Contemporanea n10 Pedro Calabrez

March 24, 2018 | Author: Bruno Malta | Category: Love, Homo Sapiens, Knowledge, Greek Mythology, Sociology


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N10 | 2008.1 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea Pedro Calabrez Furtado Mestrando em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Professor auxiliar da disciplina de Filosofia para a graduação e pesquisador para o Instituto Cultural da ESPM. E-mail: [email protected] Resumo Este ensaio tem por objeto o amor na sociedade contemporânea. Buscamos identificar, primeiramente, como o sentimento está inserido na realidade social de uma modernidade líquida, onde nada permanece estático e sólido por períodos longos de tempo, para então responder ao seguinte problema: há lugar, na sociedade de consumo, para o discurso de amor eterno? Concluímos que, como discurso, o amor eterno funciona como mecanismo de auto-engano para a preservação da potência de agir dos agentes sociais, e só assim convive com o dinamismo da contemporaneidade. Abstract This essay intends to think about the concept of love when in a consuming society. First, we tried to identify how the feeling coexists with the social reality in a liquid modernity, where nothing stays static or solid for long periods of time, so that we could answer the following problem: is it possible for a discourse of eternal love to exist in such society? We concluded that, as a discourse, the eternal love acts as a mechanism of self-deception to preserve the happiness of social agents, and that’s how it coexists with the dynamics of today’s society. A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea - Pedro Calabrez Furtado Garantia de uma permanência afetiva perpétua.Pedro Calabrez Furtado . fundadores da existência 2. Amor necessita de objeto. até os dias presentes. ou perde o propósito de sua existência. seja na relação de si consigo mesmo ou nas relações de si com o mundo. Seja na arte. Relacionar implica comunicar. portanto. é objeto de reflexão. o amor é indissolúvel da comunicação – elemento fundamental a qualquer relação. Responsável pela dinâmica do espetáculo relacional em que nós. o amor toma formas diversas quando inserido no universo da comunicação. olhares. Tão necessariamente presente que. Ao contrário. assim. toques. como também a simples expressões cotidianas que. é algo que perpassa a arte e o 95 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . a característica relacional é fundamental para que exista. atos. séculos antes de Cristo. Necessariamente relacional. seriam o princípio de tudo. Semelhante afirmação é feita por Fedro. personagem do diálogo platônico O Banquete. ciência ou nos ditos do dia-a-dia. Tal promessa encontra grandiosidade na arte. Protagonista inexorável da vida humana. na tentativa de entender e expressar amor.1 “Fundamental é mesmo o amor É impossível ser feliz sozinho” Tom Jobim Amor. podemos entender o poeta Hesíodo. pensa-se sobre amor. como discurso. Tales de Mileto nos disse que todas as coisas estão cheias de deuses1 e. que naquele lugar ele permanecerá para sempre. em uma breve e exploratória busca. em comunicações do dia-a-dia. Amar eternamente. tropeçamos. portanto. O website de relacionamentos Orkut. deu origem a extensivas obras literárias e científicas. é freqüente e. O discurso. estariam na origem de tudo3. Dentro de sua complexidade. Um breve passeio pelo cotidiano nos mostra a presença desse tipo de discurso. Romeu declara. mostra-nos mais de três milhões e novecentos mil membros na comunidade “Quero um amor pra vida toda” 5 . Observando sua amada supostamente morta.N10 | 2008. Amor eterno e arte convivem há séculos. Prometer amar para sempre. esse amor tem o preço da vida. Gestos. numa infinita sucessão de tentativas incertas. outra de tais formas. desde a origem da filosofia ocidental. tentam sussurrar ao mundo a confissão do sentimento interior. de maneira singela. também. portanto. entretanto. Desde então. encontra-se presente a jura de amor eterno. pouco antes de beber o fatal veneno. Grandioso. Oferta da certeza de que. quando diz que Eros – deus grego do amor e desejo – é um dos deuses primários. ao dizer que Eros é o primeiro dos deuses – amor e desejo. o sentimento se conservará aceso. Suas últimas palavras anunciam que tal ato é entregue ao seu amor por Julieta4. até o fim da vida. Sua eternidade vai para além dos limites da carne. Não se trata de um sentimento puramente introspectivo. na sociedade de consumo.Pedro Calabrez Furtado . conseqüentemente. Cotidiano em que a vida humana possui ritmo acelerado. até mesmo desejar a permanência de um estado presente é. algo presente no dia-a-dia do homem contemporâneo em diversas formas. O trânsito dos afetos é constante e desimpedido. A ineficácia e conseqüente impossibilidade de uma “solidez” nas instâncias sociais criam aquilo que Zygmunt Bauman chama de Modernidade Líquida. hábitos e rotinas de difícil mutação. alimentando o motor sócio-econômico em que vivem. Qual seria. de mudanças constantes e ininterruptas. para que os afetos circulem em seu trânsito intenso. Para Bauman. então.N10 | 2008. para instâncias sociais “sólidas”. no entanto. já não se quer mais possuir. Dia-a-dia dinâmico. “A promessa de satisfação. A contemporaneidade é caracterizada por uma configuração social e econômica em que a profusão dos desejos não só se faz presente. e também precisam de estruturas sociais que permitam um fluxo profuso e constante.. que o desejo só ocorre por algo que não se tem.). Para que seja perpétuo necessita de atualização constante. é um trabalho fundamental à manutenção da economia de consumo em que se vive6. o lugar do amor nessa configuração social? Haveria lugar.1 cotidiano – é.. A dinâmica do consumo se faz eficaz e presente. A não-satisfação dos desejos e a crença firme e eterna de que cada ato visando a satisfazê-los deixa muito a desejar e pode ser aperfeiçoado – são esses os volantes da economia que tem por alvo o consumidor” 10 . O intenso trabalho para acelerar e aumentar a capacidade de obter mais e mais. os indivíduos necessitam de uma forma de vida livre. o desejo de algo que não se possui: o futuro8. O desejo sem freios é motor da contemporaneidade e precisa ser perpétuo. É o pêndulo de Schopenhauer: pendemos entre a frustração – de não possuir – e o enfado – de já possuir e não querer mais9. Não há lugar. enfim. numa dinâmica de atualização perpétua do desejo. só permanecerá sedutora enquanto o desejo continuar irrealizado (. Platão nos diz. de fluidez e afetos em trânsito intenso. Líquida pois. mas é necessária. experiências e oportunidades quaisquer. Para que tal movimento constante seja facilitado e potencializado. Quando se conquista. de adquirir bens. a sociedade de consumo é estruturada na premissa de satisfazer os desejos humanos como nenhuma outra sociedade imaginou ou realizou. dentro dela. As condições sob as quais os membros da modernidade contemporânea agem mudam em um tempo menor do que o necessário para que as formas de agir se consolidem em hábitos e rotinas7. o fluir é facilitado e potencializado. Assim. para o discurso de amor eterno? 96 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . Só numa atualização constante dos desejos é possível manter os indivíduos desejando e. necessariamente. através da personagem de Sócrates. fincadas em preceitos. acontecendo. como janela inexorável entre mundo e homem. como aquilo que o homem utiliza para compreender o mundo. no apetite humano. algo como o germe do conhecimento. Os discursos veiculados em determinada sociedade não podem. em que animais inteligentes inventaram o conhecimento”15. imutável. não se entrega à compreensão integral até pelos próprios limites sensoriais humanos – a percepção. não há no comportamento humano. estático e constante. inventado. não permite uma abordagem extra-sensorial da realidade13. O mundo. O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem. “Só há afetos. à espera por ser capturado pelo olhar atento. havia uma vez um astro. Diferente de um animal manso. podendo ser capturada pelo olhar devidamente atento. que propôs. está escondida – oculta por trás e para além da história e sociedade –. Olhar que afirma que o mundo é isto. a realidade não se entrega ao homem em sua integralidade. que nada pode ser medida do homem – tudo. por mais paradoxal que seja. O homem. ao nascer. quando o mundo simplesmente é. É dizer. com isso. O conhecimento. é produção social. é uma produção humana. Crer em uma manifestação discursiva transcendental. para domar uma realidade arisca. escapar às características da sociedade em que são proferidos. é ingênuo. portanto. ou inversamente. O conhecimento. só as potências”14. no instinto humano. pois pressupõe uma espécie absoluta de conhecimento que. Para Nietzsche. o ser humano. Relato atrasado de um mundo sempre novo. Produto em constante atualização. Só os desejos atualizam.1 “Falling in and out of love” Queens of the Stone Age Seria ingênuo crer em uma manifestação discursiva livre da configuração social e histórica na qual emerge. mutante. inventou o conhecimento. pelo fato de o mundo nunca permanecer o mesmo. ou seja. que lhe escapa por entre os dedos a cada tentativa de alcance.Pedro Calabrez Furtado . Seletivo a partir dos sentidos do homem. que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana. infinitamente e ininterruptamente mutante e atualizado. segundo o sofista Protágoras12. certamente. com seus significados. Em tempo real. portanto. categorizá-lo e entendê-lo. vive em estado de A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea .”16 97 Na perspectiva de Freud. “O homem é a medida de todas as coisas”. Michel Foucault nos diz: “O conhecimento foi. de maneira mais precisa. propriamente – só fazem sentido quando inseridas na história11. a-histórica. A sensação é anterior a tudo.N10 | 2008. é necessariamente um recorte humano. As palavras em seu dinamismo. “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares. ou seja. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. partindo sempre de um olhar do homem perante o mundo. as palavras em curso – o discurso. Não inscrito na transcendência a-histórica e tampouco na natureza humana. É uma apropriação e generalização agressiva. Em um mundo em que os afetos estão em trânsito intenso. Os quatro milhões de membros da comunidade “Quero um amor pra vida toda” do website Orkut ostentam o discurso de amor eterno como intenção em uma modernidade líquida. em uma relação de não-parentesco com o mundo que se pretende conhecer. De um combate entre as pulsões. solidão e liberdade – condição para a movimen- 98 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . os amores são ativos que. atingido o ápice de seus potenciais.. a partir do embate entre os instintos humanos. então. os anseios humanos. “Temos. sem harmonia. (.. o lugar do conhecimento é justamente entre os instintos. necessária. é que surge o conhecimento. não havendo entre eles nenhuma afinidade. caracterizada pela não-permanência necessária. Como em uma espécie de bolsa de valores. Isso porque o mundo não é isto ou aquilo que o conhecimento diz. são vendidos e trocados por outros. Numa dinâmica social de fluidez. sem sabedoria. está intimamente ligado à sociedade em que é proferido. É com ele que o conhecimento se relaciona”19. combativa e violenta do recorte de mundo que o homem. para dar nome a um animal inominável. Combate. Ele “não procura absolutamente imitar o homem. É sobre um terreno social. o discurso não pode ser alheio à história. lhe causa um crescente mal-estar. também. e algo entre os dois que se chama o conhecimento. o lugar em sua psique em que reside o conhecimento17. também aqui. sem formas. esse. Nesse sentido. O conhecimento não é parente da realidade. em seus conflitos e embates situados em dado momento histórico. ele ignora toda lei. portanto. num determinado espaço de tempo. sobretudo. um mundo. A atualização dos desejos se dá. E que se dá. sem encadeamento. uma natureza humana.) É contra um mundo sem ordem. realiza. semelhança ou mesmo elos de natureza”18. pois toda a dinâmica social reside numa perspectiva de liquidez.Pedro Calabrez Furtado . seu “ego”. produto social. no terreno dos afetos amorosos. os desejos. sem beleza. É uma invenção humana. Ao contrário.1 instinto puro. condicionado por sua percepção e movido por seus instintos. o homem desenvolve sua consciência. ao ser jogado em uma sociedade que. O amor na sociedade de consumo é igualmente líquido. que é necessariamente histórico: se dá em uma arena de interesses pertencentes a um momento social determinado. num corpo que possui apenas pulsões – estado psíquico que ele denomina “id” – onde não há um instinto ou anseio para o conhecimento. é também o terreno onde os discursos sobre amor são proferidos. portanto. A invenção do conhecimento é. que o conhecimento tem que lutar. sem lei. pela atualização perpétua dos desejos.N10 | 2008. O discurso de amor eterno. em dado momento. que a palavra em curso significa. fundamental a uma sociedade de consumo. A nãopermanência é. Estupro do eternamente virginal mundo. progressivamente. Produto do homem em suas relações. O mundo simplesmente é. A demanda pela mudança constante. e assim sucessivamente. Mentira” Chico Buarque Um olhar frio. ou seja. O discurso de amor eterno.Pedro Calabrez Furtado .. também. E diversas outras. intitulada “Meu amor por vc é eterno!” (sic). advinda de novos e inéditos objetos de desejo – da perpétua proposta de falta que alimenta o querer – permanecer no mesmo amor fere o princípio estrutural da sociedade contemporânea. Uma permanência. batem à porta do indivíduo contemporâneo. pois fere a profusão de afetos propostos pela sociedade. numa sociedade em que os homens buscam e praticam a nãopermanência afetiva. nada importa”22. Inimigo dos motores sobre os quais se sustenta a dinâmica social. e se para que tal regra se efetive é preciso uma constante não-satisfação. mesmo no campo do amor. Tal elo existe. ainda parece fazer sentido para alguma parcela de indivíduos na sociedade brasileira. ainda presente na contemporaneidade. propondo continuamente novas frustrações frente ao enfado do que já se possui. parece viver em contradição com a prática líquida e fluida do amor que é estimulada em uma sociedade de consumo. que dividem conteúdos discursivos semelhantes. 99 Resta-nos indagar: o que permite a convivência da prática líquida e necessariamente frágil do amor na contemporaneidade com o discurso de amor eterno? Como. Outra comunidade do mesmo website já citado. distante.. ao criar uma não-satisfação constante. como visto. A premissa de satisfação dos desejos é característica estrutural da contemporaneidade21. possui cerca de noventa mil membros. Qualquer longa duração é mal-quista e mal-vista. Contraproducente. entre discurso e sociedade. Se desejar mais e sempre é a regra. Isso porque o desejo é o motor da existência humana. No entanto. dia após dia. onde os laços são tênues e frouxos20. “O desejo é a medida do valor do mundo.1 tação fluida sem obstáculos. A sociedade de consumo. o discurso de amor eterno aparenta ser indesejado. Na sua ausência. traz a angústia da perda de infinitas outras oportunidades que. A modernidade líquida condiciona os relacionamentos humanos a uma instabilidade frágil. Dentro de uma sociedade caracterizada pela fragilidade dos laços humanos. faz um simples trabalho de capitalização A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . propriamente científico e reflexivo sobre a sociedade contemporânea. são habitadas por milhares de membros.N10 | 2008. nos faz ver a fragilidade dos laços humanos e sua necessária ligação com a dinâmica social em que as práticas amorosas são realizadas. oferecendo sempre novos objetos a desejar. diz-se desejar amar para sempre ou mesmo ter encontrado um amor eterno? “Chego a mudar de calçada Quando aparece uma flor E dou risada do grande amor. só pode estar no mundo percebido e. diz: “Considera-se que toda arte.N10 | 2008. precisa estar abrigado em um escopo de perspectiva que. toda investigação e igualmente todo empreendimento e projeto previamente deliberado colimam algum bem. O desejo é a medida de valoração do mundo. entretanto. portanto. assim. entretanto. parte daquilo que preserve ou eleve a felicidade daquele que valora. enfim. por sua vez. para que se possa pautar o juízo. dialogue com a vida dos indivíduos. quando aparece perante um indivíduo. essencialmente sensoriais23. como medida de valor do mundo. Mas. em si? Em caso afirmativo. portanto. é preciso um gabarito que diga qual é o valor bom e qual é o valor ruim. ou seja. O valor bom. sempre. A atribuição de valor e sentido é posterior à potencialização da felicidade do indivíduo28. O desejo é bom. É necessário.1 sobre essa característica fundamentalmente humana. o valor? Nas coisas mesmas. Todo valor é. somos inclinações de preservação da própria potência 26. Um referencial. também necessita de objeto. para um ou mais de seus agentes. O desejo. O desejo. em todos os átomos ou apenas em parte deles? Dentro do núcleo ou na eletrosfera? Mais profundamente. um critério para a valoração. de alguma maneira. podemos entender o sentimento de amor como aquele que deriva de um relacionamento que possui. Desejo vem antes de valor. ser o bem a finalidade de todas as coisas”25. portanto. é justamente aquilo que desejamos. Se o valor não está nas coisas em si. pelo que se tem dito. o desejo precisa ser sobre um objeto que possua sentido para o indivíduo que o deseja. dentro dos laços humanos. Vivemos para preservar e elevar nossa potência de agir. Esse sentido é inseparável de um valor – é justamente o valor que dotará o objeto de sentido. ser prerrogativa de quem o contempla. Aristóteles. é necessariamente sobre aquilo que nos potencializa o agir. Se tudo tem como alvo um bem. Valorar é indissociável de contato – emissão e recepção. Para Espinosa. então. Onde residiria. comunicado24. buscando o valor longe das partículas que compõem o mundo. como sentimento necessariamente relacional. O bom. necessita de um objeto. nos quarks? A impossibilidade de determinar um valor das coisas em si só é superável – em tentativa – por iniciativas como as de Platão. tudo o que desejamos. Só se deseja o que mantenha ou aumente a energia vital. e não sobre o que é bom.Pedro Calabrez Furtado . Para dar valor é necessário contemplar o objeto. Dentro dos limites de qualquer contemplação. “É bom. plano absoluto e supra-sensível. um valor 100 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . o conatus27. como valor. aquilo que fundamentalmente nos move. em um lugar à parte: mundo extra-sensorial. Não o contrário”29. Algo é bom na medida em que é desejado. Ou seja. Elevar e preservar a energia. Indissociável de comunicação. Em outras palavras. o que é amar alguém? De maneira simples. Objeto este que. Algo só tem valor quando é flagrado. a felicidade. em sua perspectiva finalista. com razão. O amor. se estende para o amor. palavras. Potência de agir elevada. objeto de capitalização da modernidade líquida. ou seja. dentro de um relacionamento afetivo. O desejo. Em outras palavras. A sociedade de consumo. Os “volantes da economia que tem por alvo o consumidor”31 são justamente aquilo que valoriza essa economia. encontra aqui sua razão de ser. promete fundamentalmente a elevação da felicidade. primeiramente. Amar é buscar em um relacionamento afetivo comunicações – contemplações. Na perspectiva do amor. Um olhar frio sobre a dinâmica social faz ver que a capitalização sobre o desejo é fundada na extinção progressiva dos objetos de desejo. ela é uma sociedade alicerçada sobre a elevação da potência de agir de seus indivíduos. Ama-se na medida em que se deseja. de acordo com os próprios afetos do agente. o relacionamento amoroso é aquele que é tão bom quanto se é possível idealmente para uma pessoa. Assim. portanto. de uma grande elevação na potência de agir – são tão presentes nos relacionamentos amorosos. que o valor é necessariamente posterior ao desejo. e conseqüentemente sobre o amor.1 o mais próximo possível de um ideal-tipo de ‘bom’ definido pelos próprios afetos. Conatus. A capitalização que realiza sobre os desejos. gestos. Aumento que. Quando dizemos. por sua vez. um só deus. podemos caracterizar o amor como o sentimento que surge a partir de um relacionamento. representa amor e desejo. mas sim em que seus agentes. aumentando a potência de agir de um ou mais agentes dessa relação. Valor. O desejo. pode-se entender como as práticas sexuais – causa de um ápice de prazer sensorial. no entanto. a capitalização é a profusa oferta de novos amores. Eros.Pedro Calabrez Furtado . que o amor é um relacionamento tão bom quanto possível. através de sua premissa básica de satisfação dos desejos dos indivíduos. entretanto.N10 | 2008. e a conseqüente aniquilação dos velhos. representa felicidade. não estamos nos referindo a um relacionamento em que seus agentes “se dão bem”. Amar e desejar são indissociáveis. Uma promessa que. Olhar friamente o amor na contem- 101 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . é tão próximo quanto possível da potência máxima de agir. como afeto intimamente ligado ao desejo. A sociedade de consumo faz sentido para o indivíduo contemporâneo por possuir valor. portanto. Energia. têm suas potências de agir elevadas a níveis tão próximos quanto possível daquilo que seus afetos fazem crer ser a máxima potência de agir. Vimos. criando uma espécie de amor líquido cuja fragilidade dos laços é característica. Assim. derivado do desejo. a partir daquele relacionamento. é sempre sobre aquilo que aumente a própria potência de agir. Se essa sociedade tem por princípio a satisfação dos desejos de uma forma que nenhuma outra sociedade do passado pôde imaginar ou realizar30. Nesse sentido. temos que o sentimento de amor é a medida de desejo dentro de um relacionamento. este. toques – que elevem a própria potência de agir a níveis que os afetos crêem beirar o ápice da capacidade individual. N10 | 2008. É. entretanto. a fim de preservar a potência de agir. alimentada por um desejo de amor eterno que permite que também se profira o discurso de amor eterno. no momento. Só leva realmente a sério argumentos que sustentem suas próprias crenças34. de um recém-nascido. não tem sentido. tal fim é extremamente próximo e potencial. Inclinações de preservação da própria potência.Pedro Calabrez Furtado . Causa infelicidade. não está fora de si. distante. O olhar insípido sobre o mundo é desagradável. Traz a perspectiva de que o relacionamento que se começa e que se julga bom. portanto. ou seja. Em outras palavras. evitar tal olhar? Um mecanismo se faz necessário para que essa perspectiva – causa de infelicidade – seja evitada tanto quanto possível. então. por elevar a potência de agir aos níveis percebidos como máximos pelos afetos. portanto. mentindo para si próprio ao crer desejar. Mesmo diante da promessa de novos desejos. derivada de uma busca fria. está diante deles: o objeto do olhar frio está presente no cotidiano de maneira explícita. Como. é invariavelmente indigesto e desgostoso. vislumbrar o fim daquilo que. O engano é perante si mesmo. Essa esquiva é possibilitada pela crença nas juras de amor eterno do parceiro. Para que o auto-engano funcione devidamente. se é evidente a dinâmica do amor. O intelecto desdobra suas forças no disfarce e. Olhar friamente o mundo. ao redor da qual tais mecanismos revolvem. do parecer-ser que é a única chama. segundo Nietzsche32. Adianta o despertador para não perder a hora. é para evitar a tristeza do olhar insípido sobre o mundo e seus frágeis relacionamentos amorosos que o homem se engana. a certeza de que a não-permanência é regra mesmo nos relacionamentos afetivos. por uma verdade do amor na contemporaneidade. Evita perceber que os relacionamentos amorosos são fadados a terminar e que. no entanto. não tem por objeto um terceiro. traz felicidade. O alvo da mentira. O ser humano engana a si mesmo constante e necessariamente. Essa mentira. e não de outros. A fragilidade dos laços. pois contraria a inclinação humana.1 poraneidade é ver que ele é sempre condenado à morte – morte jovem. tudo isso está diante do olhar do homem contemporâneo e em sua realidade social. reflexiva. do engano. é necessário que o indivíduo efetivamente acredite na mentira. Engana-se a si próprio. não é intencional. Afinal. no entanto. terá fim em um curto período de tempo. A evidência. ardiloso porém não intencional – por apenas obedecer à inclinação dos homens a manter seus níveis de felicidade – mantém acesa a chama da vaidade. 102 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . o propósito de evitar olhar friamente o amor e sua fragilidade é justamente evitar a própria infelicidade. através do mecanismo do auto-engano33. os homens evitam tal olhar. o tempo curto de duração dos amores líquidos. além disso. receber e oferecer amor eterno. através da mentira. especialmente na sociedade contemporânea. Esse engano. diminui a potência de agir. O mundo. o mal-esA mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . 2005 FREUD. Rio de Janeiro: Imago. como discurso. ESPINOSA. tem lugar na sociedade contemporânea como mecanismo de auto-engano cuja finalidade é um bem: a preservação da felicidade. evitando o desgosto de uma perspectiva em que o amor presente está fadado a um fim próximo. Cambridge: Polity. In: O Ego e o Id e outros trabalhos. Referências Bibliográficas 103 ABBAGNANO.Pedro Calabrez Furtado . Zygmunt. e passa a realmente crer no que fala. 1983. Porto Alegre: PUC-RS. funcionando como um elemento que protege. 2004. portanto. na medida em que é combustível dos inúmeros amores ofertados – e conseqüentemente vividos – na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.173-221. Rio de Janeiro: Nau. Michel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.1 Ao dizer que ama eternamente. 2007 BARROS FILHO. O mal-estar na civilização. In: O futuro de uma ilusão. In: Revista FAMECOS. Benedicto. Ou seja. Nicola. faz funcionar o mecanismo do autoengano. Amor líquido. a própria dinâmica da sociedade de consumo. A verdade e as formas jurídicas. o amor eterno mantém-se evitando a tristeza dos homens quando em face da inevitável – e desejada – morte de seus relacionamentos amorosos. Clóvis. Amar eternamente. deseja e ouve. o ser humano. p. Lisboa: Presença.23-80. O eu e seus afetos: um ensaio sobre o emissor e a ilusão identitária. ______. Ética – III. ARISTÓTELES. que deseja amar para toda a vida. Sigmund. BAUMAN. Vida Líquida. p. 2007. é um ideal necessário. O Ego e o Id. Sobrevive. ______. 1976. História da Filosofia – volume 1. obedecendo à sua inclinação de preservação da potência de agir. e por isso convive com práticas que explicitamente o rejeitam. portanto. p.90-103. ______. 12/2003. prática indesejada. In: Espinosa: Os Pensadores. Ética a Nicômaco. inclusive. ou mesmo ao ouvir que será amado para sempre. 2006. FOUCAULT. dele resulta um ideal de manutenção do desejo. São Paulo: Abril Cultural. Consuming Life.N10 | 2008. 2007. O discurso de amor eterno. Bauru: Edipro. Como mentira. 116-132. 8 PLATÃO. Maurice. Thomas. here will I remain”.. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Arthur. 2007. HESÍODO. 2006. 4 O texto original diz: “For fear of that.1 tar na civilização e outros trabalhos. O Banquete – Apologia de Sócrates. Porto Alegre: LP&M. Lisboa: Presença. Mundo como vontade e representação. Op. p.106. Zygmunt. Op. São Paulo: Abril Cultural. 1994. London: Penguin Popular. New York: Touchstone. I still will stay with thee. p. ______. São Paulo: Martins Fontes. Arthur. Consuming Life. A segunda menção. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. São Paulo: Companhia das Letras. 1994. Vida Líquida. HESÍODO. SCHOPENHAUER. Campinas: Pontes. 11 ORLANDI. SHAKESPEARE. p. Friedrich. Análise de discurso – Princípios e procedimentos. 2006. Eni. 2007. 2001. Auto-engano. 199d-201c. 2003.73-150.29. p. Romeo and Juliet. 7 BAUMAN. 5 Acesso em 02/05/2008.Pedro Calabrez Furtado . Campinas: Pon1 2 A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . Notas ABBAGNANO. Belém: UFPA. In: Nietzsche: os Pensadores. São Paulo: UNESP. 2001. Zygmunt. Leviathan. NIETZSCHE. 9 SCHOPENHAUER. Eduardo. 2007. HOBBES. London: Penguin Popular. Belém: UFPA. 1996. p. 1996. História da Filosofia – volume 1. Mundo como vontade e representação. William. / And never from this palace of dim night / Depart again: here.. 178b-180c. Niterói: EDUFF. às palavras finais de Romeu. MERLEAUT-PONTY. p. Teogonia. 10 BAUMAN. ORLANDI. refere-se a “Here’s to my love!”. Nicola. Romeo and Juliet. Fenomenologia da percepção. 1997. Ecce homo. Cambridge: Polity. Teogonia. Zygmunt. 104 PLATÃO. 1983. 6 Sobre essa questão.N10 | 2008. ver: BAUMAN. GIANETTI. Eni. 3 PLATÃO. 2006. William. O Banquete – Apologia de Sócrates. SHAKESPEARE.7.cit. São Paulo: UNESP. Niterói: EDUFF.43-52. Rio de Janeiro: Imago. Análise de discurso – Princípios e procedimentos. 2006. 2007.cit. 2007. 14 BARROS FILHO. or by parts. ESPINOSA. Mesmo antes da fenomenologia. 15 NIETZSCHE. A mentira necessária: um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea . Op. 28 Não pretendemos. A verdade e as formas jurídicas. 12/2003. Rio de Janeiro: Imago.) for there is no conception in a man’s mind which hath not at first. Clóvis. a presença inexorável da sensação entre o homem e o mundo já foi pensada por Thomas Hobbes: “(. esse desejo deve minimamente preservar – ou seja. Clóvis. São Paulo: Abril Cultural. NIETZSCHE. São Paulo: Martins Fontes..cit.18. Lição que nós é dada pela fenomenologia da percepção.. 2006.cit. 12 13 tes. a gente também não tem ouvidos”. 1094a1. In: O Ego e o Id e outros trabalhos. Ver nota 13. Zygmunt. Auto-engano.cit.cit.cit. 26 “A alma esforça-se. Op. In: Nietzsche: os Pensadores. 17 Sobre essa questão. ninguém pode captar nas coisas. Fenomenologia da percepção. 23 Aqui retornamos à questão já abordada da fenomenologia da percepção.45. entretanto.N10 | 2008. p. 18 FOUCAULT. Maurice. proposição XII. Op.16. Porto Alegre: LP&M. 20 BAUMAN. um reducionismo ingênuo que ignore as implicações sociais na determinação dos valores do mundo. p. 25 ARISTÓTELES. 1997. aqui.98. p. nessa perspectiva. Leviathan. 2006. The rest are derived from that original”. Michel. São Paulo: Abril Cultural. O eu e seus afetos: um ensaio sobre a ilusão identitária. O Ego e o Id. Ética a Nicômaco. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.23-80. A reflexão acerca de valor realizada aqui teve como base: BARROS FILHO.21.71. Ecce homo. p. por imaginar as coisas que aumentam ou facilitam a potência de agir do corpo”. Eduardo. p. Bauru: Edipro. p. ver: HOBBES. ver: BARROS FILHO. 21 Ver nota 10. 22 BARROS FILHO. 30 BAUMAN. em especial: MERLEAUT-PONTY.97-103. Leviathan. Friedrich. 1983. Sobre isso. Clóvis.. Clóvis.. 1983. Rio de Janeiro: Imago. 29 BARROS FILHO. Benedicto. tanto quanto pode. e O mal-estar na civilização.cit.. é indissociável da comunicação. aqui. 31 Op. p. Friedrich.1 105 ABBAGNANO. manter inalterada – ou elevar a potência de agir daquele que deseja. Rio de Janeiro: Nau. não haveria um entendimento e comunicação possíveis entre diversos indivíduos. 1976.65-69. Zygmunt.cit.cit.cit. p. 19 Op. Para aquilo que a gente não alcança através da vivência. p. Thomas. 2003. Op.Pedro Calabrez Furtado .98-103.cit. São Paulo: Companhia das Letras. totally. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 16 FOUCAULT. mais do que ele mesmo já sabe. Amor líquido.. Vida Líquida. p. ver em especial duas obras: FREUD. p. 2004. 1997. É necessário um sentido comum para que haja um mínimo de ordem e comunicabilidade. Ética – III. 27 Conatus é uma expressão cunhada por Thomas Hobbes para definir a energia vital que caracteriza a potência de agir humana. in Revista FAMECOS. Op. Ver.106. p. 33 As reflexões sobre o auto-engano foram feitas a partir da obra: GIANETTI. 2007. para que se deseje. Michel. incluídos os livros. Se o desejo dependesse exclusivamente da elevação da própria potência.73-150. Op.. lembrar uma passagem de Nietzsche: “No fim das contas. Clóvis. Só propomos que. Nicola.. 2007. Op. 34 É interessante. New York: Touchstone. p. been begotten upon the organs of sense. Porto Alegre: PUC-RS. Friedrich. In: O futuro de uma ilusão. HOBBES. 32 NIETZSCHE. o mal-estar na civilização e outros trabalhos. Thomas. Para uma leitura sobre a constituição desse sentido comum.90. 24 A ética – como atribuição de valor às ações –. 2006. 2005. entretanto.45-46. In: Espinosa – Os Pensadores. New York: Touchstone. Sigmund. Op. p.
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