Colette - Gigi (Portugues)

March 20, 2018 | Author: Shirlei Lacerda | Category: Paris, Suicide, Love, Life, Car


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Description

GIGICOLETTE GIGI é certamente uma das obras-primas de Colette, um dos romances em que ela empenhou toda a pujança de seu gênio artístico. Vamos encontrar em suas páginas as mesmas características excepcionais da Colette que conhecemos através de traduções anteriores: a sensibilidade lírica, a perspicácia a envolver em situações inesquecíveis os seus personagens, a vigorosa capacidade de criar tipos humanos sem descambar para a caricatura fácil, enfim, a pureza do estilo que a consagrou como um dos grandes clássicos da França contemporânea. GIGI trata da história de uma jovem adolescente — Gilberte — que, iniciando-se nos segredos da vida, sofre as dúvidas e desilusões próprias da sua idade. É malícia que toma contacto com as coisas indispensáveis à graça feminina: a beleza de um vestido, o encantamento de um novo penteado, a elegante simplicidade de um ornamento... Viver o momento fecundo da transformação da criança em adulto; mal liberta dos hábitos infantis, já é uma promessa fascinante da mulher, aquela que um dia desabrochará em todos os seus encantos. A esta jovem, Colette reservou alguns problemas de espantosa realidade. O maior deles, na pessoa de um velho conhecido da família, Gaston, que se apaixona pela vivacidade e juventude de Gigi. Ela o rejeita, é demasiado inexperiente para reconhecer a autenticidade de tal afeto, mas... é mulher! E o romance termina com uma solução original, capaz de encantar os leitores mais diversos. Em GIGI, Colette é uma romancista que nos ensina as relações entre os seres e a vida. Magnífica pintora da alma, sabe captar e fixar o delicado movimento que anima a meninamoça nas suas primeiras experiências perante a crua realidade da vida. COLETTE GIGI Prefácio de ROLMES BARBOSA Tradução de YOLANDA STEIDEL DE TOLEDO 2ª edição 1959 DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO Rua Bento Freitas, 362 Rua Marquês de Itu, 79 SÃO PAULO Título do original: G IG I IMAGENS DE COLETTE A DAMA NA JANELA A mais viva lembrança que guardamos de Colette remonta aos fins da primavera de 1953, em Paris. Não precisamos nos esforçar muito para, fechando os olhos, vê-la de novo à janela do seu apartamento no Palais Royal, o cabelo cor do tempo esvoaçando ao sol e uma écharpe de Schiaparelli no pescoço, de onde emergia um rosto faceiro, sem idade, tão novo quanto os arbustos dos Champs Elysées e tão velho quanto os muros da Saint-Chapelle. Quem a visse do imenso pátio, a cumprimentar vizinhos e conhecidos, mal poderia imaginar o esforço que lhe custava permanecer meia hora à janela. A moléstia que a prendia, geralmente, numa cadeira de rodas, cobrava-lhe pesados juros por aqueles momentos de distração em que, apoiada no peitoril, ela sentia, através da praça, o pulsar de sua Paris. Para os que a conheciam, e que paravam para saudá-la, a dama respondia com o "coquetismo" de mulher habituada a meio século de homenagens. De certa maneira, ela representava, para os transeuntes, tudo quanto a capital francesa possuía de brilhante, de espirituoso e de vivo — de uma vivacidade a cujo encanto não escapavam os que, dos pontos mais remotos da terra, ali chegavam. Aos nossos olhos, sua face, ao corresponder ao nosso cumprimento, assumia o aspecto de uma máscara fascinante, desligada do tempo e do lugar, máscara que em certos momentos se humanizava, como a de uma pessoa que tivéssemos conhecido desde sempre. E ao sol primaveral, o rosto da escritora célebre, da detentora do mais alto posto da Legião de Honra, da autora lida por milhões de pessoas em todos os continentes, desaparecia como por passe de magia, para dar lugar à fisionomia entre pensativa e maliciosa da pequena "Claudine". A memória guarda também outra imagem da Colette daqueles dias: a Colette dos inesperados acessos de falta de ar, que a obrigavam a interromper, em pânico, as entrevistas marcadas com os admiradores que de todas as partes do mundo a procuravam. Nessas ocasiões, os visitantes — sempre recebidos com alegria pela escritora que, paralítica, adorava viver rodeada de gente — permaneciam contrafeitos no salão povoado de enfeites pitorescos (e no qual descobrimos uma coleção de borboletas do Brasil, cuja iridescência devia iluminar o aposento nos dias de inverno). Permaneciam contrafeitos, surdamente revoltados contra a estupidez dos males que atormentavam a anfitriã. E retiravam-se cabisbaixos, envergonhados de gozarem de saúde, de poderem andar e sair pelas ruas, deixando-a abandonada atrás daquelas portas duplas. No dia seguinte, Colette tomava mil e um cuidados para se desculpar com as visitas. Através de telefonemas e telegramas, desdobrava-se em explicações: "O mal-estar que sentira na véspera fora algo sem importância"... "Uma ligeira enxaqueca"... "Não durara nem um minuto"... Grande, admirável Colette que se valia de todas as artimanhas para ocultar dos demais o seu sofrimento! Na sua generosidade de mulher superior, fazia todo o possível para que os visitantes não saíssem da sua casa com o sentimento do quanto a vida pode ser má e absurda. Guardamos outras imagens dessa mulher extraordinária. A mais fiel, porém, continua a ser a da "dama na janela" do Palais Royal: um ser humano de extraordinária fibra, enfrentando cara a cara o duro destino e, ao mesmo tempo, sorrindo para a praça onde outrora brincavam os delfins de França, sorrindo para a sua cidade e para o mundo. Um sorriso indefinido de quem sabe que, no fundo, tudo está certo. À SOMBRA DE SIDO Quais as raízes do gênio de Colette? De onde lhe vinha a experiência que a levou a retratar com tamanha acuidade o drama do homem e da mulher eternamente irreconciliáveis, numa sociedade tragicamente fútil e insegura de si própria?. Quais as origens da pessoalíssima filosofia de vida, que muitas vezes nos faz erguer os olhos das páginas de seus livros para perguntar, a nossos botões, como adquirira ela tal conhecimento das amarguras humanas? Como sucede com todos nós, foram múltiplas e variadas as raízes que nutriram Colette. A vocação para as letras lhe foi, possivelmente, transmitida pelo progenitor, o bonacheirão Jules Colette, oficial dos exércitos de Napoleão III. Tendo perdido uma perna na campanha da Itália, foi obrigado a renunciar, com desespero, à carreira das armas, resignando--se a ser "monsieur le precepteur" numa cidadezinha de província, onde desposou uma pensativa e atraente viúva, Sidonie Landoy. A princípio, o "capitão Colette" tentou encontrar na literatura uma compensação para as suas decepções. Jamais chegou, porém, a realizar qualquer obra consistente. Muitos anos mais tarde, evocando a influência paterna, a autora de Le Fanal Bleu diria:" Era ele que queria sair ao sol e reviver quando eu comecei, obscuramente, após a sua morte, a escrever..." A grande, a decisiva influência sofrida por Colette foi, porém, a de sua progenitora, Sidonie Landoy, que até nós chegou com o diminutivo de Sido. Aliás, Sidonie foi, também, o nome que a futura romancista recebeu na pia batismal: Gabrielle-Sidonie Colette. Assim foi ela batizada na velha igreja da pitoresca SaintSaveur-en-Puisaye. Ali mesmo fez os primeiros estudos, completados, depois, em Auxerre. Toda a sua formação, porém, desenvolveu-se à sombra de Sido. Extraordinária Sido! De aparência simples e pacata, excelente dona de casa e anjo providencial da família, ela concentrava nos olhos grandes e profundos toda a luminosidade de seu espírito de mulher que vivia muito à frente de sua época. Quem a via, inteiramente dedicada aos seus e aos cuidados do jardim e da horta, mal suspeitaria a força moral e a independência de caráter que nela palpitavam. Sua existência, exteriormente plácida e medíocre, transcorria, de acordo com uma lei própria, com um código secreto que trazia escrito no fundo do coração. Era capaz de permanecer horas num canto afastado do pátio verdejante, contemplando os pássaros que vinham bicar as uvas e sorver o mel das margaridas. Ela amava as pessoas, os animais e as coisas com amor total, sem condições — amor no qual pairava forte sentimento pagão da natureza. Por outro lado — como nos conta a filha — não obstante sua experiência da vida, Sido negava peremptòriamente a existência do mal. Quando, em sua presença, alguém aludia ao tema, ela dava de ombros e procurava mudar o rumo da palestra. Foi à sombra dessa mulher singular que, no fundo de sua província, lia, todas as noites, antes de dormir, um capítulo das Mémoires de Saínt-Simon, que a futura moralista de Les Vrilles de Ia Vigne floresceu. Na obra da filha projetar-se-iam os anseios e os sonhos que devem ter atormentado a esposa do capitão de Napoleão III. No fundo, em Sido, mesmo antes do nascimento de Colette, já existia Colette. Em Colette, mesmo após a morte de Sido, continuou a existir Sido. WILLY Após Sido, surgiu "Willy". Claro é que o parisiense fátuo e mundano jamais logrou suplantar a sogra no que diz respeito a influências sobre a escritora de Les Heures Longues. Quando, aos 20 anos, Colette tornou-se esposa de Henry Gauthier-Villars (conhecido nas rodas boêmias e jornalísticas como "Willy"), que nunca passou de uma espécie de isso das Claudine a Gigi. Não obstante o "espírito" que dá um sabor especial a certas passagens das aventuras e desventuras da impossível heroína. Além disso. esse milagre que se chama vida. a extrema vitalidade de todos os tipos que lhe brotaram da pena. A OBRA Poder-se-á apontar falhas nos livros de Colette. correspondendo à bem remunerada demanda dos editores. aloucadas e cínicas. ROLMES BARBOSA . era assim? Reconheça-se. semiboêmio. ele mesmo se encarregaria de assiná-las. mas também a psicologia das gerações que. O casal instalou-se em Paris e passou a freqüentar um mundo exótico. a preocupação com os pequenos nadas de uma sociedade brilhante. ocos. cuja filosofia da vida consiste na satisfação das exigências da vaidade. financeiramente lesada por "Willy". viu-se compelida. da "Exposition Universelle" ao general-presidente De Gaulle. poucos anos após a sua morte. para poder viver nos primeiros tempos. Colette requereu divórcio. Logo depois Colette descobriu que desposara um homem sem escrúpulos nem princípios. presunçoso e vazio.. à carreira das letras. iniciou uma fase de sua existência muito diversa da que até então conhecera. Surgiu. Um segundo casamento lhe trouxe anos de desafogo. raras qualidades de narradora e de criação de tipos. deixará de "participar" de sua obra. Colette transpunha para os seus livros o mundo que a rodeava. do estômago e do sexo. de corpo e alma. vivia sempre à custa de expedientes confusos. certamente. lhe daria material para escrever A Vagabunda. Ninguém poderá negar que ela sabe fixar com precisão. repetiram em Paris. De fato. Colette conhecia o segredo de prender a vida nos seus livros. Um desses expedientes levou-o a insistir com a esposa — cuja queda para a literatura era assunto de conversa entre os conhecidos — para que. e em certos outros recantos da França. muitos dos seus personagens nos parecem mesquinhos. para garantir a venda. a série "Claudine". povoado por pessoas amáveis. os equívocos da comédia humana. decepcionados. cujo único objetivo na vida era a caça aos prazeres fáceis. dotado de um mínimo de sensibilidade. Sozinha em Paris. a aceitar contratos para atuar em espetáculos de "music-hall". egoísta e irresponsável. Os que adquiriram tais livros com intuitos inconfessáveis ficaram. anos mais tarde. que ela aproveitou para se lançar. Prendiaa com a ânsia de quem receava morrer um minuto depois. desde o início. Foi uma experiência inesquecível que. lhe caracteriza a obra. assim. irritantes dentro da sua autosatisfação. como artista honesta para consigo própria.cronista mundano. Muitos críticos lhe censuram o tom de futilidade. Na verdade. E. Daí o signo de perenidade que desde já. porém. a jovem autora revelava. passando por no mínimo duas dezenas de livros que constituem contribuições notáveis para o brilho das letras francesas dos últimos 50 anos. E para tornar o negócio mais completo. mas "pobre por dentro"... Farta de ser enganada e explorada pelo esposo. No entanto. sobretudo. além disso. em suas páginas. Ninguém. escrevesse novelas com cenas um tanto equívocas.. Poderemos censurá-la pelo fato de ter vivido num mundo que. quer ela quisesse ou não. O êxito foi total desde os primeiros tempos. Pois ela sabia retratar não somente "o momento que passa". moderando-se Mme Alvarez. A saia escocesa descobriu-lhe as meias grosseiras até para cima de uns joelhos cuja rótula oval era. com estas saias curtinhas. . a perfeição mesma. quando me sento. graças a Deus. à esquerda ou à direita. de um azul escuro e belo de ardósia molhada. — Calça é uma coisa. porém. Sobre isso. vovó. não era nisso que pensava. para variar? — Nem pense nisso. — Será que não posso ir sem papelotes. — Se você me deixasse ficar. de qualquer jeito. — É Frasquita que mamãe vai cantar hoje? — É. longas como as de uma garça. — Que me façam saias mais compridas para eu não ficar o tempo todo dobrada como um Z. sob o telhado de cabelos. e eu fosse ver tia Alicia domingo que vem? — Realmente! — disse Mme Alvarez com altivez. Por outro lado. Apanhava as mechas louro-cendradas.. E Gilberte ergueu-se de um salto: — Olhe. estou de calça e saia de baixo. com suas tenazes terminadas por dois pequenos hemisférios de metal maciço e preparou os papéis de seda. — Vovó. e decidiu : — Outro não há. sem que ela o soubesse. sei um pouco mais que ela. tenho que estar toda a hora pensando no meu "isso-que-você-está-pensando". Está ouvindo. — Mas vovó. Já disse que. enroladas e aprisionadas no papel fino e achatava-as entre as metades de bola do ferro quente. — Tudo vai da atitude. O odor do ferro quente e o do papel fino. vovó. Está ouvindo? Venha aqui enrolar os papelotes. aliás. a espessura magnífica da bem cuidada cabeleira de Gilberte. bem que eu gostava de lhe dar outro nome. para evitar indecência. Gilberte. Naquele momento. Quase nunca procurava subtrair-se à moderação familiar. Gilberte. ou me acrescentam um babadinho. ou me fazem saias um palmo mais compridas. sentada num banquinho baixo. — Já sei. dobrá-los juntos. — Silêncio! Não tem vergonha de chamar a isso o seu "isso-que-você-está-pensando?" — Por mim. vovó? — Acho que não — disse. Mme Alvarez apagou o fogareiro. — Não preciso de minha irmã — disse azedamente Mme Alvarez — para te inculcar princípios de conveniência elementares. E esta noite Se eu fosse rei. que. vovó. De sob a fileira de caracóis louro-cendrados dardejou um olhar incrédulo.. A brevidade da barriga da perna e a altura do arco do pé eram vantagens que levavam Mme Alvarez a lamentar não ter a neta estudado dança. — Você não terá outra sujeição para me fazer? — Sim — disse Gilberte.. Gilberte sabia vã qualquer resistência. tia Alicia vive repetindo isso — murmurou Gilberte. Pousou sobre a chama azul de um fogareiro de álcool o velho ferro de papelotes.. amolentavam a menina imóvel. A paciência e a habilidade de suas mãos delicadas iam reunindo em grandes anéis dançantes e elásticos. que rescendia vagamente a baunilha. anelar as pontas dos cabelos já é o cúmulo da excentricidade. olhou no espelho da lareira sua pesada figura espanhola. Sente no banquinho. decência é outra — disse Mme Alvarez. de que você vai à casa de tia Alicia.GIGI — Não esqueça. e se você me arranjasse uma onda de lado. você precisa aproximar os joelhos. Gilberte dobrou as pernas de quinze anos. Para uma jovem de sua idade. Ao sentar-se no banco. não lhe ultrapassava os ombros. Você compreende. parecia um rapazola de saias. Mme Alvarez. Todas as atitudes de Gilberte eram ainda governadas pela indiferença das crianças castas. se eu quase nunca saio com mamãe? Ajeitou a saia que lhe subia pelo ventre liso. então. acabara por adotar o nome de Inês. perguntou: — Ponho o casaco de todo o dia? Acho bom. como fazem as colegiais em recreio. de rendas que dizia modestas. — E como se haveria de saber.— E muito agradável seria. num teatro subvencionado. se você não sabe. raramente parecia uma mocinha. suspirava Andrée. um salto de alegria e abraçou Lachaille. a filha solteira. Gilberte era da altura da avó. quando lhe falta o raciocínio de uma criança de oito anos!". Pode arranjar-se muito bem. aos sapatos molière comprados feitos. Diante disto. a vida discreta das segundas cantoras. Usava pó de arroz branco demais e.. revidava plàcidamente Gilberte. suspirava a mãe. à força de usar o nome de um amante defunto. eu vou abrir que estou de saída. Lachaille e suma daqui! — Deixe a menina — suspirou Gaston Lachaille. titio! Mas então. Em volta dela gravitava em boa ordem a sua família irregular. ninguém podia predizer coisa alguma. pudica tarde demais. "Vestidos compridos. como o peso das bochechas repuxava-lhe um pouco as pálpebras inferiores. silenciava apalpando as amígdalas sensíveis. quem há de saber?". mostrar-se ao lado de uma marmanjona aparentando pelo menos dezoito anos! E a carreira dela? Reflita um pouco! — Pois reflito — tornou Gilberte. porque sabem que eu o conheço. vovó. estão batendo. titio. quase exclusivamente familiar. Pois era uma menina dócil e se acomodava à vida caseira. Que carro trouxe hoje? É a Dion-Bouton nova. o queixo curto e. do canotier de feltro enfeitado com uma pena. "Se não fosse por mim. "Gilberte me desanima". "Gigi — assegurava tia Alicia __é um lote de matéria-prima. — Mas. "Meu Deus.. A boca era grande e o riso se abria sobre dentes de um branco maciço e novo. . — Diga até logo a M. Tia Alicia — nunca ninguém ouvira dizer que lhe tivessem falado em casamento — vivia só. Mme Alvarez examinou a neta." — Vovó. Quanto ao seu rosto. você desanimava por alguma outra coisa".? Vista o casaco liso e ponha o canotier azul-marinho. a uma prosperidade caprichosa. um nariz. preferira. abandonada pelo pai de Gilberte. titio? — elas não dão razão a Liane.. — Ela. replicava Mme Alvarez. Gigi? Então pegue o meu carro e depois mande-o de volta. que hoje é domingo. engordara e lustrava os cabelos com brilhantina. titio! Oh! A cara da tia Alicia! O focinho da porteira! . cheia de cerimônias e criancices.. — Que pena. Você não tem nem sombra de barriga e ainda assim acha jeito de empiná-la para a frente. enfadada demasiado cedo. "Minha filha. é coisa que todo mundo sabe! Estava no Gil Blas e começava assim: "Uma secreta amargura esgueira-se no produto açucarado da beterraba" . Quando é que você vai adquirir o senso do que convém? De pé. parecia um anjo rígido. fala sem malícia. você se zangou com Liane? — Gilberte! E você tem alguma coisa com isso? — censurou Mme Alvarez. conversível de quatro lugares? Dizem que se pode guiá-la com uma mão só! Você precisa de luvas bonitas. — Que importância teria isso. — Não pode juntar mais as pernas? Desse jeito até o Sena passaria debaixo de você. titio.. — Obrigada. adquirira uma palidez amarelada. dizia Mme Alvarez. Você vai ver tia Alicia. e. mas pode também dar em droga. No curso suplementar as meninas todas falaram disso comigo. tenho que o deixar tão depressa! Vovó quer que eu vá ver tia Alicia. Dizem que ela não está agindo direito! — Gilberte! — repetiu Mme Alvarez. E ponha as luvas. Andrée. E é verdade mesmo que entre Liane e eu está tudo acabado. . para sua mãe. Vovó — gritou do corredor — é titio Gaston! Voltou acompanhada de um homem alto e jovem a quem segurava pelo braço enquanto falava. no curso suplementar. ao menos. onde foi ela buscar essa baratinha?". por favor. Andrée. entre as altas maçãs do rosto. E a família dava grande importância às opiniões de tia Alicia — e às suas jóias. Parecia um archeiro. E — sabe. . Gilberte deu um grito. — Uma menina de quinze anos! Acho que a mãe dela está louca. as três mulheres não reclamavam dele nem colares de pérolas. que não é nada para se ver. as cigarreiras de metal maciço. Pela janela. ou antes. o comum dos mortais julgava-o passível de ser logrado. — Um solitário! — exclamara Mme Alvarez. Gaston: muitas vezes é em Paris mesmo que colho a minha melhor camomila. no inverno. Mas. Mas não falava a verdade. e se ela se casar. seu insípido palacete no Pare Monceau. em terrenos baldios. — Por que será que a camomila que me fazem lá em casa tem sempre cheiro de crisântemo amanhecido? — suspirou Gaston. O homem traído acomodou-se com delícia enquanto a dona da casa dispunha as duas chávenas na bandeja. Gigi rompera com sua colega de curso. ela não retirava outra vantagem senão a familiaridade de Gaston Lachaille e o prazer de pobre que aquele homem rico gozava. as mesadas de Liane e seus presentes de aniversário. O simples bom senso é que exigia que a mãe Poret pusesse o anel num cofre. no verão. comprava um iate que logo revendia a algum monarca da Europa Central. Otero. Meus Deus. Gaston — disse Mme Alvarez. viu partir o carro. E enquanto as coisas não se esclarecem bem. uma meia por cerzir e uma caixa de pastilhas de alcaçuz. que beleza a fazenda do seu terno! Essas listas imprecisas são da maior distinção. e em Monte Cario. que as sete voltas do de Mme de Pougy careciam de animação. veneráveis e inacessíveis. num tropel de potrinho sem ferradura. e sabiam falar com decência e consideração de coisas escandalosas. como Mme Antokolski. que assegurava ter conhecido muito. Mme Poret que retire a filha da escola. Por isso os carros derramavam-se molengas. nas curvas.E lá se foi. verdadeiras ou falsas. vovó? — Os acontecimentos. Tanto mais que o barão é homem para voltar atrás. Aí está um tecido como seu pai gostava. retirou umas revistas côncavas. — Mas vovó! — respondera Gigi — não é culpa da Lydia. presente do barão Ephraim. descansando na poltrona velha. Documente. nem solitários. dizia: "Aí está o facies de um sujeito explorado. impostos por Caroline. De tempos em tempos. vovó? . Liane de Pougy e outras pessoas notórias de 1899. fazia um bom donativo em espécie. coitado. ou no banco. Mas se ele se declarou mesmo. — Espera o quê. Gaston Lachaille só prodigava os mimos e luxos regulamentares: seus automóveis. quando esta lhe exibira um solitário montado num anel. De uma poltrona derreada. num cupê forrado de cetim malva. os automóveis eram altos e ligeiramente alargados em cima. Olhando-se no espelho. meu pobre Gaston. Acredite se quiser. numa subscrição qualquer. Gigi sabia que o pesado fio de pérolas negras de Mme Otero era "banhado". Desde os doze anos de idade. Lydia Poret." Como tinha o nariz longo e os olhos negros e grandes. incrustadas de pedrarias. Mme Alvarez evocava a memória de um Lachaille pai. Uma camomila pequenina. Naquele ano. o champanha e o bacará em Deauville. — Mamita — disse Gaston Lachaille — você não me faria um chá de camomila? — Até dois — respondeu Mme Alvarez. Sob o teto embaçado pelo gás. nem chinchilas. nem a peliça debruada de zibelina escura. Ora. — Por que não na caixinha de jóias? — Porque a gente nunca sabe. em cada encontro. quem diria! — Mas. artificialmente tinto. — Você está mimando a menina. — Sente-se. se o barão lhe deu o anel! — Cale-se! Não é o barão que eu censuro. mas o gosto é uma delícia. Destas antigos relações. — Questão de cuidado. O barão sabe o que deve fazer. Só uma vez. e que seu colar de três voltas graduadas valia "um reino". a verdade é que ele não era tão elegante quanto você. você me fará o favor de não ir nem voltar do curso com a pequena Poret. enquanto espera. ou comanditava um jornal novo — sem que com isso ficasse mais contente. Mas seu instinto comercial e sua desconfiança de rico o protegiam: ninguém jamais conseguira roubar-lhe os botões de pérola da camisa. por causa dos chapéus desmesurados. que o famoso bolero de diamantes de Eugénie Fougère não valia nada e que uma mulher que se respeita não anda. com o dedinho no ar. um calorzinho rastejante vindo do aquecedor quase frio. — apoiou discretamente Mme Alvarez. — É mesmo verdade essa briga? Por um lado.. — E neste caso você se saiu muito bem. — Você faz as coisas como homem que sabe viver — disse ela. — Mas que colar! Trinta e sete pérolas.. cortada à escovinha.. onde Gilberte esquecera seus cadernos. o príncipe Milan. distraidamente. outro por Sandomir. Uma desordem sem vileza. compreendo que a coisa lhe tenha causado aborrecimentos. Muito fechada.. Ao baixar o olhar.— Casar? Casar com quem? — Com o barão? Mme Alvarez e a filha trocaram um olhar atônito. não é sofrendo que estou. "adaptado à eletricidade". Arranjaria uma mulher da sociedade. eu estou é chat. um professor de patinação do Palais de Glace. Sem falar. O rei da Espanha. já me disseram que quem não morre do mal. o visitante estendeu a xícara vazia que Mme Alvarez encheu... procuraria vexá-la. — É trocar cavalo zarolho por cavalo cego. ia comendo as pastilhas de alcaçuz. acha-a um . você está mesmo sofrendo muito? — Propriamente falando." — Então. Diz que gosta mais de viver de um belo passado do que de um presente feio. É tudo o que há de mais incorreto! Mme Alvarez. agiam como outros tantos filtros benfazejos sobre os nervos daquele homem rico. aborrecido. — Saí como corno. solitário e traído. O pobre Gaston escutava.. — Parece que caiu de outro planeta. não é? Hoje as mulheres não sabem mais guardar as distâncias. desajeitada a ponto de ir enfiar-se num cantinho tão pequeno da Normandia. com oito meses.. Ainda por cima. — Ah!. diante do qual Mme Alvarez manifestou a admiração devida a uma pérola de centro. Gozava assim um conforto igual ao de olhar a rosácea enfumaçada do lustre suspenso.. — Com efeito.. Esperou o presente de aniversário e raspou-se.. Sobre um piano de parede. meu pobre Gaston — disse Mme Alvarez. Avançou o polegar branco e bem cuidado.. o que tornava evidente sua semelhança com George Sand. que não foi preciso grande esperteza para descobrir que na estalagem só havia dois quartos: um ocupado por Liane. Um som abafado de piano atravessava o teto. Como é justo. isso sim. — Se não é indiscrição — volveu Mme Alvarez — como é que isso foi acontecer com você? Eu li os jornais. — Se eu fosse você. você sabe. é sempre a mesma. por outro. O conteúdo de uma cesta de trabalho estava meio derramado sobre a mesa da sala de jantar. — Tudo bem na família? Que notícias há de tia Alicia? — Minha imã. Gaston. uma ampliação fotográfica de Gilberte. pergunto eu. mas quem pode se fiar neles? Lachaille puxou o bigodinho revirado a ferro e passou os dedos na cabeleira forte. mas. bebendo camomila escaldante. "Esta pequena é de desanimar — murmurou Andrée. mas fiel ao vasto abajur verde-nilo. — Eu lhe dera um colar — disse Gaston. — Oh! mais ou menos a mesma coisa que das outras vezes. Gaston. as pálpebras não lhe cobriam inteiramente os globos oculares salientes. rajás às dúzias. é um que valsa com a Polaire no five o’clock. Mme Alvarez pareceu não ouvir. A do centro era do tamanho do meu polegar. Em quem há de a gente se fiar. um raio de sol primaveril nas rendas da cortina.. — Obrigado pelo remédio ~ disse Lachaille que.. fazia pendant com o retrato a óleo de Andrée num papel de Se eu fôsse rei. E logo após o aniversário. Não é delicado. o quediva. Respeitou então o silêncio de Gaston Lachaille. mexia na xícara a colherinha. talvez seja melhor para você. Acredite quem quiser! É muito gentil com Gigi. muito sorrateira. — Meu pobre Gaston. titio. — Oh!. de olho no baralho usado que Gilberte manejava. — Percebo a malandragem — disse Lachaille mais alegre. Diz que a falta de elegância à mesa tem provocado brigas entre muitos casais. — Deixe a menina. — E então. o ovo quente e os aspargos. isto não pode ser! — Pois vai ser assim mesmo — disse Gaston. descanso um pouco. Gigi? Meias de seda? Fez-se triste a grande boca infantil de Gilberte. O essencial é que andei passeando no fonfom do titio. estava em luta contra uma terrível vontade de chorar um pouco. aqueles dez mil buquês que ela atirava — sabe de onde vinham? Pois ela contratou três mulheres durante dois dias e duas noites. tenha modos — ralhou Mme Alvarez.. Até parece uma criança de dez anos. Na semana passada. — Ora veja.. — É a mesma coisa. enquanto andava no seu automóvel. — Valérie tem recursos. Você vai me dar outra caixa. de contar suas desgraças.pouco atrasada. Sua boca entreabriu-se. — Gilberte. . assim para ter o jeito de que está cansada de tanto luxo. isto vem a calhar. — Para quê? — Diz Alicia que é de uma grandíssima utilidade. Quer jogar piquet? Hoje é domingo e mamãe não volta entre o espetáculo da tarde e o da noite. Você pensa que Gaston tem tempo para se preocupar com o seu alcaçuz? Endireite a saia. e os cabelos caíram-lhe sobre as têmporas e as faces. de maneira impecável. — Este ano. Gigi. ensinou-a a comer. que falta de respeito! Os olhos desolados de Gaston Lachaille sorriram. e os torrões de açúcar são mais saudáveis que os bombons. — Não me apetece o seu açúcar. pois ela é muito gulosa. — Desça os joelhos.. — Que significa isto? — Significa — disse a pequena — que tia Alicia estava indisposta. titio? Você está com cara de pesadelo. — Você vai deixar gente como Valérie Cheniaguine ganhar o estandarte bordado. quer que eu mande essa menina para o quarto? O herdeiro Lachaille. Sentou-se num tamborete bastante alto e dobrou os joelhos até ao queixo. — lá de volta? — disse Mme Alvarez. Nos Halles! Só o chicote do cocheiro. Diverti-me muito! Atirou longe o chapéu. Quem foi que comeu todo o meu alcaçuz? Ah!. o ano passado. pelo menos? — Gilberte. aproveito as minha infelicidades para economizar rosas vermelhas.. sonhador. para Gigi. Mme Alvarez juntou as mãos. Gaston. Mamita. só para amarrar os buquês — e as flores foram compradas no mercado dos Halles. — Oh!. — E pode estar certo que ela não se arruinará para isso! Gaston. fiz uma cara de mártir. — É verdade — disse Lachaille. você não faria uma coisa dessas! Sem você o desfile parecerá um funeral. Alicia não é tola e. titio. — Deixe a menina. as quatro rodas e os arreios é que eram de Lachaune. E você que belos projetos tem para a Festa das Flores! Tenciona deslumbrar-nos mais uma vez? — Eu não. deixando ver os dentes brilhantes.três pedras de toque de uma educação são a lagosta à americana. Diz que as . — Sabe. — Isso diz você. que leve a breca! — resmungou Gaston. isto assim não pode continuar.. comi todo o alcaçuz! O passa martelado de Gilberte soou militarmente na antecâmara.. porque os fabrica. Que é que você quer. Oh! Gaston. Gaston. — É verdade. Gosto mais de bombons. aposto dez quilos de torrões de açúcar. Aqui. eu respiro. lagosta à americana. de adormecer naquela poltrona velha e de jogar piquei. — Pode parecer o que quiser — disse sombriamente Gaston. Tivesse aquela cabeça a mesma atividade das mandíbulas. se eu perder.. quer que estude mais. em vinte. não se torne desprezível". verde-nilo com rosinhas rococó bordadas nas ligas. de todas as roupas que você vê no palco. vamos comer um resto de cassoulet requentado. eu já não sei mais. sobretudo com os pais que vêm buscar as filhas à saída. para variar.. Permite que eu vá cuidar do jantar? — Sete e meia! — gritou Lachaille. naturalmente. Gigi levantou para o teto a cara de anjo de nariz chato. porque assim parecem alunas do Conservatório. E vovó e tia Alicia dizem que o teatro impede de pensar no lado sério da vida. — Gaston.. Não. — São muitos. nem seus olhos meio africanos intimidavam a parceira que. uma vez sopesada.. Nem seu nariz importante. Mexa-se. — Esta semana o ganso está proibitivo.. Um. que. Corte. É proibido usar pó de arroz. — Gilberte.— As meias de seda me dão coceira. É proibido usar espartilho.. Gigi! — Por que um Barthou — perguntou Gilberte. que voltava. E você. titio. "É muito simples. que preciso de lições de dança e de etiqueta e que tenho de estar sempre a par de tudo e saber o que é um quilate e jamais permitir que o chique dos artistas me encha os olhos. E. — E vem então tia Alicia. Enfim. — Ora. sua aranha". e esta!. — Não é justo — disse Gilberte. Então nunca vai ao teatro? — Quase nunca. . não seja indiscreta — disse Mme Alvarez.. — Você terá o seu rolo de música e o seu alcaçuz. como criança que deu uma corrida. que estraga a pele. Gigi.. É proibido travar conhecimento com as famílias das colegas do curso.. de cotovelos fincados. O mais conhecido é o menos bonito. que estraga o corpo. queria antes um rolo de música. tenho cinco cartas! — Grande coisa! Estou com um jogo de ladrão! Aqui. titio. muita paixão e troca de injúrias abafadas. tocando outra música. um lombo de carneiro trufado. Diz vovó: "É proibido ler romances. inclinou a cabeça. Gigi. Eu queria. deixou escorrer de uma à outra face os anéis dos cabelos: — Quero um espartilho Persephone. que é que vai comer hoje no Larue? — Sei lá! Filé de pescada com molho de mariscos. dizia Lachaille. Jogavam os dois com pouco barulho. Sobre a rua estreita.. não é para você fugir — disse Mme Alvarez — mas já são sete e meia. que soava oco. — E eu que vou jantar no Larue.. o herdeiro dos torrões de açúcar disputava ardentemente suas cartadas. respirando entre as palavras. mas minhas colegas do curso superior botam os cadernos em rolos de música.. os Barthou? — Dois.. "Sua venenosa. Gosto muito de cassoulet. com Dion. é só um cassoulet de porco — disse modestamente Inês Alvarez. — Você estuda música? — Eu não.. titio Gaston! Nem sempre as duas estão de acordo. e diz que eu já passei da idade do colêtecorpinho.. Ela não conhece Feydeau. que o é menos. não há uma. não. Soergueu sobre as orelhas as ondas dos cabelos e deixou-os cair outra vez resfolegando: — Ufa. Daí a instante. — Ora. dá tristeza. retrucava a pequena. com as espáduas ao nível das orelhas.. ia descendo o crepúsculo de março. Não conte a vovó que eu disse. é de arrebentar os miolos da gente. diz ela. . — Mando-lhe um de Bon Abri — disse Gaston. que vem a ser? Lachaille depôs as cartas. "Nariz de corvo". parecia um pajem bêbado. como esquenta esta juba! — E o que é que elas chamam o lado sério da vida? — Oh!. Feydeau e um Barthou! A última rodada. É proibido parar sozinha diante de vitrina de loja. exasperados o azul dos olhos e o vermelho das faces. pasmado. — Não gosta de teatro? — Loucamente." Falava depressa. — E Feydeau. que é um belo rapaz e outro. como você bem sabe. E ameixas cozidas. — Cantou bem. ela me dava adeus da janela. ajude M. para mostrá-lo à tia Alicia. meio de má vontade. Você é anormal. Mme Alvarez voltou-se para a neta: — Gilberte. e róseo o rebordo dos olhos. — Sim. Guardei presunto e uma tigelinha de cassoulet quente. O presunto para sua mãe está num prato coberto. . — Você a escolheu. Por isso mesmo. e Mme Alvarez respondeu. você acha que ele vai se lembrar do meu alcaçuz e do meu rolo de música? Mme Alvarez elevou para o teto um olhar lento e pesado. não quero cansar você". não recomecemos. enquanto está lá em casa. tia Alicia afirmava que o sucesso de Andrée sobre o palco não se repetia nas ruas.. Tia Alicia estava de rendinha na cabeça em sinal de enxaqueca. sentada diante de seu joguinho de paciência. porém.. segundo o ritual: — Não dormiria tranqüila se não visse você voltar. Disse eu: "Então volto para a casa. "pirou" não se diz. Disse ela: "Estou passando mal". estou tão cansada. dando provas de um apetite pessimista. agora volte para casa. pode ser. deixe-o em lugar fresco. Ele brigou com Liane". — Mas. não esqueça disto. ai. — Uma pobre velha doente! Ela.. vovó. em terceiro lugar.. como você pode imaginar. — A pequena está deitada? — Claro. Já sei que ele brigou com aquela vitrina de jóias. Depois. e com certeza vai pagar. Ai.. Para obedecer aos usos da polidez familiar. Enquanto eu entrava no automóvel. não fique aqui se aborrecendo junto a uma pobre velha doente como eu". Gilberte estava dormindo quando sua mãe — Andrée Alvar. Traga-lhe a bengala e o chapéu. por hábito. Está bem. foi titio que ma emprestou. que foi que ele contou de Mme Liane? É verdade que ela "pirou" com Sandomir e o colar? — Antes de mais nada..— Muito obrigada. — Vovó. íntimas como? Todo o mundo fala delas. Disse ela: "Descansa cinco minutos". "Pois é — disse eu — é uma Dion-Bouton conversível de quatro lugares. Lachaille a vestir o sobretudo. levantando as mãos. Mas suportaria melhor — disse sentenciosamente Mme Alvarez — se tivesse alguém. se não estava muito cansada. Andrée Alvar comeu bastante. Quando Lachaille foi-se embora.. E. Isto tudo são histórias íntimas da vida de Gaston.. minha filha. mamãe. A pintura tornava-a ainda mais bonita. A cerveja está na janela. — "Com quem você pensa que está falando? — replicou ela. "De carro!" — exclamou ela. Mme Alvarez mãe.. perguntou-lhe. . em letra miúda. Eu deixara o carro esperando um momentinho. sem dúvida. basta saber que o comportamento de Mme Liane d'Exelmans contraria o senso comum. vovó. — É. Ainda não estou no túmulo para ignorar coisas de notoriedade pública. sem ela. — Talvez. Gaston. que nunca soube o que era um resfriado! Que topete! Que. E que adianta? Vai tudo para o Tiphaine. ele tem que pagar. Andrée censurou-a por esperar acordada. "Oh! — disse eu — não estou cansada. Só se fala na ruptura entre Liane e Gaston. Que há de novo? — Nada. diga-me direitinho por que voltou tão cedo da casa de tia Alicia? Não perguntei diante de Gaston porque jamais se deve agitar questões de família em frente de terceiros. minha filha? Andrée levantou os ombros. você nada tem a ver com as proezas de uma pessoa que agiu contrariamente ao savoir-vivre.. — Cantei. — Nada de mais. — Mas. vim de carro". . — Silêncio! Para você. a boca era descorada. Põe o avental e arruma a mesa. . farejando e lamentando o cassoulet requentado. vovó. Guarda as cartas. Gigi.. ai. . nos cartazes da Opera Comique — voltou. assim mesmo deste jeito. É a solidão que dá nos nervos e faz ver tudo negro. já chegaram até ao Gil Blas. sim. — Oh!. ele ficou devendo. não sei como é que suporto uma vida destas.. venha aqui para que eu prenda o seu cabelo e ele não caia na sopa. uma vez que ele perdeu. Vovó. Mme Alvarez apertou os lábios. sim.— Acredito. — Lamente-o. Justiça se lhe faça: ele sempre se ateve. Ele emprestou-lho. É capaz de acabar manequim ou balconista.. — Já se fazem prognósticos? — Que nada! Não houve tempo. e atenções para a menina. Andrée piscou suas pálpebras rosadas. Parece atrasada. é como se não o fosse. Gaston tem muita confiança em mim. acrescentou: — Mas prefiro não ter que lhe pedir. uma ave de suas fazendas. vá lamentando. Aconselhei-o a refletir. — Em suma.. às quinze para as oito. Renome e êxito não são obras do acaso. Você acredita que. Um carro que talvez faça sessenta quilômetros por hora. uma tal de Cobra. as primeiras informadas seremos nós. — Não — replicou Mme Alvarez — ela é extraordinária. será um fato universalmente notado. mamãe. Leve o resto da camomila para banhar os olhos. Se nos víssemos em algum aperto. mamãe.. — Olhando bem.. — Estou convencida que sim — disse ela. — Se você se contenta com isso. E. ela não tem nada de extraordinário. e ela vai saindo lá de dentro.. capaz de nos ajudar? Mme Alvarez pousou a mão no coração. Mme Alvarez esticou desdenhosamente o seu grande lábio inferior: — Apesar de tudo. uma verdadeira criança. Não é para reclamar. . supondo que se case um dia.. havendo algo de novo. — É um acontecimento mundial — disse Mme Alvarez. — Boas vacas — murmurou Andrée. .. Se isso acontecer. que talvez tenha agora uma oportunidade.. para nós. antes de tomar uma decisão destas. E sempre nos mandou açúcar para os doces e para o meu curaçau e. sim! Tanto mais que. na idade dela. desenrolando-se toda como um serpente. Você raciocina como essas desmioladas que dizem: "Um colar de sete voltas ficaria tão bem em mim quanto em Mme de Pougy. Eu. Ela não cabia em si! — Pobre pequena! Pergunto a mim mesma o que fará na vida. isto. — Mede as palavras. minha filha! Não adianta nada chamar as pessoas e as coisas pelo nome. Ele está na mais negra desolação. contento-me. do Olympia. É uma criança. — Não? — Pois é. Mme Alvarez levantou bem alto a cabeça majestosa: — Perfeitamente. refletindo.. — Obrigada.. ao menos. ele estava aí mesmo onde você está. Para ele. nunca vimos dele mais do que a tal confiança. E com uma tal fortuna a lhe pesar nos ombros! Irônica. às grandes demi-mondaines.. como é dever de um solteirão de sua classe.. a única maneira decente de esperar um brilhante casamento é ligar-se a uma das grandes demi-mondaines. mas desde que conhecemos Gaston.. se não me contentasse. — No teatro — disse Andrée — estavam dizendo que há uma artista de music-hall. Andrée retomou o jornal que trazia a fotografia da abandonada. de tempos em tempos. seria ele. isso não mudaria nada. Essas frases só me fazem dar de ombros. A prova é o renome que tem. este Gaston Lachaille. Se o caso chegou aos bastidores da Opera Comique. Gaston Lachaille não desceu ainda às artistas de music-hall. que nem por isso é lugar tão moderno . A pequena foi ver tia Alicia? — E foi no próprio automóvel de Gaston. jogando piquet com Gigi? Diz que não quer ir à Festa das Flores. . E eu seria tão capaz quanto ela de viver à larga".. As amantes de Gaston sempre tiveram categoria. — Nem ele nos deve nada. Dizem que aparece num número de acrobacia e que a trazem à cena num cesta pequenina. tão rico. Você precisava ver como ele me pediu um chá de camomila. Em todo o caso. mas é teimosa. mesmo que ele principie negando-se a dar entrevistas. no diva conversível e. — Da outra vez. limpa e de cabelos escovados.. você está dormindo? Ah. em caso de urgência e de viagem. os grandes olhos de Mme Alvarez divagaram.. Mas o cuidado com a parte baixa do corpo é a dignidade da mulher. já se levantou? Andrée.Mme Alvarez pousou na filha um olhar carregado de eqüidade: — Não se gabe muito do que fazia na idade dela. chama tua mãe! Liane d'Exelmans suicidou-se! A pequena soltou uma longa exclamação: — Ooooooo! Morreu? — Qual nada. — Você ainda não tirou os bigoudis. não entreviu na penumbra senão um chumaço de cabelo e o galão ruço da camisola. os doutores Morèz e Pelledoux. — Gigi.. enfiava as galochas e. o respeito a certos ritos e máximas. Vá dizer à porteira que nos compre as folhas da tarde. abria para os jornais. Se bem me lembro.. — Aquela só tem uma idéia na cabeça.. mas almoço no restaurante. uma. não admitindo que a empregada tocasse no café matinal. Boa noite. durante o descanso. cheirando a água de lavanda e cheia de sono. Ela sabe o que faz. Às oito horas. às sete e meia em ponto. Às dez horas. emitiram diagnóstico tranqüilizador".. Mme Alvarez havia inculcado fortemente em sua descendência. "Sem poder ainda responder pelos dias da bela desesperada. Vou acordar sua mãe. desse jeito. o que é que o titio vai fazer? 34 Durante um momento. não foi pelo Príncipe Georgevitch que ela se matou? — Onde está sua cabeça. De Gilberte. Liane suicidou-se. é verdade. mamãe. já tirara os grampos onduladores e alisara os belos bandos. Num longo bocejo atravessou no escuro o quarto em que a filha dormia. apesar da hora tardia. Você comeu bem? Tomou as duas xícaras de leite. ou antes. Tenho ensaio ao meio-dia e quarenta e cinco. pode-se deixar para o dia seguinte. não me maldiga mais a essa hora da noite. Tomou láudano. esta a carregar aqueles. — Como foi que ela fez. vovó? Usou um revólver? Mme Alvarez olhou para a neta com ar de comiseração : — Nem pense nisso." Mme Alvarez deitava-se por último e levantava-se primeiro.. ela pousou na mesa a cafeteira e a leiteira ainda fervendo. tais como: "O rosto. Depois. estou com tanto sono. e desdobrou o jornal enquanto esperava Gilberte. Entre outras virtudes. minha filha. que não se arredam de sua cabeceira. meu bem? Foi pelo Conde Berthou de Sauveterre. não se preocupe comigo. . você disse adeus a M. Andrée Alvar beijou os bandos lustrosos de brilhantina de sua mãe: — Mãezinha. o litro de leite e a empregada. acaba estragando o estômago . ia ao mercado. — Das duas. É preciso sempre começar recusando as entrevistas. comeu a segunda fatia de pão? Calce as luvas antes de sair e não se atrase pelo caminho. — Ah!. depois de verificar que Gilberte já se levantara. — Para variar — resmungou Andrée. a rigor. pendurando no braço a alça da rede de compras.. E agora. sim. Trancou-se no exíguo banheiro e. Um berro de Mme Alvarez acabou de a despertar. Às dez para as nove. Que história! Andrée. Pois o meu diagnóstico é que Mme d'Exelmans. Naquele dia como nos outros. Logo o saberemos. Dormia na sala. na idade dela. Mme Alvarez "pensava" no almoço. acendeu o bico de gás debaixo do aquecedor de água. vovó. Gilberte seda para o curso. Andrée? — Para meu penteado se desmanchar durante o ensaio? Muito obrigada! Mme Alvarez mediu a filha desde os chifrinhos dos bigoudis até às chinelas de feltro: . . como de costume. Mennesson — embora ele fosse um industrial e mostrasse boa disposição para lhe arranjar a vida — e deu o fora com aquele professorzinho de solfejo. enche-se as colunas dos jornais. que entrou fresca. guardava os hábitos honrados das mulheres sem honra e os ensinava à filha e à filha de sua filha. Se você mudasse de existência — é uma suposição — e Gigi entrasse na vida. Trouxe mesmo. Mme Alvarez ganhou um foie-gras e seis garrafas de champanha. Presença de homem. um ridículo rolo de música. com plumas de avestruz espumejando em volta de um rosto implacavelmente belo. nas almofadas da poltrona em concha. obrigou a abrir quinze dias antes da data habitual um restaurante do Pré-Catelan. Gilberte devia tirar sapatos e meias. tão belo que Paris se enganou. Mas devo reconhecer que enxerga longe. Que história a deste suicídio! Suicídio falhado. pôs-se a cuidar da casa..— Bem se vê que você não precisa temer olhar de homem. Teremos novidades importantes. A um berro inopinado. De sua vida passada. Durante o jantar. seria eu a primeira a dizer: "coloquemos o telefone". eis a cura para mulheres que andam de roupão e chinelas. enfiada numa saia-calça com babados de renda branca. Ele a perdeu com boa cara. munificências das quais o titio Lachaille tirou sua parte convidando-se para jantar.. Paris en Amour anunciou outra pista falsa sob o título jovem e riquíssima ianque não disfarça sua inclinação pelo açúcar francês. Mas. cheios de uma atenção lenta . Entre as mesas da ceia. calçou as luvas de borracha e. sem tristeza. Lachaille teve reações incoerentes. O telefone só tem real utilidade para homens que fazem grandes negócios e mulheres com alguma coisa a dissimular. Gilberte. animou-se e riu. de chapéu branco sobre os cabelos negros. mas o menino Lachaille... que lhe roubou papéis e depois a tal estrangeira que queria por força que ele se casasse com ela. — E já estamos bem apertadas. O Gil Blas. Mas ainda não chegamos lá. e denunciar a menor ameaça de calosidade. E os olhos espanhóis de Mme Alvarez iam. o modesto apartamento envelhecia sem decair muito. sua lassidão de industrial e seu mau humor de homem só. Já teve a Gentiane. volteava Rit del Erido no lombo de um cavalo. — E nem é ela que interessa. e vinte caixas de alcaçuz. Permitiu-se um suspiro. descalça-te!". um homem notável como ele precisa de muita precaução para adotar uma atitude. vejamos. Pergunto a mim mesma o que dirá Alicia de semelhante acontecimento. à leitura dos jornais. e as toalhas de mesa. bem entendido. É a primeira vez que isto lhe acontece. minha filha. designando a pequena a Mme Alvarez: "É o meu melhor companheiro". com seus purgantes de láudano. para uma ceia. submeter a uma investigação completa os pés brancos e as unhas bem cortadas. ele vai rebentar de orgulho! — Pois terá razão. Durante a semana que se seguiu ao suicídio de Mme d'Exelmans. Footit e Chocolat representaram uma cena durante a noitada. — Alicia não é nenhum anjo. — Ora. quase perdeu a subvenção que lhe concedia Gaston Lachaille. com fechadura de esmalte. preocupada. A pálida boca de Andrée desenhou um sorriso de desprezo: — Já começa a ser aborrecida essa criatura. "Gigi. Mamãe. infelizmente. Num caso destes. por ter divulgado falsos prognósticos. Deu em seu palacete uma festa noturna em que dançaram estrelas da Academia Nacional de Música e. o peito de Mme Alvarez era sacudido por um riso de incredulidade. Ele já teve. Pois era do próprio Gaston Lachaille que lhe vinham as suas certezas. Os lençóis não ficavam nas camas mais de dez dias e a arrumadeira-lavadeira-engomadeira contava em alto e bom som que em casa de Mme Alvarez mal se tinha tempo de ver passar as camisas e as calças das senhoras. — Há de querer fazer disto um bicho de sete cabeças. anunciando que Gaston Lachaille a alçava (a cavaleiro) sobre um trono de açúcar. duas vezes em dez dias. contou os mexericos do curso suplementar e ganhou no piquet a lapiseira de ouro de Gaston. Graças a ela. você não quer que mandemos colocar um telefone aqui? — É uma despesa — disse Mme Alvarez. Enquanto isto. Paris desenganava-se. . ele achara tempo para vir beber sua camomila e acomodar. muito breve. vinte e quatro horas depois. E sem mesmo sair do quarto! — Sair para quê?? Tem telefone. todo em couro da Rússia. um tantinho embriagada. para Gigi. Um hebdomadário especializado.. Mas a primeira suicida é Liane. — Ou então não entendo mais nada de nada. Gigi. pratos atirados à parede. posto que hoje em dia parece que é preciso tomar ares.e vigilante. Mas como. como é que essas Poret o haviam de saber? Será que elas têm relações com M. — Você viu. No dia seguinte. só que em outro compartimento. agora? — Não. Lydia Poret andava dizendo que Liane partiu no mesmo trem. sua mãe levou-a para a cama. apesar da severidade do emprego de Andrée. sua malandra!" . todo o mundo compreendeu que o que ele queria era aquela vida mesmo que ela lhe vinha dando há quinze anos. reconciliações em pleno restaurante Durand. mais tímida no palco que uma meninazinha. divertira-se mimando um papel de Colombina. em Cabourg e em Monte Cario. aqueles belos olhos azuis quase negros e que choravam lágrimas de um riso louco. viu a cabeça despenteada de Gigi. Eu nunca tomei ares mais que duas vezes por ano. com uma frase: "Com que então já desceram a isso?" — Vovó. dizem eles! — Vovó. nunca! E a lapiseira é de ouro!" Suas expansões chocavamse com um silêncio estranho. Acompanhe-me à casa dela. Mme Alvarez desprezava a carreira de artista. Gigi. — Mas se titio Gaston se casasse também deixaria de ser interessante? — Depende. Quando Mme Emilienne d'Alençon decidira apresentar coelhos ensinados fazendo piruetas. deixa de ser interessante. Não achou nada para dizer e aceitou um copo de champanha. que exclamou: "Nunca dei tanta risada em minha vida. Na lista dos presentes estão "três guarnições de secretária de malaquita". Entrementes. Mas tudo isto é complicado demais para você.. cenas. no curso de dança. isto é. minha pobre Gigi. toda de tule preto lantejoulado. Lachaille para Monte Cario. antes do mais. . família Alvarez documentou-se só pelos jornais.. — O que vai casar. — disse ela. E não me sinto mal por isso. Será verdade. Andrée voltou da Opera Comique. . . Lachaille.. Interessante seria se se casasse com a amante. Mme Alvarez aniquilara-as. que Príncipe Radziwill? Existe mais de um. que rolava pela manga de Lachaille. Preciso falar com Alicia. Mme Alvarez trocou um olhar com a filha. atirados como por distração. quando Mme de Pougy. Andrée? Assinalaram nos ecos mundanos a partida de M. . o que é? — Oh! Que menina aborrecida! Uma vez que ele se casa. Depois Gaston Lachaille passou quinze dias sem dar sinal de vida ou presença e a. vovó? Mme Alvarez dava de ombros: — Se fosse verdade. — Não sei — disse Gigi. depois do terceiro copo. Esta partida parece circundada por uma espécie de mistério sentimental que nós respeitaremos. Quando o Príncipe Cheniaguine casou com Valentine d'Aigreville. — No camarim! Compreendo muito bem. a ambas. ninguém comentou aquele serão familiar a não ser Gilberte. você acredita que. das faces rubras e dos brancos dentes de Gigi ao herdeiro Lachaille. diga vovó — tornou Gilberte — você conhece o Príncipe Radziwill? — Que tem hoje esta pequena? Que bicho a mordeu? E. um pouco mais de seriedade". depois outro e mais outro.. manifestasse o desejo de cantar para Gaston Lachaille a ária das campainhas. que é da Comédie-Française. de Lakmé. — E você acha que foi para casar com Liane que eles partiram juntos? Mme Alvarez apoiou a testa na vidraça e pareceu interrogar o sol primaveril que dotava a rua de uma metade fresca e uma quente: — Não — disse ela. ou com uns "Ora. deixe-me lá e volte pelo rio. na praça da Madeleine. Malaquita. mas Lydia Poret ouviu dizer no camarim da tia. Todo o mundo compreendeu que se tratava de uma mulher que sabia fazer-se apreciar.. que lhe puxava os cabelos aos punhados: "Você escondeu o quarto rei na manga. Assim você toma ares. . . — Está com dor de cabeça. Mesmo a porta. vovó! Mme Alvarez limpou a garganta. a velha possuía gostos pessoais. — Isso mesmo. sem discernimento. afinal. à guisa de campainha. mas você não toma jeito! À porta de sua casa. E que você não terá razão de queixa.. parecia molhada e brilhava com um lustro de caramelo-escuro! Abria-a um "criado homem" e. por sua vez coberto de tapetes persas. tossiu e sorriu: — Meu Deus. — Não — disse ela. dourada e sem incrustações. um vestido de interior de tafetá changeant.. aos "que foi que titia contou?" de Gilberte. e no faubourg Antoine — zombava Alicia. que ela escondia sob afetações de fragilidade. Gilberte repetia "a sala de tia Alicia é muito bonita mas é o próprio tédio!" e reservava toda sua consideração para uma sala de jantar toda de limoeiro pálido. perdiam-se em exclamações como "Ah!. ou o perfil revelador da deliciosa relação entre a boca desenhada em coração e o ângulo bem aberto das pálpebras de longos cílios. um quarto de dormir cinzaprateado com vasos vermelhos de porcelana da China. . Gilberte levantou-se e passou os braços em volta do pescoço da avó: — Você disse isso de um jeito. enfeitada somente pelas nervuras da madeira transparente como cera. Tendo Mme Alvarez declarado que a salinha Luís XV da irmã era "o próprio tédio". não? Eu não quero sair daqui. O tapete. — Recomendou também que você fosse almoçar com ela quinta-feira ao meio-dia em ponto. um cordão de contas com folhas verdes de parreira e roxos cachos de uva pintados no fundo. Os homens de sua geração.. . e bolos enviados por tia Alicia.. desde a soleira. que menina tola! Sair daqui! Minha pobre Gigi. — Com você. quente como uma estufa e uma saúde robusta. Venha logo. com um sorriso da boca fina. — Ah! — disse tristemente Gilberte. Você vai ganhar creme de chocolate — e eu também. quando desejavam descrever Alicia Saint-Efflam. Também os ortolans não são complicados. datando do Diretório. os dentes fortes. dava-lhe asas. dizia Gilberte inocentemente. ." Os antigos apaixonados. "Mais tarde hei de comprar uma destas para mim". sobre o corpo um tanto pesado." Os que haviam sido íntimos. ela opôs uma cara de manteiga gelada e respostas de bronze. um banheiro estreito e alvo. Vovó. diante dos retratos.. reconhecendo aquele pulso dobrado em pescoço de cisne. — Contou que vai ensinar você a comer ortolans.. Têm algo de especial os ovos de hoje? — Não. Não há o que dê uma idéia. ornada de dentinhos que se mostravam de vez em quando. vovó? Mme Alvarez olhou a garota comprida. ou a orelha pequenina. de Chantilly e. mostravam fotografias que os mais jovens achavam medíocres: "Era mesmo muito bonita? Pela fotografia não parece. . Gilberte foi beijar a bonita senhora que trazia sobre os cabelos brancos uma renda negra. Ovos mexidos com pão. o rosto de maçãs altas e rosadas. Gilberte apreciava. sentada ali diante dela. você não me vai pôr. uma atmosfera de luxo discreto. tia Alicia suspendera. E. Tire o casaco. — Sem mim. não é que eu queira repreendê-la.Naquele dia Mme Alvarez voltou tão tarde que a família jantou sopa morna e carne fria. que os ovos estão prontos. sob uns olhos azuis como a noite. meu caro!. mordendo lábios frescos e gretados e a abundância selvagem dos cabelos louro-cendrados. — E que disse do vestido de verão que me prometeu? — Disse que ia ver. Com seus setenta anos. — Dependerá do almoço. Mas que vestido é este? — Vestido de mamãe reformado para mim. — Que chique! — exclamou Gilberte. morando com tia Alicia.. tia Alicia? — Ainda não sei — respondeu tia Alicia. sonhavam um momento. de tão envernizada e re-envernizada. Se titio SÔ arranjar com alguma outra. que o interrogava com aspereza. titia. tia Alicia bancava a marquesa de teatro. ela tem razão. . tia Alicia olhava para a sobrinha com ares críticos. Responda às minhas perguntas sem parar de comer e. em vez de casar "já". são casados. que é que você pensa desta história de tio Gaston? — Por quê? Isso lhe interessa? — Claro. de velha autoritária. dentro da gola um tanto mal-feita do vestido reformado. descobria os contornos suaves da testa. Você não tem nenhum namorado? Nenhum funcionariozinho de pasta debaixo do braço? Nenhum colegial? Nenhum homem maduro? Previno que não adianta mentir. Seria pena. titia. Quem são suas amigas? — Ninguém. ao menos durante algum tempo. titia. E por que é que vovó está sempre me proibindo de aceitar convites? — Desta vez. juntou os joelhos. compreendo que nós não nos casamos. — O que têm os outros de menos que nós? — Têm a cabeça fraca e o corpo imprudente. Não creio. firme. apanhando-lhe os cabelos na nuca. de um azul triste. entre o punho e o ombro. — Que idade tem você? — perguntou bruscamente. pelo menos. Mastigue uma metade e depois a outra. Sentando-se à mesa. — Não. Mas. o que vale dizer. Uma fivela. Se eu faço. Gilberte venerava a tia em tudo e por tudo. — Ela tem razão. — Sim. não voltará mais lá em casa para jogar piquet e tomar camomila. com o corpete franzido sobre uma pala e rematado. Vovó não me deixa nem tomar lanche com a família de minhas colegas. Titia. eu percebo. sem fazer a faca ranger no prato. você também pode fazer. minha tia. Tia Alicia. que parecia singularmente forte. — Será que isso me impede de freqüentar as meninas de minha idade? . acontece que a gente se casa "afinal". Gilberte contemplava aquele rosto animado. sua renda sobre os cabelos alvos e suas rugas clementes. comia com a boca fechada e tinha o cuidado de não deixar escorregar o indicador sobre o dorso da lâmina. no curso? Quem são suas amigas? Corte os ortolans em dois. porém. — E nós não somos pessoas comuns? — Não.Com sua tez jovem. Só viriam convites de pessoas comuns. não tenho ninguém. sem falar de boca cheia. com três galões de mohair costurados à barra da saia e três vezes três galões de mohair nas mangas. — Não que o casamento nos seja proibido. aproximou dos flancos os cotovelos. Alguém falou mal de mim? Ando sempre sozinha. Sabia a sua lição: partia o pão com delicadeza. . — Esse é um ponto de vista. Além disto. de um só golpe. realçadas de cor-de-rosa. Isso me aborrece. — Você está estudando direito. — A mesma de outro dia. observava-a com seus belos olhos azul-negros e não achava o que censurar. diante da sobrinha. ao mesmo tempo. os ossos não contam. ao cortar a carne. fez sumir as omoplatas e ficou tal qual uma senhorita. Quinze anos e meio. que você compreenda. Com as pálpebras apertadas. evidentemente. inúteis. puxou a saia debaixo de si. das orelhas e do pescoço. para alegrar. Dê um jeito. Gigi? — Um diamante navette. — Que é isto. Isso não é mau.— Sim. fazendo ptu. você se torna vulgar. os pequenos também não. — Grande rei? — Não. rei pequeno. isso é uma esmeralda. Mas com a condição de não me molhar a ponta do cigarro e de não cuspir pedacinhos de fumo. Gilberte tartamudeava de alegria: — Tia! Titia! De. . — Vi um vestido. A hora que se seguiu passou depressa para Gilberte: tia Alicia abrira seu cofrezinho de jóias preparando-lhe uma lição deslumbrante. Os grandes não dão pedras muito belas. titia! Eu sei perfeitamente o que me ficaria bem. correndo ao fundo da luz verde. pôs-se sonhadora. — Oh!. Que é isso? Uma lágrima? Lágrima de boba. Você vai ganhar um quediva com a xícara de café. — Quem foi que lhe deu.. que não te julgava coquette? Gilberte corou. Os olhos azul-escuros brilharam.. . todo com aplicações azullavanda. como é que você se imagina? — Oh!. Oh! como é linda! Tia Alicia enfiou no dedinho a grande esmeralda quadrada e calou-se um momento. Eu vi. — Com as roupas que me fazem em casa. basta. — Compreendo.. — Está vendo — disse ela a meia voz — este fogo quase azul.. — . ajuda a formar decisões.. Prefiro uma lagoazinha no fundo do pires à virtuosidade de garção de café. — Se quer minha opinião. . criação de Mme Lucy Gérard. Não. não levante o bico do bule para cortar a queda da gota. ptu. borrifou-as de florinhas azuis. Coma seu ortolan. Tia Alicia apanhou com três dedos cintilantes o pé de seu copo e o ergueu: — À nossa saúde. E isto? Gilberte entreabriu a boca. Só as esmeraldas mais belas contêm este milagre de azul inatingível. E depois outro.. Centenas de preguinhas. choff-David. já vejo que você dá para se vestir como grande coquette do Français — e você toma isto como elogio I Venha servir o café.. uma antiga colega minha que não teve êxito. De. — Por quê? Furtivamente. Será que você tem gosto? E quando você pensa em se embelezar. — Um topázio! Tenho suportado muita humilhação. ricocheteando sobre os anéis. de alto a baixo. tia Alicia mostrou o branco dos dentes finos. que não está avançada para a idade. Quem não arrisca não petisca. Cá entre nós. E isto? — Um topázio.. de veludo.. E eu.. Be. — Um rei — disse tia Alicia simplesmente. . Você está se aborrecendo em casa? Pois aborreça-se mais um pouco. não posso ser coquette.. sobre um fundo negro. Gigi. . Seu guarda-roupa vai mudar.. titia? — ousou perguntar Gilberte..... em musselina cinza--pérola. Tia Alicia ergueu as mãos e o sol. gesticulando. — Explique-se sem gestos. formando na cauda um leque de pavão. e não verá muitos iguais a este.. Brilhou no ar a pequena mão com belas pedrarias.. não gostam delas. E eu lhe darei também um cartão para uma das chefes da casa Bechoff-David. — A gente diz brilhante navette. — Basta. mas esta ultrapassa tudo! Um topázio entre minhas pedras? Por que não uma água-marinha ou um peridoto? Isto é um brilhante junquilho.. — Então quem dá as belas pedras? .. minha tola. . entre dez homens. — Isso é. dando uma jóia monstro. diga: "é uma lembrança. quando é de Cachemira. titia. uma calamidade! Mas. A isso. — Titia.. . uma estrela montada em broche. de conservas. Algum bracelete sem grande peso.. com sua unha aguçada. Com dentes assim eu teria devorado Paris e o estrangeiro. A safira. — Belos camafeus não existem — disse tia Alicia. — Jóia de arte o que é? — Depende. Um escaravelho egípcio. — Porque nove. junquilho. nos jornais. Afinal. Uma lira. Uma sereia de ouro com olhos de crisólito. — O importante não é que você se lembre.. E os malandros também. — Bela leitura! Enfim.. mas que dizem cinzelado por mão de mestre. azulado ou rosado. Eu te darei um pouco da minha água adstringente. no mau olhado. uma mulher. são supersticiosos. oponho-me eu! Espantada. Por que esses suspiros? — Porque jamais me lembrarei de tudo isso. Evite também a jóia de família.. será que você também acredita que trazem azar? — E por que não? Sua tolinha — continuou tia Alicia rapidamente. menos estarmos livres do que os inquieta. Enquanto falava. é superstição. acabou de almoçar. — Existe a pedra preciosa e a pérola. . Horrores. provam boa educação. ia tocando aqui e ali. titia? A velha senhora fechou o cofre..— Os tímidos. isso desmoraliza inteiramente uma mulher.. Eles nos perdoam. em vinte. minha filha. . mas que eu o saiba. a esta hora isto não prova nada.. Não tem usado pó de arroz? — Vovó proibiu.. em cem. não falemos. p jovem rosto à altura do seu. Você não deve ter que espremer cravo nenhum. Que é isto aqui? Uma espinha? Você não pode ter espinha nenhuma perto do nariz. acreditam no mau olhado e noventa e oito. — É preciso fingir que se acredita.. Há o brilhante branco. muita coisa. a esmeralda. para humilhar um homem. — Mas — disse Gigi. . verificava o esmalte sem mancha dos dentes. E. gosto muito. malaquita? — Em qualquer caso. enfim! Nunca — mas nunca — use pérolas barrocas. — Titia. por acreditar que. titia. Não use nunca jóias de segunda. vovó possui um belo camafeu num medalhão.. Um bom lote de fraquezas e mais o medo de aranhas — é a nossa bagagem indispensável junto aos homens. E isto? Você espremeu um cravo. — Por que. . curvando a cabeça. . — E se não vierem? — Pior. ajoelhada. Não use nunca jóias de arte. Ametistas gravadas. — Belo maxilar. hesitante. meu Deus. — Ainda bem. que vem a ser uma guarnição de secretária de. — No entanto. Também os orgulhosos. contanto que não traga na água algum sabe Deus o que de claro ou amarelado.. que morrem. Dos diamantes negros. você só comerá presunto cozido. Dizem também que são fraquezas.. que não valem a pena. uma tartaruga incrustada. — Claro. aí você poderá aprender quais os presentes que não se deve dar nem receber. — Oh!. Nesse caso. conservando diante de si Gilberte. Acredite nas opalas. de opalas. acredite. também. — Sinto muito. use um anel de cem tostões.. têm medo de aranhas. minha filha. que não deixo nem de dia nem de noite". levantava o lábio gretado. Vejamos. dezenove.. que poderia eu indicar ainda? Nas turquesas. Gilberte quedou-se um momento de boca aberta.. Às vezes. É verdade que comi um bom pedaço. Você vai regularmente àquele lugarzinho? Assopre no meu nariz. espere que venham as de primeira ordem. Em vez de um diamante mau. quem te andou ensinando essas palavras? — A lista dos presentes dos grandes casamentos. mas você não vai usá-las. Há o rubi — quando a gente está bem certa dele. nem para alfinete de chapéu. . porém. — Batem-se como? A velhinha olhou consternada para Gigi: — Ah! —disse ela — não foi você. da casa Bechoff. e Gilberte. Vá se ver um pouco. tentava libertar o belo pescoço musculoso. Gilberte abriu tanto os olhos que as pontas dos cílios tocaram-lhe nas sobrancelhas. A tudo isto. lembre-me de lhe ensinar a escolher charutos. um pouco coquette. inclusive os charutos. Maquinalmente. e desabafou com Mine Alvarez. uma boca sem estilo. — Porque sim. duas lâmpadas vermelhas de porcelana da China. vindo de Nice pelas mãos de Gaston. quero te dar o bilhetinho para Mme Henriette. Gilberte respirava o perfume do aposento bem cuidado e. um pouco abaixo do ombro. as maçãs do rosto um tanto mujiques. batem-se — concluiu Gilberte com ar finório. que trouxe de volta a Paris Gaston Lachaille. Devagar. devo olhar por tudo. observando sua partida. titia — gemeu Gilberte. Sufocado. Tem um narizinho impossível. Não faço nada sem razão. — Gostava mais daquela roupa escocesa. psicóloga.. Ai de você se sair em passo de granadeiro ou arrastar os pés! O mês de maio.. — E então. dotou Gilberte de dois vestidos bem feitos e de um casaco mais leve — "um paletó-saco. se não for completamente idiota. dizia ela — além de chapéus e de sapatos.. — Você parece um macaquinho — disse Gaston Lachaille. . subitamente uma moça. logo tornarei a convocar você. a inventora do espelho de três faces. — Que é que você foi fazer. mas quanto a ter gosto em matéria de vestidos. Desfilou diante de Gaston com um vestido branco e azul que quase chegava ao chão: "Tem quatro metros e vinte e cinco a minha saia. Mas bonito projeto. Gaston mediu de alto a baixo aquela jovem. Com isto. . Peça ao Vitor o bolo para levar. igual ao de Cléo de Mérode". Mas pode superar tudo isso por meio dos olhos. o rosário de pequenas pérolas finas e os Evangelhos sobre a mesa de cabeceira. ela acrescentou uns crespinhos -na testa que a banalizaram. Enquanto ela escrevia. Quando uma mulher conhece as preferências de um homem.. Mme Alvarez juntou as mãos. — Oh!. Vem. E quanto ao corpo.. Vai. estão bem armados um contra o outro. não me despenteie! E fique sabendo que eu aqui estou.. —.. com sua coberta de chinchila. Colocou as mãos em concha no peito de Gigi e sorriu: — Projeto. inventariava aqueles móveis tão familiares quanto mal conhecidos. — . — Bela educação! Apresento-lhe meus cumprimentos. quando um homem sabe o que agrada a uma mulher. titio. enchia-a de orgulho. preso numa gola com barbatanas e do mesmo pano que o corpete pregueado: venise imitation. beliscava o bouffant das mangas sobre o braço.Pousou as mãos sobre os ombros de Gilberte: — Preste atenção no que digo: você pode agradar. sentada num bonheur-du-jour minúsculo e rosado.. farfalhavam levemente. filhinha.. As mangas e a saia rodada. os dois quadros galantes. Não coma muita amêndoa que isso faz os seios pesados. Um caramelo. seguramente. Arrufada. dos cílios. Estrangulada nessa gola. Gilberte pediu a opinião do espelho. dos dentes e dos cabelos.. Se tomo conta de você. o Amor Sagitário que indicava as horas em cima da lareira. — Já ouvi muita coisa a seu respeito. você está com jeito de galinha que engasgou com o milho.. saiu — e sem tomar camomila. bem plantado.. minha pobre Gigi! . fazia-lhe um caroço na bochecha. titio!" A pequenez da cintura arrochada numa fita de gros giain com fivela de prata. — Por quê? Recebeu uma palmadinha no rosto. o leito arredondado.. só de roda. contrastando com a pintura cinza.. nunca ninguém me disse nada. em seda branca com listas azuis. sem cobiça. Ah!. Designou uma cadeira ao hóspede. Gigi ficará comprometida? Um pedacinho de mulher como aquele. chique — cantou Gilberte. Nossa Gilberte não é uma menina desempenada.. vovó? Confesse que para um amigo velho como o titio não é preciso a gente se afobar. — Vai para o quarto um momento. Mamita? Desde ontem noto coisas mudadas aqui — por quê? — Sente-se. Quer que eu acredite que só por almoçar comigo. com titio! Sem mesmo tomar o tempo de desatar o avental de cetineta floreada que lhe cingia o ventre. .. quero falar em particular com M.. . Como você sabe. permitindo-se um sorrisinho de homem de negócio. para uma mulher. é o mesmo que. — Chique. vovó! — chorou Gigi. Voltou-se para a cozinha: — Vovó. e ficou com a poltrona para si. querendo levá-la de automóvel.. Esperou Gilberte afastar-se. — Aos olhos de quem. — Você não se dá conta. — De dezesseis anos — disse Lachaille. . suportou sem vacilação um olhar negro e bastante brutal. eu a confio de olhos fechados". com doçura — que você a consagraria. nem mesmo seu espanto. fechando a porta atrás de si e depois.. Vamos almoçar. — Ponha o chapéu. jovial. — Há anos você lhe vem dando bombons e brinquedos. Ela só jura pelo titio. — Onde? — gritou Gigi. desgraçadinha? Meu Deus. em fazer de você uma jovem elegante. chique. Lachaille. — Gaston. com seu broche grande de camafeu. Lachaille repuxou o bigode. Gaston. eu diria: "Leve onde quiser.. Gaston Lachaille perdeu a paciência. em mostrá-la sob luzes favoráveis. — Está bom. Andrée não tem tempo nem gosto para se ocupar da pequena. você sabe a amizade que lhe tenho. está bom. uma garota que ninguém conhece nem olha. — Como não? — Oh!. Gigi. no Reservoirs. faziam julgar que estava muito senhora de si.. minhas pobres pernas. Gaston. — Em Versailles.. faça o favor — disse Mme Alvarez.. Sair sozinha com você. O lento movimento de seus grandes olhos de um preto ardente. sua presença é assinalada. Uma moça que sai em sua ... Suspirou.. na manhã seguinte. Mas existem os outros. Mme Alvarez apareceu e interpôs a mãozinha entre o braço de Gilberte e o de Gaston Lachaille: — Não. — Digamos antes — interrompeu Mme Alvarez.. . como há tantas. Mme Alvarez não pareceu ouvi-la. Mas nem por isso esqueço que tenho a meu cargo uma alma. — Amizade e gratidão. sua facilidade em conservar-se imóvel. E aí está você agora. Gaston. a almoçar no Reservoirs. voltando-se para Gaston. — Que logo completará — aprovou Mme Alvarez. Gigi.. — Estou cansada. ao ver aparecer Gaston Lachaille. Mme Alvarez pôs a mão sobre o seio: — Pelo meu coração e minha alma. É uma verdadeira criança. Gaston — disse ela simplesmente.— Ora — disse Gigi — por que é que ele me provocou? Agora já sabe que eu respondo mesmo! A avó sacudia-lhe o braço. Ai. Você é mundialmente conhecido. verde como uma hortaliça. Mme Alvarez não confessa nada. alisando os bandos já grisalhos e cruzou as mãos no colo. eu almoço no Reservoirs. — Que significa isto. Depois sentou-se pesadamente. todo de terno claro. já compreendi. se só se tratasse de mim e de você. esperou um sinal de interesse que não veio e desatou o avental de babador sob o qual trazia o vestido negro. vovó? — Ora. — Se esmera em que. com que idade vai você adquirir o uso da razão? Eis aí um homem talvez mortalmente ferido! Logo na hora em que a gente se esmera em. Quando você aparece em algum lugar. — Gigi. estou atrasado. — Farei o possível para não entregar Gigi senão ao homem que disser: "Encarrego-me dela. assegurarei seu futuro!" Terei o prazer de lhe oferecer sua camomila. não deu mais que um momento de atenção a Gilberte: — Que é que ela queria? — indagou Gilberte de Mme Alvarez. Dor de cabeça não dura quarenta e oito horas. — Quer que Gigi lhe venha dizer adeus? — Não vale a pena. diante . — Estou vendo — disse Gilberte. Gaston Lachaille levantou-se e.. Ia perdendo um pouco a suavidade. não deve deixar de ser uma moça como as outras. se o viesse a ler no Gil Blas. Nossa Gilberte. receberam a visita de tia Alicia. de xadrez baralhado. — Então vá esfregar as batatinhas novas num trapo. Mme Alvarez enxugou a testa e foi abrir o quarto de Gigi. Mas deste. que casará com ela e lhe fará quatro filhos em três anos? — Eu concebo de outra maneira o papel de mãe — disse pausadamente Mme Alvarez. ao menos quanto a esse aspecto. para quem a estará guardando? Para algum empregadinho de dois mil e quatrocentos francos. Deixe ao menos raciocinar os que disso são capazes. vejo-a outro dia. Eu as passarei na manteiga. Uma lei de silêncio pesou durante a semana toda sobre a casa das Alvarez que. não queria nada. Parou de repente.. — Outra vez? — E quem é você para reclamar — disse com severidade Mme Alvarez. quando voltar. seria apenas mais um "caso". Não se deve nunca escutar atrás das portas. obrigado.. Gaston. sem mais.. é o melhor meio de ouvir atrapalhado e interpretar mal as palavras. de lona branca. não teria eu a coragem de rir. Ao voltar do curso. — É de crer que as minhas não sejam iguais às de todo mundo — disse Gilberte. andou da mesa à porta e da porta à janela. Gaston? — Não. — Que é que demorou? — O endereço do médico. Não sei quando. vovó? — Vou à casa de Alicia. sentida. com uma rosa ao ombro. não se incomode por causa dela. vovó! — Estava sim. Ao despedir-se. Gaston.. E calce as luvas de borracha para lidar com as batatas. Lachaille já foi. toda de rendas negras e seda fosca. M. uma vez que já fez a tolice de chorar. não a quero contrariar. Uma vez sozinha. inopinadamente. Gilberte refletiu um instante: — Demorou — disse ela. Mamita.. você estava escutando atrás da porta! — Eu não. muito preocupada e longe das demais. Gaston Lachaille veio entrando sem bater. Para você. um dia.companhia já deixa de ser uma moça comum ou mesmo uma moça... Voltou-se para Mme Alvarez com o queixo alto: — Entre parêntesis. — Vovó. ando muito ocupado estes dias. Tinha os cabelos longos demais. — O quê? — Que é que custa me deixar sair com titio Gaston de vestido novo? — Silêncio! Você não entende nada de nada. eu queria um comprimido. — Não faz mal. Um dia em que Gigi estava ocupada. pergunto eu a mim mesmo. Gaston. — Melhor fazia indo lavar os olhos na água fria. queixava-se de insônias e escorregava para uma preguiça que a avó antes vigiava de perto que combatia. estou com dor de cabeça. Bom passeio. e conversou com a irmã mais moça. Veio num cupê. — Ontem também estava. — Oh!. porém. Só o endereço do médico que tratou do coração de Mme Buffetery. — Pois bem. Não discutirei mais — disse friamente. antes de responder. dizia "o professor tem raiva de mim". Vovó. passando alvaiade em suas botinas de atar. a pele escurecida pelo sol e estava com um terno de verão. — Você vai sair. — Fique com sua garota. ." Tinha lágrimas nos olhos. sim. tt. a vitória a conquistar sobre um homem em evidência. de cozinha. — Então. e com a mão esquerda enfiada num sapato. amarrava e desamarrava a fita da camisola. Alicia. como. para me dizer que suma para o quarto? Pois bem. até contra ele mesmo. — Gaston! — bufava Mme Alvarez — hei de exigir que essa menina lhe peça desculpas.. sob seu chapéu matinal. pousou a botina sobre a mesa e puxou a saia sobre os joelhos. Gigi! Por um instante a moça ficou boquiaberta. Eu sou pelas precisões. sou o melhor amigo de Gigi. Nem um grito de alegria. É bem coisa dela! Como Gaston não dizia nada e a olhava. Antes do mais. o furor das outras todas. — Sim.. e olhava a porta trancada. — Agradecida.. um verdadeiro cavalheiro. tt — criticou Alicia.. ela. sim. — Suma para o quarto.... sim. — Quero falar com sua avó — interrompeu Gaston Lachaille. Tudo o que extraí . titio. Falei claro. estufou o forte pescoço de arcanjo e cresceu para Lachaille... Ele disse que desejava garantir Gigi contra todos os aborrecimentos. — Ele começou realmente por afirmar: "Ela será mimada como. Falei de Gaston como de um milagre. — Sim. mas isto é uma frase vaga. apoiava à cabeceira os braços cruzados. — Eu teria antes feito ressaltar as dificuldades. Estava ainda deitada. mas também o nariz parece mais comprido e.. Mme Alvarez juntou as mãos: — A dificuldade! O que está em jogo! Você pensa que ela se parece com você? Então não a conhece! Gigi não tem maldade. E à pequena.. como a lua e a nuvem. Depois. uma vez que era uma espécie de padrinho dela.. sempre muito vago. — Suma para o quarto! Suma para o quarto! E se eu lhe dissesse o mesmo? Está pensando que manda aqui dentro. de quem a gente esconde os bolos. O seu famoso ex-cozinheiro-chefe do Príncipe de Gales já não lhe dá comida bastante? Assim magro.. — Ele acrescentou: "Não quero fazer nada bruscamente. Mamita.. teatralmente. a moça corou lentamente. Mas é vago. sim. Cavalheiro um tanto vago. encarapitada num tamborete alto. seus olhos ficaram maiores.. a cartada que se está jogando. quero dar a ela tempo de se habituar comigo. — Quero dizer que não tem ambição. nem lágrimas de emoção. Enfim. não está mal. por um seguro. você falou claro? — Falei como devia. — Oh!. Fiquei mesmo chocada de ver que não reagia num sentido nem noutro. portou-se como um cavalheiro.. você chega como um ventanista! Sabe de uma coisa? Você emagreceu. Mme Alvarez. Vovó largou a chave na porta. eu o exigirei e. para o meu quarto! E de uma coisa pode estar certo: é que de lá não saio enquanto você estiver nesta casa! Bateu a porta e. se for preciso. Disse ainda: "Ela não terá que se haver com um selvagem". como de um deus. — Recapitulemos — disse tia Alicia. pulando do tamborete. pálida e sombria. como todo homem diz... passou-lhe o ferrolho. Não era mais o momento de tratá-la como a uma criança. é para lá mesmo que eu vou. Preocupada.. com os cabelos brancos em cachos sobre o travesseiro cor-de-rosa. — Agora — disse ele — falemos pouco e bem. — Ttt.. Gaston Lachaille não a ouvia. — Nem elas faltaram..de Gilberte." — Como nenhuma outra mulher jamais o foi! — Sim. Conservara o velho vestido escocês e as meias grossas. — Não precisa de mim? Seu cabelo está bem enrolado? — Está sim. Gaston Lachaille tocou três vezes.foram uns "Ah!. Pela janela aberta entravam os ruídos e a tepidez da rua." No fim somente é que ela impôs. Isto é cheviote. como condições. — Você não comeu nada... — O que nos falta ouvir! — murmurou Alicia.. — Se tia Alicia visse você. Ela vai pedir a lua e — eu o conheço — ele não lha dará. não se incomode. vovó? Estou fazendo como de costume. quando ela tiver posto tudo a perder. — Será a primeira vez que eu necessitaria de uma hora para mudar de roupa. Cuida que a pequena se vista com graça. Lachaille. ora — disse Alicia com dureza. Gilberte levantou os ombros: — Oh!. Gilberte avançou até o centro do aposento. já são quase três horas e você ainda não está vestida. — Você não sabe nada. Que. eu tiro a mesa. por baixo da mesa.. vovó? Você acha que ela foi mesmo ensaiar na Opera Comique? — Pois se foi isso que nos disse. Afinal.. tudo isto era com ela. — Podemos contar com um bonito arranjo! Você deu à luz uma inconsciente. Depois de mais três golpes impacientes de campainha. vovó. É às quatro horas que ele vem? —É — Não mandou nada? Nem flores? Nem um bibelô? — Não. — De onde lhe veio essa idéia? Sem afastar os olhos da janela ensolarada. que teria com ele uma explicação. Gigi. Seu velho vestido escocês apertava-lhe os seios e. perdão!". — Deixe para chorar outro dia. você não acha? — Não.. Gigi. É bem o jeito dele. Não é o seu caso. Gigi — disse Mme Alvarez. riram sem jeito. Um rosto infantil e preocupado apareceu na porta entreaberta do quarto. — Sente-se. eu irei abrir. vovó. nada.. — Que é que mamãe está ensaiando hoje que não veio almoçar conosco. — Deixa isso. agora. . esbarraram-se nos ombros e se disseram "Oh!. É mau sinal.. titio. Está com boa cara? — Hoje não muito. malvada? Passando na porta.. por favor. — E uma gota de Combier? — Decerto. — Ora. Gilberte mergulhava a língua até ao fundo do cálice de licor. Gigi respondeu apenas com um sorrisinho cínico. com um ar altivo. Posso repetir um pouco de café? — Claro que sim. — Não tinha muita fome. Em matéria de sarja azul-marinho. Imagine que não tive nem tempo de me vestir. Esfregou as faces com os punhos cerrados e correu a abrir a porta. Pobre da minha meninazinha. Enxuto o cálice de Combier. — Bom dia. Gigi.. . — Almoçamos tarde. sim. — . . a sós. Às quatro em ponto.que ela mesma responderia às propostas de M. é muito gentil da parte dele. — Pois eu acho que ela não quis almoçar aqui. levantou-se e pôs-se a juntar os talheres. e esperou. O Combier é soberanamente estomacal. depois. — Não queria abrir. não há melhor. ela espichara as pernas compridas para fora da saia.. vovó. — Por que. Fincou nos olhos de Mme Alvarez um olhar que a velha não sustentou. afinal. E quando tocarem.. titio Gaston... nossa briga será comentada no Gil Blas e no Paris en Amour. Ele avançou a mão. Vovó quis me fazer ver tudo corde-rosa. — Como é que você ficou sabendo disso? Quem misturou você com essas histórias? Gravemente. do pescoço torneado como uma coluna. Gigi? — perguntou Lachaille a meia voz. ela inclinou a cabeça. Lachaille pousou a mão no joelho de Gilberte. Ele aquiesceu.. Não é culpa sua. Fiquei sabendo também que Maryse Chuquet lhe roubou cartas. quero também dar a minha opinião. Isso tudo acabou. não vale a pena você repetir. às corridas e a Deauville. . — Claro. meu retrato vai aparecer nos jornais. Diga só o que você não quer. quase masculino. com um grande meneio da cabeça. passou. Elas me ensinaram que você é um homem universalmente conhecido.. com firmeza não menor. deixando cair os ombros como quem está moído de cansaço. eu darei. forte. — Não quero o que você quer — volveu Gilberte. corajosamente: — Não quero — disse ela. como fez quando se cansou de Gentiane de Cévennes. na sala... E quando você me deixar definitivamente.. mas assim mesmo compreendo o significado das palavras.. Sei muito bem que se você me assegurar o futuro.. — Por favor. — Mas. Que eu irei embora com você e que dormirei na sua cama. Puxou para baixo a saia. — Você disse a vovó. por um momento. — Titio. da boca ignorante de seu poderio. — Que tem você. — Diga-me alguma coisa.. Olharam-se.. — Tia Alicia e vovó estão de acordo com você. — Sim. em todo o caso.. trata-se um pouco de mim. se você é um homem universalmente conhecido.. E pode também dizer o que quer.. Quando brigarmos. — Não é dessas coisas que nós dois temos que falar. A segurança juvenil de Gilberte desfez-se e uma espécie de súplica aumentou loucamente seus olhos azuis. desviou o olhar daqueles dois olhos azuis ensombrecidos.. Tinha a boca meio torta como se os dentes lhe doessem. mais baixo. quer dizer que eu irei embora daqui. liso e virgem de jóias. Sei o que todo mundo sabe. — Será belo se eu gostar dele — disse Gilberte. O silêncio de Lachaille parecia embaraçá-la e ela pontuava o seu vaivém com "Pois é".— É verdade! Onde estou com a cabeça? Sentou-se em frente dele e puxou a saia sobre os joelhos.. — Verdade? — exclamou Gilberte. "Ora. que você deu queixa contra ela. Se eu desagrado a você. é isso. afinal — é se você não está procurando esconder que eu lhe desagrado. . Ela passou para trás da orelha um caracol de cabelo e engoliu a saliva. interrompendo-a. terei que ir à Festa das Flores. Sabe por que estou aqui? Ela fez que sim. titio.. fazendo escorregar do joelho a mão de Gaston.. Gigi. era mais fácil dizer logo. de uma sarda da face rósea. — Um belíssimo futuro — disse firmemente Lachaille. eu sei o que disse a sua avó. — Você quer? Ou será que não quer? — disse ele. E minha opinião é que isso não me serve. Mas como.. por que me sentiria constrangida de lhe falar assim se você não se constrangeu em falar com vovó? Também vovó não se constrangeu em me falar. você disse a vovó que desejava assegurar meu futuro.. — Encheram-me os ouvidos com o atraso em que estou para minha idade. — Vovó e fia Alicia. Lachaille apertou as pontas do bigode entre dois dedos e. Surpresa. titio.. Levantou-se e começou a andar de um lado para outro. Gigi contemplava aquelas confissões de lassidão e tormento." — O que eu queria saber — disse Gaston. que a Condessa Pariewsky não estava contente com você porque você se recusava a casar com uma divorciada e que ela lhe deu um tiro de revólver. Mas comigo não vai. Assegurar meu futuro. da pesada cabeleira cendrada.. até o dia em que começar de novo. dos cílios recurvos. Mas eu sei mais do que ela disse.. Gigi. batendo a porta. Gaston — disse ela. Alicia elevou os pequenos punhos encolerizados. afinal. não — choramingou Gigi. Há de me trazer alcaçuz. mas eu disse a você. — Onde está a pequena? — No quarto.. de estar sempre sendo fotografada. então. para que todo o mundo o saiba. desajeitado. No dia seguinte às três horas. hesitando na soleira da porta da cozinha: — Meu Deus. violeta. naquele rosto bem defendido. Quer vê-la? — Há tempo. Gigi continuava diante dele. — Não quer — repetiu Mme Alvarez.. Seu embaraço nada escondia dela. . com o barulho dos soluços. Maquinalmente. subia ao andar dos Alvarez. Ele exclamou com voz abafada: — Ah! Isto também já chega! — e foi-se embora. mas Gigi escapou e refugiou-se entre o piano e a parede. — Mas.. Que geração! . nem o pulsar dos dois seios.. você é um homem mau! Vá-se embora daqui! Cegava-se. Ninguém verá nisso nenhum mal. — Pois agora estou dizendo. — Só que você esquece. . sim. ia enrolando um caracol de cabelo em volta do nariz e tanto que sua fala já se tornara fanhosa e a ponta do nariz. Sandomires. — Então isso é outra coisa — disse ela. conteve-se. .. sob o corpete estreito. não quer? — Não quer. titio. Gigi. Você não é um apaixonado. sacudidas pelo pranto e a cabeleira em desordem. brigas. Gaston. nem o rubor magoado. de perder colares de pérolas. revólveres e láudano. Gigi. Como está ela? — Muito calma. — Mas escute. imitando o arfar dos cardíacos. Gaston a alcançara e procurava. — Disse até demais — berrou Lachaille. você é um sujeito horroroso! Está apaixonado por mim e quer me arrastar a uma vida que só me dará aborrecimentos. e sempre alerta e. tia Alicia. — Muito calma! Faz desabar o telhado sobre nossas cabeças e está muito calma. coberto de lágrimas. Mme Alvarez olhou para a neta com uma espécie de terror. Deus é testemunha que eu disse a ela... querendo incliná-la para si como um ramo. — É. .. mas destinada a abrir-se e a fruir. o espaço para um beijo. Gaston cingiu-a nos braços.. penso eu? — Não. você não me desagrada! Fico contente sempre que o vejo! A prova é que eu também quero propor uma coisa: você continuará a vir aqui. de pé.. que estou apaixonado por você. nem a palpitação daquela boca fechada. em que os jornais escrevem malvadezas. Mas só achava para os lábios a orla de um queixo pequenino. Pálida e circunspecta.. com a respiração acelerada. — Mas o que é que a menina tem? — Eh! — disse Lachaille — tem que não quer. — Ah! — exclamou ela. — Uma vidinha muito bonita. E virou para a pequena um rosto que já não passava do de um pobre homem apaixonado e entristecido.. até mais vezes.. Estou falando claro. em silêncio. — Gigi.. — Nunca! Não quero ver você nunca mais! Nunca esperaria tal coisa de você. nos domingos faremos um piquei monstro. com os dois punhos a esmagar os olhos. você é amigo da família. chamada por um pneumatique. Mas é da gente dar com a cabeça na parede! Gigi. não quero. — confessou ele. Estourou em soluços violentos e ruidosos como um acesso de tosse. Será que isso não é uma boa vidinha? E sem todo esse negócio de dormir na sua cama. escute. saltava de seu cupê. ao alto das faces. Mas Gigi só lhe mostrava as costas. . — Você nunca me disse isso. como sempre.— Não é isso. e empurrava sem ruído a porta que sua irmã deixara encostada. Acorreu Mme Alvarez.. Está apaixonado por mim e acha muito natural me meter em aventuras abomináveis que acabam em separações. champanha no dia do meu aniversário. não. vida em que todo o mundo mexerica sobre todo o mundo. senhora — interrompeu Gaston Lachaille.. — Como.. você não o ama. mas não é o que você está dizendo. — Mas. — Sim. não me surpreenderia.Levantou o veuzinho de pintas e fulminou a irmã com o olhar. — Você não sabe inventar? — Eu não. tia Alicia. Em suma. Mas não o mande ao diabo que ele é capaz de ir mesmo. como foi que ele falou com essa menina. E uma vez calçadas as suas luvas de pelica. e que há flores com colibris voando em roda. quando você voltar a ser gentil.. Uma jovem que chamou a atenção de M. foi Cabourg e Monte Cario. . — Bom dia. tia Alicia já havia recuperado sua gentileza de velhota frívola e cheirava a rosa-chá presa perto de seu queixo. é de mestre! Gilberte fez que sim. As rendas negras de Alicia foram sacudidas por um furioso dar de ombros. Quando Gilberte entrou. você não falou? Não mencionou amor. também.. que é que você pretende fazer? Seu rosto de rosa amarrotada afrontava duramente o grande rosto branco da irmã que. Lachaille. — E você. Por causa do calor. ela oferecia um rosto fresco a que a orla lilás das pálpebras e a boca febril acrescentavam uma espécie de maquilagem. À curiosidade de Alicia. Alicia. sim. levantara o cabelo nas têmporas. Um suspiro longo suspendeu-lhe as espáduas cheias: — Bem se pode dizer que eu não merecia as filhas que tenho. ao lado de chafarizes? Tristemente. mostrei-lhe que estamos todas atadas à mesma corda. Vamos ver.— pois lamente-se! Lachaille saiu daqui no estado de espírito em que um homem faz todas as asneiras! — E nem levou a palheta — disse Mme Alvarez. . Alicia? Não sei nada disso tudo. aí plantada. enumerei as coisas que ela podia fazer por ela mesma e por nós. O mais longe que fui. — Parece. — Bravo. com essa parasita? Mme Alvarez apertou os lábios. nós sabemos. minha Gigi. — Gigi talvez seja um pouco louquinha para certas coisas e atrasada para a idade. moderadamente. o que pretendo fazer? O que não posso é amarrar essa pequena. com o auxílio de dois pentes que lhe repuxavam o canto dos olhos. Lachaille não pode ser uma parasita. empertigou-se: — Como. — Muito bem. senhora! Ele será ainda mais feliz por isso. viagens. que foi você reprovar. muito bem. A rua toda o viu! — Se me dissessem que a estas horas está noivo ou fazendo as pazes com Liane. luar na Itália? É preciso fazer ressoar todas as cordas. — E de coisas pouco razoáveis. Você o mandou de volta às suas usinas. — Como haveria de falar. Mme Alvarez olhou para a sua vibrante irmã. _ O momento é fatídico — disse lügubremente Mme Alvarez. — Sabe o que Inês me contou? Que você tem um apaixonado! E que apaixonado! Para uma primeira experiência. menina! Gilberte ergueu para a tia olhos incrédulos. com um sorrisinho de resignação e desconfiança. titia! Só que não o quero — o caso é esse. à princesa? — Procurei torná-la razoável. Falei da família. muito bem. — Subiu ao carro com os cabelos ao vento.. — Bom dia. que você anda bancando a malvada e tem experimentado as garras em M. Alicia fez um gesto decidido: — Vá chamar aquela franguinha.. — Mas. e que se ama sob gardênias. eu sou gentil. Não lhe disse que o mar do outro lado do mundo é fosforescente. . Calaram-se ambas. e M. Maquinalmente. tia Alicia levantou a cabeça e aguçou o ouvido perito. temendo ouvir o que ela ia dizer: — Eu te juro. fechou os olhos pateticamente. assim você conserva toda liberdade de espírito. — Você merece uma lojinha de modas. Ou então é a dama. pela primeira vez na sua vida. Não sou volúvel. . eu lamentaria que você começasse por uma paixão. você bem sabe que ninguém quer atormentá-la a esse ponto — disse Mme Alvarez. ajustou a fivela da cintura e marchou para Gaston. Nesse ponto. esconda-me.Gilberte fez com os ombros um gesto infantil... Esquecer tudo nos braços do homem que nos ama. Sim. Gigi! Eis um homem que. Ah!. . — Oh! Deve ser ele — disse ela. minha Gigi. com licença. — Por quê? Sobre a face aveludada de Gilberte. Gigi levantou-se de um pulo. Apoiou a cabeça no ombro de Mine Alvarez e.. — Ora. — Se você quiser. . casa com um expedicionário. titio. Ao golpe brusco da campainha que tremelicou. e dos mais competentes. — Isto — explodiu Mme Alvarez — é mais do que eu suporto! Então. Lachaille põe-se a contar tudo o que houve. vai. prontamente. quem o deixa. não estaria tão sossegada se você fosse louca por ele... — Bom dia. titia. afinal bem podiam me dizer uma palavra. o Lachaille. — Não. . Note bem: eu não vejo mal nisso. — Vovó. . — Não sendo de sua vontade. a segurança o deixou: — Ora. — Eu sei. uma lágrima desceu sem molhá-la e a moça não respondeu. Muito. — Você não poderá nos censurar — disse Mme Alvarez — por não ter recebido conselhos. Anda. tem um belo corpo. digamos. . Não recebendo resposta de nenhuma das três mulheres. refleti muito mesmo. que vinha empalidecido e com o branco dos olhos turvo. do que sem você. Cruzou os braços sobre os seios e estremeceu ligeiramente. um momentinho só. eu gosto. .. — Idiota! — explodiu tia Alicia. Ele a interrompeu.. posso tomar um comprimido? Queria deitar-me. minha querida. eu logo acabo. estou triste. Mamita. basta ver as fotografias de roupa de banho que tirou em Deauville. não tem outra coisa a fazer senão meter-se na cama de outro cavalheiro. como uma mulher. seguida de Gaston Lachaille.. escutando somente seu grande coração... não me faça juramentos. — O que gorou. vovó. Irem os dois sozinhos para o outro lado do mundo. — Eu refleti. não o quero ver. Mas assim mesmo estou triste. Veio é me fazer sofrer outra vez. escutar o canto do amor numa primavera eterna.. vim buscar minha palheta. M. Não dizem nada ao seu coração estas coisas? Que acha você disso? — Acho que quando acaba a eterna primavera. vovó.. Não quero. titia. . E é um belo moreno. As duas irmãs entreolharam-se. é ele.. — Você está se sentindo mal? — Não. Depois correu a abrir a porta e. sim. — Não se vai falar nisso a vida inteira. — Minha Gigi. suponhamos sempre que seja eu. — Vovó. eu. gostar dele. nem que fosse só bom dia! Gilberte avançou um passo: — Não — disse ela — você não veio buscar palheta nenhuma porque está com outra na mão. Mme Alvarez apalpou-lhe a testa. E a dama. Você não anda à cata de palhetas. não o ama. vovó! Ouvindo a tonalidade baixa e apaixonada da voz. bom dia. Gigi — disse ele em tom jovial. — Não se incomodem. estou com frio. Lachaille vai-se com outra dama. gorou — disse Alicia secamente. — É o que eu digo. Então . Refleti que preferia ser infeliz com você. puxou a saia.. ele tem reputação firmada. Mas preferia ir deitar.. voltou. — Vovó. . e derramando sobre ele a riqueza de seus cabelos soltos. Como de costume. confiante. Não se meta. duas vezes: — Então. um pouco mais longamente do que de costume. Gaston.E a moça vacilou ainda. a alegria infinita de me ceder a mão.. Mme Alvarez fez como quem ia se precipitar mas a mãozinha impaciente de Alicia a reteve: — Deixe. é isso. — Mamita — disse ele. no ombro de Lachaille.. Bom dia. Não vê que isto já não é da nossa conta? E mostrava a Gigi repousando a cabeça. . beijou-a. . . O homem feliz voltou-se para Mme Alvarez. a mercê. até que a sentiu atenta e depois imóvel e dócil em seus braços. . — Faça-me a honra. Bom dia. estendeu-lhe a face e ele. voltara-lhe o semblante de criança de dez anos. . com seus cabelos castanhos. porém.. os cílios tiritavam de sofrimento. Para ele. para o ângulo das pálpebras. ouvindo seu pedido sem palavras. As outras necessidades do corpinho amolentado e desfeito. como temendo que o pequeno doente sentisse a ruptura do fio do olhar e deixou-o. retificou: — Estou côr-de-rosa por causa do abajur. finalmente. pensava Jean. tinham olhinhos duros de . sem falar. a criança rolou. mas eu." — Vaporizei lavanda. impressos nos olhos castanhos um temor e uma fixidez bem conhecidos do menino.. às vezes. toda de pelica loura. Mas naquela existência de criança condenada. com a aparência do sono. Gostas do cheiro? O quarto está perfumado. na vontade de comer ele nem pensava. consigo mesma. . Brincavam assim. Outros vocábulos. as cortinas de musselina branca. oh!. Mostrava-se exímia no fazer dos sentidos um uso feérico e paradoxal. de uma delicada mímica. A vontade de beber exprimia-se por três "batidas" de pálpebras. aplicavam-se a um baralhinho suíço de cinqüenta e duas cartinhas envernizadas. a face longa.. "Ela pensa que durmo". E o menino destinado à morte teve perto do seu. Susteve-o a mãe. da madeira de limoeiro e da marchetaria. complicada como a linguagem dos animais. tinham sua telegrafia pudica e muda. E. O menino tornara a cerrar os olhos e. Jean escolhera as palavras convenientes para o jogo de damas. Dona Mamãe pensava: "Como ele sabe imitar bem uma criança que não sofre! Outra mãe se enganaria. tudo o que ainda podia merecer o nome de supérfluo. em sua maioria secretos. censurou-o por ter apagado com uma palavra o róseo que lhe vira nas faces. tão certos de dominar suas inquietações que esqueciam amiúde de manter-se em guarda. de se enganar. A criança fez que sim. Evitando suspender a nuca enfraquecida. batidas pelo sol das dez da manhã.. o hábito e a obrigação de poupar suas forças haviamna. corados. Comer. e apenas um pouco mais aguda que uma voz de mulher. emolduradas e filetadas a ouro. para a "paciência" constelada de bolinhas de vidro. sobre as maçãs do seu rosto.. uma vez mais..O MENINO DOENTE O menino que ia morrer quis levantar-se um pouco mais alto nos travesseiros e não pôde. como os das menininhas antigas. "Ele pensa que eu penso que ele dorme". a serviço de uma voz harmoniosa e como que amadurecida pela doença. mantinha-se preso à palavra humana. Tinha. repuxados nas têmporas. — Meu garoto está cor-de-rosa esta noite — disse ela alegremente. Dona Mamãe olhou para o filho e. emitiam um som róseo e a encadernação antiga de uma Viagem pelas margens do Amazonas. As rainhas eram como pastoras. gravemente. Sua mãe voltou-se suavemente. para o trou-madame e para muitas outras distrações desusadas que se serviam do marfim. o rosto maternal que acreditava já não ver. toucadas com chapéus de palha ornados por uma rosa. os valetes-pastores traziam seus cajados. procurava termos exatos e variados. mas os reis eram barrigudos. Cheia de dor. pouco empoada e um tanto magra. "Ela pensa que eu não sofro". dotado de um repertório de pequeninos sinais. suas pupilas de grandes íris verde-mar e. como painéis de um salão. o ângulo muito aberto dos olhos castanhos. derramava em seu espírito um sabor de massa de pastéis quente. de prazer ou brinquedo. — Meu filhinho chorou? — Em sonho. Lavanda. rindo às gargalhadas. Cavalgou uma nuvem de perfume que passava ao alcance das suas narinas pequeninas. acima de tudo. divertiu-se descendo a escada de ponta cabeça. Mas posso ter esquecido". Nitidamente. baixara até perto demais da terra. planar sobre uma cidade que dormitava e cair sobre o seu leito laqueado. de lágrimas. varava displicentemente com a testa um elemento de que já conhecia os recursos e as resistências. . no fundo do qual tombara de mau jeito. ele sabia cavalgar. machucando-se muito. que vira. e lembrava-se ainda do calor dos cornos lisos. Com os braços abertos. perdiam-se à medida que o menino voador remontava ao seu firmamento familiar. Acho que. Espantada com o que lhe pediam. Jean se lembrava de como tivera que esforçar-se. ele aterrissava raramente. diante da sua. a nuvem de lavanda resfolegava um pouco. dizia o menino. apertava entre os joelhos a nuvem arrependida e guiava-a para as regiões superiores da cozinha. úmido de orvalho. se não as segurarmos firme. Jean rompeu com destreza o atilho de um avental e passou-o pela boca da nuvem à guisa de freio. atenazara-lhe os fêmures. ele. e depois praticou algumas escorregadelas de costas. florindo junto à relva. vinham ao seu encontro e cresciam como astros pequeninos. "Agüenta. passar através de muralhas e. Aliás.. Tivera tempo de apoiar com firmeza as mãos nos longos chifres. apressa o passo." Transposta a porta de serviço. ele não fornecia nenhum esclarecimento. e depois. existente na bandeira da porta. meu quarto não cheira bem.. ho! Que tonta! Ah!. uma bela cara espantada de vaca loura. seus joelhos pressionaram os flancos da nuvem de perfume com um desembaraço e um vigor de cavaleiro que. sabia ir à calçada "fazer suas . recusavam-lhe suas pernas inertes de criança semiparalítica. daquele que. Dona Mamãe. da sua ponta arredondada e como que benfazeja. e afastou-se rapidamente. que acorrera para proteger a vaca. . roçando imprudentemente um prado em que pastavam vacas. vagueou pelo ar. inclusive a dose de malícia filial de que as crianças não concordam jamais em privar-se. brancas e apertadas. evadiu--se por um encaixe de vidro fosco... para modificar a direção do vôo. arrancou. Uma vez. os pêlos de um cão da casa. para retornar através de uma aurora de pervincas. por causa deles. aborrecendo-se. "Não. quando eu vivia em pé. com os chifres em crescente de lua e os olhos a olhar o menino voador como duas lentes de aumento. perto do teto. e quanto a isto. e foi-se ao longo do corredor. "Aonde vamos? Precisamos estar de volta à hora do jantar e já é tarde. é assim que se atravessa uma porta de cozinha? Duramente. diante dos humanos. sabia voar. Tão perto da terra. pelos ares. em sonho. antigamente.. Vamos. minha potranca de montanha!". — Ho. Para distanciar-se dela. mas freio sempre é freio e o que ele freia pouco importa. enquanto as bocas-de-leão. Prontamente. Não é a mesma lavanda. Jean inventara uma paciência que excluía os quatro monarcas grosseirões. uma dor tão forte que não lhe fora possível esconder de Dona Mamãe dois traços nacarados. Boca nem sempre é boca. Os ladridos do cão pastor..proprietários montanheses e. onde seca a roupa lavada. dentro do quarto.. Sua vida no leito provia-o de todos os deleites da moléstia. . que em sua vida enclausurada não ria nunca! Na descida louca. lá onde o ar é quente. a nuvem de cheiro agradável atingiu o fim do corredor. bastava-lhe cortar de viés uma ou outra vaga. pensou ele. essas lavandas mestiças de serpilho! Quebram-nos a cara. naquela manhã. Baixando a cabeça ao passar entre dois panos. ho! Ho. ao que se dizia. Montado na nuvem perfumada. uma dor tenaz queimara-lhe os rins. Então. seguido no vôo por uma enorme traça prateada que ia espirrando na esteira da lavanda. bateu com o focinho na porta que dava para a cozinha. Inclinando o corpo como o mergulhador que desce através das ondas. e um ligeiro golpe de quadris evitavalhe o choque da aterrissagem. Evadido de sua vida passiva. de passagem. para lançar-se para trás. necessidades" e depois subir para junto de seus pais. porque ela não compreenderia. Acabou-se o passeio a cavalo. Depois. e arranhar a porta. Entrecerrou os olhos. . — Que lindo que ele é! — murmurava as amigas de Dona Mamãe. como um meneio de anca inexistente. nas horas de pálpebras fechadas e de véu interposto entre a clara lâmpada e o abajur. . sim". com suas maneiras de grosseirona perfumada? "Da próxima vez. Aí. preparando com sossego o seu próximo passeio. pensou Jean. esbarraram. depois. cortantes como lâminas. jamais ele tentaria explicar tal coisa à Dona Mamãe. as têmporas e as orelhas eram cobertas de anéis de um louro suave. Tinha uma pressa horrível. em lugar de um m precisava de dois e mesmo três. . — Queres vir conosco. cortada em três pedaços. louro de lua hibernai. vagamente esverdeado. Tombar naquela caminha um tanto áspera era coisa a que. — Não sabes o que perdes! — gritou-lhe o menino. sabendo que o Aiglon tinha os lábios grossos como os de sua mãe. Aliás. era alguma dor? Ele fez sinal que não. Adeus. Que voz. meu querido.. mas. sim. Receava a aterrissagem..me. girando suavemente nos gonzos.. sobre a larga lâmina cromada. oh!." Sufocado pelo choque. quero dizer. pensou o garotinho. para o seu qualificativo. um imenso corta-papéis niquelado. Surpreendido pela mão de Jean. não com o maleável obstáculo de carvalho complacente. .ceu". degringolou pelos dois últimos andares abaixo. em gotinhas frias. talvez a testa.. um pouco mais para baixo do abajur? Muito obrigado. a presença de um reflexo rosado como neve à aurora. "Ador. E que se podia esperar daquela grande nuvem balofa. lá dentro. . aterrorizado. A isto. faltaram os quatro pés que jamais tivera. . Jean verificou. você quer empurrar a Grande Pat. E ela dizia com altivez: "Sim. — Eu também tinha medo. a faca de papel. O alto da cabeça. estafada. escutou. para evitar que se emaranhassem.. condizente com o verde-mar dos olhos e com o branco-pétala do rosto. esporeada pelos calcanhares nus. — Dona Mamãe. e teria invejado os lábios arqueados e afilados nos cantos que aumentavam a beleza de Jean. . Riki! Cavaleiro e montaria atiraram-se à pesada porta da rua. antes de se dispersar. agitando da direita para a esquerda seu indicador delgado. som de gotas e de fontes. .ceu" enrolado como um gato. . Jean virou a nuca sobre o travesseiro. o cachorro. . estava habituado. adeus.. tem qualquer coisa. atirou-o à garupa enfunada e vaporosa da lavanda que." Não teve nem tempo de perguntar consigo a quem atirava aquele adeus. outra úmida.. saltou da garupa acolchoada e subiu as escadas. Para espanto de Jean. Riki? Levo-te na garupa! Agarrou o cão com sua mãozinha possante.. montarei a Grande Patinette". mas olha agora. — disse a voz de Dona Mamãe. Dona Mamãe sorria com desdém. "que ele. e grandes ferrolhos que diziam "sim. Junto a elas. sob o peso da sua cabeça. toda misturada de linhas retas e linhas curvas — uma curva e uma reta— uma linha seca.. — Parece-se tanto com o Aiglon. .ceu" repetiu Jean. . jazia a palavra "ador. que ele adormeceu .me. louvado seja Deus. . . branco e bem cuidado.. afinal. o cãozinho ganiu e grudou-se à parede. produzido pelos fios de crina branca. uivando de susto... Jean percebeu a cruel consciência das duas palavras. chocaram-se à inflexível barreira de uma voz firmemente cinzelada que cochichava: ". . porque é preciso não inquietar Dona Mamãe. Jean não é tuberculoso!" Aproximados abajur e corta-papel pela mão hábil de Dona Mamãe. Seus cabelos louros eram cortados bem curto atrás. pousando a têmpora esquerda sobre o travesseiro firme. . de volta. — Dormias tão bem. de fechaduras que se derretiam.. Primeiro.. sombreada de azul — uma cintilante paisagem de hortelã. tão grande que. Assim chamava. a imperatriz. À nuvem. o sofrimento ia-se acalmando. — Acordaste gemendo. nos primeiros tempos.me. kiele kiele". Jamais. atirou o cavaleiro ao leito laqueado e Jean tornou a gemer àquele contacto brutal. . eis o "ador. dilacerado de alto a baixo. colheres de mingau. — Chegou o jantar! — O que é? — Primeiro. Depois. dobrando-se duas vezes.. Mandore nunca se atrasa. o menino doente recebeu o consolo de um olhar capitoso. ao roçar pelos móveis. trigueiro. Não quer deixar-me. se por acaso as razões faltassem. fechou os olhos. sozinha. e sua saia listada de amarelo e marrom.. — Meu querido. "Nós sabemos. quando pensa em mim. Sobre todo o corpo recostado." Esgotado." Virando a cabeça com precaução. reabrindo-os ao ouvir um tilintar de colheres.. estava ainda vagamente abalado pela queda. o marido que ela perdera tão jovem: "Teu pai querido. Antes se contivessem um pouco. se isso não te faz diferença." E. hesitando. eu lhe forneceria mais mil. pensou. em forma de espaldar. dizia Dona Mamãe. ia ressoando com amplas sonoridades de violoncelo que Jean era o único a perceber. filhinho.. "É um quebrador de açúcar. depois que tiveres acabado o teu jantar. ainda se chamaria Angelina". Ela. coberta por uma toalha bordada.. sim — respondeu o pequeno indicador branco e condescendente. disseram também as pálpebras bordadas de cílios... Mais que tudo. está quase na hora do jantar — disse Dona Mamãe. e que Jean designava friamente. ela sai.. aos olhos da qual surgem num instante um par de lágrimas. orgulhosa da carga. não era inevitável que — barriguda e dourada. Além da colher de absinto — absinto. "Tenho tempo". Jean não gostava de colheres. Aliás. Mas brincos de olhos... acentuando o sorriso. Mas é bom eu apressar Mandore. ab-santo — Jean não gostava senão de garfos. que sustinha a tigela fumegante.— Mas. Não era mesmo justo... por um momento. . absinto. olhou Mandore que entrava.. Saiu outra vez.. sonora a todos os impactos. Vai enxugar seu par de lágrimas. por demais carregados de uma serenidade à qual só ela sabia dar sentido — perder o controle e sair do quarto precipitadamente.. ritualmente. mas que sabiam estreitar e dominar os flancos de uma nuvem ameaçadora. mas não cessa de sair do meu quarto. levantou aquele corpo delgado de criança crescida." Dona Mamãe inclinava-se e ele se pendurou no seu pescoço. só Dona Mamãe é que os tem. Ela tem cem razões para sair do meu quarto e. O menino doente sorriu à mãe. é claro! Depois. a fosfatina. Colheres de sopa. inertes agora. há muitas pedras preciosas. uma bizarra colher de cabo longo e retorcido que acabava numa rodela toda lavrada. Dona Mamãe? — Não sei bem. que anda sempre atrasada. eu jantarei rapidamente na sala. quase sempre. com risco de ver Dona Mamãe — diante de certos sorrisos muito bem acabados. Creio que era uma colher de absinto. sob a carga da universal gentileza.. recostada num travesseiro duro. . Mandore atravessou o quarto. harmoniosa por sua voz bonita e pelos seus olhos lustrosos como a preciosa madeira dos alaúdes — esta forte empregada respondesse ao nome de Mandore? "Não fosse eu. peixinhos . com indulgência. erguendo os braços livres de entraves. seu olhar resvalava para um retrato fotográfico do pai de Jean. refrescante: "Que boa essa cerveja preta dos olhos de Mandore! Como ela é gentil comigo. como um par de pedras preciosas. "Sabemos o que é uma senhora Mamãe muito sensível. exceção feita de uma de prata. dando um encontrão no batente da porta. colheres de poção. Deve-se perdoar tudo aos que têm saúde.. com palavras reservadas ao silêncio e ao segredo: "o cavalheiro pendurado lá na sala". piscando duas vezes. Atravessando-a no leito pequenino. ela entra. Jean". — E a outra ponta da colher. Para as orelhas.. nós sabemos". e exclamou: — Muito bem! A bandeja do teu jantar já vem vindo. demônios quatro vezes cornudos. Dona Mamãe contemplou sua obra graciosa e defeituosa... "Ela sai. vasto. — Sim. Como são todos gentis em relação a mim. sobre os quais se empalavam a almôndega de carneiro. você vai ver. Será que ela não vai habituar-se comigo nunca? Como ela é pouco razoável. o busto fino e as longas pernas. pousou a mesinha de pés curtos. abre o bico. paiol mal--varrido.. . murmurava ele à sua maneira inatingível.. Mas eu recomendei a Mandore que pusesse um nada de limão e uma casquinha de baunilha para perfumar. grossas e cremosas. E que vertigens. . "Que grandes!" Dona Mamãe. não fosse por um passageiro. você está comendo tão depressa hoje. Em seu vocabulário secreto. Voltava Mandore. ele se descobriu de novo. Nada. acidulada senhorita de província que. tzrummm.. Em Jean. Você não costuma comer assim. a queda das estrelas e o tremeluzir alaranjado dos cimos roçados pela aurora. toma pouco lugar. que roer de ramos de lavanda seca. Jean enfrentou a geléia de maçã. — Já acabou de jantar? Com essa pressa. numa invisível página de um certo caderno escondido no recanto ativo e latejante do seu flanco. Sua ambição limitava-se a esta colheita.. com seu granizo de açúcar. as cordas interiores que eram. Resoluto. com seu vestidinho cor de vinho. carneirinho. Não estava ele armado contra ela? Não claudicava àgilmente.. além da caixa de ressonâncias..convulsionados na fritura. A voz de Dona Mamãe tombava lá do alto.. raízes de íris.. que ele descia ao amanhecer. em atenção ao que boiava de irreal no seu caldo claro... Dona Mamãe enrubesce de alegria? — Ah!. Dona Mamãe de um lado. Resoluto. inflava-se de tantos gomos quanto os de um melão. um quadrado de batata com seus dois olhinhos de pepino. aos ramalhetes. Mas Mandore. ao acercar-se dos quinze anos. é porque tenho fome. querido. talhadas na própria altitude. lança-se sozinho aos cimos cândidos. Jean congratulava-se por chegar sempre a tempo e. É verdade que recebia o troco. débil e malicioso: "Jean!. de flores desfeitas. para dar a Jean. tzrummm. com altivez e desdém. uma bolsa d'água quente. Obedeceu. dormindo! Mandore. ela fazia soar só para Jean. de listas largas. Jean conhece todas as astúcias. — Se estou comendo depressa. Sim. Pois não é que às simples palavras. como tantas outras. porém. ao perfume empoeirado das florinhas que Mandore comprava na rua. talvez do armário grande. depressa!" Bem baixinho.. e sua saia barriguda. que escorregadelas entre guardanapos rígidos e adamascados. reaparece na bem arredondada dobra de um par. se isso é verdade. mas inconfessável desenxabimento que disfarçava o pior. — Jean. a rica harmonia de Mandore. este bordão". sinto muito só te dar como sobremesa geléia de maçã. fechando os olhos e engoliu um remédio quase insípido. uma certa e particular mansuetude permitia a Dona Mamãe atingir. calafetado de farinha velha nos cantos. arrimado no seu bordãozinho de baunilha? "Sempre curto demais. Meu Deus... as mãos à cintura. eu faço boa cara. mas desce logo ao meu estômago. e sobre determinada serra de bordado engomado e cercaduras gregas. uma lua de damasco em quarto crescente. talvez daquela cornija de estuque encaracolado. Depressa passou um pequeno naco de carneiro grelhado. pálido em seu leito. descia carregada de grandes lajes de neve. Era de lá.. sim. duro de frio. por ele chamado de "bolso do coração". Seguiu-se à inevitável sopa fosfatada.. o faria arrancar a si estas sílabas medonhas. tem duas alças arredondadas. as duas junto ao leito. a própria alma. ouço ainda balir a tua carne e não quero nem saber se estás côr-derosa por dentro!" — Jean. para atirá-las aos pés de Dona Mamãe. a comida volta.. Dona Mamãe. Jean viu mais longe e mais alto. sempre. Andando. Mandore de outro. meu querido. ao sopro floral. que a ampliam. Ela subia por meio de uma escada dupla e. anotava as peripécias da ascensão. Jean . depois de invisibilizar-se por trás do batente da direita. da penumbra. corre. "Corre. olhava para aquele garoto de dez. Jean chamava a esta poção de "ravina de cadáveres".. Mas a esta perdoava-se tudo. "tenho fome". lá em cima do armário.. inteirinho. um clima igual ao da roupa branca da casa. que por nada no mundo te mastigo. penetra num par ímpar de lençóis. . em todos os seus traços. relegou-a. Conhecia. — Estás cansado? Queres que eu vá embora? O menino fez mais um esforço. Acabada a toilette. que desatasse aquelas' pernas longas e fracas. Era a hora. com cantos pontudos. Dona Mamãe. desceu às pálpebras e fixou-se amargamente em seus lábios. "Se ela ficar. tinha no côncavo das palmas da mão um foguinho aceso. abriu bem seus olhos da cor do mar bretão e. vou me sentir branco. meus olhos vão se encovar e nem os não-obrigado-está-bem-Dona-Mamãe poderei mais responder. Temia somente que a solicitude de Dona Mamãe prolongasse além do possível a duração do seu dia. — A pêra da campainha está bem ao alcance de tua mão. tão gostoso.. A última parte da palavra foi estrebuchar numa dobra de obscuridade e Jean rolou com ela. Há muito tempo descera a noite de inverno. quando me deixa: suas pequenas orações. Naquela noite.. Devo ter arranjado uma corcova enorme atrás do pescoço. Não queres que eu aproxime a mesa? — Não.. e. nasceu-lhe numa dobra flamejante da cabeleira. nas conchas das orelhas. uma dessas bonitas enfer. e para ela isto é absolutamente necessário e. com mil precauções. a encadernação do Gustave Doré. "No entanto.. Jean lutava contra a embriaguez do cansaço. ainda mais branco. e devolvesse ao sangue empobrecido seu livre curso pelas ramificações verdes" das veias. em volta das têmporas.. . Dona Mamãe — disse a criança muito baixinho. um wu-wu-wu batendo e. em que Dona Mamãe desejaria abismar-se na contemplação de sua obra martirizada e encantadora. Jean queimava em febre. — Boa noite. fragmentos de coroa escaldante. dizia ele. se quiser cuidar de mim depois que o ponteiro grande inclinar-se para a direita do XII... beijou o filho e foi-se embora levando consigo gritos de amor refreados. Saboreando seu meio copo de água mineral — a água fininha. manifestou a vontade de ser belo e disposto. Ma xeu bebi." Sorriu à mãe e a majestade com que a doença assinala as crianças que atinge. o sabão. dispersou-a no prato. nem aos prodígios que. furtiva e leve que ele acreditava verde porque a bebia na sua taça verde-pálido — Jean calculava precisar ainda de um pouco de coragem para encerrar seu dia de doente. os cuidados minuciosos e inelutáveis que requeriam o auxílio de Dona Mamãe e mesmo — tzrumm. vai ser terrível. de móveis. dez horas. Dona Mamãe. grande. assim mesmo está bom. nas horas que ficas sozinho.. Dona Mamãe. mais branco. Estava muito ocupada com tudo o que leva na saia. outra vez as ternas indagações maternais. assim não podes dormir. onde estou com a cabeça! Hoje não tomei tua temperatura.. caprichosa. litanias a implorar que o mal retrocedesse. está bem embaixo das tuas costelas. o limite de suas forças e não tentava escapar aos ritos preparatórios da noite. de noite. porém. Viria outra vez a toilette da noite. ao cair. baixou corajosamente os ombros altos: — Será que estou com cara de menino cansado? Diga. era uma dobra pequenina". arruinasse o edifício material de volumes... — Meu Deus. não.demoliu a geléia. se insistir. . Fiquei feito um zebu. um certo equilíbrio de luz e sombra mantido e acatado por Jean. adjurações juguladas. em festões. é.. Dona Mamãe! Ela respondeu só com um ar travesso e um sinal de cabeça. a luva de esponja. ela vai soluçar.. Tens certeza que não queres mesmo uma pessoa para fazer-te companhia. ela pudesse engendrar.. que ela não percebeu cair nada. para o friso dourado da louça e mais uma vez a questão do jantar ficou resolvida. e que lhe custara os últimos esforços até à hora extrema. espalhados pela cama toda. a água morna e mais o conjunto de precauções que preservavam os lençóis das gotas erradias. as observações que deve comunicar ao . e esta ninhada de volumes pequeninos. aqueles quadris emagrecidos mas não disformes. — Fica para amanhã cedo sem falta. — Aqui estão duas laranjas no prato. tzrummm — a assistência sonora e alegre de Mandore. censurando-se. eu bem que vi que Dona Mamãe não cebeu. Uma neblina interpôs-se entre o vestido grenat de Dona Mamãe e seu filho. Não precisas de mim para apagar a luz? — Eu mesmo apago. viria a escova de dentes.. — Filhinho. sabes. Some. tendo esboçado o retrato de Mandore. não estava tão negra que não se distinguisse o galho extremo de um castanheiro da avenida. e a silhueta de um relógio de alabastro galopando velozmente sobre quatro colunas. A noite. nem sentir dores — sem ser infeliz. ao médico. ora minha noiva. Inundavam-me com uma chuva de olhares.médico. pedindo socorro. meu amigo. doutor.. continha-se para não desenhar. que se permitiria dizer semelhante coisa. boyscout. ante semelhante menino calçado de pregos e barro seco. Que hei de fazer para que compreenda que não sou infeliz? Ao que parece. sim. o primo dos joelhos escalavrados e violáceos e seu vocabulário esmaltado de "mas é. . doutor?" Do mesmo modo.. em que as amolações adormecem. à noite. precoce. agora!" ordenou ele. só as visitas do primo Charlie. o coro das formas e das cores. Mas isto são amolações. chega uma hora. nem estar pálido e privado de suas pernas. lá fora. nas mãos do cabeleireiro de cães. seus sapatões ferrados e essa palavra. Infeliz. rasgara suas primeiras obras. e saíra pelos livros afora tão loucamente como cavalgava nuvens. e mais o cão Riki. ah! fraquinho!" e sobretudo de "imagine!" e de "compreende!" — como se o pensamento e a agudeza de espírito pudessem deixar de fugir apavorados. para estigmatizar com mais um sinal aviltante. Pois Dona Mamãe e Mandore.. "Ilumina. — "Meu jovem amigo. Está aprendendo bailado. Desaparece! Como diria meu primo : vai saindo.." Sua pureza ergueu-se em toda a sua altura.. Esperou a eclosão sinfônica e a turba que Dona Mamãe chamava sua solidão. meu filho tem já uma escrita muito segura. assistiu surgir em volta de si sua noturna companhia. haviam--lhe feito a graça de só conhecer e amar dois luxos: a delicadeza e o sofrimento. você não desejaria um álbum com lápis de cor? Distrai e é um brinquedo apropriado para sua idade. Tudo isto que ela carrega de noite. alça-se no bico dos pés e diz: "Olha como eu faço". detrás do vidro. por assim dizer. "Sim. pois." A esta sugestão. Tombavam como granizo os "Que bonitinho!" e os "Que pena!". É a hora em que tudo está bem. para mim é sopa. metade de aço e metade de borracha. Sua ponta intumescida afetava a forma de um débil botão de rosa.. com seus joelhos esfolados.. "Não seria o barbeiro. E eu.. todo esmaltado de luar — e pousou-a sobre a mesa de cabeceira. temendo as traições. um menino de minha idade não pode nem viver deitado. Protegido. que julgara extramedical.. dizendo que és o broto da estação próxima. secretamente povoa o ar." Não perdoava. de desgraça. ofendera o médico de mãos frias: "Isto então é caligrafia de criança. puseram-se de acordo a voz fraca e musical e um olhar irritado e másculo: "Não imaginava que o diabo tivesse algo a ver com isso. certo dia. prontamente ele se apoderara dos hieróglifos da tipografia. Só à vista do primo Christian.. E essa menina bonita que nasceu no mesmo dia que eu e a quem chamam. a grande tristeza que lhe dou. a loquacidade de algum croquis. Deixara de se servir da caneta de prata gravada com suas iniciais desde o dia em que sua caligrafia amadurecida e veloz enchera de surpresa e. ao menos." Apagou a luz.. infeliz eu era ainda quando me levavam a passear na cadeira de rodas. e plàcidamente.. Não entres. Jean amedrontara-se com a semelhança de seus ensaios e. forçando paisagens inscritas sob as superfícies polidas ou reunindo em torno de si tudo o que." E os olhos de Dona Mamãe pediam desculpas. prudentemente. . com que ele me esmaga. desfolhado. não querendo ninguém comigo de noite. para os privilegiados como ele. longe da presença materna: "E por que diabo você chama Dona à sua mãe?" Para dar resposta. arrepanhado na saia levantada e — pobre Dona Mamãe — que transborda e rola pelo tapete. Ao me ver aqui deitado.. ora minha irmã de leite. minha senhora? — Sim. Jean respondera apenas com um olhar apertado entre os cílios. bem sabes como sou severo para com tudo o que fala do ano que vem. vais tentar outra vez enternecerme. Jean limpava os dedos no lenço como para livrá-los de uma areia grosseira. com todas as suas delicadas pernas de grilos sapientíssimos. olhar grave e viril que media de alto a baixo o médico oferecedor de conselhos. hein?" "meto o pau. Agora. à guisa de alvo.. Retirou de sob o braço a pêra da campainha — brinquedo de doente. com todo o seu teclado de ressonâncias interiores. ter ousado interrogá-lo. interpostas entre o menino e as leituras de baixa espécie. Ela não obedeceu de pronto. Mas. como ele próprio." . penteado à 1'Aiglon. "Isso não é perigoso. Eu me encolhia para que me atingissem um pouco menos. O gentil ceifador de cabelos desincumbia-se de sua missão de outro modo, contando a Jean sua vida domingueira. Todos os domingos, ia pescar nos arredores de Paris. Dando uma cintilante volta com suas tesouras, ensinava de que jeito se atira longe a rolha com a isca. E Jean até fechava os olhos sob o frescor das gotas d'água que se iam ampliando em rodelas, ao cair, quando o pescador erguia vitoriosamente a linha carregada... — Quando o Sr. sarar, Monsieur Jean, levo-o comigo para a beira do rio... — Sim, sim — concordava Jean de olhos fechados. "Que necessidade têm eles todos de me ver curado? Eu estou à beira do rio. De que me serviria um perxão do tamanho de sua mão ou uma sôlha que nem sua faca de papel?" — Barbeiro, meu amigo, seja gentil, conte mais... E era então ouvir a história das borboletas crepusculares, coladas ao arco de uma pequena ponte, isca improvisada que permitira capturar "um montão" de trutas, com a ajuda de uma vara de aveleira, tirada de uma cerca, e de três pedaços de barbantes amarrados um ao outro... Sob o acompanhamento provocante e fresco das tesouras chilreantes, a história começava: -— O senhor vai até um miserável braço de rio, estreito como minha coxa, mas que se alarga à medida que atravessa o prado. Vê então dois-três salgueiros juntos, um pouco de mato de corte: é ali... "É ali mesmo", repetia Jean, consigo: "Bem sei que é ali". Desde o primeiro dia, Jean rodeara os dois-três salgueiros de grandes espigas de agrimônia eupatória, arrancados do álbum botânico, e de cânhamos de flores côr-de-rosa, esse mesmo que atrai e adormece crianças cansadas e borboletas. O salgueiro mais velho fazia caretas só para Jean, com sua cara monstruosa e podada, debaixo da coroa de convolvuláceas brancas. Um peixe saltando, partia o espelho da água do rio, dois peixes saltando... Ouviu-os o gentil barbeiro, ocupado com suas iscas: — Estão caçoando de mim, esses aí... Já os apanho. — Não, não — protesta Jean — fui eu quem atirou duas pedrinhas n'água.. . A raineta canta e a tarde imaginária passa.. . E sonhava o menino: "A raineta canta, quando ela se escreve com a e está sentada, invisível, na sua jangada de nenúfar. A outra raineta, a cinzenta, pende redondinha de um galho de macieira — e não canta". Com o sonho, esfurnava-se rio, prado e ceifador de mechas douradas, deixando, na fronte de Jean, uma franja loura de cabelos ondulados, um doce e banal perfume.. . Acordado, o menino ouvia, vindo da sala, um sussurro, um colóquio longo e abafado entre Dona Mamãe e o doutor, de onde fugia uma palavra que, buliçosa e eriçada, vinha em busca de Jean: a palavra "crise". As vezes, vinha toda cerimoniosa, feminina, adornada para a distribuição dos prêmios, com um h atrás da orelha e um y no corpete: "Chryse, Chryse Saluter". "Verdade? É verdade?" dizia, ansiosa, a voz de Dona Mamãe. "Eu disse: talvez", replicava a voz do doutor, vacilante e mal equilibrada numa perna só. "Uma crise salutar, mas dura..." Chryse Saluter-Masdura, jovem crioula da América tropical, graciosa em seu vestido branco com babados. O ouvido sutil da criança recolhia também o nome de outra pessoa, que certamente convinha manter em segredo. Nome incompleto, parecido com Alyzie Effanti, Lysie Infantil; e ele acabara acreditando que se tratava de uma meninazinha também acabrunhada por uma dolorosa imobilidade, dotada de duas longas pernas inúteis, e de quem se falava à parte para não lhe provocar ciúmes. .. O galho extremo do castanheiro, obtemperando à ordem recebida, naufragara dentro da noite com a mensagem da primavera que viria. Surda a uma segunda exigência de Jean, a campainha em forma de pêra recusava-se a iluminar, com seu fogo opalescente e suavemente delimitado, a mesa de cabeceira com a garrafa de água mineral, o suco de laranja, a grande faca de papel cromada, que incubava sua aurora alpestre, o relógio míope de cristal convexo e o termômetro ... Nenhum livro sobre a mesa esperava a escolha de Jean. Os textos impressos, fossem quais fossem seu peso e formato, dormiam fechados ou, abertos, velavam na mesma cama que o menino doente. Uma encadernação grande pesava às vezes como um tijolo, sobre suas pernas irrigadas por uma vida tão avara — e ele não se queixava. Com os braços ainda válidos, tateou em volta de si trazendo de volta algumas brochuras, esfarrapadas e mornas. De sob o travesseiro, um volume antigo dardejou o chifre amigo. Amontoadas como almofadas, as brochuras ajeitaram-se de encontro à pequenina anca do garoto magro e a face infantil e terna encostou-se a uma encadernação de vitela loura que datava de cem anos atrás. Sob a axila, Jean verificou a presença dura de seu companheiro favorito, um volume troncudo como um paralelepípedo, rezingueiro e robusto, que achava o leito suave demais e, geralmente, ia acabar a noite no chão, em cima do tapete branco de pele de cabra. Como bons amigos, encaixavam-se ângulos de papelão, covas, cavidades e reentrâncias de uma frágil anatomia. A machucadura passageira disfarçava a pungência da dor crônica. Certos supliciozinhos voluntários, infligidos entre a orelha e a espádua pela vitela loura e chifruda, deslocavam e amenizavam os tormentos suportados pela mesma região e pelas costas, míseras e pequeninas, aladas de omoplatas salientes. .. "Que é isto aqui?" perguntava Dona Mamãe. "Parece um golpe. Não posso compreender como ..." De boa-fé, a criança machucada pensava um instante, e depois respondia consigo mesma: "Aqui... ora, vejamos, é isso mesmo... Foi que não desviei daquela árvore... Foi aquele telhadinho onde apoiei os cotovelos para ver voltarem os carneiros... Foi aquele ancinho grande que me caiu na nuca enquanto eu bebia água na fonte... E ainda bem que Dona Mamãe não viu, no canto de meu olho, o cortezinho, o sinal do bico daquela andorinha em que esbarrei, no ar... Não tive tempo de desviar, e ela era dura que nem uma foice. Também o céu é tão pequenino ..." O rumor das suas noites erguia-se, esperando e até familiar, variando conforme os sonhos, a fraqueza, a febre ou a fantasia de um dia que Dona Mamãe acreditava tristemente semelhante a outros dias. Esta nova noite em nada se assemelhava à noite de ontem. A obscuridade é rica, possui incontáveis tons de negro. "Esta noite, tudo é violeta. Dói-me... dói-me, o quê? A testa. Não. .. que digo? São sempre as costas. Mas não, é um peso, são dois pesos que tenho suspensos aos quadris, dois pesos em forma de pinha como os da balança da cozinha. E você? Ilumina, afinal, ou não?" Para obrigar a pêra de esmalte a obedecer-lhe, apoiou a face sobre a encadernação de vitela loura e estremeceu ao senti-la tão fria: "Se ela está gelada é porque estou queimando de febre." E não escorria luz nenhuma da fruta de esmalte à mesa de cabeceira. "Que terá ela? E eu, que terei eu, que hoje à tarde a porta da entrada me resistiu?" Estendeu a mão pelo ar noturno e povoado e, sem tatear, encontrou o fruto tenebroso. E a luz, caprichosa, mudando de fonte, surgiu no carão míope do relógio esférico. "Não te metas nisto", murmurou Jean. Contenta-te com dizer as horas." Mortificado, o relógio apagou-se e Jean soltou um suspiro de poderio satisfeito. Mas, dos flancos endurecidos, não obteve mais que um gemido. Logo pôs-se a mugir um vento que ele reconheceu entre todos, o vento que rompe os pinheiros, que descabela os lariços, que ergue e desfaz as dunas; as imagens interditas ao comum dos sonhos, que não transpõem a franja das pálpebras fechadas, insurgiram-se, quiseram saltar livres, aproveitar aquele quarto sem limites. Algumas, estranhamente horizontais, quadriculavam a multidão vertical das que se tinham erguido de um salto. "Visões escocesas", pensou Jean. Abalado pela ascensão vibrante da Grande Febre, seu leito tremia levemente. Sentiu-se três ou quatro anos mais leve e o medo, que quase não conhecia, o solicitou. Pouco faltou para que chamasse: "Socorro, Dona Mamãe, estão levando seu filhinho". Nem nas suas cavalgadas, nem no rico domínio dos sons mais estranhos — sons corcundas, portadores de ampolas ressonantes nas cabeças e sobre as suas costas de besouros, sons pontudos, com focinho de lagosta — em parte alguma o menino vira, suportara, formara um enxame igual, degustado pelo ouvido como se fosse boca, descascado pelos olhos doloridos e encantados. "Socorro, Dona Mamãe, socorro! Você bem sabe que eu não posso andar! Só sei voar, nadar, rolar de nuvem em nuvem..." No mesmo instante, algo de indizível, algo de esquecido, moveu-se em seu corpo, muito longe, numa distância infinda, na extremidade última de suas pernas inúteis, uma desordem de formigas esparsas e perdidas. "Socorro, Dona Mamãe!" Outra alma, porém, cujas decisões não dependiam nem da impotência nem dos benefícios maternais, fez um altivo sinal, impondo silêncio. E um constrangimento feérico manteve Dona Mamãe do lado de lá, no lugar em que ela esperava, modesta e ansiosa, mostrar-se tão valente quanto seu menino. Por isso ele não gritou. Também os desconhecidos, fabulosos estranhos começavam já seu rapto. Surgindo de toda parte, derramaram-lhe quenturas e gelo, o suplício melodioso, a cor como curativo, a palpitação como maça, e ele, já voltado para fugir imóvel para a mãe, optou de súbito e atirou-se ao sabor do vôo, através de brumas e meteoros, de raios que o acolheram macios, fecharam-se, abriram-se e, quase ao sentir-se perfeitamente feliz, ingrato e alegre, desabrochado em sua solidão de filho único, em seus privilégios de paralítico e órfão, percebeu que uma fissura pequenina, uma fissura triste e cristalina, separava-o de uma felicidade cujo nome côncavo e dourado ele ainda não aprendera — a morte. Fissura pequenina, triste e leve, vinda talvez dalgum planeta para sempre abandonado... O som claro e pungente, ligado ao menino que devia morrer, erguia-se tão fiel que a evasão deslumbrante em vão o procurava distanciar. Talvez tenha durado muito tempo sua viagem. Mas, libertado do sentido da duração, ele só julgava sua variedade. Acreditou freqüentemente seguir um guia indistinto e também perdido. Então, gemia por não poder assumir uma responsabilidade de piloto, e ouvindo seu próprio gemido de orgulho abatido ou de fadiga imensa, abandonava seu périplo, deixava a esteira de alguma rajada fusiforme e se refugiava, encolhido, a um canto. Ali o alcançava a angústia de habitar um país sem cantos, sem substâncias angulosas, uma corrente de ar escuro, uma noite em cujo seio ele já não passava de garotinho perdido, em prantos. Levantava-se depois sobre pernas numerosas, subitamente múltiplas e promovidas ao grau de andas, que uma dor cortante ceifava em feixes crepitantes. Depois soçobrava tudo e só o vento cego informava-o da rapidez de sua carreira. Ao passar de um continente familiar a um mar desconhecido, surpreendia palavras de uma língua que se admirava de conhecer: — O ruído do copo quebrado me acordou... — A senhora está vendo como ele estala os lábios. Não acha que quer água? Gostaria de saber o nome daquela voz. "A senhora, a senhora... que senhora?" Mas já a velocidade sorvia as palavras e sua lembrança. Em certa noite pálida, ao sabor de uma pausa que lhe trouxe vibrações às têmporas, colheu assim algumas sílabas e as quis repetir. A parada brusca o pusera, dolorosamente, em face de um objeto consistente e ríspido, interposto entre dois mundos nobres e desabitados. Um objeto sem destino, finamente listado, eriçado de pequenos pontos e misteriosamente cúmplice — como ele descobriu mais tarde — de horríveis "meu jovem amigo". "É uma. .. uma. .. eu sei... manga..." E na mesma hora, alado e de ponta cabeça, atirou-se de volta ao caos que o sossegava. De outra vez, viu uma frágil mão. Dotada de dedos afilados, a pele um pouco gretada e com manchas brancas nas unhas, ela repelia certa massa maravilhosa, toda zebrada, que corria do fundo do horizonte. Jean pôs-se a rir. "Pobre mãozinha, a massa engole-a de vez; ora vejam, uma massa toda listada de amarelo e preto, com um ar tão inteligente!" A mãozinha frágil lutava com todos os dedos separados, e as riscas paralelas começavam a distender-se, a divergir e vergar como barrotes moles. Entre eles, um grande hiato se abriu engolindo a mão frágil, que Jean surpreendeu-se a lamentar. Este sentimento retardava-lhe a viagem e, com um esforço, ele se lançou de novo. Mas carregava consigo a saudade, comparável ao tilintar de um copo quebrado há muito, muito tempo atrás. Daí por diante, quaisquer que fossem os redemoinhos e abismos embalados por inofensivas vertigens, sua viagem foi perturbada por ecos, sonoridades de pranto, a preocupada tentativa do que se assemelhava a um pensamento, e por um enternecimento importuno. Um ladrido seco rompeu subitamente os espaços e Jean murmurou: "Riki..." Ao longe, ouviu uma espécie de soluço que repetia: "Riki! Madame, ele disse "Riki!" Outro balbucio disse também: "Ele disse Riki! ele disse Riki..." Uma força pequenina, tremulante e dura, da qual percebeu a dupla pressão sob as axilas, parecia querer suspendê-lo para algum píncaro. Sentindo-se machucado, resmungou. Se pudesse transmitir quer. corcéis não ferrados. Que ele só aconselha em ser molestado por. Voltou a si para ouvir a própria voz.. Reconhecendo. proíbo.. pérola por pérola. recém-pousado contra a sua face.. por elementos dos quais só a noite desencadeia e controla o ímpeto.. Com o ar. . não é um ventre de passarinho. na doce e submissa atitude que lhe vergava o talhe e fatigava o dorso. Enrole-o no roupão grande. .." — Dona Mamãe.". Mãos destras como vagas. com seu desenho azul e seus pelinhos de lã. ele está chorando. Mas. Dona Mamãe?" Ninguém lhe respondeu mas a delícia de um gomo de laranja escorregado entre seus lábios sensibilizou-o para o retorno e para a presença daquela que buscava. .. o ressentimento devolveu-lhe forças. inconscientemente.. mas apenas orlado por uma mecha de pêlos longos. ele se entregou às mãos que lhe retiravam a roupa umedecida. calou-se. por que as formigas. não tem direito algum. escondido. Mandore. donde vem. . mais leve. chamadas a alguém presente. Coloquei uma bolsa quente agora mesmo.. Depressa esgotado..." E a voz soçobrou numa espécie de tormenta donde surgiam sílabas desconexas. leve e um tanto zombeteira. uma voz que dizia: "Então. tentou dar de ombros. . trenós capazes de traçar sulcos de sete cores ao longo do arco-íris.. o encantamento da memória. Apertado no roupão grande. aos confins da vigília e do sono... Tossiu. ou antes. censurando. "Que barulhada. quer cocar um pouco os meus tornozelos. por exemplo. . venha depressa". — Está ensopado. ia apertando cada vez mais sua face à suave superfície lisa. e que precipitava nele uma corrente de lembranças torrenciais. está chorando.. soluços.. Foi o tempo de. Dona Mamãe. Mamãe. Mas já o assaltavam mil cuidados e ele venceu a fraqueza para satisfazer o mais urgente: "Vocês me trocaram o pijama. ensinar-lhe-ia que não se trata assim um viajante notável. a manga odiosa. mitigava uma sede acocorada ao canto seco dos seus lábios. Com menos a gente se molha. consigo mesmo. mas uma voz veio abrir-lhe as pálpebras cerradas. pensou ele.. salgava suas pálpebras transbordantes. não tenha receio. Desprezando o resto da frase que uma voz grande e quente acabava de cochichar.. "Se soubessem donde eu venho... dar-lhe um nome: "o ombro de Dona Mamãe" e perdeu os sentidos. Madame. Falou em formigas. é incrível! Ele se lembra que vestia um pijama azul na primeira noite em que.. meu jovem amigo. "Depressa. "se no mundo existisse outra face que não fosse a minha. . que me tirem estas formigas . Ele está ensopado.. Quero falar. . . lutando contra alguma coisa que crescia e que lhe atava um nó na garganta.. Recolheu o mutismo. limitada por uma cabeleira e bebia ali. aliás. mas que barulhada". Do fundo do silêncio.. a imobilidade vigilante que eram a resposta de D.. . pois se não é coberto de plumas. adormeceu.. e encobria misericordiosamente sua volta ao duro leito de aterrissagem . de uma epiderme que ele esquecera do outro lado do mundo. repercutindo ao infinito: "Meu Deus.. por entre os cílios.suas instruções à força pequenina e aos seus ângulos.. que para ele existem veículos imateriais. Recusou-se a ver mais. o cheiro de uma cabeleira..." Reunindo forças para falar.. esta falsa face. . penetrou o prodígio. enquanto eu dormia? Ontem quando eu deitei trazia um azul e este é rosa. E por que não? Falara em formigas. alguém murmurou. "Gostaria muito de cocar as pernas... mas um roçar de pano o fez voltar.. um ninho moldado bem para o seu tamanho. E. de verdade. "Seria uma face". — Madame. quero mandar embora esta. Soube-a inclinada para ele. "Então.... .. E era assim tão espantoso dizer Riki e dizer formigas? Um sonho transportou-o.. aspirou ar pelas narinas. Voltou a cabeça e encontrou no caminho um vale estreito.. Este ventre de passarinho. pensava o menino. sem vestir as mangas. . um orvalho amargo. Proíbo que me toquem. entre as quais ele se embalava sem peso nem desígnio.. .." . bem próxima. à espreita: — Por favor.. ou então. -— O calorífero vai bem. Sobre uma extensão sem nome. com um estranho respeito: — Ele sente formigas." pensava Jean.. uma voz falou. os brotos iam-se abrir em folhas digitadas. banhavam-se juntas a lua recurva e o reflexo indistinto de um menino de longos cabelos a quem ele dirigiu um chamado.. ora. realmente muito gentil. esperou que um olhar seu fulminasse o agressor.. Ora. que é que há? Quanta agitação.. Jean se comoveu mais do que podia suportar e decidiu que naquela noite mesma a febre quotidiana lhe daria aquilo que há uma semana esperava em vão. herméticos. Desciam pela testa e pelo pescoço de Jean cabelos de menina e Dona Mamãe arriscou atar-lhes uma fita rosa que o filho repudiou com um gesto de rapaz ofendido. entre dedos gorduchos e muito macios. Detrás do galho de castanheiro.. Veio a mão pousar-se na cabeça de Jean e ele. No oitavo dia dos tempos novos. a pelica loura e macia como pele humana. talhados num bloco de negro repouso. enxoto-os!" Extenuava-se de irritação e ofegava.. Entre olheiras enormes e sobrancelhas escuras. sentou-se na cama.. minha senhora! Estamos salvos!" — ruídos todos de um júbilo tamanho que Jean. Mas. é para eles se habituarem de novo comigo. de ornitorrincos. gritou Jean. encontrou apenas um bom sujeito meio pesadão. Vinda a noite. eu os maldigo. Meio embriagado de poderio e maravilhas. . graças à estação.. e seus jovem-amigo e seus olhos pequeninos.. seus acessíveis firmamentos. Ao fundo da janela. pesadas ainda e percorridas por formigas. fingiu-se arrasado de sono. sobrevoado por coleópteros do tamanho de ilhas.. Detrás dos vidros.. uma Pomologia pintada com frutas bochechudas e o Guérin manchado de leões de cara chata. O bom do médico dissipou-se numa festa de ha-ham. meio careca. embarcou.. "Ele e sua manga. Um ovo quente soergueu sua pequenina tampa. apreensiva. Levantou o braço e o outro menino. afastavam dele: seus companheiros sem rosto. Dona Mamãe. sentado à cabeceira. . O gentil barbeiro não tivera ainda licença para voltar. longos. — Não é para ler. compassadas por frutas em geléia e leite com baunilha. na impossibilidade de revoltar-se. lastreado de alimentos enfeitiçadores. aquilo que a fadiga profunda e os sonos.. saudava dois olhinhos de um azul alegre. cujos olhos se umedeceram ao cruzar os seus. . por favor.. o ramo de castanheiro intumescia seus brotos modelados como botões de rosa e. dois olhinhos piscadores.. um vinho de primavera. na água celeste da noite. O resto daquele tempo novo foi apenas uma aparência de instantes desordenados. suas cavalgadas. aos quais concedia o interesse e a avidez das crianças ressuscitadas. o meu garoto. munidas de pequenas mandíbulas beliscantes.."Enxoto-o daqui. de frases como: "Felizmente. Murmurou um consentimento confuso. rebocando as pernas. consigo mesmo. úmidos e ternos. de uma tosse forte e satisfeita. — Então. murmurou desejos. revelando seu botão dourado. . de sobressaltos precisos e estremecimentos vagos. Sem auxílio. As horas passavam inexplicavelmente. trouxe os tomos esfarrapados. corriam formigas. enxoto-o"... ha-ham. o grande tijolo mal encadernado. Então? É verdade que sente formiga nas pernas? É mesmo? Pois é gentil de sua parte... "Desta vez agarrei uma.. o doutor disse que. empalidecido e quase cinzento. pelas pernas de Jean. uma mistura de so-nos breves. no lugar de Dona Mamãe. Sem dizer palavra. ou um gole de leite? A mão de Jean abandonou-se ao calor de uma palma. Dona Mamãe!" Mas era somente a sua epiderme transparente que ele beliscava e a formiga fugia para o interior de uma ramagem de veias da cor da relva primaveril. a bebida ou o leite. uma lua jovem denunciava que. uma grande écharpe de sol tendo-se atravessado sobre seu leito. dia a dia. .. repetiu o gesto de ultimação.. docilmente. eu queria meus livros . teria perguntado o que acontecera naquela casa de tão feliz. assumindo o comando de sua jangada de in-fólios e atlas.. sem que ele mesmo pudesse distinguir se recusava ou se desejava o sorvete. Não quer meio copo de limonada? Não era capaz de tomar uma colher de sorvete de limão. A janela entreaberta deixava passar um sopro capitoso. Espreitou a partida de Dona Mamãe e Mandore e. Dona Mamãe. uma canção vaga e maliciosa que recentemente improvisara. — Meu querido. se não estivesse derretido de indolência. — Olha o meu garoto. seu olhar. — Dona Mamãe. sua segurança de anjo em pleno vôo.. os astros que riam. Não veio nada naquela noite nem nas seguintes. Jean disse adeus ao seu reflexo de cabelos de anjo. Desertara do corta-papel cromado a paisagem de neves rosadas. os prazeres que consentia ao menino entrevado.. em breve. tzroumm — zumbindo sob a vasta roupagem sonora... nunca mais. às que adormecem de bom grado. enganava Dona Mamãe e — senhor de sua alegria e de suas dores — mantinha-a prisioneira de cem ternas imposturas. Há um tempo em que se deve renunciar à morte em pleno vôo.. e a saudação foi-lhe devolvida do fundo de uma noite terrestre e despojada de prodígios — a única noite permitida às crianças livres do abraço da morte.convocou seus comensais das horas privilegiadas e cruéis. as asas que desafiavam pés.. estourava de alegria ao deixar a terra. voltaria a ressoar com todas as cordas — tzroumm. secretamente. curadas e desapontadas. toda amarela e marrom. nos declives de imaginárias geleiras? Há um tempo em que é preciso aplicar-se em viver. Depois esperou. os ares nutritivos. E a serra adamascada que se amontoava lá no armário grande. nada. as imagens tangíveis. entre os cornos agudos e os belos olhos redondos de um rebanho azulado pelo orvalho. e jamais o menino voltaria a planar numa aurora de pervincas. Convocou principalmente certo garotinho fogoso que. seria possível que recusasse a uma criança válida. os mares respiráveis. Com um aceno. Nunca mais Mandore. . os sons visíveis.. mas não veio nada. falhou. com a linha do horizonte pensa para a direita. Não foi por capricho que o vendi. não era de ontem a pintura do pano de fundo reversível. e a outra. Estando freqüentemente aberta a porta. muitas vezes. Com isso. Para renovar seu fio de seda. o prédio inteiro se rejubilou e eu também. penetrantes. à distância de algumas paróquias. De Mlle Devoidy. como todo mundo. completavam o depósito de acessórios expulsos do atelier. molduras e. O meu custara mil francos. Presumia. começando por um "pé" daqueles bem antigos. De lá para cá. eram postas a suster alguma estatueta grácil. apesar de não ser do bairro. Pois naqueles tempos antigos. um mar pequenino. pontilhados de ouro e desnecessitados de . A partir de um milheiro de francos. Possuía um rosto borrifado de sardas. soube que me enganava. Quando subia ao seu apartamento. Uma das faces representava uma balaustrada orlando um parque inglês. De vendedora nas "Aux mille parures". moda nenhuma apresentou exigência semelhante. vendo-lhe um vago ar de expectativa. Mas era bem vivo e tinha um alegre oriente. nos aposentos decorados com algum gosto artístico. Uma vez que todas as mulheres desejavam usar pérolas. infalíveis. conservava o sotaque de nossa terra.A MULHER DO FOTÓGRAFO Quando aquela a quem chamavam "a mulher do fotógrafo" resolveu pôr fim aos seus dias. O enfiá-lo servia--me de pretexto para visitar Mlle Devoidy. encontrava de pé à soleira de sua porta escancarada. que ignoravam a pressa ou o tremor. Eu entrava no apartamento fronteiro e Mlle Devoidy estendia-me uma de suas mãos secas. além disso. agradava--me. Reinava neste patamar terminal um cheiro incurável de pano pintado. Fazia-lhe companhia uma cadeira gótica que servia de acessório nas fotografias de primeira comunhão. comprava-se um colar "verdadeiro". No entanto.. o lulu empalhado e o par de redes caro às crianças vestidas à marinheira. que eram de um castanho de aventurina. o que quer dizer que não chamava a atenção. meio chato e que mais servia de moldura e contraste para os olhos. muito cuidado e uma inexperiência total em tóxicos. um fio de pérolas do tamanho de grãozinhos de arroz. ela passara a enfiadeira de "verdadeiros". o que eu vi melhor. tríplice. limitado ao longe por um porto indistinto. um pé de máquina fotográfica de bela nogueira com veios. eu dizia um bom dia amável à mulher do fotógrafo que. diante da porta sempre fechada de Mlle Devoidy. engomavam a ponta de um fio de seda. A mobília do fotógrafo transbordava para o patamar. Mais tarde. O nicho de vime. Era uma solteirona de mais de quarenta anos que. ainda por cima. onde tudo era falso. por causa de um humour reticente que. durante a primeira grande guerra. com um torcida firme dos dedos. Mme Armand — do atelier Armand. e enfiavam-no pelo fundo de uma agulha mais fina que qualquer agulha de costurar. por volta da mesma época. fotografia artística e ampliações — habitava no mesmo andar que uma enfiadora de colores de pérolas e era raro eu não encontrar a amável "mulher do fotógrafo" quando ia à casa de Mlle Devoidy. eu não esperava que a necessidade se fizesse sentir. passando-o sobre a meia-lua de cera virgem. como eu. zombava de muita coisa e muita gente. agradáveis. e graças a Deus. eu via a mulher do fotógrafo sempre plantada contra o fundo tempestuoso desse mar enviesado. que vinha respirar a frescura do último patamar ou espiar se subia algum freguês. foi o busto com seu colar de coral sobre a gola engomada e branca e seu sorriso de zombaria contida. um carretel ou uma agulha e que. testemunha da sua e da minha boa saúde. Que enxoval de casamento teria ousado passar sem "uma volta"? A mania começava com o presente de batizado. Seu volume e caráter de imutabilidade lembravam-me aquelas roscas que. aplicou na realização de seu intento uma grande boa-fé. mãos que jamais deixavam cair uma pérola. eu tinha um colar de pérolas. em camaieu cinza sobre cinza. conterrânea minha. apanhado no círculo de luz debaixo do abajur. houve pérolas para todas as mulheres e todas as bolsas. . do alto de uma honestidade meticulosa. — Oh! o meu dia não é como o do meu marido. gostava de sua mesa profissional. — Que é que faz de bom a estas horas? — Ainda está ocupado. Então. jamais surpreendi em Mlle Devoidy o menor sinal de desconfiança. coisinhas aqui. novinhos e leitosos. Divirta-se com o que anda por aí. gritava: — Entre! A chave gira para a esquerda! Teria eu pela minha conterrânea um princípio de amizade? Com toda a certeza. auxiliando-se com pinças delicadas. em gânglios empolados. indiferente e brilhante. Desde a tarde. me divertia com o que andava pela mesa. fortunas indefesas e tesouros aos montes? Ao cair da tarde vinha às vezes Mme Armand sentar-se à mesa verde. a porta dupla fazia de antecâmara minúscula. Enquanto zombava de mim. e denominados bayadères. fazia-me pensar num armário pequeno... com efeito. Às vezes. enquanto enfio seu colar. arrochado num corpete escocês vermelho e preto. que mantinha a mesa num estado de nudez estrelada de pérolas. é preciso fazer tudo sozinho. — M. falando em papadas com rugas. que tanto tempo durou. e no inverno também durante as manhãs escuras. Mlle Devoidy. Se era inflexível quando de pé. quem sabe. que precedia a cozinha. à espera do lagar. Num negócio pequeno como o nosso. forrada de feltro verde como um bilhar. com que se compõem torsades e échctveaux insípidos como miçanga branca. foi preciso ficar compondo até duas da manhã. permanecia acesa. Mme Armand não o era menos quando se sentava. debruada como mesa de brídge e sulcada de canaizinhos paralelos ao longo dos quais a enfiadeira arrumava e calibrava os colares. Mme Armand? — dizia Mlle Devoidy. pois chegavam a contar até essa poeira de pérolas chamada semente. O delírio do amor às pérolas. permitia à experimentada enfiadeira trabalhar em casa e à vontade.óculos ou lentes. Armand? — tornava Mlle Devoidy. ela transpirava a amenidade das "caixas" sérias. caixinha ou bibelô capaz de esconder uma pérola perdida. — Já acabou seu dia. Terá mudado esta estranha profissão? Ou continua a lançar. Em seu estreito alojamento. Salvo este cuidado. trabalhando no casamento de sábado passado. tendões de velha e. Mais além. Quando Mlle Devoidy me dizia. Quando um visitante batia ou tocava a campainha. Tenho o jantar para aquecer. Por discrição. escondendo um bocejo: "Fulano e Cicrano trouxeram-me ontem montões. não comovidos ainda por uma longa amizade com a pele das mulheres. eram grandes sautoirs americanos. paliçada de pequenas barras de brilhantes.. dessas que se pode orientar à vontade. Aqui e acolá. entre os batentes entreabertos de uma jaqueta. Sua luz forte varria todas as sombras da mesa de trabalho. tocar as mais preciosas matérias: a pérola e a asa da borboleta morta. Ah! a senhora não aprenderá nunca." minha imaginação fazia crescer feèricamente os "montões" e elevava o verbo "compor" à altura de um trabalho de espírito. As pérolas de Cécile Sorel misturavamse às trinta e sete célebres pérolas da Polaire. uma gargantilha de catorze voltas.. sem se levantar. dignas de. E eu. Esse cortejo do casamento de sábado está dando muito . Ao mesmo tempo. Até mesmo as tesouras pareciam fazer-se chatas. esta fieira está lhe dando muito trabalho? Vai ser preciso usar uma agulha. — Não está com muita pressa? Então arrumo-lhe um lugarzinho. e algumas outras grandes virtudes. Havia ali colares de joalheiros. Mas. aptidões manuais e o hábito um pouco desdenhoso de lidar com jóias. algum diamante montado em fecho despedaçava arco-íris. uma lâmpada de mesa. Colares e sautoirs jaziam desmembrados sobre o tapete verde como apostas desprezadas. impessoais e faustosos. não se acaba quando acaba a luz. Dela emanava uma certa sedução de mulher-tronco. Mlle Devoidy trabalhava no primeiro aposento e dormia no segundo.. também não é o fim do mundo. Ã entrada. coisinhas ali. . Seu busto. Era amiga também das particularidades e surpresas de um ofício que exigia dois anos de aprendizagem. o atelier a arranjar.. a chuva do outono escorrendo sobre as maçãs amontoadas à beira dos prados. incumbia o seu sorriso de recordar-me nossa origem comum: uma aldeia cercada de bosques. diante de mulheres pobres e incorruptíveis.. abstinha-se de manusear os colares e passava sobre eles o seu olhar de pássaro. na qual Mlle Devoidy não admitia nem o menor vaso de flores. — Que se rala? Isso é forte. Mme Armand permanecia fiel às golas altas e à franja na testa. as cabeleiras de um negro azulado acompanhadas de narizinhos corretos e peles bem brancas. cor de minério cintilante. — Há dez anos que conhece Mme Armand? — Não. da jaqueta e da gardênia de pano presa à botoeira. mais trigueiro. Mlle Devoidy? — Não saio quase nunca. Vê-se bem que é mulher que se rala. — Por isso deixo-me ficar nos meu domínios. quase sem modulação.... lá se vai para o chão uma moldura. Abundam em Paris. trato das coisas da casa. aí está o que eu não afirmaria... Sobre o que a opinião de Mlle Devoidy punha uma restrição: — Bela morena é o termo. na verdade. fundiam-se ao calor de uma voz agradável. parece que isso me faz bem aos nervos. — A senhora raramente sai. A mulher do fotógrafo voltou-se para mim como para se desculpar.. Atirou à porta fechada. pois já lhe haviam assegurado que se parecia à Rainha Alexandra da Inglaterra. Era freqüente ficar naquele "mas".. sem que lhes seja necessário o sangue meridional. Agora é o pote de cola. digo exô para ir mais depressa. e. Meteu-se-lhe na cabeça que leva vida sedentária. Com seus traços regulares. como eu perguntasse a Mlle Devoidy se o "mas" não encerraria alguma história melancólica : — Nem pense nisso — redargüiu minha conterrânea. Mlle Devoidy apertou os lábios. Mas não impeço ninguém de viver doutro jeito. Mme Armand possuía tantos cílios quanto uma espanhola. Ao falar. e um olhar de pássaro. não. só que num tipo mais travesso. a senhora sabe. imagine! Todas as noites. e procedentes da própria Paris. bumba. . sobretudo há dez anos. — Errar é humano. mais travesso.. tremia. Por um lado. enquanto matam varejas inchadas de sangue no ventre sensível das novilhas. passou por baixo da lâmpada e veio atingir-me na sombra. Desde que a mulher do fotógrafo encasquetou que padece sufocações quando não sai — isso basta para que. pois só há três anos ela e Gros Yeux vivem juntos. daqui a pouco a bacia de banhar chapas. Estendeu para mim a mão que.. alvejando uma invisível Mme Armand. .. — Nervos — disse ela. Mme Armand também pode se enganar. depois. O que me amola é não ter firmeza nas mãos... certamente. feita para contar longamente histórias de bairro. . depois o cortejo todo junto. vai dar um passeio para tomar ar. O ano foi ruim demais para que tomássemos um ajudante.. um dia destes. Primeiro o casal. — A criatura arrocha-se para ter cintura fina e depois é obrigada a tomar fôlego a cada instante.trabalho. . — Os hábitos saudáveis e eu. depois do qual vinha um suspiro. O bairro pagava-lhe tributo lacônico e suficiente murmurando "bela morena" à sua passagem. Não estará exagerando? Um olhar ofendido. A senhora imagina o déficit no fim do dia. a encontrem sufocada no patamar. isto é. Mas posso imaginar como era Mme Armand há dez anos.. um olhar negro de brilho invariável. depois as demoiselles d'honneur em grupo. antes ou depois do jantar. deixo cair tudo. fazendo convergir os pelinhos incolores do buço que lhe crescia ao canto dos lábios — justamente como fazem as focas antes de mergulhar. mas o lucro é apreciável. um olhar carregado de malícia que me fez pensar nas maledicências ferozes trocadas através das cercas pelas guardadoras de rebanhos da minha região. os engomados e diversos outros prestígios do corpete justo. em quatro poses. não é. — É um hábito saudável. Eu não o ajudo tanto quanto desejava. Eu sou mais antiga na casa. sei lá. Ora.. — E nem por isso se sente mal? — Eu. fechando à água o acesso às narinas.. mas. — Meu marido anda cansado por causa de um princípio de exoftalmia. . meteu tudo no bolso. . De selvagens. Depois o sujeitinho extinguiu as doces luzes no lenço azul. muito obrigado". calcedônias.. Oh! que barbaridade!.Sobre uma carreira de pérolas minúsculas. Monsieur Tigri. — Sim — disse o sujeitinho. de gente sem fé sem sensibilidade. talvez por ingenuidade.. ela é. Dava-se mesmo um chique de agiota a juros altos. sem.. A fisionomia desfavorecida de Tigri-Cohen aproximou-se da pequenina arena de luz. acham motivo para apreciar os dons humanos e para tremer de medo deles. Não esqueço a exaltação em que o vi. aventura e pouco escrúpulo. . . Sempre achei que Tigri-Cohen muito se constrangia para conseguir aquele ar de negaças. do tamanho de uma cereja bonita e que não parecia recebei* a luz fria. como a de certos macaquinhos inteligentes demais que. boas somente para o alfinete de chapéu.. que enfiava de cinco em cinco e depois deixava escorregar pelo fio de seda. — Ainda está contigo? — perguntou Tigri. — Estou reconhecendo o jeito. uma única pérola. entre a orelha e a face. seu tom rosado indecifrável. de sedosas cascas de árvore. por tu era tratado e assim vendia. — Deixa ver? — perguntei eu. do lado par da rua Lafayette.. com seu enigma de cores instáveis. — Ela. Procurou em vão um louvor e levantou os ombros. Antes de devolver a pérola gloriosa. crisólitos e zircões ambiciosos. Diante das vedettes afortunadas. que adquiria um azul nevoso e depois o trocava por um malva fugidio. Mas sempre notei que tinha a mão aberta. e por isso morreu pobre. Sabiam que tinha os bolsos cheios de jóias falsas e de pérolas defeituosas. tanto para o dinheiro pequeno quanto para a "erva graúda". circulando ainda de camisola de cetim azul. As artistazinhas trepavam-lhe aos ombros como araras ensinadas e tratavam de agradá-lo o mais possível. E ele as enchia de admiração exibindo pedras de má cor e nome bonito. às vezes. distraidamente e foi-se. — Ela é. não furada ainda. onde ele passava a maior parte de suas noites. Era uma pérola redonda. Conheci-o nos bastidores do music-hall. Tomei na palma da mão aquela virgem cálida e maravilhosa. Tigri a contemplava sem uma palavra. — Mas não por muito tempo. apresentava-se principalmente como comprador. ao mesmo tempo. alguns de seus pedregulhos brilhantes. Os traços todos desta reclusa parisiense falavam-me de salgueiros acetinados. por uma penugem argêntea e vigorosa.. o sujeitinho calava-se. . no ponto em que terminava a cabeleira castanha. Aqui estão. lá das Índias. peridotos. ora suplicante e ora triste. porém. apertada entre o polegar e o indicador meio achatados. para o furo quase invisível de pérolas pequenas. Um punho familiar bateu à porta.. — É Tigri-Cohen — disse Mlle Devoidy. levantando os braços compridos e simiescos. Tigri suspirou. do lenço. no seio de uma honestidade ignorada. Mlle Devoidy inclinou sua fronte orlada. um dia em que o encontrei em seu depósito. conversando com um sujeitinho comum e indecifrável que tirara de seu colete surrado um lenço de seda azul-celeste e. no fundo de um bolso de corretor? Quanto vale? Então é um quilo de ameixas? "Três francos. Era de uma feiúra alegre. mas emitir uma claridade igual e velada. uma aurora. — A quem pertence? Tigri estourou. de nozes maduras. e às vezes irônica. entre as dez e a meia-noite. Ela tem a cor do amor — repetiu Tigri. A chave está na porta. Tratava-as por tu.. — Quanto vale? Ele deixou tombar em mim um olhar de desprezo.. — A quem pertence? De quem é? Vou lá saber? De uns tipos negros. Ela dirigia a ponta da sua agulha. — Quanto? Uma pérola daquelas. de arenosos leitos de nascentes. madame. de um branco opaco. Seu amor pela pérola bonita sempre me pareceu mais sensual ainda que comercial. como seu buço. De um sindicato de safados. — começou Tigri-Cohen. ou então.. apanhou um pequeno peso de ferro sob o qual Mlle Devoidy conservava suas agulhas já enfiadas e precipitou-o sobre a pérola. arranja-me isto para amanhã. abriam o fecho de seus colares. aquela cara de palhaço apaixonado e feioso. festejada pela moda: o "junquilho sintético". que acha desta pérola? — Não sou entendida em pérolas — disse Mlle Devoidy. Por hábito. eu poderia ter contado seus cílios aglutinados e palpitantes. cortou pausadamente dois nós de seda e empurrou para a freguesa a pérola libertada. Depois enfiou na bolsa o colar amputado e reclamou "um papel de seda" no qual encerrou os mínimos fragmentos de pérola falsa e levantou-se. de riso demasiado. porém. a quem não agradavam déspotas. escapou-me um "oh!". era um homem.. em seu luxo. apontou a mesa. que era até um gosto para os olhos. . Numa noite destas. tão robusta e tão populacheira. . Mlle Devoidy. — Noite boa para negócios — disse polidamente Mlle Devoidy. Espantei-me de surpreender naquela cética um gesto de esconjuro e de entrever uma nuvem de superstição sobre aquela cabeça teimosa. meus amores. e em se sentir mal por detrás dos reposteiros. Depois. Devoidy. Vou hoje à noite à ante-estréia do Folies Bergère. A bela mulher tomou-a e estudou-a de perto. — Não. saquinhos onde dormiam diamantes em invólucros de papel. — Verdade? E a bela mulher. eu compro. Enfim. sentou-se no tamborete de palha e ordenou: — Não desfie o colar todo. Entre outras. Mulheres adornadas avançavam sob a lâmpada as mãos transbordantes de grãos brancos e preciosos. um trabalho inacabado e pérolas esparsas. com o gesto lânguido e orgulhoso dos que adquiriram o hábito das pérolas. soluçando: "cachorro! cachorro!" enquanto recolhia o rimei dos cílios numa ponta de lenço. com gesto e intenção irônicos. explorava os bolsos que encerravam sautoirs de pedras de cor. minha memória reteve a imagem prateada de certa mulher coberta de chinchilas. que se partiu em mil pedaços. minhas belas. na cara que lhes faz o público. batiam a porta e vinham abordar o pequeno círculo de luz dura. elas só pensam no papel. Estendeu a pérola à enfiadeira: — E a senhora. lembro-me que ele estava molhado de chuva e pouco ligava.. O resto do colar também. impassível. — É a primeira vez que a senhora assiste a um espetáculo destes. A freguesa contemplava sua obra sem dizer palavra. Mau grado meu. em lágrimas veementes. podias talvez enfiá-lo numa corda.. principalmente outras passantes. ao lado da do centro. Mlle Devoidy. Separe só esta aí. belas. E eu os olhava a todos com a avidez que sempre senti em relação aos seres que não corro o perigo de tornar a ver. — Bem vê que não entendes disso. Com um gesto maquinai. — A quarta a partir do centro. esta bonita.Sua cara inteira remexia.. Antes de sair. de exageros de dor. com um olho fechado e outro aberto. sim. — E que foi que a mulher disse? — Não era mulher.. a expressão de seu rosto alterou-se. Tocou com dois dedos seu colarzinho de coral. sob a lâmpada. apenas aproximou do seu busto. Adeus. Era verdadeira. Mlle Devoidy? Mlle Devoidy arrumava de novo sua mesa com mãos cuidadosas e sem tremores. Outros passantes. — Com a diferença que da primeira vez a pérola resistiu. afinal. É mesmo. Adeus. Não? Como queiras. Atirou sobre o pano verde alguns cordões de pérolas: — Toma. sempre rica de expressão excessiva. em casa da Devoidy. Ele exclamou: "Ah! que vagabunda!" — Por quê? — Porque o colar era da mulher dele e ela o fizera crer que só custara quinze francos. no vestuário. faze o que entenderes. anéis de pedra bruta. E esse.. . Aquela noite. é a segunda — disse ela. em questões de pérolas há histórias de todas as cores. Achas muito feio? Se tirasses a pluma que entope a parte do meio. Entrou agitada. a senhora não imagina. Ali. Explodiu.. fez questão de afirmar com energia que "aquele negócio não acabava assim" e carregou para fora os incômodos eflúvios de uma essência novíssima. Rudemente. inclinou-se sobre o meu colar. sob suas mãos fiéis. dizendo : — Estou com uma fome daquelas. trago coisa frágil. — Posso saber? Três batidas familiares soaram na porta da entrada. que metia medo a todos. O prato do dia é carne assada à borgonhesa e trouxe-lhe também um belo pé de alface. custou para me estender os dedos cronicamente trêmulos. Em troca desta frase tão molenga recebi uma olhadela breve e cortante. num prato decorado com uma granada flamejante e a inscrição: "À alvorada dos bombeiros sapadores. — Está chegando seu folhado e meu segredo está descoberto. — Pobre do velho Gros Yeux! Ele não é capaz disso. e um dia ele herdou uma casinha com jardim. Mlle Devoidy fez-me uma careta cômica... Em Coulanges havia um sujeito. Onde foi parar o seu anarquismo." — Não há dúvida — disse ela... Enquanto isto. E que não há leite no fogo. tirou-me a fome a cara descomposta da mulher de M.. sua expressão agradàvelmente sediciosa e seu jeito de aprovar sem baixeza e de criticar sem grosseria. com jeitinho garoto. vai aparecer aqui um mille-feuilles. um pombal redondo e um chiqueiro. Quanto ao mil-folhas. não me toquem. pois a carne estava mal passada e eu não posso com carne sangrenta. sem que eu me mexa desta cadeira. Armand. Atravessou correndo a sala da frente e puxou a porta atrás de si. Quer apostar? — Aposto uma caixinha de chocolate de leite. — Nem eu — respondeu minha conterrânea. ela deu de ombros num gesto enviesado. que deixei o leite no fogo! — disse ela. Esta. ela surpreendeu-me a bocejar e eu me desculpei. — Isso amanhã já passou — disse eu distraidamente. pensativamente — de que a mulher do fotógrafo andou chorando. à senhora... esperem. — Está feito — disse prontamente Mlle Devoidy. Mas se tiver paciência por cinco minutos. bem sabe a senhora que se diz que a carne crua é só para ingleses e gatos. Mlle Devoidy foi à cozinha buscar duas ameixas cristalizadas.. anarquista como ele só. — E então? Está achando que não me apaixono suficientemente pelas encrencas do casal Armand? — O casal Armand não lhe pede nada. fechava em minha nuca meu colarzinho burguês. Nem ela. A gente não conhece nem a si mesma.— Pois então não gostaria de usar pérolas? Hesitando entre a prudência comercial e a vontade de não mentir. Mas quando atravessou a zona iluminada. nem a cebola. Entre. Mme Armand. Certa tarde em que me demorava em sua casa. — Esperem. é pena ! Touxe ameixas cristalizadas. atrapalhada com a cesta. estendendo aberta sua mão enxuta. e quis aliviar da carga sua vizinha prestativa. . Ora vejam! como desapareceu depressa a sua ameixa! Quer mais? A mim. — Cena doméstica? Ela sacudiu a cabeça. entre. Mlle Devoidy e eu lhe entrevimos o rosto: — Vou-me embora. Seria a primeira vez. nem a ensopado? A senhora tem alguma fórmula secreta? Ela fez que sim com um bater de pálpebras. nem eu tampouco.. . como é que sua casa não cheira nunca a peixe frito. Falou com precipitação. Reencontrava logo o seu riso contido. Mme Armand.. — Passou. — Mlle Devoidy. cobertas de açúcar cor-de-rosa.. hein? E se não passar. vou-me embora. que eu apertei. Queria que o visse. Nunca tomo chá e almocei mal. exclamou: "Levo tudo para a cozinha" e apressou-se em direção ao aposento escuro. pouco se lhe dá.. porém.... — Sabe-se lá. que me veriam pedir a alguém. — Na nossa terra. ora essa. a estas horas. que antigamente me empolgava à saída dos espetáculos de teatro começados sob o sol a pino e acabados com a noite fechada. com a filha... Mlle Devoidy sacudiu a cabeça e pareceu desistir de fazer-se compreender. A noite morna fumegava em volta dos bicos de gás e a hora insólita oferecia-me a pequenina angústia. Insòlitamente fechada.. . . Ora. recomeçam.. a mocinha do bistro — se não é uma é outra — avançarem para ver onde ela vai. Quando sou eu quem sai. no seu lugar de trabalho e. quando as coisas não vão bem.. as portas fechavam-se em todo o prédio. Gente que mora assim tão perto — não é que façam barulho. bem aí ao lado. não desprezível. Quando as pessoas são gentis demais. Baixou a voz. negocinhos nos quartos. Talvez mesmo abuse do escocês. . vigorosamente. perfeitamente ridículas. em família. — Mme Armand — aventurei eu — tem um físico um tanto. Duas peças à direita e duas à esquerda. é preciso notar que Mme Armand não é mulher de mexericos e confidencias. Não nos façamos de mais idiotas do que somos! Bem sabe que se eu puder ser útil a essa boa senhora. estivesse contando as palavras. como se lhes tivessem prometido alguma coisa e depois recusado. deixe passar a chuva. a porteira ergueu a cortina para me ver passar.. cruzadas sob o bico de gás. Isto aqui é um prediozinho de coisa nenhuma. . Tive o bom senso de. hábil na arte de recobrir colchas esgarçadas e arranjar pedacinhos de seda multicor em forma de tapetes e cobertas de carrinho de criança. ao cabeleireiro. não é que eu os ouça — é que os sinto. Num lugar como este. a vendedora de flores de debaixo da cúpula. um tanto pessoal.. vai buscar pão quente. Mlle Devoidy corou e cobriu o alto do rosto com a mão. lá fora. Merecerão. derreto que nem manteiga. cabalisticamente. — Pode ficar ainda um minuto? Só um minutinho? Está chovendo.. onde cantava uma das partes dos "Mosqueteiros no Convento". de alto a baixo. porque às seis da tarde ela deixava seus hexágonos de seda e ia para a Gaîté Lyríque. em todos os andares. pôr fim ao incidente: — Vamos. — Agora. ou Mme Gâteroy lá de baixo. Teme que lhe aconteça alguma coisa? Sob sua pele cor de avelã. .. e dos pratos de sopa. empurrou para mim o tamborete de palha. pode-se ver a porteira. os vizinhos não demoram a sentir. vamos. os pelinhos do buço rebrilharam e ela espetou na mesa a ponta duma agulha como se. reviver nestas poucas páginas em que os obrigo. Gostaria eu dessa bordadeira por causa de seu trabalho que desprezava modas e máquinas de costura. ressurgir? Quiseram que os mantivesse secretos. graças a esta nuvem de raiva que surgira entre duas mulheres de sangue vivo. Fui-me embora. Não seja muito gentil comigo. esfregou os olhos com os nós dos dedos. Éramos. Embaixo. Mas. ... a porta do atelier fotográfico conferia um importante papel decorativo ao "pé" de aparelho e ao par de redes de caçar borboleta..Para tentar conter sua irritação. E na próxima vez. Estava ficando tarde. apoiando a mão sobre o ombro de Mlle Devoidy. Sobretudo Mme Armand que passa tanto tempo no patamar. . descontentes. Sentou-se à minha frente. cerrou os olhos. ou por seu segundo ofício? Sim. — Antes do mais. . ninguém fica espiando como se se tratasse de algum acontecimento. Mas mora tão perto. para onde iria ela? Vai ao leiteiro. os meus passantes de épocas longínquas. não sei mais o que faço. dos da moda antiga. a senhora mostra-se gentil demais.. Por exemplo: no meu domicílio conjugai ignoravam a existência de Mlle Devoidy e minha familiaridade com Tigri-Cohen. Mlle Devoidy baixava a voz. Eu nunca ficara até tão tarde. pelo menos eu. num gesto romanesco e simples. Descobrindo as belas e úmidas pupilas pontilhadas de ouro. para mim ou para ela. O mesmo quanto à mulher do fotógrafo e quanto a uma bordadeira. — Quando a mulher do fotógrafo sai às compras. ajeitavam-se cadeiras em volta das mesas. penso eu. fixaram-se na minha memória os detalhes da tola e imprevista cena. como todo mundo! E as curiosas ficam desajeitadas. pelo menos durante o tempo em que deles me ocupei. Sem ter jamais ouvido soluçar aquele que Mlle Devoidy apelidara o "velho Gros-Yeux". esse TigriCohen. e eu. — Minhas senhoras e senhores. Acidente? Por que não teria acontecido com as tricoteuses do quarto andar ou com o casal de encadernadores? Aquela tarde de novembro. que sob a iluminação crua. não tive dúvidas de que era ele quem soluçava. como de uma melodia chata. Teria eu verdadeiro afeto pela pequena bordadeira? Amaria. e ganindo: — Está branca como um lençol! Não tem uma hora de vida! Como por magia. sem que eu o provocasse. prestativo: "Não é nada. O ruído quase não durou. de náusea. entre a rampa e um entregador de embrulhos empurrado com demasiada rapidez. Ora qual. Tal tratamento leva-nos — a nós. se Já acabou. com sua comprida cistera de vime. conservava a força do cheiro da couve. Puseram-se a lutar dentro de mim uma vontade de fugir. desceu pela escada abaixo. com seu avental de pano verde e mais umas mulheres indistintas. com amor de amigo. porém. sabendo muito bem que não me deteria antes do último patamar. fechando uma porta. a afastarnos da verdade simples. Mlle Devoidy estava com muito má cara. não houve acidente algum! Uma senhora luxou o tornozelo. ou por Mlle Devoidy? Quanto a esta. a firmeza de suas mãos suaves como madeira sedosa. — Ora. Importava-me. divertira-se em constelar de diamantezinhos. disse-me. uma repugnância vaga e uma curiosidade basbaque. jamais. dando com sua caixa amarela em todos os barrotes da escada. Logo no vestíbulo. entre as duas portas fechadas. foi a uma resignação estranha que me entreguei. Vindo o momento. afinal. Pareceu-me. afinal.No interior de minha bolsa. do meio-silêncio e das meias-evasões. nem dispersar as constelações esbranquiçadas. para nos comprazermos no seio da meia-mentira. guardei longo tempo uma bolsinha de cinqüenta centavos. tão mal conhecido? Não sei. O instinto da dissimulação não roubou para si uma parte muito grande em minhas diferentes vidas. não falei nem do lindo fetiche nem de Tigri. Por quem? Pela mulher do fotógrafo. pude sentar-me na . atravancado de desconhecidos. mulheres. sem modulações. extinguiu-o alguém. que ela perseguia de agulha em riste pelo pano verde da mesa. porém. uma coursière de casa de modas. já é tarde. antes de ma devolver. pus-me de novo a caminho da casa de fachada estreita. perfuradas e preciosas. Para recuperar o tempo perdido. calaram--se. como se nada. Em minha casa. eu passava por uma espécie de laminação sorrateira. — disse o entregador de embrulhos. ávidos. seus gritos agruparam uma dúzia de transeuntes a lhe fazerem perguntas de toda espécie. uma concepção tão falsa e tão banal do "traficante". Enquanto subia a escada. O primeiro. Enquanto.. O ruído inopinado dos soluços é desmoralizante. ia tratando de sossegar. mentalmente.. perdida em casa de Tigri-Cohen e que ele. com o fôlego já curto.. do gás e da humanidade comovida que me indicava o caminho. pois meu marido daquele tempo tinha do joalheiro uma idéia tão retangular e inflexível. isso sim. escapar ao julgamento de certas pessoas que eu sabia sujeitas ao erro ou inclinadas a certezas que proclamavam em tom de afetada indulgência. lá em cima. que eu nem poderia defender a causa de um nem reformar o erro do outro. já lhe puseram uma tala e é só! Entre os ascensoristas correram alguns risos e um murmúrio de decepção. Ao mesmo tempo. conserva seu prestígio grosseiro. ouvimos soluços — soluços convulsivos e viris — e os comentários da escada. fui decidindo sua sorte. Abriu--se uma delas e ouvi a voz mordaz de Mlle Devoidy. Atingi afinal o último patamar. empurrou um empregado de adega. onde vão desse jeito? Isto não é sensato. entre o couro e o forro. em cuja fronte a vidraça azul do atelier Armand punha sua viseira inclinada. Para tirar fotografia.. seguindo a forma das minhas iniciais. Apesar de fácil de imitar. barraram-me o caminho um entregador de tinturaria com seu avental preto e uma entregadora de pão. pudesse pôr em perigo sua sabedoria zombeteira. Proferiu ainda algumas palavras destinadas a desencorajar o invasor e entrou em seu apartamento. é uma tempestade num copo d'água". carregada de umidade. como a muitas mulheres. desaparecendo aos saltos. Olhei para ele e. na quarta-feira. partos difíceis... sou tua Georgina fiel". — Se é só isso — disse eu — não mexa em nada que vou buscar um. a senhora sabe? Tudo mesmo. ela confessava tudo. qual o motivo? — Ora. Eu esperava que retomasse o fio da história. Mlle Devoidy? — Então. A fechadura e os gonzos — garanto-lhe eu — saltaram de um só golpe. Ela deixaria uma carta para o velho Gros-Yeux. mas não podia fazer sinais diante de tanta gente. . o que tem a senhora? O que tem a senhora? E eu respondia: — E o senhor. mas pode ter descido sem eu ver. eu já a tinha visto. . disse ao . obrigada. Essas portas não valem nada. não tinha troco. disse eu." Passou-se isto lá pelas duas e um quarto. o motivo. .. bateram à minha porta. Aquilo é que me espantou. — Então. . levantei-me. menos a lavadeira que. Como não houvesse outro refúgio senão o lugar a que se habituara com mais fidelidade. distraída com a pazinha de metal com que catava pela toalha as pérolas chamadas sementes. aquelas meias e sapatos... não. com um pequeno bordado em azeviche. Ele me dizia: Mas. Se me permite. — É principalmente para mim — disse ela. Mme Armand. sobrou café. — É. de mãos afastadas. que dizia: "Não viu se minha mulher desceu?— Não.. quase que o derrubando e fui bater na porta do quarto.. Era o velho Gros-Yeux. velórios. Voltei aqui e apanhei a machadinha de cortar cavacos para acender fogo. Perdoe-me por deixar--te.disse eu. Ao lado disto havia outro papelucho que dizia: "Está tudo pago. A senhora quer sempre que lhe apresentem trinta razões. uma toxicomania ao alcance de todos.. — Sim — disse ele — preciso de um trapo e os trapos estão no quarto de dormir. ora essa! Uma coisa para se matar. — Vou mandar pôr uma corrente de segurança na minha — disse ela. não sei o que me passou pela cabeça. E de meias de seda e sapatos elegantes. Parou de falar. Confessava: "Meu Geo querido. — Uma carta? Mas o que tinha para confessar? Gradualmente. parecia não ter mais o que dizer. — Agora vai melhor! Sorriu-me. — Pois então — tornou Mlle Devoidy — às duas. deixouse tombar na sua cadeira de trabalho. com o aparelha-mento do culto: o bule de esmalte azulado. ergueu-se: — Espere. Não é só isso — disse ele — é que o quarto de dormir está fechado a chave e nunca é fechado a chave. — Agora já sei como é frágil uma porta. . enfim. — Entre. palavras a meia voz.. cheias de hipossulfito. Veja como estão as minhas mãos. todo atrapalhado.. duas e um quarto. Em sua própria cama. reapareceu Mlle Devoidy. então? Não olhou para a própria cara? Lá estava ele. o quê? — Ela. duas xícaras ornamentadas com uma imagem grega vermelha e dourada. Vi surgir a popular panacéia. com um ar feliz: — Ela vomitou tudo. disse ele. — Mas. . não me desagradaria sentar-me um momento. eu já devia estar na rua.. enquanto enchia a bolsa d'água quente. Fielmente..Que desgraça . — Se é para mim. e um açucareiro de vidro retorcido. não zangues comigo. mas na hora de sair quebrei um vidro de hipossulfito.. o odor da chicórea os escoltava. Bebeu alguns goles de café morno. Na vida e na morte. uma porcaria repugnante. de cetim preto. Mlle Devoidy recobrava o sangue frio e o seu tom desembaraçado e irônico: — Não se pode esconder nada à senhora! Confessar. lembrando incômodos rituais. duas e vinte.cadeira gótica reservada aos que faziam a primeira comunhão. .. Estava no quarto? — Naturalmente que estava! Sobre a cama. mas Mlle Devoidy estava brincando. Assim que fiquei sozinha. Espantou a tal ponto que. — Tudo o quê? — O que tinha tomado. no armário embutido detrás da cama. Mme Armand protegia-se do frio com uma coberta pequena. achamos sempre a força de correr à nossa toca. uma certa ausência de feiúra me faz maior mal que a própria feiúra. para morrer. será mais alegre do que se o tivesse de levar ao cemitério de Montparnasse. a mesma cujos lençóis havia desfeito. sem me gabar.. no entanto. perdi o gosto de escolher a morte mais agradável. Estava nisto quando um bilhete de Mme Armand com boa ortografia e uma letra linda. nem mesmo eu. não fosse Mlle Devoidy. são bonitos os funerais no campo. Mme Armand. Era novembro e o calor pálido da rua não chegava até ali. ao mesmo tempo.. estava com boa cara. raramente morremos fora de nossas casas. Mme Armand engoliu veneno suficiente para matar um regimento e parece que foi isto o que a salvou.. E. feita de crochê. Se eu morresse no bonde? E se morresse durante um jantar na cidade? Medonhas eventualidades. Em três dias. calçados de sapatos de cetim preto e bordados — como mos havia descrito Mlle Devoidy — de contas de azeviche.. que a reteve com seu pulso firme de anjo da guarda. que é acavalado. Não queria que lhe vissem os pés descalços. mulheres. só temos escolha entre duas espécies de universos desconhecidos. . Guiou-me através do atelier. iam de braço dado. Aquele. queridinha." Foi sorte eu agir depressa •— acrescentou cheia de si. bem se pode dizer que os homens ficam aparvalhados em circunstâncias como estas... envergando sua jaqueta debruada e sua gravata de plastrão e ela. A senhora voltará? Traga-lhe um buquêzinho de violetas.. ela repousava sobre a cama feita. O conjunto do aposento em que Mme Armand saboreava sua convalescença não continha monstruosidade alguma mas me forçou a baixar os olhos e eu não acharia prazer algum em o descrever. mostrando dois pés finos. toda de faille preta. pensei muito na mulher do fotógrafo e em seu acidente abortado..marido dela: "Por que diabos ela se pôs na cama de meias e sapatos?" Ele explicou. Meu Exô paga-me uma arrumadeira para a manhã. Nós. — Ah!. um pouco de leite com água mineral. que sonho viver ali! — a outra é-nos irrespirável. quando uma dor nos derruba. por exceção. Dormia de meias. dizendo uma palavra cortês a propósito de minhas violetas — "são tão distintas as violetas de Parma" — e deixou-me à entrada do quarto desconhecido. mas tão pouco prováveis que logo as abandonei. Vou lá dar uma olhadela. que saía do atelier do fotógrafo.. O velho Gros-Yeux está de plantão ao lado dela. Sua solicitude. de um ponto chamado tunisino. um pouco de calma. ele. É tão cuidadosa com sua pessoa.. Eu já estava na calçada quando. . Meio estendida. só lhe permite. por favor — ordenou gravemente o anjo da guarda. Mlle Devoidy nos faz um bolo quatre-quarts e a senhora me traz umas violetas soberbas! Vida de preguiçosa! Querem provar uma geléia de groselha afromboesada. Cá em nosso estreito planeta. Só que as rosas logo murcham com o calor. cruzei com um casal de idade madura. intimamente . especialmente em junho. isso sim. pensei na morte e.. então! Só o que sabia era chorar e repetir: "Querida. que Mlle Devoidy esquecera de o contar. Nos dias que se seguiram.. A vivacidade de seus movimentos deslocou as cobertas. -— Mme Armand. na minha morte. Mme Armand ainda sentia certa fadiga generalizada e achou que a senhora desculparia de a receber assim. vermelha e preta. — Estou sendo mimada. Afinal. tê-la-ia posto em pé. Por extensão. — As senhoras estão no quarto. até nova ordem. as faces menos áridas e os olhos mais brilhantes que nunca. porém. Em questão de mobiliário. como os cavalos aos quais se mete um tocha acesa sob o ventre. Não gosto de ponto tunisino." Mlle Devoidy espreguiçou-se. soluçando: "É por causa dos calos e do terceiro dedo do pé. No último patamar... ela está salva! Mas o doutor Camescasse.. — Mas eu não estou doente — protestou Mme Armand. O velho Gros-Yeux é que os vinha acompanhando e eu procurei os sinais de suas fogosas lágrimas nas suas pálpebras grossas. por causa das flores. tarde demais. sem reservas. Ele me fez uma saudação entendida e jovial. ao acolher-me. Uma delas nos tenta — ah!. bocejou e pôs-se a rir. eriçada que nem um cãozinho tenerife — lembrou-me a "boa promessa" e convidou-me para "o chá". veio-me ao espírito uma pergunta: por que teria Mme Armand querido morrer? Percebi. com o quatre-quarts? £ o último vidro do ano passado e. que mora no onze. Mme Armand. Mme Armand estendeu a mão direita para um juramento. Nunca desprezei uma briga de comadres. À cabeceira de Mme Armand. dessedentado sabe-se lá em que sombria fonte. . para permitir um saudável bate-boca. pois não? — Recomeçar? Oh!. fazia-me lembrar sempre não sei que pássaro. seu primeiro salvamento outorgara-lhe autoridade militar. é verdade. bem sei que não me suicidei por neurastenia! — Tt. Quanto ao anjo — como outros salvadores terrestres ou celestes — tendia a exagerar seu papel. foi neurastenia mesmo e não há de que corar! Saltou a coberta de crochê e pouco faltou para que o mesmo acontecesse a uma xícara com o seu pires. a senhora engoliu um tóxico durante uma crise de neurastenia?" Isso me aborreceu. um suicídio ainda da véspera. a lembrança de um veneno nauseabundo e o rigor de uma dedicação que tratava a vítima a golpes de férula — e tudo isto estava demasiado presente. Mais um pouco e eu teria respondido: "Uma vez que o Sr. . — Não. Em seus olhos palhetados de ouro acendera-se uma centelha que não se podia chamar de angelical. . pois não? — Levo em conta sua opinião. que nada ensina aos vivos. maciço. Não me sentia à vontade. Ao que parecia. descansado. . enquanto a mulher convalescente tornava-se rubra sob o pó de arroz alvo demais. Por causa do brilho sem variedade de seus olhos pretos.. — Juro! A única coisa que faço questão de contestar é o que disse o doutor Camescasse: "Afinal. entre mortos e feridos. aqui presente. era um pássaro tranqüilo. pode testemunhar que até lhe falei nisso.. Por cima de minha cabeça voavam as opiniões — e tão vigorosamente lançadas que eu baixei a cabeça. a incompreensível morte. — Quem acreditaria que a encantadora senhora aqui diante de nós é a mesma que se mostrou tão pouco razoável. não foi assim! Acho que a mim também será permitido opinar sobre isso. . Este ano estraguei tudo. está'tão certo. mas não a posso considerar do mesmo modo que a de um homem de ciência como o doutor Camescasse. nunca! Aplaudi a exclamação. duvidosa e coquette: — Pouco razoável. eu acabei estragando. — Ora. — Neste negócio. Mas havia a morte. . O que não tem remédio.." Em meu foro íntimo. Mlle Devoidy cortou-lhe a palavra. remediado está.. gracejando. porém. muita coisa eu poderia dizer a respeito disso. — Há quanto tempo eu vi que a Sra. uma depois da outra.. todos se salvaram — concluiu Mlle Devoidy. pouco razoável. Tentei acertar o passo com a gente da casa. eu esperava que o diálogo entre as duas mulheres ganhasse esta virulência que marca os desentendimentos femininos.. andara em mau caminho? Mme Colette. uma xícara de chá bem preto e um copo de vinho com gosto de alcaçuz.. transformado. Era a primeira vez que um suicida discutia diante de mim seu caso com desenvoltura reivindica-tória. também as ameixas na aguardente. eu não consegui acertar a receita.Este ano. como quem faz uma fina alusão. outro dia? A encantadora senhora acabou seu triângulo de bolo. agora. vamos! Não vai recomeçar. tt — censurou Mlle Devoidy. por sua espontaneidade. Saudei com uma piscadela de cumplicidade aquela sentença vinda diretamente da nossa terra natal e saudei também. não devia me fazer perguntas. Não é assim às pressas que a gente se acostuma a evocar. antes de fingir certa confusão e responder. em purgativo — mas preparado para que a suicida não voltasse a si. Que viera eu fazer naquele sítio timidamente regido pelo velho Gros-Yeux? E de sua mulher incompletamente seduzida pela morte — que me restaria além de um mistério desenxabido? Quanto a Mlle Devoidy — tipo acabado. Quanto à neurastenia. esmagador. sob a luz franca de uma tarde. durante os quais encontro ocasião de enriquecer meu vocabulário. Sorriu. Um gosto muito vivo pelos espetáculos de rua me retém ao pé dos destampatórios ao ar livre. . melhor. . — Não está abusando de suas forças. ingratidão. Mas a partir das palavras: "Sempre tive uma vida pequenina"...polida e ajuizada. como me fazem fugir. fui ficando. . acabavam de erguer barreiras entre si. respirava a alegria falsa dos quartos de hotel bem cuidados. nem os insultos que cegam como pimenta. — Madame. acertando destramente a barra do vestido. como fazem hoje.. aqueles pés pudibundos mesmo na morte. uma a gratidão. Uma mulher amável.. nem os punhos fincados na curva da cintura.. aninhada no centro de um saiote de seda salmão. Ã tristeza. extraordinário à força de banalidade. tais como "neurótica.. sabe. e saiu. ouvi perigosos vocábulos. entre as belas sobrancelhas. sim. Um pouco tarde.. aplicando-me em torná-las semelhantes ao real. Vendo que eu ia tocar de novo no desagradável incidente. cometeram. e eu não escondi meu contentamento. Tome mais um pouco de vinho. Apesar disso.. Não me faltou memória para consignar as palavras ociosas das duas vizinhas de andar e suas ridículas blandícias. dançam no fundo do estômago e cantam um refrão ritmado pelos artelhos — não só me atemorizam. seus olhos cujo brilho negro e extremo não revelava quase nada. O aposento. como fato consumado.... é um bom vinho. se necessário. por mais franzido e pretensioso que fosse. não sem certa graça. . É fácil relatar o que não tem nenhuma importância. conservados num longo sono de infusórios. Antes de sentar-se.. pois o abajur.-. sob a esponja de cabelos crespos. Saltou da cama. realmente. Deixoume ver. bem abertos e fixos nos meus. Não chegaram a despertar nem mesmo esses agravos minúsculos e vivazes. em tom cerimonioso e amargo. Tal exórdio ameaçava longo relato. filtrava pelo quarto uma claridade rósea. que afetam a musculatura dos maxilares. — Ora. feroz. não admito que acreditem que me matei por neurastenia. minha senhora.. que é isto? Mas que coisa! Que criancice! Quem havia de dizer. Mme Armand? Ela ia e vinha com os pés calçados de cetim e azeviche." Mãos desastrosas." Acredito que foi por causa deste último verbo lindamente sibilante que Mlle Devoidy se levantou.pouco marcada pelos seus trinta e seis anos.. à dor física. com as mãos incertas. Mete-se em tudo.. imiscuir-se. outra a dedicação. um encantamento de concha marinha. um grande pedaço de coxa. é preciso que eu diga que sempre tive uma vida pequenina. deixe!" O dia acabava rapidamente e ela estendeu o braço. Aquelas duas mulheres que. lançou-nos um breve até-logo. nada fazia crer. Acendeu outra lâmpada cor-de-rosa.. sinto-me ... decididamente. a meu ver. Sua testa pequena. . "Os nervos. madame. a desordem lamentável chamada neurastenia. com indiferença fria e bárbara. estas rusguinhas. ao medo.. mesmo ao medir uma dose de veneno. — Mas — disse eu — nunca imaginei isso.. Sua aproximação e sua presença caprichosa. As mulheres não escorregavam de um diva ou de um carro desnudando. manifestei a agitação conveniente. não parecia ter jamais alojado.íntegro e seco da solteirona — senti que acabara para mim o costume de a enfeitar com o nome de enigma e que a atração do vácuo teria que acabar um dia. em suma. — Não. por encarnar.. me fez calar. Serviu-me o pseudo-porto. este faz de mim um ser miserável e. Minha anfitriã pegou a cadeira abandonada por Mlle Devoidy e plantou-a perto de mim. mostrou-se alerta e como que aliviada. tornou a arranjar as violetas cujas hastes eu via tremer entre seus dedos. Mme Armand sorriu: — Acho que nós duas estamos contentes — disse ela. sim. quanto menos a gente se ocupa delas.. Ou isto se arranja por si ou não se arranja — e é ainda melhor. desfez-se o caráter acabrunhante do quarto. Imediatamente. ao frio e ao calor em excesso empenho-me ainda em contrapor um rosto honrado.. mais um dedo. Uma mulher que desejara morrer. puxou o toldo sobre a parte envidraçada do teto e. Mas abdico diante do tédio. Em todo o caso. Estava surpresa de ver Mme Armand recordar. Mme Armand não fez mais que um pequeno movimento de ombros "ora. acendendo a lâmpada de cabeceira. sua vã tentativa. . — Deixe. Não utilizaram o riso ultrajante. o erro de não avançar até as atitudes clássicas. Como eu não desse. Sei o que digo. Os homens têm muito mais cuidado com a própria tranqüilidade.. E quando acabarem as geléias." etc. umedecerei mais uma vez as cortinas da vidraça e passarei a ferro amanhã. eu estava melhor.. "E depois? Nada mais. As mulheres é que espalham esse boato. que catástrofe!. Tinha brotado do chão. por exemplo.. mas não devo abusar..... devo dizer que os dispensei facilmente. Preciso dar conta da louça antes que apareçam os fregueses. sumiu-se.. Onze horas! E meu marido que tem um grupo de batizado para posar. Por um lado. e não ao teu. "Quanto a mim. . tão perfeito.. que uma semana passa depressa. cabe--me retirá-las. minha senhora. a senhora já faz uma idéia.. enquanto aprontava a costeleta de vitela. "Uma vez.. qual será o acontecimento sensacional que vai aparecer?" Enfim." continuei: "Acabou-se? Acabou-se mesmo? É só isto? Então isto é um dia inteiro — o dia de hoje. Para ela. Sabe o que é que não pude suportar? É que um sujeito como aquele — a quem jamais respondi mais de três palavras — se permitia tratarme por "tu". não foi o que a senhora está pensando. é claro.. à uma e meia. demasiado freqüentes que como bolhas subiam durante o relato de Mme Armand. Não. De noite. Que quer a senhora que aconteça de imprevisto com um homem tão perfeito? Nem filhos tivemos e. deve haver outra coisa no meu dia.. ele era! E me prometia mundos e fundos. meu marido detesta ouvir tilintar de louça e remexer de forno quando há fregueses no atelier. . Meu serviço é abreviar e suprimir de nossa conversa também a minha insignificante contribuição pessoal." De noite. diante de mim.. era a vez dela — para me dedicar a limpar os meus morangos.. os acontecimentos de minha vida são os dias de fazer geléia? Cuidado com o tacho de cobre que tem fundo redondo e. Um homem assim trabalhador. "Com esse rapaz a coisa acabou antes. Mas há muita mulher que não pode ver homem convenientemente comportado. Será ao meu gosto. Nada mesmo. Garanto que te farei estourar de alegria — e de tristeza também. antes fosse.. depois de trocar a atadura — eu lhe dissera que tinha caído — ele ficava uma porção de tempo olhando o meu pulso machucado. Tanto pior. de ontem. preciso pedir emprestados os de Mme Gáteroy. — Uma vida pequenina. . pôr os pepinos no vinagre — imagine se eu não mandava Mlle Devoidy às compras. um rapaz do bairro. nem deveria existir. eu estou louca. mas a mim.. Quem sabe se não teria sido melhor para mim? Em vez disso. Um rapaz que teve a audácia de me interpelar na escada.... já deitada. Depois.libertada dos medíocres cuidados que se impõem ao escritor. Não se deve pensar que os homens se atiram sobre as mulheres como antropófagos. ele a tomou e torceu. não sou de temperamento a pensar muito nos homens. dedicado e tudo.. Mais de dez dias fiquei sem poder me servir da mão e quem a tratou foi meu pequeno Exô.. Oh! não. e acabou-se . é melhor que passar hoje ainda e deixar tudo amarelado. como fazia sempre: "Acabou-se e não é sem tempo. Uma vez ele disse: "Dá-me a tua mãozinha". Os potes de vidro que tenho não bastam. porque era escuro. se for possível. .. vais ver o que é bom.. Dizia eu comigo: "Já fiz costeleta com petit-pois no sábado passado. de ter começado. tenho que lhe dar alguma coisinha. se não tomassem a iniciativa.. etc.. Deve haver outra coisa. comigo. Muitas mulheres — e não das mais feias — estariam no mesmo caso.. sentia-me como um cachorro que chega em casa com uma coleira que ninguém conhece e a quem dizem: "Mas de onde trazes essa coleira?" Os menos espertos também têm suas finuras. .. Quando estava de novo bem entregue às minhas tarefas.... se escorrega.. está bem. . de anotar fielmente os "por um lado" e os "quanto a nós". só terei o jantar para aprontar e mais duas ou três coisinhas. para não mentir. de amanhã? Mas. E não há de que espantar-se. está claro. a coisa recomeçou: "Então. estas coisas facilitavam o relato." "Em vez de acrescentar. Se conseguir voltar para passar roupa antes de escurecer. No dia seguinte. há de ser por acaso. ... tinha que fazer geléia. Depois preciso descer: esse tintureiro que não há meio de aprontar o terno preto de meu marido. E eu me envergonhava. Bonito. Dizia: "Não te quero pegar à traição... ruminava ainda minhas tolices.. Não sei o que me foi dar na cabeça aquela manhã. Casei com um homem tão bom. . Pois assim como brotou. a esfregar os pepininhos no sal. era uma distração. minha senhora. o serviço do dia. Ah!... Só que eu achava o tempo longo demais e procurava algo com que o encurtar. portanto. . ia respirar no patamar. isso te faria bem. "Que diz a senhora? Oh!. Farta de quê. Se ao menos uma vez a tivesse. Quando lá estivemos. encarei coisa por coisa. afinal. sabe o que fui imaginar? Imaginei que o que a vida não me dera." Naquele dia e em muitos outros... Naturalmente... para ela. Perfeitamente. amanhã. víamos quase todos os dias Guirand de Scevola — esse pintor que se tornou tão conhecido. eu não desprezava meu serviço. mas tive muita complicação. Pintava o mar em fúria. as misérias do corpo. uns frios... é melhor ficar quieta. antes de me pôr a caminho. como praia. Madame! Pensei em meu marido. por favor. A leitura distrai muito. para mim. Levantou-se e foi sentar-se na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos. minha senhora! Não falo dos meus. encontraria na morte.. para o lanche. Mas tenho um gênio esquisito.. Afinal. deixamos tudo quanto é mesquinho. vejamos. inesperadamente. se sofresse demais. a senhora está muito enganada. não depressa demais nem com muito ímpeto. Mulher tão feliz. Nem nós perdíamos com isso. com os pés do seu cavalete enfiados na espuma das águas. todo mundo olhava. as noites mal dormidas. Uma vez por semana.. tornou ele. O papelão de fibra era novidade. Na tristeza dele. engolir um horror qualquer e adeus! . meu bem-amado Geo poderia reunir-se a mim. noites e noites. tornei-me muito infeliz. aparecesse algo de grande. Sempre aquela mania de alguma coisa de grandioso. Parece nada. Creia. à queima-roupa: "Se quiseres. pois ela sabia aproveitar admiràvelmente o tempo e. . de quando em vez. A menos que eu salvasse alguma criança que se estivesse afogando. dinheiro não conta.. Faça-me a honra de crer: eu pesei tudo. não! Oh!. tudo quanto nos diminui. como dizia Mme Gâteroy. . . Uma vez embalada. Mas era preciso um artifício. Mas pensa a senhora que me matando eu não perdia cruelmente meu marido? Depois. ao contrário. Amanhã temos essa senhora que vem colar as provas no papelão de fibra". Um de seus olhos encarquilhava-se nervosamente e entre as sobrancelhas tinha incisa uma ruga. que antes de me pôr a caminho. Naquela época. nunca me dediquei tanto. garanto que a saberia reconhecer logo como grande. Eu acrescentava alguma gulodice.. Disse comigo que quando a morte se aproxima. é bastante familiar." Mme Armand abaixara os olhos para as mãos que cruzara e. para passar um mês. "Como diz? Ah! a senhora pôs o dedo na dificuldade... tudo o que tentei ler me pareceu.. uma cola especial. Nada faltava. Acabado o serviço da casa. porém. que consolo fui inventar!. como se de lá pudesse ver mais longe. era melhor do que correr à leiteria. Ao que chamo grande? Sei lá. "Francamente. imagine a senhora. E nos dias seguintes. em julho voltaremos a Yport. eu estava farta. "Mas naquele dia de que estou falando senti que tudo para mim era ao mesmo.. ele me propôs... que para mim nada bastava. mas não faltam as personalidades parisienses. ir atirar ao mar nosso dinheirinho.. sorriu: "Minha senhora. não é mau. Estragadas. se na minha vida pequenina. meio magro. fui parar longe. Mas com patamar ou sem patamar." — "Quando se trata de ti. estragadas como nunca. a gente deve ter momentos sublimes. falo dos de meu marido. "Oh! claro que sim.. Dias e dias. vinha a tal senhora e eu a convidava para o almoço. os pensamentos se elevam. como há dois anos. "Curiosos os pressentimentos. é o que eu teria sido. Era um espetáculo. . cuidei dos mínimos detalhes. A gente pensa que é coisa pouca deitar na cama. Leitura? A senhora tem razão. estavam prontas as geléias. mais que farta. mas nem por isso me pareceu mais feia. Coisa que nunca tive. morre-se raramente por ter perdido alguém. ou antes. meio pobre.. bem à minha frente. ao contrário.. imitação de feltro. . Mas eu nem sei nadar. Creio que mais se morre por alguém que nunca se teve. d'après nature.. respondi ao meu caro Exô: "Bela idéia."Antes das cinco." Yport? Oh!. Aliás.. ao certo? Mulher tão feliz. .. não seria a viagem a Yport que traria à minha vida algo de grande. Prontas e ruins. quando falava de mim. dava muito boa aparência às fotografias de esporte. Transportei para aqueles momentos todas as minhas esperanças. jurei a mim mesma jamais dar desgosto a um homem como aquele.. e eu me dispunha e recomeçar: "Amanhã. Arrisquei um termo do qual Mme Armand se apoderou avidamente: "Sim. Uns nadas. Para cúmulo. Não. ou deixara à matroca. pronta a carta para meu marido. lembrei-me da lavadeira.. Madame.. Em vez de almoço tomei uma infusão. lembrando do que esquecera.. certíssima. Mais um pouco e largava de tudo. sozinho em casa. mais que carne fria e salada. escrevi umas palavras num papel e deitei-me de novo. nos pontos em que estão machucados. "Os zumbidos e os círculos faziam roda em volta de mim. A cama com os lençóis bordados. a ver se não havia marcado alguma "pose". como estava prescrito. Sim. do lado de que me despedira. e nem disto estou bem certa. meu pés começaram a esquentar. sofrer eu não sofria. Já sei que o suicídio não me pode servir para nada.Só para arranjar a droga. se bem que não seja particularmente crente: "Meu Deus. "Sim.. escutei. pouco me preocupando com meu marido que podia estar se aborrecendo. Do que estou certa. Entre uma neurótica e eu. Todo o mundo vai ser gentil para com ele nesta casa.. instalei-me.. . a chegada dos belos pensamentos. perguntava cá comigo que amolação me apareceria ainda.. . umas ninharias. para que eu não fosse mais eu.. Meu Deus. Por exemplo. para me perder. para antes.. Mas pensei que eram os zumbidos dos ouvidos que começavam.. depois do dia de trabalho . a manhã passou-se num abrir e fechar de olhos. mas enfiada na cama. para chorar. tende piedade desta alma pecadora e desgraçada. quando voltasse. afinal.. Por um momento. em vossa bondade infinita. para me levar. . . Ao mesmo tempo. . quanto andei por aí traficando. quanta história tive que contar! De repente — um dia em que houve um acidente com a luz vermelha do laboratório e meu marido foi obrigado a sair logo depois do almoço — aproveitei. Esperava quietinha. Levantei-me.. bem frescos. no fundo da cama e doíam que era o diabo. do lado de lá. . senti-me como nesses sonhos em que a gente pensa estar caindo do alto de uma torre. lembro-me que desejei levar as mãos ao rosto. "Depois? Depois fiquei à espera. Estava como que num embarcadouro. Fechei a porta a chave. apoteose! Justamente. Disse comigo: "É de propósito. engoli a droga.. fico por aqui mesmo. E julgue a senhora — sem ofender Mlle Devoidy — se estou ou não em juízo perfeito. a idéia daquela espécie de. Depois... Engoli primeiro uma cápsula para prevenir espasmos estomacais e esperei dez minutos. não acha? "E eu fiquei esperando.. tende piedade desta alma pecadora e desgraçada. atormentava-me porque o meu caro Exô não teria naquela noite. Não. pois que estavam calçados... Escorregou para o centro do leito e. apoteose! Naquele dia andava inquieta." Jamais acreditaria que o que mais me doeria. Minha cabeça rodava. mas eu esperava ainda. isto hoje não acaba"." Não conseguia recordar o resto.. é de que jamais tornarei a tentar me suicidar. Reprovava a mim mesma aquelas caminhadas a pé que andara fazendo à noite. a tristeza da minha morte lhe apertará o estômago.. de um par de asas bem grandes. Um frio terrível veio cortar o fio de meus pensamentos. fiquei escutando os ruídos da escada. pensava ver em volta de mim enormes círculos . Pior: imaginei que batiam na porta.. mas foi só.. isto é. estava como que sem braços. existe uma diferença!" . E acredite — Mme Armand torceu um pouco a boca — não era nada apetitosa. Vagamente. Sentei-me na cama e recapitulei. Pois bem. Chamei-o para lhe dar o casaco de meia-estação e pensava.. Mas isto bem podia ter sido suficiente. e não pude. seriam os pés. a casa bem arranjada. "Não perdi a cabeça. acho que é só. com travesseiros bordados. na hora da morte. Bom! Assim que me deitei. .. fechou os olhos dos quais eu via apenas a linha dos cílios. reflexões desinteressantes — aí está o que nadava acima dos círculos e zumbidos. pensava: "Ainda vai ser demais. nas costas. tornava-se velha. aqui. emplumada e negra. Foi só isto — a senhora acredita? — isto e as minhas idéias e amolações de todos os dias e daquele também.. ora veja!. Como é triste não ter na morte o que tanto quis na vida. minha idéia era o que me dava forças. da morte. tão ajuizada. de uma só vez. não. Esperando minha recompensa. Deitei-me de novo e recitei uma oraçãozinha. Madame. além da sopa requentada.. do que prometera a mim mesma. Disse comigo: "É o fim. Mas eu já estava presa. ele quebrara aquele frasco de hipossulfito — lembra-se? "Acreditei enfim estar sozinha. meu marido com pressa de sair. retomando a atitude e a passividade da sua morte transferida. mas não vacilante. depois que saí. Com a história. como uma plataforma de estação. .Mme Armand levantou-se àgilmente. para que a luz do atelier clareasse o patamar. Quando acontece eu me lembrar dela. depois de protestos e exclamações de "como é tarde" e nos separamos — por longo tempo. Lá ficou a "mulher do fotógrafo" à soleira de sua porta. humilde e quotidiana que ela desconhecia e a que infligia o nome de "vida pequenina". seu rosto se animara como que de febre. Não creio que tenha vacilado uma segunda vez. vejo-a sempre apoiada naqueles seus escrúpulos que. modesta. delgada e só. chamava de "amolações" e sustida pelos impulsos daquela grandeza feminina. A conversa acabou. Ela manteve aberta a porta do apartamento. dêem-me sincronicamente e com igual mentira. o lírio em crocodilo e os feijões em hidras.. à observação. Porque os fogos do céu bebiam a seiva de minhas quatre-saisons transportadas e suas folhas oblongas. eu gostava de visitar as exposições florais que tão fielmente marcavam as etapas do ano. . aliás sempre fui — e por demais — propensa a chamar astúcia e sentimento ao que. entre uma e uma e meia.. eu era. habitualmente. íris brancos florindo. O reino vegetal não é mudo. a barulhada das plantas. . sacudia a cabeça: — Já as reguei ontem. depois o íris e as hortênsias. . a gloxínia em armadilha. por fim. íris negros cor de teia de aranha. Aos milhares. que acusava de bater meio-dia às onze e meia para ganhar mais cedo sua refeição. recolhidos os últimos caminhões. porém. a balística das sementes e o canhoneio das favas. Milhares e milhares de íris ocupados em nascer e morrer pontualmente. Como tantos que viveram em contacto com a suave multidão vegetal. agora só amanhã. semelhantes às da oliveira. as orquídeas e. Por um pouco não as ameaçava com castigos. fracos mas completos. as ampliações animadas — grau do milagre. Em Cours-la-Reine. Quanto mais lhes der.. Quase me obrigam a ir às escondidas para regar os tomates podados.FLORA E POMONA — Vamos dar de beber às mimosas — dizia eu à minha jardineira. indiscrição maior da fotografia — contrariamente ao que a princípio eu esperara. — Mas olhe para elas. serviram-me melhor do que o cinematógrafo a reforçar longamente apenas a vista. de grandes línguas. são bens de que Paris.. "Fazem-se fraquinhas de propósito". Havia também trigrídias com seus ouropéis de saltimbancos magníficos. o peso soporífico de um ar carregado de perfumes e de umidade. íris do Japão. Vinha primeiro a azálea. os amadores de flores e de silêncio podiam gozar de uma trégua estranha e de uma solidão em que as flores pareciam convalescer da curiosidade humana. ao lado delas. tanto em não morrer como em matar. nosso Paris de antigamente possuía às vezes seus momentos de paz. os íris pareciam chocar febrilmente o verão. como recompensa sutil. Por barulhento que fosse. diante de suas rápidas reviravoltas em direção à luz. mas não o silêncio. Reinava a paz. Se quiserem que eu aceite esse gigantismo do cinema. em mesclar seu perfume a uma fedentina de adubos misteriosos. O que mente ao ritmo mente. elas pedem mesmo. estão com sede! A jardineira levantou os braços: — Ah! se fica aí a ouvi-las. O calor filtrado pelo teto de lona. as eclosões em bocejos de feras. Não foi através do cinema que experimentei mais intensamente a angústia e o prazer de sentir viver os vegetais. também aumentada mil vezes. a trovoada das florações. pelo seu fruto. conheço-lhe a benignidade e protesto diante de um ritmo artificial que transforma em desesperada corrida o vagar da germinação e do crescimento. o de violar a verdade pelo desmesurado. provavelmente. Em Cours-la-Reine. mais fino que o roer dos bichos-da- . apoiando-se uns aos outros. à essência da criatura. um violeta aveludado diante de um malva muito pálido. os crisântemos. pendiam sedentas. não passa de reflexo mecânico. um maciço azul junto a um maciço de amarelo. Na tela.. íris azuis como tempestade noturna. como se o papel da exatidão fotográfica fosse. de sua teimosia. Falando de criaturas enraizadas. ela me perturbava facilmente com suas palavras de adivinha ou curandeira. Diante dos desmaios e ressurreições dos vegetais. dizia ela baixando a voz e designando as mimosas das quatro estações. perturbava-o um ruído insistente e leve. a ausência de qualquer brisa. me desapontaram. na Provença. é avaro. o de enganar o olho humano e embriagá-lo com acelerações e movimentos lentos. quase. os meus sentidos. incessantemente. A jardineira. como fazia à sua pega mansa. Lembro-me de uma prodigalidade extraordinária de íris em maio. se bem que não chegue até nós sua atividade senão por acaso e exceção. Milhares e milhares de íris. mais querem. íris. às vezes. concedida ou à nossa vigilância ou a uma certa preguiça que equivale. de uma crisálida rompida. tu és belo. da grande papoula escarlate que empurra suas sépalas verdes e um tanto peludas com um pequeno "cloc" e depois. depois ao torpor e vemo-los aglutinados. do árum que range ao desenrolar sua trompa.. Horrorizada. brácteas apenas. Uma folhagem é maravilhosa pela forma e colorido? Nossa curiosidade dirige-se. a asa úmida e dobrada.. sem mais explicações. Falem-me antes do suspiro vitorioso do íris que vem à luz. Certo adolescente perdeu boa parte de sua admiração pela buganvília — esse manto de fogo alaranjado. só então liberta. brancas. assim como o início de uma longevidade de lepidóptero! O que é a majestade do que acaba perto das partidas titubeantes. me vinha o respeito.. Mas. Amar mais não leva a uma piedade maior. Mas que pensar — para vergonha da família das barbas-de-bode — de certo árum? Sua haste fálica tresanda em volta um cheiro de carne deteriorada que engana e embriaga nuvens de insetos.. nítido. enriquecidos por ele. o ruído enorme. O rumor de um entreabrir de élitros. Que o pequeno segredo negro permaneça ao fundo dessa flor-lugar-suspeito. apressada. a eclodir.. não gostaria de saber. Não gosto das flôres-armadilha. hesite no cortar uma fibra. diante da ipoméia. o sifão da aristolóquia se enche de minúsculas vítimas. "Não quer um macaquinho de presente?" — perguntaram-me certa vez. à medida que se agravava minha curiosidade. desprendendo uma roda de pétalas ao pé do vaso. o olho feérico cujas facetas recebem o choque da primeira imagem terrestre?. Quantos crimes perpetrados de um reino para outro! Pois não serei obrigada. aqui. peras.. "Desde que eu soube que não passam de brácteas.. Não me comovem as agonias das corolas.. apesar de tudo. inclusive a morte. Seu botão avermelhado não divide seus quatro postigos nem os levanta como cornos de um pagode sem primeiro estalar levemente os lábios. o rumorejar de uma folha morta dançando — eram os íris. A peônia despetala-se de uma só vez. denominar e prever o que a ignorância me permite considerar maravilhoso! Nem a flor é explicável. groselhas ou framboesas. violáceo ou cor-de-rosa que cobre os muros argelinos. surribados e atormentados pelo homem. inapreensível. róseas ou violáceas. O som de sua queda.seda. gostaria de saber. Mas o começo de uma carreira de flor me exalta. Não. por escrúpulo ou ternura. sobre as suaves terras da Ile-de-France. enrolada à base do seu cálice. de uma patinha de inseto. brigando por tudo quanto ela oferece. Manuseados e remanuseados. como não evocar outros nascimentos. vogando sobre algum mármore liso. a libertar a abelha presa no teu broto pegajoso. ó meu belo castanheiro? Ao menos... sob a luz peneirada e propícia. muito baixo. O apetite do vegetal. Sabe Deus se eu admiro. fantástico crescimento do cogumelo que sobe brandindo na cabeça redonda a folha que o viu nascer — tais são os espetáculos e músicas pelos quais. Ora. Mas falta-me o gosto dos espetáculos e símbolos de uma graciosa morte. a primeira patinha tateando um mundo desconhecido. luta para durar e vencer: em nosso clima não vemos o pior dos combates a que se entregam as grandes e devorantes plantas exóticas. permite que desçam .!. estira sua seda vermelha sob o impulso da cápsula das sementes. Entregam-se à tontura. aos milhares. se o faz semelhante ao animal. que não tenha dado cerejas. que um arranhar de tecido. os pomares. nem sua influência sobre nós. esquecem todos os antagonismos. avidez de hastes aquosas como as do jacinto. dividindo a árvore. com seus jogos de mandíbula e suas secreções mortais. prostrados. Diante dele. que é a flor. não o torna para mim mais difuso de amor que um bicho humanizado. à sua modesta flor. O talhe em forma de taça coloca a fruta ao alcance da mão e. — "Não. é uma sílaba de silêncio e basta para comover um poeta. Não queremos reverenciar senão a cratera. ataque. não há uma polegada de terreno em certos cantões preferidos. desfazendo-se num quarto cálido. neste mesmo verão. descerrando a membrana seca. das desordens da aurora? Defesa. golpe de força do botão. penujada de estames azulados! Tampouco a fúcsia é muda. Rangido de uma existência e de uma exigência muito reais." — disse ele. estancar a seiva? Não. Todos estremecemos quando uma rosa. eu poupe sofrimento ao vegetal. Quererá isto dizer que. ímpetos de ereção de uma haste exangue à qual acabam de dar o alimento líquido. suas lindas anáguas amarrotadas. abandona uma de suas pétalas em concha. até que.. abater uma cabeça. a suave e pequenina pinguícula enrola no inseto sua folha peluda e o digere. da tulipa e do narciso. Grande vantagem seria definir. amontoados sobre a trompa. obrigada — respondi — prefiro um animal". No entanto ele sabia falar e mesmo escrever muito bem sobre as coisas de que gostava. têm menos mistério. o homem. lá ficava. Naturalmente. todo eriçado de estames pardos. um esporão amarelo-ouro. que espreitava num carreiro de jaguares. Aqui a flor destaca da corola uma pluma aérea de estames. Enquanto isto. apogeu. meio cientista. um bulbo até então inacessível. a quinquilharia e. Acontecia que se o herbário chegasse a um museu e adormecesse num hipogeu provincial — a maravilha dissecada e esterilizada mais leve que uma batata palha. Com a mão cheia a sopesar uma pêra alongada. antes do socorro do cinema ambulante e da telefonia com ou sem fio. e as macieiras. o jaguar passou tão fresco e florido de pintas que rivalizava com o Oncidiun papilio que o caçador preferira a ele. verde e marrom! Mas. o herbário. ele colhe orquídeas e. largam-nos e tornam a possuí-los. com seu metralhar. indizível. o herbário que se cobria de ponchos e folhas de palmeira para protegê-lo dos dilúvios tropicais. com um gesto de quem desiste. chamava-se também Baker e Serpa Pinto. é tão suave e imperioso. em oito dias nascem. semelhante a uma coisa que nunca viveu. um trambolho. homem honesto.. a "mirabelle". a glória da árvore frutífera. mas a tentação da flor. Era o herbário que o homem brandia. eles a encontram — e não a acreditavam tão poderosa.. na encruzilhada de quatro ou cinco riscos mortais. No pouso. Entre a framboesa escura e roxa. Além dos nomes que já disse. esquecia.. naquelas latitudes. róseas como a neve à aurora — esta espuma. Depois dela. Por uma flor? Não. meio criança grande e atônita.. . irrigada de rosa. chata e irreconhecível. lúnulas e números.. diante do homem branco.. entre um tufão e outro. morrem esparsos. nadando com um só braço em correntezas rápidas. a "montmorency" que tem a carne tão fina que o caroço transparece contra a luz. As noites. por causa das formigas. depois de ter sido folha pequena. Belo é o tinhorão. o apressado branco e verde a estrelar as ameixeiras. não passa de folha grande. E o alpinista mata-se no momento de atingir a genciana.. Divertida. três burros carregados. um punhado de negros. antes que sobre ela se lancem as formigas invencíveis.. ." E interrompia a descrição impossível.... e mesmo o crepitar da fava da aliaga madura.. mosquitos despropositados e escorpiões — para dar à planta semimorta seus primeiros cuidados. uma floração conserva todas as características da explosão.. forçar os segredos do Mato Grosso e trazer.. estômago vazio. Além de suas estranhas suíças.. levantou a vista e deu com uma flor desconhecida lá em cima. salpicado de púrpura. Os exploradores do outro hemisfério — chamem-se eles Marcoy.. leio e releio estas memoráveis viagens de pobres. corajoso e humilde como sempre. desfraldam-se e se aniquilam. antenas. segredo. Dobrava-a. como qualquer cadáver. alguns fuzis. é de um róseo cor de carne. afrontam o México. esmerava-se por chamá-la à vida: "Vejam aqui.. instalado em um banquinho de vento. fixava-a no herbário onde ela se tornava. colhe uma orquídea com seu sortimento de pétalas. sobre suas cabeças balançam-se cobras azuis e verdes e as feras hesitam espantadas. . de poucas cores. Quase sem dinheiro. esta parte da planta: ao natural. Aqueles regalos brancos enfiados nos braços das cerejeiras. intervém um milagre de esforço e de eclosão. pés feridos. porém. brancas como rosas. Charnay ou Harmand — atravessam a América do Sul de oceano a oceano. afinal. a semente convulsiva da balsâmina. que se trancava numa lata. a imagem mais tenaz e apaixonadamente contemplada que dela conservamos é a lembrança de sua efêmera floração. apaga o esplendor sólido da duradoura e alegre estação dos frutos. esses fantasmas e anjos. Um de meus heróis. Quanto ao perfume. ao mesmo tempo.. Do botão à corola.sobre ela os raios do sol e as brisas. assim a gente não pode imaginar. mas com respeito. esses cisnes. o cremoso branco das pereiras. enquanto o despontar de uma folha só leva a uma folha aumentada. entre a camisa e o peito. percorria os antípodas e metia-se na cabeça que havia de subir o Zambeze e o Amazonas. Esta semana. ao que ele mesmo . dizemos: "Lembras-te de quando floresceram as pereiras desta colina — todas no mesmo dia?" É que mesmo modesta e pequena. sardenta como uma face — a quem dar o prêmio? E.. . Há quanto tempo vem o homem trocando a vida pela conquista da planta? Uma flor. que afasta o sono.. tudo por uma flor. trazia uma barba de fazer a gente descer dos próprios olhos e uma cabeleira leonina que. com sua folha grande e orelhuda. belíssimo . línguas. Mas o sertanista. o rododendro ou o edelvais.. Lá as febres os apanham. no entanto. aquele homem que.. Só a flor tem sexo. Não há criança que não tenha desenhado seu jardinzinho. uma peste eruptiva manifestada em violáceo sobre fundo esbranquiçado e possui. este e não outro. apesar de suas exíguas dimensões e da ingenuidade aparente daqueles cercadinhos plantados com malmequeres. vai-se grande parte do dom da invenção. desde tenra idade. Hoje em dia. Muitos jardins guardo eu na lembrança. Não há ser humano que mude tanto que em suas decorações e enfeites da idade adulta não seja reconhecível a improvisação que brotava da criança e se concretizava a um canto do pomar. para correr o mundo sem deixar minha poltrona. conforme sua idéia.. a criação de um jardim remonta a concepções infantis. nalguma galharada gigantesca. pendurado ao traseiro. sob a copa cerrada de um teixo. Mas é o meu guia — meu febril e errante guia de pés de chaga — que lhe dá caça. salvo um colibri. entre elas. com um papagaio ao ombro. como ele mesmo. e a trichopilia. Extasiado. para as faias. folhagens de cenouras e bagas de espinheiro. "Ah!. em sexos? A aristolochia tem bico de pato.. Esse bravo. chegando o nosso outono. nem pela ramaria grande e desordenada. Lá vai ele cheio de fé. é que ia colher flores em pântanos ainda mais assombrados que um pesadelo. menos os que eram jovens demais e teriam que ser plantados por mim. Ainda passa o oncidium. demora demais. Idade é para os carvalhos. levava para lá seus cães favoritos e depois chorava ao vê-los morrer. armado apenas de um bom quilo de quinino que resumia toda sua panacéia. é a Irichopilia tortilis". Para nós. em chagas. Ingenuamente. que dará um dia sombra redonda. na ponta de um pau. com o povo miúdo dos lilases e acácias e essa portadora de nuvens irisadas pela manhã e pelo orvalho. Com ele caço o leão. disfarçadas em pássaros. Meu segundo irmão construía túmulos de boneca. a extravagante oncídia de Galeotti. uma cabrita fiel que recolheu e um canguru menor de idade enfiado numa bolsa de couro. encostados a declives ou a algum bosque e virados para o sul ou para oeste. ainda passa a stanhopea. miraculosamente salva. quase queimados vivos. Em nós.. assaltado pelas tesouradas de duas formigas ferozes e desmesuradas e conquisto delicadamente. é divertir-se com as weigélias. se sou eu quem a lança à terra.assegurava. toda de gazes finas. Queria-os submetidos a curvas. da Europa. entre uma sucuri em jejum e um ninho de vespas-construtoras. Quase todos me satisfizeram. embora um tanto pálida e anêmica. o pobre monstrinho friorento — c que restar da volante orquídea. Só nossos jardins de antanho foram criações autênticas.. se sou eu quem vai. com colunas do tamanho de um musaranho e. vou eu mais depressa do que ela.. só neste homem é que me fio. é a Arístolochia Jabiosa. as dêutzias nevosas. com o auxílio de uma pazinha de brinquedo. a flor única. aquela em que premedita depor. Já não tenho tempo de esperar pela sua linda copa. É em vão que elas estendem suas antenas rubras e cobrem-se de arabescos cor de sangue seco erigindo seus prestígios sobre um pedestal-abdome grande e purpurino como uma ameixa "de Monsieur". senti horror pelas aléias retas e pelos jardins quadriláteros. o bulbo precioso. suspirado pela rosa. o protegia tanto dos raios do sol quanto do orvalho da noite tropical. A miltonia reúne em si trapos geográficos. um amplo saiote espanhol que cheira a cadáver. Só o de que não gosto é que me ensine vocábulos latinos quando desejava ouvir nomes populares. sob sessenta graus centígrados. o que sobra é lidar alegremente com arbustos que dão flor. este coração puro. Eu era mais simples. e eu o sigo. continentes castanho-avermelhados sobre mares amarelos. para o que possui essência meditativa. em himenópteros. Mas que nomes familiares haveria a gente de dar a criaturas enlouquecidas de mimetismo. Até concedo ao meu guia sua miragem suprema: a cidade natal. . Que se mostre outro espectro floral de pântanos funestos sob aspecto de fada apenas rósea.. este francesinho requintado. ou mesmo restaurar encordoamentos e palmas. Cobrir um namental. Mas a árvore chamada ornamental. rodeados por um minúsculo riacho cuja areia ia bebendo toda a água despejada pelo regadorzinho. passeava aquela sua alma que ninguém jamais soube decifrar. Quererá isto dizer que sou particularmente maníaca — como ele — pela espécie das orquídeas? Não. Depressa teria eu. a árvore de peruca. Sabia privar-se de tudo mas carregava consigo repugnâncias burguesas e não se pôde habituar a certo cereal que o teria curado da disenteria. em tão estranha companhia. vai murmurando ladainhas botânicas. Com a perda da infância. arrancada aos negros continentes. ainda meio verde. Ao centro dos gramados. Mas a sala de jantar é glacial e os pequenos espirram. misterioso como um poço. avançávamos em pequenos bandos até uma das alamedas de entrada e então. Verão. manchar toalha. também. em volta de um jantar bem servido. . tu e teu agosto e teus hóspedes receosos de sol. por isso mesmo. Às vezes. ninguém empunhava os varais do carrinho de mão esquecido diante do patamar. A presença e o renome de algumas famílias antigas — um tanto empertigadas. desvendado e nu. ainda hoje. mordido e abandonado pelo dentinho do rato que o apanhou — vejo o verão. Assim és. os passeios de nossa infância e adolescência tinham por alvo uma das mansões vizinhas que. toda de algodão branco e chapéu grande. Mas tampouco a entendiam os castelos das redondezas. uma tempestade mantida à distância detrás de uma colina. o castelo. escondida e cercada de trepadeira. mão nenhuma afastava as altas persianas entrecerradas. bela-de-junho. a majestade do vazio nos emudecia. como se a bela estação — independente da temperatura alta e estranha às praias ociosas — fosse de novo submetida ao poderio de uma certa lentidão do tempo. algumas letras entrelaçadas. limitadas pelo espaço de dois ou três cantões. pavoneava-se um maravilhoso melão. para sua defesa. Pairava sobre os maciços solares. geralmente de estilo Luís XIV. a quentura sobre a qual se curvavam os renques de arbustos maciços. Só no canil a alta voz dos cães de caça nos denunciava.. diante de um terraço. no fundo de sua corola. depois do jantar. nalgumas das rampas de grama que sustinham os terraços. meio por prazer. eram os delegados da roseira amarela. e cuidasse de lá ficar durando. se abusas! . reservada às províncias do Centro. O jardineiro do castelo de Saint-Sauveur fornecia sementes aos Jeannet. meninas. liégeoise-Haquin. a arte da jardinagem. Verão. não aprendi. aparecia. com seus leões escamosos. em suas tinas. de bolas de neve e azáleas. revisto pelo Segundo Império. — Sabes o que te espera. o sol mudou de lugar e canta a saparia. empobrecidas pelo tempo e pela rotina. floria os canteiros dos Barres. algum brasão. pelos cabelos brancos como alumínio. manchar a cesta. este último era feio. com falso atrevimento. nos nomes dos morangos de antanho que se chamavam capron rosa. que marcam o domingo pelo abrir de suas sombrinhas. elevava-se a compoteira de três bandejas escalonadas que fornecia água ao tanque e aos peixes vermelhos. Se vejo um pêssego mamilo-de-vênus. os materiais que me servem para reconstruir o estio. ou tentava ressuscitar. mata--burros aterrados e muros cimentados pela hera e pelo espesso e aveludado musgo. abaixando-se com dificuldade para enfeixar os renovos das roseiras recentemente podadas. enquanto as cortinas de musselina são aspiradas pelo vento cá de fora? É o verão. algum jardineiro mais jovem e menos displicente escrevia com plantas anãs. E quando saímos. detrás das venezianas. as laranjeiras já velhas.Minha infância e adolescência sedentárias. o pedalar longínquo de alguma batedeira de trigo. a uma volta da aléia orlada de velhos lilases.. oh!. Em volta. a de haste peluda que nem filhote de javali que.. vi à borda do gramado central uma mulher já bem gorda. verão. — Descansa. Seguia-a com os olhos um homem alto e magro. decantado nas réplicas ritualísticas trocadas pelas nossas damas de aldeia. O silêncio bordado de ramagens grandes pelas abelhas e rãzinhas verdes. Destes limites não passávamos.era o bastante para nos barrar o caminho. por meio de podas severas. esconde a mancha azul-escura de uma esquimose. Colocavas à sombra as crianças do castelo e. sangrar. de palha. reconheci.. Nós. Mais alguns passos e. há muito que ninguém pensara em rejuvenescer ou revolucionar o desenho daqueles parques. quando ele ergueu o chapéu para enxugar o suor da testa. subsistiam as platibandas à francesa. o senhor do castelo. caseiras e fiéis à missa dos domingos —. Certa vez. estando eu com o nariz metido entre dois barrotes de uma grade. meu deserto. Yolande — gritou ele. reverberando ao sol das quatro horas. um ar de família.. Aos domingos. verão. meio por obrigação. Entre a torta e o bolo. Vinham ao nosso encontro somente perfumes que caminham lentamente. . só possuíam grades escancaradas. cujo mordomo. pois. que bebeu um copo de Porto e duas colheres de açúcar em pó. seus pais. que partilhavam mudas com os Orme-du-Pont.. por sua vez. tais são.. perfumava como fruta tropical e não passava do pomar à mesa sem se arranhar todo.. da tília em flor e da grande papoula escarlate.. Nalguma modesta mansão escancaram-se as janelas sobre o negrume dos quartos. amadurecendo tornava-se de um azul-cianótico. já meio rosado. Meus olhos atônitos viram um jardim de Blasco Ibanez. que era atirado para o alto. com pinheiros iguaizinhos e sem brecha. O portão da carroça. suas muralhas compactas. depressa e como se fosse eu mesma quem devesse morrer. ao complacente lilás. seria preciso mais que a madressilva centenária e infatigável. esse regalo de campânulas malva. No Sul. o francês. Limita seu luxo de jardineiro à roseira rústica. a gloxínia apareceu tarde e criou algumas rivalidades. a desordem foi sempre simulação: um certo descabela-mento só se obtém com a colaboração da tesoura de podar. rodeia-os de rosas-de-cão. esmaltadas sobre fundo branco. não é que resultassem de tratamentos especiais. Cerca as paredes do loteamento com um pequeno muro ao qual acrescenta uma paliçada. todas as frutas. . por todas as saídas uma paisagem gloriosa. laranjas. Para o prestígio de nosso jardim. peras. de repente. O jardim da casa em que nasci perdeu. suas nobres alamedas de entrada como raios de uma estrela. Mas nos jardins que orientei. distribuindo o que lhe restava de mocidade pela distância compreendida entre o degrau do break e o banco da igreja marcado por uma coroa. limitando a vista. No inverno. com a ajuda do tempo. as últimas recomendações clamavam ao bom senso: "Ninguém feche a porta do patamar. Em ambos. ao espinheiro vermelho — e ainda acusa a este último de trazer-lhe taturanas. Se nossas hortênsias andavam de cabeça soberanamente inchada e cor-de-rosa. Não destronou a grande "taturana". a toda hora. que a glicínia em pequenas cascatas e a roseira coxa-de-ninfa? Todas as três. ensinaram-me o que é profusão. O solar bretão tem seus trevos grandes e arborescentes. miando debaixo da minha janela para que eu o deixe entrar!" O Jardim de Cima e o Jardim de Baixo — os nomes revelam o bastante sobre o desnível do solo — deixavam-nos sair clandestinamente. a porta do palheiro está aberta? Senão aparece o gatão às três da manhã. sabe que a cultura das flores e os cuidados que exige são prodigalidades de tempo e dinheiro. empertigado dentro de uma armadura de tafetá e engomados. ele metia dentro de casa. Meus amigos vos dirão que eu não arrumo jardins gráceis e parcimoniosos. bebiam à vontade.A operária de branco respondeu com algumas palavras que não ouvi e corei de haver surpreendido na mais humilde intimidade um casal que só se exibia à missa dos domingos. maçãs. cobrindo-as de flores pela estação inteira. sentindo-se seguro e tendo tomado o gosto do que "é seu" por meio da grade e da fechadura. sufocada. Na vila principal do meu cantão havia o homem das rosas. suas giestas e mesmo suas mimosas. os aderentes perfumes e sua excessiva doçura. e não gosto que entre em minha casa. Monumental pomar. eu dou ar e espaço. é que tocavam quase à bomba d'água e eram beneficiadas pelos restos dos regadores e da lavagem dos cântaros. a quebrar dentes de vivos e mortos — bancos de repouso tão acolhedores e macios quanto um catafalco espanhol. um velho de boca de tartaruga que trincava uma haste de rosa. que sobe desmesuradamente e emoldura de um só jato as janelas todas. Desde sempre. frutas de esmalte funéreo. que uma das gatas ainda não voltou! Será que. o hábito de afastar intrusos. E o novo proprietário. uma mistura de útil e supérfluo punha tomates e berinjelas ao lado de píretros e salpicava alfaces no canteiro das balsâminas e heliotrópios. Sinto-me bem entre os maciços floridos que. damascos. A hora de apagar a lareira. o vendedor de terrenos inventou uma tentação para o comprador. Cada um gera à sua própria semelhança. a aldeia toda sabia sacudi-lo pelo batente para fazer tombar lá atrás uma pesada barra de ferro que o deveria trancar. ao menos. um verdadeiro harém de rosas. de uma ponta do ano a outra. Pouco hospitaleira por natureza. O aldeão que se apaixona pelo seu jardim é logo tido como "original". rodeia de arame-farpado o seu jardim e o seu primeiro deboche de imaginação é para a cerca. vivendo em suas terras por economia. clandestinamente. plantadas com sêxtuplas fileiras de árvores. voltar. Entre nós. em potes. mobiliado com maciços bancos de faiança onde se viam. pulando o muro e. A uma árvore que os mereça. o francês trata os terrenos que o cercam de modo defensivo. sendo preciso. Só lhe conheci uma grade benigna e portões abertos dia e noite. barram as aléias. subindo pela grade. depois toma em seu terreno as medidas de um jardim meridional. acácias européias e zimbros. contorcendo-se pela calha e entrando sob as ardósias do telhado. mostra um pouco os dentes e sorri por detrás dos barrotes. despregando-a. de árvores. conforme o humor e a idade. a ignorância em que me vejo no que toca ao pássaro. aos jacintos do Gros-Rouvre.. Que pobre me sentia eu quando ele falava! Naquela boca. ele caminhava.. róseos. no fim. com uma teia azulada." Frase singular. sobrevoava a Gata. Se. cuja magnificência organizara. a floresta não era pródiga só em flores. Jamais contemplei os jardins de Claude Monet mas sei que ele os queria azuis. mas. virgem e cristalina. pois eu esperdiçava todo o seu tempo consultando a memória segura e infalível daquela criatura não perturbada nem sobrecarregada pela rotina tipográfica nem pela feição da palavra impressa. como galinhas de casa. Meu papel foi. Ao contrário. o livro em que a ciência renascia para ele todos os dias. construindo ali casas perecíveis. pretendi ver aquele senhor de jardins declinar ou reverdecer. se ajustavam ao objeto como a abelha à flor. ameaçador.. No fim da vida. o do amador. para entrar na pequena sala de jantar.. Foi meu jardineiro analfabeto — não lhe digo o nome porque sua mulher ainda chora por ele — que. Mas.. envolto numa veste clara e ampla. amador de jardins e de tudo o que vive. tinha quase a minha idade e não sabia ler nem escrever. era um homenzinho magricela e essa fragilidade — conforme ele me confessara — é que o tinha levado a casar-se e a morar sob um teto. para não me desgostar. que levam aos tanques de Holanda. Em suma. volvia o olhar ao horizonte denso e profundo que o protegera do soldado e do mestre-escola. Tive um pintarroxo que descia. bem em cima da cabeça da Gata. Ouvindo estas palavras.. Em minha casa não trabalhava. sua escola. um juízo escandaloso. Tentei esclarecer com as luzes de meu sapiente iletrado. muitas vezes. à soleira. com as alegrias e surpresas que comporta. . bastava-me repreendê-la baixinho: "Gata!" e ela. Ensinam muita coisa. reacendia-se a olvidada chama caçadora nos olhos da Gata. diverti-me vendo a abundância das alvéolas e o seu atrevimento no seguir o jardineiro. interessam-me. meu outro mestre. à floresta de Rambouillet. são precisos bons olhos a quem quer conhecer os passarinhos. agrada-me o dito de uma francesa. Mas eu devia ter começado mais cedo. escrita em raios de sol e chuva. a floresta tudo lhe dera e ele jamais deixara os ninhos." — Mas a lei torna obrigatório. a aparentar que mais podemos esperar da morte de todo ano que das primícias. Era seu refúgio." Este iletrado nascera a quarenta quilômetros de Paris. . de ervas. ele respondia simplesmente: "Isso não se encontra assim em todo canto.Nem premeditação longa nem divagação aplicada trazem grande proveito aos jardins de nossa França. Jacques Delamain. Quando eu manifestava o meu espanto. Talvez aquele mutismo tenha escutado demais os últimos sons e os derradeiros terrores que eriçam plumagens. à bela floresta dominial de que eu só conhecia os caminhos mais claros e batidos. pois. . Fartei de grãos um casalzinho de tentilhões que. Lembro-me que minha juventude impertinente fez. e as crônicas da floresta. ao saber de minha predileção pelo que Buffon cognominou "o mais feroz dos pássaros". Durante uma breve estação. Os caçadores furtivos são. extinguia aqueles faróis de perdição. que começava à minha porta e parecia não acabar mais. Mas quem sabe se não me foi mal contada a história de Monet e de suas flores governadas? . ele atirava-lhes as larvas e minhocas exumadas pela lâmina da enxada e elas as abocanhavam no vôo. uma particular santidade — desvia-o da caça proibida e do assalto aos ninhos. às anêmonas selvagens de Mesnuls. ao roçar duma asa. fazia serviços de jardineiro para os parisienses que mordiscavam a orla da floresta. não ter outono. os bosques velhos e a caça. Como dizia o mais amável dos iletrados.. quando silenciam.. os nomes de pássaros. Uma benevolência — ia escrevendo.. não pude mais. entre estações e plantas subtraídas à sua tirania de artista. aglutinam pêlos e velam. Por entre essas aparências. alternadamente sombrio e radiante. periclita e prospera: "Que querem vocês? as tempestades são necessárias. algo me afasta deles. quando estão de veia para contar seus contos. nasceu tarde demais. isso não. e às vezes. às vezes. sutis. deste anfitrião imutável de edens mutáveis. Além disto. o olhar doce do bicho capturado. Mas para o meu simpático iletrado. chegada de uma longa estada nas terras em que a morna exuberância quase não conhece variedade: "A rigor. às grandes digitais vermelhas das matas de corte acima de Saint-Léger. pode-se dispensar a primavera.. igual a si mesmo. Certa firma cinematográfica italiana adquirira os direitos de adaptação para a tela do mais conhecido dos meus romances e contratara a vamp francesa em evidência na época: Musidora. aliás. Creio que era por causa do cineasta. suas pernas perfeitas e longas. Lá entrei eu em sua companhia. sem dúvida. Com o auxílio da reportagem jornalística e do cinema — quanto a este último. mantendo a porta meio aberta. saía correndo pelos prados — sem que eu ficasse sabendo por quê. como que recordando alguma boa piada marselhesa. em torno das fontes termais. ele deu-me provas daí a alguns dias. suprindo a qualidade. predestinada para o cinema — e os cineastas da Itália acharam-na troppo italiana.ensinou-me a suspender ninhos em achas de bétula escarvadas e com uma entrada redonda feita em furo. quinze gramas de açúcar por dia. Musidora. o Buffon!. Ora. encontrei sempre com que me satisfazer. humana e vernal. César Bórgia. visitei mal a Cidade Eterna. . sua chocante beleza preta e branca. envolta em românticos babados de tule cor-de-rosa. Obra como aquela. . ele quis autorização para filmar num jardim principesco. saía de bico cheio e. naquele tempo. Como eu não falava a língua do país. e pior ainda os museus. Ele ignorava Buffon. O filme ia rodando devagar. Uma biondinetta melindrosa seria mais de seu agrado. acrobacias de melharuco. vaporizada e parecida àquele ar azulado que paira ao nível do solo. abundante de maravilhas arquitetônicas. rígidas como rosas fritas. voltava ao ninho — onde entrara. emprego assim tão refletido da estação exuberante. chegava a Francesca Bertini. A artista trouxe para Roma seu humour corajoso. Da borda do ninho. reclamava nossos aplausos para suas proezas de melharuco. Na Itália.. sob a forma de um argumento de filme que uma companhia italiana me comprou —. a despeito de um velho guarda hostil que parecia uma figura de buxo e parlamentava. Apoiado ao cabo da enxada.. entre pintores e modelos. que ciscava diante de nós. uma bolota de manteiga.. abarrotada de obras-primas. de chapelão de palha de aba larga preso por um veludo preto. pão medido em fatias fininhas. De morena fatal. e às vezes trepando verticalmente com suas garras flexíveis.. um buquê de alcachofras novas e pequeninas. passadas no óleo fervendo. mas conhecia bem o melharuco e achou infinitamente cômico o cognome criado pelo mestre. porque à transparência e. um "turruititititit" vitorioso que. pelo menos. órfão de seus senhores e rigorosamente fechado aos visitantes. Então meu jardineiro curvava a cabeça e ria para dentro. verde e amarelo como a folha de amieiro na primavera. esquadrinhava cascas de árvore. e dizia: — Oh!. num dia de abril. a luz mudava de cor sem encontrar obstáculo à sua . em que estrelas de carne e osso mergulhavam. só por si. nem tento descrever.tive ocasião de passar quatro meses em Roma: de dezembro de 1916 a março de 1917. Ia comer em restaurantes assaz modestos e no da Basília Ulpia. mas não amarguras. deveria ter imposto respeito à nossa curiosidade. precipitava-se nalgum túnel de folhas mortas. ao mesmo tempo. e tal que. Hei de rir a vida toda. As restrições de guerra na Itália deixaramme recordações. contemplava um de meus preferidos: azul como o Pássaro Azul. o que marcava o fausto era o número de poltronas e mesmo o de pianos. . ora sufocante. Nos salões. Mas já se lançava ao nosso encontro um paraíso imperioso e compassado. às vezes de ponta-cabeça. viajavam nos eixos dos trens e montavam cavalos desencabrestados. meus amigos. aquela temperatura ensolarada. que era poeta. desde que me fornecessem. Recebi nas pálpebras o calor do sol malva. o tal Buffon. Automóveis de aluguel levavam para longe os intérpretes principais. Coisa de que. além do prato de massas. atirava-nos uma advertência cominatória. Remonto assim à época heróica do cinema. de onde saía esmagada. que sei eu? Roma submergia sob a umidade vaporosa de seu inverno e eu me deliciava com aquela doçura suspensa. . trabalhos de melharuco. ora igual à de Nice. Para a realização de uma festinha de artistas. intimidada. seus belos olhos. mulheres jovens da mais modesta extração eram mandadas a remendar a roupa branca da família nos terraços e balcões que haviam visto passar. atiravam--se de automóveis rápidos. à espessura de uma cortina de glicínias. que balizam as barraquinhas da avenida Seleya. . Madame. enfeitada ainda com uma folhinha no . "Foi vendido. em Nice. Criticar-me-ão por tocar num assunto penoso. Havia também as minúsculas tangerinas da terra. uma saliva clara. Havia aquela excelente guloseima italiana que consiste em alguns grãos de uva moscatel passados em caldo de vinho licoroso. abundante. Um construtor de edens havia. cascateavam até ao solo. um golfinho era uma palma d'água bipartida. A vivacidade da evocação nos torna um tanto covardes. irritantes. Cinco mil francos de antes da guerra. sobre uma armação vertical e escondida. enrolados em folhas de uva. O encantador assento de uma ninfa repousava ao centro de uma roda d'água. Eu só vi aquele e nem o pude esquecer nem me apaixonar por ele. Pensamos naquele reflexo.. sem erro. dos carrinhos cheios. Que gulosa. outrora.. que dispunha. com suas cabeleiras ralas. . em seu andor de colcíntidas. à vontade. longo e vazio! — E ali. como tudo que é malva. rosas-malva e dálias. a abrir-se sob um céu. Falar nelas. notei que não se via ali marca de passo nenhum. entre as dobras das pedras ao longo das sendas. .. Uma concha virava fonte. que nem mesmo rangia sob o pé. essas pequeninas lembranças. que já não eram senão açúcar. exudavam um óleo essencial. ali suspendendo-as e drapejando-as contra a luz. Talvez tenham outros jardins da Itália o mesmo encanto merecido. sacudido em soluços de sonho. dez dúzias de laranjas. um buquê de violetas e um raminho de mimosas. como eles.. que criança mimada embarcara seus sonhos num barquinho assim? Entrei. — E por quanto? — Por cinco mil francos".. quase incolor. distribuído massas e cores. Mas a necessidade que temos de laranjas vai além da cupidez. Outro efeito de onda e chuva vinha dos salgueiros chorões. em sendo arranhadas. mumificados e capitosos. para que se visse. Aquele jardim devia demasiado a uma vontade humana segura de si. explicando quanto vinha a calhar um lugar daqueles para folguedos coreográficos. inumeráveis.. quando faltam. fontes que não estancam sede alguma. novas e paralelas. a mesma que saúda o limão cortado de fresco. cristal retorcido. É uma boa ginástica mental. damascos-topázio. de uma transparência vítrea como a das pedras semiduras. ao longo do mercado de flores. amêndoas-calcedônia. em Cannes. e paulóvnias. uma nuvem de cerejeiras perfeitas em sua brancura. cerejas-rubi. com uma carga de frutas em conserva a transbordar. com pedaços de céu intercalados. entrega os pontos à idéia de uma laranja fresca..... na rua. Seguindo por aquelas aléias de areia farinhenta. figosametista. exaltava-se o cineasta. Desejaríamos sopesar. aléias em que só anda o passarinho. e árvores-da-judéia. galgou o patamar esboroado e saltou de pés juntos sobre o flanco de uma divindade ali deitada.. sob a tampa.. como me acontece diante d'algum vale. inspirado — será o desfile do cake-walk.. a mordente pimpinela. Temos um desejo terrível daqueles cestos redondos que perfumavam nosso quarto de hotel e que mandávamos aos amigos parisienses — a vendedora acrescentava.. moldando-as aqui. inchadas no que poderia ser a sua linha do Equador e que. ao longe. é o bastante para suscitar.. como serpentes.claridade viva. uma ilha de lilases muito pálidos. através delas. ou de uma herdade feliz. Ao meu lado. a azedinha crua. na luminosidade de ribalta que. — exclamou ele. Atavios de moda tricentenária mantinham-se ainda em pé. Aliás. Havia frutas cristalizadas no açúcar. portadores de folhagens envernizadas e tangerinas.. Desejaríamos comprar uma dúzia.. gramados azuis ou violetas. e não sem um certo sadismo? Responderei que há bastante tempo somos levados a olhar de frente e com firmeza os bens de que a guerra nos priva.. O surpreendente era que tudo ainda lhe obedecesse. vi um barco de açúcar colorido. irreais. em nossas mucosas frustradas. Desejaríamos ver laranjas. eles vendavam e desvendavam outras arquiteturas vegetais. levar para casa aqueles galhos cortados. Um filete d'água. a mesma pessoa que não se abala diante de um tablete de chocolate. De maior mobilidade que as glicínias. jorrava da boca de um sátiro.. um braseiro de marmeleiros-do-japão. um pedaço de paisagem estremecendo. Caberiam. ou de uma casinha de guarda--fronteira. da natureza. enrugados ao sol. O senhor. cinco mil francos de 1931. que olhava Roma do alto de um terraço morno. Como são ácidas. subia aos rostos inclinados. Ali.. Correu à minha frente.. com suas águas-vivas. impregnadas de açúcar. duas. Um dia. melões-jade. persistia em dirigir aquele jardim. dois passageiros. No tempo em que tínhamos laranjas. Os cachos longos. morto há muito. Que ninguém lhe dê outro crédito além deste. lua amarela de jardins e tempero de algum doce caseiro. já às dez da manhã — quando ainda a erva primaveril nos refrescava os tornozelos — elas estavam mornas. que se enche de mel das mais belas horas estivais. abundantemente açucarado. Intacta. A tunisina é oval. uma árvore. e as abelhas levantavam-se empoeiradas e subiam de novo às flores suspensas entre . anquilosando o melão. uma tunisina não é totalmente idêntica a outra tunisina. à primeira vista. Se um de nós. açucarando-a toda.. que. Confesso que sou destas. no restaurante. Morna a fruta. e o matiz convida a descascar mais outra laranja e mais outra. de garrafa para garrafa. recorrer às laranjas do Brasil e às espanholas. sua casca exala um perfume reminiscente de flor de laranja. Afinal. Debaixo da árvore é que deve ser comido e quem dê valor ao meu juízo. Uma laranja. pedindo "traga-me uma laranja" como se no mundo não existisse mais que uma espécie.que. avulta um pouco em roda do ponto de suspensão e enche a boca com um suco sem insipidez. anestesiando o morango e transformando uma rodela de abacaxi numa fibra mais têxtil que comestível. como um planeta que se esfria. Muito bem-vinda era ela. quase impedindo a passagem. É este o momento em. a linha amarela deixada pelo desperdício de laranjas maduras demais. misturando-o ao do limão recém-colhido. uma única e indistinta multidão de laranjas? Escrevo estas linhas no mês de fevereiro. Que pensar de uma fruta que se afasta. Assim como os vinhos de lavras muito típicas. Pois não os ouvimos. Opulentos laranjais de um dono a um tempo faustoso e prudente. a invadir o céu como incêndios. Mas a Espanha guarda para si as frutas melhores e nós. De cor intensa. . por seu olho único.. que horror e sacrilégio! — sobre gelo picado. rosas e rouxinóis que. péssima solução inventada pelo rude paladar americano. no momento em que se iam as cerejas e os morangos. acusamos a todas as laranjas da Espanha de nos deixar um ressaibo de cebola crua. nos laranjais do paxá Si Hadj Thami el Glaui. Não cessavam de cair pétalas de cera. inumeráveis. trazendo consigo abelhas tontas. a perder de vista. seu perfume derramava-se pelo chão. como que por discrição estacava. Honra seja feita antes ao figo. o servidor marroquino estendia o braço ao horizonte e ria para nos fazer compreender que. Águas puras. mais ao longe.. No último dia. nos anos de paz. molhando bem a boca e. vinha a "philippevillé". ao mesmo tempo que as grandes ganas de beber trazidas por março e abril. saboreamos as tunisinas. rebentavam a cantar todos de uma vez. a laranja local é apenas ornamento de pátios floridos. Marráquexe nos deu ainda mais. sem razão. dum ácido adocicado. ' Depois da tunisina. A breve e boa estação para nos fartarmos de tunisinas vai de dezembro a fevereiro. comprávamos cestos cheios da feia e pequenina laranja de verão para espremer sua carne pálida e coar o suco. desciam juntas.cabo. A educação dos ocidentais ainda está por fazer. que assim água e fruta parecem melhores. secreto alinhamento do que. o doido consumo de laranjada trazia a Paris e às praias uma laranjinha tardiamente amadurecida no frio dos planaltos ibéricos. parecia desordenado e provocador — quantos cuidados produziam e protegiam aquelas colheitas! Tombando do alto. uma safra. um só pranto de goma deliciosa. e laranjas.. a certo sinal noturno. Vinha depois a "palermitane". fazem diferença. inflando-se de orvalho noturno e chorando. que será — quem sabe? — a melhor de todas. era-me necessário. fria a água do copo. e que paralisa o sabor. auroras precipitadas. a elite das laranjas. e mais outra. Grimpando o sol simultaneamente com o termômetro. mais tarde. debaixo das unhas. se o ano foi de bastante sol. às vezes com uma face pintada de vermelho vivo. solução que serve para tudo. Pois se o limão provençal é digno de umedecer peixes e mariscos. não o ponha nunca em lugar fresco nem — oh!. e pouco importa qual seja. esperavam-nos outras tangerinas. . A hora que passei num laranjal marroquino está ainda tão viva na minha memória e na minha gratidão como se eu ainda conservasse. para que saibam todos ter chegado o instante de sua perfeição. do calor que a formou? Sublime é o damasco colhido e comido ao sol. que não a iguala mas pode substituí-la. que passam como um sonho. mais para miúdas. a mim. e uma vez que ao do Palais-Royal falta água desde o começo da guerra. como os pesos de papel. A água de Aix. continua sempre pura mas. nadavam camarõezinhos d'água doce. Segundo me asseguraram. em espírito. malhada como cavalo pampa. um fundo de garrafa de "soda". possuo o que me deu. no seu céu invertido.. uma vez por ano. predizem o bom e o mau tempo. reverdecendo as árvores. num esforço vão e cristalino. saltar e ferver. deixa-se beber em abundância. A uma palavra do guia. se bem que já não possua jardim. tombava uma laranja — longa e pesada laranja em forma de ovo — que. a meninazinha trigueira. Por que havia eu de desistir do que sempre desejei? A fonte de Jean Giono é. sob um céu já empalidecido de calor. Não se deve nunca mostrar aos céticos os tesouros devolvidos pelo mar. . cães de caça. com seu cântaro. Brotavam da terra natal em borbotões pequeninos.. raposas e pássaros. num prado. outra era uma jóia meio azul a tremer numa bacia de pedras toscas reunidas em torno e. muitas outras fontes fixaram em mim o aspecto dos jardins que eu amei. durante o trajeto Paris-Saint Tropez. o braço de bronze sumia. tendo recebido essa promessa diante da mesa bem servida em que se festejava meu septuagésimo aniversário. intumescendo as frutas e brincando sobre as areias. mamute com barba de capim. Num caminho da Picardia. a cidade. Queria uma fonte no meu jardim — ainda a quero. outra. talvez. para reaparecer ofertando na palma sombria uma laranja suculenta. nenhum se desfez. salta agora dentro de quatro paredes de cimento — presente da humana previdência. a velha senhora com sua bilha. Estendesse eu a mão para os pomos de ouro e. vi a água surdir. Mas eu não possuo somente bens imóveis. de vidro. Ultimamente. Ora. Não longe. perdeu completamente o sangue frio e pôs-se a dar voltas em torno de si. Por sua vez. o rapazito com seu balde. porém. A fonte romana é um elo da minha cupidez: cada vez que.. Outra escorria com música da margem escarpada da estrada. generosamente. durante a sesta do cultivador. como uma jóia de vidro polida pelo mar. Sua fonte reuniu-se aos meus tesouros diversos.as frutas. nada o convencia ou acalmava e só . apertando a cabeça entre as patas dianteiras e recurvando os rins como uma sereia. fresca e doce. "Dou-lhe a mais bela de todas as minhas fontes". guardadas pelo olho aberto dos miosótis e cardaminas e pela salamandra grande. O Aguedal em Marráquexe é um espelho vasto e tremulante. nodoso e negro. limitava este paraíso — aliás bem guardado. quase tudo quanto perdi: mesmo os mortos que me são caros. Quantos anos. Com pregos de prata. abria-se e sangrava um sangue rosado. debaixo da erva e era tão perfeitamente redonda que somente uma coroa de narcisos tão redonda quanto ela revelava sua presença. ele saberá que. Não há bastante murmúrio num jardim sem fonte e eu ainda não arranquei minhas saudades das nascentes de minha infância. imitando os devotos da fonte. a mais real. tocando o solo. "Sabe o que é isso? disse-me um amigo malvado. caminheiros. o braço de um anjo marroquino rasgaria a folhagem brandindo um pau. do qual cada pêlo canaliza uma gota d'água. eu a quis carregar dali para plantá-la no meu jardim — mesmo em se tratando da velha fonte de Salon. recuando. o outono cobria-a de folhas mortas. Jean Giono prometeume uma. de todas. Dos reflexos que lá vi estremecer. ele encontrou uma grade de aplainar terra que repousava ali. O cavalinho malhado. remirando o céu. E. perdiam-se assim que nasciam e só eram conhecidas dos pastores. Nisto me pareço com um cavalinho malhado em que andei. Veremos. disse ele. Alguns são tangíveis.. . só porque corria a água milenar de uma fonte? Eu estendia minha taça à água antiga.. num verão de antanho. Uma ficava no bosque. no meio dos quais se contorcem flores e bactérias num frenesi fixo. Se estas linhas atingirem o homem que estende seus domínios no flanco das montanhas. virados para cá ou para lá.. com seus furos cor-de-rosa. num espaço estreito. que era parisiense. como os grãos de aveia com barba de camarão que. parei em Aixen-Provence. margeado de verdura.. Uma cidade quente enxerta em nós lembranças de outrora ainda mais queridas que a água abundante que a enriquece.. só me agradam fontes selvagens. Possuo. como propriedade minha. — É um caco longamente embalado pelas ondas. cuja cor iguala a da água-marinha. uma embriaguez ligeira traçou para mim no fundo do copo a imagem de uma fonte cintilante e pontilhada de luzes e a de um Jean Giono tão louro quanto o vinho e pródigo em fontes que eu desejaria levar comigo a toda parte. das ovelhas e das cascatas. Apanhei-o. Não faz muito tempo. no XVI distrito. quando chegar o meu fim.. ela queria vender seus terrenos.. dálias róseas e vermelhas. tremendo. — Léon. não podia destacar da grade ausente o olhar de seus grandes olhos. no mesmo caminho e no mesmo lugar. — Em que rua você me mostrou. — Que foi? Uma cobra? — Não. com aveleiras. o horizonte celeste e a pequena terra chata que se descortina de cima de um balão livre.. tanto eu como ele. Quantos jardins fechados na cidade. Procurei aquele cálice tubular com sua corola rendada. como é que você chama aquele negócio pendurado ao alcance de sua mão. muitas vezes eu fui esse cavalinho visionário. graças à proprietária. as altéias róseas e violáceas.. Léon Barthou. tantos jardins foram abolidos ou tornaram-se irreconhecíveis. o cavalinho malhado virou mármore. com tílias. Batiam-lhe as narinas musculosas. vermelha e malva que compõe com maestria o jardineiro da cidade. um disco que é uma mesa e outro menor. aquela coisa que parecia um minhocão e que você apertava de vez em quando? Continuo a perguntar. . tantos bairros. Quantos jardins prisioneiros em Paris revelaram--me seus segredos? Eu não roubaria uma flor.. Tirando o medo. o pentstémon toca a parte que lhe cabe — e muito agradàvelmente — numa orquestração violeta. Nem sempre é em vão. contêm um pouco de verdeescuro. Voltando a mim como que amansado. com quem tive uma amizade de alguns anos. Ainda agora. acontece-me reconstituir alguma flor que outrora me intrigara. o monstro.. E agora não o largo mais. . um pouco de grama e uns alfeneiros escassos em flores. e herborizo ao acaso. nos dias ímpares. Jamais acabaria de recensear o que o acaso me confiou. de seus queridos móveis e de sua gata. No caminho vazio... Ainda sobrevôo Versalhes a pouca altura. possuí. gerânios de fogo. raramente subtraí uma fruta. O ruído dos saquinhos de lastro jogados no Sena. A vida tem que se esforçar muito para me despojar do que é meu. Passando ao segundo pátio pela brecha do muro. Bizarramente. Mudo de espetáculo-recordação. Léon. e inventario os instrumentos atirados à matroca no grande cesto de piquenique que é uma barquinha de aeróstato. — Que é que há? — perguntei.. e uma súbita e insensível ascensão rouba-nos os jardins prisioneiros que. apanhamola por uma sílaba e trazemo-la à luz toda gotejante de mortal obscuridade. sua cor de cereja. tenho um amor indiscreto. eu percebera um jardim velho. quando o mais antigo de meus amigos.. pelos jardins fechados. com canteiros de legumes . aquele jardim tão cuidado e florido que lá de cima parece almofada de tapeçaria? Ele não responde mais.voltamos para casa fazendo uma volta enorme. como asa perdida. preferiu o ininteligível repouso dos mortos à tranqüila companhia de seus livros. que é um chapéu de criança.. foram meus por muito tempo. uma fachada de casa provincial orientada para o sul e um resto de terraço lajeado. até o dia em que. Que surpresa posso comparar à descoberta que fiz. os demolidores me expulsaram de um prédio fundo cuja fachada se abria para o faubourg Saint-Honoré. junto com ele. O mesmo. seu nome. chama-se pentstémon. a não ser que ele não responde mais. esquecemos a grade. mudava . Ao fim da rua Jean Bologne. alguma pétala nos pavimentos de Paris.. nada mudou. três degraus de patamar. vendo os mosaicos do parque e os espelhos.. continuo a contemplar. em que a grade gravara sua imagem de espantalho triangular. tantas ruas. sobe até nós. à força de os visitar. por trás do seu rosto trigueiro de habitante do Béarn. Mais um pouco e lá ia eu por cima dos varais. um pé-de-vento nos manda de volta-a Paris e vira a sombra das malhas da rede sobre o vento do balão. todos eles. Ã força de me curvar sobre uma imagem da memória. estirando-se para a luz. — Lá. Assim recuperamos do abismo a palavra que ia sendo tragada.. as últimas rosas. três mil metros de jardim inculto. mas.. Também. . Nos dias pares. Na Rue des Perchamps. — Ali — disse o cavalinho. de um peristilo "diretório" em volta do qual enfileiravam-se macieiras? Davam fruto? Já era coisa inesperada que depusessem. o lanígero agérato que hesita entre o azul e o lilás — e o pentstémon: assim será até novembro. azuis como tinta. Depois. a não ser de uma vez por todas. se for suave o outono.. Gladíolos vermelhos e róseos. debaixo do balão.. ele via tão bem o fantasma da grade que num minuto se pôs ensopado de suor. desmanchando aqueles cabelos que eram. eu esperava que aparecesse. Quando Francis Jammes. pintou a não ser como J. de uma obsequiosidade suplicante que se lhe pintava no olhar. são os que melhor se ocultam. das Trochilidés de Lesson. de volumes botânicos berrantes e desemparelhados. À sombra delas. em ocasião nenhuma. Mareei Proust ganhava posições mais obscuras e difíceis de forçar — e de lá nos espiava. surgiu-me à frente uma espécie de garçon d’honneur embriagado. entrar para o convento. Jacques-Emile Blanche. A noite fazia-se aurora. após diversas peripécias.-E. do enxerto. emprestava-me o seu jardim e eu não o utilizava. enquanto mudava sob a influência do cansaço e do álcool.-E. murmurou uma convidada. para estar acordada. Os que passaram noitadas com Mareei Proust lembram-se de ter visto enegrecer sua barba entre as dez da noite e às três da manhã. começado muito tarde e prolongado pela ceia e pela conversa. aquelas suaves faces pálidas e persas. com ares finórios: "Vender meu terreno de Auteuil? Não sou tola!" Isto durou anos. da cozinha e da criação. de boa vontade. cobria a cabeça de cinza. e um grande tufo de cabelos negros aberto em leque no meio das sobrancelhas. ela assinou um contrato e eu perdi o parque onde ia colher avelãs de casca vermelha e rosas degeneradas. todo de miosótis particularmente azuis. estão ao meu alcance.. Atenho-me. para duas telas igualmente ambíguas: a deliciosa pequena Manfred. o pecador que com o peso do seu gênio fazia vacilar o frágil rapazola de fraque . impregnado de uma cortesia excessiva. com a boca estreita e os olhos muito grandes. Mme Millet-Robinet e sua suave ciência caseira. o queixo e as faces escurecidos pela barba que renascia. encontrarem-se meus haveres . A moléstia. de l'amaíeur por Lemaire. Mareei Proust ainda estava em seus dias melhores. que ar vulgar. estava antecipado. Eu me recordo de um jantar do Ritz. de uma vitalidade que fazia medo. Num dia par. . Ocupava-me então de culturas diversas. eu olhava para o alto. De trás de sua primeira linha de defesa. porém. Blanche lhe dizia a meia-voz. possuía. Puck.. das Roses assinadas por Redouté. . devastado mas poderoso. Blanche. Muito ao contrário. Blanche. empalidecendo ao sabor de uma conversa despretensiosa e sedutora. Francis Jammes estaria mais perto da verdade. num prefácio que muita honra fez ao primeiro volume que assinei. serpenteava.-E. aos progressos agrícolas e caseiros do século passado. das quais todos diziam que haviam conhecido a princesa de Lamballe. o terceiro está no museu de Barcelona. a luz fria da vidraça grande e a imobilidade esmagavam-me de sono e.. Blanche. Só o retrato de Mareei Proust difere do resto de sua obra por certa afeição à simetria. em tom de censura: "Meu Deus. Durante as sessões de "pose".-E. conduzida apenas pelo espírito limitado e fantasista da minha juventude. agora que seus donos já não existem. "Oh! não é ele". Fosse eu ainda proprietária de alguns metros quadrados no campo. se J. sim. J. encerrados por duas margens de silènes cor-de-rosa. para admiração minha. sem pejo. mais ou menos aos dezoito anos de idade. como o atelier do pintor. o próprio caráter de sua fisionomia. queria morrer. fantasiada de querubim e Mareei Proust. duros como a barba negra que despontava de novo logo depois de raspada. virado para o norte. pela exaltação de uma beleza que foi real e durou pouco. Os que parecem entregar--se a todos. Agora é que por lá passeio em pensamento. amante da distinção. de medo de o estragar. me atribuiu. Dá-se o caso de. Jacques-Emile Blanche destruiu os dois primeiros. do L’Herbier. nem existe o canicho cor de café com leite que. La Maison rustique des Dames. o trabalho e o talento remodelaram aquele rosto sem rugas. sensível. e dedicaria meus domingos às aplicações da eletricidade e da mecânica." O jardim de~ J. um riacho figurado. com a gravata branca em desordem.. como livro de cabeceira. densos e iguais. mas sem o autorizado guia mencionado pelo poeta. algumas daquelas belas árvores disseminadas em Passy e Auteuil. Lá pelas quatro da manhã. adornado por uma ausência de expressão perfeitamente oriental. não sedosos e finos mas grossos. minada pelo álcool. Hoje em dia. era um homem quase jovem e encantador. Ao lado da Grande Pomologie.de idéia e dizia. Este riacho guiava os visitantes ao atelier em que posei para três retratos sucessivos. Mas esse momento não veio... o galinheiro se despovoou. nós só comíamos frangos desconhecidos e os dois barracões das aves viraram estufas em que cochilavam. mal que nos veio da América com suas duas maçãs. quem canta e quem planta a pêra de Messire-Jean? Quem sabe que. suave como o nome. amadureciam desde julho outras peras precoces. quando mais não seja para aprender e reaprender com ela nomes esquecidos e o código de uma vida rural pura. Sua diversidade. e à "passecrassane". A couve desonra a casa que a cozinha! Restam os ovos. conservação. uma sabedoria no plantar. Mas. negligenciados após a morte dele. no inverno. e os ovos rosados e mornos passarem do ninho à mesa e os pintinhos subirem-nos aos joelhos. Ervilhas? Se não as colho eu mesma. e uma vaquinha nos subterrâneos do Palais-Royal — nem é bom pensar. desenhada de viés sobre um modesto domínio que foi meu durante uns cinco ou seis anos. minha mãe. desolava-se de não poder ser vegetariana. era devida a muitos objetos e ao uso que deles se fazia. excetuando alguns vagões de fruta para cozinhar. que nos faz falta. nova à força de ser desdenhada. Calville. maçãs e Calville. Quando tornarmos a ver peras. na extremidade dos galhos delgados e desnudos. nem sequer um desses pombos que mentem ao renome que têm. não gosto de favas. tua vivacidade em sair do anonimato. com um breve intermédio de "beurré-Hardy" e umas poucas "doyennés-descomices" para os afortunados deste mundo? O século XIX aproveitava melhor nossas riquezas. . Vi minha mãe chamar no pátio as galinhas e as galinhas bicarem o pão e o milho em suas mãos. Mesmo que isso arruíne minha reputação. Faziam um só furo pequenino. enfim. E põe-se logo a pomologista a "selecionar". Não foi somente a bonomia de uma antiga existência que perdemos. "Meu Deus. Levantai-vos.. e não esqueço as maçãs. não como. a vermelha com seu carmesim vigoroso. ela esconde uma carne molhada e desabrida.de novo numa gaveta e nalgumas estantes de biblioteca. depois trabalhavam lá dentro e a pêra conservava sua forma. pouco folhudas e escamosas. teu amor castelão pelo campo. tenho reconhecido os seus méritos. Encantador fim do século XIX — quanta graça puseste no saborear. bulbos de dálias. Sido.. Quanto a criar coelhos na adega. após haver pertencido a um velho senhor. é batalhador e duro. também eu o faço. Enquanto isto. se começo a recordá-las. Um grito de angústia marca na minha memória o fim do galinheiro. Quantas vezes esmaguei na mão o aeróstato amarelo cheio de vespas? A "cuisse-madame". gemeu minha mãe. Mas. batatas de jacintos e tulipas. porque têm cara de larva de besouro. deitavam-se gatos nos ninhos de vime trançado. tanto pelo capricho como pelo judicioso conhecimento que lhes dirigiu a escolha. um sabor realçado pela agradável acidez típica? Mme Millet-Robinet reconhece os altos méritos das "Messire-Jean" cor de muralha. desde então. tua assinatura. acabarei caindo em lamentações e vestindo luto pelos doze centos de árvores frutíferas." Eu não ficava escutando o evangelho segundo Mme Millet-Robinet. de ouro rubro e.. . muito de molde a agradar-me. ou crocus. Não saímos mais disto. A propósito. Sob as "Messire-Jean" mais altas. possui uns olhos cruéis. maçãs do Canadá. a manteiga e as frutas. Depois do que. sob uma forma que se avizinha da esfera. comparar. a vermelha e a branca. já velhas quando as recebi — e variadas. na verdade. sombras de minhas pereiras! Quem conhece.. e que as vespas sugavam astuciosamente. Mas quem lhes fará merecer a preferência das multidões? O vento rude do Franco Condado embalava minhas peras cinzentas de cabo fino. separando-nos dela. não como. porque sabem a brejo. Nem daqueles nem destes. provinha o que aprendemos a chamar de seleção. vestida de um cinza-ruço. esperam que virem chumbinho.. Os dez hectares. aqui também. sua insipidez sadia de legume cru — a branca com sua água doce e ácida. Mme Millet-Robinet diz. Encontrei sinais de ti. se não fosse colhidas a tempo. e cheia de juventude — tanto temos envelhecido.. pois parecem percevejos". matar a vermelhinha!". "Crosnes. vejo-lhe ainda a forma. a verdade é que jamais criei um só animal para comer. "Lentilhas. pois o pássaro de Vênus. quanto à lendária fidelidade à pomba — mais vale deixar que o leitor conserve as ilusões. dizia ela. um pouco mais pessoal. escolhidas entre as espécies que Mine Millet-Robinet chamava "dociles au . esperdiçar. galinhas no sótão. testemunhavam ainda um coquetismo de proprietário. transporte. e a discutir calibre. será que Paris se vai resignar de novo à "duchesse". que se tornavam logo farinhentas. "Nós fazemos com elas um Kirshzinho caseiro. Quanta riqueza em nossas mãos. munida de uma laminazinha curta e lisa. Quanto bem gratuito. É um serviço que se pode fazer bem instalada e sentada no chão. para que as galinhas bicassem as abóboras — ou castanhas d'água — que mancham a terra de escarlate. Para os enxertos mais delicados. Uma vez colhidas. repousado. sucumbida ao corte.. eu estava munida de maçãs para todas as estações. à ameixeira seu pêssego ou seu damasco. plantei setecentas mudas de gerânio-hera corde-rosa. as pétalas das amendoeiras. No ano seguinte. Havia em julho tão rubras.. Se mais me lembro dos rebentos. reverdece e. enrugadas e comestíveis. Para nos apegarmos a uma região.cordon". suba à cabeça do amador de jardins. os marmeleiros.. o outono com os aguaceiros que fazem aluir colinas. iam todas de mistura para o tonel onde a aguardente elabora sua força sorrateira e seu sabor concentrado. tendo à destra o plantador e movendo-se como fazem os paralíticos das pernas. e depois adotado pela árvore que há de regenerar — posso assegurar aos que o ignoram que é com um grande e orgulhoso pulsar de coração que se saúda o momento em que o renovo dormente desse enxerto. de humor inconstante. na França. o que vale não é a estação bela. tão magníficas colheitas de cereja que as frutinhas secavam sobre a relva. pois concedia à saliva humana um poder cicatrizante e dizia: "Ter mão boa. Acostumada ao seu bom acolhimento e à sua severidade. ombreando com a ameixa-de-porco ou com a maçãzinha ácida. com seu mistério. O enxerto talhado de esguelha. desperta. Entre um despontar e um pôr de sol. arrastando para baixo a terra arável.. Nos dez hectares que me caíram sob a guarda não pretendi regenerar as árvores frutíferas com enxertos audaciosos e podas de copa inteira. nos bosques. é que fui testemunha de seu esforço e boa vontade... os "monsieurjaunes" e os "damas-violet" estivessem enfraquecidos e chorassem resina. naquela encosta. as "court-pendu". e a primavera precoce. é preciso fazer o curativo. . tanto a Páscoa batida pelos ventos quanto o frio cortante de novembro. as ameixeiras ou o pessegozinho peludo — tudo isto. A muda não é tão emocionante como o enxerto e não comporta a magia. as "mirabelles" choviam nas orelhas das gatas e o cão abocanhava as melhores. que inesperadamente gela as casas de paredes finas. ele chupava esta lâmina freqüentemente. a muda se decide a viver. constante. "Nem os melros as querem". tornado tenro numa obscuridade úmida. Filhas inumeráveis do Franco Condado. afirmando seu paradoxo. sempre me parecesse único o momento em que. dos bulbos." Dizia-se isto no tom de antigamente. as turvas estações intermediárias. e de ameixas." Pois a reza. O homem que fazia enxertos trazia sempre consigo a faca de enxertar. assegurava meu vizinho. as pedras de granizo e tufos de mimosas.. Com as "doux-d'ar-gent". embora as árvores de "reine Claude". Talvez me faltassem. com suas borrascas. o resultado foi uma beleza... tão fáceis de encher. pois afrontei. na Provença. com uma face coberta de sardas e a outra verde como o âmbar.. abatendo as colunas de fumo e varrendo. caídas da mão de Deus na do passante. não desfigurei suas pereiras-roca. embora a arte do enxerto. raízes e mergulhões do Condado. Mas o prazer de escurecer uma vasta tapeçaria é menor que o de variar um bordado multicor. é a má estação! Diz um ditado camponês: "Não há cura para um mal. Os lódãos e as sorveiras. que não tenham marcado as quatro estações". nem desbastei mais que o . que cochilava na haste estranha. depois esgueirado na fenda da árvore selvagem ou já velha. não é tudo. de marfim. habituada a descolar as cascas sem ferir o alburno e poupando os "olhos". frutas e bagas sem dono. a nos compensar dos anos pobres. impõe à roseira brava sua rosa. as "belles fleurs". abrindo seus verdes canais à ascensão da seiva e empertigando-se em arrancões imperceptíveis. que zombava da abundância e da facilidade. para que me sentisse sòlidamente ligada à beleza do Sul. . rebaixados ao papel de cerca viva. sob suas formas conjuratórias. um tom de beatitude meio desdenhoso. depois atado com resinas e tendo o ramo enrolado em trapos e ráfia. auxiliada somente pela minha jardineira.. as aboboreiras inclinadas sobre o muro dos galinheiros.. O que não impede que. se insinua em toda parte. Um duro clima sem surpresas velava sobre meu torrão do Condado. nos meus jardins. depois de perder os sentidos. a espinhosa groselha selvagem.. em forma de amêndoa.. Tudo isso me vem à medida que escrevo. em volta da moradia. bom para o canto da chaminé. num jardim de amador. Às vezes. do alto de sua Maison rustique. E não está. em dias de sol. . e mais uma quantidade de flores de borda de canteiro. segundo deformações regionais. conhecem? Não. meus dois oráculos concordavam em banir a facilidade e só me restaria segui-los.estritamente necessário suas árvores centenárias — havia lá espantosas acácias. Que digo? O jardim. por assim dizer. quase sempre. semelhante ao pó de café — havia lariços melodiosos. à beira dessa orla. as bordas de "thlapis" eram substituídas por uma planta que se parecia traço por traço à orelha peluda de um burro branco. também chamada coroa imperial. que o primeiro lugar — honra seja feita aos que o merecem — caberia à árvore de peruca. "corylopsis" e alquequenjes veiados como pulmões. armadilha para jóias de chuva e arco-íris. no verão. negros pinheiros. pelos ciprestes de bronze.. Aliás. Não é terrível não se ter jardim. como se diz — muitas vezes apenas introduz confusão e espanto a um interior pacífico. uma sem-cerimônia ligeiramente irlandesa vai semeando pelos bosques "dafodils". Mme Millet-Robinet por deferência. trazer o sinal da ordem. era preciso uma cercadura. enfim. uma poeira de pau consumido. brancas. O estilo é. cuja realidade absolutamente não importa. eu que apenas passava. A araucária continuou a gesticular com todos os seus braços simiescos. as afetações e rotinas de uma horticultura de época — tudo o que foi banido por outra tradição pautada pelo cimento e pelas lajes unidas por linhas de grama. no inverno. árvore nimbada de nuvens vagamente róseas. E quando. os arredondados. toda de pereira negra. às labiadas selvagens e ao verbasco. o Rhus cotinus e a groselheira infrutífera tomam os principais lugares — quem evitaria a cena tilintante de favas vesiculosas e a altéia violácea? E que inovador ousaria impedir a passagem da fritilária. Compreendam apenas que. um tanto insípido. croco-açafrão e "snow-flakes". E não encontro mais nada para dizer deles. uma pessoa como eu teria predito que. em roda de um maciço. . arredondava-se um jardim de tal forma concebido. e data do dia em que se torna agradável para nós. de flores cor-de-rosa. de cachos amarelos e a da cássia estéril. a menos que o aniquilemos. nos jardins. . os átrios. pois. mas bem estabelecido dentro de seu plano de caminhos. ocas como chaminés. as suavidades de desenho. Sido dizia mais simplesmente: "Só gosto de ervas daninhas sobre o meu próprio túmulo". numa terra bem cultivada. Certo crepitar de grãos secos num saquinho de papel basta-me para . donde chovia. Em matéria de jardinagem. e abrindo caminho. o mau gosto dos que nos precederam. No entanto. vocês não o conhecem mais. o Rhus cotinus. O grave seria que o jardim futuro. pois. . é que avançou pelo interior da casa — e eu lá entrei. tudo o que antigamente florescia. bosques. chamavam-se "thlaspi" ou "théraspi". Pois. acabará por constituir o que mais tarde será chamado de estilo. levada àquela casa. Ele trouxe uma mesa oval. a paisagem arrumada pelo velho senhor nascido antes de 1830. Por que teria eu lesado. um tanto pesado. à borda de uma platibanda.Se eu tivesse um jardim.. enquanto aplica ao seu terreno um espírito produtivo. teia de aranha para orvalho noturno. esse milagre burguês. com seus capítulos alaranjados e seu cheiro de má companhia? Ela própria atraía para junto de si uma população de píretros cor-de-rosa e brancos. Todas as cestas devem ser bojudas". peruca de anjo. atormenta-o engenhosa e pacientemente. Ã sua volta vieram agrupar-se móveis que não eram antigos nem raros. . Rhus cotinus. acompanhando suas pegadas. estivesse fora do meu alcance. essas telhas em forma de escama eram ainda protegidas por uma orla suplementar de arcos de ferro. Sido. o estilo de uma paisagem restrita não pode ser desarrumado como uma simples mobília caseira. por amor. as pérgulas e os pátios. de olhos vendados. aquele cenário um tanto acidentado e ultra-rebuscado.. ligeiramente odorantes que. e para um bonito terraço redondo. mas de que eu gostava. senão que o excepcional — o "achado". acontece que já não tenho jardim. Ora. dessas que se pode alongar. não continuarei a descrever o que foi tranqüilo. Que teria dito Mme Millet-Robinet de uma incúria imitada com habilidade? Bem que a previra. se. sua presença inelutável garantia a da groselheira ornamental. tílias prateadas que o verão circundava de perfumes e abelhas. outra orla de telhazinhas arredondadas. da soleira de sua decente floricultura. Não. Quando estavam enfraquecidas.. arcos de pedra e vistas? Um homem que. ela declara: "Tudo deve. laborioso e largo. uma orla e. e nela é que eu comia e escrevia. a água um tanto amarga. Enfim. Uma campânula.. Mas não há pressa....) que realce diélitras em pingentes. sob o aguaceiro que vem do oeste com a maré. aristolóquias em tinas.. me respondam com sua inofensiva explosão de gás. cruzes de Jerusalém em cruzes. Será que já não as tenho? Terei muitas outras verbenas em rosáceas. em Limoges. acinzentada e opaca. tenham retomado seu lugar o sonho. flor de dezembro. Seria mesmo preciso um poleiro de sarrafos para a cabeia violeta de língua de dragão. Mas se eu for morar perto de um lago. Um cajado de São Tiago para me auxiliar os últimos passos de viajante. agróstides em nebulosas e cravinas na baunilha. penso no rouxinol. eu bem que recolheria alguns. graças a Deus. de saxífragas. mais apaixonados que a tuberosa. em vez de dafnes. dissimulada e imensa. As sementes da nigela são pretas e brilhantes como pulgas e durante longo tempo. mas dotada de um grande poder de sedução — quando penso na "chimonanthe". A "chimonanthe". bom sujeito mas meio trouxa. aliás. o calor e a gratidão que talvez as impeçam de morrer. E. uma digital para enluvar a raposa — pelo menos. A remo? E por que não a abóbora-a-motor? Porque o melão de que falo — trepa. Dar-se-iam bem com aquele outro espanador prateado. desde janeiro? Um bosquezinho de bois-gentil. uma dália crespa como um morango de Clouet. (Vejam os textos de Mme Millet-Robinet). o áster para estrelar minhas noites. à meia-noite. umas na memória. tremoço em espigas e damas-da-noite insones. já me aborrecem as daquele rosa avinhado. Devo chamá-la dafne ou bois-gentil àquela florzinha pequenina. açucarados e saborosos. A cercadura. Louros-rosa. para a poligonácea e para o melão-a-remo. mandaremos para longe o ginério e plantaremos nos vasos os sufocantes lírios brancos. Fica na ponta do galho. nem que fosse só para lhes devolver o antigo nome: disciplinas-de-freiras. parece banhado em perfume. o húmus. sob forma daquilo que possuí e espero. o ginério. faça do terraço um lago cor de malva.. só quero louros e rosas. pelo seu aroma fresco e nobre. acabei por encontrá-la. toda coberta dos seus ovos brancos. Se o jardim for na Bretanha — como eu gosto de meus canteiros ideais. espreitei. quando eu lhes oferecer polidamente um fósforo aceso. é isto que pretende seu nome popular — uma "julienne" e não cortadinha na sopa. através de um ar glacial. escolherei a mais frágil.. devo ter esquecido algumas. o projeto. No verão. quero só os que se pareçam — cara grande. se aquecidas. que passa o inverno à direita e à esquerda da lareira. sobem a escada e vêm nos buscar no mais profundo do sono. hei de arranjar "chimonanthes" de inverno. Se todos os amadores de novidades hortícolas banissem todos os velhos amarantos rabo-decavalo. como vocês estão pensando. procurei e. . uma glicínia que. se tornarão agradáveis à vista as flores que menciono. guiada pela sua fragrância. rema pelos sarrafos acima como uma simples ervilha. em tempo de neve. e a revela. Semearei as nigelas quando. Quanto à madressilva.. assim reunidas. no jardim de amanhã. quero daquela lobélia de azul sem rival em mar ou terra. ao aproximar-se a Páscoa. tem tanta cor e brilho como uma lasquinha de sobreiro. que penetra e perfuma o inverno bretão.. preciso de uma magnólia. conservam certo perfume de damasco que não transmitem à flor. a lembrança. além do feixe de arbustos que o velho senhor defunto arrastava consigo... Certamente as hepáticas serão azuis. relva de Espanha em cristas. mas para a cercadura. e que. em vasos em forma de cometa. tenham tomado. mil campânulas para tilintar ao mesmo tempo que cantar o galo. balizando sua corrida ascensional com melõezinhos brancos e verdes. E tamancos de Vênus para calçar a casa toda. bem poedeira. Seu mérito é único.semear o ar. Um caramanchão? Naturalmente que terei um caramanchão'. dêutzias duplas e amoresperfeitos. barba e bigodes — com Henrique VIII. mais imperiosos. Não será por um caramanchão que vou regatear. weigélias. não me ofereçam. Terei portanto "chimonanthes". empenachados de agudos "se" — o dafne. a cercadura! E na cercadura. outras na imaginação. só as que numa bela noite de verão.. à força de abandonar gota a gota suas longas flores. Aí elas encontram ainda. Azuis e em quantidade que chegue para orlar a cesta (todas as cestas devem ser bojudas. Não é pela minha escolha que. aquela que de tão cheirosa fica lívida. . Num determinado lugar. onde eu ignorava a sua presença. Deixo-as sob julgamento. . prestem atenção.
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