– quando se está ocupado contando medidas de leite em pó. Enquanto meus amigos vêm com caixas e caixas. "Todo o tempo". "O Antonio não. Escrever dá trabalho. Escrever quase sempre dá errado: "Luto corpo a corpo./ luto todo o tempo. Estou refogando umas cebolas. porque gosto de cozinhar. em parte. no chuveiro. (Travo melancólico). vai contemplar o milagre da existência e depois vai continuar a ler "Guerra e Paz" com sua caneca na mão." (Mundo mundo vasto mundo/ se eu tivesse prestado engenharia medicina arquitetura/ não seria uma rima e a métrica ia pro espaço. mas de todas as possíveis e imagináveis incumbências que podem surgir enquanto eu refogar cebolas e das quais estarei liberado. (Gargalhada histérica). "Lutar com palavras/ é a luta mais vã". .Refogar cebolas 10/01/2016 A Mari entra na cozinha com umas cinco sacolas em cada mão: "Cês podem ajudar a descarregar?". Antes de eles nascerem você acha que vai botá-los num pedestal. já sabia o Drummond. no escuro. Entendo. mexendo a colher pra lá e pensando por que diabos tanto alívio por tão minúsculo habeas corpus. À medida que o refogado vai ficando translúcido. na fila do caixa do Frango Assado da Carvalho Pinto –e "Cerradas as portas. "Entanto lutamos/ mal rompe a manhã"./ a luta prossegue/ nas ruas do sono. sigo ali no fogão./ sem maior proveito/ que o da caça ao vento". mexendo a colher pra cá. pois a caça é ininterrupta: no escritório. também se clarificaram as ideias: percebo que o alívio não vem daquela tarefa específica. às 3h47 da madrugada. neste primeiro dia na praia. ela passa os olhos por mim. do Facebook. tomar vergonha na cara. Aptamil. azares. do Twitter. perder a vergonha na cara. trocar as fraldas. se você faz da vida o que realmente deseja ou se simplesmente boia num rio formado por sortes. arrumar a casa. há ainda esses pequenos exus eletrônicos assoviando pra gente de dentro do WhatsApp. Agora você só precisa refogar cebolas. terminar o romance. ganhar dinheiro. do Instagram e de outros tantos anéis do inferno digital. covardias. fazer as pazes com o pai. perdoar a si próprio. É preciso descarregar as compras. afinal. beber menos. conveniências: mas agora não. "Peppa Pig" e cacas mil. . ler Tolstói. comer mais fruta. dar "share" em notícias. cuidar melhor do seu amor. arrumar as estantes. responder e-mails. como uma assombração num filme B: "Venhaaa! Venhaaa! Venhaaa!" –e o pior é que a gente vai. do e-mail. desaparece o burburinho ensurdecedor das demandas e só se ouve o crepitar dos cubinhos translúcidos no azeite. colaborar em "crowdfundings". entender.Não bastasse o fluxo contínuo de palavras. Então você começa a refogar cebolas: de uma hora pra outra. ordenando. e como somos amigos. sem pestanejar: enlouqueceu. meio sem rumo pela tarde ensolarada e quando vi estava em frente à paineira da Biblioteca Mario de Andrade. mas também tem lá os seus pacíficos encantos. Eu não achava que a paineira iria me emprestar qualquer "energia". Eu tinha acordado cedo naquela sexta -e acordar cedo sempre me predispõe à felicidade. talvez acordar cedo. Talvez tenha sido o assombro com essa longevidade. antes do fim da manhã. Na verdade. Ele estava com alguns capítulos do meu livro novo desde dezembro e eu temia que não tivesse gostado. dessas de gritar "Urrú!". que não sou do tipo que abraça árvore. até a última sexta. sou do tipo que faz piada com quem abraça árvore. e como comemorávamos essa pequena alegria que é um trabalho andar bem. Comemos um peixe na brasa -peixe e brasa também costumam me predispor à felicidade. talvez os elogios ao livro e o vinho certamente colaborou: fato é que senti uma súbita vontade de abraçar aquela árvore.. brindamos com vinho branco -não à beira-mar. É uma árvore gigante. inclemente leitor.Abraçando árvore 17/01/2016 Não era uma felicidade eufórica.. estava mais pra uma brisa de contentamento. À uma. já tinha acabado de escrever tudo o que me propusera para o dia. que pode não ter a grandeza de um Atlântico. como se eu bebesse vinho branco à beira-mar ou lesse Rubem Braga na varanda de um sítio. Se me contassem. mas à beira do Cemitério da Consolação. que algum amigo meu foi visto abraçando uma paineira na rua da Consolação eu diria. Acho importante deixar claro. O trabalho havia rendido bem e. uma parceria funcionar. continuou ali depois de ele morrer e continuará ali depois que todos os 18 milhões de habitantes que hoje perambulam pela cidade de São Paulo estiverem abaixo de suas raízes.e como era sexta-feira. fui almoçar com o meu editor. Não haveria nada de místico no abraço. Gostou. nem que ela sugaria de minh'alma possíveis . Fez alguns reparos com que concordei. Mas. que provavelmente já estava ali antes do Mario de Andrade nascer. Saí andando meio emocionado. disse eu. não havia nem uma samambaia. tentando enfiar a todo custo um tronco de quase dois metros de diâmetro num livro em que. uma mínima inflexão na correria: aí está você. Olhei pro outro. aqui estou eu. Olhei prum lado. me lançou a ideia salvadora. Tomei coragem e foi só sentir o rosto tocar o tronco para ouvir: "Antonio?!". Foram dois segundos de desespero durante os quais contemplei o destrato do livro. no livro. "duas braçadas e. eu seguiria adiante. girando pra esquerda e envolvendo a árvore novamente. já noite alta desta sexta-feira. seguro. o alcoolismo e a mendicância. duas soluções do acaso para a soma de elementos da tabela periódica -e ela seguiria ali.toxinas metafísicas. Era meu editor. Nos despedimos. a minha felicidade pro outro e agora estou aqui. meu possível verdugo: "Três braçadas dá o que? Uns cinco metros de perímetro? Tava medindo pra descrever. Era algo simbólico como atirar uma rosa ao mar dia 31 de dezembro. mas só dois segundos. Três".. pois meu inconsciente. a infâmia pública. até então. consciente do perigo. Então encarei." Colou. ágil e breve. com sua fotossíntese. "Uma braçada". com minhas caraminholas. Ele foi embora prum lado. .. imóvel e longeva. Tem uma parte mais no fim em que essa paineira é importante. por esta razão. A Minhocona Feia vivia fazendo regime. pra gente ver!". merecer dos humanos um tratamento de semideus. porém. os cangurus o olharam com toda a admiração. por sinal– provocou: "Ah. frituras. animal fantástico. jejuava por dias inteiros. o coelhinho não e por isso o apelidaram de Canguruzinho Feio e passaram a chamá-lo de pulga. porém. salta-formiga e todas essas coisas ofensivas que os cangurus altos reservam para os cangurus baixinhos. mas o resultado foi apenas uma bolinha de cocô. O que mais a envergonhava. isca de baleia e todas essas coisa ofensivas que as minhocas magras reservam para as minhocas gordas. então. uma baba humilhante que a seguia por onde fosse. o Canguruzinho Feio abandonou a família e passou a viver mendigão pelas ruas de Adelaide. mas nada adiantava. tentou cortar carboidratos.O _ _ _ _ _ _ _ Feio 24/01/2016 Era uma vez um coelhinho criado por uma família de cangurus. mentalizou um ovo de 500 g da Lindt. fez toda a força de que seu pequeno esfíncter era capaz. não era o peso: era produzir. até que um deles –não muito alto. Os cangurus explodiram numa gargalhada. que não era um Canguruzinho Feio. pula-migalha. De início. Os cangurus cresciam. fechou os olhos. mas a lesma seguia inchando. glúten. E era Páscoa. linguiça. bonitão? Bota um ovo de chocolate aí. mas um belo coelho. toda a família de cangurus foi passear em Adelaide. Morto de vergonha. por isso a apelidaram de Minhocona Feia e passaram a chamá-la de bisnaga. O coelho se agachou. Um dia. O coelho ainda apertou o cocozinho com a ponta da unha e uma ponta de esperança: vai que era um M&M marrom? Não era. * Era uma vez uma lesma criada por uma família de minhocas. As minhocas pararam de crescer. em vez do húmus – orgulho e alegria de toda minhoca–. capaz de pôr ovos coloridos de chocolate e. é. . maravilhado. E o Canguruzinho Feio descobriu. Neste dia.. um coelho bebum que trombou na esquina e só não comeu o ouriço e a família de polvos porque não nasceu no fundo do mar. Neste dia. a bela jovem lesma viveu feliz com seus pares. o filhote de tigre almoçou os quatro irmãos. mas pensou melhor e percebeu que não. pressão alta e acabou infartando não muito depois da sua redenção. * Era uma vez um filhote de tigre criado por uma família de gatos. passou a ter problema de colesterol. ela descobriu que não era uma Minhocona Feia. ela se tornou: de tanto comer para compensar os tempos de penúria. diabetes. Por umas semanas. de fato. E uma condenada. por isso o apelidaram de. mas o tigre não. mas uma bela jovem lesma. o gramado alagou e as minhocas tiveram que se abrigar na varanda. na ponta de dois rastros iguais ao seu. Os gatinhos pararam de crescer. * Era uma vez um ouriço que nasceu próximo a uma família de polvos.Um dia choveu muito. a mãe. não se achava um peixe tigre e sequer sabia nadar. De nada. Por uns dez segundos. uma lesma moribunda que encontrou na varanda. .. ele acreditou que pudesse ser um polvo esquisitíssimo. a Minhocona Feia olhou para a vidraça da casa e viu duas Minhoconas Feias iguais a ela. pois assim que percebeu as risadinhas. babando na vidraça e comendo como uma condenada. mistérios mais importantes sobre os quais se debruçar. Mas as furadeiras. Traficantes. desde os celestiais (gozosos. Mas as pizzas –oh. serial killers e até o presidente da Câmara dão expediente na hora do almoço. mas me enviaram apenas algo como "Caro senhor Antonio. se não elucidarão xongas sobre Deus. passando pelos patafísicos (Triângulo das Bermudas. Eduardo Cunha). Terá algum feitiço de Áquila gastronômico amaldiçoado a bola de fogo e a bola de massa a jamais se encontrarem? O segundo mistério de que falarei aqui não só me intriga: me enerva. ganhar dinheiro. Por que os cabos das furadeiras são tão ridiculamente curtos? Laptops têm cabos longos. dolorosos. Chapinhas de alisamento têm cabos longos. o hambúrguer. pois trata-se exatamente de um mistério culinário: por que não se come pizza no almoço? Por que. o estrogonofe. porém. luminosos). o homem contemporâneo ou a política brasileira. Aqui. Esperava uma resposta cabal (com trocadilho. vamos ao primeiro mistério. até os terrenos (como fazer o que a gente gosta e ganhar dinheiro? Como fazer o que a gente gosta. podem ao menos dar ao leitor algum assunto para puxar com o cunhado quando rolar aquele silencinho incômodo no churrasco de domingo. por favor). escrevendo uma matéria sobre SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor). Uns anos atrás. sem dúvida. gloriosos. Televisões têm cabos longos. ETs de Roswell. cuidar dos filhos pequenos e ir ao cinema?). enquanto o sushi. mistério!– só saem do forno depois que escurece. sei lá por que cargas-d'água (ou d'elétrons) têm uns cabinhos que parecem o rabo cortado de um buldogue. Falamos de churrasco.Mistérios jocosos 31/01/2016 Há. o chop-suey e o leitão à pururuca transitam tão bem entre o dia e a noite. ganhar dinheiro e cuidar dos filhos pequenos? Como fazer o que a gente gosta. o comprimento dos cabos das furadeiras é adequado ao seu . as pizzas seguem sendo um fenômeno estritamente noturno? Há casas de strip funcionando de dia. tratarei de questões menores que têm me intrigado durante estes 38 anos de perambulações e que. mandei um email pra Black & Decker. não chega a ser fútil sonhar com alegrias mais comezinhas. nunca vendem. sem guerras. Como eu disse. uma mísera pastinha de dentes. mistérios mais importantes sobre os quais se debruçar. ao menos. fica a dica: vocês vão ganhar mais dinheiro vendendo uns tubinhos de Sorriso do que ganham com as águas de R$ 7. dão xampus.99 do frigobar. Aí você. Mas nunca. mas nosso assombro com o funcionamento do cosmos não tira a graça de um cubo mágico –e se é verdade que nossas maiores esperanças são um mundo sem fome. liga na recepção perguntando se eles ao menos vendem pasta de dentes. as Skols de R$ 15 e as castanhas de R$ 999. às vezes. que sempre se esquece desse detalhe. O SAC da B&D só não foi mais frustrante do que o SAC do Vaticano. (Espero que trazendo tais temas à baila eu tenha ajudado. cuja resposta à pergunta "Como vocês têm tanta certeza de que Deus existe?" foi um sacrossanto silêncio. Não.) . Nunca dão. dão touca de banho. Rede hoteleira. sem dúvida. tipo pizza no almoço ou churrascos tranquilos com o cunhado. Terceiro mistério: hotéis dão sabonetinhos. jamais. a arranjar assunto com o cunhado.uso". até pantufas. há. dão hidratante e. sem Eduardo Cunha. A sede era tanta que fui andando até um bar na Oscar Freire. Sentei no Bar Lagoa.De SP pro RJ pra SP pro RJ pra. Em Ipanema. O taxista fez Ipanema x Santos Dumont passando por Belford Roxo. o segurança consultou o gerente para saber se era permitida a entrada de pedestres. Consegui um trabalho na Berrini. o recepcionista do hotel disse que não conseguia encontrar minha reserva on-line.. aluguei um carro e depois de nove semanas e meia parado na marginal Tietê entre um ônibus da Mancha Verde e uma SUV com adesivo do Russomanno. para não acabar no Serasa. sapato italiano. seis e meia da tarde. precisei arrumar um emprego. vendi pela internet meu carro. Quixeramobim. larguei o carro no acostamento. ele veio: disse que eu não podia ficar ali sem consumir e me botou pra fora. ele não veio. tive um ataque de pânico. mas como sou branco e tenho cabelo liso. que ficavam pro dono. paguei a corrida de R$ 189 mil e embarquei para São Paulo. chamei o garçom. mas um chope mais couvert deu R$ 489 e. Minha patroa anoréxica não via o filho há dois anos por causa de um job top que estava managing alinhada com uns coworkers numa joint-venture de um fund com uma kickstarter de apps para . gravata. mas não eram registrados.* 07/02/2016 Quando li a enésima notícia de taxistas espancando motoristas do Uber. Niterói. de modo que entrei num táxi e falei: "Toca pro Santos Dumont!". acabaram me sentando. Eu ia pagar a conta e fugir pro Rio numa bicicleta do Itaú. minha alma e um poncho de alpaca comprado no Peru. Sete garçons me atenderam. Chovia em SP. Os vallets ficaram desorientados ao ver um cliente chegando a pé. pousamos em Cumbica. cruzei o Tietê escalando uma adutora da Sabesp e peguei uma carona pro Rio.. em SP. Chamei de novo. Ele não veio. em São Paulo. 11 meses depois. mas que se eu o ajudasse a me ajudar ele poderia estar me ajudando a ajudá-lo. chamei imediatamente um Uber e falei: "Toca pra Ipanema!". Lima e Bogotá. Depois de sete horas chamando. o que compreendi que significava lhe dar duzentão ali mesmo. não recebiam horas- extras nem os 10%. Vestiam camisa de seda. Chegando ao aeroporto. Congonhas estava fechado. do outro lado. Ia pousar em Copacabana. to L. to L.C. Fiz uma asa- delta com clipes e post-its e saltei do alto do prédio. todos julgamos lunático.Y.encubadoras. mas fiquei apavorado com 200 PMs espancando praticantes de tai chi chuan ("adeptos da técnica ninja black bloc". ad infinitum". . agradeço ao amigo cariolista (ou paulistoca?) Charly Braun.A.C. almoçavam shake de proteína e injetavam Red Bull na jugular. fiz meia volta pra SP. o estagiário de 19 anos já tinha rugas e cabelo branco.Y.A. seriam as aspas do capitão).. mas que agora me parece apenas um visionário à frente do seu tempo. ia pousar na Paulista. peguei um vento leste. to N. *Texto descaradamente chupado de "N. subi acima das nuvens e tô pensando se tento um pouso em BH ou se sigo o rumo do padre dos balões –um homem que. à época. seria a legenda do "Extra"). Pela sugestão do texto e do plágio. mas fiquei apavorado com 200 paparazzi fotografando a vice-miss bumbum 2011 de bruços na areia ("Bunda na nuca!". de 1º/2/16. publicado na revista "New Yorker". meu superego me empurra pra dentro d'"O Processo": logo nos primeiros tragos. Na presença do THC. . Minha voz é ridícula.Habeas corpus 14/02/2016 Eu não fumo maconha há muitos anos. quando paro ao lado dela. um adulto com as vigas à mostra. De lá pra cá. Eu não sei o que fazer com as mãos quando eu ando nem o que falar pra Ju M. A vida. Eu vou virar um adulto de tijolos à vista. dois filhos e um punhado de amigos para quem ligar. um adulto de laje batida e esquadrias de alumínio". pensava eu. esta casinha a que chamo de mim mesmo até que foi melhor acabada. tenho uma profissão. a coisa mais sensata a fazer é não comprar o ingresso. eu vou parar num livro do Franz Kafka. essa obra que talvez nuca termine e talvez seja a tal construção que já é ruína da música do Caetano Veloso. civil e moral. Eu não jogo futebol. não fumar maconha. pintei as paredes. fraude. Eu sou virgem. botei sancas e rodapés: não sou mais virgem. inexplicavelmente à vontade dentro de suas epidermes. preguiça. se fumar maconha é um ingresso para a Colônia Penal. A única coisa que eu sei fazer é piada. e entre as duas ou três coisas que aprendi com o tempo é que. timidez. Depois eu ia comer melancia com ketchup. estelionato. A adolescência felizmente acabou —glória ao Senhor!—. Minha cara é ridícula. na fila da cantina. casei. mas as piadas são como tapumes pra esconder essa obra mal acabada que está do meu nariz para dentro. porque quando eu fumo maconha eu não vou parar numa música do Bob Marley. ou seja. Lembro das noites sem fim da adolescência: enquanto os outros gargalhavam em volta. Eu não toco violão. Ao longo dos anos passei massa corrida. sob acusações as mais variadas: falsidade ideológica. das masmorras do meu subconsciente surge um japonês da PF e me arrasta para uma gélida Curitiba existencial. incompetência e outras contravenções previstas em nossos códigos penal. Meu jeito de dançar é dez vezes ridículo. em vez de assoviar "Easy skankin'". eu afundava no sofá sentindo ter acordado de sonhos intranquilos transformado num monstruoso inseto: "Eu sou ridículo. quando o calo aperta. ia bem. o efeito passava e eu esquecia da tormenta —até o próximo baseado. coagido por mais quatro agentes do meu superego. colocado no Facebook: você atrasa no trabalho. onde. O japonês da PF fez um não com a cabeça e me escoltou até o escritório. aconteceu um negócio estranho: despertei de sonhos intranquilos às quatro e meia da manhã sentindo que havia me transformado num monstruoso inseto —e não tinha fumado maconha. Você é um estelionatário. Você vende felicidade e não é feliz. no final: você não tem abraçado nem os seus amigos." Ofereci as mãos para as algemas. bombadinhos e armados com fuzis. Abri os olhos. Você só trabalha e resmunga —mais resmunga do que trabalha. Aquela foto sorridente instagrada do bloco. para não ter que dar banho. Isso é apropriação indébita. de propósito. com a sua mulher: vocês estavam às turras. "A fraude foi descoberta. Enriquecimento ilícito. olhei pro teto e vi a sombra do japonês da PF. dizia ele. Aquele vídeo fofo com os filhinhos. "Perdeu. Aquele texto todo serelepe em que abraça uma árvore. .Hoje. porém. escrevo minha confissão. uma empresa de fachada. um laranja de si mesmo. Antonio!". minutos antes —por culpa sua. um sintoma da inversão de valores do mundo contemporâneo. na primeira vez que um grandão do jardim 2 roubar –ou comer– suas bolas de gude). (A real sobre a existência ele vai descobrir sozinho. a ninada espartana. que tive de aprender na marra como passar um recém-nascido dos meus braços aos braços de Morfeu. o bicho chora. é preciso entender que embalar um bebê não é um momento fofo de intimidade e carinho. Ilariê nos ouvidos e dá-lhe bilu-bilu: o bicho fica confuso. mas jamais nos ensinem a ninar um bebê é. o pau de selfie e a batata frita sabor churrasco. que você seja uma batata– vamos nos concentrar nos bebês). é o ninar vitorioso. sou praticante da ninada de resultados. que há alguma ordem e sentido do lado de cá do útero. mas o importante aqui é fazê-lo dormir. certamente. tum-tum. a função das mitocôndrias e os números atômicos dos alcalinos terrosos. aliviado. É mentira. Antes de mais nada. mas como pochetes não dormem. determinação e respeito ao professor –eu. (Outros sintomas são a pochete. . Por isso.Breve manual da ninada 21/02/2016 Que em 11 anos de escola nos falem sobre a acentuação dos ditongos. paus de selfie não urram às três da manhã e batatas fritas sabor churrasco não são sangue do nosso sangue –a não ser. Eles passaram 40 semanas boiando no escuro e ouvindo tum-tum. Eu. Um a zero (sendo o um pro sono e o zero pra vigília) é a goleada que estamos buscando. O que é a ninada. sou 1994). flash no olho. O que importa não é o ninar bonito. bota roupinha. no meio dessa barafunda? É o choque de rotina. não lhe dar a real sobre a existência. É final de campeonato. Momento fofo de intimidade e carinho é dar banho. Leia com atenção. tira roupinha. (Em tudo mais sou 1982: na ninada. Aí. tum-tum. chegam nesse fuzuê térmico. claro. Botar um bebê para dormir é guerra. é claro. E como alcançá-la? Com garra. a ninada gaúcha. é ler livrinho. deixo aqui minha humilde contribuição a nossa desarvorada humanidade: o breve manual da ninada. álcool no umbigo. Você o chacoalha unindo os movimentos do corpo ao ritmo de uma música e ele pensará. Está em qualquer livro: bebês gostam de rotina. às vezes acorda assim que rela a bunda no berço. Mesmo sabendo que agora é ele que manda na casa. o campeão voltô-Ô-ô-Ô-ô": o importante é que você se apegue a um refrão. mas pelo menos você terá a segurança de que. um democrata Cristão". "E-E-Eimael. . Às vezes o bebê dorme rápido. se atenha ao ritmo e vá em frente. Por quê? Ninguém sabe. insone leitor. na selva da paternidade. que é em torno dele que girará a sua vida e que o seu narcisismo de geração X ou Y ou Z te impedirá de frustrar qualquer milímetro das expectativas daquele pequeno ditador. Quanto ao movimento: tá mais pra motor de popa do que pra bossa-nova. É simples? Muito. Boa sorte. You're the boss.Quanto à música. está fazendo a coisa certa –e acredite. "Ô. às vezes não dorme nunca. Por fim: insista ao menos cinco minutos antes de mudar de música. Funciona? Pouco. É preciso impor o seu ritmo de jogo sem se intimidar com o adversário. de ritmo e de posição. mesmo com resultados oscilantes. isso já é um imenso consolo. (Você vai precisar). tanto faz "Sapo cururu". faça um esforço para agir como adulto e trate o bebê como se ele fosse uma criança. fazer cafuné e jogar joquempô. ao lado de mais seis ou sete entrevados bípedes que buscam. em vez de levantar. sou tomado por um pensamento: e se. a duras penas. razão pela qual passamos a andar sobre duas pernas e a bufar com as mãos nas costas. em vez de passarmos de quatro para dois apoios. o fortalecimento torácico.Mal ajambrados 28/02/2016 O problema não era nas minhas costas. O médico fechou o livro e me indicou um pilates. Enquanto ergo lentamente o "core". enfrentando passo a passo a inclemente gravidade. não bípedes. algum ancestral conseguiu se apoiar em duas pernas. que futuro lindo nós perdemos! Em vez de andarmos envergados por aí. do intelecto sobre os instintos. inventarmos a pizza com borda recheada de catupiry e projetarmos drones que entregam sonetos ou pizzas com borda . num dia iluminado para o intelecto e aziago para a lombar. posição que lhe permitiu enxergar mais longe e ter as mãos livres para construir ferramentas. era na nossa espécie. disse o médico. tivéssemos evoluído para nenhum? Ah. da cultura sobre a natureza e daí pra escrevermos sonetos. Tirar a fuça do chão e pôr os olhos no horizonte sentenciou a primazia da visão sobre o olfato. viveríamos nos arrastando ou rolando mundo afora. feito morsas gordas e descansadas. Então tirou da estante um velho livro de anatomia e mostrou que a coluna e o abdome humanos haviam se desenvolvido durante milhões de anos para sustentar quadrúpedes. Dizem os biólogos que o bipedalismo foi crucial para o desenvolvimento humano –e não me refiro só à pedra lascada. sem jamais desconfiar que sob nosso adiposo sleeping-bag corporal haveria horrores chamados "lombar" ou "escoliose" ou "lordose" ou "hérnia de disco". Acontece que lá nas savanas da África. A ereção do hominídeo impressionou muitíssimo as hominídeas do bando. que vieram todas correndo e gritando "Seus genes! Seus genes! Queremos espalhar seus genes!". o macacão tivesse deitado? E se. feito leões marinhos. ao cafuné e ao joquempô. per saecula saeculorum. Me resta apenas amaldiçoar o ancestral que primeiro se ergueu. em vez de Homo erectus. na horizontal. Homo statelatus sapientisimus? Sim. imagina o tamanho da nossa cachola com todas as calorias economizadas em uma existência 100% horizontal. Mas quem disse que. definitivamente. depois Homo sapiens e Homo sapiens sapiens.recheada de catupiry foi um pulo. deitados. a fim de ajudar minha mal ajambrada verticalidade a dar com menos dor os passos que lhe restam antes que um susto. A biologia só consegue traçar o caminho percorrido. . fazer mais trinta segundos de "fortalecimento de oblíquo" e três séries de "abdominais laterais sobre a bola suíça". não os infinitos labirintos genéticos que deixamos de percorrer. não poderíamos ir ainda mais longe –mesmo sem sair do lugar? Quem sabe o que teria acontecido se. pois se enxergar mais longe nos deu a chance de encontrar mais comida e mais comida resultou no aumento do nosso cérebro. uma bala ou os vícios me ponham. depois para o Homo statelatus sapiens e –por que não?–. evoluíssemos para Homo statelatus. Seríamos hoje morsas cabeçudas discutindo física quântica e James Joyce com as panças esparramadas no chão? Não há como saber. doesn't roll. firmness? (E aí. -Ahhh. partner. truta. moleque!) -Speak. parceiro. deu ruim. bora ver o Furacão 2000 em Belford Roxo amanhã?) -Ih. naughty boy! (Ahhh. 'way see Hurricane 2000 at Purple Beautford tomorrow? (Aí.On the letter's foot (ao pé da letra) 06/03/2016 Two yolk's cariocas (dois cariocas da gema). * Two bros from Saint Paul (dois manos de São Paulo): -And there. firmeza?) -By the order. não rola. -There. fan! (Fala. trout. (Pela ordem.) -From the hour this little bomb! (Da hora esse bombeta!) -Isn't it half little thigh? (Não é meio coxinha?) -Nothing! Style in the larst! . tomorrow I drain till big late! (Ih. amanhã eu ralo até tardão!). gave bad. leque!) -From good? (De boa?) -Smooth in the spaceship! (Suave na nave!). tipo. tipo. tipo. face. cara. amiga!) -No for it. nothing to see! (Total! Tipo.(Nada! Istaile no úrtimo!) -Bought at the camel. -Face? Like. tipo. -Completely! Like. as costura desmilinguindo. in the good. * Two old baianos staring at the sea at the Bar's Lighthouse. like. cara. (Comprei no camelô). -Worthed. nada a ver! Cara. bro. -Is messing! (Tá zoando!) -No. switch yourself on the female stop. like. tipo. (Dois velhos . tipo. like. tipo. like. face. made in China by slave children fo'dick! (Não. cara. ele é muito nada a ver!). nothing to see. você é muita areia pro caminhãozinho dele!). nada a ver. (Manda). face. can I give you the royal? (Cara? Tipo. shing-ling pacarai!). -Like. he's very nothing to see! (Tipo. se liga na parada. mano. * Two little Patrícias peeling one of the little Patrícias' boyfriend (duas patricinhas descascando o namorado de uma das patricinhas): -Like. nada a ver!). like. posso te dar a real?) -Send. friend! (Valeu. like. (Não por isso). the seam is discorningling. nothing to see! Face. na boa. you're too much sand for his little truck! (Tipo. like. ...) ....) -. (..... (. (.) -..) -....baianos contemplando o mar no Farol da Barra): -... (. em vez de uma "boa análise". como ele mesmo disse. "após uma semana de fatos surpreendentes na política". mas não impediu que continuassem a brotar trocadilhos da pena do Millôr Fernandes.de bobagem. (Afinal. tá legal. O Rubem Braga atravessou duas ditaduras e seu maior libelo à liberdade não é um texto contra o pau de arara. Afinal. mas me pergunto se o elogio foi sincero ou só uma gentileza. O AI-5 podou direitos políticos e a liberdade de expressão. eu aceito o argumento. tiros na Rocinha e patacoadas em Brasília que este mundo também comporta mangas maduras. não tenho muito o que dividir contigo além da minha perplexidade e da minha tristeza. Fico feliz por me citar entre seus "colunistas preferidos". sobre esta semana e os últimos meses. mas não talha"). por que não?. "A justiça farda. um de seus "colunistas preferidos" havia se saído com um texto "bobo e sem propósito". Monty Python. quase toda semana o Brasil nos brinda com "fatos surpreendentes na política" e quase todo domingo. contudo. Se você achou as minhas piadas infames. mas uma carta/crônica ao vizinho que havia reclamado do barulho. Não o faço por desvio de caráter nem para irritá-la. Às vezes a vontade de comentar o noticiário é mais forte do que eu e fraquejo: acabo dando meus pitacos. Pixinguinha. O cronista é um cara pago para lubrificar as engrenagens do maquinário noticioso com um pouco de graça. Beatriz. that's my job.Carta a Beatriz 13/03/2016 Cara Beatriz: na última terça (8) você escreveu aqui pro jornal se dizendo espantada com a minha crônica de domingo (6). mas se a crítica é por ter feito piada num momento crítico eu não acolho. É verdade que nem sempre sou um funcionário exemplar. Dizem que vivemos um Flá-Flu. mas por dever de ofício. de despropósito e -vá lá. publico textos que poderiam ser considerados bobos e sem propósito. Sobre a semana passada. Quem dera! Saudades dos tempos em que . "num momento tão importante para uma boa análise". Minha função é lembrar o leitor desolado entre bombas na Síria. O que é a Lava Jato. tirando esqueletos seculares do armário? Ou voltando na história. realmente. isso por acaso perdoa os ilícitos cometidos por tal lado? Estamos vivendo um momento catártico. Beatriz. Lamento. fortalecendo os eternos donos do poder e seus velhos capitães do mato? Não sei. Hoje. nem entendo direito que campeonato está sendo jogado. deitado num divã na rua Apiacás –e nem sempre é assim tão boa. em que arquibancada vou me sentar? Da Dilma e do PT. às vezes sou Flu. . visando punir os ilícitos apenas de um lado? E se for uma revanche classista para punir ilícitos apenas de um lado.havia dois times e eu sabia para quem torcer. Um abraço. mas atualmente a única "boa análise" que tenho sido capaz de fazer é às quintas. que varre chacinas para baixo do tapete estatístico e vota pautas bomba para apressar o impeachment? Pra ser franco. sem sucesso. um Botafogo ou Vasco que venha resgatar a minha esperança no ludopédio político. 15h. mas na maior parte do tempo vaio os dois times e procuro no horizonte. por exemplo? É uma ação imparcial para acabar com a corrupção generalizada entre nós ou uma revanche classista. que mentiram e quebraram o país para se reeleger? Do PSDB. Às vezes sou Flá. disse a Marina. "Mas será que tem lado? Talvez achar que tem um único lado a ser defendido é o que justifica as barbaridades de todo mundo. No meio da tarde. Eu não quero que. a caminho da padaria. "Cê acha que vai rolar alguma desgraça? Cê acha que vai ter golpe militar? Guerra civil?". aconteça uma desgraça e eu olhe pra trás e veja que eu tava de braços cruzados..Não é tão vermelho ou amarelo 20/03/2016 Na última quinta-feira a minha amiga Marina me escreveu perguntando se eu teria tempo para um café. "Total Venezuela". Mas eu tô assustada. eu ia pensando: será que a Marina tá grávida? Tá doente? Tá se separando? Tá precisando de dinheiro? Cheguei na hora marcada e ela já tava lá. ultimamente. "Eu também não". tipo. Enquanto isso o país sangra e as pessoas piram. ela soltou: "E aí. Se alguma coisa eu aprendi nessas quatro décadas sobre a Terra é que quando uma pessoa próxima te chama para um café é porque o assunto é sério. "Sobre. "Você pensa em fazer o que. a Marina pediu um suco e mal o garçom virou as costas. (Quando o assunto é leve. É errado vazar os grampos do Lula pra imprensa porque ele virou ministro. "Meio Venezuela". com esse olhar temeroso e estabanado com que temos assistido ao país se desmilinguir. Se eu soubesse. confessei. Marina?". É errado colocar o Lula de ministro pra fugir da Justiça que o submete a coisas como a condução coercitiva. a gente não vai fazer nada?". "Não sei. Sobre isso tudo?". o convite é prum chope). não tinha te chamado prum café". Meu tio petista brigou comigo porque eu disse que a Dilma afundou o país e meu tio tucano brigou comigo porque eu disse que os . "Sei lá! Mas o clima tá péssimo e só piora. É errado a justiça fazer a condução coercitiva do Lula enquanto investiga o sítio.. Aonde é que vai parar?". É um erro alimentando o outro. Teve um pau no WhatsApp da família. "Eu realmente não consigo tomar nenhum lado". um ano. É errado o Lula frequentar um sítio reformado de graça por empreiteiras. "Já disse que eu não sei. "Que coisa?". Tá meio fevereiro de 1964". Ficamos um tempo em silêncio. "É! O Brasil se desmilinguindo e a gente vai ficar de espectador? A gente tem que fazer alguma coisa!". daqui uns seis meses. Eu pedi uma Coca Zero. "Lembra quando parecia que a gente ia dar certo?". parou diante de nós uma menininha de uns seis anos.anos Lula foram o melhor período da história do Brasil. A Marina deu um sorriso desanimado. tio? Compra bala senão minha mãe não deixa eu ir pra casa." O garçom trouxe as bebidas. E. Ficamos um tempo olhando pros copos. descalça. ninguém é monstro. com a cara toda suja: "Compra bala. Ele disse 'mas isso não justifica a corrupção do PT!'. como que enviada para aumentar nosso desalento e me dar o final mais triste pra essa crônica. Eu disse: claro que não! E o Fernando Henrique estabilizar a moeda também não justifica comprar a emenda da reeleição! E a emenda da reeleição não cancela tudo de bom que o Fernando Henrique fez. Ninguém é santo. nada é tão vermelho ou amarelo. Compra?" . Nada é tão preto no branco. a ilegalidade do Judiciário e o ódio classista não podem ser usados pela esquerda para negligenciar os estimados R$ 40 bilhões roubados da Petrobras durante os anos do PT. Compartilho e assino embaixo porque concordo com cada linha que há nesses textos. Nem para negar a recessão a que políticas econômicas canhestras nos levaram. ele fala palavrão! Ele fala como um peão! Ele tem "alma de pobre"!). Se aqueles que.me/tlb3y ). se identificam com muitos ideais da esquerda. Nem justificar a Bolsa Empresário que despejou bilhões de reais pelo ralo do BNDES. a sombra auriverde de 64 projetada por Jair Bolsonaro erguido nos ombros da multidão. por muito menos.Crítica e autocrítica 27/03/2016 Nas últimas semanas venho compartilhando posts. por outro servia para alimentar o ódio classista: vejam só. esteja livre e conduzindo o processo de impeachment em nome da moral e do cuidado com a coisa pública. "usufrutuário" não apenas de dinheiro sujo na Suíça como de foro privilegiado e da cumplicidade silenciosa da oposição. (Ver Consuelo Dieguez na "Piauí": migre. (Divulgação que. enquanto o Lula. fizermos vista grossa pros descalabros petistas. se por um lado visava ligá-lo a atos ilícitos. os "white blocs" pedindo "meu país de volta!" em frente à Fiesp. (Ver Leandra Peres no "Valor Econômico": migre. mas venho ficando cada vez mais aflito com as linhas que lhes faltam -aquelas em que a esquerda admitiria claramente que o governo Dilma é um desastre. São documentos produzidos por pessoas de esquerda que veem com medo e repulsa a parcialidade do Judiciário. como eu. . dando likes em textos e subscrevendo abaixo-assinados clamando por respeito às leis e à democracia. mas a parcialidade. foi posto num camburão da PF e teve seus grampos divulgados para toda a imprensa. Ok. É revoltante ver que Eduardo Cunha.me/tlb5I ). não teremos moral para acusar o Ministério Público de fazer vista grossa para os descalabros da oposição. que é o principal responsável pela crise e que também afronta as leis e a democracia. Mas diante do panorama de absurdos de todos os lados.Outro dia um amigo veio me dizer que a autocrítica da esquerda era fundamental. para entregar o país nas mãos da Cosa Nostra tupiniquim. escapam como peixes ensaboados das mãos do Judiciário. o PMDB. a burrice e a incompetência. (E o PSDB. o brado "Não vai ter golpe!" parece não dar conta da complexidade da situação. só da esquerda e que eliminar a esquerda. há um golpe em curso: um Congresso podre. mas que agora não era o momento. Eticamente. Eduardo Cunha. E taticamente pois o silêncio da esquerda em relação aos crimes. por meios legais ou ilegais. já discute a participação no futuro governo). move um processo de impeachment. burrices e incompetências durante o tempo em que o PT está no poder passa a ideia de que a esquerda compactua com a corrupção e o malfeito. Acho que ele se equivoca não só eticamente como taticamente. pois não existe nenhum momento em que possamos compactuar com o crime. . capitaneado por sua figura mais nefasta. é claro. de que a corrupção é um mal da esquerda. Sim. cujos escândalos de corrupção e citações nas delações. em nome da legalidade. é o Emplasto Brás Cubas que sanará todos os males de nossa melancólica humanidade -é esse o pensamento que põe a classe média diante da Fiesp e o Bolsonaro nos ombros da multidão. curiosamente. Três. fumo o cigarro. eu e o Marlboro. precisa insistir um pouco. recepcionando eufóricos o saudoso veneno e deixando de lado. moral. O cigarro é um abraço de bolso. fiquei triste. O jornaleiro fala: "tinha é que fuzilar esses petistas!": compro o cigarro. o 7x1 a que assistimos diariamente dentro do campo. o cachorro. Mas. posta no Facebook "Agora esse país vai pra frente!": fumo um cigarro. O cigarro é um botão de pause: largo o computador. eu. como aquelas granadas de nuvem colorida que os ninjas jogam no chão para desaparecer nos velhos filmes B da televisão: basta acioná-lo para nos isolarmos do mundo . com o agravamento da crise política. mental etc e tal. Uma queda. fui percebendo as vantagens da minha idiotice. em algum momento entre a eleição do Eduardo Cunha e a inflada do Pixuleko. dou uma volta no quarteirão e ali ficávamos nós.e existe momento melhor para nos isolarmos do mundo? O Jornal Nacional divulga grampos de Lula. faz com que todas . que aplaudiu o massacre do Carandiru. Um recuo. voltar a fumar: basta um trago ou dois e todos os seus neurônios se erguerão em ola na arquibancada craniana. por alguns instantes. Ou se você.ele é o homem. me vi com um Marlboro na mão. Aí. O álcool é uma canção de ninar para o superego. A cannabis.A solução para a crise 03/04/2016 É começar a fumar. como eu. no máximo. Dois. O cigarro é a droga mais estúpida de todas. que votava no Maluf. cultural. como um homem com seu cachorro . Meu tio Arnoldo. não batem panelas: fumo um cigarro. uma cortina de fumaça instantânea. batem panelas: fumo um cigarro. Se você nunca fumou. seu córtex já vai estar inquieto (a nicotina e a Philip Morris não brincam em serviço): cadê aquela substância que tava aqui? Eu não punha um cigarro na boca havia 15 anos. Depois do quarto. num silêncio de cumplicidade. Senti que era uma derrota. Policial mata criança com tiro de fuzil. como descreveu Baudelaire. De início. sem pensar em nada. Um maço. que comprou a carta de motorista. é (era) um ex-fumante. abro o cigarro. saio do restaurante. social. um travesseiro portátil. pois terei questões pessoais muito sérias a resolver: estarei parando de fumar).as coisas pareçam fora do lugar sem ter se movido um milímetro. Satisfação. (E falta de ar e tosse e fedor). Satisfação. não sofrerei tanto. enquanto estamos envoltos em seu ciclo idiota. Eu vou ali fumar um cigarro. Necessidade. quando rolar o impeachment e o CCC estiver invadindo peças de teatro para espancar os atores. (E em meados de abril. Necessidade. O LSD transforma um amendoim no globo terrestre e o globo terrestre no globo ocular e você e o amendoim e o globo ocular na mesma coisa linda e louca e azul e rosa e luz e som e vida e ahhhhhh! Já o cigarro cumpre a única função de sanar a aflição da sua ausência. como um ratinho correndo na roda. É sarna que arrumamos para nos coçar. Haverá impeachment? Eduardo Cunha se livrará e passará o resto dos seus dias comendo chocolate Lindt? Um acordão parará a Lava Jato assim que o PMDB assumir? A próxima pauta progressista aprovada no Congresso será em 2167? O que fazer neste momento terrível da história nacional? Não sei. Mas. . A cocaína nos coloca acima do céu. Vocês que resolvam. nada mais nos importa. então você cruzou a sala sorrindo no colo da Jéssica e me deu uma vontade louca de passarmos um tempo juntos. Eu te botei no carrinho. Pois hoje você me fez aproveitar a vida. esses 99% de que a gente desdenha. vamos. pela internet. agradecendo. aí a vida passa e a gente não aproveitou. vai saber? Essa crônica é sobre uma praça. apontando as coisas e soltando seus grunhidinhos. eu por orgulho. Eu quis te pôr no balanço.Carta pro Daniel 10/04/2016 Talvez algum dia. tão diferente deste teu pai. Eu tava lá em casa. sumi de vista por uns segundos e você deu uma resmungada. Talvez uma tia comente. mas especialmente doloridas para este patrício. Triste com os rumos do país. É o caminhão. eu e ele. sim. Mas acontecimentos extraordinários são raros. mas você me apontou o túnel de concreto. na adolescência. Dani. como a própria palavra "extraordinários" já diz. feita de elementos simples como é feita a maior parte da vida da gente. "Queca. Te coloquei numa ponta do túnel. As pessoas que a gente cruzava abriam sorrisos pra você e depois pra mim. nas próximas décadas. é o carro. descemos pelo elevador e ganhamos a rua. Falei. "lembro de um texto que o teu pai te escreveu quando você era bebê. Eu ia dando nome às coisas. é a árvore. Nós sorríamos de volta. Não é nenhuma história extraordinária a que vou te contar. por isso resolvi te escrever. era sobre uma praça. Chegamos na praça. É. sobre uma tarde que a gente passou na praça. no dia 5 de abril de 2016 (ontem). mais triste ainda com outras questões paralelas inteiramente irrelevantes para a pátria. de bem com a vida. Dani? Só os homens?". eufórico. aflito. a gente vai na praça. Daniel. É. É uma história simples. triste de tudo. você esbarre nessa crônica. sempre angustiado. fui andando em direção à outra. com a Jéssica. você por simpatia -você é assim desde que nasceu. acho. sempre esperando por acontecimentos extraordinários. achando . procurando cabelo em ovo. Você ia batendo as pernas. cê já leu?" Talvez eu mesmo te mostre. como que querendo me mostrar o que vê a caminho da praça. dá esse menino aqui. todas as manhãs. mas eu tenho um filho que põe sorrisos no rosto de quem passa e que com algumas gargalhadas reconforta o meu coração. . você vinha de novo. no quarto ao lado. me agachei. você engatinhava até lá. foi até lá. Fui te pegar no colo. você estaria se perguntando: "O cara sumia de um lado.. como diria o poeta. eu corria pra outra. mas então me agachei e apareci do outro lado. eu me consolaria: esse mundo é uma tragédia. o Brasil tá ferrado e eu também não me sinto muito legal. que a tristeza houvesse passado. gargalhou de novo —"Agora o cara tá do outro lado! Que loucura!"—. deu uma gargalhada e veio engatinhando até mim.. como será que ele faz? É truque? É mágica?". mas você se esquivou e olhou pra outra ponta. Entendi a brincadeira. comovido como o diabo. me mandou voltar e nós ficamos perdidos nisso pelo que me pareceram horas: eu aparecia numa ponta do túnel.que eu ia te abandonar ali. corri até a outra ponta. Você achou aquilo hilário —"O cara tava aqui. eu estava. Depois dormiríamos. Quando me dei conta -não vou dizer que meus problemas tivessem sumido. mas. deitado na cama. sumiu e apareceu lá!"—. aparecia do outro. Você me viu.-. Enquanto isso. De noite. acreditando que tudo iria ficar bem. o falso descrente. evoluindo através de uma relação de causa e efeito até chegar a um clímax ao mesmo tempo surpreendente e inevitável. o público vaiaria: a ficção precisa fazer sentido. personagens agem de modo contraditório. Uns com camisa do PT. Mas eis que entra no boteco a belíssima Ilsa Lund. a ficção tem que fazer sentido.Penso sobre o enredo da realidade vendo o filme de jun. cem mil pessoas de esquerda. Tenho pensado muito sobre o enredo troncho da vida olhando para o filme estranhíssimo que leva de junho de 2013 a abril de 2016.20 nas tarifas do transporte público. tem que optar entre fugir nos braços da Ingrid Bergman ou sacrificar o romance para ajudar na luta contra o nazismo. A Polícia Militar desce o sarrafo. Se na última cena. Já a realidade não tem pé nem cabeça. Outras contra o governo Dilma. o encontro reacende a chama política e amorosa e no fim Bogart. Rick matasse os nazistas com raios laser lançados pelos olhos ou o filme virasse um musical tipo "Todos Dizem Eu Te Amo". O acaso tem um peso descomunal. no aeroporto. Rick parece um homem cínico que só quer tocar o seu bar em Casablanca. bunda e calcanhar saem às ruas de São Paulo. descobrimos que Rick é um ex-combatente da resistência francesa que teve o coração partido por Ilsa.2016 17/04/2016 Mark Twain disse não se espantar com o fato de a realidade ser mais estranha do que a ficção: afinal. do Woody Allen. musicais viram terror. Treze de junho daquele ano. Os celulares filmam a violência. Outras contra o governo Alckmin. cinco mil manifestantes de esquerda protestam contra o aumento de R$ 0. de canela. Algumas em solidariedade aos manifestantes do dia 13. infinitas causas interagindo podem resultar em infinitos efeitos. em São Paulo. . Woody Allen é acusado de pedofilia e Ingrid Bergman –vai saber?– ainda pode aparecer na Lava Jato. Godard descamba pra Pernalonga. de direita. Uma história deve ter personagens e conflitos coerentes com o universo criado. bicicleta. sem resvalar nas turbulências da política e do amor. de cabeça. Dia 17 de junho.2013 a abr. 351 anos antes de Eduardo Cunha e Michel Temer darem o ar de suas desgraças. não consigo parar de pensar: e se não tivesse existido o aumento de R$ 0. por linhas tortas. o MPL (Movimento Passe Livre) deu lugar ao MBL (Movimento Brasil Livre) e o que começou com a utopia de uma cidade para todos talvez termine com o país no bolso do PMDB. mais uma página do seu enredo torto. o governo se esfacelasse por outro. neste domingo. ajudando o Brasil a escrever. o amarelo superou o vermelho. a corrupção. a turma da Fiesp cresceu. mas não à tragédia dos últimos meses. que explicou as regras da narrativa em sua "Poética". como sabia Mark Twain e mais ainda Aristóteles. . Uma parte da passeata vai protestar contra a Globo. De lá pra cá. os caninos sempre afiados da oposição. pois aquelas obras tinham que fazer sentido. Mesmo assim. 335 anos antes de Cristo dar o ar de sua graça e 2. não no sentido grego. não fosse por este caminho. Tragédia. Talvez. talvez assistíssemos a um governo péssimo. digo.20? E se aqueles 5 mil não tivessem se manifestado? E se a polícia não tivesse descido o sarrafo? E se os celulares não tivessem filmado? Bom. Claro que não se pode ignorar os erros políticos e econômicos da Dilma. Outra parte vai cantar o hino diante da Fiesp.outros com camisa da seleção. " O terceiro processo ainda está tramitando. que presenciou o crime. como nos contorcemos pelas vítimas –de Paris. Duas outras testemunhas jamais foram procuradas pela investigação. Ana e Eddie conseguiram arrancar o capuz de alguns dos criminosos. Dos assassinatos investigados pelo DHPP. na adolescência. provavelmente também sobre o Brasil de 2563. Rogério e Avener foram ver no que deram. Rogério Pagnan e Avener Prado publicaram no caderno "Cotidiano" uma matéria muito reveladora sobre o Brasil atual. mais cinco). uma delas contou ter ouvido. quinhentos e cinco. só três PMs foram processados. Em resposta. Em maio daquele ano. Sim. reconheceram policiais do bairro e gritaram seus nomes. em dez dias. a facção criminosa matou 59 pessoas em São Paulo (policiais. apenas 12.7% dos casos em que policiais eram as vítimas foram solucionados. continua trabalhando e faz patrulha na mesma área em que ainda vivem familiares das vítimas. assassinaram 505 civis. de Bruxelas. Ana Paula Gonzaga tinha 19 anos e estava grávida de nove meses. Outro policial. Antes de morrerem. por furto. enquanto um policial dava um tiro na barriga de Ana. Eddie de Oliveira tinha 24 anos e uma passagem pela polícia. o casal foi comprar leite na padaria. "Filho de bandido. "Um recebeu a sentença de seis anos em regime semiaberto. mais cinco. de Nova York. O parto estava previsto para dali a três dias. Cinco centenas. Artur. foi executado horas depois. Um grupo de encapuzados desceu de um carro e os matou a tiros. Pela morte de todos os 505 civis (quinhentos e cinco. principalmente). em 2006. o Brasil de 1964. condenado a 36 anos em regime fechado. bandido é".9%. Nos casos em que civis foram mortos. 85. No dia 15 de maio de 2006. O vigia de um posto. na Justiça. como lamentamos. Cinco centenas.Cinco centenas. E como choramos desde então. Trabalhava como garçom. O resto foi arquivado. pelo andar da carruagem. homens encapuzados saíram pelas periferias e. os assassinatos cometidos pelo PCC e por grupos de extermínio. . o Brasil colônia e. mais cinco 24/04/2016 Na última quinta-feira (21) os repórteres Artur Rodrigues. mais cinco –e não é que ninguém esteja nem aí.Quando vemos Jair Bolsonaro dedicar seu voto de impeachment a um torturador. Um ponto fora da curva. Quinhentas e cinco pessoas assassinadas pela polícia. Uma excrescência. Não. "entre os que têm renda familiar mensal superior a dez salários mínimos (apenas 5% da população do país). subscreve ações como as execuções de 2006. Principalmente –e isso é o mais chocante– a parte supostamente mais esclarecida dessa população. elogiando atos criminosos perpetrados pelo Estado. Quinhentas e cinco. assim como boa parte da população brasileira. O deputado mais votado do Rio de Janeiro. em dez dias. Bolsonaro lidera a corrida presidencial. chega a ter 23% das preferências dos eleitores mais aquinhoados". Cinco centenas. é pior: querem botar quem aplaude os assassinos na Presidência da República. Em um dos cenários. muitos de nós acreditamos que ele seja um monstro. ele não é. Faz dez anos. Como apontou Fernando Barros no blog da "Piauí" ao analisar a última pesquisa Datafolha sobre intenção de votos para presidente. . Mujica é nosso vizinho. o zelador.500 da Receita Federal. O melhor é que não precisa nem ensinar a ninguém as quatro operações ou as regras de acentuação dos ditongos: o brasileiro pobre já sabe roubar como o rico. O maior problema do Brasil não é que se rouba muito. moqueados entre a roupa suja: pilho assim uns R$ 1. ao injustiçado Ari. ele só precisa de igualdade de condições. deu uma olhada.) Democratizar a bandalheira é a forma mais rápida e orgânica de dividirmos renda. Enquanto ao Ari. Há uma década se fala em trazer um técnico estrangeiro para a seleção. Do Reino Unido. E por que não trazer políticos estrangeiros para a nação? Barack Obama está se aposentando.50. senti uma profunda compaixão.1% no Land Rover desvia bilhões. O PSDB quer o parlamentarismo? Ótimo. só são dadas condições de desviar R$ 4 da borrachinha do meu lavabo. Ari. recebe R$ 4 milhões de Fernando Baiano.Cinco soluções para o Brasil 01/05/2016 1. (A Brahma no Bar e Lanches Sandoval tá R$ 7. Outro dia a válvula da descarga estava vazando. é que se rouba pouco.50. Da Noruega. meu Brasilbra . No dia seguinte fui comprar pregos no mesmo depósito: a borrachinha custava R$ 3.9% que tomam banho de poça no ponto de ônibus se contentam com as migalhas que conseguem surrupiar. E se nem isso funcionar. Eduardo Cunha. Democratizar a corrupção. Assim como Jorge Ben estourou repetindo o começo do nome no fim e virando Jorge Benjor. os 99. Eu vou aos EUA e trago dois iPads na mala. Ou melhor: enquanto o 0. Angela Merkel certamente gostaria de passar uns tempos nos trópicos. quem sabe não encontremos nosso caminho ao nos rebatizarmos Brasilbra? Ia atrapalhar um pouco a métrica de "Aquarela do Brasilbra": "Brasilbra. que compremos logo um parlamento inteiro. num único "frila". Vamos consultar um numerólogo. comprou uma borrachinha e me trouxe a nota de R$ 7. Não senti raiva do Ari. só vai ter um jeito: Guardiola para presidente. 2. foi ao depósito da esquina. (Quem duvida que seis meses de tiki-taka na economia –com Iniesta na Fazenda– reanimariam a nossa combalida indústria e criariam uma saraivada de empregos?) 3. uma maconha que funciona e uma linda capital –que funciona– praticamente vazia a nos esperar. saída que serve não só para países em crise política e econômica como para pessoas em crise existencial. Caso nenhuma das soluções anteriores dê certo. um vinho que funciona. as margens fétidas do Ipiranga já não ouvirão mais brado algum e o florão da América.Brasilbreiro". será iluminado pelo sol do novo mundo. em sempiterno silêncio. direitos civis que funcionam. Vamos pegar o que nos resta das reservas nacionais e promover um churrascão contínuo com caipirinha. Neste dia. uma carne que funciona. Pátria amada. já conformados com o fato de que isso tudo não passou de um sonho intenso. mas o que são uns versos tortos ao lado da felicidade de 200 milhões de patrícios? 4. Fuga pro Uruguai. nos deitaremos eternamente em berço esplêndido. de um raio vívido de amor e esperança ao som do mar e à luz do céu profundo. profissional etc e tal: vamos encher a cara. 5. Catuaba e Cynar. apresento aqui a saída derradeira. Eles têm uma esquerda que funciona. Brasil! . emocional. cerveja. hic!. Mamemos nas tetas do Estado até que o deficit hepático seja maior do que o deficit orçamentário. os enxergo transformados nos desenhos do Angeli. manhã de quinta. Um problema na TV faz a imagem congelar por um segundo e me dou conta de que estou diante de uma versão macabra da capa do "Sgt. Preciso de tarja preta. corruptores. entendo que Drummond não dará mais conta do recado. Zé Bonitinho. por um momento. (Seria como estar num terremoto. "Perdi o bonde e a esperança/ Volto pálido para casa. mas qualquer tema soava bizarro na moldura desses dias. Rusgas e Drs. Apelo a Augusto dos Anjos: "Vês! Ninguém assistiu ao formidável/ Enterro de tua última quimera. Vejo José Dirceu montado em dinheiro. Pelé. fugindo da ficção e invadindo a realidade. um resumo da ópera bufa de meio século. Silvio Santos. porém. bandeirantes e capitães do mato. Vejo Brilhante Ustra montado em Bolsonaro. que desta canção escrita com pólvora não se possa esperar nada de bom. cinzentos e com mau hálito. já delirando. Vejo Jânio montado em sua vassoura./ A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre o meu corpo".Crônica em exercício 15/05/2016 "Eu preparo uma canção/ Que faça acordar os homens/ E adormecer as crianças". Vejo todos aqueles velhos políticos se refestelando ou lamentando em Brasília e. Entre as nefandas caricaturas surgem também flashes do passado. deixo a TV ligada. Enquanto trabalho. A esta altura. Vejo o general Figueiredo montado em seu cavalo./ Somente a ingratidão . Queria falar sobre outro assunto. Suspeito. sem som. Rabujas. tentei falar sobre outro assunto. dentro de um prédio desabando e comentar com o cidadão ao lado: "Parece que pro fim da tarde vai abrir um sol"). avisto Chacrinha. só versos do Drummond me (s)ocorrem. Mazzaropi e a paquita Sorvetão. Lembro desses versos do Drummond ao despertar no meio da madrugada com os rojões do impeachment. Carmem Miranda. entre corruptos. Srs. Aqui e ali. Não sei se tenho medo de que o barulho acorde as crianças ou faça adormecer os homens -ainda mais. Agora. Talvez o sono também atrapalhe: passei a noite em claro ninando as crianças e velando o país. Pepper's". buzina o Velho Guerreiro. quebrou o país com sua incompetência e chafurdou nas velhas práticas da política brasileira?". "Você tá defendendo esse governo. mas esfrego os olhos e são Temer e Kassab. é o novo ministro da Justiça. Esse governo foi lamentável. não desisto nunca. que faz hora extra não remunerada com máscara ninja nas periferias da cidade. Antonio?". ultra brilhante. . mas não é porque eu não gosto do Haiti que eu sou a favor do terremoto. Ouço apenas que Alexandre de Moraes. o chefe da PM paulista. meu caro Abelardo. não tô.e enquanto o prédio desaba sou tomado por um laivo de otimismo: "Parece que pro fim da tarde vai abrir um sol". Vejo o corvo de "Spy vs. A legenda anuncia os novos ministros. "Foooooom!". Spy" conversando com Gansolino. Aumento o volume. mas fazer o quê? Sou brasileiro. comento. Não. quero dizer. Volto a olhar para a televisão e por um momento acho que minha filha mudou pro Cartoon Network. "Um governo que mentiu descaradamente para se eleger. me pergunta uma voz -é o Chacrinha.–esta pantera–/ Foi tua companheira inseparável". essa polícia ustra brilhante. um segundo antes de sermos engolidos pelos escombros. Eu não deveria me chocar com nenhum ministério depois daquele montado por Dilma no segundo mandato. 'Sê-lo-ia', Clotilde! 22/05/2016 Ai, Clotilde, você viu como ele fala bem? Elegante. Outra postura, né? É, "adevogado". E aquela hora que ele falou assim, como é? Ah: "Sê-lo-ia"! "Sê-lo-ia", Clotilde! Imagina se o Lula ia falar uma coisa dessas? De improviso, ainda? Você viu os grampos do Lula?! Pra mim só aqueles palavrões já bastava pro Moro prender. Falta de educação, né? Não teve berço. Não, eu, desde 2003 que eu tenho aquele adesivo da mão sem mindinho no carro! Eu tenho no meu, o Gilberto no dele, a Vanessa no dela e o Gilzinho no dele. Quer dizer, tinha no dele, né, que o Gilzinho bateu de novo. Ah, sabe como é, garoto, vai na festa, bebe, adianta falar? Mas tá lindo o meu Gilzinho, tem que ver! Forte! Não, saiu do jiu-jítsu, graças a Deus! Ele ia em festa, arrumava briga, cansei de ver o Gilberto saindo da cama de madrugada pra ir na delegacia molhar a mão de todo mundo. É, é da idade, eu sei. O Gilberto falou que no tempo dele fazia igualzinho, mas o pai dele era general, né? Um telefonema e resolvia, agora não. Agora é essa corrupção horrorosa, tem que dar dinheiro pra todo mundo. Tá, a Vanessa tá bem, sim. Um pouco gorda, pra variar... Até falei pra ela, outro dia, minha filha, vem cá, corre, vem ver a Marcela na TV, olha essa mulher! Me diz, me diz se ela tivesse gorda que nem você quando o Temer apareceu lá em Paulínia? Imagina se o Temer ia se interessar por ela! Ela tava com 19, você já tá com 22, minha filha. Quando tinha passeata eu falava, Van, tem que ir! Só gente bonita! Assim de empresário! Assim de menino de família! Acha que ela me ouvia? Fazer o quê... No mais tudo bem, sim. Quer dizer, médio. O Lu tá com aquela alergia de novo. As patas todas vermelhinhas, coitado. Não, troquei de veterinário, agora tô indo num que dá floral. É, floral. Ele falou que essa alergia do Lu podia ser psicossomática. Ele perguntou: "Cês tão com algum problema na família, alguma coisa assim?" Problema? Não... Aí eu matei! Era esse clima horroroso do país que o Lu tava somatizando! Ele ouvia a Dilma na televisão, o grampo do Lula, o Gilberto xingando, a gente batendo panela... Cachorro é muito sensível. Até isso o PT fez com a gente, Clotilde! Mas parou, parou, vamos falar de coisa boa! Você foi na Francesca, ontem? Ah, nem me fala! Eu também! Meia hora parada esperando a polícia tirar aqueles vagabundos na rua, aí eu desisti. Ó lá, caímos no mesmo assunto! Clotilde, eu vi os baderneiros pelo vidro do carro: que gente feia! Tão diferente da nossa passeata! E você não vê nenhuma bandeira do Brasil ali no meio! Ninguém de verde e amarelo! Eles não têm orgulho de ser brasileiro? Sabe que é isso, Clotilde? É Lei Rouanet. É, eu li no Face. O governo roubava dinheiro da Petrobras e dava pros artistas, aí os artistas passavam direto pro MST, "black blocs", pra esses baderneiros. Chico Buarque, Leticia Sabatella... Aquele velho que gosta de mostrar a bunda... Isso! Zé Celso! Sério! Tava no Face! Mas acabou, Clotilde! Acabou a palhaçada! Derrubamos os petralhas, depois vamos prender o Lula, depois o Chico, depois a pentelha da Leticia Sabatella, depois o velho peladão e depois sabe o que, Clotilde? Sabe o quê? Depois vamos comemorar que a gente recuperou nosso Brasil de volta! Em Aspen! Beijo, Clotilde! Amém! Tecla SAP do humor 29/05/2016 Algum dia essa nuvem negra estacionada entre o Guaíba e o Amazonas há de se dissipar, o Congresso deixará de ser o valhacouto dos velhacos, o covil dos covardes, o desvão dos desvios e o Legislativo finalmente retratará os múltiplos interesses nacionais. Nesse dia glorioso, entre deputadas vegetarianas e senadores hip-hop, entre ianomâmis e sadomasoquistas, empresários e budistas, hackers e nudistas, nerds e skatistas, cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, punks e umbandistas, me sentirei enfim representado por uma bancada: a bancada dos humoristas - um conjunto de homens e mulheres sérios, empenhados em derrubar o verniz de seriedade que nos impede de enxergar o ridículo de todas as coisas deste mundo. Enquanto o sol não vem -o cumulus nimbus da mesquinharia parece bem fixo sobre nós- dou aqui minha imodesta sugestão para os excelentíssimos comediantes: um projeto de lei tornando obrigatória, em todo o território nacional, a tecla SAP do humor. Em qualquer filme de cinema ou programa de televisão, de pronunciamento oficial a novela das oito, de Godard a comercial de margarina, dos documentários sobre as saúvas africanas aos grampos dos caciques do PMDB, em se apertando a tecla SAP do humor teríamos a versão paródia do que estivesse sendo exibido. (Para pessoas com problemas auditivos haveria legenda ou um mímico fazendo umas patacoadas num quadradinho, embaixo da tela). Aparece o Temer, você aperta a tecla SAP e ouve a Tatá Werneck falando uns absurdos. William Bonner daria notícias delirantes sobre, digamos, uma chuva de cupcakes em Quixeramobim -com a voz do Pato Donald. Donald Trump só falaria espanhol, com sotaque árabe -sobre sexo. Debates entre políticos seriam dublados ao vivo pelo pessoal do extinto "Rockgol", da MTV. Marcelo Adnet recriaria os textos de todas as novelas bíblicas. Gregório Duvivier seria o encarregado pela IURD. Pedro Cardoso faria a voz nos filmes do Bruce Willis. Bruno Mazzeo narraria todos os jogos de futebol e todos os jogos de futebol seriam do Vasco e o Vasco ganharia tudo, da série C de Santa Catarina a Champions League. (Se já houvesse a tecla SAP do humor na semifinal da Copa de 2014, Vasco x Alemanha teria terminado 7 x 1 pro Vasco -o Vasco seria o time de camisa branca, claro, a Alemanha aqueles perdidões de amarelo). Se você quisesse, poderia passar o dia com a tecla SAP do humor apertada: seria como assistir à realidade a contrapelo, ao mundo bizarro no desenho do Superman, ao lado de lá em "Alice Através do Espelho", seria o Porta dos Fundos entrando pela porta da frente nos lares e Cinemarks da nação. Haveria apenas duas exceções em que a tecla SAP do humor não funcionaria: no horário eleitoral e em votações do Congresso. Ver a bancada da bala defender a vida, o Partido da Mulher Brasileira criticar o feminismo e religiosos usarem o nome de Cristo para reduzir a maioridade penal já é patético o suficiente. (Pensando bem, o 7 x 1 tampouco precisaria ser dublado. Melhor seria assisti-lo sem falas, em preto e branco, com uma pianinho animado ao fundo, como uma boa comédia do Chaplin ou do Buster Keaton.) Resolução de Ano Velho 05/06/2016 Na última segunda-feira eu acordei com um ímpeto digno de primeiro de janeiro, me olhei no espelho e decidi dar dois passos fundamentais rumo à saúde física e mental: parar de fumar e de escrever sobre política. Hoje é sábado e há seis dias não toco no Marlborão nem no Michelzinho. Estou contente. Fumei um maço, diariamente, dos 16 aos 22 anos. Eu era infeliz –e sabia. Nicotina é a droga mais estúpida que existe. Depois de fumar um cigarro ninguém se sente mais à vontade pra dançar cha-cha-cha, ninguém deita na cama comendo Fandangos com Leite Moça, ouvindo "No Woman No Cry" e pensando que finalmente entendeu o significado da palavra "epifania". O único prazer da nicotina é cessar a aflição causada pela ausência da nicotina. É mais ou menos como ter saudade de um paralelepípedo e precisar tocar no paralelepípedo pra passar a saudade. A diferença é que tocar num paralelepípedo não causa câncer de dedo e fumar causa câncer de tudo, sem falar nos dentes amarelos, no cheiro ruim, no pigarro, na falta de fôlego, olfato, paladar e no risco de cair do 14º andar metendo meio corpo pra fora da janela por causa das crianças. Como disse, parei de fumar aos 22, mas em algum momento entre o elogio à mandioca e o "sê-lo-ia" resolvi dar um trago, um traguinho só –o que é que tem?– pra relaxar. Mais ou menos na mesma época, comecei a escrever sobre política. Foi uma derrapada muito parecida com a do cigarro: uma crônica, uma croniquinha só –o que é que tem?– pra desopilar. Desde então, venho tocando diariamente no paralelepípedo e semanalmente nos velociraptors. O fôlego só piora e o gosto na boca é terrível. Sobre o segundo vício, podem argumentar que talvez seja importante, na atual conjuntura, apontar o teclado pra Brasília. Não, não é. Quanto mais escrevo sobre a crise, mais a crise se aprofunda. Se meu complexo de inferioridade sofresse de um delírio de grandeza eu acreditaria até que Deus lê meus textos e faz exatamente o contrário do que eu gostaria. Por alguma razão, no entanto, semana após semana eu sigo fumando e opinando. Até tento esboçar um texto sobre o outono, sobre correr no parque, sobre o Fernando Pessoa ou as incríveis microcervejarias brasileiras, mas é só bater o olho no jornal pra me atolar na culpa. O país se desmilinguindo e você não vai fazer nada, Antonio? Pois hoje eu não vou, não. Sentei pra escrever a crônica e quando deu aquela vontade de fumar e de falar do Eduardo Cunha eu fui ouvir música. O shuffle escolheu "While My Guitar Gently Weeps", dos Beatles. Dei um Google. Sabe de quando é? De 1968. No ano em que mataram Martin Luther King, em que começou a guerra do Vietnã, em que o Brasil balançava de cabeça pra baixo, pendurado num pau de arara, lá no estúdio da Abbey Road George Harrison cantava: "Eu olho pra vocês todos/ Vejo o amor aí, adormecido/ Enquanto a minha guitarra chora de mansinho". É, amigos, parei. Hoje é sábado, está sol lá fora –esse sol mansinho, de outono–, vou correr no parque, vou tomar um banho e depois vou ler Fernando Pessoa bebendo uma India Pale Ale da Júpiter. Brindarei à minha saúde, à de vocês e à do George Harrison. Adeus, velociraptors! Esfume-se, paralelepípedo! O Nobel da esquina 12/06/2016 O surpreendente não é descobrir que o Gabriel García Márquez continua vivo -era de se imaginar que o maior expoente do realismo mágico, percebendo a proximidade da morte, mandasse às favas o realismo e apelasse para o mágico. O surpreendente é que ele continue com 50 e poucos anos e trabalhe numa banca de jornal na rua Maranhão. Encontrei Gabo por acaso, semana passada, pela manhã. (Tomo a liberdade de chamá-lo de Gabo, aqui, porque desde que li "Cem Anos de Solidão", na adolescência, sinto que somos íntimos, mas ali na banca da Maranhão, atrás do balcão de chicletes, o Nobel prefere ser chamado por seu heterônimo civil, "seu Ari"). Como eu ia dizendo, encontrei Gabo semana passada, quando fui à banca comprar cigarros —eu ainda fumava, naquele passado que agora me parece tão remoto quanto a Macondo do primeiro Aureliano. Foi bater o olho no jornaleiro pra sentir o formigamento incômodo do déjà vu: meu Deus, quem é essa pessoa que eu conheço tanto e não reconheço nada? Um segundo de dúvida, dois e, no terceiro, boom! É o Gabriel García Márquez! Não sei quem disse que o final de uma boa história deve ser ao mesmo tempo surpreendente e inevitável. Pois foi o que senti ao topar com o escritor, vivo, em Higienópolis. Primeiro um susto e, depois, enquanto ele perguntava "maço ou box?" com um insuspeito sotaque paulistano, a iluminação. É óbvio que ele está vivo, pensei, ele leu os pergaminhos do cigano Melquíades, aqueles alfarrábios misteriosos onde aparecia detalhada não só toda a história da família Buendía como a fórmula alquímica da imortalidade. A dúvida que ficou foi mais prosaica —sem querer, claro, desmerecer a prosa—: por que jornaleiro? Por que incógnito? Por que com 50 e poucos anos? Gabo estava tendo problemas com a maquininha —os pergaminhos previam maravilhas e massacres, milagres e maldições, mas não creio que houvesse ali, entre tantas palavras em sânscrito, alguma instrução sobre cartões com chip—, de modo que tive tempo para examinar bem os cabelos cacheados, o bigode espesso, aquelas inconfundíveis feições de sátiro bonachão. Enquanto eu o ajudava com o pagamento, tomava coragem: falo? Não falo? Falo? Não falo? "Não sei se já te disseram, mas o senhor parece demais com um escritor". Ele ficou me olhando com cara de quem foi pego em flagrante. "Que escritor?". "Gabriel García Márquez. Conhece?". "Não, não conheço", disse, mas pude ver o sorriso surgindo no canto da boca. "Ele foi Nobel. Nobel da literatura". Agora o sorriso já não era mais contido, era de um orgulho transbordante: "Quem me dera ter 1% do talento!". "Ó, fico meio assim de pedir, se o senhor não quiser, beleza, mas eu gosto muito do senh/ gosto muito do García Márquez. Será que a gente pode tirar uma foto junto?". "Hm, vai me desculpar, mas eu sou meio ruim pra essas coisas...". Preferi não insistir. Paguei, estava saindo, ele me chamou. "Jovem?" (Um homem de 50 e poucos não me chamaria de jovem, um de 89, sim). Olhei pra trás. "Volta aqui outra hora, a gente conversa melhor". Fiquei parado, hesitante. "Sobre a foto?". Ele não disse nada, só me encarou com a mesma expressão irônica de minutos atrás, quando pronunciei o seu nome: pra bom entendedor, meio sorriso basta. EmpreÉDENdorismo 19/06/2016 Sentados no auditório, de smokings e vestidos Dior, Chanel e Armani, demônios e demônias tamborilam ansiosos nas hastes dos seus tridentes Louboutin. Em instantes será anunciado o grande laureado da noite: o vencedor do 1° Prêmio Jovem Diabo Empreendedor. Toca uma musiquinha, o apresentador começa a chamar os finalistas: "Azazyel!". O diabito entra no palco com uma corridinha marota. "Jovem, fala pra gente, qual a sua invenção e como ela pode infernizar a humanidade no futuro?". "Chuveiro elétrico". "Fala mais!". "Na embalagem a gente vai prometer pressão e temperatura, mas é mentira, ou a pessoa vai tomar banho frio com muita água ou pelando só com um filetinho ridículo. Sem falar que de vez em quando o chuveiro vai pegar fogo ou eletrocutar algum cristão". Palmas. O apresentador chama o segundo candidato. "Com vocês, Belial!". Belial também entra correndinho e para diante do microfone. "Que que cê manda, querido?!". "Celular". "Conta pra gente!". "É um telefone que vai no bolso, tá? As pessoas vão poder ser encontradas a qualquer hora, em qualquer lugar. Mas o pior é que vai ter internet. Quando elas estiverem bem velhinhas, vão pensar: que que eu fiz da vida? Vi foto de gato no Instagram, reclamei do técnico no Twitter e briguei nos comentários de desconhecidos no FB". Muitas palmas. "Maravilha, que talento essa juventude! Agora nosso terceiro concorrente, Arimã!". Arimã entra tocando as mãos da turma da primeira fila. "E aí, Arimã, que que você criou que pode ser pior que o chuveiro elétrico e o celular?". "Carro". "Que que é?". "É uma máquina pra locomoção que queima combustíveis fósseis. As pessoas vão parar de andar a pé e vão ficar gordas. Mais de um milhão vai morrer todos os anos em acidentes e a fumaça vai zoar geral o clima. Sem falar na qualidade das rádios FM. Quem não morrer no trânsito nem no efeito estufa vai cortar os pulsos ouvindo Phil Collins". Aplausos muito, muito empolgados. "Agora, o último concorrente da noite! Pazuzu! Que que você traz pra gente, Pazuzu?!". "Bala toffee". "Bala toffee?". "Isso. É uma bala de caramelo deliciosa. Ninguém resiste. Mas no que neguinho morde, ela gruda no dente, lá atrás. A pessoa passa horas e horas tentando desgrudar com a língua, mas é um caramelo de açúcar e argamassa que não solta nem derrete e a língua começa a formigar e a mandíbula a doer e vai bater um arrependimento porque a pessoa sabe que não pode morder bala toffee, mas ela morde mesmo assim e vai se achar burra e vai questionar outras atitudes na vida dela, como a profissão e o casamento e as amizades e a orientação sexual e o time e as escolhas políticas e quem não ficar louco depois de 12 horas com bala toffee no dente vai ficar pelo menos com cárie e vai ter que fazer tratamento de canal". Aplausos ensandecidos. "Que beleza!". O apresentador pega um envelope: "Vamos ver, vamos ver quem que a academia escolheu, foi o... Pazuzu! Bala toffee! Palmas pro Pazuzu, que vai levar o audiobook "Da Queda À Maçã: lições de empreÉDENdorismo", coaching grátis com o autor, o Belzebu em pessoa, além de um milhão de cruzados pra bombar a sua startup!". (A moeda do inferno sempre foi o cruzado, com a inflação brasileira de 1989). "E o resto, tigrada, já de volta pro caldeirão!" Prova de história 26/06/2016 Questão: Hoje faz 30 anos que o Reino Unido decidiu sair da União Europeia. Comente os aspectos positivos e negativos do plebiscito ao redor do mundo nas últimas décadas. Em 2016 os ingleses e os escocenses e os irlandianos e os paísgauleses tiveram um plebiscito que é uma eleição que decide se uma coisa vai ser decidida de um jeito ou de outro e eles decidiram que o Reino Unido ia sair da União Europeia e daí eles saíram. A UE era um acordo entre todos os países da UE que permitiam os imigrantes ilegais de entrarem em todos os países da UE e roubarem os empregos dos europeios e fazerem muita fritura e atentados em nome de Alá. Alá era um Deus que os terroristas gostavam muito e que foi proibido em 2025 pelo presidente americano Donald Trump e hoje se você for rezar pro Deus Alá você vai preso e é por isso também que o presidente Bolsonaro Filho proibiu a marchinha Alalaô no carnaval do ano passado e isso tudo é "aspectos positivos". Um "aspectos negativos" da saída do Reino Unido da UE foi que vários jogadores estrangeiros do Campeonato Inglês tiveram que ir embora do Reino Unido e isso foi injusto. Mas no FIFA Soccer ainda dá pra comprar os jogadores estrangeiros e isso é justo. A saída do Reino Unido da UE teve muitas influências em muitas coisas em muitos países depois da saída do Reino Unido da UE. Os americanos elegeram o primeiro presidente cor de laranja da história dos EUA que é o Donald Trump porque ele também era contra os terroristas árabes e contra os mexicanos que não eram terroristas árabes mas roubavam os empregos dos americanos e faziam muita fritura também. Depois da saída do Reino Unido da UE a Alemanha também saiu da UE e a Áustria saiu da UE e vários outros países daí a UE acabou o que é bom porque cada país pode ser livre e construir um muro em volta dele e se proteger dos terroristas árabes e também dos mexicanos que depois que o Outro "aspectos positivos" foi que o Sul e o Sudeste do Brasil fizeram um plebiscito em 2023 e se separaram do resto do Brasil e é por isso que hoje o Bolsonaro Filho é presidente dos Estados Unidos Brasileiros que é onde a gente mora e antes da separação e do Bolsonaro Filho o Brasil tinha vivido duas ditaduras que eram a ditadura gay e a ditadura do politicamente correto que queriam proibir a liberdade individual e hoje todo mundo é livre pra ser contra o casamento gay e o racismo dos negros e o fascismo das feministas.Trump fez um muro na fronteira com o México eles tiveram que ir pra Europa pra roubar o emprego dos europenses e fazer fritura lá também. Um último "aspectos positivos" é que no ano que vem vão construir um muro em volta da África e em volta dos árabes e aí eles vão poder ficar morando na terra deles o que é bom pra eles porque é onde eles nasceram e eles nem vão ter que pagar nada por isso porque os EUA e o Reino Unido vão pagar e eu também doei dinheiro da minha mesada e semana que vem a gente vai fazer plebiscito nos EUB pra ver se a gente também cerca o Piauí que nem a gente cercou as favelas e eu vou parar por aqui porque já tocou o sinal e eu não posso chegar atrasado na aula de Moral e Cívica. . Pareceres 03/07/2016 "Tartarugas Ninja". por que a apresentadora e suas assistentes trajam-se como manequins de sex shop? Se é para adulto. Considerar luta no gel. Uma animação para crianças em que. por favor! Estou pagando por uma atriz de olhos verdes e os quero aproveitados até o . Donatello. por que têm nomes de artistas renascentistas: Leonardo. besuntados em purpurina. Por último: se são tartarugas ninjas com nomes renascentistas. Última dúvida: Xuxa vai embora numa nave espacial: ela é uma alienígena? Caso seja. Ninguém vai acreditar que a Mariel Hemingway esteja apaixonada por aquele baixote esquálido. Projeto extremamente confuso. (E sem esse maneirismo de P&B. Raphael e Michelangelo? (Aliás. "Bambi". logo de cara. o que nos remete ao Japão. Substituir Woody Allen por Billy Crystal ou Sylvester Stallone. Primeiro: se são ninjas. Se é para criança. por que raios o mestre delas é um rato chamado Splinter? Encontrem um rumo ou será fracasso garantido. mudar nomes de Praga e Dengue para Aquiles e Sansão e deixá-los só de sunga. "Manhattan". não seria melhor bichos mais ágeis? Esquilos Ninja? Andorinhas Ninja? Camundongos Ninja? Segundo: se são ninjas. Substituir Woody Allen por Billy Crystal ou Sylvester Stallone. por que os desenhos animados e as gincanas com crianças? Os assistentes de palco se chamarem Dengue e Praga é de extremo mau gosto. a informação precisa ser aproveitada no resto do programa. logo de cara. a mãe e todos os 80 irmãos do peixinho morrem devorados por um tubarão? Vocês estão loucos? "Annie Hall". a mãe do veadinho é abatida por caçadores? Vocês estão loucos? "Procurando Nemo". não creio que crianças de cinco a oito anos vão pegar a referência). Não ficou claro se o produto é para adulto ou criança. "Xou da Xuxa". Ninguém vai acreditar que a Diane Keaton esteja apaixonada por aquele baixote esquálido. Sugestão: passar o "Xou" na madrugada e fazer gincanas com adultos. Um desenho animado para crianças em que. porque além de não entender patavina do assunto. Mas um músico que não tem voz. quem quer ver uma inglesa. mande o Tolstói deixar de ser preguiçoso e criar um final decente. Crônica "Pareceres". todo mundo sabe que você é subornado pelo PT via Lei Rouanet. Protagonista adoece. (Só não fale de política. petralha maldito!) . Fale.. caso tenha voz. Pode não ter presença de palco... branca. Mesmo tirando o spoiler do título (!!!). piora. dos filhos. caso tenha presença de palco. piora e. já fizeram essa brincadeira com muito mais graça e erudição. Amy Winehouse. não tem presença de palco e sussurra canções infantis sobre patos enquanto dedilha aleatoriamente um violão?! Encontrem-me o novo Orlando Silva e não me venham com mais piadas. Morre?! Sugestões: o protagonista.último centavo!) João Gilberto. com muito pensamento positivo. em seu "Diário Mínimo". a história permanece absolutamente previsível. judia e magrela cantando músicas de negros americanos da década de 70? (Winehouse é uma piada autoirônica por causa dos problemas da moça com o álcool ou a pinguça chama mesmo Amy "Casadovinho"?!) "A Morte de Ivan Ilich". e a Maria Emilia Bender. supera a doença e vai atrás dos seus sonhos? Morre e volta como fantasma? Sei lá. piora. Arrume outro tema. em artigo na "piauí". Um músico pode não ter voz. Em pleno século 21. O Umberto Eco. sei lá. no topo do Himalaia. a Ford. estudos. Outra diria: "Eu e o Jurandir. no Zimbábue e no ozônio. leria Proust). seria a Fulbright Farniente. após um banho de cachoeira. falando sério" –e cantaria "Um elefante incomoda muita gente/ Dois elefantes incomodam muito mais" até chegar a 58 elefantes ou até o Serviço Secreto cortar a transmissão e me levar dopado pra Guantánamo– o que vier primeiro. a gente gosta muito de massa.Coisas que eu faria 10/07/2016 Se eu fosse um bilionário entediado. filmes. Outro diria gostar muito da luz da manhã e pediria para viajar o mundo por um ano. fellow americans! Agora. (De noite. a antiga Vitae. encheria essa paisagem a perder de vista com Fuscas. mas nunca foi pra Itália. compraria uma bazuca. Se eu fosse o presidente dos Estados Unidos no discurso do Estado da União. pediria desculpas. Se eu fosse um Deus altruísta: encarnava de novo e passava uns tempos resolvendo essa inhaca sobre a qual não se pode dizer que Ele (ou Eu) é (ou . como fazem essas incríveis instituições tipo a Fulbright. Nada de financiar pesquisas. na alfabetização. Aprovado. diria "brincadeira. me hospedado em castelos e dado rolês em ônibus espaciais: compraria um sítio com uma paisagem a perder de vista. televisionado ao vivo para o mundo: começaria cantando "Mariana conta um/ Um conta Mariana/ É um. Del Reys e –por que não?– Land Rovers a perder de vista. Tá aqui o dinheiro. já tivesse investido na Amazônia e nas baleias. Um candidato se proporia a assistir aos principais campeonatos mundiais de futebol. então a gente tava pensando em passar 2017 por lá. comido as trufas mais raras. é Ana/ Viva Mariana!". in loco. aproveitando o amanhecer em Lisboa. na fibra de coco e na energia solar: criaria uma bolsa sabática. Aprovado. faria a cara mais contrita. amiga. Terminada a música. livros. já tivesse bebido os vinhos mais caros. Se eu fosse um bilionário engajado. encheria um cálice de bourbon e passaria uma tarde inteira explodindo carros. no deserto do Atacama. A minha instituição financiaria um ano de vagabundagem. comendo uns macarrãozinho (sic)". Brasílias. diria. então sairia levitando sobre as cabeças dos congressistas atônitos e. iria para o meu sítio tomar bourbons e explodir Del Reys).sou) inteiramente inocente. E todos se curvariam. com uma voz tonitruante: "Eu sou Javé. Se eu fosse um gato: faria exatamente o que os gatos fazem. E eu bradaria "Toca Rauuul!". apenas. me lambendo com menos frequência). Se eu fosse um Deus egoísta: desencanaria dessa inhaca de uma vez por todas. cantaria "Mariana conta um" e "Um elefante incomoda muita gente" até o Serviço Secreto tentar dar sumiço em mim. (Talvez. encarnaria com uma pinta de Leonardo DiCaprio e passaria a eternidade me esbaldando por aí. El Shadai! Eu sou aquele que é e tudo pode! Posso inclusive cantar 'Mariana conta um' e 'Um elefante incomoda muita gente' no discurso do Estado da União dos EUA. . sob os olhos esbugalhados de boa parte da população mundial. Se eu fosse um Deus piadista: encarnaria como presidente dos Estados Unidos num discurso do Estado da União. ó fariseus!". (Aos domingos. E voltaria pras alturas. parado em meio a centenas de motoristas. da Aliança Francesa. cinéfilo. "Di Cunto soluções em logística" –provavelmente. por anos. olhei em volta e encontrei um único carro com adesivo. (Será coincidência que um dos últimos adesivos a entrar na moda tenha sido a familiazinha papai-mamãe-filhinho-filhinha-cachorro. "Deus é fiel" informava a todos que o motorista da Brasília era cristão –embora. Era preciso afirmar nossas individualidades no meio da geral. . o carro era nosso outdoor particular. como se disséssemos adeus ao espaço público antes de nos refugiarmos no silêncio dos insulfims?). Antes. provavelmente fumava maconha e entre passar as férias em Berlim ou Itacaré. maconheiro. o alvo do nosso marketing pessoal era a cidade inteira. dirigido pelo próprio senhor "Di Cunto". petista ou tucano. O que terá acontecido? Minha hipótese –se me permitem uma rápida sociologia de botequim– é que os adesivos foram engolidos pelas redes sociais. porém sintomática. Twitter. me dei conta de uma mudança pequena. eu tenha pensado que a ideia fosse mostrar que Deus torcia pro Corinthians. informava que ali dentro daquele Uno havia uma garota que curtia Godard. espalhado pelo globo. porém. se concentra na tela do meu celular. Alguns anos atrás. da frente ou de trás. Tinder e quetais. tomando parte nesta sinfonia da cretinice humana chamada engarrafamento. O "Je parle". provavelmente usava boina e entre um piquenique no parque e uma ida ao Playcenter. A bandeira da Jamaica informava aos demais cidadãos que ali dentro daquele Fusca havia um cara que curtia reggae. ficaria com o piquenique. Meu nicho. Semana passada. estávamos soltos na multidão. Com Facebook. Instagram. ou finge que é) para os que a gente escolheu. Que se dane o cara do carro ao lado. "OPTei" informava a todos que o motorista da Variant era petista. preferiria Itacaré. praticamente todo mundo usava o carro para mandar uma mensagem ao mundo. a gente comunica o que a gente é (ou pensa que é.Lá vou eu em meu eu oval 17/07/2016 Semana passada. Como não sabíamos quem ao nosso redor era católico. na epiderme dos automóveis (ou autoimóveis?): quase já não há adesivos. menos aberto à diversidade? "Lá vou eu em meu eu oval". . palíndromo da Marina Wisnik. Na melhor das hipóteses. me veio à memória ali no engarrafamento. Não será essa uma nova forma de vilarejo? O vilarejo dos iguais? Será que essa mesma segmentação que me faz prescindir da opinião do carro ao lado não cria um mundo mais intolerante. Uma frase circular que veste como uma luva –ou como uma uva?– o nosso universo umbigo. mais raivoso. fico me questionando qual será o preço de nos comunicarmos cada vez mais apenas com os nossos semelhantes.Nos meus dias mais otimistas acho que essa compartimentação é positiva. ele encontra seus pares –no vilarejo ao lado ou do lado de lá do Atlântico. Trinta anos atrás. com uns cliques. se um cara era o único gay ou o único heavy metal ou o único vegetariano de um vilarejo de quinhentos habitantes ele se achava um freak. no entanto. linchado ou atropelado por um caminhão. Na pior. o outro deve ser ignorado. casulo dentro do qual perco qualquer identificação com os de fora. deve ser "trollado". Nos meus dias mais pessimistas. Hoje. do time brasileiro em Melbourne. Stephanie Forcin.'Essa tocha não é do PMDB. Ao saber que eu carregaria a tocha. caindo de cara numa poça de água na rua dos Andradas. "Por que você não me falou antes?! Eu ia aí te filmar!" (Meu pai mora em Florianópolis e só costuma sair da ilha pra casamento ou velório). ele ficou eufórico. não ajudaria a dourar a pílula das eternas maracutaias nacionais? Estava imerso em tais caraminholas. contudo. . até. chamou dois condutores à frente da roda: Fernando Telles. e Roma. na véspera do revezamento. nos saltos ornamentais. no ensaio para o revezamento. Não queria ter que alterar o meu currículo: "Antonio Prata é paulistano. comecei a ficar ressabiado. quando a competentíssima Frances. essa tocha é de Zeus! Do João do Pulo!' 24/07/2016 Quase um ano atrás me ligou o Naief. editor de "Esporte" da Folha. vou ligar pro Chico em Sorocaba e ver se ele pode ir aí te filmar!" Só entendi o meu pai no dia seguinte. escritor. encenou o condutor que receberia a chama. 18. da organização da Rio-2016. essa tocha é de Zeus! Do Cassius Clay! De Apolo! Do João do Pulo! Do Jesse Owens! Deixa de ser besta. o descumprimento das metas ambientais. e as notícias sobre os Jogos foram desviando do esporte para as suspeitas nas obras. Itu. Será que carregar a tocha não seria dar apoio ao descaso. à corrupção. 76 anos. ao pisar no próprio cadarço. Atualmente se dedica ao seu primeiro romance e à sua quinta defesa num dos inúmeros processos movidos pela Coca-Cola". lá em Itu. Conforme a data foi se aproximando. roteirista e extinguiu a milenar chama do Olimpo em julho de 2016. o desleixo com o legado. pré-microcefalia. pré-desabamento da ciclovia. emocionado. lutadora de taekwondo. A Coca- Cola tinha disponibilizado uma vaga no revezamento da tocha olímpica. 113. Expliquei minhas reticências. pré-estado de calamidade pública no Rio e de desalento geral no Brasil. em Itu: eu toparia correr e escrever uma crônica? Topei. que isso?! É Olimpíada! Essa tocha não é do PMDB. 1956. "Meu filho. Diria. minha maior preocupação era com um possível tombo. 1960. quando meu pai telefonou. Naquelas priscas eras. Durante as quase quatro semanas dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos veremos os melhores atletas do mundo competirem em pé de igualdade. ao receber a chama do Rogério Brito –peso-pena que representou o Brasil em Barcelona. não dos ratos que enchem a pança e o bolso desviando dinheiro de estádio.treinando para uma vaga em 2020. estatal. tão piegas quanto verdadeiro: "É a experiência e a vontade! É a conquista e a esperança! É o ontem e o amanhã construindo. mais ainda. em Itu"! O nó virou choro minutos mais tarde na rua dos Andradas. compreendi. na tribuna de imprensa do meu córtex. merenda e hospital. apesar de não ter dinheiro para comprar os próprios tênis e ter de treinar com um par emprestado pelo técnico. um nó se formou na minha garganta e um narrador esportivo se instalou na minha cabeça. que ao nos comover com as inúmeras histórias e conquistas dos nossos setecentos e tantos esportistas possamos fazer. sem apadrinhagem. A Olimpíada é dessas pessoas. juntos. sem fraude em licitação. Espero. diz o locutor. golpe ou estelionato. encenou a que passaria. Espero que nos sirva de exemplo. 1996. "Que a tocha nos ilumine!". 1992 e Atlanta. o hoje. ao menos em parte. 113. as pazes com o Brasil. "que a tocha nos ilumine!" . caixa dois. caso o país trate os gringos nessas semanas como trata os seus cidadãos o ano inteiro. Um dos participantes. isto é. os 7 a 1 da Alemanha. políticos. seria desistir do país. encontra um gringo. da Mancha e da Charanga Rubro-Negra se reúnem numa Sala de Emergência. Plano Cruzado. vendê-lo para algum dos líderes presentes. Enquanto esbaforidos funcionários do COB correm de lá pra cá atrás de tampas de privada. dois episódios dos Simpsons zoando o país. Plano Collor. o discurso da mandioca." Segundo a fonte. do Lions. bem longe dali. duas ditaduras. se neguinho puser fogo em um ônibus. revelando-vos o elevador. faxineiras e cangurus. meses atrás. sem querer. agentes da ABIN. quarta e sexta. só aí já dá pra mocosar uns cem. em local mantido sob sigilo absoluto –bem. da Gaviões. 300 anos de Ricardo Teixeira. em caso de fiasco olímpico a Sala de Emergência trabalha com dois cenários. chamado de Braxit (e apelidado de Brashit). se uma bala perdida. 300 anos de Programa do Gugu. dessas que se perdem todo dia no Rio. oitavo subsolo. acadêmicos. duzentos mil patrícios". a votação do impeachment. membros do Rotary. muito container de delegação sendo despachado. Plano Funaro. 300 anos do jingle do Eymael e a barragem que se rompeu. "O Brasil não aguenta mais um baque.Tudo sob controle 31/07/2016 Faltam apenas cinco dias pro início da Olimpíada. soterrando a nação sob os rejeitos do PMDB. o gol do Gigghia. O primeiro. . conversou comigo. dividir a grana desigualmente –em respeito à tradição– e cada um que se vire. a prateleira de doces de mocotó girará 90° e uma porta abrir-se-vos-á. tortura segunda. amigo." O objetivo do grupo é decidir o que fazer caso os Jogos deem errado. basta torcer o pescoço da garça de espelho. Se cair uma arquibancada. político renomado. um zapzap pro grupo de pais da escola do Michelzinho. domingos com culto do pastor Silas Malafaia. tomada de 3 pinos. informando "Graal Pindamonhangaba. "Vai ter muito material sendo levado embora. chacina terça. num bunker antiatômico. mais simples. eletricistas. Foram 300 anos de escravidão. encanadores. o país entra em colapso. pelo menos até Michel Temer enviar. quinta e sábado. tá tudo sob controle. pergunto. criador dos Jogos Olímpicos modernos. "Citius! Altius! Fortius!" –e seja o que Deus quiser. mais complexa. de ônibus." E após o Carnaval?. o povo vai se preocupar com as compras e ninguém mais vai lembrar da Olimpíada. "Aí a gente já emenda na páscoa. Sapucaí. "O resto pode ir depois. sei lá. ." Questionado se não seria complicado alojar 200 milhões de brasileiros num momento de intensa migração mundial. Olodum. a partir da Sala de Emergência nós temos condições de estar implementando." Tudo sob controle. Globeleza.sugere. afirmou: "Complicado. manda o Abílio pendurar ovo em tudo quanto é canto. parceiro. Galo da Madrugada. a zorra toda. de patinete. é. caso o país dissolva feito Sonrisal num mar de lágrimas. do Oiapoque ao Chuí. de carro. de pedalinho. depois da páscoa todo mundo sabe que já é quase Natal. é trabalhar com uma política de redução de danos. ator americano em decadência trançando as pernas no camarote Brahma. mas aí já não é problema nosso". o Carnaval. Como diria o barão de Coubertin. em menos de 24 horas. Ou seja. A segunda opção. "Se o caldo entornar. nós aqui levando pro Rio uma das maiores promessas de medalha. as crianças se concentraram num livrinho. Uma caloria a menos e demora-se mais. Já viajamos de avião algumas vezes e nunca houve um rebu que não pudesse ser controlado com a dosagem certa de glicose e Peppa Pig (sim. o choro estancou. suco. Cheguei até a pensar. na ponte aérea que as atletas da seleção brasileira de vôlei tiveram o azar de pegar. ontem. admito. Um grama a mais e sobe-se menos. no entanto. Não sei o que deu nos meus filhos. de surpresa. a Olimpíada desacreditada. se fosse o Bernardinho eu já ia ter voado pela janela. nem Galinha Pintadinha surtiu efeito: mal decolamos e meus filhos lançaram as vozes mais alto do que a bola no saudoso saque do Bernard. é doping —eu provavelmente não seria aprovado por uma Wada da paternidade. em algum lugar entre São Paulo e Rio. mas há momentos em que só substâncias ilícitas garantem a performance almejada). o . não sei como. disciplina e meditação? Era só o que me perguntava enquanto tentava controlar os meus filhos com bolachas. E então. Eles pareciam estar pensando exatamente o mesmo que eu: o Brasil na pindaíba. Ontem. Eu faria qualquer coisa –faria até brotar. vira cortada. O que dizer então dos efeitos deletérios de viajar com dois bebês urrando a quatro dias da estreia nos Jogos? Podem ou não arruinar o equilíbrio conquistado em meses de esforço. rumo à Rio-2016. e você pondo tudo a perder? Eu falava: "Olivia. uma das maiores chances de trazer um pouco de alegria a este povo. como um levantamento que. pelo amor de Deus! Que que cês querem? Querem iPad? Querem leite condensado? A Jaqueline tá na poltrona de trás! Querem o iPad besuntado com leite condensado?". Um milímetro basta. a trinta mil pés de altitude. Eu percebia os olhares dos demais passageiros.Seleção brasileira de vôlei deu azar de pegar o voo com meus filhos a bordo 03/08/2016 Cada milésimo conta. por um momento: que sorte que o técnico é o Zé Roberto. mas eles estavam mais enfezados que cubana em final contra o Brasil. do nada. livrinhos e inúteis ameaças. Daniel. uma lata de leite condensado–. "Mas choravam. toc. "Que graça!". "O cara tava com a babá. Pousamos. "Ela pesa 13 quilos. quando vejo a minha filha no colo da Jaqueline. . Voltava aliviado à poltrona. Zé? Deixar com aquele pai? Não viu como eles choravam?".ouro voltou a ser uma possibilidade. Jaqueline!". Pensei no Arthur.. ela diz. devolve!". Depois essa aí ainda me pega a criança!". mas comecei a sentir o ombro. pela escada. Zé Roberto: "O time inteiro tá estressado. "Imagina! Eu tenho um filho dessa idade! Tô matando a saudade do Arthur". diria o técnico. "Guarda a energia pras americanas. depois de uma (toc. ônibus adentro. pensando que não tinha sido tão grave assim. Desculpa. concordariam todas. Fui ao banheiro. ando em círculos por Ipanema. "Tsc! Pode deixar que eu te ajudo" —e sai carregando a Olivia pelo corredor. "Daquele pai". "Ia fazer o que.toc) derrota: "Tava tudo bem." "Não precisa pedir desculpas". "A culpa não é sua. Há horas. é daquele pai. Imagino Jaqueline numa coletiva. Jaqueline! Dá aqui!"." "É". Pra lá de meia hora de choro e Galinha Pintadinha. Acho que foi a menina da ponte aérea". com a cabeça baixa e olheiras profundas.. as luzes iluminam. imponentes. pegando a nova linha 4 do metrô. Vejo uma jaqueta do Exército despontar no começo do vagão e confesso . cara pálida?!". Nós. ressabiados. somos observados pelos demais passageiros com um misto de assombro e hostilidade. Ambulantes cruzam os vagões. esquadrias de alumínio e pichações. Como já dizia Mano Brown: "Periferia é periferia em qualquer lugar". O trem chega lotado. Do lado de fora da janela é Curicica. Da Barra à Cidade Olímpica. não é que conseguimos? "Conseguimos o que. Estou indo assistir a uma competição olímpica. as escadas rolantes rolam. Caramba. talvez a única coisa que funcione no país seja a Olimpíada 07/08/2016 Da zona sul até a Barra. Descemos em Magalhães Bastos para pegar o trem. o teto não cai. De uma hora pra outra o Rio olímpico dá lugar ao Rio telúrico. pelo BRT. "Skol Latão! Guaracamp! Água! Grapete!" Os gringos. alguns soldados muito jovens e assustados caminham de um lado pro outro. Na plataforma. mas poderia ser Capão Redondo. é o que me pergunto durante o novo trecho. vistosos. os ônibus têm rodas e janelas. De tempos em tempos cruzamos um veículo blindado cercado por soldados com fuzis e metralhadoras. o BRT da linha Transolímpica. sobre os trilhos corre um trem. A estação é cercada dos dois lados pelo Exército. tentam não fazer contato visual.Nestas 2 semanas. Chegando à Cidade Olímpica. vou otimista: o metrô existe. o mais surpreendente: os estádios -até eles!- existem. Islamabad. o motor não funde. continuo contente: o BRT também existe. prontinhos para os Jogos. mas parece que fui parar num episódio de "Homeland". os branquelos coloridos. cruzando os intestinos da zona oeste carioca. O BRT parece uma cápsula extraterrestre com seus adesivos coloridos levando loiros e ruivas e orientais vestindo uniformes amarelos com crachás reluzentes sobre o mar ocre e cinza de autoconstrução. Caracas. que sobe dessa Jacarepaguá futurista rumo ao velho Engenho de Dentro. mas talvez.sentir um certo alívio. só dois real na minha mão!". Chegamos ao Engenhão. As bandeiras dos países. Basta pensar nisso e fico triste de novo: durante estas duas semanas. do lado de lá da capsula olímpica. A seleção feminina faz três na China. os Jogos funcionem. As cadeiras estão no lugar. todas penduradas. é só dois. continuará ao deus-dará –e Deus. a primeira favela da cidade. O estádio existe. não dá. junto a ex-escravos. ó. talvez a única coisa que funcione no Brasil seja a Olimpíada. no frigir dos ovos e no tilintar de milhões de socorro público. outro ambulante camuflado: "Olha a batata. pelo menos em boa parte da zona oeste do Rio. . batata cebola e salsa. Vinte e sete mil pessoas cantam "Brasil! Brasil! Brasil!" e volto a ficar otimista. Logo depois. De onde virão essas jaquetas? Serão da ocupação do Exército na Copa? Na Rio+20? Terão sido trocadas por colchões? Por batatas? Pela trégua do tráfico ou das milícias? Impossível não se lembrar dos soldados que combateram em Canudos 120 anos atrás e de volta ao Rio formaram. mas é outro vendedor: "O celular descarregou no trem? No ônibus? Na barca? Aqui. é só meter no fio! Coisa de cinema! De filme! Só por cinco real! Cinco real!". pelo que se nota. Há notícias de muita desorganização. O resto do país. A grama é verdinha. no Ginásio Carioca 2. a lasanha verde com queijo de cabra. não é o meu caso. logo. Acordo. ou natação. 42 modalidades. Só tive paz durante os 50 minutos em que fiquei na fila do lado de fora. Saí correndo e cheguei ao Carioca 2 justo a tempo de ver o Felipe e a Sarah serem eliminados. por exemplo. A uns 200 metros dali. eu poderia acompanhar a torcida. abro o aplicativo Rio-2016 e me sinto como um esfomeado diante do bufê no casamento da prima rica: devo comer o cordeiro assado. se derrubam esse copo!). mas eu não entendo patavina. de um bom Suriname x Malásia no badminton? No sábado. que não é o mais forte do Brasil. perfeito. Comecei a assistir às primeiras provas. pra comprar uma mirradíssima minipizza (R$ . o risoto de frutos do mar. uma credencial de imprensa que permite assistir a tudo: seria a glória para qualquer pessoa mais apegada ao esporte do que às próprias neuroses –infelizmente. escolher natação. sob o sol escaldante. as 17 opções de salada ou nada pra dar mais espaço pro bolo e pros 123 bem-casados surrupiados no bolso do paletó? Diante do variadíssimo à la carte da Rio-2016 eu me pergunto. afobado: futebol ou esgrima? Estrelas internacionais ou promessas brasileiras? Judô. (Sou o tipo de sujeito que. bater cartão no Estádio Aquático e ficar ali vendo tudo o que acontecesse. estava quase confiante de ter feito a melhor opção quando caí no erro de consultar o celular. Logo. Em vez de me esbaldar com todas as disputas a que posso acompanhar durante essas semanas. fico aflito com todas as disputas que estou perdendo a cada minuto. Felipe Kitadai e Sarah Menezes estavam ganhando tudo. 19 dias. Voltei correndo e cheguei ao Estádio Aquático justo a tempo de ser informado que os brasileiros e as brasileiras já tinham nadado –e bem. que tem chance de medalha. Vários brasileiros nadariam. pensa: ai. meio vazio. poderíamos ter ouro. primeiro dia pós-abertura. diante do copo meio cheio. pois pode ser a única chance na vida de desfrutar.Ansiedade olímpica das oito da matina a uma da madrugada 10/08/2016 Dez mil atletas. sentir o clima dos Jogos. resolvi apostar na simplicidade. mas é sempre emocionante? Assisto ao que mais costumo assistir ou ao que conheço menos. das oito da matina a uma da madrugada. O que escolher entre tantos canais? O Nadal às 13h45 ou o basquete masculino às 14h15? A Serena Williams às 15h15 ou o basquete feminino às 15h30? A faixa das 16h. A televisão. Minhas pernas já não cansam. 42 modalidades. estar em qualquer outro lugar. naquele instante. de modo que era impossível. o handebol feminino ou o Thomaz Bellucci? Dez mil atletas. das oito da matina a uma da madrugada: é uma pena que. Doce ilusão. Nos próximos quatro dias. umas esgrimas pro dia seguinte. Afinal. cobriria a Olimpíada de um privilegiadíssimo posto de observação: o meu sofá. . ao contrário das festas de casamento. organizaria o cardápio para mim. mas meu indicador corre pelo controle remoto mais ágil do que os pés da Marta pedalando diante da área. Segunda-feira voltei a São Paulo um tanto aliviado. como se fossem bem- casados.00). eu precisava me alimentar. imaginei. então. 19 dias. quase me fez arrancar os cabelos: Talita e Larissa no vôlei de praia. não dá pra servir tudo no mesmo prato –nem pra levar nos bolsos.15. . Henrique? E agora? Vai tentar cavar uma Bienal do Livro? Uma Flip? Ou vai voltar pra advocacia?" "Rafael! Que que aconteceu. mas duas da manhã e você acaba de traçar um pote de napolitano com Nutella. e aí.E se os nossos fracassos também fossem transmitidos ao vivo? 14/08/2016 A pessoa dedica a vida toda a nadar mais rápido. a prensar as costas do oponente contra um tatame antes que o oponente prense as dela. a Neide confiante. a saltar mais alto. Alberto? Vinha aí num ritmo bom. sua última Olimpíada. Como se não bastasse o maior revés profissional. todo o mundo com muita expectativa. Fico imaginando se nossos fracassos também fossem transmitidos ao vivo. três anos jogados fora. rapaz? Entrou confiante na festa. tá fazendo cursinho há três anos pra medicina. E as críticas não foram boas. por favor! O Henrique acaba de lançar seu primeiro romance. começou . a medalha escapou. dez anos aí escrevendo essa história sobre um homem num quarto conversando com um criado-mudo que talvez só exista dentro da cabeça dele e. em cores. né. Henrique? As vendas também não foram boas. Gláucia? Exausta. parece que o seu projeto de vida não deu certo. o Henrique largou a advocacia pra se dedicar à literatura. diante de bilhões de pessoas. talvez o maior baque existencial pelo qual já passou. tava gabaritando os simulados. Que que foi? Estresse? Muita pressão da Neide?" "Uma palavrinha. "Muitos erros. não deu pódio. né. "Oitavo lugar. às vezes quase pelada. mas na hora do vamos ver errou até raiz quadrada de 4. categoria acima de 150 quilos. Então. pra metade do globo. Gláucia?! A Gláucia tá saindo da Fuvest. "Estamos aqui com o Alberto Boucinhas. tinha perdido quase dez. família decepcionada. e agora?". ela encara as câmeras do mundo todo: "E aí? Perdeu o equilíbrio. a pessoa tropeça. ainda arfante. vendeu a casa. nos minutos ou segundos que a pessoa tem pra fazer valer o esforço de décadas. que aconteceu?". quatro semanas. que que você sente numa hora dessa?" "Henrique! Henrique! Um minutinho. Escorrega. tempo pior que o do Pan. Cai de bunda. como você explica?".. ao vivo. E aí. logo depois. Alberto que tava encarando uma dieta Atkins. sem filhos. "Realmente. chegou preciso na Juliana. você levou pro waza-ari no carpete. três casamentos frustrados. Eu tentei. aí. foi pra cozinha.pontuando na pista de dança. bom trabalho manual. triglicérides lá em cima. mostrou entrosamento. Que que houve? Um apagão?" "Arlindo. agora taí. então é bola pra frente. A Juliana ainda tentou cooperar. mas fazer o quê? Tem uns que dão certo. mas não teve jeito.. foi pra casa da Juliana. né. duas falências. tá? Acredito em reencarnação. Acende um cigarro.. esperando a polícia pra fazer o bafômetro depois da batida. Arlindo?". Arlindo solta um suspiro. um dos últimos no ranking geral da existência. sentado na sarjeta. mas na hora de finalizar. é trabalhar aí pra tar limpando esse carma e torcer pra na próxima as coisas serem melhores!" "Taí com vocês o Arlindo. nome no Serasa. bêbado. vem cá: 40 anos. sem amigos. outros não. ela te aplicou um yukô no colchão. Graças a Deus eu sou espírita. me esforcei bastante.. Parece que nessa vida não deu. dando esse recado cheio de esperança pro Brasil!" . careca. beijou a Juliana na área de serviço. E eis que lá pela metade da Rio-2016. urru! O polvilho é nosso! 17/08/2016 Hoje. no meio daqueles Jogos: o polvilho. Estávamos desiludidos com a política e desacreditados do futebol. Mas Olimpíada é isso aí: duas semanas de surpresas. Divulgação biscoito de polvilho mais vendido nas praias do Rio. no Brasil? Pois sim. a bagunça das nossas obras. Ninguém imaginava. Aceitamos. a violência das nossas cidades. outro pela bala perdida. assustados com a criminalidade e apavorados com a polícia. o "Globo". descobrimos. antes trampolins do azedume. A maioria da população achava que os Jogos trariam apenas uma alegria passageira e uma dívida duradoura –um olho chorando pela medalha conquistada. espremidos entre um ilegítimo golpista e uma legítima inepta: haveria alguma coisa pela qual ainda valesse a pena lutar. a cicatrizar suas feridas e entrar no clima que possibilitaria a chamada "Década Gloriosa". esgrimas do ressentimento. dia 5 de agosto de 2028. desafiados. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. que a saída da buraqueira seria como foi. o milagre se deu. Ninguém sabia. Pegavam até leve. de assombro. as redes sociais já estavam polvilhadas de odes ao biscoito. Eles tinham razão. quando o "New York Times" publicou uma matéria criticando o Biscoito Globo. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM*** *** FOTO EM ARTE E NÃO INDEXADA *** Pacote de biscoitos Globo Horas depois da publicação do "New York Times". à época. Mais do que isso. das mazelas do nosso país. melhor do que nós. esse patrimônio imaterial da brasilidade. como se sabe. de maravilhamento. enquanto o mundo assiste à abertura da Olimpíada de Barcelona. o Brasil comemora os 12 anos da Rio-2016.Aha. Se me lembro bem. Facebook e Twitter. . Os jornais estrangeiros já haviam feito reportagens sobre a poluição das nossas águas. comemoramos a data em que o país começou a recuperar sua autoestima. ninguém sequer acreditava que houvesse saída. barras paralelas do ódio. brancos e negros. comendo polvilho. um ponto em comum entre tantas diferenças. vermelhos e azuis. "The New York Times"! Parabéns. assim como a todo tipo de livro. urru! O polvilho é nosso!". enfim. para a Câmara e para o Senado. a tributária. sentiram. Obrigado. Importante é que agora cada criança brasileira tem acesso. a fresca flâmula da empatia –e vice-versa. despoluímos a baía de Guanabara. Foi uma epifania: se podíamos concordar sobre o polvilho. cantando "Aha. Isso é o de menos. pela primeira vez. O entusiasmo não era tanto pelo biscoito.foram inundados por posts apaixonados. aprovamos a reforma política. ao iniciar-se a Olimpíada de 2028. a previdenciária. era por encontrarmos. crentes e descrentes. por que não conseguiríamos chegar a outros consensos? Pois chegamos: batemos panelas nas janelas. vendo gays e transgêneros abraçados aos clássicos pacotes. o Tietê e a CBF. O Instagram era só rosquinha. O Brasil –quem diria?– deu certo. Brasil! . a todo tipo de esporte. Amigos que não se falavam desde as eleições de 2014 passaram a dar likes nas fotos uns dos outros. homens e mulheres. Hoje. assopramos cornetões pelas madrugadas. na escola. sem conservante e sem gordura trans. de música. pergunta-se quantas medalhas traremos pra casa. de filme e de biscoito de polvilho –sem corante. convocamos novas eleições para presidente. Evangélicos. Até paulistas e cariocas. veja só. deram as mãos. Biscoito Globo! Vai. Tomamos as ruas. pelo sabor. um saudabilíssimo cadáver. não. A gente ouve isso e fica embevecido. à vitória do Thiago -"quem não arrisca não petisca".Braz (subindo o sarrafo na final).Hypolito (depois de cair de bunda. a paz na Terra ou o fim da fome na África. talento é um troço aleatório. na derrota. pra melodrama hollywoodiano. não serve pra comprovar tese nenhuma. Olímpiada é fonte de sentimentos opostos 21/08/2016 O mestre Tostão vira e mexe bate nesta tecla: o futebol serve pra comprovar tantas teses que. repetindo o mantra da modernidade: qualquer um consegue qualquer coisa. é tudo genética. eu seria Zagallo e Parreira até o último fio de cabelo. digamos. ganhou. O grande corredor americano Steve Prefontaine dizia que não vencia por ser melhor do que os outros. Me comovo e penso que o mundo é justo. . Já discuti com mais de uma pessoa por afirmar que prefiro a derrota de 1982 à vitória de 1994. Robson Conceição foi desclassificado na primeira luta nas duas últimas Olimpíadas. Além das questões técnicas. várias visões de mundo se escondem por trás do ludopédio: "Qualquer pelada é de uma complexidade shakespeariana". A mesma pessoa que na vitória apregoa que ganhamos porque fomos todos pro ataque reclama. o que dizer de uma Olimpíada? É como um saco de provérbios. não. Se o futebol valesse alguma coisa. tragédia grega ou esquete do Monty Python-. que perdemos porque fomos todos pro ataque. Se o futebol já dá argumentos para gregos e troianos. Mas aí a seleção feminina de vôlei perde pra China e penso. e. não há muito o que fazer. no outro. mas ele só vale pela graça do jogo. Jogar feio pra ganhar de 1 a 0 é um pouco como passar a vida toda sem carne nem doce nem cerveja pra deixar. basta se esforçar bastante. Aí vê o Bolt sorrindo e desacelerando no final das corridas e pensa o contrário: as pessoas nascem destinadas a serem o que são. em 2012). dizia Nelson Rodrigues -e há quem ache a complexidade mais pra brechtiana. Um dia você assiste ao pódio do Diego -"quem espera sempre alcança". amadureceu. mas por aguentar a dor como ninguém. aos 104 anos.Mais que o futebol. e de cara. em 2008. no final. vide a gloriosa dancinha do levantador de peso de Kiribati. Treinou. a vida é injusta. Olimpíada. Heidegger ou Didi Mocó - todos têm suas verdades. we can't". A todos. afinal. é preciso aceitar. "No. um bom domingo. . já disse alguém por aí. "O esforço é inútil". deixo vocês com a incrível dancinha de Kiribati. ele é uma tragédia porque a gente não quer resolvê-los. "Yes. não têm? Até o fato de a Olimpíada no Rio ter dado tão certo. E. we can!". para não terminarmos esta última crônica olímpica com um travo na boca. As coisas são e não são. apesar das nossas mais do que justificadas expectativas. Aí entra o lado pessimista: o Brasil não é uma tragédia porque a gente não consegue resolver os problemas. pra mim. Meu lado otimista diz: viu só? Não somos destinados ao fracasso. é um acontecimento tão bonito como a seleção de 1982. "O esforço vale a pena". são todas ideias contraditórias. mas não autoexcludentes. me traz sentimentos opostos. não sei se Caetano. quando a gente quer fazer uma coisa direito. a gente vai lá e faz. O tempo passa. "Godard?". conseguimos fechar em três docs: um sobre as prévias americanas. hein? Faz tempo que a gente não tem uma série pra chamar de nossa. Parece a abertura de uma noite perfeita. Nunca sabemos se devemos preencher algumas lacunas da nossa formação e assistir "The Wire" ou "The West Wing" ou se devemos tentar acompanhar algum dos lançamentos mais recentes: "Stranger Things"? "Horace & Pete?". Coloco os três documentários na "Lista de desejos" e pulamos pra "Séries".. quando.A décima vez que a gente assiste 28/08/2016 "Vamos assistir o quê?". "Séries" é sempre um problema. chove lá fora e aqui. via Apple TV ou Netflix. Colocamos "Documentário" na Apple TV e vamos escrutinando as capinhas. Ficamos clicando nas capinhas. proponho. Lembra dos tempos de "Mad Men". "Pelo amor de Deus. já é quase meia-noite e a lembrança do poeta latino me sugere que. receosa. "Breaking Bad". nenhuma pendência profissional. nas águas turbulentas das crises. pois estamos debaixo de um cobertor. escreveu Virgílio. um sobre o maltrato dos bichos no Sea World.. mas por que ficar com o ótimo se podemos chegar no excelente? Depois de uns 20 minutos. "E série. ela pergunta. "Billy Wilder?". se aboletando no sofá. Parece. Documentário?". as crianças estão na casa da avó. Ela assente. não temos nenhum compromisso social. "Um Woody Allen?". algumas parecem ótimas. à minha frente uma TV gigante. Muita coisa parece boa. um sobre os Rolling Stones. é sempre prudente atracar no porto seguro dos "Clássicos". Estamos quase tirando um cara ou coroa entre as orcas e o Keith Richards. "A gente já viu todos". É sexta à noite. . na minha mão um controle pequenininho e a poucos cliques. "ele foge: irreversivelmente o tempo foge". lendo sinopses e mandando coisas pra "Lista de desejos". praticamente todos os filmes ou programas televisivos já produzidos desde a invenção do cinematógrafo. "De novo? Vamos ver alguma coisa diferente. "Família Soprano"? Vamos ver se a gente acha alguma coisa?". não faz tanto frio. caro Lobão. criando uma ânsia por leveza. mas o peso daqueles gigantes vai. depois laranja. "Ah. "É. daí começou a nascer e. Truffaut bate na trave. não! A gente tem todos os filmes do mundo e vai escolher justo um que passa na Sessão da Tarde?!". Acordo poucas horas depois com o mais novo golpeando minha cabeça com uma Peppa inflável e gritando "Babai! Babai! Babai!". "Previsível. no fim. Às cinco e cinquenta e nove a última gota de esperança é finalmente evaporada pelo primeiro raio de sol. eu sugiro. . viramos pra janela. "E aí. de "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" pra "Caverna do Dragão". Por uns momentos chegamos a comemorar a vitória do Bergman. Sem contar que é a décima vez que a gente assiste". Desligamos a TV. furtivamente. Parecia que o sol ia nascer. pergunto. "Woody Allen. mas o roteiro é péssimo". de "Os Goonies" pra "Luzes da Ribalta". "Comédia!". "De novo???" Às três da manhã já não há mais método na loucura. depois amarelo. "Jerry Lewis?! Eu nunca vi Jerry Lewis depois de adulto. então?". Dormimos no sofá. que que cê achou?". a ideia é se divertir!". dizem que é muito bom". O céu fica roxo. nasceu mesmo". "A fotografia é linda.Antonio. Vamos de um documentário sobre batatas fritas pra "8 1/2". que ia tirar primeiro a Dilma. então eu te dou essa informação. não é que o Aécio ia assumir. Tamara. Eu achei que se a Dilma caía. Sabe o que o Renan Calheiros falou? Que eles tavam inaugurando uma "nova fase na política brasileira". Tamara. "Senhor. Tamara. ajeitar a economia. qual seria?! Seria que falaram que era pra melhorar. aí. tipo. "Pois não. Mas eu vi esses dias a votação do impeachment. a limpa. Tipo. que eu tava com problema na lombar e fiquei em casa. falaram que era contra tudo que tava errado. Da base de apoio do governo do Cunha. beleza. lá. Cê acha que o Renan vai fazer a 'nova política'. "Desculpa. "Então.. senhor.. se caiu! Caiu que nem a Simone Biles. do helicóptero de cocaína! São esses caras que tão de patrão agora!". Tamara? É tudo amigo do Cunha! Do partido do Cunha. "Ué. eu não estou autorizada. é que eu fui. tipo. Tamara! O cara que participou de todos os governos brasileiros desde. "Caiu! Ô. não é disso que eu tô falando. eu bati panela. tudo bem? Eu queria fazer uma reclamação".Como seria um SAC para os desiludidos com o impeachment? 04/09/2016 "República Federativa do Brasil. com propina na Suíça?". "É. Tamara: Collor?! Renan Calheiros?! O figura. "Eu não estou autorizada a dar essa informação. "Oi. senhor". "Beleza. de pé juntinho e recebendo aplauso! Tava lá. "Senhor. qual seria a sua reclamação?". mas. e o Jucá? O Romero Jucá foi gravado planejando tirar a Dilma pra parar a Lava Jato e quando o Temer entrou ele virou ministro do quê?! Do Planejamento!". o PSDB ia ficar meio no comando. O Renan. o Renan chegou com o Cabral. sob o comando do STF. mas só tem sinistrão comandando a parada!". "Senhor. no caso. "E quem são os deputados. com amplo direito de defesa". o processo de impeachment foi um processo inteiramente legal. aí. todo pimpão na votação! E o PSDB pagando pau pra esses caras! Eu sempre votei no PSDB. Tamara?". o Romero Jucá caiu assim que saíram as gravações!". Tamara. Tamara?". depois ia tirar o Cunha. eu fiquei meio na dúvida. no caso. senhor". . eu não tenho como 'tar' te informando". ele era o cara que dava os espelhinhos pra formar um centrão ianomâmi-tupinambá e azeitar a saída do pau-brasil. Cê assistiu às sessões no Senado. "Isso depende dos deputados. Se marcar." "Beleza. mas beleza. E o Cunha. senhor. bom dia!". nas manifestações pró-impeachment... ia fazer. eu tô falando de todo resto. desculpa. Tamara? Me venderam o impeachment dizendo que era pra melhorar o país.mas cê viu na TV? O PSDB tá pro PMDB que nem o PFL tava pro PSDB na época do Fernando Henrique! Pior. qual seria? Seria que tá tudo zoado. mas voltou pra. 1989! Vou acordar amanhã e vai ter um Chevette na minha garagem e chinelo Samoa no meu pé e 10 milhões de cruzados novos no meu bolso pra eu comprar um Lollo e assistir "Xou da Xuxa" numa Telefunken!". mas eu não tenho como te ajudar". sei lá. senhor?". "Como não. Tamara! Falaram que era pra melhorar. mas qual seria a sua reclamação?". "Como. parecem uns garçons servindo caipirinha pro PMDB!". lamento. "Senhor. "E qual seria o produto. eu nem tirei da caixa e já tô vendo que não funciona! Cês vão ter que trocar por outro produto!". "Senhor. o PSDB agora parece. "Eleições. que o PFL era forte. Tamara! Eleições diretas já ou as minhas paneladas de volta!" . Bom mesmo era na época de Genghis Khan: você podia sair galopando pelas vastidões asiáticas sem dar justificativa de nada a ninguém. não pode mais matar! Ah. o mundo estaria ficando cada vez mais chato. No entanto. em 20 anos conversando com jornalistas e leitores. não pode mais raptar! Toda essa chatice chamada civilização.Os vândalos 11/09/2016 Por ser escritor. caso ainda reste alguma dúvida. pilhando seus vilarejos. zoar um gay e o pessoal já chia. Mas o que nós vivemos no Brasil é exatamente o contrário. Costumo responder que sim. por conta da "patrulha das minorias". desde que o iluminismo veio desaguar nessa xaropada de "liberdade. de forma alguma. não é um programa que eu subscreva. mesmo. raptando suas filhas e esposas! Bons tempos! Mas aí o pessoal começou com: ah. que a liberdade de expressão seja assunto irrelevante. Em 20 anos de bate-papos.) Não faço uso da ironia por achar. uma manifestação artística pudesse calar o ofensor seria terrível. raríssimas vezes não me perguntaram como eu lidava com "a ditadura do politicamente correto" ou se não concordava que. vira e mexe dou entrevistas e participo de conversas com leitores. Um mundo em que qualquer parte ofendida por uma piada. não pode mais pilhar! Ah. explico que estava sendo irônico. embora possa parecer divertido para muitos. o homem aparece com a solução) e fica claro que quem está em risco aqui não é a liberdade de expressão. paro por aí - e. Deu no que deu: no século 21 não dá mais pra fazer uma piada com negro. que empalar os inimigos. empalando livremente seus inimigos. igualdade e fraternidade". O mundo tá ficando chato há séculos. (Geralmente. Assista a meia hora de comédia stand-up nacional no YouTube. uma ideia. nunca me perguntaram: "O que você acha das piadas racistas ou machistas ainda terem tanto espaço no humor brasileiro?" . Tá chato. mas as minorias. assista às propagandas de cerveja na televisão ou ouça quase qualquer propaganda de rádio (a mulher é uma idiota com um problema. estão sendo julgados. no momento. então chefiada pelo secretário da Segurança Alexandre de Moraes. promovendo o trimestre mais sangrento em 12 anos. É evidente que o quebra-quebra dos mascarados e a agressão a policiais. matou 185 pessoas.022 pessoas. mas achar que os inimigos mais perigosos da democracia. Os responsáveis pelo rojão passaram 13 meses presos e. são 20 cretinos mascarados é mais ou menos como acreditar que os maiores culpados pela evasão fiscal no Brasil são os vendedores de maricas de bambu e Durepoxi na frente do Espaço Itaú de Cinema. felizmente. Em 2014. É importante que a imprensa acompanhe os desdobramentos do primeiro caso. jornalistas ou quem quer que seja devem ser divulgados e repudiados. É incompreensível que a imprensa não se escandalize com o segundo. Já Alexandre de Moraes foi promovido a ministro da Justiça. um rojão lançado por dois manifestantes matou um cinegrafista. Naquele mesmo ano a polícia brasileira matou 3. num protesto no Rio de Janeiro.Percebo essa mesma inversão na escala das preocupações ao comparar o peso da cobertura dos "black blocs" na imprensa à quase brandura das denúncias contra o vandalismo policial. . Só nos três primeiros meses de 2015 a PM paulista. ainda é mais provável que eu ande de graça no ônibus por conta de um mestrado –por que não?– do que por ter atingido a assim chamada -arght!– "melhor idade". comer no café da manhã algo mais saudável do que as sobras frias da pizza de domingo. Então. Eram sentimentos que pouco tempo antes eu compartilhava: a ideia de que os adultos são ridículos e medíocres." Foi o que anotei semana passada no meu caderninho. a ilusão de que seria possível se defender para sempre do marasmo. lá na nuca. olhei pro meu carrinho com Omo e queijo minas e compreendi que eu já não fazia mais parte daquela turma. Não chegou a ser dolorido. como o mais novo. Vi uns garotos e garotas comprando Smirnoff Ice e Doritos. Eles davam soquinhos nos braços uns dos outros. mas a verdade é que já estava descendo a passos largos a pirambeira que leva do Sid Vicious ao Cid Moreira. Mas que foi estranho ser o mais velho da sala. da acomodação e do crediário mantendo o cabelo despenteado e uma atitude rock'n'roll. tenho só 39 anos e embora as costas doam toda manhã e as entradas estejam quase encontrando as saídas. me senti um pouco como um punk que faz sucesso e trai o movimento. me dei conta de que tinha saído da adolescência. não se transforma em um jovem ancião. . passa a ser um jovem adulto. Está muito velho pra ser adolescente. passa a ser um adolescente novinho. Desde que me entendo por gente. É inevitável: daí em diante os outros irão ficando cada vez mais novos. riam. Lembro bem da noite em que. envelhecer sempre significou sair de uma fase pra entrar. foi.A gente não envelhece: os outros é que vão ficando mais novos 18/09/2016 "A gente não envelhece: os outros é que vão ficando mais novos. num Pão de Açúcar 24 horas em Perdizes. Mas quando fica muito velho pra ser jovem adulto não passa a ser um velho novinho. numa agência de publicidade. Não existem tais categorias. na seguinte. olhavam pra tudo com desconfiança e desdém. assim que percebi ser o mais velho da reunião. Você está muito velho pra ser criança. Tentei racionalizar. ali. com o sabão em pó e queijo branco à minha frente. pensar que era preciso lavar as roupas. e percebo que não sou mais a novidade. medalhões. (A vida adulta tem muito de "Especial Roberto Carlos": programa de auditório. uma perene sensação de déjà-vu. claques. anoto com minha anacrônica Bic. numa sala espelhada no alto de um prédio na Berrini. embora não entenda a ironia. Sou tipo o tiozão careca e bigodudo tocando xilofone. não sou mais o jovem profissional.A frustração com o fim da adolescência era consolada. Não é ruim ser adulto. "A gente não envelhece: os outros é que vão ficando mais novos". Digamos que sou feliz com meu xilofone. Era como se eu cantasse "Anarchy in the UK" no "Especial Roberto Carlos". sorrisos forçados. em alguma medida. pelas vantagens de ser jovem adulto: ser o mais novo entre meus pares bastava para me conferir um certo status. Não estou reclamando.) Até que um dia. E depois: "Que diabos esse garoto quer dizer com uma camisa bordô cheia de patinhos verdes?" . atrás do Roberto Carlos. Só é um tanto desconfortável ser o único a usar um caderno em meio a dez cintilantes iPads. com cortes de cabelo ousados. camisas com estampas que eu entendo serem irônicas. armações descoladas. olho pra todos os participantes da reunião. Atrás do cinéfilo. um Superman afirma. Primeiro. mas no octógono do UFC. Vou levá-la até a sala e quase sou atropelado por um Homem-Aranha em fuga. bermuda jeans. deixando que por timidez. mas tão curta. o olhar fosforescente dos primeiros anos se transforme nesse mingau bege da maturidade. Não de qualquer cinéfilo. não deixa dúvidas sobre qual fantasia ela veste (ou despe?): fantasia sexual. A namorada do lutador usa uma saia tão curta. categórico: "Odalisca não existe. bermuda. por preguiça. um urso panda briga com uma Peppa Pig por causa de um baldinho. percebo que eu estava redondamente enganado: os adultos também estão fantasiados. A odalisca chora. porém.Os adultos andam mais fantasiados que crianças de Peppa Pig 25/09/2016 Na escola da minha filha. perseguido por uma Frozen e uma bailarina. se espraiando pela fila. Mais à frente um garoto de camiseta Lacoste. Na mesma noite. um lutador de jiu-jítsu com orelha de couve-flor. vejo o magrelo de boina. No tanque de areia. O top mal contém os enormes peitos de silicone e o perfume. covardia ou. chinelo Rider. com ar superior. toda quarta é dia da fantasia. me volta a eterna constatação de quem convive com crianças: como adulto é chato. muito mais fantasiados –e não só às quartas-feiras. Deixo minha filha (Pequena Sereia) na classe e. Veio vestido de cinéfilo. Encostado numa pilastra. equalizando graves e agudos. pior. mas de amante do cinema francês (boina) dos anos 60 (aro fininho) puxando um pouco para o neorrealismo italiano (suspensórios). como com o passar do tempo vamos abaixando o volume. que consegue driblar as leis da física: a barra parece estar acima da cintura. Imagino que. camiseta com um urso e os dizeres "Team Guigo" está vestido não para entrar no cinema. tá?". ainda contaminado pela visão daquele pátio. atravessando aquele carnaval. vá pedir uma pipoca com açaí e uma Sprite com proteinado de soja. passada a catraca. óculos de aro fininho e suspensórios. é claro. entro na fila e. vou ao shopping Frei Caneca assistir a um filme. cinto de couro . velhos Nikes de corrida e barba por fazer talvez pretenda emplacar um: "sou-desencanado- estou-acima-dos-ditames-da-moda-roupa-pra-mim-é-conforto". um sujeito de calça jeans. regata e calça militar: "rejeito-a-feminilidade-padrão-ninguém-nasce-mulher-torna-se- mulher-e-vocês-erraram-de-shopping-aqui-é-Frei-Caneca-porra!". de cabelo loiro até a bunda. parece dizer "mozinho-serei-sua- esposa-fiel-e-cuidarei-da-casa-e-dos-filhos-enquanto-você-garantir-as- viagens-na-primeira-classe". a saia de sereia da minha filha e a máscara de Peppa da amiga parecem coisa de criança. toda trabalhada na power-ioga. A mulher. Perto de tamanho apuro cenográfico. O casal é olhado com desprezo pelas moças de cabelo curto. dentes brancos e perfeitos.trançado e mocassins sem meia está fantasiado de "trabalho-no-mercado- financeiro-e-vou-ganhar-meu-primeiro-milhão-antes-que-vocês-terminem- suas-pipocas". . mas os óculos de tartaruga o denunciam: "sou-artista-barra-intelectual-minha-falta- de-apuro-é-muito-bem-apurada-como-um-traço-de-distinção-um-troféu-tipo- não-vou-ficar-rico-como-o-da-Lacoste-nem-dar-porrada-com-o-da-couve- flor-mas-pelo-menos-posso-andar-mulambento-por-aí". Hering preta. Observando a tudo. em pleno século 21. o brado retumbante: "Você sabe com quem está falando?!" Era uma vez uma cidade que se orgulhava de seu espírito empreendedor. mas onde alguns dos maiores empreendedores se viam envolvidos em escândalos de pagamentos de propinas para políticos. visando assim garantir o monopólio do empreendedorismo. no escudo da cidade. em latim. séculos atrás. mas cuja tara rodoviária era. mas cujos partidos se viam envolvidos em escândalos de recebimento de propinas de empresários. uma das responsáveis por quase não haver locomotivas no Brasil. pelo fato de que só um dos partidos vinha sendo sistematicamente investigado. (Contra um dos partidos. havia uns ramos de café. O lema escrito no escudo da cidade. rumaram os bandeirantes para caçar índios e pedras preciosas.Era uma vez uma cidade 02/10/2016 Era uma vez uma cidade que se considerava "a locomotiva do Brasil". ironicamente. Era uma vez uma cidade que se considerava moderna. Em cima da frase em latim. visando assim garantir o monopólio da governança.) . uma premonição dos prédios neoclássicos no futuro. mas bastaria a ela olhar em volta para suspeitar que não fosse especialmente boa na condução. mas tratava só metade do seu esgoto e reciclava só 3% do seu lixo. havia muito mais provas do que contra o outro. O café era uma homenagem à cultura responsável pela derrubada de boa parte da nossa mata atlântica no passado. mas onde gays apanhavam na rua. pneus e garrafas na mesma direção em que. era "Não sou conduzido. é verdade. sempre. o castelinho. e a armadura. entre outras razões. conduzo". crianças dormiam embaixo das pontes e as margens do Ipiranga ainda ouviam. uma intuição do que seria a nossa polícia. Era uma vez uma cidade que se orgulhava de ser o berço dos dois partidos a governarem o país nas últimas duas décadas. Os rios a cruzarem a cidade eram águas mortas a levar nossas fezes. Era uma vez uma cidade que se considerava "de primeiro mundo". um castelinho e um braço de armadura segurando uma alabarda. o que talvez se explique. sem dúvida. Era uma vez uma cidade em que matar 111 presos desarmados era considerado "legítima defesa". a menos de uma semana da eleição municipal. Era uma vez um país em que acidentes de trânsito matavam mais de 50 mil pessoas todo ano. oceanos de autoconstrução sem árvores ou praças. mas quem saísse para protestar contra o governo poderia ser encarcerado e enquadrado na lei antiterrorismo –antes mesmo da manifestação. Era uma vez uma cidade que. shopping Eldorado– e a riqueza era patética –mansões "peru no pires" estilo Casa Branca. a classe média era feiíssima –avenida Santo Amaro. daquele país. .Era uma vez uma cidade em que a pobreza era feiíssima –centro degradado. tinha nos três primeiros colocados nas pesquisas defensores ferrenhos do aumento da velocidade dos automóveis e de menor rigor na aplicação das multas de trânsito –as melhores respostas. Eusébio Matoso. para os enormes desafios daquela cidade. daquele planeta. num planeta que vinha cozinhando por causa da queima de combustíveis fósseis. Era uma vez uma cidade. fios legais e ilegais fatiando o céu–. prédios chamados "Maison-sei-lá-o-quê" e "Villa- não-sei-das-quantas" com colunas jônicas e pinheirinhos a cinquenta metros de altitude. bebida e oxigênio chegavam diretamente no umbigo via USB. que o legal é ter bigode ou peitos. mas o seu tá mais pra um filme da "Sessão da Tarde": previsível. Com cinco anos é normal que você se impaciente. sente frio. repetitivo e sem sexo. Com um ano é normal que você se impaciente. mas só consegue dizer "babadamdambléblé". aí te tiram da bolha. o mundo dos outros parece uma propaganda de Campari. Já percebeu que o mundo é por escrito. só quer que aquilo acabe logo. Com dez anos é normal que você se impaciente. você já tem bigode ou peitos (talvez já tenha bigode & peitos). que o bolo em cima da geladeira é muito mais apetitoso do que a sopa na tigela. Com 20 anos é normal que você se impaciente. Já percebeu que esse negócio de criança é meio infantil. você sente fome. caramba. Você quer explicar que a etiqueta está pinicando a bunda. Com 15 anos. Se acha mais inteligente do que todo mundo. Lá dentro estava morninho. do menu do Netflix ao pacote de polvilho tudo se comunica através daqueles rabisquinhos. que muito mais emocionante do que balançar bem alto e gritar "Eeeeee!" é ficar parado na porta da escola com cara de enfado mascando chiclete. mas você ainda arrasta a mesma lancheira de quando nem sabia ler. Já percebeu que a sua espécie é bípede e falante. Quantos anos acham que você tem? Quinze?! . comida. mas você ainda é um quadrúpede balbuciante. te cegam com a luz. mas por alguma razão não te contrataram como CEO do planeta Terra e sim como estagiário. como quando ainda brincava no balanço da escola.Impaciência (parte 1) 09/10/2016 Ao sair do útero é normal que você se impaciente. mas você ainda está preso às figuras. quer voltar praquela praia em que tinha siri e quer ver o que acontece dentro da privada depois que dão a descarga. com 15 anos é obrigatório que você se impaciente. sente raiva. ainda mora com os seus pais e vive sob as leis impostas por esses cretinos –os adultos. você ganha algo entre nada e coisa nenhuma. Os adultos dizem que essa é a melhor fase da vida. como um bebê que só consegue fazer "babadamdambléblé". Com 30 anos é normal que você se impaciente. Calma. você precisa passar no jantar do Pedro e no lançamento da Lia e além de tudo arrumar tempo pra fazer exercício – afinal. a sua mãe te deixou 11 recados avisando que é aniversário da tia Eunice. Está correndo pra fechar urgentemente algum trabalho que tem que ser entregue até quinta às 18:39 ou a abóbada celeste sem dúvida desabará sobre nossas cabeças. o fim da crônica chega quando ainda falta descrever umas quatro décadas de impaciência e seu filho de um ano chora pela casa. Com 40 anos é normal que você se impaciente. então você decide adiar a segunda metade do texto para a próxima semana e vai até a cozinha. mas as crianças te impedem de trabalhar e o trabalho te impede de cuidar das crianças. Você precisa trabalhar e cuidar das crianças. onde encontra o menino empurrando a sopa de ervilhas e apontando para o bolo no alto da geladeira. dois anos que não vê a Lia. Daniel! Calma!!! Calmaaaa!!!!!!! (To be continued) . faz seis meses que você não vê o Pedro. aquela barriga não te abandona desde os 30. você não tem mais 20 anos e uma barriga ridícula resolveu se aboletar dentro da sua camiseta. tem 132 e-mails não respondidos na sua caixa postal. Depois de enumerar razões para sermos impacientes nas primeiras quatro décadas de vida. hoje. . pela primeira vez em quase 20 anos no ramo. Scarletts e Penélopes à solta. de tédio não morreremos jamais. o furacão Matthew não irá rodopiar pela Paulista. monstros. terminei uma crônica adiantando o assunto da próxima. o monstro do lago Ness não irá espichar seu pescoço no lago do Ibirapuera. Quase 20 anos no ramo deveriam ter me ensinado algumas lições.A impaciência pode esperar 16/10/2016 Semana passada. Por exemplo. não cair na arapuca de emitir promissórias literárias: como saber se. prometi que falaria. das razões de impaciência nas quatro décadas seguintes. na eternidade que separa os dois domingos. Scarlett Johansson e Penélope Cruz não me telefonarão propondo fazer um remake –real– de "Vicky Cristina Barcelona" comigo no lugar do Javier Bardem? Enquanto houver furacões. Vista Chinesa. Lagoa. uma ópera. no entanto. . não foi um evento extraordinário o que me fez quebrar a promessa da sequência –é a brisa. uma epopeia –ou. sem dúvida. queria falar de tudo. E. instalado num hotel ao lado do Santos Dumont. Cheguei a começar o texto anunciado. mija- se muito pelas ruas do Rio de Janeiro–. tanto faz: aos poucos a floresta vai hidratando a minha paulistíssima aridez. Confesso que naquela tarde. Perdão. tenho que perguntar na portaria se alguém sabe dar nó em gravata. o Pão de Açúcar tão preto e a areia do Flamengo tão branca que decidi. da paisagem. caro leitor. vão provocando uma onda meio hippie. (Se Scarlett ou Penélope me ligassem. Aterro. provavelmente. perdão. Jardim Botânico. tenho que perder quatro quilos.Jamais. mais do que o vendaval. Correr no Rio de Janeiro sem ser influenciado pela paisagem é como cruzar uma Oktoberfest sem dar um gole de cerveja. não escreveria mais coisa alguma). tenho que passar mais tempo com as crianças. sentindo o sangue latejar no rosto e a pele devolver ao ar o calor do sol carioca. o sol no rosto e o cheiro de mato e de mar e de mijo –por questões sociológicas. da menina de dreads se equilibrando na corda entre duas palmeiras ou do grupo de senhoras fazendo caminhada de biquíni e viseira pelo calçadão. as pedras monumentais vão sugerindo grandiosidade à minha humaníssima pequenez. da areia do Flamengo. menos do tema prometido. meteorológicas e. a impaciência ainda rondava meus pensamentos: tenho que escrever a crônica. tipo "bicho-a-natureza-é-uma-coisa-bem-louca-e-eu-e-você-e-a-lua-e- o-coqueiro-existimos-e-somos-feitos-da-mesma-matéria-e-um-dia-vamos- acabar-mas-agora-ainda-não-e-viva-a-endorfina-e-ahhhhh-eu-acho-que-vi- um-tucano!". pro casamento de um amigo. empapado de suor. antes de chafurdar em décadas de sofrimento. praia de Ipanema ou Copacabana. na terça. pista Claudio Coutinho. Quando voltei pro hotel. eu escreveria um romance. mas a impaciência pode esperar. O que me fez adiar o assunto prometido foi uma ida ao Rio de Janeiro. cara leitora. dar uma corrida no aterro. o que move a jangada do cronista. tenho que terminar o livro. mas o céu lá fora estava tão azul. tenho que escrever a série. urológicas. E depois ainda teve o casamento e tocou Gilberto Gil e abracei o meu amigo e beijei o meu amor e fomos felizes para sempre. eu queria falar da corrida. até hoje.Pum em Marte 23/10/2016 Parece notícia do Sensacionalista. uma nave de três metros e meio de envergadura. como uma enorme napa high-tech e. sete anos atrás: haviam descoberto pum em Marte. pondo na órbita marciana a sonda TGO (Trace Gas Orbiter) e enviando ao solo o módulo Schiaparelli. Na Terra. quando o cientista Michael Mumma veio a público anunciar a novidade. contudo. mas saiu no site da Nasa. só os americanos conseguiram. O TGO. desde então. Claro que. passou a ser "aquela sempre suscitada quando esse tipo de gás aparece por aí: quem foi?". não escolheu o termo pum e sim metano –o que soa mais elegante aos ouvidos. o retrogosto e o "terroir" daqueles gases extraterrestres. embora não alivie nada para as narinas. Seria o gás marciano pum de pedra ou há. Digo "passaria" e "testaria" porque algo deu errado no pouso e . testaria a tecnologia europeia para colocar um aparelho no solo marciano. o TGO será incapaz de encontrar os culpados. Mesmo se descobrir que o metano é do tipo proveniente de seres vivos. Toneladas e toneladas de pum. 90% de todo o metano existente é produzido por seres vivos. alguma forma de vida com a mão amarela? Nesta quarta-feira (19). coisa que. Como escreveu um excelente cronista do "Estadão". escondida nas profundezas do planeta vermelho. no dia 15 de janeiro do ano da graça (muita graça) de 2009. daí a importância da sonda Schiaparelli.65 m de diâmetro e semelhante a uma cápsula de Nespresso (dourada. Com 1. Os 10% restantes são resultado de reações geológicas. a pequena estação meteorológica passaria dados ao TGO e. transmitirá a nós suas considerações sobre a safra. a principal questão para os astrônomos. é mil vezes mais sensível do que qualquer aparelho já mandado a Marte e será capaz de apontar o tipo de metano ali existente. à época. basicamente. a ESA (Agência Espacial Europeia) e a Roscosmos (Agência Federal Espacial Russa) deram um grande passo em direção à solução do fétido enigma. sabor "Volluto"). feito um sommelier testando o buquê marciano. Ele funcionará. principalmente. espalhados. emocionada com a beleza da paisagem estilo Papa-Léguas. os cientistas ainda acreditaram que ela podia apenas estar meio caladona por causa do jet lag ou. depois que o TGO mapear de . mas na sexta veio a confirmação: a sonda entrou de fuça na terra e agora seus destroços. RIP: Espaçonave da Nasa fotografa local do impacto do Schiaparelli Aperfeiçoar a tecnologia para pousar traquitanas em Marte é crucial para a próxima etapa da agência europeia: em 2020. lembram um pouco a plantação de batatas do Matt Damon depois da tempestade naquele filme estranho do Ridley Scott.a Nespressão se espatifou. Por um dia. quem sabe. enfim. de um desafio inédito na história da humanidade. a Roscosmos criou inclusive uma subagência especializada. de que tipo é e quando costuma emanar das entranhas alaranjadas. para não assustar o planeta antes da hora. nos próximos anos. o programa enviará o ExoMars Rover. mas o que o ExoMars fará é submeter Marte a uma colonoscopia. sem dúvida. Caso descubramos. uma questão se colocará para nós enquanto espécie: seremos capazes de produzir e enviar a Marte todas as toneladas necessárias de Luftal? Trata-se. veículo que irá penetrar o subsolo para encontrar. que há vida fora da Terra. Para tal empreitada.onde vem o pum. a Roscofe. os responsáveis pelas emissões. Nenhum cientista admite. . anda e nunca chega a alívio algum. o parque do Estado. a floresta de lajes batidas e . caso eu saísse andando em direção ao Rio. anda e nunca chega a Ipanema". como um exemplo de alívio. O Ibirapuera. o Jardim da Luz são uns raros respiros perdidos entre o mar de asfalto. a frase passa a ser de um triste realismo: o problema de São Paulo é que você anda. no entanto. prefere estendê-la e se deitar em cima 30/10/2016 O problema de São Paulo. anda. "é que você anda. dizia o Vinicius.O paulistano não é de jogar a toalha. Tomando "Ipanema" como um símbolo. anda. Se tomarmos "Ipanema" ao pé da letra a frase é absurda e cômica –segundo o Google Maps. promessa de alegria em meio à vida dura da cidade. levaria quatro dias e catorze horas para percorrer os 511 km que separam a minha poltrona verde das areias brancas do Posto 9. um ramo de alecrim. foram sendo trazidos –a contragosto. aqueles pilares gigantes. Corri em volta do parque Buenos Aires e do cemitério da Consolação. na entrada principal do estádio. típicos dessa arquitetura fascista pensada para agigantar a pátria e humilhar o indivíduo. um avô e duas crianças jogavam futebol. Marcello Mastroianni e Sophia Loren se arriscam numa delicada história de amor. do Ettore Scola. contudo. Lembrei do filme "Um Dia Muito Especial". O paulistano. vim morar em Higienópolis. ziguezagueei por Santa Cecília e pelas encostas do Sumaré. talvez– à escala humana. sem querer. big bands. góticos satanistas. eu corria em volta de um lago. Parei ali. quando o sol se põe. Como se o cineasta oferecesse. gritou o pai. desviando de patos e assustando jacus. Tenho estado atento às agruras e oportunidades da cidade porque. na última terça. quase nenhum carro e propício a todo tipo de atividades: o estacionamento do estádio do Pacaembu. amigos jogam cartas. gritou o avô. Agora. caso lhe concedam dois metros quadrados de chão. turmas se juntam nas calçadas para praticar crossfit. casais se beijam. contemplando o céu nublado. contra o massificante glutamato monossódico do totalitarismo. então o Vitor saiu . É o que vemos nas avenidas abertas aos pedestres. dançarinos de tango. descobri um insuspeito parque noturno com bastante gente. no fim da tarde. Lá em Cotia. Todo dia. durante a semana. aos domingos. barraquinhas de yakissoba e barris de cerveja artesanal. corro pela Paulista ou Minhocão e. enquanto uns mais nerds ainda filmam tudo com drones. um pai. depois de cinco anos vivendo na Granja Viana. as enormes colunas fazendo as vezes de traves. até que. não incomoda nem é incomodado por ninguém. pouco a pouco. "Gol do Vitor!". No meio do asfalto. "Gol do Vitor!". uns nerds apostam corrida com carros de controle remoto. maracatus. fiquei vendo os dribles e ouvindo as risadas dos meninos até que. Numa tarde em que a cidade entra num frenesi pela presença do "Duce". venho testando diferentes percursos. corredores evangélicos. Sentados na mureta. nos fins de semana: basta liberarem um pedacinho do cinza e surgem revoadas de patinadores. não é de jogar a toalha –prefere estendê-la e se deitar em cima. uns jovens fumam maconha e o mendigo deitado no barranco. praticantes de ioga. Ontem.os Corcovados de concreto armado. . asfalto e prédios por todos os lados. cercado de concreto. saltando e socando o ar feito um Carlos Alberto Torres em 70. a quatro dias e catorze horas de caminhada das areias brancas do Posto 9. nem aí por estar num estacionamento.correndo. "nos roteiros do tédio para o tédio". "O amor acaba. depois de teatro e silêncio": assim começa a célebre crônica em que Paulo Mendes Campos desvela 62 possibilidades para o fim do amor: "em cafés engordurados". num domingo de lua nova. às vezes látex e cera quente. às vezes baião e maria-mole.Comunhão parcialíssima de bens 06/11/2016 É um mistério o que une os casais. Se a cola é desconhecida. "o amor acaba". Numa esquina. Às vezes são as semelhanças. um déspota mimado e irresponsável. "nas encruzilhadas de Paris". às vezes as diferenças. tipo um Kim Jong-un alado penetrando com suas ogivas nucleares 7 bilhões de corações. Não à toa o deus do amor é uma criança com um arco e flecha. não é menos obscuro o solvente. por exemplo. Tenho um amigo que resistiu estoicamente quando a mulher o largou por . mas nos últimos meses meu casamento vem sendo ameaçado pelo carregador do iPhone. contudo. não sei se rumo a uma loja Apple ou a um apart-hotel. Minha mulher. bêbado e sem esperança. arrastando móveis. Tivemos dois filhos. assistimos a "Família Soprano". "Eu não quero o seu! Eu quero o meu! Cada um tem um! Por que você pega o meu?! Eu nunca acho!" Hoje pela manhã nós tivemos uma briga feia. mas isso só parece aumentar sua revolta. mas ela não para". faz com que tudo o que adquirimos desde que pusemos as assinaturas no livrão da juíza pertença aos dois. Dia sim. Agora à tarde. enquanto escrevia esta crônica. recebi três ligações de um "Número Desconhecido".outro. A minha história não é menos triste. algo tão íntimo como as escovas de dentes ou os rins –ou ainda mais íntimos. eu e a minha mulher vivemos felizes. Eu achei que era pra sempre (ainda nem havíamos começado "Game of Thrones"). rastejando pelos tacos e praguejando contra mim.511) a comunhão parcial de bens. Numa dessas madrugadas desviou de um sutiã. a TV na qual assistimos às nossas séries e –por que não?– nossos carregadores de iPhone. dia não. "Breaking Bad" e "Mad Men". regime em que nos casamos. viajamos o mundo. Temo ser uma advogada anunciando que a minha mulher abriu o processo de . acredita que os carregadores de iPhone são bens pessoais e intransferíveis que não devem jamais ser compartilhados pelos cônjuges. me contou. mas se enroscou numa saruel: rompeu dois ligamentos e a relação. O pior é que ela está convicta de que eu tiro o carregador dela das tomadas em que ela o coloca e. pega o meu. "Do direito de família". depois saiu de casa batendo a porta. se casaram e ela revelou o péssimo hábito de espalhar as roupas pelo chão do quarto. só para irritá-la. o que inclui nossa casa. lá no quarto". mas não atendi. "amor. prostrado sobre um balcão. atrás do sofá grande ou do vaso de pacová. a partir do artigo 1. Já pedi. Por uma década. implorei. Eu falo. nosso Honda Fit 2012. pois em casos de emergência casais se emprestam escovas e doam-se rins. o escondo em rincões de difícil acesso. a vejo bufando pela casa. por exemplo. Segundo creio eu e o Código Civil brasileiro (Livro 4. "Eu vou ao banheiro de noite e tropeço. Ela me acusou de ter colocado o carregador dela na tomada atrás da cama e entortado "o bagulhinho branco de dentro do USB". mas não aguentou dois meses depois que ela voltou. Toda noite. divórcio e exige na Justiça a guarda dos nossos dois fios. . "Calma.Trump no azul da Grécia 13/11/2016 Eu queria saber muitas coisas e ter lido muitos livros para escrever uma crônica definitiva sobre a eleição do Trump. vai espargir ogivas nucleares pela terra. amigos. vai encorajar reversões em todas as políticas pró-minorias ao redor do mundo e vai se comportar de tal maneira em relação às mulheres que os 'Bunga Bungas' do Berlusconi em breve . Minha crônica definitiva sobre a eleição do Trump destrincharia as motivações profundas do eleitorado norte- americano e daria um prognóstico preciso do futuro –não sei se otimista ou desolador. não é nada. pois o Demo de 'comb over' vai encabeçar um neofascismo global. o gamão institucional formulado pelos 'Founding Fathers' abaixará o topete do bufão". Ou: "Comecem a estocar Miojo e atum. faria uma tomografia no juiz Sérgio Moro: um revolucionário que está desafiando o status quo e moralizando a política brasileira ou um ególatra sectário que atropela a lei de acordo com seus objetivos. os caninos do Bolsonaro. que sugeriria um comentário sobre o lenhador da Federal. mas separaria os verdadeiros liberais que acreditam na iniciativa privada para melhorar a vida das pessoas daqueles que hoje. interessado apenas na corrupção do PT e seus aliados? Aqui. e os versos contaminariam retroativamente toda a crônica. usam argumentos do liberalismo –o Estado não deve se meter nos negócios privados. Aí faria uma crítica à direita. De quebra. Marianne. o azul tanto da sua melancolia sagrada quanto do . o cantor e escritor Leonard Cohen. o impeachment da Dilma. explicações para a vitória do Dória e do Crivella.para defender a manutenção da escravidão. o Petrolão ou a recessão nem cobrir com lama e óleo os inegáveis avanços sociais. pro Charlie Parker e chegaria no Pelé. como no século 19. amor e liberdade. eu entraria com uma análise matadora sobre os erros e acertos da esquerda brasileira nas últimas décadas. país para onde milhares de americanos pretendem fugir desde a vitória do Trump e que acabou de perder um de seus filhos mais ilustres. de Carlos Alberto pra Neymar. de Neymar pro coque do Firmino. O lenhador nos enviaria ao Canadá. de onde eu saltaria pro Spike Lee. no vácuo. O azul do Leonard Cohen.parecerão as homilias do papa Francisco". o silêncio da Marina e revelaria o sentido oculto de 2013. De Pelé pra Carlos Alberto. feito o azul subindo por uma tirinha de papel mergulhada em anilina. Minha crônica definitiva sobre a vitória do Trump seria um retrato tão amplo do nosso tempo que traria. A minha crônica definitiva sobre a vitória do Trump terminaria bem longe do Trump. Eu citaria uns versos bem bonitos escritos pra ela. com os pés mergulhados nas águas azuis da ilha grega em que Cohen viveu e se apaixonou por sua musa. unindo temas aparentemente tão antagônicos como Deus e sexo. sem ser indulgente com o Mensalão. A escravidão me lembraria da passagem do Joaquim Nabuco musicada pelo Caetano Veloso. na crônica que eu queria escrever. Não gosto quando você escreve sobre política. Hoje eu acordaria. Nos apertaríamos as mãos e nos desejaríamos um bom domingo: assim eu gostaria que terminasse a minha crônica sobre o Trump. . Parabéns". iria à padaria comprar o café da manhã e um senhor me cumprimentaria. à toda pequenez.mar da Grécia se sobreporia aos antagonismos da política. mas com essa eu concordei. aos ódios ancestrais ou de ocasião. "Moro aqui no bairro. quem assistiu a "Família . há muito ódio represado no interior da América. o trabalhador comum se considera desprestigiado. Entre 45 e 64 anos. demograficamente. de meia- idade. Nas últimas semanas. 48% x 47%). (Entre os homens. a classe média foi esquecida. explicações como: os homens se sentem impotentes. sobre o resultado das eleições nos EUA. Ora. Entre os que recebem mais de US$ 100 mil. cansamos de ler. Se não fossem personagens de TV e vivessem hoje seriam. eleitores do Trump. "O Aprendiz" ganhou de 53% x 41%. 53% x 44%. Entre os brancos. moradores dos subúrbios e com renda anual acima dos US$ 100 mil (em valores corrigidos). Walter White e Don Draper são homens. 58% x 37%.Tony Soprano está no poder 20/11/2016 Tony Soprano. brancos. Entre moradores dos subúrbios 50% x 45%. com medo. vem correndo com uma sacola de plástico na cabeça. loira. claro. Já "Mad Men" é um negativo das duas: mostra um suposto passado glorioso em que todos eram ricos. Tony e Walter são anti-heróis que tentam se libertar de seus mal-estares na civilização através de atitudes deploráveis. Os roteiristas daqueles programas sabiam do prazer que estavam nos dando e trabalhavam as menores contravenções com requintes de crueldade. comer. dá o grito que todos os pais contemporâneos dariam.Soprano" ou "Breaking Bad" já sabia disso tudo. a filha do Don. mandou todas as amarras da decência às favas e elegeu Trump. terminar comendo um x-salada. Tony e Walter eram são Joões Batistas. que o verdadeiro anti-herói americano. Betty. Sally. noutro canal. linda e com um cigarro na mão. como o mundo era lindo quando era horroroso! Que delícia ser um monstro! Matar. Vejo esta cena no fim de um dia infinito. supomos. Don. quatro quilos acima do peso. exausto depois de trabalhar. no sexo e no cigarro. ficamos amigos dos que mandavam). beber. estava correndo por fora. secretamente. secretamente (ou nem tanto) manda todas as amarras da decência às favas e afunda no crime (ou no uísque. obedecia quem tinha juízo. o cidadão pacato. correr. culpado por ser terça e eu já estar na segunda cerveja e penso: ah. a conta no vermelho. No século 21. No segundo episódio de "Mad Men". Em ver Don Draper e seus colegas deslizarem com sapatos lustrosos por um mundo em que o politicamente correto mal engatinhava: mandava quem podia. mas com fogo. roubar. de que a filha sufocasse. Durante a Guerra Fria. tentar comer uma refeição saudável. Em acompanhar o quase eunuco professor Walter erigir seu império da metanfetamina. o herói é um cidadão pacato que. passa o pito: "Esse é o plástico do meu vestido! Devolve já pra cama!". Mal sabíamos que Don. É sobre os sentimentos acima que as séries tratam. o herói era um cidadão pacato que. mãe da menina. Pois em novembro de 2016. "grab them by the pussy". em seus tempos de aprendiz. Betty. competição e autorrepressão. Tony Soprano . Havia um gozo libertador em assistir Tony Soprano e seus comparsas resolverem pequenas desavenças com tacos de beisebol e balas de revólver. secretamente. botar os filhos na cama. malvados e felizes. fumar. salvava o mundo. época de extremo individualismo. o que nos batizaria não com a água benta da ficção. então. às 11h da manhã). (Na série. Aos que.está no poder. exatamente. num "happy ending". . é bom lembrar que "Sopranos". comemoram a vitória dos bagos sobre os neurônios. até no Brasil. "Mad Men" e "Breaking Bad" não acabam. Será. omitida ou ocultada de bens. um grande passo para "estancar a sangria" da Lava Jato. contra a corrupção (eu disse CONTRA A CORRUPÇÃO): "Inclua-se onde couber: Art. enxertada no projeto de lei 4.Anistia do caixa 2 27/11/2016 Como se sabe. usando as já clássicas palavras de Romero Jucá.850/2016. ." O supracitado "Artigo X" não só anistiará o caixa 2 como ajudará a encobrir uma série de maracutaias sob o tapete mágico do "financiamento de atividade político partidária ou eleitoral". doação contabilizada. valores ou serviços. Não será punível nas esferas penal. na próxima terça-feira (29) a Câmara dos Deputados poderá aprovar a seguinte pérola. X. não contabilizada ou não declarada. civil e eleitoral. para financiamento de atividade político-partidária ou eleitoral realizada até a data da publicação desta lei. Ampla. condomínio. escola. µ. insultado o próximo. carros de luxo. Não será punível nas esferas terrena. iates e pole dancers realizados até a data da publicação desta lei. vestuário. aluguéis. desrespeito ao rodízio. sonho frito de doce de leite. saído da festa sem se despedir do próximo. cavalo de pau ou atropelamento em série seguido de fuga realizados até a data da publicação desta lei. diamantes. Já que é pra esculhambar. passagens aéreas. Não serão puníveis nas esferas penal e civil atrasos com impostos. cigarro. Inclua-se onde couber: Art. Ø. toca-aqui-deixa-que-eu-toco-sozinho e baleias brancas realizadas até a data da publicação desta lei. piadas com pum. Inclua-se onde couber: Art. vamos esculhambar direito. chutado o próximo ou passado o próximo no multiprocessador até a data da publicação desta lei. Inclua-se onde couber: Art. racha. abaixado a vista e fingido não ter visto um próximo não tão próximo assim vindo em sua direção. ouro. Proponho abaixo. peru. estacionamento proibido.. cerveja. nas esferas moral e estética. trocadilhos com pavê. pra todo mundo. pulmonar. invejado o próximo. Não serão puníveis. Não serão puníveis. multas por excesso de velocidade. os gastos efetuados com comida. nas bandeiras Visa. Inclua-se onde couber: Art. portanto. crediário ou quaisquer outras contas em aberto até a data da publicação desta lei. celular. geral e irrestrita. nas esferas penal e civil. na terça- . vossas famílias e os empresários que deram dinheiro pra vocês e vossas famílias. Inclua-se onde couber: Art. urina. fechado rápido o elevador pra não ter que conversar com o próximo. pegadinhas tipo chubaba. algumas outras emendas ao projeto. deputados? Pois eu também quero. Ficam aqui minhas sugestões a todos os deputados que pretendem. American Express. Diners ou Mastercard.Vossas Excelências querem anistia. haver: desejado a mulher do próximo. fezes. leite condensado. Y. Z. Não serão cobrados. batata frita. bebida. Não serão contabilizadas nas esferas cardíaca. ß. divina ou infernal. não só pra vocês. Beyoncé na playlist "Corrida" do Spotify ou quaisquer outros entorpecentes consumidos até a data da publicação desta lei. Inclua-se onde couber: Art. arterial ou hepática os excessos envolvendo churrasco. pernil. feira. em nome de Deus. Espero que as ideias aqui contidas os ajudem a compreender o quão grotesca é essa emenda e os façam mudar de opinião – ou. então. votar a favor da anistia para o caixa 2. . da ética e da família brasileira. que amassem esta crônica e a incluam onde couber. reza pra um Deus careca em vez de um Deus cabeludo. come pimentão cozido em vez de pimentão assado e amarra o cadarço do Kichute por baixo da sola em vez de enrolá-lo na canela merece morrer empalado. O palmeirense talvez seja casado com uma corintiana que é filha de um são- paulino que é irmão de um santista que trabalha com um vascaíno e no Natal estarão todos juntos comendo chocotone e assistindo ao especial Roberto . idiotizam-se a ponto de acreditar que quem mora do lado de lá da montanha. Times de futebol não são como grupos étnicos ou religiões. universos fechados onde as pessoas. ao conviverem somente com semelhantes. sou tomado pelo mesmo assombro.Menos piquete e mais Piketty 04/12/2016 Sempre que vejo notícias sobre torcedores espancados pela torcida rival. "Boa gestão com distribuição de renda". Quando o cara tá chutando a cabeça do outro cara caído por causa do time. garrafinhas de água e balas de hortelã. "Cabra Marcado para Morrer". Se formos à Paulista. do pai. fardas verdes e caudilhos Maduros é tão estúpido quanto o corintiano achar que o único lugar digno para um são-paulino é o túmulo. Em determinado momento. livros do Piketty. "Contra a violência dos bandidos. distribuindo cópias de "Aquarius". Passei a semana discutindo com amigos e conhecidos se deveríamos ir na manifestação deste domingo (4) contra as emendas no PL das dez medidas contra a corrupção. "esse mês matei um dos seus"? Sou chutado pelo mesmo assombro diante do progressivo distanciamento entre a esquerda e a direita no Brasil. do tio. Ainda estou em dúvida se vou. tipo "Esquerda contra a corrupção". chupando os dedos sujos de chocolate. assim como um general da reserva não querer aceitar Nicolás Maduro entre seus parceiros de bocha parece bem razoável. que toda essa multidão que não apoia nem a Venezuela nem o DOI-Codi só consiga ver. do sogro? Será que no Natal ele encontra o primo e confessa. A caricaturização é ainda mais burra quando parte da esquerda. a tortura. É impossível conversar com quem defende a ditadura. não afastar aquelas pessoas. enquanto o Rei canta "Detalhes". . contra a violência policial". Agora.Carlos. não consegue entender que tá chutando a cabeça do primo. tanto por não querer me colocar sob o guarda-chuva do Vem Pra Rua e do MBL quanto por discordar de algumas das medidas originais do PL. alguém sugeriu irmos com camisetas dizendo "Entendeu agora?". tripudiando de quem quis o impeachment. Que um membro do MST não pretenda convidar o Revoltados Online para uma palestra motivacional num assentamento é mais do que compreensível. mas tripudiar dos manifestantes me parece tão suicida para a esquerda quanto a reeleição da Dilma. Toda vez que ela tacha qualquer pessoa que foi a favor do impeachment de "golpista" e "fascista" –como se as passeatas deste ano tivessem sido frequentadas apenas por Jucás e Bolsonaros– ela afasta de si os moderados de quem inexoravelmente precisará se quiser chegar ao poder e os empurra direto pra crista (e pra urna) da onda ultraconservadora. a homofobia. deveríamos ir com cartazes para atrair. entre os que divergem de si. para evitar um Donald Trump. mais do que nunca. estarão seu primo. uma Marine Le Pen ou um Bolsonaro em 2018. seu tio. hoje. Ou dialogamos com os que têm formas diferentes de amarrar o Kichute ou abriremos uma avenida para a turma do empalamento.Mas ao lado desses. seu sogro e uma multidão de pessoas decentes de cujos votos o Brasil precisa. . dedo no nariz não pode". meu filho enfia o dedo no nariz. "Não pode mamar às três da manhã. porque se tiver tudo que quiser a hora que bem entender você vai crescer achando que a vida é um Club Med 'all- inclusive' e quando o mundo começar a te negar todas as mamadeiras que . digo –e sou tomado por um desconforto.Não e não 11/12/2016 Assistindo a "Nemo" pela quinquagésima nona vez. "Não. filhote. não pode regar o aparelho da Net. não pode comer bola de gude. Essas não são proibições vazias: se meus filhos não tivessem só dois e três anos eu lhes explicaria direitinho as razões. Alguns nãos eu falo com convicção: não pode mamar às três da manhã. por mais que elas insistam em imitar lindas uvas ou jabuticabas. mas esse 1 bilhão não empresta as coisas pros descoisados nem a pau. o papa Francisco e o Wesley Safadão enfiamos.. Quando a gente diz que tem que falar sempre a verdade. por exemplo. porque ele é elétrico e vai causar um curto circuito e talvez pegue fogo no prédio e embora eu entenda que você queira regar todos os objetos à sua volta com o regador da vovó Tuni pra ver se eles crescem ou florescem. só não saímos por aí. embora o Homo sapiens seja onívoro. ovo. Esse é um pacto silencioso da nossa espécie. ouriço. mas não em si próprio. cogumelo e gafanhoto. (Além do mais." O problema de tal confissão é que ela me obrigaria a dar um segundo passo." "Não pode comer bola de gude porque. tá?" "Não pode regar o aparelho da Net. melhor se restringir ao vaso de girassol. Veja: 1 bilhão de adultos têm um monte de coisas e 6 bilhões de adultos não têm porcaria nenhuma.inevitavelmente te negará você vai ficar deprimidíssima e desorientada e vai terminar viciada em crack. te garanto por experiência própria que os botões do aparelho da Net não são do tipo que se abrem em flores). Para ser coerente eu deveria dizer: "Filho: dedo no nariz é uma coisa que todo mundo acha nojento nos outros. é outra tremenda hipocrisia. boi. tipo bingo –então abraça esse coelhinho e vamos dormir bem gostoso até amanhã. "É o que chamamos de hipocrisia. Um segredo guardado pelos 7 bilhões de habitantes do planeta. Muito do que ensinamos a vocês é isso: hipocrisia. Quando a gente diz que só ganha sobremesa se comer brócolis." Com relação a enfiar o dedo no nariz. Convenhamos: eu. na ampla lista que inclui alface. você. por exemplo.. Ontem o papai e a mamãe saíram pra jantar e racharam um cheesecake do tamanho de um jabuti depois de comerem x-salada e batata frita. admitindo aos quatro ventos num grande jornal de circulação nacional. Quando a gente fala que tem que emprestar as coisas pros outros. bebendo cerveja. de modo que só se faz escondido. em Negresco com Nutella ou coisa pior. Se todos falassem a verdade teríamos que admitir. é a maior hipocrisia de todas. que a Gisele Bündchen põe o dedo no nariz ou que a mamãe do . A gente mente a torto e a direito. alga. por exemplo. não se encontra o vidro. que 1 bilhão de pessoas têm todos os brinquedos e não deixam os outros 6 bilhões brincarem. contudo. então. Os adultos não agem assim. tipo. Tira esse dedo do nariz. ela é devorada por um tubarão na primeira cena do filme. como sempre te digo. por isso toda vez nós começamos pelo minuto sete. Isso.Nemo não está no trabalho. não?" "Ei. Dani. Um mundo assim seria impraticável." . Um ou outro leito tem ao lado uma parente. descalços e imóveis. Os pacientes. . improvisadas em ginásios ou escolas após grandes tragédias. Ou quase pretos. calcanhares rachados. são quase todos pretos. Nada ali. Os pés. Literalmente os últimos suspiros. são carcomidos. velhas e velhos de bocas escancaradas parecem saídos de gravuras do Goya.Num hospital público do Rio 18/12/2016 O CTI lembra uma dessas enfermarias provisórias. é provisório. Homens e mulheres dividem o mesmo espaço. porém. a tragédia é permanente. Os roupões entreabertos revelam aqui e ali os peitos murchos subindo e descendo com dificuldade. Ou quase brancos. unhas cascudas: pés de chinelo. Os médicos são quase todos brancos. parafraseando Caetano Veloso. Todos usam fralda. porém. no Einstein. Festa de família. Na falta de um cateter de veia profunda. São hipertensos que não se cuidam. Num dos leitos um corpo pequeno. Meu salário de novembro. "Uma mulher de 60 e poucos anos. Pergunto a outro médico: se ela estivesse no Sírio. iria morrer? . AVC. uma quentinha num Tupperware. Moto é epidemia. "Duas doenças que matam muito na nossa região: 'moto' e 'laje'." "Esses são os remédios que a gente tem hoje". Sondas de urina são usadas no estômago. fraldas. O médico assente e explica que já fez tudo o que estava ao seu alcance. Outro conta que. diz uma enfermeira. gente que sofre de doenças controláveis e por falta de atendimento primário ou ignorância acaba competindo pelos leitos das vítimas de infarto. feito uma múmia. Vamos para uma sala menor. Falta tudo. embrulhado num lençol. uma garrafa PET com uma Fanta genérica. mas a veia é perdida para sempre. drenou o tórax de uma paciente com uma mangueira de fogão. arrisco. desabafa um médico. aqui. espécie de emergência da emergência e. ela morreria. tudo".um cobertor trazido de casa. o cenário piora. "Eu trabalho em hospitais públicos há 30 anos e nunca vivi uma crise como essa. está ligada aos eletrodos: seu monitor apita e uma luz vermelha pisca. por causa dos fogos. o paciente morre sozinho". "Já cansei de entubar no corredor. No Natal dá muita facada. acaba na faca. diabéticos que desrespeitam a dieta. Se ela tivesse morrido. no chão". Em vez de travesseiros. "Na emergência. "disseca-se" (procedimento cirúrgico no qual sacrifica-se alguma veia grossa do braço para introdução de uma sonda). A medicação é dada. dezembro. "Aquela mulher ali não tá morrendo?". Um funcionário explica que a maioria daquelas pessoas não deveria estar ali. nas cadeiras da espera. ele certamente seria processado. por falta de material. trauma. Réveillon é mais tiro e queimadura. diz o chefe do plantão. mas 90 por cento daquelas pessoas está só. Sua frequência cardíaca oscila entre 15 e 20. apontando um print com a pequena lista na parede. Se ele não fizesse nada. incrivelmente. é no olho que o médico sabe quem está morrendo. Não há monitores cardíacos para todos. Mesmo os traumas poderiam ser evitados. espera para ser levado ao necrotério. janeiro e fevereiro eu não recebi e sei que nunca vou receber. tudo. reclamando de falta de ar. caminhando. A mulher tinha chegado no dia anterior.Ele diz que o que foi possível fazer ali seria só o começo num hospital bem equipado. . minha vida já é complicada o suficiente. ter que começar a sofrer por todas as vacas do mundo. o papo evoluiu pras técnicas de engorda do gado (no pasto ou em confinamento). vamos mudar de assunto.Cada post no Facebook é uma cruz erguida por um messias instantâneo 25/12/2016 Um de nós elogiou o hambúrguer. não quero agora." . o termo "confinamento" trouxe um certo desconforto com nosso hambúrguer e o Fabrício falou: "Ah. o outro comentou sobre as carnes que tinham surgido nos últimos anos. no dia 20 de dezembro. "eis aqui o que eu acho sobre o prepúcio nojento do terceiro pinto no clipe ridículo da Clarice Falcão". Um careca chegou numa mesa grande e foi recebido com pompa e circunstância: "Pereba! Pereba! Pereba!" Eu já estava quase ouvindo o mar quebrando na praia em algum ponto da Simão Álvares quando o Fabrício me trouxe de volta pro concreto: "A gente vive numa época muito religiosa". a religião da Lava Jato e a do 'volta. comungando a iluminação do dia. A religião do carro e a religião da bicicleta. a bancada da Bíblia. Uma diferença pras seitas do século 14 é que nas mídias . aliviando um pouco a correria de dezembro. foquei no hambúrguer. "Goiabada no temaki. Concordei: "O terrorismo islâmico. o Crivell.". ele me cortou.Ficamos um tempo em silêncio. também faziam daquele almoço de terça-feira uma minicelebração de fim de ano. à nossa volta. "isso também. todo mundo é fanático e se você discorda um tiquinho é um herege que tem que ser bloqueado da vida da pessoa.. embaladas por essa brisa que vem de janeiro. deu uma risada. Dilma!'. conversando com o garçom. mas não tô falando de Deus. na tarde ensolarada e nas pessoas que.. que nem no Facebook". Agora tudo é religião. Um barbudo desembrulhou um disco de vinil. pequenas seitas de "likes" e "comments" atrás. A religião vegana e a religião carnívora. do Bergman. Quando ele acabou de falar. devastada pela peste negra: cada post uma cruz erguida por um messias instantâneo. "se o seu filho usa fralda descartável você é um assassino de golfinhos!". O Facebook me pareceu muito semelhante à Europa do século 14. não!". "não". vagando pelas planícies azuis das timelines. a religião da amamentação e a religião da cesariana. lembrei do filme "O Sétimo Selo". A garota do caixa. inglês. faz sol lá fora e um jacarandá estende sua sombra para dentro do restaurante: não é possível que todo mundo se odeie tanto. eu pastava uma hora no amigo judeu. Em 1985. "Tolerância" não era um conceito ensinado na escola. o barbudo do vinil tomando sua cerveja. Antes da sobremesa já estávamos enredados na velha discussão de boteco do século 21: a humanidade sempre foi esse lixo e as redes sociais só revelaram o chorume ou o ódio e a intolerância aumentaram nos últimos anos? Não sei. Olho a garota do caixa rindo com o garçom. o Pereba contando uma história na mesa grande. outra na casa da amiga com a avó janista. iPad. condomínio. libertária. mas um pré- requisito básico para você conseguir brincar de esconde-esconde com 15 crianças diferentes. quando ainda existia uma instância muito louca.sociais os chicotes são raramente usados para a autopenitência. . clube. mas tenho a sensação de que colaborou pra pindaíba termos parado de engordar as crianças soltas nos pastos e passado a criá-las em confinamento: escola. comia sal no baio macrobiótico e bebia no açude de groselha Milani. costumam castigar mais o lombo alheio. diversa e apartidária chamada "rua". ao . (Talvez por isso essa faixa trema. todas as tarefas de 2017. chacoalhando um ramo do jasmim). dois de janeiro 08/01/2017 Abro os olhos e vejo.Segunda. Paralela a ela há uma outra faixa. pontilhadas. Uma faixa perto da porta é a série na qual estou trabalhando. Bem em cima da minha cabeça. tremelicante: deve ser o livro que eu deveria ter entregue em 2016. no teste de Rorschach que as sombras pintam no teto do meu quarto. cada uma das cinquenta e duas crônicas a serem escritas. como um alarme –ou talvez seja só o vento lá fora. À esquerda. uma bola sugere os 4 kg que. O relógio ao meu lado. Fecho os olhos e me escondo do ano novo embaixo do lençol." Lembro de ter lido essa frase em algum momento da adolescência. tão logo saia desta cama. dormir. talvez sonhar. escrever um conto e ler Dostoiévski numa mesma tarde. com corridas e abdominais. vou ter uma bateria e uma mesa de sinuca na sala. ainda meio dormindo. as somas dos quadrados dos catetos. a gente fazia porque os pais mandavam. o frio de junho. quando li a primeira frase de "A Metamorfose". Se por alguma consequência inédita do efeito estufa a Terra passar a girar mais devagar. pensei: bom. Eu sofria tanto naquelas manhãs do colegial que. A escola era obrigatória. ainda tem só 12 risquinhos. "Dormir. minha alimentação vai ser à base de pudim. contudo. os adjuntos adnominais. As duas nesgas de luz que se cruzam sobre a janela só podem ser os desejos incompatíveis que insisto em nutrir: trabalhar mais e passar mais tempo com meus filhos. pelo menos não ia ter que ir pra escola. aos 13 anos: quando eu for grande vou morar numa casa com um tobogã da janela do meu quarto direto pra uma piscina. mas a vida adulta é a gente quem inventa. Era o que eu imaginava. (Cateto deveria ser o nome de um avô bonzinho –eu delirava.logo dos últimos meses. magra e maldosa numa novela dos anos 80). De quem é mesmo? Na adolescência as manhãs eram tão ou mais angustiantes. se eu despertasse de sonhos intranquilos transformado num inseto monstruoso. conseguirei assistir "Procurando Nemo". durante as aulas de geometria–. O ponteiro menor se aproxima lentamente do sétimo. se desprenderam de outros trechos do cosmos e vieram se alojar na minha barriga: 4 kg que estou determinado a devolver ao universo. criando dias de 36 horas. . o despertador me catapultando de sonhos eróticos para a tabela periódica. do Kafka. Hipotenusa é uma grã-fina alta. Lembrei: é Hamlet. penso se estou fazendo o que eu quero. Sai. Não. Por que não posso ver a sombra que treme e. o IPVA. Ou no tobogã. eu vou é cortar o pudim. no monólogo do "Ser ou não ser". Toda manhã.Já sou adulto há 22 anos e ainda aguardo ansiosamente por esse dia em que vou fazer só o que der na telha. . Noutras. tenho certeza de que gasto muito tempo com bobagens e deveria me concentrar mais no trabalho. Às vezes acho que trabalho demais e não aproveito. no lusco-fusco entre o travesseiro e o holerite. o IPTU. Rolo de um lado pro outro. lembrar que do lado de lá da minha janela tem um pé de jasmim? Eis a questão. dormir. Escrever um conto? Ver "Procurando Nemo"? Entregar o piloto da série. me deixa dormir. em vez de pensar nas tarefas não concluídas. 2017. "Dormir. talvez sonhar". Eu deveria comer mais pudim. . pois Livia quer dizer clara. era ele. De criança. Outro ser humano péssimo com um nome ótimo. a mãe que tentou matar o próprio filho. Tony. definitivamente. alva. Junior só tinha o sadismo.Trump e –oh!– o sexo 15/01/2017 A pior víbora daquele serpentário chamado "Família Soprano" era Livia. Tio Junior soa cômico como um "Seu Neném". A segunda pior pessoa do seriado. um sadismo de menino rodrigueano. porém. era Uncle Junior. Seu nome deve ter sido uma cândida ironia dos roteiristas. que cega gato e decepa perna de passarinho. um velho e uma criança vivendo na mesma pessoa. na série. verdadeira. CIA e NSA entregaram a Trump. Trump teria recebido "golden showers" das garotas de programa. contudo. extorquia. traz acusações que vão de negócios suspeitos com Moscou a encontros com espiões russos para hackear Hillary Clinton. nu. como se sabe. em que ele tremeu nas bases e sentiu escorrer pelo queixo a baba da vergonha: foi quando uma amante resolveu se gabar. Deu no "New York Times". esfolava. Para aquele velho "capo". Obama e outros líderes americanos um dossiê comprometedor sobre o presidente eleito. pela primeira vez. Pense o que quiser de mim. fazer sexo oral numa mulher era emascular-se. ao lado da metralhadora e de um bom balde com cimento fresco. contudo. o . O que saracoteou nas redes sociais como uma bola de pinball. dos principais ativos de um mafioso. Caso soubessem o que ele fazia entre quatro paredes. carola leitora. no salão de cabeleireiro do bairro. perderia toda a moral –e a moral é. principalmente. Não tava nem aí. prática que consiste em ser urinado por alguém. de seus inimigos. na suíte presidencial do Ritz Carlton de Moscou. cujo conteúdo não foi comprovado. rebaixar-se abaixo da linha do chão. deitado numa cama. tendo seu "combover" arruinado por uma torrencial chuva dourada disparada por um pelotão de alvas dominatrixes da tundra fez com que eu. foi a notícia de que existiriam vídeos em que Donald Trump faz sexo com prostitutas russas. cuja moral sexual deve ter sido talhada em algum rincão da Itália. da sua macheza. pudico leitor. sob influência de gângsteres e Mussolini. a obsessão do criminoso é evitar que a fofoca chegue aos ouvidos de seus comparsas e. provavelmente bêbado. na terça (10). de que o mafioso lhe dava prazer com sexo oral. antes da Segunda Guerra. tão orgulhoso do seu poder.Tio Junior matava. Houve um momento. mas imaginar Donald Trump. Nessas farras. tão cioso do seu arquitopete laqueado. O dossiê. FBI. No episódio em questão. "Agora ele cai!". "Agora ele cai!". mas sim outra volta no parafuso do conservadorismo. Não um passo se afastando dos valores enferrujados que tornaram Trump presidente dos EUA. . Seria uma queda triste.visse como um ser humano. patético e desejante irmão. pois mais grave que racismo. torcem milhões. xenofobia. pior que o ódio de qualquer espécie. um frágil. que a chuva dourada pode estar facilitando ou comemorando algum suspeitíssimo ouro de Moscou. já 17 anos adentro do terceiro milênio ainda é –oh!– o sexo. Tá. mundo afora. deportações em massa e bombas nucleares. machismo. tá certo que pode haver interesses escusos por trás desse sexo (se é que o sexo existiu). Mas vocês acham que é com os russos que a geral tá preocupada? A mesma opinião pública que elegeu Donald Trump pode em breve derrubá- lo. pior que as ameaças de muros. Comprar água com gás foi uma desculpa que arrumei pra sair um pouco de casa depois de dois dias sem ver a rua. Estão . se a ideia era passear. vagando pelo linóleo bege dos corredores. trabalhando e cuidando das crianças. Sento no balcão do bar. Percebi que era uma desculpa quando me flagrei. entendi que a pena era de mim e decidi que. já com a garrafa solitária no fundo do carrinho. Peço um chope.O que você fez hoje à tarde? 22/01/2017 Eu não precisava ir ao supermercado. eu merecia coisa melhor do que a gôndola de enlatados do Pão de Açúcar. Fiquei com certa pena daquela garrafa. Há um casal por ali. Roqueiros bebem bourbon. Pelo contrário. Não havia piratas nem baianas. jeans pretos. Eles estão certos. mas branquelos de dread e nerds recém-convertidos ao Iron Maiden não ficavam muito atrás no quesito alegoria. eu é que pareço imaturo. da revolução sexual. Ainda próximo à adolescência. Encaro os dois com admiração e. esse século tão marcado por horrores. mas não tem vergonha de . os dois soam autênticos naquele estilo. com inveja. de lado pra mim. bagunçado. Me agrada pensar que eram duas doses de Jack Daniel's. Manda um "Welcome to the Jungle" no lado A. sem medo de ser piegas. de modo que posso xeretá-los sem incomodar. Uma década atrás eu acharia meio ridículo pessoas de 40. ele um All Star que talvez traga na sola resquícios da lama do primeiro Rock in Rio. Lembro do meu assombro ao voltar de umas férias. adereços falsos que meninos e meninas escolhiam para se darem bem no colegial. olhar o pátio da escola e me sentir num baile de carnaval. Foi a trilha sonora da emancipação da juventude. tão autênticos que olho a minha bermuda. eu via esses estilos como fantasias. como se aos 39 anos ainda não tivesse encontrado meu lugar no mundo. minha camiseta e meu Nike Air com meia soquete e começo a me sentir incomodado. logo em seguida. numa mesa. mas acredita no amor. 45 anos. 45 anos vestidas de roqueiro –ou de punk ou de rapper ou de rastafári.um de frente pro outro. O rock é uma coisa bonita que a humanidade criou no século 20. Devem ter 40. não parece fantasiado. de todo tipo de contestação. Dividem uma garrafa de cerveja. porém. Vestem camisas de bandas de rock. O casal. e há dois copinhos vazios sobre a mesa. não acredita "no sistema". O rock é cético em relação à política. coturno. ela. assoviar "Patience" no lado B. Se Deus ou algo que o valha baixasse agora neste bar. pelo menos. . falando do Moro e do Doria e do petrolão. O meu casal talvez respondesse: "Nós achamos um vinil do George Harrison na Galeria do Rock e ouvimos "While My Guitar Gently Weeps". de uma briga com a tia Madalena no WhatsApp da família. Não consigo imaginar aqueles dois brigando no Facebook. me segurasse pelos ombros e perguntasse "o que você fez hoje à tarde?" eu falaria do trabalho. a mesmíssima coisa. Taí algo de útil a fazer com a sua vida ou. convenhamos. Talvez o parágrafo anterior tenha soado meio piegas. com a sua tarde –o que vem a ser. É que neste momento da crônica eu já estou no segundo chope. Sigo espiando meu casal. de um artigo que li sobre Trump. diante de um predinho. com retângulos compridos de vidro opaco. Ou seriam pessoas? Abre-se um . O homem está sem camisa e parece bêbado. Parece o depósito ou uma pequena garagem. Os gritos continuam. A porta é de ferro. arrastando o menino junto. pois se engalfinham num clinch e. juntam-se a eles barulhos de coisas caindo. não dá pra ver lá dentro. tenta separá-los. passando ao lado do estádio do Pacaembu. 19h27. somem porta adentro. um homem e uma mulher se estapeiam. 5 de janeiro.RG e CPF do assassino. por favor 29/01/2017 Quinta-feira. ouço uns gritos: do outro lado da rua. assustado. Não consigo entender quem bate e quem apanha. Um menino de uns oito anos. bem na frente do portão 23 do estádio do Pacaembu". número XXX!". se o senhor estivesse tão aflito assim o senhor descobria esse CEP pra mim. "Não. Penso em tocar a campainha. O novo atendente tampouco parece ter ouvido falar nesse tal estádio do Pacaembu. Ele diz que vão mandar . é Pacaembu. eu tô vendo um casal se espancar e uma criança gritando por socorro. Somem. número XXX. ela tem que defender o seu orgulho ferido. surge o rosto do menino. Disco 190. "Socorro! Socorro!". bem na frente do portão 23 do estádio". "O senhor poderia me passar o CEP?". "Olha. Fecha-se o basculante. "Eu preciso de uma rua de referência". Não ouço mais os gritos. número XXX. Capivari. mas alguém o puxa pra dentro. eu tô te dando a rua e o número e falando que é na frente do portão 23 do Pacaembu e você quer o CEP? A polícia não tem Google? Não tem Waze? Vai morrer alguém aqui! Vocês que têm que achar o CEP!" A atendente. "O senhor teria uma rua de referência?". Não ouço a criança. Dessa vez.basculante na lateral da porta. tem um casal se batendo e uma criança gritando 'socorro' na rua Capivari. Mais uns segundos. que o Pacaembu é perto da Consolação. "Rua? Eu tô dando um estádio de referência!" Algo atirado de dentro do prédio faz um buraco no vidro. difícil existirem duas ruas Capivari tão próximas. mas me acovardo. Disparo pra atendente: "Oi. A Capivari é uma das ruas laterais do Pacaembu! Rua Capivari. no entanto. de uma mulher ou de um homem. Ouço barulhos. Pergunta se a rua fica na Consolação. tem tarefas mais importantes do que salvar a vida de uma criança de oito anos. "Tá." Desligo e disco 190 de novo. em arrombar a porta. Os gritos voltam. Depois de alguns segundos: "Esse endereço é Consolação?". digo que pode ser. Falo a mesma coisa. "Cara. Atendem rápido. Doutor Arnaldo. Será que eles foram no número errado? Será que ninguém ajudou aquele menino? "Hm". se alguém foi preso. Aliviado. Grito lá pra dentro "A polícia tá chegando! A polícia tá vindo!" e sigo pra casa. Em casa. Penso em tocar a campainha. passa uma viatura. "Número XXZ?! Não! Número XXX! Eu disse várias vezes o número!". "Certo. meu telefone toca. Explico a situação. em arrombar.uma viatura. Eu aceno. não muito preocupado. o senhor ligou pra Polícia Militar relatando uma ocorrência na rua Capivari. me dizem que a ocorrência já foi atendida. me esqueço de perguntar o que aconteceu. Alguns quarteirões adiante. meia hora depois. se alguém se machucou. número XXZ?". Chego perto da porta. Escuta. mas me acovardo. Eles param. essa rua Capivari: por acaso fica em Itaquera?" . "Boa noite. resmunga o atendente. O branco é água!". "Tem que andar pisando só no preto. sem choro -nem das crianças. Quem quer andar de trator?". o preto é fogo!". "Não. você já comeu catorze pães de queijo". Dani. "A mala de rodinha é um trator. você já assistiu a quarenta e nove episódios de 'Masha e o Urso'". "Agora só no branco. Olivia. .A vivência lúdica do educar 05/02/2017 Deviam estabelecer como prova final num desses cursos que prometem estimular a criatividade: duas horas diante de um portão de embarque com uma menina de três anos e um menino de um e meio. "Vamos fazer chapéu de guardanapo?". "Não. nem dos adultos. Cheguei com os ímãs no bolso. ecoou o Dani. algo irreais em seu brilho mercúrio-Terminator sob as lâmpadas dicroicas. segundo o vendedor. "Ádico! Ádico!". "Hematita".Foi com o alívio de um maratonista avistando a linha de chegada. Estava feliz não só com a possibilidade de entreter as crianças com uma atividade sem açúcar. são pedras mágicas!". Comprei um punhado. eu quero ver o mágico!". sem gordura e sem pixels. eu disse. seria. o furacão Katrina parece aqueles esguichinhos de vapor do Ibirapuera).seria capaz de resgatar meus filhos das profundezas do tédio. Tirei as pedras do bolso. vê-las saltando da minha mão e grudando umas nas outras. acho eu. Se a simples visão das bolotas metálicas não fosse suficiente para seduzi-los. do que estava falando. "As pedras voam! Olha. discípulo da irmã mais velha -não muito seguro.. a Olivia me interrompeu. "Eu não quero presente. uma corrente prateada que -assim acreditei. "Eu não quero pedra! Eu quero o mágico! Papai! Vamos atrás do . ela me atropelou. era o nome das pedrinhas cor de grafite. de novo. Não havia tempo para preâmbulos. (O lábio inferior dobrado está para o pranto como a nuvem negra está para a chuva -e quando a minha filha resolve trovoar. "lá no banheiro eu encontrei um mágico e o mágico me deu/". mas sobretudo por poder lhes apresentar a esse interessantíssimo capítulo da vida na Terra: o magnetismo. "O mágico.. Peguei uma. "Daniel e Olivia". O mágico deu um presente pra vocês!". pensando em como daria o presente. portanto. "Cadê o mágico?!". as outras grudaram embaixo formando um cordão. com a pompa que o momento merecia. amigos. o lábio inferior já dobrando-se perigosamente sobre si. que no final da primeira hora (sensação térmica de seis) vi numa loja de revistas um balde cheio de ímãs. Fica acordado só o motorista -e as hematitas. os dois finalmente dormem. "Olivia. As paredes tremiam. que. . o mágico. embarcamos pra São Paulo. Daniel. Minha mulher me encarava com um olhar que ainda não sei se era de ódio ou compaixão. O teto sacudia. No Uber. Que coisa mais lúdica. Vinte e sete pães de queijo e duzentos e trinta e nove episódios de "Masha e o Urso" depois.mágico! Cadê o mágico?!". por educação. do trabalho. do clube e da academia.. do seguro saúde. no meu bolso.. do supermercado. da livraria. a acompanhava no pranto: "Áááádico! Áááádico!". usam seus maravilhosos superpoderes para destruir meu celular e apagar os meus cartões de crédito. Pousos e decolagens foram temporariamente suspensos. também. Olivia se atirou no chão. Sigo o mesmo rumo. a caminho de casa. O mágico foi embora". mais mágica é a vivência do educar. Minha mulher encosta no meu ombro e dorme. Rolava de um lado pro outro: "Máááágico! Máááágico!". um tom. cada alerta de mensagem tem uma nota. 9 iPads e 17 Samsungs de todos os frequentadores tocarem "Simply the Best". ele faz com que o conjunto de dispositivos toque uma música. um timbre. em Tóquio.Sketchbook 12/02/2017 Tadao Nakashiro envia centenas de mensagens de Facebook. 11h13 da manhã. cujos números consegue com suas habilidades de hacker. Nakashiro fez 14 iPhones. no Starbucks da estação Shibuya. espaçando milimetricamente as mensagens. . Twitter. Na última sexta. WhatsApp e demais aplicativos para tablets e telefones móveis nas proximidades. Se a Tamires descobre a gambiarra ela briga. dos Dead Kennedys. Luiza diz que conhece? Que não conhece? Só de vista? Ou que tava viajando e não faz a menor ideia do que foi perguntado? * . É como se a Luiza fosse um cabideiro. * A loira é a terceira pessoa da roda que conta uma história distribuindo olhares pra todos. natural de Iguaí. mas dessa ninguém vai desconfiar. escondido numa cocheira em sua cidade natal. suando às bicas. Num gran finale. ela detesta as gambiarras do Marcelo. encarando a Luiza e trazendo consigo 12 olhos curiosos. as crianças tão assistindo a Peppa Pig no carro faz 20 minutos. pergunta a loira. no minizoológico do seu Robson. junto à última nota. o Marcelo disse que o seu Robson tava selando a zebra. menos pra Luiza. * Marcelo Porfírio. conhece?". num dia (ou noite. Decide ir dar uma volt/ "E você. dependendo de onde você estiver). de Rachmaninoff ou "Too Drunk to Fuck". Foi o primeiro teste para o grande projeto de Nakashiro: hackear todos os dispositivos móveis sobre a Terra e. Sente as gotas brotarem no bigode. morador de São Paulo. Ou será paranoia? Não devia ter fumado maconha. montariam numa zebra de verdade. Ainda está em dúvida entre o "Concerto para Piano Nº 2". explodiu um Galaxy Note 7. Passou um ano prometendo ao Bruno e à Rafaela que se fossem nas férias conhecer a cidade do pai. vai ficar perfeito quando ele acabar de fazer na mula do seu Robson as listras de rolha queimada. abre a terceira garrafa de vinho. Ela sabe que fica assim. uni-los numa única melodia. Acontece que a zebra do seu Robson morreu em 2009.da Tina Turner. a Tamires já ligou sete vezes. Nos braços. descabelado. será que algum dia vai tirar uma moeda de chocolate de dentro do ouvido? * Ana está deitada na canga. tenta empurrar uma chupeta. Chora. talvez. Tec. Não existe Trump. Toc. . ouve um bem-te-vi e por trás de tudo o tec toc de uma dupla de frescobol. como será que o homem fazia. Leonardo? A essa hora? Martim chora cada vez mais alto e pensa por que será que ele não consegue. descabelada. O pai. Sol no rosto. Tec. enfia o dedo no ouvido e puxa. de olhos fechados. enfia o dedo no ouvido e puxa. Chora. Discutem. A brisa muda de direção.Martim chora no berço. O Brasil. acha que é otite. Devem dar mais uma mamadeira? Três ml de Tylenol? Ligar pro dr. Velocidade das marginais. não exista. Tec. No dorso. A mãe. Lá longe. Não existe textão. Pra lá e pra cá. depois do barulho das ondas. Toc. alternando o cheiro do mar e de citronela. Nas pernas. O telefone tá sem sinal. Toc. Eu não quero ficar velhinha 19/02/2017 Com quase quatro anos. uma tela diante da qual passam mamadeira. carrinho. Repeti. Lego. não tem a menor ideia de que haja um antes e um depois. Ele pediu de novo. pudim. de dois. educadamente. avó. mas já sem o sorriso. Meu filho. pediu o presente. Eu disse "amanhã". Ele abriu um sorriso. minha filha começa a compreender um elemento fundamental da existência: o tempo. Outro dia me meti numa encrenca porque resolvi falar que "amanhã" seria aniversário dele e ele iria ganhar presente. Sua vida é um agora contínuo. educadamente . berço. banho. minhoca. A distância física. Julio Cortázar. dentro da sua cabeça. "Szjnausshchfundstrrrrrulmp!" A minha filha. diante de uma foto minha com a idade dela. quando eu nasci e era bebê". Claro. "Szjnau- sshchfundstrrrrrulmp!". "Amanhã. era a maneira que ela tinha de elaborar a distância temporal. muito. que o presente seria dado "amanhã". muito. ela finalmente entendeu que eu já fui criança. "Amanhã. Em entrevistas. né?". "Não. "Cadê o dinheiro?". no passado ou no futuro. que duram só os poucos segundos do REM ("Rapid Eyes Movement"). quando eu tiver a minha filha. muito longe daqui!". Semana passada. muito. "E essa casa era muito longe daqui. Ela ficou aflita. (É sério. . papai! Quando você era pequeno você morava numa casa muito. usa "amanhã" com bastante desenvoltura: pra nomear qualquer dia que não seja hoje. "Amanhã quando for Natal de novo". É como chegar pra um adulto e dizer "O senhor ganhou na Loto". um dos meus escritores favoritos. Passou uns segundos ressabiada. né?". tinha se desenrolado por pelo menos 15 minutos. mas parecem se descortinar na nossa consciência como longas-metragens. não me pergunte por quê). por sua vez. compreendi. então algo se iluminou: "Mas papai. muito. olhando a foto. Eu disse que era perto. ela vai chamar Isabela Belink". quando você era do meu tamanho você morava em outra casa. Nos dois minutos entre uma estação e outra ele havia se lembrado de uma história que. "Onde?!". mencionava sempre certa viagem no metrô de Paris. "Morava".(e sorrindo muitíssimo). olhando pra mim. se impressionava bastante com o tempo. (Alguns pesadelos são mais intermináveis que filmes mudos experimentais do Uzbequistão). Foi aquela choradeira. Como 15 minutos cabiam em dois? Algo parecido acontece com os sonhos. eu não quero ficar velhinha!". um dia depois de descobrir que eu havia sido criança. "Shhhh. Ele passa. pagando as compras. Enquanto isso. . Abraçou as minhas pernas e perguntou: "Papai. mas não acho o tempo misterioso. mas fala baixo". metrô de Paris. a gente envelhece e depois adeus pudim. fala baixo!". muito. presentes de aniversário. vai levar mais de 80 anos pra chegar. velhinha. só acho cruel.Deve ser ignorância minha. Abandonei a fila com ela gritando: "Não quero! Não quero ficar velhinha!" Vai demorar um pouco pra ela entender que. de carro ou de avião. Eu sussurrei: "Vai. ela viu duas velhinhas. "Não. muito. o melhor que pode acontecer é ficar velhinha. também começa a entender que essa história do tempo passar não tem como acabar bem. papai. bem velhinhas. muito longe daqui: indo a pé. tento acalmá-la dizendo que ela. eu também vou ficar velhinha?". "Papai. Numa livraria. em relação ao tempo. mora numa casa muito. eu não quero ficar velhinha!". com quase quatro anos. Minha filha. Trump e Kim Jong-un fazem pensar se há elo entre penteado e pensamento 26/02/2017 Se Donald Trump. conhecido por sua cautela. "é bobo". retribuir o presente e o mundo acabar. uma coisa é certa. mas sou feliz. o ditador da Coreia do Norte. muito mais bobo é quem me diz"). E da . do alto de sua maturidade. se Kim Jong-un. responder "나는 바보입니다하지만 난. 나에게 말하고 더 바보 행복" ("Sou bobo. se Kim Jong-un. tuitar que Kim Jong-un. mandar uma ogivazinha pra Pyongyang. generoso. a humanidade terá sido exterminada pelos dois líderes com os penteados mais esdrúxulos que já apareceram debaixo do Sol. o ditador dos Estados Unidos. se Donald Trump. E das câmeras da Fox News. declarou ao site do jornal britânico "The Daily Mirror": "Ele usava tanto laquê para chegar naquele penteado que o cabelo era uma massa emaranhada. punks com moicanos. É pelos folículos capilares que excretamos as caraminholas vencidas -toxinas das nossas angústias e frustrações. . E como tratam suas antenas e exaustores pilosos os dois cavaleiros do apocalipse? Amy Lasch. revelou ao "Guardian" que o telefonão de Jong-un "não é muito fácil de se conseguir num cabelo asiático" e é sustentado à base de permanente e cera. rastafáris com dreads. Veja. O cabelo talvez funcione como uma espécie de antena das ideias. dois cérebros lacrados por litros e mais litros de cera e laquê: uma casca espessa como o pétreo pururuca de um pato laqueado. ex-cabeleireira de Trump. não da forma que críamos até hoje. Não dá pra não se perguntar: haverá alguma relação causal entre penteado e pensamento? Digo. Já Li Lee. E do Comitê Central de Radiodifusão Coreano. que o pensamento radical levava ao penteado radical. É pelos folículos capilares –quem sabe?– que apreendemos a realidade exterior. o Arnaldo Antunes com seu incrível botocudo rock'n'roll: e se for o contrário? Bem. que os joysticks mais aptos a aproximar o "game over" da nossa espécie estejam nas mãos de um "comb-over" platinado e de um indescritível trapézio invertido –já compararam o ditador coreano a um bebê equilibrando um velho telefone sobre a cabeça– é um forte indício de que estou certo.Lua. como a crosta crocante de um fried chicken. dona de um salão coreano em Londres. sólida". uma impenetrável aduana química impedindo um intercâmbio saudável entre o que se passa dentro e fora da massa cinzenta destes solitários cidadãos. e será Carnaval sobre a Terra. e sob as câmeras da Fox News e do Comitê Central de Radiodifusão Coreano os dois sairão sambando e cantando "A Jardineira". Se a barreira que nos separa do apocalipse nuclear é tão fina quanto um fio de cabelo. aqui. um balde. comovidos. levando pra longe o longo inverno e trazendo de volta os raios do astro rei ("Frozen". a escolha da rodovia). uma bexiga cheia de água para derreter o muro que os aprisiona no inferno de seus pensamentos. 2013). Empapados.Com suas antenas untadas. O cenário é desesperador. (Não foi casual. então começarão a chorar. depois rindo (a brisa da mudança já refrescando seus córtex embolorados). também é da ordem dos mícrons a distância que nos afasta da salvação. Bom Carnaval. Trump e Kim Jong-un recebem tantos "inputs" do mundo ao redor quando nossos celulares recebem sinal no meio de um túnel na rodovia dos Imigrantes. Donald e Jong-un olharão em volta. Basta uma chuva. Talvez tudo se exploda mesmo e o mundo acabe num enorme topete atômico. Ou não. Disney. mas também otimista. primeiro com ódio. e as lágrimas sinceras descongelarão seus corações. . esqueci o carregador do iPhone aí na sua casa. precisava fazer uma ligação telefônica ou escrever uma carta. você pode deixar na portaria?"/ Whapp Eu: "Claro./ Tchurrrrl! Facebook inbox Arthur: "Fala primo blz é o Arthur filho da Lucia prima da sua mae de Guararema entao a minha mae disse que voce mora perto do centro e semana que vem a minha namorada vai tah . É carregador novo ou velho?" Nem 25 anos atrás.Tentando escrever uma crônica em 2017 05/03/2017 A tecnologia avança para facilitar a nossa vida e nos trazer mais confor/ Pliiiim! Whapp Guga: "Queridón. se você quisesse falar com um amigo. Na década de 90. o toletão! Sou pobre. espero que entenda. ir ao correio./ Tchurrrl! Facebook inbox Arthur: "Primo vi aqui que voce leu a mensagem hehehe e aih rola eh nois!"/ Facebook inbox Eu: "Fala.00 de desconto!"/ Whapp Eu: "Amor. esperar na fila: dá preguiça só de pens/ Pliiiiim! Whapp Guga: "Carregador novinho. Arthur! Quanto tempo! Cara. ia ficar meio apertado. né? (Ela tem um gato)..detalhes tão triviais quanto a capital de um país ou a data de nascimento de uma figura histórica/ Pliiiim! Whapp Amor: "Namoprima: não! Carregador: sim. ou velho. ainda dependíamos das enciclopédias. a gente tem filho pequeno. Já .. é o velho.só de pensar. selo. ela teria que dormir na sala. de plugue fino. dos almanaques que folheávamos ávidos por detalhes tão triviais quanto/ Pliiiim! Whapp Guga: "Ah. podemos ler as obras completas do Shakespeare. Uma semana. mano! Hahaha!"/.ai em SP p/ um trampo no centro e queria saber se rola dela ficar tipo uma semana na sua casa de boa ah ela tem um gato abraxxxx primooo!" Era preciso comprar envelope." Agora. eu adoraria receber a sua namorada e o gato. Segunda coisa: o Guga esqueceu o carregador aqui. de plugue largo? Minha casa é um cemitério de carregadores"/. Eu mal conheço o cara. Vi de manhã perto da torradeira. um primo de terceiro grau pediu pra hospedar a namorada em casa. com apenas um clique.. saco!"/ Whapp Eu: "Não. tudo bem falar que não rola. Outra revolução tecnológica foi o acesso à informação. E as linhas cruzadas? As ligações recebidas por engano?/ Zuooom! SMS: "Vai pra folia? Clique no link abaixo e use o cupom CARNA99 de R$ 15. tinha comprado ontem mesmo. Você viu?" A tecnologia nos libertou destas pequenas chatices da vida cotidiana.. xaropão! É carregador de iPhone novo. mas tô com filhos pequenos. Abs!"/ Pliiiim! Whatapp Guga: "Valeu.me/waseu"/ Zuoooom! SMS: "Você atingiu 99% do seu pacote de internet./ Whapp eu: "Guga.deram uma olhada em quartos no Airbnb? Tem coisa boa e barata." . curtir os amigos. A mais importante conquista da tecnologia. Continue navegando no WhatsApp. Boa sorte!"/ Também podemos ouvir de graça toda a discografia dos Beatles. porém. é o ganho de tempo: o tempo que antes gastávamos inutilmente agora nos é reservado para ficar com a família. Facebook e Twitter à vontade s/ franquia./ Tchurrrl! Facebook inbox Arthur: "Na verdade pelo que me falaram de você eu meio que já esperava essa resposta beleza o que vai volta ♥ karma ♥ paz ♥ irmão ". já tá na portaria. queridón. investir na carreira e nos aprimorarmos como seres humanos. mando em retribuição essa pérola da Cicciolina circa 1985 http://migre. as Bachianas do Villa-Lobos. Envie SIM p/ 418 e contrate novo pcte. quando. Um Dois Três de Oliveira e Quatro e por aí vai. dependendo da origem. os seres humanos assistiram à eleição de Donald Trump à presidência dos EUA. das predileções e delírios de cada progenitor). em meados da segunda década do século 21. Marilu. Juanito da Catimbira. enfim. no Dia . à disputa de nove times de futebol pelo passe do detento Bruno e ao presidente (sic) da República (sic). Xin Sun Lun. Mohammed.Um enorme passado pela frente 12/03/2017 Quando. Earl Dwight. como eu ia dizendo. Michel Temer ("sick"). em meados da segunda década do século 21. os mamíferos bípedes mais conhecidos como homo sapiens (ou ainda mais conhecidos como Claudisney. a piscina de bolinhas e o bufê infantil-. da peste negra e do inconveniente de topar. apontando as compras de supermercado e os cuidados com o lar como a grande contribuição feminina à sociedade. para "estancar a sangria". com o exército de Gengis Khan. estávamos. A economia brasileira retornou aos números de 2010. o direito de matar livremente nas marginais.). Pelas ruas dos EUA. como uma bexiga esquecida atrás da piscina de bolinhas num bufê infantil -mas que tivesse em si a própria bexiga. também. muitos pensaram: cazzo. membros da Ku Klux Klan puderam ser vistos levando seus lençóis pra passear. O Obamacare foi cancelado por Trump. numa segunda-feira à tarde. Os russos se tornaram ameaçadores outra vez. O fisiologismo mais chão da nossa política e economia. o Plano Funaro e o Ilariê. o tempo. os meteu na nossa jugular. nos desapegarmos das conquistas da civilização. do nazismo. que passaria a correr para trás. a poltrona . sem falar do fascismo. Dicke. a 90 km/h. Não foi fácil. a volta ao passado foi difícil: tivemos que atravessar de novo a dívida externa e os Menudos. O retrocesso foi rápido. Grafites coloridos em São Paulo voltaram a ser muros cinza. tais como o cortador de unha. que recobraram. estamos voltando no tempo? Cazzo. além do espaço. A bicicleta foi desestimulada em favor dos velhos carros. No começo. após 13 bilhões e 700 milhões de anos se expandindo. o Universo perdeu o impulso que vinha lá do Big Bang e. Wilson. Penzias.Internacional das Mulheres. o balão arrastaria. nesta melancólica andropausa astronômica. começou a encolher. escancarou seus caninos de Conde Draga e. O que os físicos não sabiam é que. Por conta de um revertério cósmico já intuído por físicos desde o início do século 20 (Lamaître. que por 20 anos se disfarçou (mal e porcamente) detrás de tímidas reformas sociais. ao murchar. Gamow et al. mas ser jantado por um leão é um preço justo a ser pago pela liberdade. Mas depois de muito sofrermos. muito mais bela do que ter as artérias entupidas pela gordura saturada do Polenguinho. amêndoas e javalis. tomando banho de cachoeira. éramos todos caçadores coletores andando nus pelas florestas. cortando as unhas dos pés. além de ser uma morte épica. Claro que de vez em quando um de nós era jantado por um leão. o Polenguinho de bolso.vibratória com porta-copo. buzina ou despertador. após anos sentado numa poltrona vibratória. tendo ultrapassado Torquemada e Tutancâmon. temos "um enorme passado pela frente". Regozijai-vos. comendo cajus. eis que chegamos à origem dos séculos e retomamos a terra prometida. tendo reconstruído pirâmides e cruzado o mar Vermelho. . irmãos: como dizia Millôr Fernandes. Nesse Éden terreno não havia emprego nem Facebook. veio também Satanás entre eles. e Oj labutava de sol a sol. em seu Corsa 1999. Nasceram-lhe sete filhos e três filhas. e Oj saía para comprar mais na Drogasil. e que só fazia praguejar e lamuriar. e as fraldas acabavam no meio da madrugada. E disse Satanás ao Senhor: . de pijama. duas e meia da manhã. Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor.Jó ao contrário 19/03/2017 Havia um homem na cidade de São Paulo cujo nome era Oj. e o dinheiro se esvaía em Pampers e Hipoglós óleo de amêndoas. homem pobre e refém de tribulações. E. disse Satanás ao Senhor: "Ah. como a presença do Senhor é imperceptível para os corações dos incréus. e encheu sua morada de fraldas Pampers e Hipoglós óleo de amêndoas. e logo estava pobre e infeliz novamente. e ergueria as mãos para os céus."Vede este teu servo na fila do caixa da Drogasil? Vos lhe deste a boca para beber a água fresca dos regatos e os olhos para contemplar as flores do campo. Na viagem Oj não parou de reclamar que na piscina só tocava sertanejo universitário. um sorriso ele abriria. antes da viração do dia". Teu servo. dizendo isso. porém. Deus fez a caixa da Drogasil estender a Oj uma raspadinha. e lhe fez dez centímetros mais alto e dez quilos . e Oj ganhou um Land Rover 2017 e uma viagem para o Club Med Rio das Pedras. mas se a vida melhorasse um pouquinho. num só movimento. Esta enfadada criatura é o mais perfeito retrato de Tua criação". Oj resmunga pois lhe faltou sorte. e que o sushi no bufê "all-inclusive" era um Monte Sinai de arroz para um solideuzinho de salmão. e a sorte que lhe dei arruinou com seu livre arbítrio. e lhe deu uma segunda raspadinha com 20 milhões de reais. a sinusite e as frieiras de Oj. do George Michael. mas lhe tocarei agora com felicidade duradoura. Então disse o Senhor a Satanás: "Verdade não há no que dizes. humanidade. Então. e que no Rio das Pedras havia pedras em demasia. como tantos filhos meus já vi cantarem". e. da Violeta Parra. O Land Rover Oj vendeu. vendo que Satanás duvidava. e cantaria 'Gracias a La Vida'. ingratidão é teu nome!" Então disse o Senhor a Satanás: "A felicidade passageira é invisível aos olhos de quem muito sofreu. passa os dias a maldizer a data em que nasceu. ouvidos para despertar com o gorjeio dos pássaros e mãos para acariciar os cabelos sedosos da amada. Deus curou a rinite. e pagou dívidas. e verás se Oj não erguerá as mãos para os céus e cantará 'Freedom'. regozijando-se. mais magro. maldizendo o Senhor. o mandou catar coquinhos –literalmente. e o Jerry tinha que namorar a Elaine. e sem frieiras não tinha mais o que coçar assistindo "Seinfeld". e 140 anos catando coquinhos viveu Oj. e quando ia Oj falar que sentia falta da rinite o Senhor Deus se impacientou. e lhe enviou por Sedex a caixa completa com as nove temporadas do "Seinfeld". a contemplar as reações de Oj. E o resto de seus dias passou Oj perambulando por São Paulo. e. e o Senhor e Satanás sentaram-se em seus tronos de ouro e éter nas alturas dos céus. velho e farto de seus dias. . continuava que era só mimimi. ainda se fosse no Rio. ainda se fosse em Salvador. e o protagonista devia ser o Kramer. faminto e maltrapilho. e não sabia se investia os milhões em imóveis ou no tesouro direto. Oj. pois há pouquíssimos coquinhos nesta cidade de clima temperado. e desceu das alturas. então morreu Oj. porém. as calças estavam largas e curtas. aparecendo diante de Oj. Um centímetro -e esse centímetro que faltava para eu ou a minha mulher conseguirmos selar a tigela nos obrigava. por . após anos de prática. perdíamos toda noite. essa luta que vencíamos todo dia. essa confirmação da superioridade do esforço sobre o desespero. esse vazio que. a esticar o plástico de um lado.A tigela da Tati 26/03/2017 O diâmetro da tigela de salada era um centímetro maior do que a largura do Majipack. por pontos. diariamente. conseguíamos preencher. a esticar o plástico do outro (com-muito-esmero-e-fé-em-Deus-porque-se- você-esticasse-de-menos-não-chegava-aqui-e-se-esticasse-demais- soltava-acolá). com concentração monástica. deputado corrupto não se reelegia e ninguém roía unha.nocaute: bastava um de nós se servir de salada. minha primeira visão era o navio fantasma: o plástico troncho com uns fiapos de cenoura grudados e umas babas de beterraba escorrendo pelas ranhuras me lembrava. ao abrir a geladeira. diuturnamente. Sísifo arrasta a pedra morro cima. se as coisas simples fossem tão simples as calotas polares não estavam derretendo. pousava sobre a salada como a vela frouxa de um navio fantasma cujo mastro houvesse tombado sobre o convés. não vou perder nunca? Não. vejo um iate: uma tigela com uma futurística tampa de silicone. comenta o Excel(entíssimo) leitor. vermelha. essa barriga. Por que não comprávamos uma tigela menor? Por que não comprávamos uma tigela com tampa? Por que não reaproveitávamos uma mísera caixa de sorvete Kibon? Seria tão simples. a cada manhã. Penso: acabou o UFC com o Majipack. num átimo: era infeliz e não sabia e não sou mais. Amigo. ao abrir a geladeira pela manhã. em vez do navio fantasma. cada tigela tem sua tampa. grudava em si mesmo. que todo esforço é vão. que a vida é feita de fracassos. profanando o delicadíssimo milagre de celuloide e o centímetro virava seis centímetros. antes do café. ai. cada coisa tem seu lugar -até mesmo a esteira elétrica que . o Majipack enrugava todo. Hoje. me devolvia o Majipack. Penso. três centímetros de cada lado. do fundo de sua lassa pança. como nos resignamos com tudo. Cronos devora seus filhos e essa barriga. O fiapo da cenoura jamais voltará a me lembrar do fiapo que sou na ordem geral das coisas. o destino a rola morro abaixo. A tigela me trará a certeza de que os problemas têm solução. o tempo é vento que leva o viço. porém. Por anos. nunca. Penso: adeus baba de beterraba. Eu via a tigela e me resignava. Agradeço. contudo. o colesterol. no penúltimo domingo. eufórico.comprarei para combater a barriga. A Tati Bernardi nem sequer deve saber o que é ser escravo de um rolo de Majipack. Uma tigela com tampa vermelha de silicone é a cara da Tati Bernardi. a ansiedade e outros males da civilização. . Fico triste em descobrir que a tigela é da minha amiga. Minha mulher. Não é fácil perder uma amiga. então lembramos do almoço. Nos debruçamos alguns minutos sobre o mistério. A Tati Bernardi foi a encarregada de trazer a salada. Imagino que nunca houve uma tigela sem tampa na cozinha da Tati Bernardi. Estamos livres. diz que não tem nada a ver com isso. Abraço minha mulher. mas não parecia o Brasil. no hall. Saí do elevador do hotel com a certeza de que estava no Brasil – afinal. uns 20 adolescentes bem vestidos. outros ouviam música em seus fonões de ouvido. ao entrar no elevador. eu estava no Brasil–. . cortes de cabelo estilosos. mas não tem nada a ver com o seu quarto. aparelhos nos dentes. uns conversavam em rodinhas. saudáveis. Vi.Por dois segundos eu vi um Brasil que havia superado escravidão dos negros 02/04/2017 Sabe quando você sonha que está no seu quarto. mas sente que é o seu quarto? Foi tipo isso. não. me impressionou a atitude daqueles garotos. (Não é um problema do Santa Cruz. Perceber que se tratava de um time de base me deixou triste. conseguem ascender socialmente. Costumam carregar as malas. Fora do Brasil porque a maioria dos meninos brasileiros com a cor e a fisionomia daqueles ali não costuma frequentar lobbies de hotéis. de outros esportes ou artes em que não se requer educação formal. Eu nunca tive um colega negro na minha classe. fones nos ouvidos. senhor. de aparelhos nos dentes. os cortes de cabelo. porque eram a exceção que confirma a regra –não uma . pardos. Me senti no Brasil porque os meninos tinham a cor e a fisionomia da maioria dos brasileiros. estirados nas poltronas. senhor. os fones. Primeiro. nos colégios particulares em que estudei. da música.) Meu estranhamento durou uns dois segundos. da primeira série ao terceiro colegial.estirados nas poltronas com aquela mistura de arrogância e insegurança típica dos 15 anos. limpar os quartos. Não adotavam aquela postura servil ou agressiva que se espera de quem "sabe o seu lugar". não encontramos 20 negros. Aquele era o time sub-17 ou sub-15. Pareciam 20 estudantes negros do Santa Cruz durante uma viagem de campo –mas aposto que se procurarmos entre todos os alunos do Santa Cruz. quando você pensa que sabe tudo e sabe que não sabe nada ao mesmo tempo. disponha. cortes de cabelo estilosos. O lugar deles era ali. do maternal ao terceiro colegial. Mais do que as roupas. obrigado. O detalhe que fez eu me sentir dentro e fora do Brasil é que os garotos eram todos negros. no terceiro eu vi uma mala esportiva com o escudo do Corinthians e entendi o que estava acontecendo. Aqueles eram os raros eleitos que por meio do futebol. sim. bem vestidos. Eles não estavam intimidados pelo ambiente. senhor. senhor. morenos. econômica e cultural que houvesse acontecido enquanto eu descia do quarto para o térreo.súbita revolução social. de médico bom e dentista bom e lobby de hotel bom e orgulho das próprias conquistas eles vão ficar na borda de algum funil e terão de se adaptar à vida que o país reserva pra quem nasce pobre e preto. Após uma década de esforços. Pela porta dos fundos. Por dois segundos eu vi um Brasil que havia superado a escravidão dos negros e o extermínio dos índios e dado chances iguais para todo mundo. . Era um país bonito. Vão bater na trave e sair pela linha de fundo. de vitórias. porque boa parte daqueles garotos não vai chegar ao futebol profissional. Segundo. não esse país que faz pacto atrás de pacto através dos séculos para manter inalterada a nossa catástrofe. olha o dia vindo aí. você vai almoçar num restaurante. Seu celular sabe pelo GPS e pela lista "Corrida 1" do Spotify que você gosta de correr no Minhocão aos sábados e por isso quando você dá o Google "Minhocão+horário+pedestres" . A ideia é correr no fim da tarde. Você já deu um Google nos horários em que o Minhocão abre pra pedestres. passou o dia. R$ 79. * Sábado.em que os algoritmos te conhecerão mais do que você mesmo.Mercury Caraguá.99 09/04/2017 A tecnologia avança tão rápido que não está longe o dia -opa. é hoje o dia. Quando toca o telefone e é o Douglas. Ele te lembrará que vai passar Linense X São Paulo às 15h. a música do "Rocky". Bastará você se aproximar do Lira. ele sabe que você não quer encontrar o Douglas e sabe que você vai dizer que terá que levar os filhos numa festa infantil. não só se desvencilhando de um compromisso como ainda pagando de bom pai). "Marguerita's Massagem Tailandesa". pra que o celular dispare "Xanadu Sauna Mista".ele começa a te oferecer propagandas de tênis e shorts e isotônicos. * Você. seu celular põe pra tocar "Dente mole". Você hesita. amigo" e o seu celular sugere "Eye of the Tiger". mas o seu celular ouviu a sua conversa com a sua mulher. responde ao garçom "Um Guaraná Zero. que mal tem? Seu algoritmo. porém. sugerirá uma linguiça curada de Catanduva pra acompanhar. "Gatorade" e "Rivotril". O algoritmo também. poxa. Você. pra download. O garçom pergunta "Um chopinho pra acompanhar?". * Você ficou de encontrar o Douglas. uma hora mais tarde. (O seu celular sabia que essa seria a sua desculpa antes que você confessasse a desculpa à sua mulher. óleo de coco. portanto. te conhece melhor do que você e sabe que mal tem. Você pensa. Ele sabe que depois do primeiro chope você vai tomar o segundo e os dois chopes te levarão a desistir da corrida. do Tiquequê e solta uma gravação antiga da sua filha falando "Papai! Papai! O Enzo fez cocô no pula-pula!". Você pede um peito de frango com batata doce e salada verde (seu celular te anuncia promoção de chia. sua mulher e seus filhos estão descendo a Tamoios. no entanto. um chopinho só. indicará que a cerveja Júpiter 10 Lúpulos tá em promoção no bar Lira. "whey protein"). na manhã seguinte. depois "Engov" e. o carro . porque essa é a desculpa canalha que você sempre dá. Essas são as primeiras férias em família. é enorme. Se não fosse essa babá eletrônica supersônica. Rasparam as contas bancárias. o guia "Fim de Semana Com As Crianças: 100 Programas Pro Pai Divorciado e Feliz". Valeu gastar tanto na casa. "Você não esqueceu a babá eletrônica. não ia rolar. . ainda bem que a irmã dela trouxe a babá eletrônica dos EUA. A preparação levou meses. A sua mulher diz que a casa alugada no Airbnb é incrível. o quarto de vocês é bem longe do quarto das crianças. Um segundo de silêncio e ela pergunta.99. Seu celular te sugere o Ibis Taubaté. R$ 79. Dra. na Amazon.99.cheio pra passar 30 dias na praia. Rose Boucinhas. o Mercury Caraguá. Valeu gastar tanto na babá eletrônica. né?". aterrorizada. advocacia familiar e já compra. R$ 89. Ohhhmmmm. Mantra. . pedindo desculpas à família. Por isso já vou avisando de antemão. é assim hoje. foi assim na adolescência. Maharishi. com os filhos e a cerveja artesanal. aos amigos e aos leitores: é bem provável que eu fique meio monotemático nos próximos meses. eu sei como eu vou ficar. depois que começar a fazer meditação transcendental. Sim. Foi assim na infância. com Campos de Carvalho e Monty Python. eu sei como eu sou. com o aeromodelismo e a coleção de selos.Jerry Seinfeld me convenceu a fazer meditação 16/04/2017 Eu me conheço. meditação transcendental. um jeito de plantar bananeira com as pernas cruzadas por trás do pescoço que preencha o vazio que nos acompanha desde que decidimos jogar Zeus. sou expulso de piquenique por caçoar de astrologia e aceito como únicas provas da existência de algo próximo ao esoterismo as reações causadas por certos versos do Fernando Pessoa no sistema límbico e no córtex frontal. por vinte minutos. como se eu estivesse sob o efeito de um tarja preta. porém. Mais ainda: eu li "Orientalismo". acabará assim que eu começar a fazer meditação transcendental e aprender a derreter o ego e o superego e o id e o titereiro e o títere e as cordas e as contas e os trabalhos e o colesterol e a atualização do IOS e todos os outros infinitos Es. eu sei como o Ocidente olha para o Oriente há séculos em busca de algum trololó espiritual que resolva nosso murundu existencial. um barulhinho. é sintoma desse desequilíbrio. O Antonio de abril. umas palavras. ainda é bem desequilibrado. A supradescrita inhaca. Dionísio. Apolo. imagina eu que sou ateu. O Antonio de maio.A porra toda. duas vezes por dia. . compro briga em jantar por criticar homeopatia. Sófocles. como se fosse o titereiro e o títere ao mesmo tempo e a consciência da ligação dos dedos de um (do outro?) com os membros do outro (do um?) me (nos) fizesse me (nos) enrolar todo (todos?) nas cordinhas. sem dúvida evitará esses desequilíbrios. Ésquilo e Aristófanes no lixo e substituí-los por "Quem mexeu no meu queijo". no entanto. Desculpe pelo "porra". inclusive. Se você acha estranho meditação transcendental. Eu li "Carma- Cola". Ou de ambos. Referir-se a si mesmo na terceira pessoa. do Edward Said. Ou de um Black Label. da Gita Mehta. como se eu (ele?) não vivesse dentro de mim (de si?). como se eu (ele?) me (se?) visse de fora. o Antonio que fará meditação transcendental. mas eu me conheço. feliz e pronto para voltar a se azucrinar até a próxima meditação. Não requer fé nem incenso. Ou para tentar convencer todos a sua volta a experimentar. mas um sujeito de jeans e Nike Air com um corte de cabelo igual ao do Tupãzinho ("o talismã da Fiel"). não foi um senhor careca e sorridente enrolado numa manta alaranjada. aliás. eu sei como eu sou e tenho quase certeza de que essa calma vai me deixar eufórico. depois senta numa poltrona e atinge um estado de relaxamento mais intenso do que o do sono. especialista em proporcionar aquele tipo de transe convulsivo mais conhecido como gargalhada: Jerry Seinfeld.Acontece que meditação não é religião. aprende uns exercícios. . Peço desculpas de antemão caso eu fique um pouco monotemático. concentrado. Quem me convenceu a experimentar a meditação. Eu vi o Seinfeld falando de meditação no YouTube: você vai num curso. Vinte minutos mais tarde você retorna calmo. Não é sobrenatural. é possível visitar o outono. num lugar incrível ao qual eu nunca tinha vindo: chama-se primavera. depois de vários meses trancadas em casa as pessoas saem pra rua. vim passar um mês fora do Brasil. tanto para cima quanto para baixo. ao norte com o verão.Primavera. NY 23/04/2017 Para dar um curso. a leste com o East River e a oeste com o rio Hudson. "a grama dos parques fica verdinha. "Você vai adorar vir pra cá em abril". há gente dia e noite correndo e andando de bicicleta . havia dito a professora que me contratou. Faz fronteira ao sul com o inverno. há flores por todo lado. Viajando por oito meses. com a esculhambação meteorológica aí. Dá pra usar cachecol em janeiro. Ao chegar. Há. Por duas semanas. saímos do nosso apartamento e demos de cara com duas dúzias de tulipas amarelas. incutisse nas pessoas uma espécie de senso natural de justiça. Não sei se estou mais impressionado com os efeitos da primavera ou com essa experiência raríssima na vida de um brasileiro: a mudança de estação. mas bastou andarmos pela rua para perceber que era geral: ou o zelador era o The Flash. virão o sol e as flores. o aroma do lúpulo nos copos de cerveja atravessa o rio Hudson e chega até Nova Jersey. mesmo eles são conceitos tão frágeis quanto a meritocracia e a proibição do caixa dois. os brunchs vão até as três da tarde com mimosas e cervejas artesanais transbordando de lúpulo fresco". chuva e um vento que vinha direto do Alasca. tristes retângulos de terra de onde brotavam apenas esporádicas bitucas de cigarro. Desde então. depois do inverno. as pessoas correm e pedalam na beira do rio.na beira do rio. Dá pra ir à praia em julho. Fui recebido por cinco graus Celsius. capaz de cuidar de todos os canteiros de Manhattan antes do meio dia ou havíamos realmente chegado à primavera. vivi entre árvores secas e canteiros áridos. no máximo. Dá pra chegar a CEO apenas porque se é parente do dono e a maior empreiteira do país tinha um departamento inteiro só pra "patrocinar" campanhas políticas. no entanto. na jardineira do prédio. Nesta terça-feira. verão e inverno. Como vocês bem sabem. fica difícil não cair no mais raso determinismo geográfico. achei que tivesse sido enganado. Como se a certeza de que todo ano. mas convenhamos. Comparando o rigor das estações do ano aqui. enquanto entre nós uma semana . os brunchs vão até as três da tarde. no Brasil não há estações do ano. nos fins de semana os restaurantes botam mesas nas calçadas. Achei que o zelador tivesse comprado as flores e plantado naquela manhã. a cerveja. a sensação térmica está mais pra outono.fria em janeiro e um dia de calor em julho reforçassem a tese de que no nosso país nada funciona: se nem o calendário respeita as regras. entre orquídeas e tulipas. à beira do rio. . há uns anos. por que nós haveríamos de respeitá-las? Expus minha hipótese a um americano e ele disse que aceitaria de bom grado mais bagunça se pudesse se livrar dos quatro meses de inverno. mas não queria emburacar no pessimismo. pedimos mais dois copos desta bela filha da primavera. "Felizes são vocês que têm 12 meses de primavera". Pensei em explicar que. Apenas sorri. concordei e. a flor engarrafada. "100% . "Esse macarrão oriental com frutos do mar pode vir sem camarão?". Vou ver. "Não sei. peço pra tirar". Não pode cozinhar nenhum crustáceo na panela que for cozinhar meus frutos do mar".Sou alérgico à fase séria do Woody Allen 30/04/2017 Num restaurante em Nova York. não! Tem que ser sem traços de crustáceo. "De arroz". "E o macarrão é do que?". "Caranguejo é crustáceo?". "Pode deixar. pode sim". "Pode. senhor". Tem algum outro crustáceo no macarrão?". Tem caranguejo no macarrão?". "É. "Tirar. ouço o cara da mesa ao lado fazer o pedido. Se tiver. "É que eu sou alérgico a crustáceo. "100% gluten-free?". "Tem esse novo do Paolo Sorrentino".. "Parece que é comédia". que a gente ainda ia ver o dia em que a medicina decretaria: "Comer atrapalha a digestão". 'Let it be'. no caixa de uma mostra de cinema.. "Fala mais sobre isso". "Parece ou é? Porque quando eu vi 'Interiores' fiquei todo emperebado. Lembrei que uns 15 anos atrás. sabiamente. "Oi. "Aham". "Orgânico". esse 'Crimes e Pecados'. meu amigo Chico comentou.. Sinto um Paolo Sorrentino no ar. aquela morrinha de Fellini embolorado. aquela catinga de propaganda de Campari aspirando a David . "carne" virou "proteína" e "pão" virou "carboidrato". "Tá certo. eu não vi o filme. fiquei rindo internamente daquele pobre homem engasgado no Zeitgeist. contrito. Tenho intolerância a Paolo Sorrentino. "Tsc. me dei conta de que também sou cheio de alergias. E essas almôndegas? Tem GMO no óleo da fritura?". quando "comida" virou "alimentação". é comédia ou é daquela fase séria?". triturado pelos cascos das lhamas criadas totalmente soltas e alimentadas só com chia selvagem do nascimento à morte. senhor". E o arroz é orgânico?". senhor". Por uns momentos. "Arroz orgânico andino cultivado pelos índios aimará. quando são então veladas pelos antigos rituais quíchua nas cavernas geladas de Chichuaputxan. "Comédia. ao som de flautinhas de bambu tocando "Let it be". Melhor assistir outro filme". "É que eu sou alérgico à fase séria do Woody Allen". "Ah. "Paolo Sorrentino é aquele do 'A Grande Beleza'?". "Senhor. mas tá escrito aí que é comédia". É igual alergia a pólen. "Deus me livre. Mas então pensei um pouquinho em mim e. mas o pessoal escreve qualquer coisa. por favor.gluten-free". "É 100% gluten- free. "Andino". "Local?". vê Woody Allen e já tasca 'comédia'. Não sei. "Eu não como glúten faz seis anos". do Woody Allen. Pude ver a cena perfeitamente. Fui insistir com 'Setembro' e fechou a glote".. Sorrentino. "Genial!". né? Antonioni e pimentão. também. Será que não dá pra pedir o 'Apocalipse Now'. O óleo da pipoca é 100% sem GMO?" . "Ah. Antonioni é bom. Tem aquela digressão de 40 minutos sobre a presença francesa na Indochina.. sempre fico na dúvida. do Coppola". "Senhor. Pipoca?". tudo muito chato..Lynch..". "Hm. não. é 40 graus de febre. jamais".. nada a ver com a história. "Tem Ettore Scola. por favor". Ettore Scola. infelizmente nós não fazemos alterações no cardápio". 'Um dia muito especial'. mas no lugar da Indochina.. "É a versão do diretor".. vir esse curta aqui do Buster Keaton?". tudo muito bem filmado. "Entendo". 'Um dia muito especial'. mas é difícil de digerir. "Tem 'Apocalipse Now'. tudo muito bonito. A versão do diretor. "Aqui. "Hmmm. "Antonioni?". na hora. "Lindo! Viva Ettore Scola! Sophia Loren! Mastroianni! Vê um ingresso pro Scola. . Feice? Melhor não tê-lo! Mas se não o temos Como sabê-lo? Que de consulta Quanto silêncio Quanto o queremos! * . atualizações 07/05/2017 Feice..Poesia. * João dava like em Teresa que dava super-like em Raimundo que jogava charme em Maria que dava match com Joaquim que hackeava os nudes da Lili que não dava like em ninguém. Teresa entrou num detox digital. * Lutar com comments é a luta mais vã Entanto lutamos mal rompe a manhã. Pinto Fernandes . João foi para uma praia sem internet. Joaquim foi preso pela Delegacia de Repressão aos Crimes Cibernéticos e Lili casou com J.No meio do caminho tinha um post tinha um post no meio do caminho tinha um post no meio do caminho tinha um post Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha um post tinha um post no meio do caminho no meio do caminho tinha um post. Raimundo ficou sem bateria. Maria saiu do Tinder. Diga trinta e três. . Escarra nesse like que corteja! * Facebook. entre feras. é a véspera do escárnio. Trinta e três. A vida inteira que podia ter sido e não foi.Trinta e três. Trinta e três. Toma o iPhone. posta..... Faz selfie com enfado! O like. Respire . Posta. Trolla esse mouse vil que ora te afaga. Twitter. Scrolla. Somente a Marinão –essa paquera– Foi tua seguidora inseparável! Acostuma-te à infâmia que te espera! O Homem. nesta rede miserável. que. Mouse que afaga é o mesmo que trolleja. posta. Instagram e suores noturnos... sente inevitável Necessidade de também ser fera. Se a alguém causa inda riso a tua piada. amigo.que não tinha entrado no Stories. Mandou chamar o médico: . * Vês! Ninguém repercutiu o formidável Tuíte com tua última zoeira. .. .. doutor.....Passei a vida no cel..... andorinha. não é possível tentar um Google+? .... Andorinha..... minha canção é mais triste: ..Não..... A única coisa a fazer é baixar um tango argentino * Andorinha lá fora está dizendo: ...... .. no cel.. O senhor tem haters em toda a esquerda e na direita é mega- queimado......Passei o dia no céu. no céu..........Então.. AC. claro. Lá pelos meus quatro . eu só fui descobrir muito depois. os óculos e o paletó justificavam o epíteto. Antonio Candido era professor na acepção mais nobre da palavra: alguém que acreditava no conhecimento e no compartilhamento do conhecimento como forma de construir um mundo mais justo. nos referíamos ao senhor da casa 11 como "o Professor". O bigode. no Itaim. embora a simpatia. o humor e a generosidade quebrassem qualquer ar professoral no mau sentido (de pompa ou pedantismo) que "professoral" possa ter. Isso. DC 14/05/2017 Na vila onde eu nasci e vivi até os 13 anos. no sul da Bahia. Antonio Candido captou com rigor etnográfico e delicadeza literária esse momento de ruptura. Durante as férias.anos eu só sabia que "o Professor" tinha duas netas da minha idade. mas um garoto da minha idade. num limbo cultural. Antonio Candido trabalhava por um país onde houvesse a dupla riqueza. Festa de Reis. Era uma pobreza completamente diferente da pobreza urbana. pegávamos ônibus da Viação São Geraldo e. Deixava para trás o mundo explicado pelos orixás e não chegava jamais a alcançar o mundo explicado pela tabela periódica. em São Paulo. lá. mas rico culturalmente. padaria. Em "Os Parceiros do Rio Bonito". estudo sobre os caipiras paulistas na metade do século 20.. Coco. Lembro da primeira vez que fui pra uma dessas cidadezinhas. uma canoa. sabia construir uma casa. Na . enquanto eu. se esfacela para dar lugar à dupla pobreza. não sabia sequer pendurar um quadro). descíamos em alguma vila de pescadores perdida no Nordeste. era pobre de tudo. Iemanjá. na qual eu dava a partida dia sim. Ogum. não tinha hospital. Era pobre. da zona oeste. no colo do meu pai. não só no que se refere à realidade concreta (construíam o mundo em que viviam. nem orelhão. quando ele viajava com a dona Gilda. e uma Brasília bordô. aos 15. como simbólica: compartilhavam da caudalosa cultura popular brasileira. sem GPS (coisa que nem existia). Ficava num purgatório econômico. xote. o momento em que um universo pobre materialmente. baião. ia pro alto mar numa baleeira minúscula. dia não. exu. Já o imigrante pobre. na adolescência (já morando longe do "Professor"). subir em coqueiro. com quem eu brincava de esconde-esconde. 30 e tantas horas depois.. Aquelas pessoas eram cultas. eu e um bando de amigos de classe média. passava dias sem ver terra firme e voltava com o barco carregado de peixes. a euforia da recreação. a euforia da recreação. o prazer dos supérfluos". Pouco tempo atrás. os bens fundamentais para a existência: "Não são apenas os que se reputam essenciais à estrita sobrevivência do indivíduo. Sob este ponto de vista.última página de "Os Parceiros.".. são incompressíveis a participação na beleza. parece que a cada dia nos afastamos mais. Não deveria. o prazer dos supérfluos".. fala dos "bens incompressíveis". mas todos aqueles que permitem ao homem tornar-se verdadeiramente humano. "o Professor" andava triste. Que honra ter dado a partida naquela Brasília. Agora. Me disseram que. A obra que deixou é uma das escadas que podem nos ajudar a sair do buraco. parecia que estávamos caminhando naquela direção. ultimamente. . uma obra que joga luz sobre o nosso passado e aumenta a exigência do que temos que esperar do futuro: "A participação na beleza. apagando o fantasma do 7 x 1. Morremos todos . Neymar se irrita com a distância da barreira (alfandegária) dos Estados Unidos. Tite convoca Thiago Silva para o Ministério da Defesa.Cenários 21/05/2017 1. Caindo a presidente assume o vice. O Brasil cresce 7% em um ano. perde a cabeça e dá um carrinho por trás em Mike Pence –presidente dos EUA após o surgimento das gravações entre Joesley Batista e Trump envolvendo segredos militares e t-bones. caindo o presidente da Câmara assume Adenor Leonardo Bachi. Neymar para a Fazenda. caindo o vice assume o presidente da Câmara. o Tite. Numa reunião da ONU. Paulinho para a Casa Civil. caindo o vice assume o presidente da Câmara. Caindo a presidente assume o vice. a morte do Senna. é um "Feitiço do Tempo" infinito. O Brasil é repintado do Oiapoque ao Chuí. liberou áudios em que Trump entrega a Joesley Batista segredos militares americanos em troca de t-bones da JBS. eleições indiretas são realizadas. superinflação. os grafites são cobertos por desenhos do Romero Britto. a Câmara rejeita eleições diretas. caindo o vice assume o presidente da Câmara.bombardeados por Tomahawks. 4. até voltar pros anos 80 mais uma vez. no meio da manifestação corre a notícia de que o ex-diretor do FBI. o voto é secreto e qualquer brasileiro acima de 35 anos pode ser eleito. nossa foto no RG vira desenho do Romero Britto. o Itamar. todo coloridinho. suspense total. o povo vai pras ruas exigir eleições diretas. feito uma caneca do Romero Britto. João Doria (tatuado por Romero Britto) é cumprimentado por Romero Britto antes de embarcar para os EUA onde tentará vender. Caindo a presidente assume o vice. Sarney assume. de calça semi-baggy. a obra continental de Romero Britto. Henfil e doutor Sócrates comandam a onda amarela. na primeira página da Folha (ilustração do Romero Britto). "fecha na Prochaska". Caindo a presidente assume o vice. sim. tocando a música do "Ghost". o "Jornal Nacional" de 1989. Tancredo morre. estamos condenados a viver tudo de novo até cair a Dilma. em quem será que os excelentíssimos deputados votaram? O novo presidente do Brasil é Romero Britto. o chão é Romero Britto. James Comey. num leilão. "Xou da Xuxa". Tancredo Neves é eleito indiretamente. o horror em loop. até cair o Temer. . caindo o vice assume o presidente da Câmara. a Fafá de Belém canta o Hino Nacional. 2. 3. voltamos para 1985. a música do "Ghost" nos bailinhos. Osmar Santos. o povo vai pras ruas exigir eleições diretas. o Collor. Belinas pelas ruas. calça semi-baggy. araras-azuis retomam os céus. marias-sem-vergonha brotam nas rachaduras do asfalto às margens plácidas do Ipiranga. caindo o vice começa uma guerra civil entre os que defendem que o Temer chegou ao poder por culpa da esquerda. fazendo o impeachment. elegendo a Dilma. Trump mata Joesley Batista. a selva invade as cidades."Tem que manter isso. Trump mata James Comey. viu?". cobras-coral se confundem com as ciclovias. e os que defendem que o Temer chegou ao poder por culpa da direita. diz Trump nas gravações. ao ser informado que Joesley está "de bem" com o cozinheiro da Casa Branca. Caindo a presidente assume o vice. bichos-preguiça bocejam pelas marginais. Morremos todos. . micos- leões-dourados voltam a saltar pelas árvores. morremos todos bombardeados por Tomahawks. 5. Vamos dar a cada cidadão. classe. pelo menos). um presidente. . Ou começamos a pensar fora da caixinha (fora da caixinha dois.Como sair da crise 28/05/2017 Agora que o Brasil chegou ao ralo do porão do terceiro subsolo do quinto alçapão do fundo do poço. senador ou vereador têm para delinquir. as mesmas chances que um deputado. gênero ou religião. Minha sugestão: socializemos a lambança. independentemente da cor. ou o país acaba antes da Copa da Rússia –o que seria uma pena diante do timaço que o Tite vem montando. ficou claro que lutar contra a corrupção é como tentar enxugar o Atlântico com um Perfex. Joesley Batista contou ter pago R$ 600 milhões em propinas para 1.829 políticos eleitos. O Brasil ficou chocado: quanta gente! Também me choquei: só isso?! E os outros 199.998.71 brasileiros para quem a JBS não deu um vintém ou sequer um acém? Se dividíssemos R$ 600 milhões entre todos, cada compatriota meteria R$ 3,00 no bolso. São duas Skols. Já dá uma brisa. Mas não: nesse país elitista, a bufunfa fica restrita a uma pequena casta. Basta! O político é melhor do que nós? Não: o cidadão de bem, quando tem uma chance, com os parcos meios de que dispõe, também consegue dar a sua delinquida. Chega na fila do show e fala pra namorada: espera aqui que eu vou lá na frente ver se conheço alguém. O que é isso senão uma minifraude na concorrência? Ingressos comprados com carteirinha de estudante falsa? Estelionato. A casa de shows provavelmente comprou os alvarás: #tamojunto! Na volta da balada o cidadão é parado no bafômetro, dá R$ 100 pro policial e se não atropelar ninguém a caminho de casa, deita na cama, rouba o wi-fi do vizinho e dá share nuns posts indignados contra a corrupção. Compramos carta de motorista, damos o gato na Net, pirateamos música, filme e notícia de jornal. O que nos difere daqueles sacripantas de Brasília? Uma malinha com R$ 500 mil no estacionamento do shopping, claro. Chega de injustiça! Oswald de Andrade que me desculpe, mas não é a antropofagia o que nos une, é a corrupção. Une o rico e o pobre; o flanelinha que cobra pela vaga, privatizando a sarjeta, e a madame que para em fila dupla, privatizando o asfalto. O miserável que constrói no morro e o grileiro que abocanha a Amazônia. A diferença é que o miserável do morro é assassinado pela polícia, enquanto a grilagem da Amazônia é legalizada pelo Congresso. Vamos equalizar a sacanagem?! Passar o país a limpo? Mais lógico rolarmos na lama, num glorioso Carnaval: "Da lama ao caos, do caos à lama", uniremos Chico Science e Paulo Maluf, Lampião e Eduardo Cunha e faremos brotar a flor de uma nova civilização onde todos terão igualdade de condições para o ilícito. Só assim construiremos um país justo. Construiremos, claro, com esses empreiteiros que estão na cadeia, hiperfaturando a obra e criando um majestoso chafariz de propinas, um jorro que respingará sobre todos, não só sobre alguns, fazendo girar a economia, gerando receitas pro Estado, que investirá novamente na obra e assim por diante, ad infinitum. Eis aqui a minha imodesta contribuição para o futuro do Brasil, mistura das teorias de John Maynard Keynes e de Joesley Batista Safadão: o keynesleyianismo. Não, não precisam me agradecer. Prefiro R$ 5 milhões em notas não marcadas, não numeradas e escondidas sob peças de bife ancho –Swift Black Angus, se não for pedir muito. Quantos amigos seus estão na cracolândia? 04/06/2017 Carl Hart é psicólogo, psiquiatra e foi o primeiro negro a alcançar o posto de professor titular de neurociências na Universidade de Columbia, em Nova York. Em 2015, Hart veio ao Brasil divulgar seus estudos sobre drogas e vício. Numa entrevista ao Drauzio Varella, falou sobre sua pesquisa com ratos e macacos, em laboratório. Quando se coloca um animal sozinho numa jaula, capaz de acionar uma alavanca e receber uma dose de cocaína ou meta-anfetamina na veia, o bicho acionará a alavanca até morrer. Quando, porém, há mais estímulos na jaula, além da alavanca, como um outro animal sexualmente ativo, uma rodinha (no caso dos ratos) ou doces, as cobaias sobrevivem. Extrapolando seus insights para humanos, o que Hart prega é que não adianta combater o vício sem apresentar alternativas à droga. A cracolândia, ele insistiu em entrevistas e palestras, por aqui, não pode ser pensada pela perspectiva do vício sem ser pensada antes pela perspectiva da miséria. Imagine que você é um mendigo viciado em crack. Seus pertences são uma calça esfarrapada, uma camiseta imunda, um par de Havaianas, um isqueiro. Você se lembra vagamente de ter tido metade de um pente, num passado não muito distante, mas não sabe onde foi parar. Sua existência se resume a pedir dinheiro no farol e a fumar crack. Nos minutos que duram a viagem, você se esquece de tudo. O resto do tempo é o inferno. Um belo dia você decide parar com o crack. Você luta, faz um esforço sobre-humano e depois de meses está curado. Você deita sob uma marquise na rua Helvétia, apoia a cabeça num paralelepípedo, dá um gole numa poça d'água e pensa: agora eu sou um mendigo saudável! Pensa no futuro. Posso arrumar um trapo para limpar os vidros dos carros, no farol. Quem sabe, vender Suflair? Se me esforçar bastante, consigo um carrinho e um cachorro, virarei catador. alvez você seja uma pessoa mais solar do que eu, mas devo admitir que, se estivesse naquela situação, escolheria o crack. Ficaria na minha jaula acionando a alavanca até morrer. É verdade que muitas das pessoas que estão na cracolândia chegaram à mendicância por causa da droga, mas não vieram de muito longe. A maioria, segundo censo da prefeitura, não completou o ensino fundamental. São pobres, negros e pardos. Quando aparece alguém de fora desse estrato é um espanto, como foi a suspeita de que o irmão da Suzane Richthofen era viciado. Claro que parte da comoção com a notícia tem a ver com a tragédia daquele garoto. Mas uma parte do susto é: meu Deus, um loiro na cracolândia! Um descendente de alemães! Que estudou em escola particular! Quantas pessoas do seu círculo consomem álcool regularmente? E maconha? Aposto que você conhece pessoas profissionalmente ativas e bem sucedidas que consomem cocaína. E crack? Quantos viciados em crack há na sua família, na sua turma de escola, dormindo no chão, na praça Princesa Isabel? Princesa Isabel, veja só. Em 2015, Carl Hart, negro, com dreads, foi barrado na entrada de um hotel, em São Paulo. Questionado a respeito, disse não entender por que as pessoas estavam tão chocadas por ele ter sido barrado no hotel, mas não se chocavam com o fato de não haver um só negro no público de suas palestras. Infelizmente, entre nós, o choque mais comum diante da desigualdade é a tropa. Hoje não tem polvo 11/06/2017 Hoje pensei num polvo, sei lá por que -e alguém lá sabe por que pensa o que pensa? Polvo, pólvora, pombo, pampa, prímula, Príapo, pontífices, Paranapiacaba- pronto, paremos nos pensamentos principiados em P para não penitenciarmos profundamente os prezados patrícios. Enfim, pensei num polvo e me perguntei: será que o polvo tem, como eu, dias bons, dias ruins? Sei que o polvo não tem um cérebro igual ao nosso, desconhece a linguagem, mas alguma luzinha de consciência deve haver. Polvo tem olhos, tem medo e quando sente medo solta na água um jato de tinta pra confundir o predador, como uma bomba de fumaça num velho filme de ninjas. Será que um polvo que passa a tarde inteira tentando pegar uns peixes suculentos e termina, lá pelas seis e meia, comendo só um sirizinho cascudo, volta pra toca frustrado? Será que ele pensa -ou sente, de alguma forma- "poxa, hoje deu tudo errado"-, depois dorme encolhido, enrolado em seus tentáculos? Pensei no polvo e fiquei contente: já tenho tema pra crônica. Mas aí eu pensei: cara, diante do que está acontecendo no Brasil, falar de pensamento de polvo? Enquanto escrevo, o TSE vota se cassa ou não a chapa Dilma-Temer. Passei a semana assistindo a pessoas muito cultas e muito bem pagas (por nós) debaterem se é necessário punir um crime diante de provas irrefutáveis ou se é melhor lançar um jato de tinta sobre a lei para "manter a estabilidade". Sugestão de slogan para nosso país: "Brasil, há 517 anos mantendo a estabilidade!". O slogan vale mesmo se -improvável- cassarem a chapa, pois logo arranjaremos outro criminoso para manter a estabilidade. Por esses dias, na Paraíba, cinco adolescentes infratores foram queimados vivos sob a tutela do Estado. Repito. Queimados. Vivos. Houve comoção nacional -pelas vítimas inglesas do terrorismo islâmico. No Twitter, um cidadão cuja alcunha é "A favor da lei" me mandou parar de tratar bandidos como coitadinhos. Depois, acho que se arrependeu e disse ser contra queimar vivo, deveriam é ser enforcados em praça pública. Toda semana eu tento escrever sobre assuntos como esse do polvo. Assuntos que parecem bobagem, mas quando vamos ver de perto, não são. Sugestão de slogan a ser pintado na fachada da sede do inexistente Sindicato dos Cronistas: "Não existe bobagem debaixo do sol". Veja, nosso DNA é muito parecido com o DNA do polvo. E da samambaia. E do quiabo. DNA, RNA, proteínas, enzimas: toda vida sai da mesma caixinha de Lego. Richard Dawkins e Stephen Jay Gould são cientistas que estudaram essas coisas e escreveram livros explicando-as de forma clara e bela para leigos como eu. O polvo não leu porque é polvo. Os sete adolescentes assassinados (cinco foram queimados vivos, dois mortos a cacetadas) provavelmente nunca leram porque foram a escolas ruins e eram pobres na periferia na Paraíba, na periferia do Brasil, na periferia do mundo. Dos duzentos milhões de brasileiros: quantos tiveram ou terão a oportunidade de encarar o milagre da dupla hélice, Pitágoras, Platão, Drummond? Bem poucos. Essa é a nossa estabilidade. Quinhentos e dezessete anos levando milhões do berço ao túmulo sem lhes dar a mínima chance de olhar em volta e refletir minimamente sobre o que estamos fazendo por aqui -o que é, convenhamos, o mínimo que deveríamos poder fazer por aqui. E o polvo? Esquece. Hoje não tem polvo. Soluções radicais 18/06/2017 Depois de muito refletir sobre a pindaíba em que nos encontramos, ou melhor, nos perdemos, cheguei a duas propostas para o Brasil. O leitor culto, conhecedor da nossa história, pode achar as propostas um tanto, digamos, heterodoxas, mas situações radicais exigem soluções radicais -não foi nadando cachorrinho que Moisés atravessou o Mar Vermelho; não será de jangada que cruzaremos o mar de lama. Primeira proposta: e se tivéssemos um conjunto de leis que fosse válido para todos, ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, senadores e auxiliares de almoxarifado? Eu sei que soa absurdo, completamente contrário aos nossos costumes e ao funcionamento das nossas instituições. "Seria o caos!", dirão alguns. Defenderão que gente diferenciada merece tratamento diferenciado e de fato temos 517 anos de jurisprudência, das senzalas aos cercadinhos VIP, do Borba Gato ao Gilmar Mendes, para comprová-lo. Mas teve um pessoal lá na França, em torno do século 18, que pensou de maneira diferente. Talvez valha a pena, sei lá, dar uma olhada -mesmo a França sendo esse país estranho que elege um presidente casado com uma mulher, vejam só, mais velha. Segunda proposta: e se tivéssemos educação pública de qualidade para todos, ricos e pobres, brancos e negros, meninos e meninas, filhos de senadores e de auxiliares de almoxarifado? Imagina todos aprendendo lado a lado a ler e a escrever, a somar e a subtrair, a desvendar o mistério das mitocôndrias e a contar as sílabas poéticas de "As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres./ A tarde talvez fosse azul,/não houvesse tantos desejos."? Eu sei que soa absurdo, completamente contrário aos nossos costumes e ao funcionamento das nossas instituições: o filho do auxiliar de almoxarifado vai ter as mesmas chances do filho do empresário que gera empregos e corre riscos? (Que risco corre o auxiliar de almoxarifado além de ser demitido e virar mendigo e acabar no crack e morrer de inanição?). Cadê a meritocracia, gente? Educação universal de qualidade é uma proposta bem doida mesmo, concordo, mas alguns países como Estados Unidos e Japão e Coreia do Sul e a Europa inteira, pelo que eu ouvi por aí, aparentemente conseguiram bons resultados com essa ousadia. Talvez valha a pena dar uma olhada, ainda que muitos destes países tenham legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto, a maconha e a velocidade máxima permitida em muitas de suas cidades não chegue a 50 km/h. Como eu já disse, não são soluções simples. Teremos que fazer enormes sacrifícios, abandonar direitos seculares adquiridos com muita luta, chicote, pau de arara, bala e gás lacrimogêneo. Teremos que abrir mão de cela especial. De alvará comprado. Da carta de motorista comprada. De carteirinha de estudante falsa. De furar fila. É, não sei. Escrevendo o último parágrafo, fiquei na dúvida. Talvez o Brasil ainda não esteja preparado para uma revolução tão profunda. Talvez seja melhor continuar na trilha proposta pelos grandes teóricos da pacificação, Romero Jucá e Sérgio Machado, "botar o Michel, num grande acordo nacional", "com o Supremo, com tudo", pra "estancar essa sangria" e chegar "do outro lado (sic) da margem". Ali seguiremos, ali onde insistimos em nos colocar, desde sempre, no concerto da civilização: à margem. Em 60% do tempo.Em 60% do tempo fico ocupado com pensamentos inúteis e aleatórios 25/06/2017 Em 40% do tempo minha cabeça me deixa trabalhar. fazer essas coisas todas que a gente faz com a cabeça da gente. vinda dos cânions mais profundos do esquecimento. Por exemplo: estou aqui a escrever e uma voz interna. no entanto. ler livros. cantarola um slogan . conversar. eu estou ocupado com pensamentos inúteis e aleatórios que penetram a consciência com a mesma cerimônia do Kramer invadindo o apartamento do Jerry a cada episódio de "Seinfeld". no PowerPoint. tanam.. Posso pagar pelo celular. compõem boa parte desses spams mentais. tsica. cantarolando internamente "Tanam. 'Existem mil maneiras de preparar Neston: invente a sua!'. repetindo "Existem mil maneiras de preparar Neston: invente a sua!". Posso atravessar um almoço. Ainda se fosse uma virada elaborada. tum tá/ Tum tsi tá. de milhares de horas de estudo. Boa. . tanam. tum tá" e a virada "Taratarataratara" (é a caixa) "Tunutunutunutunu" (tom-tom 1) "Tonotonotonotono" (tom-tom 2) "Purumpurumpurum" (o surdo) "Plish!" (o prato). Às vezes estou numa reunião. tanam. Sou refém da abertura de "Mad Men" desde 2008. o que me sobrou foi um groove batucando nos miolos: "Tum tsi tá.ouvido numa propaganda em 1987: "É na Fábrica de Móveis Brasil. Sou capaz de subir a Teodoro Sampaio inteira. tá?". no cinema. mas é a mais básica. 'Existem mil maneiras de preparar Neston: invente a sua!'. tanam. tsica. mas estou é "Taratarataratara tunutunutunutunu tonotonotonotono purumpurumpurumpurum plish!". Eis aqui.. à pé. Velhos slogans. caso você não tenha percebido. pá tsi tsi tsi papa tumtum papa tumtum pa plish!". com exclusividade. aliás. bateria. tsica. no mictório e parece que estou concentradíssimo no filme. Toquei por alguns anos na adolescência e. Pior que os slogans são as melodias. 'É na Fábrica de Móveis Brasil. tá?'". da salada ao cafezinho. tsica. tanam. Ah. enquanto espero na fila do correio. na bituca a girar no fundo do urinol. tanam. tanam naaaaaaaaaaaaam. (Do "pá tsi tsi" em diante. que se aprende já na segunda aula. prrrrllllllllllllll. adoro ler o código de barras com o celular. é a bateria). 15 segundos do meu riquíssimo monólogo interior entre a Cônego e a Francisco Leitão: "Preciso pagar o condomínio. se pudesse. mas não posso. meus estudos passariam despercebidos. estava. Que banda. como a da abertura do "Mad Men" "pá tsi tsi tsi papa tuntum papa tun" –mas antes de chegar no meio percebo que já perdi a contagem. Um filósofo do século 17 propôs que a mente era uma tábula rasa sobre a qual o conhecimento ia sendo inscrito. mendigando –e repetindo internamente versos de um bobo da corte ouvidos muito tempo antes. pobre. Zé Mané? Não tem banda nenhuma. em vez da teoria da tábula rasa proporia a teoria da bala Juquinha. É mais forte do que eu: "Taratarataratara tunutunutunutunu tonotonotonotono purumpurumpurumpurum plish!". Como no século 17 ninguém saberia o que é uma bala Juquinha. Se eu fosse um filósofo do século 17. Fazendo sexo. quando a minha mente ainda era uma bala Juquinha tão pura e rósea quanto o meu glabro bumbum. na infância. eu morreria no anonimato. . que vou voltar no contratempo e ferrar com a banda. A mente é uma grande bala Juquinha sobre a qual caspas de informação grudam aleatoriamente para nunca mais sair. Você tá na cama. Bem.Há momentos em que até me aventuro por viradas mais criativas. Era assim que eu a fecharia. Eis aí uma bela imagem pra fechar a crônica. Trens de muitas toneladas cruzando . O Mário de quem eu mais gostava. avô Mário. tio Mário e primo Mário". depois do meu pai. bisavô Mário. acho que eles gostam de Mário". pai Mario. era só uma dessas gracinhas que criança decora pra fazer os adultos rirem: "Sei lá.O meu avô 02/07/2017 Bem pequeno aprendi a enumerar a caudalosa linhagem de Mários da minha família: "Tenho tataravô Mário. era o meu avô. Se me perguntavam "Por que tanto Mário?" eu não sabia bem o que responder. Vovô Mário era engenheiro mecânico e nos seus tempos áureos projetava locomotivas. de peito. trazendo amigos. rasteira. era a trave de madeira que meu avô fez e me deu no meu aniversário de oito anos. uma bola embaixo do braço. A trave ficava no fundo da nossa garagem e era leve o suficiente para ser carregada por dois meninos até o meio da rua. de bico. boquiaberto. com vizinhos tocando a campainha de manhã. primos e. de tarde e de noite.o país abarrotados de minério de ferro. soja. jornalista. a que fez de mim o morador mais importante da rua Briaxis. sem que eu entendesse por que. as cantoneiras foram usadas para reforçar todas as juntas. onde vi o funcionário cortar o vidro com um bastãozinho de metal e ouvi. Bem. Ficava ali. delicadeza não era o forte daquele engenheiro nascido antes do crash de 1929. Mais tarde. estava sempre presa em fechamentos e não poucas vezes eu era o último felizardo a sair. invariavelmente. a vila em que morávamos. Sobre o carpete agreste de paralelepípedos travávamos peladas épicas que só não entravam pela madrugada porque as mães apareciam nas portas das casas e. inclementes. A primeira contribuição. Num sábado de manhã fomos juntos a uma vidraçaria na rua Tabapuã. compramos metros de cantoneiras de alumínio. entrei numas de aquário e meu avô não me deixou na mão. Eu tinha oito anos e uma trave de gol. com sua "torreifélica" estrutura. tal plenitude. no cantinho. iam nos convocando para o jantar. toda minha: duvido que a vida me permita experimentar. vovô Mário explicar que na ponta do bastão havia um pedaço de diamante: "o material mais duro da Terra: indestrutível". novamente. além da borda superior do aquário. me achando o Rivelino: no ângulo. que. cimento e carvão foram sua segunda maior contribuição à humanidade. Depois fomos a um serralheiro e. ganhou em . batendo faltas contra um gol vazio. Minha mãe. lá pelos onze. de trivela. uma a uma. mas a esse carinho antigo. cafunés —acho que ele nunca me pegou no colo—. Ontem. na calada da noite. tão bem quanto ele. no entanto. junto com o meu avô"? Aos treze comecei a andar de skate e a rampa só não ficou pronta pois foi embargada por minha mãe —até hoje não a perdoo por. Beatles e Caetano. madeira e cantoneiras de alumínio. usar minhas ferramentas. Não me refiro a beijos. como quem não quer nada: "fui eu que fiz. Meu avô era um sujeito duro que entrou no século 21 sem jamais ter abandonado o 19. Queria poder ter retribuído à altura. Mas quem se importa em ver peixinhos dourados quando se pode contar pros amigos. pensei na sorte que tive. pelo menos. pré baby-boomers. carinho de homem feito com serras. um pai severo e. ao passar pela sala. pregos. martelos. foi capaz de me dar tanto carinho. de forma antidemocrática. ter salvo a minha vida. . abraços. quando a minha lista de "Mários" ficou ligeiramente (imensamente) menor.resistência o que perdeu em visibilidade. ou. alguns ossos. parafusos. mas infelizmente não soube. Ouvi um "excuse me" pouco alvissareiro. (E não me refiro à reforma agrária. feita por Lincoln. em 1862.Na faixa 09/07/2017 Em Nova York. parado no corredor de um supermercado. dei com o sorriso ferino de uma mulher e me dei conta de que estava . apertando os fundilhos de um melão na esperança algo metafísica de intuir seu grau de amadurecimento. com o "Homestead Act"). de olhos semicerrados. comecei a compreender um dos reflexos mais profundos e prosaicos da democracia americana: a divisão equânime do solo. olhei para trás. os carros não param. Há. Ninguém te deixa sair da poltrona. vou enfiando o carrinho vazio na faixa enquanto os carros se aproximam. Ninguém dá passagem. um rígido protocolo não escrito para o uso do espaço público. num bairro rico. cadeira de roda. nas escadas rolantes. os carrinhos atolados de malas e compras do free shop fecham-se uns aos outros como SUVs enfurecidos na hora do rush. Não é falta de estudo. Num vagão de metrô. É assim no supermercado. . Fui pro canto e segui com as compras. Quem pode. você não para bem em frente à porta. indo pegar meus filhos na escola. toda vez que parava para ver um produto. quem não pode. Ando por aí com uma criança de quatro anos e uma de dois num carrinho duplo e. No aeroporto. Eles buzinam e aumentam a velocidade. porém. É preciso saltar no corredor como quem toma um bonde andando. Estou falando de gente rica. Cada um sabe onde e como se colocar para otimizar o fluxo geral. ainda dentro do avião. criança. nas calçadas.impedindo a sua passagem. pode. Nada. Aos poucos. pobres mortais!". a insistência nos "excuse mes" me fez prestar atenção na posição do carrinho e na minha. É assim até com os carrinhos de bebê. achando que a possibilidade de matar crianças (os motoristas não sabem que está vazio) os comoverá. se sacode. Faixa de pedestres. o mala fosse eu. ninguém respeita idoso. mesmo assim. me fazendo recuar. De volta ao Brasil. é um conceito inexistente. nos EUA. por exemplo. talvez. Comecei a desconfiar que. entre nós. Às vezes. Todos se beneficiam desta CET mental. num clima de "estou portando duas crianças sagradas que pairam acima de todas as regras da civilidade: contornem os pequenos budas. pensando: "Que mala". nos restaurantes. me lembrei da diferença. porém. perante a lei. Há. de compreender que estamos todos juntos. amigo. Aqui. antes. por trás daquelas regras não escritas do deslocamento a pé. educação pífia. É tudo a mesma coisa. somos incapazes de firmar um pacto mínimo. todos saímos ganhando. "na faixa" lembra mais uísque na área VIP do que travessia de pedestres. há 517 anos. a acepção geral de que todos são iguais numa cidade e. corrupção generalizada e você reclamando que tá difícil atravessar a rua?!". mortandade nas periferias. No Brasil. A divisão igualitária do espaço público é uma consequência prática da tal "Religião Civil" que Rousseau afirmou ser necessária para que o pacto social vingasse: a crença na ideia de que se cada um abrir mão de um pouco da sua liberdade em nome de um bem maior. mas para esgarçar tem que haver. Não tem. algum tecido. Fala-se muito em "esgarçamento do tecido social". O que temos.Farejo o comentário on-line: "Filas nos hospitais. . é meia dúzia agarrada aos novelos e a patuleia matando e morrendo por uns fiozinhos. logo. um amante gostoso. emprego.Reinventar o Brasil 16/07/2017 Lá pelos 15 anos vi uma entrevista do Darcy Ribeiro que sempre me volta à memória. mas para pedir. Num determinado momento o antropólogo dizia. que as religiões afro-brasileiras tinham uma característica maravilhosa: uma pessoa podia recorrer a elas não para pedir saúde. daquele seu jeito sôfrego –o entusiasmo muito maior do que o fôlego–. Por trás de empolgação com as religiões afro-brasileiras havia a empolgação com o Brasil. com as potencialidades do . uma amante gostosa. ou melhor. essas coisas nobres. por exemplo. lá pro alto do céu. O mais triste da crise atual não é a perda da esperança na política. O "jeitinho" era. por entre as nuvens pretas da ditadura. As pessoas certas seriam eleitas democraticamente e conseguiriam organizar nosso potencial. uniríamos beleza e justiça. a manhã de sol. Não era pequena a contribuição do Brasil à humanidade. que estudava num colégio chamado Oswald de Andrade e lia. Pois chegaria o dia em que essa poesia sairia dos campos e inundaria também as nossas cidades. . os modernistas. são também aquele em que esses mitos estão mais profundamente enraizados). Pelé e Garrincha eram vislumbres. O que a Bíblia havia separado. mas a perda da fé no Brasil. em grande medida. intimidade que o Ocidente havia perdido há milênios. O samba. deglutiríamos as influências externas e devolveríamos uma síntese única e original. a mistura das três raças. mas já era possível enxergar. Quando eu nasci. A pátria é uma ficção que depende de que todos compartilhem de meia dúzia de mitos e ilusões. Um país é feito. próximos à vida. levando o sagrado pra bem longe da gente. traziam de volta a intimidade entre os deuses e os homens. no "país do futuro". teasers da manhã de sol. Os orixás. então. a Bossa Nova. ao cotidiano. (Não à toa. uma virtude. os EUA. Seríamos criativos e eficientes. fazendo com que o país funcionasse como a seleção canarinho. a Tropicália. país mais poderoso do mundo. Pasolini havia dito que os europeus jogavam futebol prosa. à época. Eu. os batuques iriam religar. de fé. a chuva ainda era bruta. do Oswald: "Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português". "Erro de português". com a hegemonia judaico-cristã. os brasileiros jogavam futebol poesia. Nós.Brasil. na periferia do mundo. conhecia aquele entusiasmo com nosso país. Pense em pessoas. paisagens. aliás. Precisamos reinventar o Brasil. A prosa germânica deu de 7 x 1 nos versinhos tronchos a que nosso futebol se reduziu. A casa-grande e a senzala perduram. livros. Somos 200 milhões. Temer ainda é presidente) é a prova de que regredimos para antes de 1922. costumes. objetos. são todos os povos. No que acreditamos? O que temos de bom? O que faz de nós um povo único (como. A mistura das três raças nunca foi até o fim. 129 anos depois da abolição. Nós vivemos aqui. Não cabe todo mundo em Miami ou no Uruguai. precisamos de um discurso – pra já. Tenho certeza de que você encontrará algo para se apegar. Jeitinho virou corrupção. Temos que encontrar. A fala parnasiana do nosso presidente (escrevo na sexta (14). Mais do que um candidato para 2018.A sensação atual é de que a nossa fonte secou. comidas. músicas. . Nossa única opção é arrumar a casa. cada um à sua maneira)? Não é verdade que nada presta. todo mundo morre?' 23/07/2017 Não dá pra dizer que a pergunta me pegou de surpresa. a vida é uma improbabilidade absurda decorrente de fenômenos físicos e químicos aleatórios controlados por nada ou ninguém e a consciência. desde que percebi. meu filho. isso que chamamos de 'eu'. que tinha tão pouca fé em qualquer faixa bônus para além da última diástole quanto coragem para transmitir a má notícia a uma criança. nada mais é do que uma . Temia por este momento desde muito antes de ter filhos. ainda na adolescência. O que eu ia falar quando chegasse a hora? "Veja.'Papai. o Dani. a elaborar um discurso. você.tempestade de descargas elétricas e liquidinhos entre neurônios. Olivia. papai! Eu não quero morrer!". imagina! Só morrem umas pessoas nada a ver. . todo mundo morre?" A pergunta. quando a gente morre desliga-se a chave geral. relaxa e come aí a sua sopa". gentios ou infiéis que a gente nem conhece. a gente só morre quando fica muito. muito. mas muito. Eu. chegou enviesada. porcos e bois das refeições. Toma. Pensei melhor no assunto e resolvi mentir um pouquinho: "Minha filha. resolvi apelar para a verdade: "Sim. prenhe da resposta que a Olivia gostaria de ouvir: "Não. na hora do jantar: "Papai. Não ia rolar. a família. O medo daquele instante. ralando um queijo sobre a sopa de ervilhas. Sem saber como sair da enrascada. mas muito velha!". contudo. "Então a bisa Augusta vai morrer! Ela é muito. só morre muuuuuuito mais velha do que isso". decidi mergulhar de vez: "Não. como sói acontecer. Infelizmente. dois e meio que as sinapses do Daniel vinham nos dando o ar de suas graças e mesmo assim fui pego absolutamente desprevenido. além dos peixes. muito velho". os amigos e todo o Grupo 2 e 3 da escola vamos viver pra sempre. Já que eu estava com a ficção pelas canelas. lê aqui 'A Origem das Espécies' e 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'. fecham-se as comportas. não me levou a pensar numa estratégia." Não. como você há de ter percebido. a gastar cinco minutos numa das 20 visitas ao pediatra para pedir um conselho. a consciência desaparece e o nosso corpo é comido por vermes e bactérias. A bisa Augusta é jovem. Olivia. filhota. ela ainda tá com 97. a verdade não foi muito bem recebida. "Mas eu não quero morrer. galinhas. Já havia quatro anos que os deliciosos circuitos neuronais mais conhecidos como Olivia estavam entre nós. todo mundo morre". a mamãe. Então ergueu os olhos. papai. onde dei uma chorada rápida antes de voltar com os guardanapos. "Papai. Iria ela me dizer que a mãe do Baltazar. Abracei cada um deles bem forte. Cada bolinha verde. tem um menino que chama Baltazar". outro dia. "É mesmo. Olivia?! Uma mexerica sem caroço?! Que legal! Eu vou comprar pra você uma mexerica sem caroço! E melancia sem caroço! E uva sem caroço! Vamos encher essa casa de fruta sem caroço. tinha morrido? O pai? A mãe E o pai? O próprio Baltazar? Como eu iria explicar que tinha mentido. Ele levou de lanche.. poetas passam fome e o Gugu Liberato nada em milhões? "O Baltazar. do Grupo 3..Servi a sopa. do Grupo 3. . na minha classe. uma mexerica sem caroço!". que a vida era isso aí mesmo. séria. uma barafunda inglória em que crianças morrem. Olivia ficou encarando as ervilhas com uma concentração shakespeariana. uma caveira de Yorick. entreguei as colheres de sopa e me escondi atrás da geladeira. no Grupo 3. Tremi nas bases. eu prometo!". bandidos viram presidentes e CEOs. é quão pouco o sítio mudou ao longo de um século. . cimentados ali no início da Primeira Guerra. Os bancos do jardim. apesar de ter perdido uns dedos para a chuva ácida e outras intempéries. A estátua. mexendo nas fotos. segue no meio do gramado. Chegamos à mesma porta de madeira pelos mesmos seis degraus de tijolos aparentes. circundado pelo caminho de saibro branco. com os caramanchões de madeira por onde se embrenham os jasmins. A fachada da casa em Correas. é idêntica desde 1914. Petrópolis.Os mortos de sobrecasaca 30/07/2017 O que primeiro me impressiona. enquanto esvaziamos o escritório –deixaremos o quarto por último. sorrindo de dentro de um carrinho de latão. chegando de São Paulo para ajudar na arrumação. ignora: vai se casar. preso para sempre naquele carrinho. O cenário permaneceu idêntico. Quase escrevo que ela tem "o olhar triste das moças de antigamente". meu tio. Vejo meu avô com três ou quatro anos. mas meu avô. e não consigo evitar um assombro algo infantil. Meu avô sorri. A cena. A jovem odalisca é a tia Elvira. exultante. também: a grama molhada. Minha avó.estão intactos. anterior à do meu avô. Década de 20. taças em punho. Logo em seguida. ninguém sabe quem é. se formar engenheiro. céu de inverno no campo. tão corriqueira e real que fecho os olhos e posso ouvir o ruído das rodas sobre o saibro branco –é o carro do Miguel. vestido rodado. Os cheiros do jardim deviam ser iguais. esvaziarão suas gavetas e o bisbilhotarão brincando no jardim. ter sete filhos e dez netos que. capturada em 1932. mas sou resgatado do anacronismo pela foto seguinte: quatro mulheres riem enquanto dois homens de terno branco. evidentemente. o que me impressiona é nenhuma das pessoas que povoam os retratos existir mais. projetar locomotivas. tenta identificar os presentes. Como hoje. O pirata com a espada na boca: será o tio Mauro? A morena de olhos claros. um susto de índio diante da pólvora. É uma situação tão prosaica. Numa outra foto. não –e me parece injusto que eu conheça todo o futuro que o garoto. beijam as bochechas da estátua. dali a oitenta e cinco anos. surge entre outras do fundo de uma gaveta. O céu é tão limpo quanto o de hoje. o jasmim do caramanchão. é Carnaval. Minha . que ainda nem era nascida. a fumaça do fogão à lenha saindo pela chaminé. ao fundo. as pedras da Alcobaça e da Alcobacinha refletem o sol. vai se formando entre mim e aquelas pessoas uma insuspeita cumplicidade. nas mãos de um homem que ainda está para nascer. fez fortuna com café. esquecida em seu Carnaval de 1920. mas dividimos o mesmo espaço: piso no chão em que eles pisavam. curou-se. Aos poucos. depois sumiu no meio de uma viagem de navio à Europa. sob o mesmo céu. vejo o sol refletido na Alcobaça e na Alcobacinha. O outro homem era primo da tia Iaiá. Volto pra morena de olhos claros. contraiu tuberculose. sinto os cheiros que sentiam. Estamos separados por quase um século. esvaziando as gavetas. e sinto uma espécie de déjà vu ao contrário: súbito. olhando umas fotografias. fazia todos rirem imitando os parentes. ninguém lembra que fim levou. O da esquerda era um tal Humboldt. dono do sítio vizinho. Parece que saltou no mar. sou eu preso naqueles retratos. Não conheço ninguém ali. alguém sabe quem é?" . exceto meu avô. "Esse de óculos.avó reconhece os homens. mas penso melhor e me dou conta de que deveria começar com "Na prática. no boteco da . O Amor. o cronista". O cronista é um pedestre. pois o cronista só existe na prática. o boteco da esquina. o cronista". Deus e outras maiúsculas celestes nós deixamos para os poetas. na gaveta de meias. a lancheira do filho. O que existe para o cronista é a gaveta de meias. Verdade que às vezes. companheira 06/08/2017 Eu ia começar com "Em tese.É uma crônica. na lancheira do filho. o Perdão. alpinistas muito mais hábeis que com dois ou três pontos de apoio chegam ao cume de qualquer abstração. a Saudade. Um ataque epilético não é. "O amor da morena maldita no largo do Estácio". Mas sob o peso desses dias. qualquer leveza soa leviana. Ataque epilético. That's my job. tropeça num deusinho ou outro (desses deuses de antigamente. trisca no perdão. UFC.esquina. o cronista até resvala no amor. 58. Aí o cronista. durante a erupção do Vesúvio. nossa. também acho que picada de mosquito entre os dedos dos pés é pior do que tortura chinesa. empada seria "A Insustentável Leveza do Ser". o samba e o guaraná. pensa. as aves que aqui gorjeiam. os brasileiros. o melhor momento para um cafuné. Boas imagens para esses dias. é mesmo. que se cansam do Olimpo e vão dar umas bandas pela 25 de Março). caramba. nossos filhos. definitivamente. "Memórias Póstumas de Brás Cubas". mas é de leve. Escreve um texto otimista. Melhor ainda: um lutador de UFC tendo um ataque epilético durante a erupção do Vesúvio. Abre mão de toda a delicadeza e diz: é tudo uma merda. do detalhe. tentando desenhar coraçãozinho na espuma do café. faz o quê? O cronista se revolta. tentando ver o que há de bom. também pedestres. Sento para escrever a crônica e me sinto fazendo um origami no ringue do UFC. do que está tão perto que a gente nem vê. é sem querer. Vesúvio. 62 e 70. é isso aí. (Morreu o bebê atingido por uma bala dentro da barriga da mãe). que também apanha. Sou um barista. . O cronista junta os cacos. pois na prática (e é assim que eu devo começar) o cronista trata do pequeno. Faz um esforço. também esperneia. se lambuza na saudade. Na semana seguinte bate a ressaca. se cada comida fosse um título literário. O Brasil. também respira o enxofre que exala sem parar da cratera noticiosa. não tem som mais melancólico do que um apito de panela de pressão entrando pela janela. Aí você lê. no meio da tarde. companheira". Vesúvio. durante a Guerra Fria (UFC. ciente de que já bateu ponto nos dois extremos do pêndulo existencial. Eu sei que já escrevi umas dez crônicas dizendo que ficou impossível escrever crônicas. a guerrilheira recebe. dentro e fora das barrigas. daquela passagem que dá título ao livro do Gabeira. . Lembro agora.Exaurido. companheiro?". Ao que ele responde (leviano?): "É um beijo. Durante o sequestro do embaixador americano. durante a ditadura. apura o ouvido. mas veja: esta é a primeira crônica que eu escrevo sobre a dificuldade de escrever crônicas sobre a dificuldade de escrever crônicas. ataque epilético). o uivo da mãe que perdeu o filho baleado dentro da barriga e os discursos dos putos que se compram e se vendem para garantir a própria estabilidade enquanto mães seguem perdendo seus filhos. revoltada. mas não consegue escutar o assovio da panela de pressão entrando pela janela: ouve tiros de fuzil. não sei bem por que. o cronista imagina que pode voltar ao seu ofício. Senta para escrever a crônica. o beijo do guerrilheiro: "O que é isso. ..eco. Table of Contents KKK! Vai. excepcionalmente Estado de graça Descriminalização das drogas Encarte O agudo e a crônica Olívia IPA Sem aspas na língua Apolpando Recordação . garçom carioca Foxy lady Ex O fim Tomadas e oboés !!!!!!!!!!!!!!!! Acaju? K entre nós PEC & Pague Hoje. Curintcha! A vida dos bares O futuro é coisa do passado Eco. Curintcha! Romarinho e o Texugo O melão e o nada Ceruraro chip? Ju Toku Foi...eco Vestindo (a carapuça) Murundu polissêmico É pavê ou pacomê?! Todos juntos Cliente paulista. vidi. a ironia Separações Carta Escorrendo Beyoncé Abundância Crônica de Natal Três soluções para São Paulo A fuga do cativeiro egípcio Por um fio Rolezinho: breve rolê histórico A tonga da mironga do Rod Stewart Vespertina tropical Cachimbo da paz Estiagem A pátria de ponteiros . perdidi Alçapão Guinada à direita Abaixo.Entre ou saia A passeata Habilitando-nos Sobe o pano Estepe Diário Pé de cachimbo Laranjas e chocolates Linha cruzada Feira de Frankfute (M?)(H?)otel PIPA® Contudo Impressões digitais Me dê motivos Dente por dente Diário da paternidade II Veni. bem emplumado Fábulas monterrosianas II Garagem O agudo e a crônica Boda de urna O chapeiro e o dono da padaria .Uma Odisseia no Espaço' Três fábulas monterrosianas Dupla personalidade Um ganso novo.No seio da família Googlall Meu reino por uma pamonha Horário de almoço Charutos e chupetas Desmantelo só quer começo O álbum da Copa Sozinho Um escritor! Um escritor! Vai ter toldo Fio dental Infiltrados no bolo Retrospectiva Véspera A caminho Coisas importantes Projeto CP Geopolítica do coração Função esporte Chamem o Sr. Miyagi Copa das árvores Fogo na capela Balanço Gol da Alemanha Íntimos desconhecidos Aí Caro Fernando Haddad '2001 . comida pra gato Seminovos. único dono Qual foi. 25 de janeiro de 2016 Trinta e quantos? Daniel Toby tubarão Cabum! Fábulas monterrosianas III Texugos Impeachment O camaleão daltônico O desodorante venceu Repente do desmantelo As ideias fora do lugar Indo embora Saída para o mar O último a sair Uma freira de verdade Tal pai. tal filho Um machado. sete Terrorismo lógico A metamorfose .com barreiras São Paulo.Política e chocolates A oposição fluorescente Ao pé do olvido Balancete Nas coxas #precisamosfalarsobreaborto Direitos do Homem (sensível) Embarque Dar cabo Araminhos Crônica de quatro faces 2014: noves fora. algoritmo?! Joanão e outras minifábulas Pelo telefone . * Habeas corpus Breve manual da ninada Mal ajambrados On the letter's foot (ao pé da letra) Carta a Beatriz Não é tão vermelho ou amarelo Crítica e autocrítica .. Dr.Alguém tem que tomar uma atitude A emenda de Hamurabi Meia abdominal Dormir é para os fracos The day after Sua vez Insensatez Por quem as panelas batem Resposta a Samuel Pessôa Encontrei Madalena Trânsito O nariz Tegucigalpa Lucy in the sky with diamonds #primeiroassedio Meter a colher O engruvinhado da mexerica O gueto de Mariana Mexeriqueira em flor Vou-me embora pra Chapecó Numa escola ocupada Arkhipov. chocotones Zapzap 2016 Refogar cebolas Abraçando árvore O _ _ _ _ _ _ _ Feio Mistérios jocosos De SP pro RJ pra SP pro RJ pra. Pacheco.. urru! O polvilho é nosso! Mais que o futebol.2013 a abr.A solução para a crise Carta pro Daniel Penso sobre o enredo da realidade vendo o filme de jun.2016 Cinco centenas. Clotilde! Tecla SAP do humor Resolução de Ano Velho O Nobel da esquina EmpreÉDENdorismo Prova de história Pareceres Coisas que eu faria Lá vou eu em meu eu oval 'Essa tocha não é do PMDB. Olímpiada é fonte de sentimentos opostos A décima vez que a gente assiste Como seria um SAC para os desiludidos com o impeachment? Os vândalos A gente não envelhece: os outros é que vão ficando mais novos Os adultos andam mais fantasiados que crianças de Peppa Pig Era uma vez uma cidade Impaciência (parte 1) A impaciência pode esperar Pum em Marte O paulistano não é de jogar a toalha. mais cinco Cinco soluções para o Brasil Crônica em exercício 'Sê-lo-ia'. essa tocha é de Zeus! Do João do Pulo!' Tudo sob controle Seleção brasileira de vôlei deu azar de pegar o voo com meus filhos a bordo Nestas 2 semanas. prefere estendê-la e se deitar em cima Comunhão parcialíssima de bens Trump no azul da Grécia Tony Soprano está no poder . talvez a única coisa que funcione no país seja a Olimpíada Ansiedade olímpica das oito da matina a uma da madrugada E se os nossos fracassos também fossem transmitidos ao vivo? Aha. atualizações AC. DC Cenários Como sair da crise Quantos amigos seus estão na cracolândia? Hoje não tem polvo Soluções radicais Em 60% do tempo fico ocupado com pensamentos inúteis e aleatórios O meu avô Na faixa Reinventar o Brasil 'Papai. por favor A vivência lúdica do educar Sketchbook Eu não quero ficar velhinha Trump e Kim Jong-un fazem pensar se há elo entre penteado e pensamento Tentando escrever uma crônica em 2017 Um enorme passado pela frente Jó ao contrário A tigela da Tati Por dois segundos eu vi um Brasil que havia superado escravidão dos negros Mercury Caraguá.Anistia do caixa 2 Menos piquete e mais Piketty Não e não Num hospital público do Rio Cada post no Facebook é uma cruz erguida por um messias instantâneo Segunda. NY Sou alérgico à fase séria do Woody Allen Poesia.99 Jerry Seinfeld me convenceu a fazer meditação Primavera. dois de janeiro Trump e –oh!– o sexo O que você fez hoje à tarde? RG e CPF do assassino. companheira . todo mundo morre?' Os mortos de sobrecasaca É uma crônica. R$ 79.
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