Crime e Comportamento Em a Galinha Degolada

April 2, 2018 | Author: Thiago de Freitas | Category: Aggression, Homo Sapiens, Tragedy, Erich Fromm, Behavior


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CRIME E COMPORTAMENTO EM A GALINHA DEGOLADA DE HORÁCIO QUIROGA.Thiago de Freitas (UEFS) O objetivo fundamental deste texto é levantar duas questões substanciais no conto A galinha degolada, de Horacio Quiroga. Em primeiro plano, quais relações podem ser atribuídas entre a turbulenta vida pessoal do autor e sua obra. Posteriormente, detalhando o estudo, procuraremos discutir as noções de agressividade através das personagens que integram a obra, por meio, principalmente, das relações entre hereditariedade e meio ambiente, como fundamentadas por Ashley Montagu e Erich Fromm. Habitualmente, os conflitos internos na vida de um escritor induz à criatividade e originalidade. Literariamente, reações emocionais levadas ao extremo resultam, em alguns casos, em obras de arte de caráter igualmente pungentes, sejam elas literárias, visuais ou musicais. Exemplos clássicos de amores não correspondidos, instabilidade mental, uso abusivo de drogas e até mesmo profundas depressões, podem resultar em marcas excruciantes na história cultural e intelectual. Em A galinha degolada, as experiências de vida do autor, influenciadas pelo seu ambiente fatídico, emergem no texto através de angústias e de uma narrativa, apesar de bastante realística, esteticamente fantástica. Influenciado por escritores como Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant, Horacio Quiroga foi um dos responsáveis pela modernização contística na América Latina e seu traço narrativo se impôs, com o tempo, como modelo literário. Modelo este que, segundo Pablo Rocca, focaliza o efeito e a potência expressiva do enredo e de cada uma das palavras, eliminando elementos acessórios que parecem desnecessários, tendo o horror como marca predominante. Diferente, porém, de Poe, por exemplo, Quiroga, como observa Pablo Rocca, “descartou os ingredientes clássicos do relato gótico, apropriando-se, no entanto, do clima e até do detalhe mórbido ou do recurso do “achado macabro.” (ROCCA, 2008, p. 67). O conto em questão retrata o cotidiano do casal Mazzini-Ferraz que, recém-casados 20). o casal continua acusando um ao outro pelas faltas dos filhos mais velhos e insiste em crédito exclusivo para a filha saudável. p. somente procriar filhos que tiveram o infortúnio de perder suas capacidades cognitivas após sucumbirem à doença na idade de dezoito meses. 2008.15). Mazzini ou Berta. eles. “quase sempre apagados no sombrio letargo da idiotia. Em um dia como qualquer outro. ou mesmo o cruzamento entre ambos. este algo é terminar de humilhar alguém depois de já ter começado. absortos. sabemos que “desde o primeiro desgosto envenenado tinham perdido o mútuo respeito. realizando então um objetivo crucial para ambos. aliada ao conjunto familiar. Caso após caso. Enquanto Berdita inocentemente tentava subir no muro. agarram a . em sequência. que seria. Mais tarde. Com este andamento. impulsionados por alguma razão. teve a desventura de. sucumbem ao mesmo mal. os meninos. chega ao leitor a impressão de que um deles. eles ficam tão encantados com a menina que negligenciam ainda mais seus primeiros quatro filhos e passam a cuidar implacavelmente de Berdita. o casal foi abençoado com uma filha que permanece saudável além do primeiro ano e meio. As consequências desta relação agressiva entre o casal. carrega um problema genético. em razão dos filhos com problemas mentais. mas o resultado é sempre consistente. após nova tentativa. Se há algo para qual o ser humano se sente arrastado com cruel fruição. Enquanto isso. motivo de questionamento e acusações entre ambos. onde os idiotas costumavam estar sempre sentados num banco. A partir disto. 2008. e de reativação de esperança por dias melhores.” (QUIROGA. p. voltando de um passeio com Berdita. Finalmente. Depois do nascimento dos gêmeos. a doença mental.e aparentemente saudáveis e apaixonados. de reclusão para os filhos mais velhos. contribuem integralmente para o fim chocante da narrativa.” (QUIROGA. novamente aos dezoito meses. Através do texto. os pais deixam a menina se divertir livremente no quintal. eles não perdem a esperança em dar luz à crianças mentalmente sadias. os quatro garotos testemunham a empregada degolando uma galinha para o almoço. obviamente. 127) Seguindo a quebra repentina de sua primeira relação amorosa. (CABO. é importante levar em consideração as palavras de Quiroga em relação aos sofrimentos pessoais: Siento una especie de placer en mis sufrimientos. quase todos aqueles que estiveram próximos ao uruguaio tiveram suas vidas marcadas por uma tragédia repentina. (QUIROGA apud CABO. presenciou a morte de seu padrasto com a mesma espingarda que tirara antes a vida de seu pai. juntamente com o retrato de pessoas. por exemplo. muito provavelmente. 2004. Estas questões. gerou grandes desventuras. p. . que o destino reservou uma tragédia além de seu controle. as experiências tumultuadas que Quiroga experimentou enquanto viveu. ocasionaram graves problemas de adaptação e relacionamento desde a infância. Quanto à isso.124) estando rodeada por uma fatalidade genética. O autor relativiza a indiferença em relação ao destino de suas personagens. o suicídio. passando um sentimento de desespero e remorso. Sua saúde também supõe uma série de infortúnios: asma e gagueira. o que. 2004. Sua primeira esposa e os três filhos tiveram o mesmo fim marcante. foi “uma vida que condicionou toda sua obra literária”. Outro trauma que marcaria profundamente sua psique ocorre quando do assassinato inesperado e acidental do amigo e poeta Federico Ferrando. Seu pai biológico se suicidou quando Quiroga tinha apenas dois meses de idade. para encontrar en el fondo de mi escepticismo una realidad que se destaque poderosa con el tinte del dolor eterno. Segundo Jesús Calledo Cabo. já que de um modo ou de outro. sempre referidos no texto como idiotas. o levaria a ser interrogado e encarcerado por alguns dias. Sua ida à Paris. aos 13 anos. p.criança e a assassinam da mesma maneira que a empregada previamente executara a galinha. Posteriormente. o leitor extrai um sentimento de culpa que ecoa da reação irresponsável do casal ao cuidar do seus outros filhos. da maneira como enfrentadas. Nesse sentido. concluímos. A galinha degolada reflete. cortando-lhe brutalmente o pescoço. uma série de acontecimentos trágicos se sucederam. en mis tristezas y aún desearía padecer más. Deste crime. embora em menor grau. 2008. delirando. Quais seriam as razões para tal infortúnio? A pergunta que Mazzini faz ao médico quando do nascimento do primeiro filho é essencial para o entendimento desta questão. p. supomos. pelas palavras de Quiroga.. quando de uma discussão mais áspera entre o casal. “ao nascer Bertita […] se esqueceu quase completamente deles. É evidente no texto. “O aspecto desleixado e a sujeira deles acusavam a falta absoluta de um mínimo de zelo materno. Voltando ao texto. (QUIROGA. que uma tragédia iminente em breve se abateria sobre a família Mazzini-Ferraz. A mera lembrança daqueles quatro já a horrorizava. 2008. Berdita acredita que poderia ter tido filhos normais. A discussão entra em vigor quanto à geração de quatro crianças com problemas mentais. 2008.” (QUIROGA. deitava-os e tudo com impaciente grosseria.20). diz: “sobre a herança paterna. 15). temos conhecimento que o pai de Mazzini teria morrido louco. como veremos adiante. das razões que atribuímos ao assassinato de Berdita. dava-lhes de comer. como por exemplo. Talvez isso esteja refletido nos próprios sentimentos de solidão e contenção de . Sabemos. que as características mais marcantes de sua obra.portanto. Por isto. 17) O médico. Até esta altura não temos indícios do que teria o médico dito a Mazzini sobre seu pai. Os meninos passavam os dias sentados num banco do pátio. no entanto. p. Ao investigar o texto.” (QUIROGA. que as causas dos problemas mentais dos filhos do casal seriam genéticas. que o primogênito pagava pelos excessos do avô. p. p. aparentemente se esquivando. A mãe. (QUIROGA. é notável como as crianças com retardo metal são subjugadas pelos pais. Com Mazzini. diferente. vidrados para o muro em frente. bem. Mais tarde.. A empregada. algo que. Quanto à mãe.20). encarregada dos cuidados com os filhos maiores. já que o problema estaria supostamente relacionado ao pai. p. portanto. 2008. 2008. já lhe disse o que pensei quando vi seu filho. Ele diz: “então isso pode ser herdado. desde suas primeiras linhas.” (QUIROGA. 17). “os vestia. ela tem um sopro no pulmão. horror e morte são reflexos de uma vida repleta de tragicidades. acontecia o mesmo. Os infortúnios do casal não são totalmente culpa deles próprios. A questão permanece. mas. mas emoção menos intensa? Não obstante. o casal poderia ter se poupado da agonia de perder sua preciosa filha. eles não são totalmente inocentes. se. proverbialmente falando. positivos e negativos. do que simplesmente ignorar os fracassos em favor de se concentrar nos sucessos. mas movido por duas forças opostas igualmente pujantes. eles são incapazes de se ligar durante os bons tempos. Esta posição dualista é. e seria melhor se a aceitação dos altos e baixos da vida fossem encarados no total. De acordo . É quase paradoxal como o desespero de seu destino é derivado de sua própria falta de controle sobre a situação. Como o casal se transforma em um outro durante os tempos difíceis. não tivessem colocado todos os ovos na mesma cesta. o idealismo do casal ofusca sua realidade operacional. Fromm acredita que o homem não seja essencialmente bom ou essencialmente mau. Pois é esta relação a maior responsável pelo trágico destino reservado à família Mazzini-Ferraz. de modo geral. sabemos. tornando assim sua dor menos profunda? Ou o resultado seria o mesmo. Um tom de culpabilidade inevitável lança uma sombra sobre o já triste enredo. cegando-os ao destino inevitável. uma vez posto em movimento. algumas questões do comportamento humano.Quiroga após as tribulações desastrosas de sua vida. é composta de dois aspectos. condenando-se a sucumbir à tragédia da situação. Partindo duma análise freudiana. em Análise do homem. discute. Apesar do desejo por uma família normal e saudável. A vida. Chegamos à questão fundamental do texto. seriam os idiotas bons ou maus? O brutal assassinato da menina é condicionado por uma hereditariedade similar à causa da doença mental das crianças ou estaria condicionado ao ambiente familiar? Erich Fromm. Em razão do crime. os seus destinos foram determinados e inalteráveis. apenas o ponto de partida e não a resposta final para os problemas psicológicos e étnicos do ser humano. Sua falta de atenção e cuidado determinam quase que inteiramente a perda da querida Berdita. ao mesmo tempo. segundo o autor. particularmente. p. O ódio no ser humano é. A atitude agressiva das crianças do conto seria. se o homem deixa de utilizar suas aptidões.” (FROMM.” (FROMM. visto sua condição mental? Supomos que o ambiente familiar.com Fromm. carrega consigo outras dependências. como espécie de vingança. pelo tratamento que recebem de seus pais. p. discutindo as causas da agressividade do homem. Os filhos mais velhos teriam assassinado sua irmã por prazer. O homem que assim reage às situações adversas encontra prazer ao insurgir de tal modo. portanto. e irracional ou “condicionado pelo caráter”. segundo Fromm. agravadas. Provavelmente. principalmente ligadas às condições exigidas para sua realização. pode proporcionar atitudes agressivas.193). encarado da maneira que é no texto. teriam as crianças se comportado violentamente? Fromm argumenta que com restrições de energia o homem se torna destrutivo. resultado duma privação de sentidos. que se restringidas podem gerar consequências sérias. “Se é verdade que a destrutividade deve formar-se como decorrência da energia produtiva bloqueada. ficará fragmentado. talvez pareça que ela pode ser chamada adequadamente de uma potencialidade da natureza humana. a destrutividade humana passa primeiro por uma questão: diferenciar o ódio entre racional ou “reativo”. Outra observação de Fromm que nos é importante na abordagem temática do conto diz respeito à não realização de condições favoráveis individuais e sociais características ao homem. manifestando o mau. que a potencialidade má do homem passa primeiro por questões culturais e sociais. portanto. Entendemos. como se praticasse alguma atitude violenta ou odienta como oportunidade de descarregar sua hostilidade. apesar de parecer somente uma reprodução do abate da galinha. 1963. O degolamento de Berdita. Como exemplo. Se fossem oportunamente bem educados e familiarizados. ou teriam agido involuntariamente. Fromm menciona as capacidade de falar e pensar do homem. Numa perspectiva similar. ainda que se possa ignorar o sofrimento.193). “A destrutividade é o produto da vida nãovivida. 1963. ansiando por fugir de si mesmo. uma reação do homem em busca duma suposta sensação de alívio. Ashley . que funciona também. para acontecer ela deve ser provocada. em O macaco nu. com o nascimento de Berdita. observa que o retardo mental pode nem sempre não ser causado por deficiências hereditárias. mas os traços de personalidade. chegou a conclusão de que a hostilidade não é inata à criança. em seu A natureza da agressividade humana. O autor argumenta que não só as reações físicas e mentais. observa que o entendimento acerca da natureza dos instintos agressivos do homem passa. depende de estímulos. normais e bem cuidadas. supostamente inerente ao homem. principalmente porque. Desmond Morris. assim como as de outras crianças. mas por outras razões. O nascimento de Berdita. Este pensamento leva em conta que a agressividade. mas é antes um complexo de sintomas que resultam de privações. teriam sido as maiores razões para o assassinato. Concordamos com as observações de Montagu ao investigar o comportamento dos filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. perdem total espaço e atenção. por nossa origem animal. homem e animal.” (MONTAGU. Já Lauretta Bender (Apud Montagu). causadas pelo interrompimento no desenvolvimento considerado normal na estrutura de personalidade que levam a criança a encontrar satisfação através de meios inadequados. aliado ao ambiente desfavorável. ao nosso ponto de vista. 1978. a desterritorialização leva à atitudes agressivas de defesa por parte de ambos. como reação de defesa ao território invadido pela menina. Ou seja. o comportamento e as atitudes são mais dependentes de fatores ambientais do que hereditários. se os filhos do casal Mazzini-Ferraz tivessem crescido num ambiente favorável. particularmente através de impulsos agressivos. Montagu parte do princípio de que praticamente não há comportamento agressivo espontâneo em crianças saudáveis. reservados apenas à filha. “Os genes não existem no vácuo. p. Os autores . Os filhos mais velhos. obrigatoriamente. 23).Montagu. sentem-se privados e invadidos. existem sempre em um meio ambiente de algum tipo. suas capacidades cognitivas poderiam ser ampliadas. Neste sentido. pelo contrário. Jesús. Madrid: Ediciones Corona Borealis. 1996. 2004. Rio de Janeiro: Record. . tem uma tendência de se comportar genuinamente de maneira dócil. A natureza da agressividade humana. Ashley. A agressividade não é intrínseca. antes de tudo.concordam que a violência humana é uma experimentação social. Erich. FROMM. 1963. 1978. 2008. QUIROGA. Rio de Janeiro: Zahar. MORRIS. Referências CALLEJO CABO. Rio de Janeiro: Zahar. O macado nu. Horacio. Enigmas literarios: secretos y misterios en la historia de la literatura. MONTAGU. Desmond. A galinha degolada e outros contos. A criança. em busca de um bem-estar social para si e para as pessoas circundantes. Porto Alegre: L&PM. Análise do homem.
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