Chimarrão & Parangolé

March 25, 2018 | Author: Jaqueline Koschier | Category: Philosophical Science, Science


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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DISCIPLINA: Leituras de Walter Benjamin Prof.ª Dr.ª Denise Bussoletti Chimarrão & Parangolé: correlações alegóricas em Walter Benjamin Jaqueline Koschier Outubro, 2013 (Kleiton & Kledir. e sim fazerlhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. expressão criada por Paola Jacques para representar os Parangolés. (Walter Benjamin. 1984) O Parangolé é mais do que a última ordem do ambiental: é a invenção de uma nova forma de expressão: uma poética do instante e do gesto. Somente a mostrar. uma vez que para ter tal consciência de sua obra. obra de Hélio Oiticica? Pensamos que sim. os resíduos: não quero inventariá-los. vem cá pra roda de chimarrão Ele aquece a goela e de inhapa a alma e o coração. podemos aproximar vários aspectos das obras de Oiticica e de Vitor Ramil à crítica benjaminiana. Não tenho nada a dizer. 2006) É possível tecermos aproximações entre a Estética do Frio. a melancolia que se instala na dicotomia entre o "passado" e o "novo". do precário e do efêmero. os artistas tiveram de fazer uma profunda imersão em seu "eu" e suas concepções estéticas e . Porém. é possível encontrarmos vários pontos em comum em obras aparentemente tão díspares no espaço. Esse pensador alemão é um dos representantes da chamada Escola de Frankfurt. uma constante na obra de Vitor Ramil.Chimarrão & Parangolé: correlações alegóricas em Walter Benjamin Puxa um banco e senta que tá na hora do chimarrão É o sabor do pampa de boca em boca. de mão em mão Puxa um banco e senta. Ao analisarmos seus escritos. no tempo e na cultura ao utilizarmos elementos mediados por meio da obra de um terceiro pensador: o filósofo Walter Benjamin. Não surripiarei coisas valiosas. Roda de Chimarrão. nem me apropriarei de formulações espirituosas. (Celso Faveretto) Método deste trabalho: montagem literária. que traz consigo a fragmentação da experiência cotidiana. sobretudo o personagem do Flanêur. de seu espaço. e a Estética da Ginga. os farrapos. seus textos dialogam com diversos temas da modernidade. democrática e genial: o Parangolé. Em seu livro A estética da Ginga: a arquitetura da favela através da obra de Hélio Oiticica (2001). na qual os versos " Podem me prender/ Podem me bater /Podem. presentes na obra do artista. as três influências. advindas da sua vivência no Morro da Mangueira. de seu lugar de conforto. o samba). Vitor Ramil sai de sua casa e de sua cidade (Pelotas) indo morar em Copacabana. seja do frio ou seja do calor. . por sua vez. para descobrir algo que transformou sua identidade e trajetória artística. de proteger. de forma literal. Em 1965. no Museu de arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro2. Vitor Ramil também sai de sua casa. 1 Hélio Oiticica sai de seu apartamento da zona sul e vai conviver com a comunidade do Morro da Mangueira. foi na cidade do Rio de Janeiro.filosóficas. durante a exposição Opinião 65. temos também a relação com a marginalidade e o auto-exílio1. quais sejam: a dança (o ritmo. Por último. Jacques destaca que o Parangolé traz em sua forma a ideia de abrigar. mas não menos importante. Tal qual acontece no processo artístico de Oiticica. sua invenção simples. seu processo de concepção do Parangolé e suas reações às críticas feitas a ele. Os Parangolés de Oiticica eram capas. o artista Hélio Oiticica apresentava para um público ainda extremamente conservador. uma interação entre autor-obra-público. Rio de Janeiro. de 1985 a 1991. 2 Cabe relembrar que a exposição Opinião 65 foi inspirada na canção popular homônima de Zé Ketti. até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião" representavam sua resistência contra o governo militar. Coincidentemente. verbo este que. para uma sociedade que vivia sob um regime de ditadura militar. libertária. a coletividade anônima e a interação com o espectador (público). sob forte calor e na companhia de um chimarrão quente que o artista percebeu a forte diferença identitária entre aqueles que vivem no calor e os outros que vivem no frio. Podemos pensar o Parangolé como uma alegoria de arte e de vida. tendas e estandartes que incorporavam. contempla a ideia de revestir. Paola Jacques analisa a trajetória artística de Oiticica. sua degeneração como estilo. em uma ausência do estilo. no qual explicita sua concepção acerca da Estética do Frio. a recuperação de fragmentos da memória por meio de imagens simbólicas e a melancolia. A palavra “alegoria” era utilizada por grego. que se refere a uma coisa pelas palavras. Uma cena regional. como postura. Vi o ecletismo como herança cansada do tropicalismo. precisão. por meio de uma relação de semelhança. Destaco suas palavras: Havia de um lado o dado regional. concisão.Alguns anos depois (1992). fazia agora – num mundo plural. no inverno. Mais que isso. sua cultura e sua arte foi exatamente a de um gaúcho. Em cada um desses dados havia indefinição. faltava rigor formal. há uma composição contextual entre os . A imagem chave para Vitor Ramil pensar em sua identidade. onde as portas estavam todas abertas – menos sentido que uma linguagem que pusesse unidade na diversidade. inversa. em um hábito. E me vieram palavras como rigor. Uma imagem de pura definição! Uma expressiva composição de poucos elementos: a figura imóvel e bem delineada do gaúcho. quase remota! Nessa catarse ramiliana percebemos elementos significativos para associarmos sua construção poética das bases do pensamento benjaminiano tais como: o olhar histórico. os quais representam seus respectivos contextos sócio-culturais. portanto. Desse modo. solitário e tomando um chimarrão. e outra. Na concepção de Walter Benjamin. Desde a antiguidade. O que em outro tempo fora a reação natural a um mundo que tendia a se perpetuar em formas estanques. o múltiplo Vitor Ramil escreveu um ensaio. caracterizando-se por ser uma metáfora que liga um pensamento a outro. o verde regular e a linha reta do pampa no horizonte. podemos pensar nas imagens dos Parangolés e do chimarrão como alegorias da arte e do pensamento artístico. sutileza. pelo sentido. de outro o mundial. há a alusão de que a alegoria extrapola o sentido da ideia concreta. significando uma série de “significações secretas” já os latinos utilizam um correspondente denominado “inversio”. o céu claro. a olhar a imensidão fria do pampa sob o céu cristalino da manhã. de outro o brasileiro. E me veio a imagem invernal de um gaúcho solitário tomando seu chimarrão. resultando num ecletismo completamente ineficaz e batido. Um dia eu estava indo de ônibus e na praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. uma vez que o olhar (estudo) para o futuro está impregnado de passado e nesse contexto histórico dá-se a produção e a recepção das obras artísticas. Novamente recorremos ao pensamento benjaminiano quando este afirma que “só é possível pensar o fruto a partir da decomposição da semente” para enfatizar o fato de que ambos artistas (Oiticica e Ramil) abriram mão de suas zonas de conforto. porém é notória a procura dos artistas Ramil e Oiticica por assegurar o seu “lugar” na sociedade. No dia seguinte já havia desaparecido. apesar de suas diferenças estruturais e culturais. Relembrando as palavras de Walter Benjamin (2006): “As alegorias são no reino dos pensamentos. Porque eu trabalhava no Museu Nacional da Quinta. Aí eu disse: “É essa a palavra”. o que as ruínas são no reino das coisas”.. Não é intenção discorrer nesse ensaio acerca da questão da identidade. uma ideia-tema que modificou sua arte e seus conceitos. fazendo bibliografia. um lugar. que estava escrito era a palavra parangolé. que dizia: “aqui é. essa palavra mágica. sejam quais forem.elementos alusivos. com um matinho e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima a baixo. com meu pai. que ele fez como se fossem vértices de retângulo no chão. da arte “pronta” e fácil para observar seus “destroços” e a partir desses escombros descobriram um caminho. Entendemos que a alegoria em Walter Benjamin vai além de mera questão estilística ou retórica. transformando-a em uma via de mão dupla que envolve o alegorista e as interpretações decorrentes dessa relação. . Destacamos as palavras de Oiticica acerca do processo de descoberta do Parangolé: Isso eu descobri na rua..” e a única coisa que eu entendi. Eram quatro postes. E havia um pedaço de aniagem pregado num desses barbantes. Era um terreno baldio. estacas de madeira de uns 2 metros de altura. É possível aproximar a ideia do Parangolé de Oiticica com a imagem do gaúcho com seu chimarrão de Vitor Ramil. Bem feitíssimo. onde se sente acolhido pela paisagem e pela cultura. Além da paisagem sulina recuperada por Ramil temos o acréscimo de um personagem: o gaúcho e sua constante companhia: o chimarrão.4) A melancolia e a solidão estão presentes nas construções e nas recriações espaço-temporais de Ramil e Alencar. o repórter fala sobre a chegada do frio. evidenciando. e mais pavorosa. Na introdução do CD Ramilonga (1997) encontramos a seguinte descrição: . O escritor José de Alencar publicou em 1870 o romance. que o frio não é algo brasileiro.Mais uma vez recorremos a Walter Benjamin a fim de utilizar seu olhar de flanêur ao observar o cotidiano. (ALENCAR. 1994). pensando que o seu lugar é no frio. logo o artista vê-se um estrangeiro em seu próprio país. sua crise de identidade e sua arte. pessoas pulando atrás de um trio elétrico o leva a pensar que ele (Ramil) jamais pularia atrás de um trio elétrico. do que na imensidade dos mares. as vastas campinas que cingem as margens do Uruguai e seus afluentes! A savana se desfralda a perder de vista. p. intitulado O gaúcho. ondulando pelas sangas e coxilhas que figuram as flutuações das vagas nesse verde oceano. como o deslocamento para o trabalho pode encerrar pequenas e grandes descobertas que podem vir a transformar o pensamento do artista. Como já citado anteriormente. mostrando as tradicionais imagens do inverno gaúcho e a também tradicional comparação com o “clima europeu” ou “frio europeu”. pois segundo este “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN. onde se sente mais confortável. 1998. Após a matéria sobre o carnaval. via discurso. do qual destaco a seguinte descrição do pampa: Como são melancólicas e solenes. portanto algo trivial. Ramil procura uma identificação entre os espaços que está e percebe seu “não-lugar” . Mais profunda parece aqui a solidão. ao pino do sol. Uma chamada televisiva acerca de uma festa de Carnaval fora de época na Bahia. haja vista que a imagem do pampa promove tais sensações. Também é um acontecimento trivial o mote que levará Ramil a pensar seu “não-lugar”. . As imagens do Parangolé e do chimarrão. com a interação entre a obra e o público. objeto e espaço. percebemos que Vitor Ramil consegue concretizar a ideia iniciada no período de auto-exílio carioca através de uma “imagem de pura definição”. do gaúcho e seu chimarrão por meio de uma concepção alegórica das imagens representadas. (RAMIL.teto de mil gerações . transmudando a vida pitoresca dos pampas. imagem altamente definida.. tomando seu chimarrão... o chimarrão continuará representando uma essência identitária e cultural significativa. e os traços do rosto do mateador. e que os tempos corram. 1997). e que o umbu frondoso . que a santa-fé dos ranchos ceda lugar ao colorido das telhas francesas. verde regular.Um índio velho. O Parangolé abriga o corpo e a alma. a criação do Parangolé (objeto) com a imagem do mateador. Como já destacado anteriormente. levando de boca em boca a seiva pátria. vender o cavalo e os arreios. poderá se despedir da chinoca de longas tranças. linha reta no horizonte. trazendo o progresso! que os bretes e armados se estendam tanto e tanto que as lidas da pecuária venham a se transfigurar por completo! que os cavalos crioulos não mais relinchem na coxilha. Nas palavras do pesquisador Barbosa Lessa.)e devemos notar que. de acordo com o uso. O “amargo” se faz presente no cotidiano sulino. planície radicalmente aberta. possibilitando reencontros com a dança e a representação mais ancestral. podem ser ruínas da tradição que se erguem dos escombros para seguir seu destino. Também o chimarrão pode ser utilizado coletivamente ou individualmente. em busca do traiçoeiro brilho das cidades. seja no passado ou no futuro. são alegorias pertinentes na modernidade. São muitas as referências ao uso do chimarrão tanto por habitantes do campo como das cidades na literatura e nas letras das músicas . mas sempre haverá o chimarrão. o gaúcho poderá deixar o pago. olhos postos na imensidão do campo parelho sob o céu vermelho do entardecer.tombe por terra! tudo poderá evoluir. a luminosidade do seu olho. mas jamais se apartará dos seus avios do chimarrão. poderá substituir o mugido melancólico da tropa pela ensurdecedora azáfama das fábricas. a qual engloba personagem. mais do que o próprio “pingo”.. alimentando as tradições gaúchas. abandonar o rancho. aconteça o que acontecer. mas também pode ser identificado e individual. o mate-amargo constitui a principal característica do crioulo rio-grandense. a profundidade do seu pensamento. Dessa forma. recordando as arrancadas do passado. solito. é possível associarmos a arte de Oiticica. Este recorte sugere que o chimarrão é uma alegoria que permanecerá na vida sulina. É anônimo e coletivo.. apesar das disparidades. (. tradicionalistas ou contemporâneas de artistas gaúchos. essa memória coletiva serviu de base para que Vitor Ramil fizesse sua “imagem de pura definição”. a “erva urbana”. causando um efeito protetor. a imagem do chimarrão também é utilizada na contramão desse movimento. questionam a hierarquia e os papeis sociais tradicionais. com traços que lembram o seio materno. uma vez que o chimarrão é usado na solidão “chove na tarde fria de Porto Alegre/ Trago sozinho o verde do chimarrão” (RAMIL. Para encerrar esse ensaio retomaremos a alegoria do Parangolé como ideia de abrigo. Certamente. 1983). Vai bem com tudo.nativistas. A referência à roda de chimarrão deixa ambíguo o título “Exaltação” se é exaltação ao chimarrão ou à maconha. 1997) promovendo reflexões tais como as do fragmento: “Quanta china ou índio vago /Dá água a seu pensamento/ De . Importante salientar que apesar de estar fortemente atrelado à tradição. um casulo que contém a borboleta. que também é um sinônimo da maconha. chi chimarrão crioulo Liga como quê Chimarrão crioulo melhor com muito gererê (LISBOA. haja vista que ele é usado pra envolver o corpo. proteção. assim como a palavra “gererê”. é bom pros rins E dá e dá barato É chi. bem como apontam para uma visão irônica da sociedade contemporânea. Talvez tal formato colabore para o apego emocional desenvolvido pelos sulistas para com esse hábito. As letras de Nei Lisboa. Cabe ressaltar que as expressões (populares na década de 80) “dá barato” e “liga” referem-se aos efeitos da maconha. O chimarrão é comumente servido em uma cuia feita de porongo. chi. como bem podemos observar nesses versos de Nei Lisboa: Entrei numa roda e me deram uma coisa para provar Uma erva galega esverdeada e gostosa de chupar E dá barato sim E dá barato sim E dá barato sim E dá barato sim. frequentemente. como nos versos “E só tu. Ou os versos de Eugênio Severo: Enquanto a gente mateia e acende um pito palheiro. os versos dos irmãos de Vitor Ramil. sozinho ou em grupo se bebe chimarrão.) (In: LESSA. àquele que se toma em grupo. meu chimarrão/ que o gaúcho não despreza/ Por que és livro de reza/ Que rezo junto ao fogão” (RAMIL. convidando para sentar. 2010). tanto os Parongolés quanto o chimarrão podem servir de alegorias que 3 Letra do poema Chimarrão. Como mostram os versos de Vargas Netto: Na estância. O ritual do chimarrão.. a dupla Kleiton e Kledir que abriram esse ensaio com sua Roda de Chimarrão. (In: LESSA. como gaita debochada em polca de relação. para se alegrar ou para refletir também o gaúcho toma um chimarrão.alegria ou sofrimento/ De desengano ou afago 3” (RAMIL. o chimarrão pode servir como um consolo. gravado no Cd Délibáb. há quantidade significativa de versos que apontam para a faceta mais sociável do chimarrão. quanta história vem.. um apoio que acalanta a alma de quem está só. de João da Cunha Vargas. 1986) Ou ainda. 2010). Portanto. à roda do chimarrão! se a cousa é mesmo de graça se solta cada risada. ligeiro. 1986). A linguagem alegórica dialoga com o passado e com o futuro. musicado por Vitor Ramil. . o pensamento racional e abstrato não foi capaz de erradicar a capacidade de mimetizar a arte na vida e vice-versa. depois da janta co’o rasto inda na garganta do gostito do feijão. às vezes. Sendo assim. Portanto. se aproxima da liturgia. conversar. a peonada se entretia contando os causos do dia na roda do chimarrão (. 2010. Porém. tomar um mate para aquecer a alma e o coração. uma vez que segundo Benjamin. Outubro de 2002.com. BENJAMIN. José de. Referências bibliográficas ALENCAR. Dissertação de Mestrado. A cidade. 1983. . 8ª Edição. nº 29. (Org. de Vitor Ramil. Maria João. a poltrona e a linha: estudos sobre a Estética do Frio. Cíntia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra. Para viajar no cosmos não precisa gasolina. da cultura e da resistência às regras. Belo Horizonte: UFMG. São Paulo: Brasilense. 6ª Edição.agulha. Pelotas: UCPEL.representam a história não-oficial. _____. JACQUES. 1999. 2011. Pelotas: Ufpel. mantendo-se na memória coletiva todo o contexto de concepção dos elementos que colaboram para a existência da arte. In SCHWANTES. Gilnei Oleiro. Paola.) A mandala e o caleidoscópio: ensaios de literatura brasileira contemporânea. Disponível em http://www. KLEITON & KLEDIR. LESSA.nom. arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tonalidades do frio: a poética de Pequod. 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