Cidade Baixa_ o Urbano à Flor Da Imagem

March 24, 2018 | Author: Anike Lamoso | Category: City, Brazil, Image, Arts (General), Science (General)


Comments



Description

CIDADE BAIXA: O URBANO À FLOR DA IMAGEMAnike Mateus Lamoso1 “A cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.“ 2 Salvador é uma das mais antigas cidades brasileiras. Situada no estado da Bahia e repleta de singularidades, ela foi construída para ser capital do Brasil e durante muitos anos foi seu principal berço de desenvolvimento, sendo uma das mais importantes aglomerações urbanas do país. No entanto, no último século houve um deslocamento econômico para o sul do Brasil, fazendo com que Salvador passasse por uma fase de quase estagnação e pouco desenvolvimento que só foi começar a mudar a partir da década de 1940. Esses fatos mudaram e marcaram profundamente a cidade, especialmente na sua área central, de onde ela nasceu e se ramificou. As riquezas de que foi a depositária durante os primeiros séculos permitiram a construção de belas igrejas e palácios, casarões e sobrados que suportaram as ofensas do tempo e continuam na paisagem como uma nota singular. Por outro lado, uma certa ausência de dinamismo da vida urbana, durante um largo período, não somente impediu um desenvolvimento maior da área central, como contribuiu igualmente para a permanência do seu aspecto secular. (SANTOS, 2008, p. 19/20) A região central da cidade, portanto, guarda em sua paisagem urbana sua memória e seu passado como signos do que viveu. Assim, o centro de Salvador carrega em si imagens-síntese de um processo de ascensão e declínio que ficaram marcados em sua arquitetura. Os grandes casarões perderam sua destinação original e entraram num processo de deterioração, novas construções surgiram, outras partes da cidade foram se desenvolvendo, e o centro modificou aos poucos a sua fisionomia, É uma cidade cuja paisagem é rica de contrastes, devidos não só à multiplicidade dos estilos e de idade das casas, à variedade das concepções urbanísticas presentes, ao pitoresco de sua população, constituída de gente de todas as cores misturadas nas ruas, mas, também, ao seu sítio ou, ainda melhor, ao conjunto de sítios que ocupa: é uma cidade de colinas, uma cidade peninsular, uma cidade de praia, uma cidade que avança para o mar com as palafitas das invasões de Itapagipe, cidade de dois andares, como é frequente 1 Anike Mateus Lamoso, graduada em audiovisual pela Universidade Federal de Sergipe CALVINO, Italo in Cidades Invisíveis. 2 dizer-se, pois o centro se divide em uma Cidade Alta e uma Cidade Baixa. (SANTOS, 2008, p. 35/36) Nesse sentido, a cidade de Salvador carrega uma riqueza cultural e arquitetônica singular, produzindo imagens que já foram estudadas por diversos campos e que ganha destaque através do cinema. A maior parte dessa produção é marcada pela presença de imagens conhecidas como cartões-postais de Salvador como o Farol da Barra, o Pelourinho, o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo, a feira de São Joaquim, a Igreja do Bonfim, entre outras. Essas imagens, já massificadas pela mídia e presentes no imaginário coletivo sobre a cidade – para os que a conhecem ou não – funcionam para trazer uma identificação espacial esperada pelo espectador. No entanto, o que nos interessa aqui é observar um urbano desenhado pelas lentes que fogem à fixação por essas imagens-modelo. Deste modo, tomamos para a análise o filme Cidade Baixa (2005) do diretor Sérgio Machado. Cidade Baixa conta a história de um triângulo amoroso entre dois amigos de infância: Deco (Lázaro Ramos) e Naldinho (Wagner Moura) com uma garota de programa: Karinna (Alice Braga). São três jovens de cerca de vinte e poucos anos que, cada um ao seu modo, lutam pela sobrevivência da melhor maneira que podem. Deco e Naldinho conhecem Karinna pedindo carona até Salvador e oferecem para leva-la em seu barco pedindo sexo em troca. Ela aceita e a partir daí começa uma relação a três que vai se tornando cada vez mais intensa no decorrer do filme. Em Cidade Baixa nos deparamos com personagens que vivem totalmente à margem de um modelo ideal imposto pela sociedade. Não sabemos de onde eles vêm, quem são e se possuem família, apenas que eles fazem o que for possível para sobreviverem, mesmo que tenham que apelar para a ilegalidade. A grande parte da trama se passa na cidade de Salvador, especificamente na região da cidade baixa, que dá nome a obra. É uma região central da cidade, que embora abrigue pontos turísticos como o Mercado Modelo e o Elevador Lacerda, chega até nós através de imagens muito mais íntimas do local. A primeira imagem da região e de Salvador apresentada pelo filme é vista através do mar para o centro da cidade. Figura 1 - cidade baixa / cidade alta A imagem nos apresenta os “dois andares” da cidade, uma avenida na parte inferior representando a cidade baixa e a região superior com maior concentração de prédios como a cidade alta. Há, à primeira vista, uma imagem marcada pelo antagonismo arquitetônico entre os dois polos da região e diferentes concepções urbanísticas, [...] Salvador oferece àqueles que a ela chegam por via marítima o espetáculo de um presépio, suas casas parecendo empilhadas umas sobre as outras, bem corno a viva e chocante impressão de contraste a quem percorre as ruas do centro: largas avenidas retilíneas, sobre as superfícies planas conquistadas ao mar, ladeada de altos e luxuosos imóveis de construção recente, na Cidade Baixa, ruas estreitas e sinuosas da Cidade Velha, enladeiradas, com velhos casarões degradados; várias gerações de construções na rua Chile, avenida Sete de Setembro, Baixa dos Sapateiros, das quais as mais recentes sucederam, simplesmente, às mais antigas, desadaptadas funcional ou especulativamente. As casas mais altas parecem apostar um recorde de altura com as ricas igrejas, os velhos templos. É essa vizinhança quase surpreendente, toda essa desordem aparente que dá beleza e colorido próprio a essa parte da cidade (SANTOS, p. 102, 2008) Assim, o filme vai trazer especialmente esse contraste existente na Cidade Velha, com seus casarões seculares em estado de degradação, apostando numa câmera que foge ao distanciamento e que, de modo contrário, mergulha no cerne dessa cidade em ruínas, mas carregada de vida que abriga a parcela mais marginalizada da população. A proposta de Sérgio Machado nada mais foi do que ambientar e trazer para o espectador o universo aonde a narrativa e os personagens dialogam entre si e com o quinhão da cidade que lhes foi destinado. Sérgio Machado, em entrevista a Revista Época chegou a afirmar que passou a frequentar o “submundo de Salvador” 3, como bares e boates de strippers para compreender qual cidade ele queria mostrar na tela. Além da direção, outro ponto que merece grande destaque na produção do filme se dá através da cinematografia. Fotografado pelo diretor Toca Seabra, o filme tem como referência o trabalho do fotógrafo Mario Cravo Neto, especialmente em sua obra chamada Laroyê. Mário é um dos nomes mais importantes da fotografia baiana, seus trabalhos evocam uma profunda organicidade das ruas de Salvador, trazendo para a imagem uma riqueza de cores, texturas e sensações. De acordo com Rubens Fernandes Junior, A sensação da tatilidade é outro aspecto interessante na obra de Mario Cravo Neto. A sensação tátil é ressaltada pela intensidade de luz e sombra do jogo cênico, pelo ambiente mágico e misterioso e pelos objetos que evocam os mais diversos contextos. Na cultura contemporânea, o olhar é predominante em relação ao cheiro, ao gosto, ao toque, à audição. Nesse momento de dominação do olhar o corpo perde sua materialidade. Transforma-se em imagem, representação.4 A referência da fotografia de Mário Cravo é citada também em um artigo escrito pelo jornalista Ivan Cláudio a revista ISTOÉ: “Numa cena amorosa entre Naldinho e Karina, os corpos suados cintilam salpicados de purpurina, em tons saturados que devem muito ao fotógrafo baiano Mario Cravo Neto. É um exemplo, entre muitos, de uma bela imagem.”5. O ideal imagético buscado na obra de Cravo se dá justamente por essa sensação de tatilidade proposta por uma câmera que se relaciona de modo quase epidérmico com os personagens e com o espaço. A fotografia do filme, portanto, é traçada a partir de um olhar que deseja, de personagens que desejam, de uma cidade que deseja. A câmera em Cidade Baixa traz 3 Entrevista disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR70329-5856,00.html – Acesso em 10/01/2015 4 Disponível em http://www.cravoneto.com.br/pb/masp/po/texto.htm - Acesso em 20/01/2015 5 Reportagem disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/14224_SANGUE+SUOR+E+CERVEJA – Acesso em 22/01/2015 para o espectador uma experiência quase sinestésica de cidade. A partir de imagens do porto, de becos, vielas, quartos de pensão, feiras, a câmera parece percorrer o intestino da cidade de Salvador. Ela traz para as telas além de uma experiência urbanística, toda a vida orgânica que se dilui e se mistura à solidez de sua arquitetura. Assim, nos deparamos com uma cidade viva, com paredes que abrigam o cheiro, o suor, o vômito, o gozo, a paixão, a violência e o desejo. A grande parte dessas sensações são provocadas ao espectador principalmente pela proximidade da câmera e o modo como ela se relaciona com a cidade e com os personagens. Figura 2 - Deco / Feira de São Joaquim As cenas gravadas na Feira de São Joaquim são exemplos claros da relação imagem-corpo-cidade. É impresso um forte teor realista nas imagens, com a utilização frequente de planos médios ou conjuntos, com um enquadramento de registro (sem uso de grandes efeitos visuais), uma montagem também sem efeitos particulares e, principalmente, a filmagem em cenários reais. A intimidade com que a câmera transita pela Feira traz ao espectador a experiência própria de estar passeando por uma feira livre. Ela imprime na imagem a riqueza de cores, cheiros, sons, calor e contato físico, aproximando-nos da experiência real. Essa “intimidade” da câmera com o meio já havia sido pensada desde a década de 1920 com o cineasta DzigaVertov: “o principal, o essencial é a cine-sensação do mundo”6, 6 VERTOV, Dziga. “Resolução do Conselho dos Três em 10-4-1923”. In Xavier, Ismail (org.). A experiência do cinema: Antologia. P. 253. Eu me aproximo e me afasto dos objetos, me insinuo sob eles ou os escalo, avanço ao lado de uma cabeça de cavalo a galope, mergulho rapidamente na multidão, corro diante dos soldados que atiram,me deito de costas, alço voo ao lado de um aeroplano, caio ou levanto voo junto aos corpos que caem ou que voam. [...] O meu caminho leva à criação de uma percepção nova do mundo. Eis porque decifro de modo diverso um mundo que vos é desconhecido. (VERTOV, p. 256, 1983) Assim, a proximidade e o contato físico da câmera com os personagens e a perfeita integração com espaços, lugares e paisagens, proporcionam através de Cidade Baixa, um olhar e uma relação inédita com a cidade de Salvador, assim como uma nova percepção de mundo. O filme retrata também momentos em que há um embate mais direto dos personagens com o meio, cenas gravadas a partir de solavancos da imagem em movimento transmitem também a relação conflituosa que há entre o personagem e a cidade. Figura 3 - Deco / rua A cena acima mostra a saída de Deco pelas ruas após uma briga com Naldinho por causa de Karinna. A sequência é gravada a partir de um travelling horizontal feito com câmera na mão que segue,em ritmo acelerado,o personagem cruzando ruas movimentadas da cidade. Embora o foco esteja em Deco, a imagem é perpassada constantemente por outras pessoas, das quais não só o personagem, mas também a câmera, pareceoscilar entre o contato físico e o desvio. Essa sensação choque – distanciamento vai estar presente em todo o filme, não só pela relação entre a cidade e os personagens, mas também com os personagens entre si. Todo tempo eles estarão divididos entre a paixão e a ofensa, entre o carnal e a repulsa, entre o amor e ódio. Em Cidade Baixa temos personagens que encarnam a cidade assim como temos a cidade que surge quase como um reflexo interior dos próprios personagens. Essa dialética foi um dos grandes temas e uma das grandes angústias do poeta Fernando Pessoa, que tinha o mundo exterior como uma espécie de realidade interior, uma realidade tão real por fora quanto por dentro, Ao mesmo tempo em que me embrenho por vielas e sub-ruas, torna-se-me complexa a alma em labirintos de sensação. [...] Angustia-me, não sei porquê, essa extensão objectiva de ruas estreitas, e largas, essa consecução de candeeiros, árvores, janelas iluminadas e escuras, portões fechados e abertos, vultos heterogeneamente nocturnos que a minha vista curta, no que de maior imprecisão lhes dá, ajuda a tornar subjetivamente monstruosos, incompreensíveis e irreais. (PESSOA, 1999, p. 416) Assim, o filme foge das aparências. Ele retira a cidade de mera função de cenário e coloca-a também como personagem, mostrando ao espectador o lado mais íntimo, opaco e desconhecido desse lugar. A cidade no filme nos surge tal qual surgiu a proposta de filmar Marselha pelo crítico e cineasta Jean-Louis Comolli, Aqui, em Marselha, não há nada para ver [...]. Nada que a distinga de qualquer outra cidade. [...] É preciso então [...] mudar a fórmula clássica do cinema: “dos corpos nos cenários...” E imaginar uma fórmula mais improvável [...] de cenários que seriam levados nos corpos, que teriam desaparecido por dentro, que se tornariam a mola, a armadura, o motor, a estrutura dos corpos. A cidade no interior dos habitantes. A Cidade Interior. É bem esta do cinema, a Cidade nos filmes. O cinema que passa seu tempo a pôr para fora o que está dentro e para dentro o que está fora. Carregador infatigável. Filmar Marselha no interior das cabeças, no interior dos corpos de seus habitantes. A cidade encarnada, digerida pelos corpos dos seus, na espessura, nas dobras da carne que toma forma no corpo. (COMOLLI, 1997, p. 165) A relação quase epidémica da câmera com os personagens, mostra-nos justamente uma espécie de “cenário levado no corpo”, a relação dos personagens com a cidade ou a própria “cidade no interior dos habitantes”. Figura 4 - Karinna A narrativa do filme se encerra de modo suspenso, não há um desfecho clássico da trama.É como se a história contada ainda permanecesse viva para além das telas, em outros corpos em personagens reais. A cena final expressa na figura acima eleva a experiência tátil proposta pela câmera ao nível mais radical de todo o filme. A narrativa passional e intensa do triângulo amoroso Deco, Naldinho e Karinna é encerrada com uma cena também intensa, gravada em primeiríssimo plano dos olhos tristes e chorosos da stripper. Cidade Baixa é um filme, acima de tudo, de consagração à vida em todas as suas manifestações. Deste modo, entende-se a vida em seu sentido mais amplo, não se referindo apenas a história pessoal dos personagens, mas a toda a vida latente que há nas ruas da cidade de Salvador. Assim, a câmera ganha contornos corpóreos e se mistura ao espaço com uma intimidade capaz de percorrer o que há de mais orgânico e visceral desse urbano que lateja e encarna o desejo dos corpos que abriga. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS CALVINO, Ítalo. Cidades invisíveis. Disponível em http://moodle.up.pt/pluginfile.php/21840/course/section/5603/italo-calvino-as-cidadesinvisiveis.pdf - Acesso em 10/01/2015 COMOLLI, Jean-Louis. “A cidade filmada”. In: CADERNO DE ANTROPOLOGIA E IMAGEM. A cidade em imagens. Rio de Janeiro: UERJ/ Núcleo de Antropologia e Imagem, ano 3, nº 4, 1997. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SANTOS, Milton. O centro da cidade de Salvador: estudo de geografia urbana. São Paulo: EDUSP; EDUFBA, 2008. VERTOV, Dziga. Resolução do Conselho dos Três. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema(org). São Paulo: Edições Graal/ Paz e Terra, 2003
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.