CHAUÍ, Marilena. Simulacro e Poder - Uma Análise Da Mídia Brasileira

April 2, 2018 | Author: Miranice | Category: Journalism, Science, Philosophical Science, Science (General), Science And Technology


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SIMULACRO E PODERUMA ANÁLISE DA MÍDIA 2ª reimpressão iniciais 2 reimp.p65 1 27/9/2010, 09:42 Fundação Perseu Abramo Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996. Diretoria Presidente: Nilmário Miranda Vice-presidente: Elói Pietá Diretores: Selma Rocha Flávio Jorge Iole Ilíada Paulo Fiorilo Editora Fundação Perseu Abramo Coordenação Editorial Rogério Chaves Assistente Editorial Raquel Maria da Costa Revisão Eloisa Aragão Maurício Balthazar Leal Capa Eliana Kestenbaum Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande Impressão Gráfica Graphium Este livro obedece às regras estabelecidas no Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Chaui, Marilena Simulacro e poder / Marilena Chaui. – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. Bibliografia ISBN 85-7643-027-4 1. Comunicação – Aspectos políticos 2. Comunicação – Aspectos psicológicos 3. Comunicação de massa 4. Influência (Psicologia) 5. Interação social 6. Poder (Ciências sociais) I. Título. 06-4900 CDD-302.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Comunicação : Aspectos sociais : Psicologia social 302.2 1a edição: julho de 2006 1a reimpressão: maio de 2007 2a reimpressão: outubro de 2010 Todos os direitos reservados à Editora Fundação Perseu Abramo Rua Francisco Cruz, 224 04117-091 — São Paulo — SP — Brasil Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910 Correio eletrônico: [email protected] Visite a página eletrônica da Fundação Perseu Abramo www.fpabramo.org.br Copyright © 2006 by Marilena Chaui ISBN 85-7643-027-4 1 iniciais 2 reimp.p65 2 1/10/2010, 12:56 SUMÁRIO SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA ......................... 5 I. DESTRUIÇÃO DA ESFERA DA OPINIÃO PÚBLICA .......................... 5 II. ENCENAÇÃO: A PRODUÇÃO DO SIMULACRO ............................ 14 III. ENTRETENIMENTO ............................................................. 20 IV. DESTRUIÇÃO DA AUTONOMIA DO PENSAMENTO E DAS ARTES: INDÚSTRIA CULTURAL ................ 22 V. A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA ................................................. 30 VI. OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO .............................................. 35 VII. A INFORMÁTICA E O SISTEMA MULTIMÍDIA ......................... 57 VIII. A QUESTÃO CENTRAL: OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COMO PODER ........................................... 72 ANEXO ................................................................................... 79 I. PASSEIO PELO PAÍS DAS PALAVRAS ......................................... 79 II. BREVE REFERÊNCIA ÀS PRIMEIRAS TEORIAS DO CONHECIMENTO ................................................ 82 DIREITOS HUMANOS E MEDO ................................................. 87 DEMOCRACIA E AUTORITARISMO: O MITO DA NÃO-VIOLÊNCIA ............................................. 115 iniciais 2 reimp.p65 3 27/9/2010, 09:42 graduou-se em Filosofia. 1999). vindo a concluí-lo no Colégio Estadual Presidente Roosevelt. Iniciou. Membro fundador do Parti- do dos Trabalhadores. 1980). 2006). na USP. A nervura do real (Companhia das Letras. CIDADANIA CULTURAL A AUTORA MARILENA CHAUI. em São Pau- lo. também na Universidade de São Paulo (USP) sua tese de livre-docência. em 1967- 1969.p65 4 1/10/2010. Cultura e democrcia (Crotez. Cursou o primário no Grupo Escolar de Pindorama (SP). defendeu. entre as quais O que é ideologia (Brasiliense. 2000). filha do jornalista Nicolau Chaui e da profes- sora Laura de Souza Chaui. nasceu em São Paulo em 1941. Na Universidade de São Paulo (USP). É membro da Comissão Teotônio Vilela de Defesa de Direitos Civis. seu doutorado na França e o defendeu em 1971. 12:54 . em Catanduva (SP). Em 1987. fez sua pós-graduação e defendeu o seu mestrado. Leciona no Departamento de Filosofia da USP e suas áreas de especialização são História da Filosofia Moderna e Filosofia Política. do Calvário. É autora de inúmeras obras. Foi secretária municipal de Cultura de São Paulo. Brasil: Mito fun- dador e sociedade autoritária (Editora Fundação Perseu Abramo. prestou o concurso e recebeu o título de professora titular de filosofia. 2001). S. Em 1977. iniciou o curso secundário no Colégio N. na gestão de Luiza Erundina. 4 1 iniciais 2 reimp. Escritos sobre a Universidade (Unesp. (N. meios digitais e multimídia. Rio de Janeiro. pois vários dos que havíamos apresentado podem não ser do conhecimento de leitores mais jovens. de entrevistas e de debates com adultos. SIMULACRO E PODER Uma análise da mídia * I. jovens e crian- ças contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brin- quedo.p65 5 29/9/2010. E acrescentamos algumas considerações sobre informática. sexual.E.) 5 2 Simulacro e poder 2 reimp. em 1993. geriá- * Este texto foi originalmente uma conferência proferida no Ciclo Rede Imaginária. O ponto culminante desse tipo de espetáculo é o programa intitulado “Big Brother”. gastronômico. na Casa da Gávea. Fizemos algumas atualizações com relação aos exemplos de fatos e acontecimentos. da leitura à religiosidade. As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios sentimental. do ato de escrever ou encenar uma peça teatral aos hábitos de lazer e cuida- dos corporais. DESTRUIÇÃO DA ESFERA DA OPINIÃO PÚBLICA Faz parte da vida da grande maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de programa de televisão no qual a intimi- dade das pessoas é o objeto central do espetáculo: programas de auditório. da culinária ao vestuário. 10:16 . logo após o bombardeio de sua casa pela aviação norte-americana. desde livros e filmes até hábitos sociais. uma entrevista com o presidente da Líbia. o que acham. 6 2 Simulacro e poder 2 reimp. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA trico. o almoço ou o jantar. os que aparecem nos noticiários. carpintaria. culinário. literária e da vida doméstica. os competidores dos torneios de auditório. envolvidos no fato. ginecológico. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o que julgam dos acontecimentos. se lhes agrada ou desagrada. em 1986. Foi constrangedor para Kadafi e para os telespectadores ouvir as perguntas: “O que o senhor sentiu quando percebeu o bombardeio? O que o senhor sentiu quando viu sua famí- lia ameaçada? O que o senhor achou desse ato dos inimigos?” Ne- nhuma pergunta sobre o significado do atentado na política e na geopolítica do Oriente Próximo. de jardinagem. Não é casual que os noticiários. 10:16 . nenhuma indagação que permitisse furar o bloqueio das informações a que as agências noticiosas norte- americanas submetem a Líbia. de cuidados com o corpo (ginástica. cos- méticos. indo desde sabores de sorvete até partidos políticos. tenham sempre repórte- res indagando a alguém: “O que você sentiu/sente com isso?” ou “O que você achou/acha disso?” ou “Você gosta? Não gosta disso?”. ao promover entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos. os hábitos cotidianos são descritos e comentados. direta ou indiretamente. mas o que sentem. Há programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam uma cena doméstica – um almoço. todos são convidados e mesmo insta- dos com vigor a que falem de suas preferências. medicamentos). com ousadia e exclusividade. nos quais a casa é exibida. no rádio e na televisão. o acontecimento político foi transformado em uma tragédia doméstica e da vida pessoal de uma das mais importantes lideranças do mundo árabe. Onde está morando sua família agora?. vestuário. Houve uma rede de televisão brasileira que conseguiu. um jantar – ou se realizam nas casas dos entrevistados durante o café da manhã. A longa entrevista reduziu-se aos sen- timentos paternos e conjugais de Kadafi perante o terrorismo inimi- go.p65 6 29/9/2010. basti- dores da criação artística. O senhor sente saudades dela? Em suma. álbuns de família ou a própria são mos- trados ao vivo e em cores. Os entrevis- tados e debatedores. indagava a repórter. o intérprete. Esse procedimento acabou por se tornar até mesmo paradigma para as resenhas de livros e filmes. suas impressões e opiniões sobre pessoas. qual o perfume desejado. Essa mesma tendência aparece. todos são questão de gosto ou preferência. qual a lembrança infantil mais querida que guardam na memória. o que sentiram diante de uma catástrofe nu- clear ou ecológica. inda- gando-lhes sobre o que estão lendo no momento. que filme foram ver na última semana. acontecimentos e fatos que conti- nuamos a desconhecer porque conhecemos apenas sentimentos e impressões daquele que deles fala. lugares. no último parágrafo. a seguir. a projeção ou audição do objeto a ser resenhado. Ao término da leitura nada sabemos sobre o autor e a obra. que música preferiam aos 15 anos de idade. Os assuntos se equivalem. MARILENA CHAUI Também tornou-se um hábito nacional jornais e revistas especia- lizarem-se cada vez mais em telefonemas a “personalidades”. ou diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral. conta-nos as associações com outras obras que a obra resenhada lhe sugeriu. crônicas e resenhas obe- 7 2 Simulacro e poder 2 reimp. o resenhista. Sem dúvida. conta-nos as ideias excelentes que ele próprio teve durante a leitura. mas gastam páginas inteiras nos contando seus sentimentos. mas sabemos muitíssimo sobre as preferências e os gostos do resenhista. ainda sem nos dizer do que está tratando. De- pois de assegurar ao leitor sua superioridade. somos informados sobre o título da obra. o compositor. ninguém ignora que essas modalidades de progra- mas de rádio e televisão. que não nos infor- mam sobre fatos. do “achei ótimo” ou “achei horrível”. acontecimentos e situações. Final- mente. o resenhista. que roupa usam para dormir. 10:16 . o tratamento do assunto. qual o restaurante predile- to.p65 7 29/9/2010. como regra de tra- balho de muitos articulistas de jornais e revistas. narra algum fato ou alguns fatos que mostram que ele conhece pessoalmente o autor da obra e o que acha dele. qual o sabor do sorvete preferido. de entrevistas. o diretor. revelando-nos um resenhista muito cultivado em seu campo. Mais adiante. A resenha começa nos dizendo que seu autor conhece o assunto melhor do que o escritor. quando possível. por exemplo. objetos. todos se reduzem à igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”. o nome do autor e onde encontrar a obra. 10:16 . de gratificar imediata- mente as crianças com o consumo dos objetos. “sabendo que um pú- blico cultivado é ávido por fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado.p65 8 29/9/2010. os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível. Imago. no mercado político ou no mercado tout court. que não transmitem informações. dos jovens felizes e saudáveis. prometidas ao amor familiar (o amor definido pela capacidade dos familiares de satisfa- zer imediatamente todos os desejos infantis. que tanto pode recorrer aos estereótipos da dona de casa feliz (tendo orgasmo com a qualidade do detergente ou da margarina). a “personalidade” (seja o entrevistado. Trata-se do mesmo procedimento usado diretamente na propaganda. 8 2 Simulacro e poder 2 reimp. o propagandista moderno evita slogans grandiloquentes 1 LASCH. O estereótipo da propaganda pode alcançar o ponto máximo de irrealidade quan- do o produto é anunciado por atores que representam para o consu- midor o papel que representam em novelas. Os fatos cederam lugar a declarações de “personalidades autorizadas”. de cultivar o narcisismo infantil até suas últimas consequências). das crianças felizes e traquinas. Como escreve Lash. ou como oferecido por alguém confiável. Christopher. no livro A cultura do narcisismo1. de sorte que nessa duplicação ficcional do ator como propagandista reencontramos a mesma situação das “personalidades” entrevistadas sobre seus gostos e preferências. Como observa Christopher Lash. 1983. Rio de Janeiro. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA decem aos padrões de mercado: ao exprimir sua preferência. Cultura do narcisismo. prometidos ao sucesso e à exibição do prazer em to- das as suas formas (prazer suscitado pelos objetos que perderam a qualidade de símbolos sexuais para se tornarem diretamente feti- ches sexuais). as quais se convertem imediata- mente em propaganda. o cronista ou o resenhista) avaliza um produto e garante sua venda no mercado cultural. mas preferências. Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A res- posta encontra-se em um outro ponto comum aos programas de auditório. à vida privada como suporte e garantia da ordem pública. As relações interpessoais. os códigos da vida pública passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada. convencido de que as decisões políticas estão com especia- listas – críveis e confiáveis – que lidam com problemas incom- preensíveis para os leigos. No caso do Estado. Trata-se do apelo à intimidade. a sutileza consiste em aumentar propositadamente a obscuridade do discurso para que o cidadão se sinta tanto mais informado quanto menos puder racio- cinar. isto é. sentimentos. portanto referidas a preferências. dando a ilusão de que a propaganda é informa- ção”. perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida privada. As relações sociais e políticas.p65 9 29/9/2010. uma vez que a marca das relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e políticas. que são mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas insti- tuições. as relações intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as rela- ções sociais enquanto sociais e as relações políticas enquanto políti- cas. mas uma consequência necessária dessa pri- vatização do social e do político. às indagações telefônicas de rádios. Em outras palavras. gostos. às entrevistas. agrado e aversão. MARILENA CHAUI e se atém a ‘fatos’. à personalidade. Não é casual. e por isso mesmo nelas os sentimentos. aos comerciais de propaganda. revistas e jornais. pela divisão social das classes e pela separação entre o so- cial e o poder político. emoções. abolindo-se a diferença entre espaço público e es- paço privado. a destruição de uma categoria 9 2 Simulacro e poder 2 reimp. que “provê” os funcionários com informação e o público com desinformação. diferentemente das relações pessoais. 10:16 . são rela- ções mediatas. aos debates. ou seja. as emoções. que são imedia- tas. definidas pelo relacionamento direto entre pessoas. Esse procedimento é empregado pelas burocracias (empre- sariais e estatais) por meio do discurso especializado da técnica e da pseudociência. as preferências e os gostos têm papel decisivo. gostos. Em lugar de opinião pública. Com efeito.p65 10 29/9/2010. de sorte a oferecer aos demais a ilusão de que conhecem os fatos porque têm senti- mentos e preferências sobre eles. Nada mais constrangedor e. era uma reflexão feita em público e por isso definia- se como uso público da razão e como direito à liberdade de pen- samento e de expressão. porque confiam nos sentimentos do entrevistado e porque algum especialista apresentou uma expli- cação crível. a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim que se vai buscar um fundo silencioso. usando para estas últimas o jargão de uma linguagem pseudotécnica ou científica incompreensível. ficando por conta do emissor da notícia oferecer informações. como se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos pes- soais. tem-se a manifestação pública de sentimentos. aver- sões e predileções. A opinião públi- ca era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política. a da opinião pública. Esta. hoje. era definida como a expressão. de um grupo ou mesmo da maioria. que existe sob a forma de sentimentos e emoções. Isso explica o porquê da pergunta que os repórteres incansavel- mente dirigem aos entrevistados. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA essencial das democracias. interpretações e explica- ções. em seus inícios liberais. um fundo não formulado e não refletido. É sintomático que. isto é. perguntando-lhes o que sentem ou o que sentiram diante dos acontecimentos. enquanto locutores explicam e inter- pretam o que se passa. que se procura fazer vir à tona o não-pensado. de preferências. 10:16 . de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social. se fale em “sondagem de opinião”. ao mesmo tempo. no espaço público. como se os participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo de que foram testemunhas 10 2 Simulacro e poder 2 reimp. nada mais esclarecedor do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos. qual seja. como salientamos. lei- tores. espectadores.p65 11 29/9/2010. é a substituição da ideia de uso público da razão para exprimir interes- ses e direitos de um indivíduo. não apenas enquanto ouvintes. protagonistas. ouvintes. em contrapartida. na televisão e na imprensa) descreve e narra e que nada tem a ver com o acontecimento ou o fato de que fomos testemunhas diretas ou participantes diretos. uma partilha é claramente estabelecida: os partici- pantes “sentem”. Constrangedor porque o rádio e a tele- visão declaram tacitamente a incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos e acontecimentos de que são protagonistas. Assim. Os que julgam que 1984 se refere aos regimes totalitários tornaram- se incapazes de perceber que nos chamados países democráticos os procedimentos orwellianos são usados cotidianamente. telespectadores e leitores. Esclarecedor porque esse procedimento permite. entrevistados. explica o acontecimento. parti- cipantes. que diz apenas o que os dirigentes querem que seja dito). cuja função é produzir a mentira: destrói e inventa pala- vras (produz a “novilíngua”. diante de nossos olhos e ouvidos. portanto sabe e. reescreve a história de acordo com os de- sígnios do poder e abole a memória dos acontecimentos reais. O que isso significa? Muitos supõem que o totalitarismo descrito por George Orwell no livro 1984 é algo que se passa nos países do leste europeu e asiáticos. a nós restam apenas sentimentos e emoções. portanto não sabem nem compreendem (não pen- sam). criar a versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio aconteci- mento. no instante mesmo em que se dão. graças ao seu saber. É possível perceber três deslocamentos por que passaram a ideia e a prática da opinião pública: o primeiro. Testemunhas. mas de maneira mais assustadora quan- do somos protagonistas daquilo que o “formador de opinião” (o jornalista no rádio. um grupo ou uma classe social pela 11 2 Simulacro e poder 2 reimp. MARILENA CHAUI diretas e partes envolvidas. o lugar do saber como lugar do poder (voltaremos a isso mais adiante). Nestes regimes totalitários haveria instituições seme- lhantes àquela criada por Orwell com o nome de Ministério da Verdade. porque a opi- nião é emitida de um lugar outro. 10:16 . o locutor pensa. com os meios eletrônicos e digitais e a televisão. é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para exercer esse direito. os jornalistas comen- tam e interpretam as notícias. o terceiro. Ora. pois a notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrô- nicos e pela televisão. de outro. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado de notícias. que ainda não havíamos menciona- do. frequentemente. ou seja. cabia aos jornais a tarefa noticiosa. rápida e. de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada. gostos e preferências individuais. da presença ou au- sência de fotos etc. outros. de racionalidade inexorável do mercado!). O caso mais interessante é. o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam isso de progresso. determinação da página em que deveria aparecer e na vizi- nhança de quais outras. Sem dúvida. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA ideia de expressão em público de sentimentos. o do jornalismo impres- so. O resultado dessa situação foi duplo: de um lado. sem dúvida. a notícia é apre- sentada de forma mínima. assim. a curiosa expressão “formador de opinião”. surgindo. e um jornal era fundamentalmente um órgão de notícias. Em tempos passados. como também observamos. artistas e jornalistas. e. decorre de uma mudança na relação entre os vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afir- mam que o século XXI começou com a existência de dez ou doze conglomerados de mass media de alcance global). pelo modo de apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”. do tamanho do texto. Gradualmente 12 2 Simulacro e poder 2 reimp. os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão ocorren- do. um jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito. Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação.p65 12 29/9/2010. deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião. emoções. de outro. inexata – o paradigma é o jornal US Today e o modelo conhecido como News Letter – e.). aplicada a intelectuais. opinando sobre elas. 10:16 . pelos editoriais e por artigos de não-jornalistas. o segundo. de um lado. o ocupar o lugar que. e fazer jornalismo opinativo ou assertivo. particularmente. os meios de comunicação tradicionais (jornal. 2 Essas várias citações foram feitas a partir de COSTA. ainda que isso sempre tenha imposto proble- mas e limitações à liberdade de expressão. comunicação concentrada”. que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. este último não teriam consequências graves se não tivessem ocorrido ao mesmo tempo em que se deu a concentração do poder econômico midiático. sua opinião não fica restrita ao meio impresso: passa a servir como material para os noticiários de rádio e televisão. de forma aleató- ria e automática. “havendo. porém. assim. para assegurar o que se convencionou chamar de credibilidade e plausibilidade. E. Todavia. mas também os novos meios eletrônicos e digitais. Os jornalista passam. 25 e 26. cinema. nesses noticiários. rádio.p65 13 29/9/2010. se não acompanhar os ares do tempo. para tentar salvar-se. MARILENA CHAUI desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo. julga dever dirigir-se a públicos especí- ficos. no entanto. tradicionalmente. não podendo deixar de exprimir seus interesses par- ticulares ou privados. 13 2 Simulacro e poder 2 reimp. a notícia é interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais. ascensão do partidarismo. os dez ou doze conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais. artigo inédito de julho de 2005. que fundamenta a ideia de opinião pública. finalmente. deixa o leitor ainda mais desconfiado em relação às notícias”. “Modernidade líquida. 10:16 . que. assim. Estudos mostram que. p. Caio Túlio. podendo liquidá-la. e avaliam em termos de custo- benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa. para tentar conservar um público leitor. o jornalista passa “a fazer buscas assertivas glo- bais [via Internet e consulta a “personalidades”]. Hoje. ou seja. televisão) sempre foram propriedade privada de indi- víduos e grupos. rápido e barato. “o jornalismo está ficando cada vez mais rápido. Os deslocamentos mencionados e. cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos. Desse ponto de vista. inexato e barato” e que. e a mesclar informações confiáveis com informa- ções não confiáveis”2. A cultura está impregnada de seu próprio espetáculo. II. examinar. não-investigativo. produzido e enviado pelos meios de co- municação de massa. Não cremos que a dimensão do espetáculo tenha sido criada pela comunicação de massa nem que o espetáculo. Espetáculo e especulação possuem a mesma origem e estão liga- dos à ideia do conhecimento como operação do olhar e da lingua- gem. species a forma visível da coisa real. espectador. portanto. barato. silenciosa sob o tilintar de campai- nhas e inundada pelo perfume do incenso.p65 14 29/9/2010. sua essência ou sua verdade. speculum é o espelho. speculare é ver com os olhos do espírito. acautelar. o jornalis- mo se tornou protagonista da destruição da opinião pública. olhar. Specio: ver. Espetáculo pertence ao campo da visão. observar. ajuizar. do fa- zer ver e do deixar-se ver3. não se coloca diretamente sobre os espetáculos. a festa pública. esperar. à sensibilidade e à imaginação de outrem para que lhes confira sentido e as prossiga. inexato. specto: ver. 10:16 . spectator. observa. a catedral. mescla de informações alea- toriamente obtidas e pouco confiáveis. enquanto tal. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA Rápido. ENCENAÇÃO: A PRODUÇÃO DO SIMULACRO Para muitos. pois é próprio da obra de pensamento e da obra de arte oferecerem-se e exporem-se ao pensamento. mas com o que sucede ao espe- táculo quando capturado. detentor da credibilidade e da plausibilidade. dá lugar a um gigantesco espetáculo oferecido aos fiéis: a encarnação da divindade em obje- tos até então insignificantes. A questão. perceber. pronuncia palavras mágicas do mistério sagrado. ver com reflexão. visão ilusória. o maior malefício trazido à cultura pelos meios de comunicação de massa tem sido a banalização cultural e a redução da realidade à mera condição de espetáculo. Spectabilis é o visível. ergue a hóstia e o cálice. 14 2 Simulacro e poder 2 reimp. A transubstanciação do pão e do vi- 3 A palavra espetáculo vem dos verbos latinos specio e specto. spectrum é aparição irreal. O que é a missa católica senão o espetá- culo do mistério do sagrado? Quando o oficiante. seja um malefício para a cultura. o que vê. Tomemos um exemplo. opinativo ou assertivo. partidarista. no momento da consagração. spetaculum. olhar. provar. mas as autoridades políticas. microfones e pessoas no comando do ofício comunicativo. em 1990. voltado para os fiéis. houve grande movimentação de câmeras. Todavia. do incenso e da reverência pelo mistério máximo do cristianismo. am- bos acompanhados de seus secretários de governo. No instante da consagração e elevação do cálice e da hóstia. ninguém – nem os fiéis nem os sacerdotes – possuía um olhar que permitisse estar em toda parte ao mesmo tempo. como oficiantes. ouviam-se cliques de câmeras fotográficas. os noticiadores do aconte- cimento tornaram-se oficiantes também. pelos lados. e. No espaço entre a nave e o altar. a missa provavelmente não tenha perdido dignidade. foi rezada na Catedral da Sé missa solene. Para a alma do fiel ali presente. ao coração e à mente dos fiéis. operadores das máquinas. pois aquela que de fato aconteceu foi profanada. do centro. fotógrafos. falando ao mesmo tempo que os sacerdotes. microfones. Ora. No momento do ofertório. Os fiéis.p65 15 29/9/2010. repórteres. narrando aos que ficaram em casa o que se passava na igreja – como se os que assistiam à transmissão não soubessem o que é a missa e precisassem de explicações. A ubiquidade das câmeras. no dia 25 de janeiro. a que compareceram a prefeita da cidade e o governador do estado. pro- 15 2 Simulacro e poder 2 reimp. ora no lugar destes. piscar de luzes dos holofotes. só que de outra cerimônia. contemplar o altar do alto. a mis- sa que ouviram ou viram não foi a missa que aconteceu. mistério especulativo e exposi- ção do absoluto ao olhar. Não só isso. comandos aos cameramen e vozes dos apresentadores transmitindo a cerimônia. holofotes. estar ora no lugar do sacerdote. seu simulacro. foi um instante de profanação absoluta e. holofotes. Além de interceptarem a visão dos presentes. técnicos. MARILENA CHAUI nho no corpo de Deus é espetáculo. dia do aniversário da cidade de São Paulo. Na missa realmente acontecida. competindo com a onividência do olhar de Deus. apesar de “explicada”. para os que ficaram em casa. deslocando máquinas e luzes. interferiram na cerimônia religiosa. em lugar do silêncio. voltados para os oficiantes. não puderam presenciar a missa. no entanto. no entanto. postaram-se câmeras de televisão. mas o fantasma dela. 10:16 . dirigindo-se da nave para o interior do altar para dali focalizar não os sacerdotes. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA duziu uma missa inexistente, e esta foi o objeto “transmitido”. É este, cremos, o ponto que merece atenção, isto é, a passagem do espetáculo ao simulacro, a nulificação do real e dos símbolos pelas imagens e pelos sons enviados ao espectador. Outro exemplo. No livro Viagem na irrealidade cotidiana4, Umberto Eco distingue a televisão antiga (que chama de paleotelevisão) da atual (que chama de neotelevisão). Na paleotevê, escreve o autor, o evento acontecia independentemente de sua transmissão. Na neotevê, o acontecimento é preparado para ser transmitido. É assim que, no futebol, a velha bola de couro cru é substituída pela bola xadrez televisiva e, nos estádios, os anúncios publicitários são colocados em locais estratégicos, que permitem sua contínua transmissão, culminando com sua presença nas ca- misetas dos jogadores. Para mostrar a diferença entre as duas formas da televisão, Eco toma as transmissões do casamento de Grace Kelly com o príncipe Rainier, de Mônaco, e o da princesa Diana com o príncipe Charles. Em ambos, houve o momento político-diplomático, a parada militar, a liturgia religiosa e a história de amor. O primeiro, entretanto, ocor- reu na época da paleotevê, ou seja, foi organizado sem qualquer referência ao fato de que seria transmitido, e a televisão precisou “se virar” para transmitir um acontecimento que ocorria por conta própria (ainda que a câmera buscasse privilegiar imagens de opereta, isto é, do romance cor-de-rosa entre o príncipe e a plebéia). No segundo, porém, já se havia passado à neotevê. Agora, diz Eco, “estava absolutamente claro que tudo aquilo que acontecia fora ensaiado para a televisão”. A televisão determinou as cores para vestuários e chapéus das famílias dos noivos e convidados, para a decoração da catedral e do palácio: todas tinham um tom pastel, para que se obtivesse um “ar de primavera televisiva”. O vestido da noiva não foi feito para ser visto de frente, de lado ou por trás, mas foi concebido para ser visto de cima, onde as câmeras se loca- 4 ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. 16 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 16 29/9/2010, 10:16 MARILENA CHAUI lizavam. E os cavalos da realeza foram tratados durante uma se- mana com pílulas especiais, “de tal modo que seu esterco ficasse com uma cor telegênica”. Nada ficou ao acaso: Londres inteira foi preparada como um estúdio construído para a tevê. Em outras pa- lavras, o espetáculo não se referia ao acontecimento e sim à ence- nação do acontecimento, ao seu simulacro. Transformado em simulacro, o que é o espetáculo? No livro A sociedade do espetáculo, Guy Debord escreve: “O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a pró- pria sociedade, como uma parte da sociedade e como instru- mento de unificação. Como parte da sociedade, ele é expres- samente o setor que concentra todo olhar e toda consciên- cia. Pelo fato desse setor estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza é tão-somente a linguagem oficial da separação generalizada”5. No caso do Brasil, um exemplo contundente de neotevê é o programa dominical da Rede Globo de Televisão denominado “Fan- tástico”, que, significativamente, traz como subtítulo “O show da vida”. A programação acompanha de perto os acontecimentos nacionais, mas só em raras ocasiões os menciona diretamente. Em lugar da menção direta, as imagens e os textos oferecem uma interpretação e um comentário indireto. Suponha-se, por exem- plo, que o governo federal tenha anunciado um crescimento signi- ficativo do emprego formal no país. O programa irá interpretar e comentar o fato, encenando-o sem mencioná-lo uma única vez: se a empresa de televisão apóia o governo, o “show da vida” apresentará um quadro com jovens e idosos que obtiveram em- pregos e estão muito felizes; se a empresa se opõe ao governo, o quadro exibirá pessoas desempregadas, de várias idades e clas- ses sociais. Embora esses quadros possam ter grande impacto 5 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 14. 17 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 17 29/9/2010, 10:16 SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA político, graças à encenação da informação e ao ocultamento da intenção persuasiva, o forte do “Fantástico” encontra-se no trata- mento dado à ciência e à técnica. Em uma inversão, verdadeira- mente fantástica, as descobertas científicas e técnicas são apre- sentadas como se fossem obra de magia – laboratórios são ence- nados de maneira a aparecer no vídeo em tons pastéis, fartamen- te iluminados, repletos de aparelhos incompreensíveis, dando a impressão de um saber que escapa ao comum dos mortais, que se posta diante deles como se fossem as modernas cavernas de magos e bruxas; as falas e os depoimentos de cientistas e técnicos são “editados”, isto é, selecionados e cortados, de maneira a enfatizar os aspectos supostamente misteriosos e miraculosos do trabalho científico e técnico. A inversão, porém, não se interrompe nesse ponto, mas prossegue: se não no mesmo programa, certamente no domingo seguinte, astrólogos, leitores de cartas, búzios e mãos são apresentados como cientistas, de sorte que, agora, a magia aparece como ciência. Da astrologia à astronomia e desta àquela não há solução de continuidade, assim como é contínuo o movi- mento de vaivém entre, por exemplo, a pesquisa biológica e as poções de um curandeiro. A encenação se realiza por meio de uma operação precisa: a ciência simula a magia e a magia simula a ciência. Sem dúvida, isso é fantástico! O programa, porém, só se completa no momento em que a descoberta científica e o pito- resco, a aplicação técnica e a operação miraculosa são igualmen- te elevadas ou depreciadas pela figura da autoridade, ou seja, do(a) “âncora”, que se coloca como detentor do “verdadeiro saber” porque detém o poder de interpretar, comentar, traduzir e trans- mitir a suposta informação, manipulando simulacros. Uma crítica contundente da neotevê ou da encenação foi feita pelo cinema, com o filme The Truman Show. O título, como se observa, é um jogo de palavras em inglês com os vocábulos true, man e show. Truman é um nome próprio, um sobrenome; true quer dizer verda- deiro (pronuncia-se tru); man, homem; show, espetáculo, e o verbo to show quer dizer mostrar. O título diz, portanto: “espetáculo de Truman”, isto é, “espetáculo do homem verdadeiro”. 18 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 18 29/9/2010, 10:16 descobre a verdade (em inglês. to show) a verdade. encarou a tomada de decisão real e verdadeira como se fosse ficção. ou o Grande Irmão (a melhor tradução seria Irmão mais Velho). na qual todos são permanentemente vigiados por câmeras de televisão. a impossibilidade da comunicação e o medo de comunicar-se. Truman. as pessoas que conhece e com quem convive não existem realmente. verdade se diz truth) e terá que tomar uma decisão essencial: permanecer na ficção como espetáculo (show) ou tornar-se homem verdadeiro (em inglês. 10:16 . porém. desde o nasci- mento. Ele se decidirá pela segunda alternativa. É uma personagem do romance de George Orwell. ao nascer. O ponto alto do filme. enfrentando-a. o em- prego que possui. MARILENA CHAUI De que se trata? De um jovem. Escrito em 1948 (data invertida para 1984). que. durante anos o público acompanhou o programa como se o espetáculo da vida de Truman fosse realidade. Esse filme tem na mira a crítica de um estilo de programas da televisão norte-americana que foi copiado pela televisão brasileira em duas versões: “Casa dos Artistas” (transmitido pelo Sistema Brasileiro de Televisão – SBT) e “Big Brother” (transmitido pela Rede Globo). cresceu e vive. Por acaso. sendo presos e torturados quando infringem alguma re- gra ou lei e submetidos a violentos processos físicos e psíquicos de condicionamento para não voltar a transgredir. o romance se passa em uma sociedade totali- tária. transmitido ao vivo durante 24 horas para todo o país. distingue realidade e fic- ção.p65 19 29/9/2010. o “Truman Show”. Como 19 2 Simulacro e poder 2 reimp. true man) e mostrar (em inglês. verdade e simulacro. porém. Não sabe que. a escola que frequentou. foi ven- dido pela família para um programa de televisão. encontra-se na atitude do público de televisão: embora sabedor da farsa. ou o protagonista. mas são atores. mas o público tornou-se irremediavel- mente incapaz dessas distinções. Truman não sabe que é uma personagem de televisão e não sabe que a cidade- zinha onde nasceu. que mencionamos no início deste texto. vive em um cenário e que é visto por todo o país todas as horas do dia. A maioria do público brasileiro talvez não saiba o que é e quem é Big Brother. 1984. Truman. Reinam a solidão. Hannah. 20 2 Simulacro e poder 2 reimp. ainda que possa ser crítico das modalidades do entretenimento que entretêm a do- minação social e política. senão dar-lhes ordens. transformada em festa de fogos de artifício. o Grande Irmão (ou o Irmão mais Velho). o ponto culminante da encenação e do simulacro foi alcançado pela rede de notícias CNN com a transmissão. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA forma de compensação.p65 20 29/9/2010. que os vigia e lhes fala sem. para que a força de trabalho aumente sua produtividade. Perspectiva. Certamente. como mostram estudiosos marxistas. o Big Brother. seja. ENTRETENIMENTO Hannah Arendt6 apontou a transmutação da cultura sob os impe- rativos da comunicação de massa. sem dor e sem odor. para que o controle social e a domi- nação se perpetuem por meio da alienação. corações e mentes dos indivídu- os por sistemas cruéis de vigilância em sociedades totalitárias foi banalizado. São Paulo. Esse extraordinário e terrível ro- mance sobre o controle de corpos. 1972. Um entretenimento. dizer-lhes coisa alguma. sem mortos nem feridos. como mostrou Marx. a transformação do traba- lho cultural. “A crise na cultura: sua importância social e política”. Evidentemen- te. Seja. escreve ela. as pessoas “conversam” com uma tela de televisão na qual há um rosto bondoso. ao vivo e em cores. na verdade. todos os dias e várias vezes por dia. III. porque o lazer e o entretenimento são exigências vitais do metabolismo humano. das obras de pensamento e das obras de arte. graças ao descanso. os seres humanos necessitam vitalmente do lazer e do entretenimento. dos atos cívicos e religiosos e das festas em entretenimento. Ninguém há de ser contrário ao entretenimento. Seja qual for nossa concepção do entre- 6 ARENDT. In: Entre o passado e o futuro. 10:16 . seja. virando um programa de televisão “engraçado e diver- tido”. Um entretenimento. isto é. da Guerra do Golfo. como assinala Arendt. em 1991. É um deixar passar o tempo como tempo livre e desobrigado. 5) de for- mas de conhecimento que desvendam a realidade e instituem rela- 21 2 Simulacro e poder 2 reimp. de exploração. é a ação para dar a pensar. mas também o passatempo. O entretenimento é uma dimensão da cultura tomada em seu sentido amplo e antropológico. efêmero. é certo que sua característica principal não é apenas o repouso. ou seja. MARILENA CHAUI tenimento. quando a obra de arte e a de pensamento capturam a experiência do mundo dado para interpretá- la.p65 21 29/9/2010. tornarem-se eventos para consumo. dar a refletir. Em segundo lugar. 10:16 . a imaginar e a sentir o que se esconde sob as expe- riências vividas ou cotidianas. transformando-as em obras que as modificam porque se tornam conhecidas (nas obras de pensamen- to). dar a ver. Sob a ação dos mass media. pois é a ma- neira como uma sociedade inventa seus momentos de distração. a cultura é um direito do cidadão. é trabalho. sem passado e sem futuro. dominação e exclusão social. passageiro. a cultura possui três traços principais que a tor- nam distante do entretenimento. O passatempo ou o entretenimento di- zem respeito ao tempo biológico e ao ciclo vital de reposição de forças corporais e psíquicas. tornarem-se consagração do consagrado pela moda e pelo consumo. direito de fazer cultura e de participar das deci- sões sobre a política cultural. como tempo nosso (mesmo quan- do esse “nosso” é ilusório). Com a imagem da cultura de massa. o entreteni- mento se distingue da cultura quando entendida como trabalho cria- dor e expressivo das obras de pensamento e de arte. transcendê-la e transformá-la – é a experimentação do novo. 3) de experimenta- ção do novo. lazer e repouso. No entanto. 4) de duradouras. os meios de comunicação negam esses traços da cultura. Em primeiro lugar. em uma sociedade de classes. tornarem-se reprodutivas e repetitivas. Pelo prisma da criação e expressão das obras de pensamento e das obras de arte. por isso mesmo. como: 1) de expressivas. tornarem-se parte do mercado da moda. criticá-la. 2) de trabalho da criação. Em terceiro. as obras de pensamento e de arte correm vários riscos. diversão. movimento de criação do sentido. densas. direito de acesso aos bens e obras culturais. novas e profundas (nas obras de arte). greves. A chamada cultura de massa se apropria das obras culturais para consumi-las. não espanta que tudo se reduza. por sua vez. que impõe a obrigação política vertical entre os cidadãos). ilusão falsifica- dora. e a racionalidade prática da ética e do direito. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA ções com o verdadeiro. destruí-las.p65 22 29/9/2010. devorá-las. Contra o desperdício da experiência. festas. aversão. 10:16 . por seu turno. senti- mentos. publicidade e propaganda. Cortez Editora. 22 2 Simulacro e poder 2 reimp. tornarem-se dissimulação. Boaventura de Souza Santos7 considera que este assentou-se sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação. IV. a racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica. assentou-se sobre três princípios: o Estado (ou a soberania indivisa. cerimônias religiosas. obras de pensamento). obras de arte. tragédias. DESTRUIÇÃO DA AUTONOMIA DO PENSAMENTO E DAS ARTES: INDÚSTRIA CULTURAL Examinando o projeto moderno. O pilar da emancipação. É isto o mercado cultural. po- líticas. O pilar da regulação. da banalização e do simulacro. Justamente porque o espetáculo se torna simu- lacro e o simulacro se põe como entretenimento. Mais do que isso. genocídios. foi constituído por três lógicas de autonomia racional: a racionalidade expressiva das artes. catástrofes naturais e das cidades. nulificá- las em simulacros. da futilidade. O projeto da modernidade julgava possível o desenvolvimento harmonioso da regulação e da emancipação e a racionalização completa da vida 7 SANTOS. o mercado (que im- põe a obrigação política horizontal individualista e antagônica) e a comunidade (ou a obrigação política horizontal solidária entre seus membros). a uma questão pessoal de preferência. os meios de co- municação de massa transformam tudo em entretenimento (guer- ras. Crítica da razão indolente. ao fim e ao cabo. São Paulo. Visto que a destruição dos fatos. predileção. 2000. gosto. Boaventura de Sousa. acontecimentos e obras segue a lógica do consumo. Em outras palavras. da ética e do direito. MARILENA CHAUI individual e coletiva. Rio de Janeiro. 211. hoje clássico. o vínculo interno entre sua unida- de e sua durabilidade.p65 23 29/9/2010.) Teoria da cultura de massa. seu pertencimento necessário ao contexto no qual se encontra e sua participação em uma tradição que lhe dá sentido. a autonomia racional do pensamento e das artes se refere ao fim de sua subordinação aos imperativos da reli- gião institucionalizada em igrejas e formulada em teologias. ou ao campo artístico propriamente dito. é sua autenticidade. 10:16 . Costa (org. o caráter abstrato dos princípios de cada um dos dois pilares levou cada um deles à tendência a maximizar-se com a exclusão do outro. L. A obra de arte possui aura ou é aurática 8 BENJAMIN. Para realizar sua análise. Fundamentalmente. Paz e Terra. das artes. distinguindo o mo- mento religioso do momento autônomo pela distinção entre seu “valor de culto” e seu “valor de exposição”. p. quando seu sentido e seu valor deixam de ser definidos por seu lugar na legitimação de dogmas (obras de pensamento) e nos cultos (obras de arte). Walter. A aura é a absoluta singularidade de um ser – natural ou artístico –. quando não estão a serviço de dogmas religiosos nem estão ligadas a rituais religiosos. 23 2 Simulacro e poder 2 reimp. sua qualidade de eternidade e fugacidade simultâneas. No caso da obra de arte. o ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” 8. Benjamin introduz o conceito de aura. sua condição de exemplar único. que se oferece num aqui e agora irrepetíveis. In: LIMA. Todavia. 1978. Nada melhor para expor a questão da autonomia das artes do que um texto. e a articulação entre o pro- jeto moderno e o surgimento do capitalismo assegurou a vitória do pilar da regulação contra o da emancipação. “A obra de arte na época de sua reprodubilidade técnica”. escrito por Walter Benjamin em 1935. isto é. A vitória do pilar da regulação (Estado e mercado) opera no sen- tido de esmagar o pilar da emancipação e para isso destrói a auto- nomia racional do pensamento. Nesse ensaio. Benjamin acompanha o movimento histórico e so- cial de passagem das artes do campo religioso ao de sua autono- mia. a arte sempre foi reprodutível. não está no fato da reprodução e sim na nova modalidade de reproduzir: a reprodução técnica. que conservaram mesmo quando deixaram de ser parte da religião para se tornar autônomas e belas-artes. torna impossível distinguir original e cópia. como na fotografia. que permite a existência do objeto artístico em série e que. Seu declínio deriva da “difusão e intensidade crescente dos movimentos das massas modernas”. conservou o caráter aurático da obra de arte. no disco e no cine- ma. Essa origem religiosa transmitiu às obras qualidade aurática. du- radoura e efêmera. ou melhor. Todavia. una. nova e participante de uma tradição. então. 24 2 Simulacro e poder 2 reimp. é preciso. em certos casos. embora algo deste ainda tenha permaneci- do. pois desconsideravam que a mudança técnica trazia consigo também a mudança do conceito de arte. ao surgir. isto é. ao mesmo tempo. a partir do momento em que a figura humana se torna ausente. em uma con- cepção anacrônica da arte. que desejam apaixonadamente que as coisas fiquem “mais próximas” e por isso aspiram a “superar o caráter único de todos os fatos por meio de sua reprodutibilidade”. Evidentemente. presentificar os deuses aos homens – tornando o divino próximo e imanente. 10:16 . Benjamin julga que as polêmicas do século XIX em torno da fotografia e do cinema como arte fundavam-se em uma confusão. Porque. ou quando se passou de sua inserção no culto religioso à sua autono- mia no culto do belo. ao substituir o culto dos deuses. desfaz as pró- prias ideias de original e cópia. Se o culto do belo. A questão.p65 24 29/9/2010. Mas não só isso. o valor expositivo suplanta o valor de culto. o papel central do retrato ou do rosto nos primórdios da reprodução fotográfica. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA quando possui as seguintes qualidades: é única. Com a fotografia. irrepetível. quando se leva em conta. capaz de tornar distante o que está próximo e estranho o que parecia familiar porque transfigura a realidade. explicar como a aura foi perdida ou destruída. preva- lece por inteiro o valor de exposição. bas- tando ver discípulos imitando mestres. por exemplo. portanto. as artes tinham como finalidade sacralizar e divinizar o mundo – tornando-o distante e transcendente – e. diz Benjamin. MARILENA CHAUI “Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia trans- formar em seus objetos a totalidade das obras de arte tra- dicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os proce- dimentos artísticos”9. A destruição da aura está prefigurada como possibilidade inscrita na própria essência da obra de arte porque, além do valor de culto, ela possui também o valor de exposição, e este último suscita a reprodutibilidade quando as condições sócio-históricas a exigirem e a possibilitarem. “À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu em um momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa”10. Walter Benjamin assumia uma posição otimista, pois imaginava que a reprodução das obras de arte (pelo livro, pelas artes gráficas, pela fotografia, pelo rádio, pelo fonógrafo e pelo cinema) permitiria à maioria das pessoas o acesso a criações que, até então, uns pou- cos podiam conhecer e fruir. Em outras palavras, esperava que 9 BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 211. 10 Idem, ibidem. 25 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 25 29/9/2010, 10:16 SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA houvesse não só a democratização da cultura e das artes, mas so- bretudo que estas pudessem colocar-se na perspectiva da revolu- ção comunista e da crítica revolucionária. Esse otimismo não era infundado. De fato, quando levamos em consideração os efeitos sociais e políticos do primeiro grande meio de comunicação de massa, isto é, a invenção da imprensa por Gutemberg, podemos verificar sua importância para a democrati- zação da cultura. O primeiro livro impresso foi a Bíblia, cujos ma- nuscritos em hebraico, aramaico, grego e latim só eram lidos por especialistas (rabinos, sacerdotes, teólogos), enquanto o restante da sociedade a ouvia em línguas que ninguém compreendia. Ao iniciar o movimento da Reforma Protestante, no final do século XV, Lutero traduziu a Bíblia para o alemão e foi essa tradução que Gutemberg imprimiu. Pela primeira vez, o texto sagrado dos cris- tãos podia ser lido por todos os que conheciam o alemão. Da mesma maneira, com Calvino, surge a tradução francesa e sua impressão e, com a Reforma inglesa, a tradução para o inglês e sua impressão nessa língua. Para difundir a religião reformada, os protestantes realizaram a alfabetização dos fiéis para que todos pudessem ler as Sagradas Escrituras. Como escreveu um historia- dor inglês, a Bíblia foi democratizada. Essa leitura fez com que camponeses, na Alemanha, assim como trabalhadores do campo e das cidades, na Inglaterra e na Holanda, se dessem conta do abismo que separava os ensinamentos bíblicos e as práticas dos governantes, dos Grandes e da Igreja romana. Deram-se conta da crueldade, da injustiça e da tirania. E se rebelaram em toda parte, exigindo justiça e liberdade. No entanto, o otimismo de Walter Benjamin não era cego. Co- mentando o significado social e político do cinema, escreve: “Enquanto o capitalismo continuar conduzindo o jogo, o único serviço que se pode esperar do cinema em favor da Revolução é o fato de permitir a crítica revolucionária das antigas concepções da arte. Ao dizer isso não negamos que 26 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 26 29/9/2010, 10:16 MARILENA CHAUI ela possa ir ainda mais longe e favorecer a crítica revolucio- nária das relações sociais, inclusive do próprio estatuto da propriedade. [...] As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa diante da arte. Muito reacionária diante, por exemplo, de um Picasso, a massa mostra-se progressista diante, por exemplo, de um Chaplin. A característica de um comportamento progressista reside no fato de o prazer do espetáculo e a experiência vivida correspondente ligarem-se, de modo direto e íntimo, à ati- tude do conhecedor. Essa ligação tem uma importância so- cial. À medida que diminui a significação social de uma arte, assiste-se no público a um divórcio crescente entre o espírito crítico e a fruição da obra”11. Enquanto “o capitalismo continuar conduzindo o jogo”, o nazifascismo é uma possibilidade, como mostrou a experiência his- tórica. Representado sobretudo pelo movimento futurista nas artes, o nazifascismo propôs uma cultura de massa fundada na ideia da política como obra de arte, envidando esforços para estetizar a po- lítica e empregar técnicas de comunicação para mobilizar as mas- sas sem tocar no regime da propriedade. Ora, quando o uso das forças produtivas é paralisado pelo regime da propriedade, o prodigioso crescimento do conhecimento científico e dos meios tecnológicos não se dirige à abundância e à emancipação das massas, mas conserva o desemprego e a ausência de mercados. Como dar vazão ao gigan- tesco potencial técnico contido no modo de produção? Por meio da guerra. Esta se torna, assim, o grande elemento mobilizador das mas- sas. Estetizar a política significa glorificar a guerra ou, como procla- ma o Manifesto Futurista, declarar que “a guerra é bela”. Conclui Benjamin: “a tarefa do comunismo é politizar a arte”. Em outras palavras, Benjamin permanece atento aos efeitos do jogo capitalista. 11 Idem, ibidem, p. 230. 27 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 27 29/9/2010, 10:16 não transcende o mundo dado. Surge a indústria cultural. desde o início. 10:16 .) Teoria da cultura de massa. sob o pode- rio do capital. a imaginação. Theodor. pois ambos são mercadorias – “o amusement é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo avan- çado. ibidem. a partir da segunda Revolução Industrial. que peça atividade em vez de passividade. Paz e Terra. expressão cunhada por Theodor Adorno e Max Horkheimer para definir a transformação das obras de arte em mercadoria e a prática do consumo de “pro- dutos culturais” fabricados em série. mantém tudo sob pressão tanto no traba- lho quanto no lazer que lhe é semelhante”12. Dessa maneira. é “arte sem sonho”. as artes foram submetidas a uma nova servidão: às regras do mer- cado capitalista. a consciência. a sensibilidade. Perdida a aura. atual- mente. Max e ADORNO. o pensamento e a crítica tanto do artista como do público. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA De fato. crítica e invenção das artes ficou reduzida a algumas produções da 12 HORKHEIMER. Como escrevem Adorno e Horkheimer. 165. “Indústria cultural”. massificou-se e transformou-se em distração e di- versão para as horas de lazer. Qual o efeito do entretenimento como descanso? A hostilidade diante de tudo que possa ser mais do que simples divertimento. p. a obra de arte. L. p.Costa (org.p65 28 29/9/2010. 1978. A força de conhecimento. Todavia. no século XIX. é sono em que adormecem a criatividade. 28 2 Simulacro e poder 2 reimp. as obras de arte críticas e radicais foram esvaziadas para se tornar entretenimento. para que estejam de novo em condições de afrontá-lo”13. 174. In: LIMA. Rio de Janeiro. Em outras palavras. e outras passaram a ser produzidas para celebrar o existente. em lugar de compreendê-lo. a classe dominante passou a controlar também o descanso. Os produtos da indústria cultural buscam meios para ser alegremente consumidos em estado de distração. a arte não se democratizou. É procurado por aqueles que querem subtrair-se aos pro- cessos de trabalho mecanizados. cada um desses meios “é um modelo do gigantesco mecanismo econô- mico que. 13 Idem. além do controle sobre o trabalho. criticá-lo e propor outro futuro para a humanidade. cada um escolhendo livremente o que deseja. perceberemos que o mesmo mundo – este no qual todos vivemos – transforma-se em cinco ou seis mundos diferentes ou mesmo opostos. e há obras “baratas” e “comuns”. Que significa isso? A indústria cultural vende cultura. 10:16 . Em terceiro lugar. inventa figuras chamadas “espectador médio”. a qualidade gráfica de letras e imagens. trans- formando-se em sinal de status social e prestígio para artistas e consumidores e em forma de controle social pelos proprietários pri- vados dos meios de comunicação de massa. No caso dos jornais e revistas. a qualidade do papel. certos conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”. aos quais são atribuídas certas capacidades mentais “médias”. por exemplo. cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais. em uma manhã. Como opera a indústria cultural? Em primeiro lugar. Assim. cinco ou seis jornais. a indústria cultural introduz a divisão social entre elite “culta” e massa “inculta”. Em segundo. formando uma elite cultural. Para 29 2 Simulacro e poder 2 reimp. separa os bens culturais por seu suposto valor de mercado: há obras “caras” e “raras”. o tipo de manchete e de matéria publicada definem o consumidor e determinam o conteúdo daquilo a que terá acesso e o tipo de informação que poderá receber. em vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cul- tural. oferecendo-lhes produtos culturais “mé- dios”.p65 29 29/9/2010. em função do leitor que a empresa jornalística tem interesse (econômi- co e político) de atingir. destinadas à massa. basta darmos aten- ção aos horários dos programas de rádio e televisão ou ao que é vendido em bancas de jornais e revistas para vermos que as em- presas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada grupo social pode e deve ouvir. como o consumidor em um supermercado. MARILENA CHAUI arte erudita – a arte de vanguarda – e da chamada arte de protesto. enquanto todo o restante foi destinado a um consumo rápido. destinadas aos privilegia- dos que podem pagar por elas. “ouvinte médio” e “leitor médio”. Se comparar- mos. No entanto. pois um mes- mo acontecimento recebe cinco ou seis tratamentos diversos. ver ou ler. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, trazer-lhe informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A “média” é o senso comum cristalizado, que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova. Em quarto lugar, define a cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração, de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho criador e expressivo da sensibilida- de, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse, não “vende”. Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e intelectual. Em lugar de difundir e divulgar a cultura, despertando interesse por ela, a indústria cultural realiza a vulgari- zação das artes e dos conhecimentos. Adorno e Horkheimer assinalam que a “atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural” não deve ser explicada em termos psicológicos, pois “os próprios produtos paralisam aque- las faculdades”. São feitos de modo que a sua apreensão adequada exige rapidez de percepção, capacidade de observação e compe- tência específica, porém impedem, efetivamente, a atividade men- tal do espectador, se ele não quiser perder os fatos que se desenro- lam rapidamente à sua frente. V. A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA Para avaliarmos o significado contemporâneo da indústria cul- tural e dos meios de comunicação de massa que a produzem, con- vém lembrar, brevemente, o que se convencionou chamar de a condição pós-moderna, isto é, a existência social e cultural sob a economia neoliberal. Que acontece quando o capitalismo passa à forma neoliberal? Examinando a nova forma capitalista, David Harvey14 aponta a 14 HARVEY, David. A condição pós-moderna, São Paulo, Loyola, 1992. 30 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 30 29/9/2010, 10:16 MARILENA CHAUI diferença entre as fases industrial e pós-industrial do capitalismo e sublinha o fato de que, na fase industrial, com o modelo fordista, o capital induzira o aparecimento das grandes fábricas (nas quais se tornavam visíveis as divisões sociais, a organização das classes e a luta de classes) e ancorara-se na prática de controle de todas as etapas da produção (da extração da matéria-prima à distribuição do produto no mercado de consumo), bem como nas ideias de qua- lidade e durabilidade dos produtos (levando, por exemplo, à forma- ção de grandes estoques para a travessia dos anos). Em contra- partida, na fase dita pós-industrial, imperam: 1) a fragmentação e a dispersão da produção econômica (incidindo diretamente sobre a classe trabalhadora, que perde seus referenciais de identidade, de organização e de luta); 2) a hegemonia do capital financeiro; 3) a rotatividade extrema da mão de obra; 4) os produtos descartáveis (com o fim das ideias de durabilidade, qualidade e estocagem); 5) a obsolescência vertiginosa das qualificações para o trabalho em de- corrência do surgimento incessante de novas tecnologias; e 6) o desemprego estrutural, decorrente da automação e da alta rotatividade da mão de obra, causando exclusão social, econômica e política. A desigualdade econômica e social atinge níveis jamais vistos e não só mantém a distância entre países centrais ricos e países periféricos pobres, como ainda, em todos eles, divide a socie- dade entre bolsões de riqueza e bolsões de miséria. O Estado, por seu turno, distancia-se do modelo do bem-estar social, no qual, como explica Francisco de Oliveira15, o poder públi- co regulamentava e fiscalizava a economia e os fundos públicos eram dirigidos não somente para o financiamento do capital, mas também para o da reprodução da força de trabalho, por meio dos direitos sociais ou do salário indireto. O esgotamento desse modelo político decorre de duas causas principais: de um lado, o endividamento do Estado ou o déficit fiscal, de outro a pressão dos 15 OLIVEIRA, Francisco de. “O surgimento do antivalor. Capital, força de trabalho e fundo público”. In: Os direitos do antivalor. A economia política da hegemonia imperfeita. Coleção Zero à Esquerda, Petrópolis, Vozes, 1998. 31 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 31 29/9/2010, 10:16 SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA grupos capitalistas dirigentes, por meio de seus teóricos, contra a regulação estatal da economia e sobretudo contra o financiamento dos direitos sociais dos trabalhadores, exigindo que a totalidade dos fundos públicos seja dirigida ao capital. Implementa-se o Estado neoliberal e com ele o encolhimento do espaço público e o alarga- mento do espaço privado, isto é, o mercado. A dimensão econômica e social da nova forma do capital é inseparável de uma transformação sem precedentes na experiên- cia do espaço e do tempo, designada por David Harvey como a “compressão espaço-temporal”. A fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e a dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, a compressão do espaço – tudo se passa “aqui” sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa “agora” sem passado e sem futuro. Em outras palavras, a fragmentação e a dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado (um espaço plano de imagens fugazes) e um tempo efêmero des- provido de profundidade. Paul Virilio16 fala de acronia17 e atopia18, ou da desaparição das unidades sensíveis do tempo e do espaço vivido sob os efeitos da revolução eletrônica e informática. A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instantâneo. Por seu turno, a profundidade de campo, que define o espaço da per- cepção, desaparece sob o poder de uma localidade sem lugar e das tecnologias de sobrevoo. Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação, que impossibilitam diferenciar entre a aparência e 16 VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro, Editora 34, 1993. 17 Em grego, kronos significa tempo, donde cronologia, cronômetro etc.; acronia significa sem tempo, ausência do tempo. 18 Em grego, topos significa lugar, o espaço diferenciado por lugares e por qualidades como próximo, distante, alto, baixo, pequeno, grande etc., donde topologia, topografia; atopia significa sem lugar, ausência de um espaço diferenciado. De topos vem utopia, que, segundo alguns, significa lugar nenhum e, segundo outros, lugar perfeito ainda inexistente. 32 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 32 29/9/2010, 10:16 1978. Gallimard. mas. mas também perdemos a profundidade do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situações dadas. p. apre- sentadas como evidências. o virtual e o real. MARILENA CHAUI o sentido. 33 2 Simulacro e poder 2 reimp. e na realidade só nos resta uma prolixidade repetitiva. escrito por Maurice Blanchot em A conversa infinita: “Queremos estar a par de tudo o que se passa no exato momento em que se passa. potên- cia imaginativa –. L’entrétien infini. hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota em um presente sentido como instante fugaz. as imagens dos aconteci- mentos e as palavras que as transmitem. Quantas pessoas ligam o rádio e deixam o cômodo onde ele está. pois tudo nos é imediatamente dado sob a forma da transparência temporal e espacial das aparências. à força de serem tidos por simples meios. no final das contas. cultura.p65 33 29/9/2010. ou ausência da profundidade do passado. Que se passa com os meios? “Os meios de comunicação – linguagem. Paris. Queremos saber o que se passa e onde se passa. sem atraso. não só rumamos para o que Virilio chama de “memória imediata”. satisfeitas com esse ruído longín- quo? Absurdo? De jeito nenhum. que nada diz e nada mostra. mas significativo. Volátil e efêmera. Vale a pena citar aqui um trecho longo. O essencial não é que um 19 BLANCHOT. 358. Nos vídeos. compreendendo e transformando o sentido delas. perdem sua força mediadora. Acreditamos conhecer as coisas imediatamente. 10:16 . Ao perdermos a diferenciação temporal. sem imagens e sem palavras. não há outro acontecimento senão esse movimento de transmissão universal: reino de uma enorme tautologia”19. em nossos ouvidos não so- mente se inscrevem. Maurice. haja entretanto palavra e como uma promessa indefinida de comunicar. e por fim. O efeito é evidente: a despolitização. a seguir. De fato. pelo olhar irresponsável.p65 34 29/9/2010. já não pode ser alcançado. bem protegido entre as quatro paredes de sua casa e de sua existência familiar. por uma contemplação superficial. mas fascinado. desde que pousemos o olhar desinteressado sobre sua ima- gem. no repouso e na segurança. “Não temos que nos inquietar com os acontecimentos. des- preocupada e satisfeita. ibidem. O mundo vira espetáculo do espe- táculo da comunicação. oferece- se à nossa vista em seu conjunto. 21 Idem. que sempre te- 20 Idem. dei- xa que o mundo venha a ele. se no mesmo momento. E nada nos pode inquie- tar. pois não é mais aquilo que se vive. O mundo inteiro nos é oferecido sob a forma do olhar. suas testemunhas superiores?”21. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA certo homem se exprima e um outro o escute. ninguém em particular falando e ninguém em particu- lar ouvindo. Para que tomar parte numa manifestação de rua. um olhar simplesmente curioso. garantia do vaivém incessante das palavras solitárias”20. O homem. produzida e reproduzida. 10:16 . graças a um aparelho de televisão assistimos à manifestação ali onde. simulacro e descrição sem nenhuma relação ativa. mas sim que. sem perigo. O cotidiano. mas aquilo que se olha. A despolitização está ligada a este movimento. “A prática é substituída pelo pseudoconhecimento. certo de que não vai mudar porque vê e ouve. 34 2 Simulacro e poder 2 reimp. deixando-nos acreditar que ela só existe para nós. escreve Blanchot. E o homem de governo. que se mos- tra. um olhar vazio. ibidem. Marshall McLuhan24 comparou as diferenças pedagógicas entre o ensino baseado no livro impresso e o ensino contemporâneo. Ademais. a palavra “mídia” passou a ser empregada como se fosse uma palavra feminina no singular – “a mídia”. a fotografia e a televisão. os alunos aprendiam ouvindo o professor e repetindo o que ele dizia. São Paulo. estão dizendo: “os meios”. Como eram teóricos de língua inglesa. havendo mesmo técnicas especiais para aprender a memorizar. diziam: mass media. 1977. que empre- ga recursos audiovisuais. OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO A expressão comunicação de massa foi criada para se referir a objetos tecnológicos capazes de transmitir a mesma informação para um vasto público ou para a massa. 35 2 Simulacro e poder 2 reimp. p. Na Antiguidade e na Idade Média. 24 MCLUHAN. Em seu famoso estudo sobre os novos meios de massa – celebrizado com a afirmação “o meio é a mensagem” –. Por apropriação da terminologia desses teóricos no Brasil. além das aulas. “meio” se diz medium e. Os primeiros teóricos dos meios de comunicação empregaram a palavra latina media. Marshall. os estudantes copiavam ou produziam para seu uso pessoal manuscritos de gramática. a publici- dade ou propaganda.p65 35 29/9/2010. Inicialmente. A galáxia de Gutenberg. ibidem. estendeu-se para a imprensa. em inglês. VI. no plural. Pouco a pouco. Esses objetos tecnológicos são os meios por intermédio dos quais a informação é transmitida ou comunicada23. res- salta ele. 23 Em latim. “meios” se diz media. Nacional. isto é os meios de massa. 10:16 . o que não era requerido pelo rádio nem pelo cinema em seus começos. pois a imprensa pressupunha pessoas alfabetiza- das. do latim media é “mídia”. dicionários. alegra-se por ser apenas um empreende- dor de espetáculos. MARILENA CHAUI meu e teme a rua. A pronúncia. nos cursos mais avançados. o ensino era fundamentalmente oral e exigia grande trabalho da memória. Quando os teóricos de língua inglesa dizem “the media”. ensinamentos bá- 22 Idem. hábil em adormecer em nós o cidadão a fim de manter acordado na semi-obscuridade e na semi- sonolência o infatigável olhador de imagens”22. 359. referia-se ao rádio e ao cinema. da voz. em vez de com a sabedoria. os novos meios de comunicação são visuais e sonoros. à mecanização da escrita. finalmente. McLuhan fala em “mecanização” da expressão humana. por ser orais. em um ensaio intitulado “Visão. pois todos os estudantes dependiam da aula ministrada pelo professor e memorizavam o ensinamento por meio de discussões e disputas com os colegas. Além disso. surgiu o estudo solitário e individual como algo mais importante do que a discussão e a disputa coletivas. do livro impresso). De fato. Benjamin falava em “reprodutibilidade” da obra de arte. Escreve ele. como as da Antiguidade e da Idade Média. prossegue McLuhan. Hoje em dia. Mas à im- prensa. da televisão e do computador às escolas. As escolas. com a televisão. no final de tal processo. Essa situação mudou com a chegada do livro impresso. A isso seguiu-se a mecanização da fala no telefone. chegamos a aliar a habilidade de ler velozmente com a distração. som e fúria”: “Antes da imprensa. sucederam no século XIX a fotografia e em seguida a mecanização dos gestos huma- nos no filme. com a chegada do rádio. Após a imprensa. mas também as aulas passaram a apoiar-se nos escritos. que escapulia ao longo das su- perfícies do texto impresso. do disco. O ensino e o aprendizado. usam muito pouco a escrita (com exceção do jornalismo impresso) e estimu- lam a oralidade. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA sicos de aritmética e geometria. do gesto e da figu- 36 2 Simulacro e poder 2 reimp. eram coletivos. sobreveio a mecanização da totalidade da expressão humana. exigindo menos da memória de professores e alunos. no fonógrafo e no rádio. Com o cinema falado e. Ora. um leitor era alguém que discernia e sondava enigmas. estamos vendo o final da “galáxia Gutenberg” (ou seja.p65 36 29/9/2010. passou a significar al- guém que corria os olhos. pois não só os estudantes pas- saram a ter acesso aos mesmos materiais que os professores. adotam cada vez mais os recursos audiovisuais para o ensino e o aprendizado e reintroduzem os trabalhos de grupo e as discussões coletivas. 10:16 . invadimos culturas intei- ras com informação enlatada. e difundindo-se por meio de jornais.). a música. em seu âmbito. Hoje. ibidem. por extensão. diversão e idéias”26. opiniões. são formas de publicidade. 37 2 Simulacro e poder 2 reimp. valores. p. a) propaganda A palavra propaganda deriva do verbo “propagar”. p. Empregando as artes gráficas. Teorias da comunicação de massa. a propaganda comercial ou publicidade comer- 25 MCLUHAN. Ambas. 145. 147. espalhar-se por um território. Entusiasmado com os meios de comunicação como veículos de informação. informações para o maior número de pessoas no mais amplo território possível. novelas. que significa: multiplicar uma espécie por meio da reprodução. a fotografia. danças. Cada um desses estágios da mecaniza- ção da expressão humana comparou-se. rádio e televisão. porque se dirigem publicamente ao maior número possível de pessoas. revistas. É com este sentido que falamos em propaganda religiosa e em propaganda po- lítica. músicas. a dança e a poesia. cartazes. 10:16 . contos. 26 Idem. O que os meios (ou “a mídia”) veiculam? O que transmitem? Sob a forma de romances. “Visão. In: LIMA. som e fúria”. A propaganda é uma difusão e uma divulgação de ideias. Ante- riormente. op. aumentar numericamente por contágio. invadíamos [os Estados Unidos] os mercados estrangeiros com utilidades. transmitem informações. Marshal.. MARILENA CHAUI ra humana em ação. cit. L. divulgar. debates. irradiar-se. à revolução deflagrada pela própria mecanização da escrita”25. McLuhan escreve no mesmo ensaio: “Esta é a época de transição da era comercial.p65 37 29/9/2010. notícias. quando a produção e distribuição de utilidades absorvia o engenho dos homens. difundir-se e. Costa (org. espetáculos. jogos. Passamos hoje da produção de mercadorias empacotadas para o empacotamento da informação. da felicidade conjugal etc. donas de casa. dentistas. igual a todo mundo e não um deslocado (pois consumirá o que outros conso- mem) e será diferente de todo mundo (pois o produto lhe dará uma individualidade especial).p65 38 29/9/2010. a propaganda comercial sublinhava e elogiava as quali- dades do produto: apresentava. 2) slogans curtos que possam ser facilmente memorizados. por uma indústria 38 2 Simulacro e poder 2 reimp. dos filhos. que participara da fabri- cação do produto ou que o usara e o recomendava (falavam médi- cos. um slogan. Como na era da sociedade industrial os produtos eram valorizados por sua durabilidade. modistas etc. 10:16 . 4) garantia de que o consumidor será. da saúde das crianças. assegurando o rápido reconhecimento do produto por muitos e mui- tos anos. da higiene e da beleza do lar. precisa despertar desejos que o consumidor não possuía e que o produto não só desperta como. desde fins do século XIX até os meados do século XX. ao mesmo tempo. Essa propaganda opera por meio de: 1) explicações simplificadas e elogios exagerados sobre os produ- tos.). Uma das propagandas mais conhecidas no mundo inteiro e de longa duração foi usada. uma rima. uma pequena melodia. a propaganda tendia a inventar uma imagem duradou- ra que se tornava uma espécie de marca para o reconhecimento imediato do produto e facilmente repetida por todos. farmacêuticos. Para ser eficaz. Podia também apresentar essas qualidades ofe- recendo a palavra de algum especialista. Essa “marca” podia ser um desenho. do pai. por outro. o conforto de uma mobília. do sabonete e da pas- ta de dentes. a propaganda deve realizar duas operações si- multâneas: por um lado. 3) aparente informação e prestação de serviço ao consumidor. satisfaz (donde o slogan “sua satisfação garantida ou seu dinheiro de volta”).) e. os produtos devem aparecer a serviço da mãe. o bom gosto de uma peça de roupa da moda. desde os anos 1930. por exemplo. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA cial é a difusão e divulgação de produtos destinados à venda e dirigidos a consumidores. se a vida em família é muito valorizada. os efeitos curativos dos remédios. Em seus começos. deve afirmar que o produto possui os valo- res estabelecidos pela sociedade em que se encontra o consumidor (por exemplo. sobretudo. os efeitos higiênicos do sabão. Assim. nos anos 1940. a RCA Victor. be- leza. a propaganda ou publicidade comercial passou a vender imagens e signos e não as próprias mercadorias. Biotônico do Laboratório Fontoura) ou como garantia da exclusividade (“Chicletes. e sobretu- do à medida que pesquisas de mercado indicavam que as vendas dependiam da capacidade de manipular desejos do consumidor e até mesmo de criar desejos nele. a propaganda comercial foi dei- xando de apresentar o produto propriamente dito (com suas proprie- dades. usada pelos navegantes para orien- tação em viagens). atração sexual. havia melodias e slogans para um analgésico – “Melhoral é melhor e não faz mal”–. para sugerir fidelidade do som e fidelidade do consumidor ao produto. A propaganda também buscava afirmar e garantir o produto trazendo o nome do fabricante como prova da qualidade (guaraná da Antártica. MARILENA CHAUI de aparelhos de rádio e fonógrafos. com o advento da socie- dade pós-industrial. a delícia que só Adams fabrica”). para uma brilhantina – “Glostora. por exemplo. com os pontos cardeais e subcardeais. cerveja da Brahma. cujos produtos são descartáveis e sem durabili- dade ( a sociedade pós-industrial é a “sociedade do descarte”) e de consumo imediato (alimentos e refeições instantâneos). No Brasil. a brilhantina que o homem adora”.p65 39 29/9/2010. para vender certo cigarro. Em outras palavras. 10:16 . para um fixador de cabelos – “Lex dura lex. no cabelo só Gumex” –. 39 2 Simulacro e poder 2 reimp. cuja “marca” era um cão com o ouvido próximo do ampliador de som e sob o qual havia os dizeres: “a voz do dono”. para um perfume popular –“Cashmere Bouquet. a fragrância de rosas para você” –. em vez de apresentá-lo diretamente. durabilidade) para afirmar os desejos que ele realizaria: sucesso. felicidade. tecido de algodão da América Fabril ou da Bangu. havia um desenho característico (a rosa-dos-ventos. a Varig. qualidades. acompanhada de uma frase melódica própria com que o consumidor imediatamente identificava uma companhia aérea. com o crescimento do mercado da moda. Com o aumento da competição entre produtores e distribuidores. segurança. juventude eterna. Nos anos 1950. por exemplo. prosperidade. em seu lugar aparecem motocicletas. Mas não só isso. em lugar do sabonete e do desodorante. vende-se o cigarro apelando-se para a imagem dos que são inteligentes e por isso o escolhem. um alimento para crianças é apresentado como garantia de saúde e alegria in- fantis. A publicidade não se contenta em construir imagens com as quais o consumidor é induzido a identificar-se. guerrilha revolucionária. arrancados do contexto que lhes dá sentido. isto é. Outra marca de cigarro passa a competir com a anterior e. em lugar do próprio cigarro. em lugar da manteiga e da marga- rina com suas propriedades e qualidades. cujo consumo pressupõe a imagem de uma pessoa moderna e atualizada. charme e inteligência do consumidor. Ela as apresenta como realização de desejos que o consumidor sequer sabia ter e que agora. Assim também. 10:16 . apresenta-se um prédio em construção com engenheiros e arquitetos de sucesso fu- mando. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA veleiros.p65 40 29/9/2010. vende-se a imagem da felicidade e da harmonia domésticas para as quais a margarina é a condição indispensável. O automóvel é apresentado como prova de sucesso. liberação sexual. ou seja. liberando a mulher das penas caseiras. E assim por diante. esvazia e ba- naliza seu conteúdo social ou político e as investe em um produto.. vende-se a imagem do sucesso para a qual o cigarro se torna ins- trumento indispensável. Com isso. so- bretudo quando são enfatizadas as inovações tecnológicas do veí- culo. A propaganda comercial também se apropria de atitudes. são transformados em imagens que vendem produtos. e o slogan “a marca inteligente”. direitos humanos etc. Feminismo. opiniões e posições críticas ou radicais existentes na sociedade. despertando na criança o desejo de consumi-lo e levando a 40 2 Simulacro e poder 2 reimp. Assim também. aparece a família feliz tomando o café da manhã e consumindo o produto. passa a ter – uma roupa ou um perfume são associados a viagens a países distantes e exóticos ou a uma relação sexual fantástica. transformando-as em moda consumível e passageira. um utensílio domésti- co ou um sabão em pó são apresentados como a suprema defesa do feminismo. surge a imagem da sensualidade da mulher ou do homem que os usam. corridas de automóveis. movimentos culturais de periferia. seduzido pelas imagens. e o slogan “o sucesso”. MARILENA CHAUI mãe ou o pai a adquiri-lo porque esperam adquirir tranquilidade e certeza de bem alimentar os filhos. a acumulação do capital deixa de exigir a inclusão no mercado de trabalho e o desemprego se torna estrutural. porém.p65 41 29/9/2010. fu- gaz e efêmero. a fim de assegurar a ordem social. ela desenvolve a ideia de que sua eficácia e sua competitividade serão maiores não sim- plesmente por agir sobre os desejos já existentes e sim por sua capacidade para inventar desejos novos e manipulá-los para o con- sumo de produtos sempre novos e fugazes. desaparecendo da noite para o dia. é um homem virtuoso. em lugar de gastá-lo. tornando-se ética interiorizada pelos trabalha- dores. perdendo força à medida que o capital necessita do consumo de massa e. que trabalha. fundada no elogio do trabalho como virtude e dever e na condenação do ócio e da pre- guiça como os piores vícios. Visto. Aquele que faz seu trabalho render dinheiro e. o homem honesto. Dora- 41 2 Simulacro e poder 2 reimp. Max Weber assinalou a “afinidade eletiva” entre a forma da economia capitalista e a moral puritana ou calvinista. gozo e satisfação são reprimidos. vivendo frugalmente e honesta- mente (isto é. Essa ética burguesa perdura até o final da forma industrial do capitalismo. que na sociedade contemporânea tudo é veloz. fruição. poupa e investe é a auto-imagem do burguês e não a figura dos que trabalham para que ele poupe e invista. em decorrência do salto tecnológico. a propaganda precisa acompanhar esse ritmo. 10:16 . isto é. Por que essa invenção de desejos é eficaz? Analisando a sociedade burguesa nos começos do capitalismo. como tal. porém. generalizou-se para toda a sociedade. pagando em dia suas dívidas para assim obter mais crédito). o investe em mais trabalho para gerar mais dinheiro e mais lucro. sobretudo. quando. quando o capitalismo passa à forma pós-industrial. Na verdade. Trabalhar é ganhar para poupar e investir para que se possa trabalhar mais e investir mais. no clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo. desejos. Weber identifica a ética burguesa do trabalho e a figura do tra- balhador no capitalismo. A ética burguesa é a ideologia burguesa e. Com isso. Como consequência. que se tornam imperativos morais. empresas de exploração de minérios e petróleo. 27 HARVEY. passa a ser parte integrante da busca de identidade individual. e muitas outras. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA vante. É assim. financeiras. É assim que bancos.. às artes e às ciências. em lugar de patrocinar um programa para adolescentes. uma nova ética (ou uma nova ideologia) passa a valorizar a satisfação imediata dos desejos. É este o núcleo ideológico que garante eficá- cia à propaganda. dissimulando a venda de mercado- rias. A imagem serve para estabelecer uma identida- de no mercado. empresas de construção civil. por exemplo. 42 2 Simulacro e poder 2 reimp. o que se aplica também ao mercado de trabalho. 238. Além de vender imagens. em lugar de patrocinar um programa feminino. pois patrocinam tais ativi- dades. patrocina um programa sobre ecologia. cit. A esse respeito. uma revendedora de motocicletas. David Harvey escreve: “A competição no mercado de construção de imagens passa a ser um aspecto vital da concorrência entre as em- presas. op. a propaganda é impulsionada pelo mercado a vender a ima- gem de empresas que nada têm a ver com o produto a ser consu- mido. por ex- tensão. que uma empresa de cosméticos pode. em A condição pós-moderna. O sucesso é tão claramente lucrativo que o investi- mento na construção da imagem (patrocínio das artes. ex- posições de artes. 10:16 .) se torna tão importante quanto o investimento em novas fábricas e maquinário. produções televisivas etc. p. David. patrocinar concertos de música clássica. A aquisição de uma imagem (por meio da compra de um sistema de signos como roupas de griffe e o carro da moda) se torna um elemento singularmente importante na auto-apresentação nos mercados de trabalho e. auto-realização e significado da vida”27.p65 42 29/9/2010. o gozo e a fruição. passam a ter suas imagens associadas a programas de rádio e televisão. essa forma de propaganda marcou pre- sença na campanha presidencial de Lula. A apresenta- ção do candidato se realizava por meio de “efeitos especiais”. esporti- vas. correndo. hábitos cotidianos. significando que a modernidade estava comprometida com o povo. o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: característi- cas corporais. descia às praças. o rádio despertou interesse porque com ele 43 2 Simulacro e poder 2 reimp. vida em família. 10:16 . sempre em mangas de camisa. b) Rádio e televisão Os primeiros estudos sociológicos. em 2002. Mais do que o telefone. em 1989. dos céus à terra – um enviado do Senhor. pois sua tarefa é vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. iluminado por holofotes de mil cores. andando. Seu objetivo era ofere- cer a “marca do produto”. Para obter a identificação do consumidor com o produto. o momento inaugural do marketing político no Brasil – foi a campa- nha eleitoral de Fernando Collor de Mello. particular- mente com a imagem produzida para as últimas transmissões: mulheres grávidas. saltando em uma planície verdejante ao som do Bolero de Ravel. Um dos exemplos notáveis desse procedimento – ou melhor. preferências sexuais. indicando que o candidato vinha do alto. no caso a modernidade e o destemor do candidato. o telégrafo sem fio e o fonógrafo. Não por acaso. vestidas de branco “telegênico”. bichos de estimação. literárias. essa propaganda re- cebe o nome de marketing. dançando.p65 43 29/9/2010. MARILENA CHAUI Essas operações da propaganda comercial são empregadas pela propaganda política. culinárias. Nos mesmos moldes. ins- pirados nos filmes de Guerra nas Estrelas. A privatização das figuras do político como produto e do cidadão como consumidor privatiza o espaço público. Este. para significar que estávamos às vésperas do parto de um novo país. dobrando-a aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. chegava aos comí- cios em um helicóptero que. psicológicos e filosóficos so- bre os meios de comunicação de massa foram feitos a partir da expansão das ondas de rádio. transmissão de paradas militares. considerado por muitos pensadores o verdadeiro início da comunicação de massa porque descobriu e explorou a capacidade mobilizadora do rádio. transmissão de notícias diretamente das frentes de guerra. Como o rádio. Em meados dos anos 1930. Do ponto de vista do produtor. marcando sua diferença com relação ao rádio. discursos de Hitler. Do ponto de vista do receptor. ôni- bus. a seguir. sendo necessário que o governo e o exército norte-americanos interviessem para acalmar a população. que narra a invasão da Terra por marcianos. o pânico tomou conta do país. O pânico tomou conta da cidade. 44 2 Simulacro e poder 2 reimp. femininas. mas a apresentaram como se. G. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA iniciaram-se efetivamente a informação e a comunicação de mas- sa a distância. Orson Welles e sua turma não avisaram o público de que se tratava de uma obra de ficção. o aparelho de rádio e o televi- sor são eletrodomésticos. juvenis. Nova York esti- vesse sendo invadida por alienígenas. E. concertos e óperas de compositores alemães “autênticos” foram empregados para convencer a sociedade ale- mã da grandeza. metrôs e automóveis para escapar à ameaça. procurando trens. Wells A guerra dos mundos. de fato. do teatro a ideia de relação com um público presente. o jovem Orson Welles irradiou por uma rádio de Nova York o romance de H. Confe- rências de intelectuais nazistas.p65 44 29/9/2010. da justeza e do poderio do Terceiro Reich. infantis. Sua importância e seu impacto podem ser avaliados com o caso da transmissão radiofônica de A guerra dos mundos. a televisão é um meio técnico de comunicação a distância que empresta do jornalismo a ideia de reportagem e notí- cia. entrevistas com mili- tantes do partido nazista. com pessoas fugindo de suas casas. 10:16 . empresta do cinema os procedimentos com ima- gens. como o liquidificador ou a geladeira. feita por Orson Welles. e. são centros de poder econômico (tanto porque são empresas privadas como porque são uma mercadoria que transmite e vende outras mercadorias) e centros de poder po- lítico ou de controle social e cultural. O poder de persuasão e de convencimento do rádio levou a seu uso político (cotidiano e intenso) pelo nazismo. da literatura a ideia do folhetim novelesco. criam a especificação do conteúdo e do horário de cada programa. portanto. Essa divisão atende às exigências dos patrocinadores. alto. As distâncias e proximidades. a idade – crianças. um ban- co de um governo estadual pode patrocinar um programa de audi- tório. pois isto é conveniente para atrair clientes. ainda que não patrocinados por ele. adultos – e o sexo). grande. o aparelho de rádio e a tela da televisão tornam- se o único espaço real. Em outras palavras. a ocupação – donas de casa. trabalhadores manuais. A figura do patrocina- dor também pode determinar o conteúdo e a forma de outros pro- gramas. introduzem duas divisões cuja referência é o poder aquisitivo dos consumidores: a dos públicos (as chamadas “classes”28 A. para não perder o patrocínio do programa de auditó- rio. baixo. 10:16 . as diferenças 28 Escrevemos “classes” e não classes para indicar que não se trata de um conceito referido à divisão social posta pelo modo de produção econômica. C e D) e a dos horários (a programação se organiza em horários específicos que combinam a “classe”. A desinformação. a forma e o horário do programa já exprimem em seu próprio interior a imposição do patrocinador. Por exemplo. executivos —. também pode influenciar o conteúdo veiculado pelos noticiários. mas. Por isso. indiretamen- te. o patrocinador não aparece apenas no “intervalo comercial”. profissionais liberais. que financiam os programas em vista dos consumidores potenciais e. mas sim de uma imagem classificatória para estabelecer uma gradação entre alto e baixo poder aquisitivo. uma vez que. Com efeito. peque- no) são apagadas. B. Ausência de referência espacial ou atopia: as diferenças pró- prias do espaço percebido (perto. aliás. 45 2 Simulacro e poder 2 reimp. as notí- cias são apresentadas de maneira a impedir que o ouvinte e o es- pectador possam localizá-las no espaço e no tempo. rádio e televisão operam segundo a lógi- ca do mercado de entretenimento e da propaganda comercial. adolescentes. a empresa de televisão deixa de difundir notícias desfavoráveis a esse governo estadual. MARILENA CHAUI Como indústria cultural. é o principal resultado da maioria dos noticiários de rádio e televisão.p65 45 29/9/2010. pois o conteúdo. alto e baixo grau de escolaridade. longe. de modo geral. desabrigo. repentinamente. É assim. de tal modo que algo acon- tecido na China. desse mesmo apresentador e o de um publicitário muito conhecido no Brasil. ou World Trade Center) foram senti- dos com grande emoção no Brasil. furtos.). exclusão social. desde os sequestros da filha de um apresen- tador de televisão e. ne- nhum noticiário estabeleceu qualquer relação entre a criminalidade e suas causas possíveis. 10:16 . na Índia. injustiça. exis- tem enquanto são objetos de transmissão e deixam de existir se não são transmitidos. embora os crimes já ocorressem de longa data e tivessem aumentado havia muito tempo. estupros. os noticiários de rádio e tele- visão passaram a dedicar a maior parte do tempo a notícias sobre crimes (roubos. embora continuassem olhando calmamente e sem nenhuma emo- ção para crianças esfarrapadas e famintas pedindo esmolas nas esquinas das ruas de suas cidades. miséria etc. Têm a existência de um espetáculo e só perma- necem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto per- manece o espetáculo de sua transmissão. violência contra crianças etc. corrupção dos aparelhos policiais e judiciários etc. como se tais crimes tivessem surgido do nada. depois. A população passou a sentir-se ameaçada e ame- drontada porque passou a receber uma verdadeira enxurrada de notícias sobre esses assuntos.). Nenhuma informação real 46 2 Simulacro e poder 2 reimp. por exemplo. tendo algumas pessoas se refe- rido ao fato como se fosse algo muito próximo e que as atingia. Assim. nos Estados Unidos ou em Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante. os problemas postos pela econo- mia (desemprego. Ausência de referência temporal ou acronia: os acontecimen- tos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efei- tos futuros.) e suas consequências sociais (desigualdade social. Todavia. sem continuidade no tempo. surgem como pontos puramente atuais ou presentes. sem origem e sem consequências. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA geográficas e territoriais são ignoradas. que os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 na cidade de Nova York (quando foram destruídas as duas torres do Centro Mundial de Comércio.p65 46 29/9/2010. sequestros. tais como o problema do crime organizado e dos crimes de colarinho branco. por exemplo. homicídios. fome. Subitamente. decorridos alguns meses e terminada a invasão norte-americana. Curiosamente. a ameaçar a vida e os bens de cidadãos honestos e desprotegidos. primeiro. saídas de parte nenhuma. pois não tinham nenhuma informação sobre o passado que levou a tal acon- tecimento (quais as relações econômicas. tanto assim que. desapareceu dos meios de comunicação e muita gente já não se lembra que esse país existe. Radiouvintes e telespectadores tiveram a im- pressão de que o ataque às torres de Nova York havia sido um ato repentino de loucura. que permaneceu desconhecida para os telespectadores e os radiouvintes. MARILENA CHAUI foi transmitida à sociedade. sem outro motivo a não ser a pura maldade. isto é. ao coração militar dos Estados Uni- dos. treinado e armado pelos serviços de segurança norte- 47 2 Simulacro e poder 2 reimp. a não ser a ideia de que criaturas más e perversas. Mas não só isso. algo insano. Os acontecimentos de 11 de setembro em Nova York e Washing- ton levaram o governo dos Estado Unidos a invadir e bombardear. E mesmo durante o breve tempo em que “existiu” o Afeganistão parecia incompreensível. o Afeganistão passou a existir. foi a de um espetáculo de rádio e televisão. ninguém indagou por que todos os noticiários se voltavam para as torres nova-iorquinas e praticamente nenhuma palavra era dita sobre o ataque ao Pentágono. os noticiários. o Afeganistão e. políticas e militares entre o governo dos Estados Unidos e países do Oriente Médio? Por que tais relações causaram os ataques?). Situação semelhante ocorreu e ocorre com as notícias sobre o Afeganistão e o Iraque.p65 47 29/9/2010. Sua existência. a seguir. isto é. haviam se posto. No caso do Iraque. aliás. além de repentinamente transformarem Saddam Hussein em ditador feroz e louco – ele que até há pouco tempo era um aliado. não há nenhuma referência aos inte- resses econômicos e o geopolíticos dos Estados Unidos sobre uma das regiões mais ricas em petróleo e minérios. pois quando termos como “Aliança do Norte” e “taliban” passaram a ser usados pelos meios de comunicação ninguém sabia o que queriam dizer. 10:16 . E eram usados como se tivessem começado a existir naquele momento e não fi- zessem parte de uma história. porém. o Iraque. súbito e inexplicável. uma guerra civil que já dura cinco anos. que comparece nos noticiários apenas sob a forma de atos de terror. de maneira que. notícias locais. para explicar o inexplicável. além do embargo econômico que foi imposto a esses dois países. com ênfase nas ocorrências policiais.p65 48 29/9/2010. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA americanos durante a guerra contra o Irã –. por seleção das notícias. Como operam efetivamente os noticiários? Em primeiro lugar. furacões). com ênfase em crises e conflitos políticos e sociais. tudo parece explicado quando nada o é efetivamente. sem que. encarregadas de desfazer o medo 48 2 Simulacro e poder 2 reimp. pela construção deliberada e sistemática de uma ordem apazigua- dora: em sequência. no entanto. e buscando sofisticação e apresentação de maior número de fatos nos noticiários de fim de noite. as notícias afir- mam que se trata de “insurgentes” estrangeiros e fanáticos religio- sos. estabelecem diferenças no conteúdo e na for- ma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o públi- co. Aliás. com ênfase em guerras e cataclismos (mare- moto. seja dita uma única palavra sobre as armas nucleares pro- duzidas por Israel. Em se- gundo. sinalizando novamente o perigo. ou seja. sinalizando o sentimento de perigo. passam às notí- cias internacionais. enfatizando as idéias de ordem e segurança. apresentam. terremoto. ainda uma vez sinalizando perigo. Com a palavra “terrorismo”. a desculpa esfarrapada para a inva- são do Iraque e para ameaças de uma invasão do Irã. E o mesmo ocorre a respeito da Palestina. entram as notícias regionais. 10:16 . enchentes. é a exis- tência de pesquisas nucleares com finalidade bélica. rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e do início da noite. no início. omitindo aquelas que possam desa- gradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. mas concluem com as notícias nacionais. sem que seja mencionada uma única informação sobre a ocupação e invasão de territórios palestinos por Israel. sitiada por uma alta muralha sob guarda israelense e submetida ao corte de energia elétrica. abastecimento de água e alimentação. Em terceiro. assim como não é mencionado o cerco policial e militar da população palestina. a se- guir. declaram incessante- mente que a invasão teve como finalidade instalar a democracia e a liberdade no Iraque. as irrelevantes devem ser também filmadas. sabedor de que. Regra 10: Mostrem-se coisas importantes apenas se acontece- rem em outro país. 10:16 . Regra 7: Exponha-se apenas se o governo já se expôs. feijão e ovo. mas Estados Unidos e Israel desejam a paz). restando apenas retalhos fragmentados de uma 49 2 Simulacro e poder 2 reimp. obrigado. Regra 6: Dê a notícia completa somente quando os jornais do dia seguinte já a publicaram. ignorando todo o resto da notícia. ape- sar dos pesares.p65 49 29/9/2010. E. Regra 8: Nunca omitir a intervenção de um ministro (é preciso dar sempre um ar de oficialidade às notícias políticas. Regra 2: A notícia não tem necessidade de comentário aberto. Paradoxalmente. mostrando autoridades). fuga e retorno de um animal em cativeiro. mas trivial ligeiro). nos finais de semana. Irã e Palestina desejam a guerra. rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro em um instante. de maneira a produzir o senti- mento de bem-estar no espectador pacificado. advérbios e verbos bem escolhidos permitem noticiar que Iraque. terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre animais (nascimento de um ursinho. Umberto Eco fala nas “Dez Regras de Manipulação” obedecidas pelos noticiários de televisão: Regra 1: Comente-se apenas o que se pode ou se deve comentar. proteção a espécies ameaçadas de extinção). e isso enfraquece o poder da notícia). Regra 5: Nunca dizer polenta quando se pode dizer purê de milho (ou: nunca dizer arroz. é melhor calar (quem duvida está na incerteza. Regra 9: As notícias relevantes devem ser apenas narradas. Regra 4: Coloque a má notícia ali onde ninguém a espera. mas se baseia na escolha dos adjetivos e em cuidadoso jogo de contraposições (por exemplo: adjetivos. Regra 3: Em caso de dúvida. MARILENA CHAUI produzido pelas demais notícias. Em Viagem na irrealidade cotidiana. o mundo vai bem. mas o fazem de tal maneira que o mun- do real desaparece. Entretanto. comentadas e interpretadas pelo transmissor das notícias. desconhecemos as determinações econômico- territoriais (geográficas. econômicas. proveniente de um desenvolvimento cientí- fico-tecnológico sem precedentes. Por quê? Quando mencionamos o programa “Fantástico”. a televisão o emprega sob a for- 50 2 Simulacro e poder 2 reimp. O paradoxo está em que há uma verdadeira satura- ção de informação. Ora. isto é. essa ausência não é uma falha ou um defeito dos noticiários e sim um procedimento deliberado de con- trole social. das condições materiais.) e como. colocando em um mesmo espaço e em um mesmo tempo (ou seja. geopolíticas etc. ao fim. Se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a realida- de e a veracidade das imagens transmitidas. imagens e palavras são efica- zes. somos persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV. nada sabemos. na qual as pala- vras. assinalamos a paradoxal inversão ali operada entre ciência e magia. depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo. político e cultural. fazem acontecer. as imagens e os objetos especiais (os talismãs) têm o poder de fazer acontecer. Essa inver- são. selecionadas. É este o significado profundo e preciso da atopia e da acronia. porém. é porque ela se apresenta como dotada do poder de produzi-lo por meio de imagens e palavras. não deve causar estranheza. conteúdo e significado completamen- te diferentes. edita- das. ou da ausência de referenciais concretos de lugar e tempo – ou seja. com emissoras dedicadas exclusivamente a notícias. históricas dos acontecimen- tos. pela atopia das imagens. políticas. sociais. não podemos compreender seu verdadeiro sig- nificado. ignoramos os antecedentes temporais e as consequências dos fatos noticiados. Em outras palavras. na tela) informações de procedência.p65 50 29/9/2010. ou seja. mas. como o que vemos são as imagens escolhidas. Essa situação se agrava com a TV a cabo. no sentido etimológico do termo. en- tão é preciso reconhecer que a TV é o mundo. durante 24 horas. Como. Se a TV é o mundo. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo. pela acronia das imagens. 10:16 . essa eficácia é exatamente o que define a magia. Assim. mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua transmissão. seus objetos são apresentados com o máximo de realismo possível. querem ir ao enterro. sua linguagem. em contrapartida as telenovelas criam o sentimento de realidade. do cinema e do teatro. Em resu- mo: o noticiário se apresenta como ficção (o acontecimento não tem densidade. a telenovela aparece como relato do real. Por sua vez. que informação transmite a telenovela? Opera re- forçando o senso comum social. também não nos deve espantar a inversão entre realidade e ficção produzida pelos meios. se passou apenas um dia de nossa vida ou de que se passaram algumas horas. mantendo a suposta clareza da 51 2 Simulacro e poder 2 reimp. enquanto o noticiário aparece como narrativa irreal. de modo a impedir que tomemos distância diante deles (o efeito buscado é exatamente o contrário da literatura. 2) o tempo dos acontecimentos telenovelísticos é lento para dar a ilusão de que.p65 51 29/9/2010. tais como realmente passariam se fôssemos nós a viver os acontecimentos encenados. é um espetáculo irreal) e a novela se apresentada como realidade (os episódios são espacializados e temporalizados de modo a produzir a ilusão de que são fatos). 10:16 . Ela é realmente fantástica! Por isso mesmo. narrado como se fosse um capítulo de uma telenovela. MARILENA CHAUI ma arcaica da magia. que suscitam em nós o sentimento de proximidade justa- mente porque nos fazem experimentar o da distância). sem geografia e sem história. sem causas nem consequências. Basta ver. a cada capítulo. descontínuo e fragmentado. suas casas. a reação de cidades inteiras quando uma personagem da novela morre (as pessoas choram. Como consequência. ficam de luto) ou quando um acontecimento é noticiado como algo espanto- so. por exemplo. graças ao emprego de três procedimento principais: 1) o espaço se torna exótico quando corresponde ao do nosso cotidiano (os lugares conhecidos causam admiração e distanciamento simplesmente por sua conversão em imagens no vídeo) e se torna familiar quando corresponde ao exótico e desconhecido (todos os lugares que não conhecemos se tornam próximos e familiares por- que suas imagens estão presentes no local onde nos encontramos). suas roupas. Se o noticiário nos apre- senta um mundo irreal. 3) as personagens. seus hábitos. sendo cada bloco interrompido pelos comer- ciais. não conseguem suportar a ausência de imagens e ilustrações no texto. também.p65 52 29/9/2010. Como esperar que possam desejar e interessar-se pelas obras de arte e de pensamento? Por serem um ramo da indústria cultural e. a capa- cidade de abstração intelectual e de exercício do pensamento fo- ram destruídas. por serem fundamentalmente vendedores de cultura que precisam agradar o consumidor. A atenção e a concentração. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA distinção entre o bem e o mal. a naturalização da hierarquia social e da pobreza. Pouco a pouco. A criança é infantil justamente porque para ela o intervalo entre o desejo e a satisfação é intolerável. isso se torna um hábito. não suportam a ideia de precisar ler “um livro inteiro”. rá- dio e televisão dividem a programação em blocos que duram de sete a dez minutos. Para atender aos interesses econômicos dos patrocinadores. como se dividissem a aula em “programa” e “comercial”. Essa divisão do tempo nos leva a concentrar a atenção du- rante os sete ou dez minutos de programa e a desconcentrá-la du- rante as pausas para a publicidade. Que é ser infantil (independen- temente da idade cronológica)? Deixemos a Freud a resposta: ser infantil é não conseguir suportar a distância temporal entre o desejo e a satisfação dele. É preciso. durante um espetáculo. o desejo de “subir na vida”. 10:16 . Ora. os meios infantilizam. Que fazem os meios de comunicação ? Prometem e oferecem gratificação instantânea. Como o conseguem? Criando em nós os desejos e oferecendo produtos (publicidade e programação) para 52 2 Simulacro e poder 2 reimp. mencionar dois outros efeitos que os meios de massa produzem em nossas mentes: a dispersão da atenção e a infantilização. a recompensa dos bons e a punição dos maus. Artistas de teatro afirmam que. sentem o público ficar desatento a cada sete minutos. portanto. um dos resultados dessa mudança mental transparece quan- do crianças e jovens tentam ler um livro: não conseguem ler mais do que sete a dez minutos de cada vez. Professores observam que seus alunos perdem a atenção a cada dez minutos e só voltam a se concentrar após uma pausa que dão a si mesmos. como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos. continuá-las. A destruição da capacidade de concentração e a infantilização conduzem a um terceiro efeito: o estímulo ao narcisismo. a imagem não é uma mediação. e essa relação só pode ser imediata se é uma relação de identificação. A tela se oferece como um gigantesco espelho no qual a única imagem refletida é a nossa. o sujeito é a TV. Ora. o locutor (ou “âncora”) e o repórter se dirigem a nós. superá- las. explicando e interpretando o que o protagonista diz. e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento. criticá-las. crítica. pensamento. senão que permaneçamos para sempre infantis. Os protagonistas da notícia falam à câmera. da inteligência e da imagina- ção para compreendê-las. Nos programas de entrevistas. hobbies. enquanto a notícia e seus protagonistas são obje- tos. o sujeito – portanto. sabe tudo. preferências. um signo que nos remeta a uma reali- dade distinta de nós. pois as imagens são produzidas e transmitidas para repetir sempre a mesma mensagem: “eu sou você”. Em contrapartida.p65 53 29/9/2010. refle- xão. Quem é ele? No noticiário. os meios satisfazem imediatamente nos- sos desejos porque não exigem de nós atenção. isto é. em algum lugar. mas instaura uma relação imediata conosco. Exige maturidade. uma vez que este é um obje- to – portanto. perturbação de nossa sensibilidade e de nossa fantasia. dando assim vera- cidade à televisão como sujeito único do noticiário. Em suma. O ouvinte que gira o dial do aparelho de rádio conti- nuamente e o telespectador que muda continuamente de canal o fazem porque sabem que. 10:16 . o sujeito é a pessoa privada apre- sentada em sua intimidade (gostos. seu desejo será imedia- tamente satisfeito. Os meios de comunicação nos sa- tisfazem porque nada nos pedem. Além disso. é preciso que haja um sujeito com o qual nos identifiquemos. MARILENA CHAUI satisfazê-los. 53 2 Simulacro e poder 2 reimp. para que haja identificação. tal como produ- zida pela programação e pela propaganda. o sujeito é o locutor (ou “âncora”) e o repórter. amá-las. hábitos. não nos pedem o que as obras de arte e de pensamento nos pedem: trabalho da sensibilidade. nada sabe – e a TV. Em outras palavras. A cultura nos satisfaz se temos paciência para compreendê-la e decifrá-la. “O você que sentiu?”.p65 54 29/9/2010. mas o telespectador tem a ilusão de que a presença é livre e espontânea. mas o telespectador tem a ilusão de que são espontâneos. afinal. ridiculari- za. todos nós telespectadores. é igual ou supe- rior a ele/ela”). cujo sentido só é conhecido pelo locutor ou pelo repórter. isto é. Além disso. é o sujeito da ação. o sujeito é o apresentador. você. mas também é o sujeito. Nos programas esportivos. o sujeito narcísico e narcisista. que parece estar ali simplesmente refletida 54 2 Simulacro e poder 2 reimp. também o esportista que. que o esportista realizou a ação. ele/ela não é tão melhor do que nós. isto é. idade. você. transformando-o em mero espectador de sua própria ação. a fim de garantir que o melhor é “a pessoa média”. ele/ela é melhor e superior a mim e a vocês telespectadores”) e 2) humilha. oferecendo-se como um gigantesco espelho no qual devemos ver nossa própria imagem. eu. competidores etc. o “concorrente”. oferecendo exatamente o que a câmera busca. embaraça o entrevistado (“vejam. o repórter indaga ao esportista: “O que você achou?”. após a partida. rebaixa. 10:16 . não só a TV é o mundo. também o locutor (e o repórter) é o sujeito. Em outras palavras. De fato. telespectador. mas o telespectador tem a ilusão de que há um concurso real. os participan- tes (calouros. o programa de audi- tório é o simulacro perfeito: palmas e aplausos são comandados pela direção do programa. Nos programas de auditório. A entrevista devassa. o “respondedor de perguntas” são submetidos a procedimentos sádicos de humilhação pública. explora o narcisismo do entrevistado para reforçar o nosso. classe social dos membros do auditó- rio são fixados pela produção do programa. eleva e rebaixa. Dessa maneira. envergonha.) já passaram por uma seleção pré- via. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA segredos). com- pensada pelos prêmios e aplausos. deixando de lado o fundamental. enquanto o “calouro”. sexo. por isso explica e interpreta a imagem para o telespectador e o destitui da condição de sujeito que vê e entende o acontecimen- to esportivo – não é formidável que um acontecimento esportivo visto em imagem seja narrado para quem o está vendo? Mas não só o telespectador é destituído como sujeito. O entrevistador realiza duas opera- ções: 1) eleva e elogia o entrevistado (“vejam. isto é. MARILENA CHAUI quando. a televisão tem preferência por imagens cujos “si- nais” ou pontos são nítidos e estas são imagens de rostos em close- up.. isto é. mas apenas um corte. nunca vemos o todo da cena. Por isso. jornalistas. Jerry. 10:16 . Quill. nunca vemos tudo o que está realmente acontecendo. Isso significa que nem toda imagem será nítida ou “limpa”. debatedores etc. nos programas geográficos ou turísticos. New York. Como opera a TV? Em Quatro argumentos para eliminar a televisão29. mas precisa ser o mais simples possível. a câmera não consegue mostrar uma floresta (mostra uma mancha verde ou mostra algumas árvores) ou uma cidade (mostra uma mancha cin- za ou mostra alguma rua com algumas casas). por exemplo. foi deliberadamente produzida para obter o efeito da identificação narcisista. vistos de muito perto. há a tendência de separá-la do contexto em que se encontra. durante 15 anos. 30 Não temos conhecimentos técnicos que nos permitam saber se a televisão digital eliminou essas limitações. Jerry Mander (que foi. 55 2 Simulacro e poder 2 reimp. pois todo sentimento ou pensamento sutis ficam invisíveis e só são transmissíveis as emoções mais comuns e mais simples. para que possa ser nítida na transmissão30. 1978. ou seja. o que está atrás e em volta da imagem não pode ser complexo (muitos objetos.p65 55 29/9/2010. muitas co- res). Assim. escolhido pela câmera. Além disso. A tela de um televisor produz a imagem por meio de uma grade de pontos localizados em 500 linhas (a imagem que vemos é vista como se estivesse por trás da fina rede de um coador de chá). executivo e relações-públicas em redes de televisão norte-americanas) descreve as limitações tecnológicas que determinam como e o que a TV pode transmitir. na verdade. para “limpar” a imagem. É por isso que a televisão tem preferência por programas 29 MANDER. Por esse motivo. Ausência de sutileza. Four arguments for the elimination of television. nos noticiários e programas de debates. Essa exigência tecnológica de ficar com imagens grandes e sim- ples também determina as expressões de artistas. nem todos os pontos ou “sinais” que a formam são nítidos. Das 35 regras mencionadas por Mander. programas sobre violência. todas as situações em que os sentimentos são poucos e são todos previsíveis. Além de poder oferecer apenas imagens para a vista e a audição. Além disso. mas é sempre achatada. medo. desaparecendo toda a sutileza da vida interior e emocional. raiva. o movimento nunca pode ser visto em seu ritmo próprio. 2) fatos externos (ocorrências e acontecimentos) televisionam melhor do que informações (ideias. a gama de sentimentos apresentados é sempre mínima e a mesma (amor. isto é. alegria exagerada). bondade. monta- nhas ao longe com nítido som de pássaros e de cachoeiras. mas é sempre distorcido e deformado. Em decorrência das limitações tecnológicas do meio. dizem coisas sutis. 10:16 . se emocionam. selecionamos algumas: 1) a guerra televisiona melhor do que a paz porque contém muita ação e um sentimento poderoso. as imagens visuais e sonoras não estão conectadas: vemos imagens distantes com som próximo (por exemplo. duas pessoas caminhando ao longe em uma rua e o som nítido de sua conversa. os chamados filmes de ação. animais e plantas) porque as coisas são simples. opiniões. nas telenovelas. Redução da percepção. Pelo mesmo motivo. ódio.). A câmera não consegue apresentar uma cena completa de um balé nem a totalidade de uma orquestra sinfônica. maldade. enquanto as pessoas são complexas. perspectivas). que não pode- ríamos estar ouvindo nessa distância etc. as emoções são interiores e sutis e não há como televisioná-las). 56 2 Simulacro e poder 2 reimp. a televisão obedece a um conjunto de regras que determinam o que é melhor para a transmissão e o que deve ser evitado. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA de auditório. comunicam diretamente suas imagens em uma mensagem sem complicação. 3) afora rostos humanos. na televisão. Também por isso. que não poderíamos estar escutando de verdade. e esportes. pois é mais forte mostrar coisas e fatos do que acompanhar raciocínios e pensamentos. coisas televisionam melhor do que seres vivos (pessoas.p65 56 29/9/2010. raciocinam. Regras de transmissão. a imagem não pode ter profundidade. violência televisiona melhor do que não-violência. o medo (a paz é amorfa e sem graça. A televisão só pode transmitir sinais vi- suais e sonoros. meio e fim são melhores do que assuntos longos que exigem pluralidade de informações e aprofundamento de pontos de vista. pesca. MARILENA CHAUI 4) líderes religiosos e políticos carismáticos televisionam melhor do que os não-carismáticos. pois a câmera não tem como lidar com sutileza. canto. 12) a expressão facial é melhor do que o sentimento: chorar televisiona melhor do que a tristeza. a autoridade e os subordinados ou os seguidores. 13) a morte televisiona melhor do que a vida: na morte tudo está claro e decidido. sentimentos complexos. 57 2 Simulacro e poder 2 reimp. apresente música. VII. nos acontecimentos de massa ou de multidão. 10:16 . fluido. 10) quando televisonar “povos primitivos”. mas aqueles se dirigem a emo- ções mais simples e visíveis.p65 57 29/9/2010. escolhe-se uma única pessoa para opinar e falar ou uma sequência de pessoas entrevis- tadas uma a uma. dança. lutas e evite entrevistas subjetivas nas quais se exprimem ideias. não completamente decidido. pois as primeiras tem forma muito simples. notando que. qual seja. o filósofo Adam Schaff se refere à “revolução da microeletrônica”. 5) é mais fácil transmitir um só do que muitos. 9) ambição e consumo televisionam melhor do que espiritua- lidade. por isso competição televisiona melhor do que cooperação. pois estes se dirigem ao pensamento e ao sentimento interior das pessoas. 7) assuntos curtos com começo. 11) o bizarro e o estranho televisionam muito bem. rir televisiona melhor do que a alegria. A INFORMÁTICA E O SISTEMA MULTIMÍDIA Na obra intitulada A sociedade informática. diversi- dade e ambigüidade. 6) é melhor transmitir organizações hierárquicas do que demo- cráticas. na vida tudo é ambíguo. opiniões. por isso. aberto a muitas possibilidades. que são bem transmitidas. 8) sentimentos de conflito televisionam melhor do que senti- mentos de concórdia. caça. Menciona ainda a “revolução da energia nuclear”. Schaff denomina essas grandes mudanças de “se- gunda revolução técnico-industrial”. pois são objetos que dependem de informações e operam ou fornecem informa- ções. 10:16 . São Paulo. p. os computadores realizam em tempo extremamente 31 SCHAFF. da qual se- guiu a engenharia genética. embora tenha sido prioritariamente usada para fins militares. teve o grande mérito de subs- tituir. animais e seres humanos. A pri- meira. podendo propiciar aos humanos recursos energéticos pra- ticamente ilimitados.p65 58 29/9/2010. consiste em que as capacidades intelectuais do homem são amplia- das e inclusive substituídas por autômatos. estamos rodeados por ela. obtida mediante a fissão e fusão controladas de átomos. desde os pequenos objetos de uso cotidiano. 58 2 Simulacro e poder 2 reimp. 1990. que eliminam com êxito crescente o trabalho humano na produção e nos serviços”31. as capacidades do pensamento. 22. a calculadora de bolso e o telefone celular. Adam. escrevendo: “Trata-se da segunda revolução técnico-industrial. que pode alterar o código genético de plantas. O ponto importante assinalado por Schaff é a diferença entre os antigos objetos técnicos – que ampliavam a força física humana – e os novos objetos tecnológicos – que ampliam as forças intelectuais humanas. até os computadores e os voos espaciais. A se- gunda revolução. isto é. na produção. Menciona também a “revolução na microbiologia”. que estamos assistindo agora. De fato. A sociedade informática. Unesp. como o relógio de quartzo. a força física dos homens pela energia das máquinas (primeiro pela utilização do vapor e mais adiante sobretudo pela utilização da eletricidade). SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA mesmo sem nos darmos conta. Brasiliense/Ed. que pode ser situada entre o final do século XVIII e o início do século XIX e cujas transformações ninguém hesi- ta em chamar de revolução. com a descoberta do código genético dos seres vivos. 10:16 . quem utiliza essas informações. operações de aeroportos. pois. fonográficas. a concentração e centralização da informa- ção. como e para que as utiliza. portanto. é possível gerar novas informa- ções que sistematizam as primeiras e permitem reconstituir hábitos. sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico. Tornaram-se instrumentos de trabalho dos escritores. de edifícios deno- minados “inteligentes” e de setores inteiros do trabalho industrial e da produção econômica. nas produtoras cinematográficas. Encontram-se nas escolas e fazem parte do sistema de ensino e aprendizado dos países economicamente poderosos. Computadores controlam armas e operações militares. nos escritórios de engenharia. como correio. Muitos têm apontado alguns dos perigos da acumulação e distri- buição de informações.p65 59 29/9/2010. qual seja. interesses e movimentos dos indivíduos. além de opera- rem como banco de dados para informações na vida cotidiana. de bancos e bolsas de valores. e estão organizados de maneira a autocorrigir a maior parte das falhas e dos enganos que cometerem em uma operação ou em um processo. possuem também uma memória muito supe- rior à melhor memória humana. arquitetura e advocacia. televisivas e radiofônicas. nos estabelecimentos comerciais que vendem no atacado e no varejo. Um primeiro perigo é o poder de controle sobre as pessoas porque. nos consultórios médicos e hospitais. voos es- paciais. com a centralização dos dados e com a produção de novos dados pela combinação dos já coletados. a partir de informações parciais e disper- sas recolhidas em vários arquivos. de sistemas urbanos de tráfego e de segurança. nos setores administrativos das instituições públicas e privadas. O problema. isto é. MARILENA CHAUI rápido operações lógicas que um ser humano levaria muito mais tempo para realizar. como é o caso bastante 59 2 Simulacro e poder 2 reimp. Es- tão presentes nas editoras e produtoras gráficas. artistas. os sistemas informáticos operam em rede. Estão presentes nos carros de último tipo. é saber quem tem a gestão de toda a mas- sa de informações que controla a sociedade. que define a operação da informática. lazer e entretenimento. professores e estudantes. tecnicamente. 146. vídeo. música. políticas) como da vida privada (por exemplo. porém. Ambos sublinharam as potencialidades de uma difusão cultural sem precedentes. 60 2 Simulacro e poder 2 reimp. econômicas. a informática leva ao limite a compressão espaciotemporal. a atopia e a acronia. dispomos de cinema. abolindo.p65 60 29/9/2010. McLuhan previra o término da “galáxia Gutenberg” (isto é. estendemos o nosso próprio sis- tema nervoso central num abraço global. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA simples da reconstituição das ações de alguém por meio das cen- trais telefônicas. telecursos e teleconferências (ou a edu- cação a distância). na medida em que os novos meios de comunicação tornaram acessíveis as produções culturais do mundo todo. que entram em contato com informações sigilosas tanto do setor público (informações militares. p. ação dos senhores do crime organizado. Benjamin falara nos efeitos da reprodução das obras de arte (pe- los livros. que podem dizer para quem alguém telefonou. op. com os multimídia. 32 MCLUHAN. o mundo do livro impresso) com o ad- vento da televisão. as con- tas bancárias). O terceiro está na possibilidade de uso das informa- ções por poderes privados para controlar pessoas e instituições. Hoje. em sentido antropológico amplo. estendemos nossos corpos no espaço. 10:16 . O segundo é a posse de infor- mações por pessoas não autorizadas. quantas vezes. escreve McLuhan (como sempre. chantagens. assim como para causar-lhes dano (espionagem industrial e políti- ca. jornais completos em pra- ticamente todas as línguas.. muito entusiasmado e deslumbrado): “No decorrer das eras mecânicas. tanto o espaço como o tempo”32. noticiários. no to- cante ao nosso planeta. por quanto tempo etc. cit. Do ponto de vista cultural. pelo rádio e pelo cinema). A esse respeito. Esse mesmo efeito é trazido pela informática: temos acesso imediato a museus e bibliotecas. passado mais de um sécu- lo de tecnologia eletrônica. assassinatos). Marshall. que usam as informa- ções para praticar sequestros. o telégrafo. 10:16 . no sentido restrito de produção de obras de pensamento. durante a primeira e a segunda revoluções in- dustriais. o telefone. entre empresas ou entre bancos situados nos confins da terra. o corpo humano estendeu-se no espaço (primeiro. Consequentemente. nem de distinção entre o dia e a noite. O universo está on line durante 24 horas. o microscópio e a máquina a vapor. a ciência (teórica e aplicada) tornou-se força produtiva. feitas em um piscar de olhos. Agora. Nas revoluções técnicas e tecnológicas anteriores. a pesquisa científica teórica era autônoma e se tornava ciência aplicada quando empregada por meio de tecnologias vinculadas à produção econômi- ca ou quando os resultados teóricos eram retomados com fins econô- micos em laboratórios mantidos pelas empresas de produção. com os satélites e a informática. diminuindo distâncias espaciais e intervalos temporais até abolir o espaço e o tempo. sociais e políti- cas. o rádio. mas sua apli- cação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de 61 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 61 29/9/2010. estamos diante de uma nova for- ma de inserção do saber e da tecnologia no modo de produção capi- talista. hoje e amanhã. ou como se vê nas grandes operações financeiras. no mono- pólio dos conhecimentos e da informação: “O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação. mudou o modo de inser- ção social dos pensadores porque se tornaram agentes econômicos diretos. depois com as má- quinas elétricas. hoje. deixando de ser um suporte do capital para se converter em agente de sua acu- mulação e reprodução. De fato. em que é possível conversar com pessoas de outro extremo do mundo. cuja presença é instantânea. com o telescópio. Tudo se passa aqui e agora. porém. Hoje. ontem. e a força e o poder capitalistas encontram-se. o corpo e a psique humanos. Os chamados meios digitais potencializam de maneira nunca antes vista o poder do capital sobre o espaço. o tempo. sem obstáculos de distâncias e diferenças geográficas. do ponto de vista da cultura. MARILENA CHAUI Como sabemos. é nosso cére- bro ou nosso sistema nervoso central que se expande sem limites. o cinema e a televi- são). como se vê nas chamadas “salas de bate-papo”. mísseis. O que pensamos e como pensamos é expresso em bens. as formas do trabalho. [. de- codificação e programação genética são todos amplifica- dores e extensões da mente humana. sistemas de comunicação. A sociedade em rede. Ora.. Assim. o sagrado e o profano. [. produção material e intelectual. essa mudança radical do lugar e do significado da ciência ultrapassa o sentido restrito da cultura (criação de obras de arte e de pensamento) para alcançá-la em seu sentido antropológico am- plo (instituição social da ordem simbólica. de vestuá- rio etc. saúde. caracterizada pela capacidade de 33 CASTELLS. o tempo. 69 62 2 Simulacro e poder 2 reimp. o visível e o invisível..] As novas tecnologias da informação não são simples- mente ferramentas a serem aplicadas. Paz e Terra.. os valo- res morais. os hábitos alimentares. sistemas de transporte e comunicação.. uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbo- los (a cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças produtivas). religiosos e políticos. 10:16 . “Há. por conseguinte. a mente humana é uma força direta de produção. a sexualidade. sejam alimentos. que determina a relação com o espaço. M. as formas do poder. mas processos a se- rem desenvolvidos”33.).] Com certeza. computadores. 1999. os contextos culturais/ institucionais e a ação social intencional interagem de for- ma decisiva com o novo sistema tecnológico. p. Com efeito. mas este tem sua lógica própria. não apenas um elemento decisivo no siste- ma produtivo. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA processamento/comunicação da informação em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.p65 62 29/9/2010. Pela pri- meira vez na história. São Paulo. moradia. educação ou imagens. serviços. determinadas pela materialidade econô- mica. A tradição da antropologia social havia estabelecido como referenciais de definição. troca de bens e objetos. pois temos de admitir que. à maneira das culturas “primi- tivas”. em lugar de se afirmar. mostraram não só a articulação real entre essas esferas. nas segundas. por- tanto. A segunda é óbvia: Marx sabia o que estava falando e. cada qual com sua or- dem e sua lógica próprias e. capitalis- tas. portanto. e da presença. o modo de produção capitalista destrói as mediações que. conferir alto grau de autono- mia entre essas esferas nas culturas “civilizadas”. ou sistema de poder. ibidem. ou sistema econômico. comparação e avaliação das culturas a maneira como as trocas eram simbolicamente estruturadas – troca de mulheres ou sistema de parentesco. porém. tro- ca de signos ou sistema linguístico – e considerava a diferença entre culturas “primitivas” e “civilizadas” decorrente da ausência. Estado e escrita. mercado. MARILENA CHAUI transformar todas as informações em um sistema comum de informações. que há “uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças pro- 34 Idem. mas também as razões pelas quais aparecem como se esti- vessem separadas ou como se fossem autônomas. Assim. Isso permitia aos antropólogos afirmar que as sociedades civilizadas não são regidas por sistemas de trocas. isto é. em sua forma mais avançada. troca entre vontades. em uma rede de recuperação e distribui- ção potencialmente ubíqua”34. como no texto que acabamos de citar. segundo os estudos antropoló- gicos. de mediadores ou me- diações nos sistemas de trocas – código civil. que nelas há uma pluralidade de esferas socioculturais. conferiam autonomia às várias esferas sociais e se estrutura pela unidade dos sistemas de trocas. 63 2 Simulacro e poder 2 reimp. As análises de Marx.p65 63 29/9/2010. somos hoje levados a duas conclusões: a primeira é paradoxal. nas primeiras. 10:16 . a análise de Francisco de Oliveira35 sobre a passagem da economia socialde- mocrata (ou o Estado do Bem-Estar Social) à neoliberal. porque ao instituir o salário indireto o Estado cortou o laço que prendia estruturalmente o capi- tal ao trabalho ou ao salário direto. ainda uma vez. que não vamos explicitar aqui. Em segundo. para as quais não possuía liquidez. que o Estado dirigisse os fundos públicos a seu financiamento. ou que há interação entre “os contextos culturais/ institucionais e a ação social intencional com o novo sistema tecnológico”. o Estado entrou em uma crise de endividamento conhecida como déficit fiscal. sob a forma de subsídios. e principalmente. 64 2 Simulacro e poder 2 reimp. em um ritmo e em um grau jamais vistos. a determinação econômica dos processos simbólicos. A economia política da hegemonia imperfeita. exigindo. que pôde desenvolver. op. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA dutivas)”. assim. Aqui. salário-família etc. como supunha Marx. a economia passou da forma industrial à forma chamada pós-industrial. compreendermos que houve absorção do 35 OLIVEIRA. em lugar de supor uma “relação de proximidade” ou uma “interação” entre o simbólico e o econômico. a neoliberal corta a destinação dos fundos públicos no pólo dos direitos sociais e os dirige quase integralmente ao capital. Desfeito o laço. Esse laço era responsável pelas limitações que o trabalho impunha ao ritmo das transformações tec- nológicas. Os direitos do antivalor. habitação. férias. Enquanto a primeira operava uma divisão na partilha dos fundos públicos. precisamos afirmar não apenas. agora. 10:16 . saúde. Como isso foi possível? Em primeiro lugar.p65 64 29/9/2010. potenciali- dades tecnológicas inteiramente novas. cit. Francisco de.) e outra ao capital. porque por vários motivos. mas sua ab- sorção pelo processo econômico. ao texto que comentávamos e. e este foi atribuído ao custo dos encargos so- ciais. destinando uma parte ao financiamento da reprodução da força de trabalho por meio do salário indireto (direitos sociais como educa- ção. é imprescindível mencionar. nada mais prendia o capital. na qual a ciência e a técnica se tornaram forças produtivas diretas. Dessa maneira. salário-desemprego. Se regressarmos. Estima-se que mais do 50% do PIB das maiores economias da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD) encontram-se fundados no conhecimento. países.].. também compreenderemos por que essa absorção dá origem à expressão “sociedade do conhecimento”. e a palavra “conhecimento” como sinônimo de força produtiva.. [.. Com ela. O desen- volvimento tecnológico global precisa da conexão entre a ciên- cia. graças ao uso competitivo do co- nhecimento. Aliás. 65 2 Simulacro e poder 2 reimp. 36 “A riqueza não reside mais no capital físico e sim na imaginação e criatividade humana”. bem como de serviços como a educa- ção. a saúde e o lazer.p65 65 29/9/2010. mas não suficientes.. op. alguns chegam mesmo a falar em “capital intelectual” como o prin- cipal princípio ativo das empresas36. “A produtividade e a competitividade na produção infor- macional baseiam-se na geração de conhecimentos e no processamento de dados.] O desenvolvimento econômico e o desempenho competitivo não se baseiam na pesquisa funda- mental [pesquisa teórica ou básica]. é sugestivo. J. organizações de todos os tipos e. Buenos Aires. da inovação tecnológica e da informação nos proces- sos produtivos e financeiros. por fim. A pesquisa acadêmica avançada e um bom sistema educacional são condições necessárias.. A geração do conhecimento e a capacidade tecnológica são ferramentas fundamentais para a concorrência entre empresas. cit. Ora. para que os países. 10:16 . as empresas e os indiví- duos ingressem no paradigma informacional [. 2000. M. 37 CASTELLS. mas na ligação entre a pesquisa elementar e a pesquisa aplicada e sua difusão entre organizações e indivíduos. nessa expressão. Paidós.. MARILENA CHAUI simbólico pelo econômico. La era del acceso. RIFKIN. bem como com as políticas nacionais e internacionais”37. a tecnologia e o setor empresarial. que a palavra “sociedade” seja tomada como sinônimo de economia. 167. pretende-se indicar que a economia contemporânea se funda sobre a ciência e a informação. p. y MALDONADO. 10:16 . Texto preparatório para a Conferência Mundial sobre a Educação. “Desafios de la universidad en la sociedad del conocimiento”. Atualmente o faz a cada 5 anos e se estima que para o ano 2020 se duplicará a cada 73 dias. Marilena. Fala-se em “explosão do conhecimento”38 para indicar o aumen- to vertiginoso dos saberes quando. BRUNNER. no jogo estratégi- co da competição no mercado. Emprega intensamente redes eletrôni- cas para se produzir e se transformar em tecnologia e submete-se a controles de qualidade segundo os quais deve mostrar sua pertinência social mostrando sua eficácia econômica. citado por José Joaquín Brunner. Carlos e CHAUI. uma organização de pesquisa se mantém e se firma se é capaz de propor problemas novos e solu- ções eficazes do ponto de vista do mercado. somos capazes de prestar atenção em apenas 5% a 10%.p65 66 29/9/2010. 2000. contado desde o início da era cristã. pois. hoje. dificuldades e obstáculos para a realização do objeti- vo. a seguir. Em outras palavras. agora são as ciências que se encontram inteiramente absorvidas pela lógica do mercado e. todo o sistema da educação formal. Cali. Appleberry. o conhecimento não se define mais por dis- ciplinas específicas e sim por problemas e por sua aplicação nos setores empresariais. Apud TUNNEMANN. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA Afirma-se que. com elas. 66 2 Simulacro e poder 2 reimp. F. Estima-se que a cada quatro anos duplica-se a informação disponível no mundo. o conhecimento de base disciplinar e registrado internacionalmente demorou 1.) Educación Superior latinoamericana y organismos internacionales – Un análisis crítico. assinalam os analistas. Não só a pesquisa se transformou em mero survey (deixando de ser investiga- ção no sentido forte do termo) e posse de instrumentos para intervir e 38 Segundo cifras de J. Todavia. In: LÓPEZ SEGRERA. 2004. Unesco. Por isso. na realidade. duplicou seu volume a cada 150 e depois a cada 50. José Joaquín. e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para pro- blemas e obstáculos locais. Boston College e Universidad de San Buenaventura. indica o modo da determinação econômica do conhecimento. Unesco. “Peligro y promesa: la Educación Superior en América Latina”. Alma (org. o conheci- mento contemporâneo se caracteriza pelo crescimento acelerado e pela tendência a uma rápida obsolescência. A pesquisa é pensada como uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a con- secução de um objetivo delimitado.750 anos para duplicar- se pela primeira vez. é um survey de problemas. Se as artes já haviam sido devoradas pela indústria cultural. tudo regulado via internet. a telefonia de voz e imagem. rádio. distribuídos pela casa ou pelo escritório para cada aparelho receptor: “televisão de alta definição. sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. “Modernidade líquida. sob qualquer plataforma – celular. em menos de duas décadas.ig. o cinema. os dados passaram a trafegar nas redes de comunicação passando de mil para milhões de bytes. Dessa forma. obstáculos sempre novos. 10:16 . micro-ondas e até geladeira. Este texto foi publicado parcialmente na página eletrônica do Observatório da Imprensa: http://observatorio.. e “um aumento exponencial na velocidade de transmissão de dados. tela de cinema. do mais esperto). p. houve não só a expansão da tecnologia analógica. A tecnologia do sistema digital modifica totalmente a forma da comunicação. o segredo.br/ artigos. o que é feito pela frag- mentação de antigos problemas em novíssimos microproblemas.p65 67 29/9/2010. redes de dados. dificuldades. pois pode integrar em um único sistema de distribui- ção e recepção a televisão. satélite. como a sobrevivência depende dos investimentos. Ali se informa também que o artigo será publicado na Revista da USP nº 66 (no prelo). Cada canal de seus infindáveis canais vai permitir uma aplicação diferente”40.com. mas. MARILENA CHAUI controlar alguma coisa.asp?cod=351IPB012).ultimosegundo. telefone fixo ou celular. o salto para a tecnologia digital. a explosão da telefonia celular e a multiplicação das maneiras de comunicação. 67 2 Simulacro e poder 2 reimp. 40 Idem. Caio Túlio. Que se passa no plano da comunicação? Como escreve Caio Túlio Costa39. a internet. ibidem. comunicação concentrada”. Não causa espanto que com- 39 COSTA. os quais são determinados pelo jogo estratégico da competição no mercado. com a possibilidade de interação en- tre redes de computador. fibra de vidro ou mesmo fio de cobre”. de maneira que os pesquisadores são man- tidos e se firmam somente se são capazes de propor áreas de proble- mas. E.. o ocultamento de metodologias e resultados tornam-se práticas com que os cientistas avalizam a ideologia liberal da racionalidade da guerra de todos contra todos e da vitória do mais apto (no caso. 10. a competição. artigo inédito de julho de 2005. mas também depende diretamente dos investi- mentos empresariais. além de novas formas de integração tecnológica (como WEBTV e CITY WEB). Nenhum país tinha condições para. estúdios de cine- ma. 450. o sistema digital produz um salto naquilo que surgiu na segunda metade da década de 1990. editoras.. O desenvolvimento de um sistema multimídia integrado. “Em tais condições. gravadoras de discos. 10:16 . considerado uma ferramenta de poder.p65 68 29/9/2010. mas ainda a defini- ção do chamado “ambiente regulador” (isto é. M. A multimídia “estende o âmbito da comunicação eletrônica para todos os domínios da vida: da casa ao trabalho. não exige apenas gigantescos investimentos em infraestrutura e programação. empresas de computado- res e provedores da internet. só grupos poderosíssimos. do entretenimento às viagens. Em outras palavras. partidos políticos e legisladores dos governos. operadoras de transmissão de TV por satélite. fonte po- tencial de altos lucros e símbolo de hipermodernidade”41. os governos não dispunham de recursos para atuar com independência. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA panhias de produtos eletrônicos e empresas de telecomunicações estejam em disputa para controlar esse negócio de ponta a ponta. porém. a chamada multimídia. p. das escolas aos hospitais. em função da escala dos investimentos em infraestrutura. jornais. dar forma ao sistema multimídia. operadoras de TV a cabo. resultan- tes de alianças entre empresas de comunicação de massa. cit. Em meados dos anos 1990. quem manda em quem e no quê). governos e empresas do mundo inteiro empe- nharam-se numa corrida frenética para a instalação do novo sistema. 41 CASTELLS. dificultado por conflitos e litígios óbvios e previsíveis entre empresas.. Formaram-se consórcios empresariais regionais/ globais. com a fusão de companhias telefônicas. uma vez que. op. sozinho. sistema de comunicação que integra diferentes veícu- los de comunicação e seu potencial interativo. 68 2 Simulacro e poder 2 reimp. com toda probabilidade. Além disso. provedores de serviços de Internet e empresas de computadores estarão em posição de dominar os recursos econômicos e políticos necessá- rios para a difusão da multimídia. televisão. correspondência. reduzindo as refeições familiares coletivas. ibidem. o telefone celular e o microcomputador permi- tem conversas no isolamento de um cômodo. pesquisas realizadas em alguns países do capitalismo central indicam que a chamada “casa eletrônica” enfatiza dois traços de um novo modo de vida: a centralidade da casa e o individualismo. com a baixa dos preços de aparelhos de rádio. pagamentos.p65 69 29/9/2010. todos eles equipados com um sistema individual para a audição. cada membro da família pode compor seu próprio mundo audiovisual à parte dos outros. videogames e aparelhos de som para CD. Centralidade da casa: aumentou o tempo passado em casa. Individualismo: os aparelhos portáteis levam cada membro da família a organizar seu próprio espaço e seu próprio tempo – o micro-ondas favorece refeições solitárias. 10:16 . No caso da multimídia. várias modalidades de trabalho e as informações sobre os acontecimentos. Assim. será de- cisivamente moldado pelos interesses comerciais de uns pou- cos conglomerados ao redor do mundo”42. dos quais não se precisa ou não se quer participar) e os principais gastos da família são dirigi- dos à aquisição de aparelhos que permitam não sair de casa. na concentração oligopólica das empresas de comunica- 42 Idem. haverá um siste- ma multinacional. MARILENA CHAUI operadoras de comunicação. Esse alargamento se manifesta não somente no plano econômi- co. porém. isto é. p. 453. pois praticamente tudo pode ser feito sem sair do domicílio (compras. sem a presença de outros membros da família. Havíamos notado que a marca principal no neoliberalismo é o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço priva- do. 69 2 Simulacro e poder 2 reimp. p65 70 29/9/2010. refor- ça o narcisismo. exprime uma cultura e uma sociedade narcisistas. Essa situação é ainda mais agravada com a chamada televisão digital. notícias em forma de espetá- culo. Em outras palavras. Em suma. Essa mescla dos conteúdos é agravada e reforçada pela encenação: programas educativos em forma de videogames. jogos esportivos como se fossem coreografias de dança etc. que instaura a “convergência na comunicação”. A multimídia potencializa um fenômeno que já tínhamos frisado ao nos referirmos à televisão. o peso das diferenças de classe. mencionado nas pesquisas. O “individualismo”. uma vez que educação. disponibilidade de tempo) mas também de condições educacionais e culturais (co- nhecimento de várias línguas. Como todas as mensagens estão inte- gradas em um mesmo padrão cognitivo e sensorial. Havíamos observado também que a condição pós-moderna é inseparável do elogio da intimidade que. os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. pois o acesso à multimídia depende não só de condições econômicas (dinheiro. de sorte que surgem dois tipos de usuários. infraestrutura física da casa. todos os meios em um único suporte de distribuição. os contextos semânticos são fragmentados e unificados com a mistura de sentidos aleatórios. como nas mídias tradicionais. A indústria da mídia “utilizará necessariamente a informática (tanto no hardware quan- 70 2 Simulacro e poder 2 reimp. isto é. notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio. nos meios de massa. conhecimentos gerais básicos para poder buscar informações e formas de interação entre elas). etnia e gênero. o que é capaz de ação seletiva e interativa e o que só é capaz de recepção de pacotes enviados pelo emissor. transmissão de sessões do Poder Legislativo ou do sistema judi- ciário como se fossem novelas. mas também na forma da sociabilidade: a “centralidade da casa” exprime exatamente a ampliação do espaço privado. o simbólico é devorado pelas imagens. qual seja. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA ção. 10:16 . Outras pesquisas indicam o crescimento da estratificação social entre os usuários: ou seja. a multimídia reforça a exclusão social (do ponto de vista econômico) e a hierarquia (do ponto de vista social e cultural). a indistinção entre as men- sagens e entre os conteúdos. educação. Virtual é o que existe sem estar diretamente presente ou dado em nossa experiência. nacionalidades. Real é o que existe de fato. Finalmente. uma ordem simbólica e opera com a distinção entre presença ou realidade e ausência ou virtualidade. Esta- dos. religião). no trabalho alienado. Ora. é criação de símbolos e estes exprimem nossa relação com o que está ausente. e o produto expri- me. Virtual é também o que existe como uma possibilidade que pode concretizar-se (por exem- plo. religiões. diferentes por sua origem (classes sociais. o trabalho é uma prática que produz ou torna presente algo que não existia. mas não a vemos. Vimos que a cultura. a peculiaridade da multimídia está em que ela produz “reali- dade virtual” ou “virtualidade real”. mas que é condição para nossa visão). incompleta e ilusória (como na ideologia). A cultura é. só podemos ver as coisas graças à profundida- de. que produz mercadorias. está presente como condição de nossa expe- riência (por exemplo. as palavras são símbolos que tornam presente o que está ausente. aquilo que não vemos. Au- sente como um dado. ela é uma presença invisível. centros de pesquisa etc. 10. ainda que. frequentemente. entretenimento. nas religiões. op. torna indistintos os dois 43 COSTA. presentificam uma ausência (a linguagem presentifica seres ausentes ao nomeá-los. isto é. Caio Túlio. em sentido amplo. etnias. o conteúdo e a arte (na informação e no entreteni- mento) e as tecnologias de distribuição (no ar ou nas fibras)”43. 10:16 . cit. MARILENA CHAUI to no software). p.). dando origem à cultura virtual. simboliza o produtor – por isso. seja dado de maneira deformada. isto é.p65 71 29/9/2010. artes. ou seja. Conhecemos a distinção entre virtual e real. o que é simbolizado não é o trabalhador e sim o capital). podendo ser dado diretamente em nossa experiên- cia ou ao nosso pensamento.. a multimídia unifica em um único universo digital ma- nifestações culturais distintas no espaço e no tempo. política. portanto. 71 2 Simulacro e poder 2 reimp. os ritos e cerimônias são símbolos ou atos simbólicos que presentificam as divindades ausentes. uma escultura pode estar virtualmente em um pedaço de mármo- re e pode concretizar-se graças ao trabalho do escultor). diversas por seu conteúdo e sua finalidade (informação. a experiên- cia simbólica/material das pessoas) é inteiramente captada. 44 CASTELLS. Todas as mensagens de todos os ti- pos são incluídas no meio porque fica tão abrangente. op.p65 72 29/9/2010. passada. pois essa distinção é es- sencial a ela como ordem simbólica. A QUESTÃO CENTRAL: OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COMO PODER Podemos focalizar a questão do exercício do poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais.. “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Em outras palavras. 10:16 . o econômico e o ideológico. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA aspectos que a cultura sempre distinguiu. Ao fazê-lo. confirmando o dito de Marx de que. pois uma “virtualidade real” ou uma “realida- de virtual” pressupõem que a distinção entre presença e ausência se reduza a estar presente ou estar ausente na rede ou no sistema multimídia. que absorve no mesmo texto de multimídia toda a experiência humana. a TV era o mundo. Anteriormente.459. to- talmente imersa em uma composição de imagens virtuais no mundo do faz de conta. expressão da pós- modernidade. tão maleável. quais se- jam. o mundo é a rede multimídia. o sistema multimídia. mas se trans- formam em experiência. VIII. destrói a ordem simbólica da cultura. cit. presente e fu- tura. p. M. Agora. O espaço se torna um “fluxo de ima- gens” e o tempo se torna intemporal. O que é o sistema de comuni- cação multimídia? “É um sistema em que a própria realidade (ou seja. como em um ponto único do universo”44. que já haviam sido a marca da antiga televisão. 72 2 Simulacro e poder 2 reimp. tão di- versificado. no modo de produção capitalista. no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência. potencializa a atopia e a acronia.. Vale lembrar que essa situação está em constante mudança. 10:16 . o grupo Globo vendeu 36% do capital da NET para a Telmex e tornou-se sócio minoritário da Sky Brasil (do australiano Murdoch). Sony. Levy (Gazeta Mercantil). pois estas são feitas a empresas privadas. O porte dos investi- mentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos. também é significativa a pre- sença. Entre as latino-americanas. mesmo quando. Bloch (Manchete). de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. revistas. Além da forte concentração (os oligopólios beiram o monopólio). Além disso. como é o caso do Brasil. Clarín (Argentina) e Cisneros (Venezuela). há 70 empresas de mídia relacionadas com os sete conglomerados. fabricantes de armamentos e aviões de combate. a UOL. cit. até os anos 1990. Globo (Brasil). pois “num processo nunca visto de fusões e aquisições. Viacom. mundo afora. de maneira direta ou indireta. 73 2 Simulacro e poder 2 reimp. Marinho. no setor das comunicações. Frias. dez grupos familiares controlavam a quase totalidade dos meios de comunicação: Marinho (Globo). Existem sete grandes corporações globais: Disney. Saad e Sirotsky. que anteriormente era sua sócia na operação de internet.. a indústria da comunicação passou por profundas mudanças estruturais. MARILENA CHAUI Do ponto de vista econômico. O grupo Abril vendeu 13% de suas ações a fundos norte-americanos. Frias (Folha de S. Civita (Abril). os meios de comunicação são uma indústria (a indústria cultural) regida pelos imperativos do capi- tal. rádios e televisões. indústria de telecomunicações a adquirir. op. portais de internet. jornais. Time Warner. companhias globais ganharam po- sições de domínio na mídia”45. restando Abravanel. rádio e televisão são concessões estatais. p. indústria metalúrgica. Saad (Bandeirantes) e Sirotsky (Rede Brasil). ou seja. 1. News Corporation. e são nichos de mercado nacionais ou regionais (quase metade são norte-americanas e outra metade são japonesas e europeias).p65 73 29/9/2010. o grupo Folha cedeu 20% de todo seu capital para a Portugal Telecom. estão: Televisa (México). Caio Túlio. A crise econômica do início do século e as mudanças constitucionais (permissão da participação de capital estrangeiro e de pessoa jurídica) derrubaram quatro grupos. empresas totalmente estrangeiras praticam jornalismo no país por meio da comunicação eletrônica. No caso do Brasil. Vivendi-Universal e Bertelsmann – norte-americanas. serviços de telefonia. 45 COSTA.Paulo). Nascimento Brito (Jornal do Brasil). sob a ação da forma econômica neoliberal ou da chamada globalização. satélites etc. Tanto é assim que. Civita. os meios de comunicação são empresas privadas. Abravanel (SBT). Mesquita (O Estado de São Paulo). Como satélites. indústria elétrica e eletrônica. europeias e japonesas. graças ao qual os meios de comunicação instituem o espa- ço e o tempo públicos. não se trata de negligenciar o poder econômico dos senhores dos conglomerados midiáticos nem sua força para produzir ações ou efeitos sociais. as representações ou imagens que constituem a ideolo- gia aparecem desprovidas de localização. escrevem eles. mas de maneira invertida (já que estamos no campo da ideologia). 1982. mas simplesmente (e gigantescamente) o próprio capital. Claude. Adorno e Horkheimer) que essas ações exibem poder. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA Essas mudanças nos fazem compreender que o poder econô- mico. Videologia. 10:16 . o sujeito do poder não são os proprietários dos meios de comunicação. tal como apresentada por Marx. é um “mecanismo de tomada de decisões que permite ao modo de produção capitalis- ta. Como observam com grande pertinência Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci46. Brasiliense. pois sua constitui- ção encontra-se no modo de produção do capital. nem os Estados. Evidentemente. em um nível mais profundo. Eugênio. podemos assinalar uma situação se- melhante. Do ponto de vista ideológico. como mostram as análises de Kehl e Bucci (reatando laços com as de Benjamin. O poder midiático. políticos e cultu- rais. 74 2 Simulacro e poder 2 reimp. mas não o constituem.p65 74 29/9/2010. nem grupos e par- tidos políticos. tomando como referência a análise de Claude Lefort so- bre a ideologia contemporânea como ideologia invisível47. 47 LEFORT. transubstanciado em espetáculo. não é exercido por agentes que delibe- ram e agem em vista de seus próprios interesses e fins particu- lares. Boitempo. Assim como o poder econômico aparece localizado nos proprietários das empre- sas da indústria da comunicação. “Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas”. In: As formas da história. Os proprietários dos meios de comunicação são suportes do capital. sua reprodução automáti- ca”. No entanto. assim como a ideologia totalitária tinham a peculiaridade de indicar quem eram 46 KEHL. trata-se de com- preender. A ideologia burguesa. Maria Rita e BUCCI. embora estejam precisa- mente localizadas nos centros emissores da comunicação. mas é o poder ilocalizado do capital. assim também. São Paulo. São Paulo. 2005. escreve Lefort. Tanto o discurso burguês como o discur- so totalitário eram proferidos do alto e pretendiam ser discursos sobre o social e para o social. Com efeito. no caso do totalitarismo.. educação. a televisão. as questões da ciência. São as coisas do cotidiano. cria-se a ima- gem de uma reciprocidade entre emissor e receptor. para que a ideologia possa ganhar generalidade suficiente para homogeneizar a sociedade no seu todo é preciso que a mídia cumpra seu papel de veicular a informação não de um pólo particular a outro pólo particular. pois. que deve aparecer como reciprocidade verdadeira e definida nas relações sociais. os jornais e as revistas de divulgação tornam viáveis sistemas de representação que seriam impossíveis sem eles. mas de um foco central circunscrito que se dirige ao todo indeterminado da sociedade. música pop. 10:16 . convertendo-se em um discurso anônimo e impessoal. a burguesia (que proferia um dis- curso construído e articulado pela ideias produzidas pelos intelec- tuais pequeno-burgueses) e. da cultura que sustentam a representação imagi- 75 2 Simulacro e poder 2 reimp.] A eficácia do discurso veiculado pelos meios de comunica- ção decorre do fato de que ele não se explicita senão par- cialmente como discurso político e isso lhe confere gene- ralidade social. é invisível porque não parece construída nem proferida por um agente determinado. e simula a presença de pessoas. Essa imagem é duplamente eficaz. MARILENA CHAUI seus autores ou agentes. do gênero mais nobre ao mais trivial. o cinema. ou seja.. que parece brotar espontaneamente da sociedade como se fosse o discurso do social: “O rádio. graças às representações construídas pelo partido). exalta a comunicação. arte concreta. o Estado (que falava em nome do social e do povo. sexo. A ideologia contemporânea. política.p65 75 29/9/2010. Com os debates públicos virando espetácu- los e discutindo tudo: economia. arte clássica e contemporâ- nea. independente de seu conteúdo e de seus agentes. [. ao mesmo tem- po. a peculiaridade da ideologia contemporânea está no seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento. 10:16 . e. Quando nos referimos aos vários procedimentos empregados pela mídia – entrevistas. 76 2 Simulacro e poder 2 reimp.p65 76 29/9/2010. a câmera e a direção do programa). define previa- 48 Idem. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA nária de uma democracia perfeita. O discurso compe- tente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir. telenovelas. da identidade entre poder e informação. o repórter. isto é. e sua eficácia social. o discurso tem a forma de um discurso do conheci- mento e em ambos está em ação a ideologia da competência. Em outras palavras. o locutor e. Como determinar o lugar social em que as representações ideoló- gicas ou o imaginário ideológico são efetivamente produzidos? Pen- samos que a ideologia invisível só se torna compreensível como exercício de poder se a consideramos por outro prisma. indagamos quem era o sujeito da comunicação e pudemos observar que o sujeito é sempre o próprio meio de comunicação (o entrevistador. o discurso ideológico pode aparecer como discurso do social porque o social aparece constituído e regulado por essa racionalidade. o animador. jornalismo opinativo e assertivo. noticiários –. política e cultural funda-se na crença na racionalidade técnico-científica. 320-321. o jornalis- ta. Nos dois casos. programas de auditório e esportivos. Quando passamos às novas e mais recentes tecnologias de comunicação. aquele que temos denominado com a expressão ideologia da competência. A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte ma- neira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. Ou seja. evidentemente. p. ibidem. na qual a palavra circu- la sem obstáculos”48. finalmente. assim como predetermina os lugares e as circunstân- cias em que é permitido falar e ouvir. observamos a transformação da ciên- cia e da técnica em forças produtivas e o surgimento da “sociedade do conhecimento”. na revista. como ter um corpo juvenil e saudável. culturais. como escrever um livro ou um artigo. à maneira do resenhista (de que falamos no início). técnico.p65 77 29/9/2010. que realizava uma inculcação de valores e idéias. político. de um lado. e os incompetentes. divulga saberes. culinária. afirma que nada sabemos e seu poder se realiza como intimidação social e cultural. artísti- co). zomba. sociais. falar e fazer. o “formador de opinião” e o “comunicador”. Os meios de comunicação não só se alimen- tam dessa figura. portanto. não se confunde com nenhum dos anteriores. a ter boas maneiras. aquele que de- vassa. educação das crianças. mas não cessam de instituí-la como sujeito da comunicação. a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes. que sabem. e os desprovidos de saber. medi- tação espiritual. O principal especialista. que podem falar e têm o direito de mandar e comandar. religioso. porém. Dizendo-nos o que devemos pensar. Todavia. jardinagem. O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo. Em uma pala- vra. que obedecem. como ga- nhar dinheiro e subir na vida. Essas distinções têm como fundamento uma distinção prin- cipal. MARILENA CHAUI mente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. em 77 2 Simulacro e poder 2 reimp. Ideo- logicamente. no jornal ou no multimídia. políticos. é preciso compreender o que torna possível essa intimi- dação e a eficácia da operação dos especialistas. premia e pune calou- ros – em suma. 10:16 . no rádio. a presença cotidiana (explícita ou difusa). religiosos e esportivos. por exemplo. o poder da comunicação de massa não é igual ou semelhante ao da antiga ideologia burguesa. a usar roupas apropriadas em horas e locais apropriados. eleva e rebaixa entrevistados. aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico. essa ideologia opera com a figura do especialista. como amar Jesus e ganhar o céu. O que as possibi- lita é. O especialista competente é aquele que. na TV. Enquanto discurso do conhecimento. mas é uma espécie de síntese. falando das últimas descobertas da ciência ou nos ensinando. que devem ouvir e obedecer. construída a partir das figuras precedentes: é aquele que explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos. sentir. decora- ção da casa. p65 78 29/9/2010. desigualdades e hierarquias sociais – em suma. essa realidade é virtual ou a virtualidade é real. O poder ideológico-político se realiza como pro- dução de simulacros. a forma máxima do poder: o de criar a realidade. a interiorização da ideologia pela sociedade. 78 2 Simulacro e poder 2 reimp. sua manifestação reiterada e perfeita na estrutura dos meios de comunicação. aparecem com a capacidade mágica de fa- zer acontecer o mundo. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA todas as esferas de nossa existência. 10:16 . que. graças a ins- trumentos técnico-científicos. da competência como forma que confere sentido racional às divisões. Ora. da atopia e da acronia. essa capacidade é a competência suprema. E esse poder é ainda maior (igualando-se ao divino) quando. e. de outro. e dos procedimentos de ence- nação e de persuasão. por meio do aparato tecnológico. assimetrias. o eidós/ideia é a própria coisa que se faz presente ao pensamento – ela é diretamente vista ou compreendida pelo olho do espírito. há uma: imago. mostrar-se. apa- rência. Eidolon deriva do verbo eidô. pintura. ter o ar de. imagem dos sonhos. fingir. em contrapartida. no eidolon/imagem. examinar. ideia. ter a aparência de. Esse verbo possui dois sentidos prin- cipais. eikon e phantásma. ídolo. fazer-se ver. no latim. reprodução. representar-se. é a coisa tal como 79 2 Simulacro e poder 2 reimp. É desse segundo sentido que deriva eidolon: imagem. Em um primeiro sentido. do mesmo verbo provêm duas palavras diferentes: ideia e imagem. fazer-se seme- lhante a. Qual a diferença entre elas? De acordo com vários filóso- fos gregos. representar e ver-se. o verbo eidô significa parecer. imagem refletida. Assim. escultura. significa ver. imagem concebi- da pela imaginação. entendida como objeto de uma percepção e. retrato. MARILENA CHAUI ANEXO I. PASSEIO PELO PAÍS DAS PALAVRAS Há no grego três palavras para significar imagem: eidolon. 10:16 . Desse verbo vem eidós.p65 79 29/9/2010. como objeto de uma visão intelectual que apreende a essên- cia ou realidade de uma coisa. Em seu outro sentido. filosofica- mente. e a que é 80 2 Simulacro e poder 2 reimp. Eidolon. escultura. Phantásia é a imaginação como construção de imagens a partir da percepção. é a coi- sa em imagem. dar a impressão de. sua face objetiva. ta phaea são os olhos. contempla. imagem ou ícone. Phaedo é o sol. em inglês. É o ícone. mas por meio de outra – o eidolon precisa da mediação dos órgãos dos sentidos. é a imagem referida ao sujeito que vê. “em pes- soa”. pintu- ra. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA chega a um sujeito através de um intermediário. mostrar o caminho. Phantásma pertence à família do substantivo pháos. é a imagem referida à própria coisa reproduzida. dar a conhecer. Phantásma é a imagem percebida que permanece em nós. é o visível. manifestar-se. 10:16 . vinda diretamente da coisa percebida e guardada na phantásia. Embora eidolon. É a face subjetiva da imagem. conhece – em outras palavras. a coisa precisa da mediação da imagem para ser percebi- da. no plural. porém. imagem refletida na água ou no espelho. imagem ou ídolo. media. o eikon precisa de materiais ou de instrumen- tos que reproduzam a figura da coisa. espelhada. é a ima- gem produzida pelos órgãos dos sentidos. O primeiro refere-se à aparência externa de uma coisa. que significa fazer brilhar. é mídia). ser veros- símil. dois traços caracterizam a imagem. quadro. ou seja. e do verbo phaino. a luz. Em latim. verossimilhante. o manifesto. guiar. meio se diz medium e. mostrar. há duas diferenças entre a imagem que é eidolon e eikon. É essa palavra latina que aparece na expressão inglesa mass media (cuja pronúncia. por meio da semelhança ou da similitude. mostrar-se. observa. que significa ser semelhante a. isto é. significa dar a perceber as coisas por intermédio de ima- gens visuais e sonoras. lite- ralmente. provável. de um meio. Eikon é a imagem que. refletida – em outras palavras. que. reproduz a coisa: retrato. nunca se oferecendo diretamente. Eikon vem do verbo eikô. o claro. a imagem atua sobre nossos órgãos dos sentidos a fim de que a coisa seja percebida.p65 80 29/9/2010. fenômeno. isto é. manifestar. eikon e phantásma sejam imagens. asseme- lhar-se. Eikon. O segundo exige um meio ou um mediador para dar-se ao sujeito. os meios. fazer aparecer. parecer bom ou conveniente. Phainomenón. por meio de signos ou sinais. Em ambos os casos. expli- car. Diferente- mente das palavras gregas que mencionamos e que estão primor- dialmente referidas à visão ou às imagens visuais. representação. entre a coisa e nós nada se interpõe. Species é a forma visível da coisa real. perceber. que vem dos verbos latinos specio e specto. Há. spectator. a species era estudada como imagem visual. Don- de a importância que. observar. ver com reflexão. porém. visão ilusória. Dela vêm os verbos imitor (procurar. olhar. aparência por oposição à realidade – ou seja. Specio: ver. phantásma. sua essência ou sua verdade – na ciência da óptica. sem media- ção. esperar. o que vê.p65 81 29/9/2010. olhar. speculare é ver com os olhos do 81 2 Simulacro e poder 2 reimp. os roma- nos sintetizaram em uma única palavra todos os variados sentidos que imagem possuía em grego (por isso. acautelar. Spectabilis é o visível. à palavra. speculum é o espelho. uma família de palavras latinas na qual a imagem tem como referência a visão. reproduzir uma imagem. enquanto na cultura grega a imagem foi objeto da teoria do conhecimento e da psicologia. retrato. A primeira diferença: eidolon e eikon necessitam de um medium para reproduzir a forma de alguma coisa. A segunda dife- rença: eidolon e eikon estão referidos às imagens das coisas ex- ternas a nós. séculos mais tarde. MARILENA CHAUI phantásma. ajuizar. provar. Trata-se da palavra espetáculo. isto é. isto é. a psicanálise dará aos fantasmas. 10:16 . A palavra latina imago significa imagem. O phantásma é imagem interior e justamente por isso nada se interpõe entre ela e nós. spectrum é aparição irreal. e o substantivo imaginatio (a imaginação). examinar. imago refere-se primordialmente à imagem sonora das coisas. ou seja. imitar) e imaginor (imaginar). na cultura romana seu lugar próprio foi a retórica. observa. às imagens que permanecem em nós depois da percepção das coisas externas. a psicanálise costuma empregar indiferentemente phantásma e imago). o campo das imagens de linguagem ou figuras de linguagem. fantas- ma. o phantásma é a presença imediata em nós da coisa-em-imagem. Por isso. Specto: ver. espectador. pois são eles que habitam nosso inconsciente e são mesmo formados por nosso inconsciente a partir de imagens per- cebidas e esquecidas ou censuradas. Espetáculo pertence ao campo da visão. Simulacrum é a imagem por representação (pintu- ra. imagem no espelho). simular. que o cientista faz uma simulação do fenômeno. É o simulacro. II. que significa representar exatamente. fazer junto. no retrato. 10:16 . mas também competir. seu simulacro. Em todas essas teorias surgirá uma concepção do ato de conhecer que permanecerá em toda a história 82 2 Simulacro e poder 2 reimp. o simulacro é a imagem de uma imagem percebida. ou seja. procura representá-lo por meio de experimentos que ofereçam imagens que o expliquem exa- tamente. pois nela a palavra óculos se diz spetacles. Dessa família de palavras. geralmente ilusória ou irreal. que signifi- ca o semelhante. BREVE REFERÊNCIA ÀS PRIMEIRAS TEORIAS DO CONHECIMENTO Três grandes teorias do conhecimento foram elaboradas pela fi- losofia a partir dessas palavras. O espelho não nos dá nossa imagem percebi- da e sim um duplo dela. uma simulação. passamos da percepção da imagem de uma coisa à sua representa- ção ou reprodução em uma outra imagem. isto é. e similitudo.p65 82 29/9/2010. tomar a aparência de. Esse duplo sentido apare- ce em nossa língua quando dizemos. Ou seja. simulacrum tanto pode significar uma representação ou cópia exa- ta como um fingimento. e quando dizemos que alguém é hipócrita ou falso porque é um simulador. E nossas línguas acabaram por unificar a palavra grega phantásma e a palavra latina spectrum para significar o fantasma ou o espectro como aparição. Em outras pala- vras. na escultura. como na pintura. Simulacrum é uma palavra latina que vem de similis. este último significado leva o verbo a significar também fingir. comparação. vê nossa figura em carne e osso) e a duplica- ção de nossa imagem no espelho. a língua inglesa guar- dou a lembrança. como é evidente para a pessoa que nos olha quando olhamos um espelho: a outra pessoa vê nossa imagem (isto é. De similis vem o verbo simulare. De similis vêm as palavras simul. rivalizar. semelhança. escultura. analo- gia. copiar. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA espírito e spetaculum é a festa pública. por exemplo. O platonismo toma o eidolon e o eikon como imagens sensoriais formadas pelas coisas em nossos órgãos dos sentidos e as considera o conhecimento da mera aparência da realidade. na me- 83 2 Simulacro e poder 2 reimp. e. não custa lembrar. em segundo. A segunda teoria é a de Aristóteles. recusa. opondo-as ao eidos ou à ideia. Aliás. termo que vem do latim. em sua essência e em sua realidade. A primeira teoria é a de Platão. MARILENA CHAUI posterior da filosofia e das ciências: nela e com elas a visão é o centro e a forma canônica do conhecimento e da verdade. Ao sair da caverna. Evidência significa ver completa. que a filo- sofia elaborou uma concepção da verdade identificando-a com a evidência. diz Platão. falsidade e verdade. que o conhecimento por imagens (a percepção e a ima- ginação) possa ser verdadeiro. conhecida apenas pelo espírito ou pelo intelec- to. somos como prisioneiros da caverna – a caverna é nos- so corpo e as opiniões que formamos das coisas a partir de suas imagens sensoriais –. em primeiro lugar. derivado do verbo videre. a ideia. mas dela podemos escapar. portanto. plena e perfeitamen- te alguma coisa tal como ela é. que é o conhecimento verdadeiro das essências das coisas. mas conseguiu quebrar os grilhões e fugir. Da mesma maneira.p65 83 29/9/2010. a do bem. eidolon é a imagem sensorial e se opõe a eidós. Para explicar essas oposições. que toma o eidolon e o eikon como a primeira forma que uma idéia tem em nosso espírito. aparência e essência. e que só pode vê-las graças à luz solar. assim. 10:16 . esse homem fica ofuscado pela luz do sol. que ilumina as ideias ou essências das coisas. Vem. na qual narra o percurso feito por um homem que sempre viveu preso em uma caverna. indo em direção à verdadeira luz. ver. A verdade é uma evidência porque é o olhar intelectual que vê plena e perfeitamente o que uma coisa é em si mesma. Platão apresenta uma alegoria. onde via apenas as som- bras das coisas. em uma de suas obras. conhecida como Alegoria (ou mito) da Caverna. que a palavra teoria vem do grego theoría e significa contemplação. a Repúbli- ca. que transforma em oposição a dife- rença entre eidolon e eidós. vistas pelo olho de nosso espírito. de Platão a oposição entre imagem e idéia. evidentia. ou seja. mas aos poucos se acostuma com ela e descobre que pode ver as próprias coisas. têm como ponto de partida as imagens. Nessa teoria. pois é a etapa inicial. a composição dessas imagens nos dá a percepção completa da coisa. isto é. De acordo com esses dois filósofos. na doença (quando. Tornar-se-á célebre a afirmação aristotélica de que nada se encontra no intelecto que não tenha passado primeiro pela sensação. sem referência às sensações. 10:16 . isto é. imagens visuais. que é lati- no. o qual é conhecido dire- tamente e por si mesmo. com exceção do próprio intelecto. por exemplo. reproduzindo a figura e as qualidades da coisa que a emite.p65 84 29/9/2010. táteis. olfativas e gustativas. nosso paladar sente apenas o amargo ou ácido dos alimentos e das bebidas. As películas ou simulacra se desprendem incessantemente das coisas. a ima- gem é uma fina película que as coisas emitem incessantemente – essa película é a coisa duplicada em imagem. que sem cessar volteiam velozmente pelo ar. chama essa película de simulacrum. no primeiro sentido desta palavra. como é possível o erro? Este decorre de dois fatos: ou as películas. Se todo conhecimento é feito de imagens e se as películas reproduzem as coisas. nas alucinações causadas por febres (que nos fazem ver ima- gens assustadoras das coisas). chegando distorcidas a nossos órgãos dos sentidos. surge a teoria de Epicuro e Lucrécio. opondo-se ao platonismo. ficam soltas no ar e quando encontram nosso corpo produ- zem a sensação e a percepção. não os percebendo corretamente) e na loucura (quando passamos a conviver com coisas e pessoas irreais). ou as películas que chegaram a nós se compõem com outras que já esta- vam em nós e todas se deformam – é o que acontece sobretudo no sonho (quando cremos ver e ouvir coisas que não existem realmen- te). para os quais todo conhecimento é sensação e composi- ção de sensações – uma ideia nada mais é do que uma composição de imagens sensoriais. representação ou cópia exata de uma coisa. isto é. sonoras. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA dida em que nossas ideias nascem da sensação e da percepção das coisas. Finalmente. A pelí- cula ou o simulacrum é o medium ou a mediação entre nós e as coisas. A distorção e a 84 2 Simulacro e poder 2 reimp. preparatória e necessária do conheci- mento por ideias. encontram-se com outras e se defor- mam. Lucrécio. o conhecimento por imagens não deve ser abandonado e sim compre- endido. Enquanto os órgãos dos sentidos. nascem a su- perstição e a religião. com Epicuro e Lucrécio inicia-se a tradição empirista. nossa razão compõe as ideias. como os racionalistas. como os empiristas.p65 85 29/9/2010. julga que o conhecimento verda- 85 2 Simulacro e poder 2 reimp. como o phantásma é a imagem de algo percebido que per- manece em nós. por meio da sensação e da percepção. nos apa- voram e aterrorizam. assim. inicia-se a tradição racionalista. a crer na existência de seres inexistentes porque formamos interiormente imagens deles. isto é. portanto. Em outras palavras. 10:16 . conhecendo as ideias das coisas. permanecendo em nós depois da percepção. diz Lucrécio. não é feita opo- sição entre imagem e ideia – uma idéia é uma reunião ou uma composição de imagens – nem entre aparência e essência. Em contrapartida. Aristóteles considera que todo conhecimento provém da experiência sensorial ou das sensa- ções. porém. palavra derivada do grego empeiría. Desse medo. Uma vez que as imagens percebidas estão distorcidas e deforma- das e que. MARILENA CHAUI deformação das imagens produzem a passagem do simulacrum ao phantásma: nossa fantasia cria imagens de seres inexistentes. Ora. Por meio das abstrações. suas essências ou seu sentido real. sua contigüidade espacial ou sua sequência tempo- ral. Finalmente. por seu aspecto incomum ou inusitado. se tornam fantasmas. Concebe-se o conhecimento como um processo de abstração. mas apenas entre imagens ilusórias ou deformadas e imagens verdadei- ras. a imagem interior que é imediatamente dada sem que nada se interponha entre ela e nós. Passamos. com Aristóteles. não podemos deixar de acreditar nela. que significa expe- riência sensorial ou as sensações. na qual a oposição entre imagem e realidade é concebida a partir da distinção entre aparência e essência. alcançam apenas as imagens das coisas e. ou seja. Nessa tradição. sua aparência (em geral ilusória e deformada). mesclam-se empirismo e racionalismo. Com Platão. con- creto e verdadeiro. a razão ou o entendimento alcança a realidade. estes. graças ao qual separamos nas imagens traços comuns ou proprie- dades comuns e estabelecemos relações entre imagens segundo sua repetição. concebe o ato intelectual do conhecimento ten- do como modelo o olhar. que ultrapassa as imagens e. ou têm origem na visão ou na linguagem. 86 2 Simulacro e poder 2 reimp. com as imagens interiores. trata-se de algo que se realiza fundamentalmente no corpo. a imagi- nação surge como passiva ou reprodutora quando imaginar é perce- ber. imagem e ideia. como na pintura. ou seja. pelo corpo. por meio das ideias. SIMULACRO E PODER: UMA ANÁLISE DA MÍDIA deiro só é obtido pela razão. com o corpo e cujo resultado é um corpo. ou o ato de ver.p65 86 29/9/2010. pois a percepção é simples- mente o conhecimento das imagens das coisas. e até mesmo quando Platão opõe corpo e espírito. Nos dois casos. assim. 10:16 . ou seja. todas exprimem atos corporais. ver o parentesco que sempre uniu imaginação e espetáculo. porém. Todas essas palavras estão referidas à visão e à linguagem. e como ativa e criadora quando imaginar é fantasiar. aparência e essência. embora diferentes e até mesmo opostas. É possível. ou um corpo glorioso. Conhecer por imagens é perceber. na dança. na escultura. alcança a essência verdadeira das coisas. pois a fantasia interioriza as imagens percebidas e. como na música e na poesia. nos levam a dar atenção a algo que é comum às palavras que mencionamos aqui. inventa o que não existe. Assim. As teorias do conhecimento elaboradas pela filosofia greco-roma- na. Porém. imaginar tam- bém é fantasiar. imaginar é perceber. ainda que este segundo corpo – ou o corpo-em-imagem – seja um corpo diáfano. do ponto de vista histórico.. 10:17 . que deixa de ser o vício * Este texto é uma versão modificada de uma conferência proferida em 1988.p65 87 29/9/2010. 1989. da aristocracia. a convite da Comissão Justiça e Paz. O advento da sociedade burguesa introduz a mudança dos valores éticos e sociais. nas sociedades aristocráticas. De fato.). e publicada em FESTER. fundamentalmente guer- reiras. 87 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. mas como algo natural e essencial à plebe. Brasiliense.. ou seja. São Paulo. C. vício dos covardes. o medo sempre foi articulado à covardia diante dos perigos da guerra e contraposto à coragem como virtude própria dos guer- reiros. A. O medo.. Ribeiro (org. houve coincidência entre a mutação sofrida pelo conceito e pelo senti- mento do medo e a discussão filosófico-política sobre os direitos do homem. Direitos Humanos e. tradicionalmente definida como covarde e temerosa. transformando também a maneira de definir e de localizar o medo. apare- cia como excepcional e vergonhoso entre os aristocratas. DIREITOS HUMANOS E MEDO * I É interessante observar que. assim tam- bém a sociedade burguesa universaliza as paixões. instituído e assegurado pela fonte divina externa. algo natural e necessário que homem algum pode alterar. ao afirmar que “o bom senso é a coisa mais bem repartida entre os homens”. designa sua função e sua virtude própria e estabelece a hierarquia interna à comunidade. sujeitos por natureza às mesmas paixões. 10:17 . Isso é compreen- sível em uma sociedade na qual a divisão social tende a ser ocul- tada pela imagem da igualdade natural de seus membros e na qual a realidade passa a alojar-se não mais na figura da comunidade. DIREITOS HUMANOS E MEDO característico da plebe para tornar-se um sentimento comum a to- dos os homens. espelho e guia da comuni- dade. os vícios e as virtudes. 5) a transcendência do poder. por natureza. capazes dos mesmos vícios e virtudes. Uma comunidade pressupõe e afirma: 1) sua indivisão interna. que encarna em sua pessoa o ser mesmo da comunidade. a indivisão. 4) a idéia de uma ordem comunitária fixa. Mas não só isto. a qual se espelha nele. sábia e transcendente que decidiu para e pelos homens qual a melhor forma de sua exis- tência em comum e qual a melhor forma de seu governo. A distinção anterior entre virtudes e vícios dos grandes e virtu- des e vícios dos pequenos vai se apagando e surge em seu lugar a imagem dos indivíduos iguais. hierarquia consi- derada a realização da vontade divina. donde a ideia de que as virtudes e os vícios da comunidade dependem inteiramente das qualidades morais do governante. natural e imutá- vel. Tal como Descartes universaliza a razão. ao garantir a ordem. crenças e valores: 3) a identificação de todos os seus membros com a figura do governante. 6) a lei concebida como doação à 88 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. resultando na afirmação de que. sabemos. 2) a comunhão de destino. ideias. que. ou seja. nasce quando desaparecem tanto a imagem como a realidade da comunidade. é vista como uma ordem instituída não pelos pró- prios homens e sim por uma força divina. define o lugar fixo de cada membro da coletividade. mas na do indivíduo. todos os homens estão sujeitos ao medo. A sociedade moderna. figurada pelo governante e pela comuni- dade de destino.p65 88 29/9/2010. nem a imagem da indivisão. representante do poder do Pai divino. isto é. divinizada. referência da comunidade. desconhece a figura dos indivíduos. é substituída pelos pri- meiros pensadores modernos pela divisão interna ou. dirigida por forças que lhe são transcendentes. A comunidade é uma realidade orgânica. A indivisão. a existência do poder e da lei. que usa o governante como intermediário. MARILENA CHAUI comunidade por Deus. encarnada na vontade e na razão da majestade do governante. Sua referência é o indivíduo como átomo isolado. lugares e funções. é que a sociedade já não pode referir- se a uma força externa transcendente para explicar sua origem. mas o governante permanece acima e fora da lei.p65 89 29/9/2010. nem a pressuposição do bem comum. A marca pró- pria da sociedade é que sua referência não é mais a ordem divi- na ou a ordem natural. pois não há bem individual. toda cidade é constituída pela divisão entre dois desejos opostos: o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. isto é. em nome da divindade. O mais importante. 10:17 . o governante ou o detentor do poder é aquele que. em outras palavras. a ideologia burguesa elaborou as teori- as do contrato social e do pacto social. A marca da majestade do poder está nesse fazer a lei e em julgar a todos segundo a lei. nem a hie- rarquia de cargos. Na busca de uma resposta a essa questão. tornando-se necessário saber como os indivíduos isolados vieram a viver em comum. porém. faz a lei segundo sua vontade própria. como surgiu a sociabilidade. não podendo ser julgado por ninguém. só conhecendo os seres humanos pelo lugar e pela função que ocupam no interior da ordem comunitária a serviço do bem comum. Assim. não há distinção entre o público e o privado. É isso que desaparece com o advento do modo de produção capitalista e da sociedade moderna ou burguesa. na- turalizada e praticamente imóvel ou imutável. uma comuni- dade indivisa. sua forma. como diz Maquiavel em O príncipe. ou como diziam os juristas medievais: “o que apraz ao rei tem força de lei”. a existência das desi- 89 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. nem a coletividade vista como uma grande família cujo pai é o governante. e o da servidão. Dessa maneira. enquanto existia a comu- nidade.p65 90 29/9/2010. o poder e a lei são produzidos pela própria socie- dade ou pela própria ação social dos homens divididos. quando expôs as determinações econômicas do surgimento do social. a marca fundamental da socie- dade moderna encontra-se no fato de que não pode colocar sua origem na vontade de Deus. para os pequenos). temiam o tirano e o diabo. bom. Ou seja. mas tinham medo da existência de forças maléficas que quisessem mudar a comuni- dade. No contexto da passagem da comunidade medieval à sociedade moderna compreendemos por que o medo muda de sentido e por que será um motivo central na constituição do pensamento políti- co moderno. seja como indivíduos isolados. 10:17 . por exem- plo. consideravam o diabo um tirano e o tirano. a força que criou e que conser- va a comunidade e os próprios homens. Além do medo do tirano e do diabo. bem como possuíam referências para os seus medos: não precisavam te- mer mudanças (a ordem jurídica e hierárquica do mundo havia sido fixada por Deus desde a eternidade). o chamado direito natural objetivo entendido como ordem jurídica do mundo. Não é casual. instituída por Deus segundo os graus de perfeição dos seres (e assim justifi- cando-se. quando existia a comunidade com sua ordem hierárquica. Poder-se-ia dizer que. DIREITOS HUMANOS E MEDO gualdades e dos conflitos. os homens também tinham medo de Deus. um homem diabólico. por exemplo. mas é forçada a reconhecer que as relações sociais. isto é. os homens dispunham de referências para pensar sua realidade como algo necessário. isto é. isto é. seja como indivíduos separados em grandes. e povo. que não deseja ser oprimido. imutável (porque sua fonte era a vontade divina). que o cristianismo defina o ateu como aquele que não tem o temor de Deus. De fato. para os gran- des. no período medieval. dos poderes perversos. os medos eram muito precisos: tinha-se medo do fim da 90 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. opressores. aliás. teorias que viriam a ser criticadas por Marx. o sistema de vassalagem. a corrente de pensamento político nascida com Maquiavel opõe- se às teorias do contrato social ou do pacto social. mas também. Não só isto. mediante uma acusação. isto é.p65 91 29/9/2010. o tempo quase era imper- ceptível. obra dos descendentes de Caim). O que muda com o advento da sociedade moderna? Agora. ao lado do medo de Deus e do diabo (pois a sociedade mo- derna é cristã) e do medo da natureza. já que estes. ateus. de perder os favores de Deus. para Santo Agostinho. o político e a história são percebidos como obras dos próprios homens. estabelecido desde toda a 91 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. pelo pecado. não só porque as mudanças ocorriam muito lentamente. verifica-se também que as relações sociais não foram ordenadas por Deus ou pelo diabo (não nos esqueçamos de que. do tirano ou do demônio. Donde as teorias políticas modernas do “homem lobo do homem” e da situação pré-política como “guerra de todos contra todos”. Na ordem comunitária. medo do humano. antes teológico-político. cuja cólera se manifestava em cas- tigos diante dos quais os humanos eram impotentes. MARILENA CHAUI comunidade por obra da guerra. do demônio – feiti- ceiras. havia o temor aos detentores do poder político e teológico. podiam julgar alguém culpa- do sem direito a defesa. As- sim. O medo. e tinham medo de tudo quanto pudesse surgir como obra do inimigo de Deus. mas nasceram da ação social de grupos divididos (na linha de Maquiavel). torna-se medo sociopolítico. livres-pensadores. 10:17 . perder a alma na eternida- de. guer- ra e morte. o curso dos acontecimentos era visto como seguindo um percurso preordenado. e aquele que fosse julgado culpado pe- los representantes de Deus na comunidade estava condenado por toda a eternidade. a comunidade dos Justos – a Igreja ou Cidade de Deus – é ordenada por Deus. da reunião de indivíduos isolados (na linha das teorias do contrato social). porém a comunidade dos Injustos – ou Cidade dos Homens – é ordenada pelo diabo. temia-se o inferno. por- que o social. magos. peste. porque a história era interpretada teo- logicamente. hereges. bruxos. cólera figu- rada pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: fome. isto é. Ou como diz Riobaldo: “Tenho medo de homem humano”. isto é. e sobretudo. os homens passam a ter um medo fundamental: temem uns aos outros enquanto seres hu- manos. ganha maior importância a ideia da Fortuna (ou a Sorte) com a sua roda a girar. 92 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. desde a Renascença. Em outras palavras. Por isso Maquiavel dirá que Fortuna é o nome que damos à adversidade (ao Infortúnio) e à nossa própria fraqueza. que alteram inexplicavelmente a vida de cada um e da sociedade. é o nome da inconstância e do inesperado. Dessa maneira. por outro lado. a ideologia do progresso. o tempo e a história também provocam medo. sobre a qual os homens pare- cem não ter controle nem poder. 10:17 . isto é. A história era providencialista – a ordem do tempo foi instituída pela providência divina. recuperando. E uma teofania. a lenti- dão das mudanças e a teologia da história providencial tornavam o tempo pouco perceptível e pouco temível.p65 92 29/9/2010. Con- firmando o homem como sujeito social. o sentimento de uma ordem necessária. simulta- 1 A história. o aspecto natural. Fortuna. a teolo- gia da história providencial. como dissera Boécio. necessário. E. a revelação da verdade no tempo. formando a semana cósmica: criação. porque a marca funda- mental do modo de produção capitalista é a velocidade temporal. era concebida a partir da relação de Deus com o homem e dividida em sete eras. político e histórico. aparecerá o esforço da ideologia burguesa para afirmar o contro- le humano sobre o tempo. encarnação (de Cristo). jubileu e eternidade. de maneira laica. isto é. isto é. nesse modo de produção “tudo o que é sólido desmancha no ar” –. porém. representação do tempo como acaso e contingência. com o desenvolvimento do capitalismo. Era uma epifania. a imagem do bom tempo. a rapidez das mudanças e a perda contínua de referenciais fixos – como diz Marx. desde os primeiros padres da Igreja. orgânico e imutável da comunidade. ou seja. O surgimento da modernidade significa o advento do social como social. queda (ou pecado original). Com a instituição da sociedade. a revelação de Deus no tempo. fixa e imutável cede lugar à percepção da mudança incessante. juízo final. a vida social e política é percebida como resul- tado das ações humanas e. desloca o medo fundamental para o interior da própria sociedade – para a divisão social das classes ou luta de classes – e faz nascer. DIREITOS HUMANOS E MEDO eternidade pela providência divina1. redenção. Assim. do político como político e do histórico como histórico. como o nascimento da democracia. as teorias políticas modernas pensam o direito como garantia jurídica. afirmação que vem legitimar o nascimento do direito. na Oréstia de Ésquilo. crime sangrento (parricídio e incesto no Édipo. MARILENA CHAUI neamente. e o passa- do aristocrático. matricídio na Oréstia) que os deuses exigem seja vingado com um novo crime sangrento. O mundo aristocráti- co é o da vendetta familiar ordenada pelos deuses. separada deles e superior a eles. que tem o poder de vida e morte sobre todos os membros da família. Consequentemente. convocados para discutir com Erínias Vingadoras (protetoras divinas da família) se Orestes deve ou não matar sua mãe Clitemnestra. com a instituição do poder democrático. à qual se possa conferir o direito do exer- cício da coerção e da vingança impessoais. No caso da modernidade. o que se afirma é que o medo recípro- co entre os homens e os crimes que cometem uns contra os ou- tros jamais terão fim se não for instituída uma instância. as tragédias são trilogias nas quais a última peça é uma reflexão sobre o desaparecimento da vendetta e o aparecimento do direito. as tragédias demarcam a diferença entre o presente democrático. Sob esse aspecto. consideram impossível decidir como o herói deverá proceder e declaram: “Que os humanos jul- guem os humanos”. fratricídio na Antígona. mas também da clara 93 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. Nessa reflexão. os deuses Atena e Apolo. regido pela lei da família e do sangue – ou a lei do pai. Sabemos que as tragédias gregas são uma reflexão da pólis acer- ca de sua própria origem como cidade dos homens e como cidade democrática. o pensamento moderno sobre os direitos do homem e do cidadão. podemos traçar um paralelo entre o advento moderno do direito e a criação dos tribunais na Grécia clássica. infanticídio na Ifigênia em Áulis. Assim. o qual pede nova vingança e assim indefinidamente. regido pelas leis públicas. nas tragédias. cuja consecução de- pende da clara definição dos direitos e deveres dos homens en- quanto indivíduos vivendo em sociedade. Por isso. Ora. o crime é crime intrafamiliar. social e política contra o medo que os sujeitos sociais têm dos outros sujeitos sociais. particularmente em Atenas.p65 93 29/9/2010. do tribunal e da assembleia política. 10:17 . os homens são ditos portadores de direitos por vontade de Deus. a teoria da distinção entre direito natural e direito civil em Tomás de Aquino. de sorte que Deus é origem e causa dos direitos dos homens desde antes da comunidade e para que venham a viver em comunidade. Isso não significa que antes da modernidade não houvesse teoria dos direitos dos homens – sabemos que existiu a teoria do direito natural entre os estoicos. A diferença não está em desconhecer ou conhecer direitos dos homens e sim no modo de inscrição desses direitos no real. A definição do direito como ação legal e impessoal do Estado é condição sine qua non para que os homens. o medo da arbitrariedade do poder. em ocasiões muito precisas: trata-se da prática da declaração dos direitos. o qual confere ao Estado o direito ao “uso legal da violência”. sabendo que se deve dar a cada um o que lhe é devido e sabendo distinguir entre o “meu” e o “teu”. 94 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. 10:17 . Essa diferença é de grande envergadura por- que nos permite compreender uma prática política inexistente antes da modernidade e que se explicita. para citar- mos Weber. ou seja. livran- do-se do medo recíproco. Exis- 2 Os direitos subjetivos se referiam à propriedade. não caiam nas garras de um medo ain- da mais forte. na versão moderna dos direitos do homem. Podemos constatar que. sob dois aspectos: 1) porque são seres racionais. às funções. De fato. quando os direitos subjetivos e objetivos eram considera- dos frutos da vontade de Deus.p65 94 29/9/2010. referiam-se aos deveres. a do direito subjetivo dos teólogos e juristas do final da Idade Média. os direitos do homem enquanto indiví- duo são inseparáveis de seus direitos enquanto cidadão. aos cargos e ofícios de cada um na hierarquia da comunidade. Em contrapartida. na versão teológico-política dos direitos subjetivos e objetivos2. só para mencionarmos alguns exemplos entre muitos. os homens são ditos portadores de direitos por natureza (direito natural) e por efeito da lei positiva (direito civil) instituída pe- los próprios homens. os homens possuem o sentimento inato de justiça. DIREITOS HUMANOS E MEDO definição de a quem cabe o direito de exercer a coerção e a vin- gança impessoais. não havia por que os declarar. Os direitos objetivos derivavam da ideia de uma ordem jurídica natural imposta ao mundo por Deus. significativamente. e 2) cada um tem o direito à propriedade de seu corpo e de tudo quanto é necessário para conservá-lo. isto é. na Re- volução Francesa de 1789. a confirmação de que os direitos dos homens se tornaram uma questão sociopolítica está no fato de que as declarações dos direitos ocorrem nos momentos de profunda transformação social e política. assume um 95 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. A declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político. as definições da violência e do crime. os grandes e o povo em Maquiavel. a existência da divisão social (por exemplo. Esse reconhecimento e esse consentimento dão aos direitos a condição e a dimensão de direitos universais. em primeiro lugar. MARILENA CHAUI tiam como um fato. De fato. A prática de declarar direitos significa. Dissemos que a prática política da declaração de direitos ocorre em ocasiões muito precisas. na Revolução Russa de 1917. por outro. e o medo. na modernidade. Em outras pa- lavras. Dessa maneira. encontramos declarações de direito em situações revolucionárias: nas revoluções inglesas de 1640 e 1688. com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. não. indica que há relações profundas entre os direitos humanos e a forma do poder. na independência norte-americana. Também encontramos a declaração de direitos no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Enfim. II Retornemos ao nosso ponto de partida.p65 95 29/9/2010. e que sejam declarados nessas ocasiões. isto é. que se torna muito mais difuso do que antes. que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. o fato de que os direitos precisem ser declarados. Dissemos que o advento da sociedade moderna altera o sentido do medo. que não é um fato óbvio para todos os homens que eles são portadores de direitos e. afirma sua origem social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos. quando os sujeitos sociopolíticos têm consciência de que es- tão criando uma sociedade nova ou defendendo a sociedade existen- te contra a ameaça de sua extinção. as classes sociais em Marx) permite supor que alguns possuem direitos e outros. 10:17 . exigindo o consentimento social e político de todos. ao fenômeno do totalitarismo nazista e fascis- ta. as carac- terísticas da tirania. ditado pelos interesses dos homens em face do medo da violência. Esse ponto nos interessa porque a admissão do Esta- do como instância racional capaz de. da teoria do contrato social e da teoria do Estado como legislador e árbitro. por natureza. medo do poder e medo do tempo. Os autores clássicos afirmam que. Essa instância é o Estado. Não cabe aqui examinarmos as diferentes concepções clás- sicas da teoria do direito natural e civil. mas ainda sociopolítico e se manifesta como medo da violência dos indivíduos contra os indivíduos. a igualdade e as liberdades dos homens articula- rá a teoria jurídica a três vertentes políticas antagônicas. os homens não conseguem garantir seus direitos naturais. por meio das leis. • vertente republicano-democrática: julga que o direito civil só poderá garantir os direitos naturais se mantiver os dados que cons- tituem tal direito. 10:17 . DIREITOS HUMANOS E MEDO conteúdo não só psicológico. • vertente absolutista: tende a apagar os direitos naturais e os civis e a assumir. a moderna teoria dos direitos desemboca em uma concepção jurídico-constitucional da política. os homens são iguais e livres. a igualdade e a liberdade. direito a tudo quanto auxilie a autoconservação dos indivíduos e direito ao pensamento e à pala- vra. É nesse contexto que nasce a teoria moderna do direito natural (século XVII). garantir a vida. Em outras palavras. afirmando que os homens são dotados de direitos por natureza e que os direitos naturais são: direito à vida ou à autoconservação. • vertente da monarquia constitucional: considera que somente o poder legal centralizado no monarca e nas instituições monárquicas é capaz de assegurar os direitos naturais. O ponto que nos interessa aqui é apenas aquele no qual os teóricos modernos ten- dem a identificar o estado de natureza com o estado do medo gene- ralizado e a ideia de que a criação do direito civil e do Estado é um feito racional. recorrem ao contrato social. a partir do qual decidem alienar seus direitos naturais a uma instância soberana que os transforme em direitos civis e positivos. pelas leis e pelo direito positi- vo. que se torna o 96 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. mas ressalvam que. em estado de natureza.p65 96 29/9/2010. perante o constitucionalismo moderno. isto é. para garan- ti-los. A avaliação não se refere mais às qualida- des do governante e sim às das instituições sociopolíticas. com a Revolução Francesa. sendo por isso tomados como escravos. os direitos civis não se constituíram e a regra sociopolítica é a da opressão. no século XVIII. Assim a noção de direito natural e civil. a opressão e a violência. A existência das três vertentes do pensamento político é impor- tante para compreendermos o ressurgimento e o fortalecimento das teorias do direito natural e do direito civil nas discussões do pensamento da Ilustração. perante o direito. que. 10:17 . podemos com- preender um fenômeno interessante. Ao mesmo tempo. e não será casual que muitos teó- ricos distingam esses regimes segundo a presença ou ausência de medo. levaram a afirmar que os regimes não-constitucionais eram o Antigo Regime. entendida como apropriação privada daquilo que seria público e comum a todos os membros da sociedade. longe de ser encarada como resultado da ação demo- níaca de um homem vicioso e perverso. natural e positivo serve de medida para avaliar os regimes políticos. uma vez que. caracterizado como regime de arbitrarie- dade. Este. é escravo aquele que vive sob o poder de outro homem e realiza os desejos de ou- trem como se fossem os seus próprios.p65 97 29/9/2010. aparece como política na qual os direitos naturais desapareceram. Dirão muitos que um regime político é livre ou republicano quando nele os cidadãos agem em conformidade com a lei porque se reconhecem como origem ou como autores das leis segundo seus direitos. Dessa forma. a posição de al- guns teóricos. é des- crito como fundado no medo. segredo (a “razão de Estado”). que não fariam senão transformar em lei e em direito positivo a desigualdade so- cial. como é o caso de Rousseau. qual seja. e será tirânico o regime político no qual os cidadãos obedecem às leis por medo dos castigos. ao otimismo dos teó- ricos clássicos do século XVII se contrapõe o pessimismo de mui- 97 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. que tenderão a ver na simples existência do poder de Estado a destruição dos direitos naturais e seu desvirtuamento pelos direitos civis. definido como soberania da vontade pessoal do governante. MARILENA CHAUI padrão para avaliar os regimes políticos e serve para redefinir a tirania: esta. opressão e violência. Antes de retomarmos essa problemática. seja como diferença entre os grandes e o povo. quer defendam a república como re- gime monárquico. 3) no reconhecimento por parte de cada homem e de todos eles. 2) na criação do poder como poder público e legal que. E uma das características mais interessantes das teorias modernas está no fato de conterem em si mesmas uma teoria do direito como direito de resistir à violência. assim como pelo poder público. como Hobbes. examinemos o otimismo dos humanistas da Renascença e dos pensadores clássicos do século XVII. nascido do consentimento de seus criadores. liberando o espíri- to dos homens de medos trazidos sobretudo pela religião e pela ignorância. quer a defendam como regime democrático. Finalmente. outro ponto importante nessas teorias é que. Quer sejam contratualistas. como Maquiavel. que será a terceira par- te de nossa exposição. quer não sejam contratualistas. funda-se a ideia do direito de resistência à opressão e à violência. Humanistas e clássicos. Por isso. Bodin e Espinosa. Grotius. propuseram a dessacralização da realida- de sociopolítica e conceberam a sociedade a partir de suas divisões internas – seja como lutas entre indivíduos. como vimos. seja por eles respeita- do e obedecido segundo padrões que eles próprios estabeleceram. DIREITOS HUMANOS E MEDO tos pensadores do século XVIII. que viram no Estado a impossibi- lidade de concretizar os direitos dos homens. 10:17 . os pensadores dos séculos XVI e XVII estão convencidos de que a pos- sibilidade de vencer o medo reinante entre os homens encontra-se na satisfação de três condições: 1) no desenvolvimento da razão como vitória contra preconceitos e superstições. em sua maioria (com exceção tal- vez de Puffendorf). Locke e Puffendorf. os quais ele pode ou não alienar a outros e cujo desrespeito configura violência e opressão que os homens têm o direito de combater e vencer. de que todo indivíduo nasce com direitos invioláveis.p65 98 29/9/2010. com muitos humanistas e clássicos. pois seria instru- mento da opressão dos mais fracos pelos mais fortes. não constituem teorias jurídicas da política – a política instituída a partir das regras do direito – e sim teorias políticas que carregam em seu interior forte compo- nente jurídico – a política como garantidora de direitos natu- 98 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. São teorias que colocam os direitos naturais e os direitos civis no centro da ação política e conferem à noção de lei o papel de eliminar o medo social e político. Esse otimismo da classe burguesa ascendente desaparecerá quando. III Sabemos que um dos pontos mais importantes da discussão de Marx sobre a sociedade moderna encontra-se na questão sobre o poder. sociais. malgrado os próprios pensa- dores que inicialmente a formularam. os movimentos populares e proletários reve- larem a injustiça das leis e a inexistência concreta dos direitos de- clarados nas várias revoluções. Esse otimismo republicano vigorará na Revolução Francesa e sus- tentará a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. no qual ela possa superar suas divisões internas e perceber-se unificada. que poderão rebelar- se e restaurar a igualdade e a liberdade que os define naturalmente. em 1789. portanto. jurídica e impessoal? Como se explica que vivamos em sociedades nas quais as desigualdades econômicas. Os trabalhadores são vistos como “classe perigosa” e dão medo. Isto significa que a posição de um polo político separado da sociedade – o poder político ou o Estado –. 10:17 . onde houver ilegalidade haverá tirania e onde houver tirania haverá o direito de resistência por parte dos cidadãos. culturais e as injustiças políticas não se apre- sentam como desigualdades nem injustiças porque a lei e o Estado 99 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp.p65 99 29/9/2010. onde houver injustiça haverá ilegalidade. no século XIX. por meio da lei e do direito? Como se explica que a relação social de exploração econômica se apresente como relação política de dominação legal. MARILENA CHAUI rais e instituidora das regras do direito civil. confere à legalidade o estatuto da legitimidade: a lei se anuncia como a visibi- lidade sociopolítica da justiça. Essa perspectiva acabará levando. Marx indaga: como se dá a passagem da relação pessoal de dominação (existente na família sob a vontade do pai e na comuni- dade sob a vontade do chefe) à dominação impessoal por meio do Estado e. à ideia de que onde houver medo haverá injustiça. 100 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. oferecendo-se como pólo de universalidade. porque esclarece questões obscuras. em vez de nos livrar do medo? Evidentemente. DIREITOS HUMANOS E MEDO de Direito afirmam que todos são livres e iguais? Como explicar que as desigualdades. A indivisão é proposta de duas maneiras. por meio da lei e do direito positivo. a sociedade ci- vil. O segundo ocultamento da divisão de classes se faz pelo Estado. de que es- ses indivíduos são livres e iguais. provocando medo nos sem-poder.p65 100 29/9/2010. 10:17 . a exploração e a opressão. não sendo casual. o mercado capitalista. O primeiro ocultamento da divisão de classes se dá no interior da sociedade civil (isto é. unifica- dos por contratos. cause medo. dos interesses dos proprietários privados dos meios sociais de produção) pela afirmação de que há indivíduos e não classes sociais. A resposta de Marx enfatiza que o Estado de Direito é uma abstração. Cabe porém lembrar- mos o centro da indagação de Marx. além de ilusórios. generali- dade e comunidade imaginárias. Uma das respostas de Marx às suas próprias perguntas é bastante conhecida: a sociedade capitalista. embora seja inteiramente dividida. não cabe aqui discutirmos as respostas que Marx e outros depois dele deram ao problema. aparecer como indivisa. que. isto é. que o Estado se ofereça como máquina repressiva e violenta. pois a igualdade e a liberda- de postuladas pela sociedade civil e promulgadas pelo Estado não existem. que definem as relações sociais no plano da sociedade civil. constituída pela di- visão interna de classes e pela luta entre elas. não apareçam dessa maneira nas relações políticas definidas a partir do Estado pela lei e pelo direito? Como explicar que o direito produza a injustiça? Como explicar que o Estado funcione como aparato policial repressivo. os direitos do homem e do cidadão. mas necessário. a fim de recompor-se como sociedade. assim. requer para seu funcionamento. estão a serviço da exploração e da dominação. relacionando-se por meio de contratos (pois só pode haver contrato legalmente válido quando as partes contratantes são livres e iguais). Nessa perspectiva. aparece como uma rede ou uma teia de diferenças de interesses entre indivíduos privados. está encarregado de garantir as relações jurídicas que regem a socie- dade civil. p65 101 29/9/2010. Somos forçados a reconhecer que as declarações modernas dos direitos humanos trazem consigo a violência e tornam-se fonte de medo. de sorte que a defesa do direito de alguns significa a coerção. Em outras palavras. pois este é preferencial e primordialmente definido como crime contra a propriedade. en- tão. de fato. uma vez que se trata. Assim. As declarações dos direitos do homem e do cidadão afirmam que os homens são seres racionais e que são seus direitos o uso da razão. Compreendemos. Mas não só isto. MARILENA CHAUI uma vez que o Estado e o direito nada mais são do que o poderio particular da classe dominante sobre as demais classes sociais. só poderão defendê- la contra os sem-propriedade. a partir do momento em que a propriedade privada é definida como um direito que. exclui des- se direito a maioria. a liberdade de 101 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. Marx dissera que a declaração de 1789 identificava homem/cidadão e burguês. abstratamente. é de todos. 10:17 . porque esta é um direito do homem e do cidadão. a repressão e a violência sobre outros. a lei e o Estado. não há distinção entre o direito aos bens necessários a cada um e o direito ao instrumento de exploração econômica que impede a existência do primeiro direito e torna impossível reconhecê-lo e respeitá-lo. que devem proteger a propriedade privada. portanto. indo desde a propriedade individual do próprio corpo e da própria vida até a greve e a ocupação de terras. a liberdade de pensamento e de expressão. pois em ambas a pro- priedade privada é declarada um direito do homem e do cidadão. no caso sobre a maioria. Não sem motivo. que atingem a propriedade privada dos meios sociais de produção. sem que se distingam propriedade privada individual e propriedade privada dos meios sociais de produção. e. a opressão. concretamente. A verdade das colocações de Marx transparece quando exami- namos tanto a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 como a Declaração dos Direitos Humanos de 1948. da propriedade privada dos meios sociais de produção. em vez de fonte de emancipação. em nossas socieda- des. uma ambiguidade que perpassa a definição do crime (violação do direito). Em outras palavras. a exclusão faz que esta propriedade privada se encontre ameaçada. e a dos executantes. sob os impe- rativos das novas tecnologias de automação e informação (que. esse direito pode ser respeitado. pois os sujeitos sociais são. Não mencionemos também a manipulação das consciências pelos meios de comunicação de massa. o que se produziu foi uma das mais poderosas máquinas de intimidação social. Indaguemos se nas socie- dades contemporâneas esses direitos podem ser respeitados. sob a aparência da democrati- zação do pensamento pelos meios de comunicação e de informa- ção. pelo consumo. que não têm direito ao uso da razão. sob os imperativos da divisão social do trabalho em manual e intelec- tual. muitos estudiosos mostraram como. Em nossas sociedades. DIREITOS HUMANOS E MEDO opinião. De fato. Deixemos de lado o problema óbvio da censura em países democráticos. consi- derados os que nada sabem. sob os imperativos técnico-administrativos e burocráticos que re- gem a administração dos serviços públicos e privados. pela indústria da opinião pública. autoritários e totalitários. que sabem e têm o direito ao uso da razão. no modo mesmo como se organiza a divi- são social do trabalho. 10:17 . ao mesmo tempo. Essa divisão social entre competentes e incompetentes não fere apenas as declarações dos direitos humanos.p65 102 29/9/2010. mas também um dos mais importantes princípios na concepção moderna dos direitos: o que afirma que somente graças à razão e ao pensamento esclareci- do os homens podem livrar-se do medo resultante da ignorância e da superstição. a articulação entre direito e propriedade privada dos meios sociais de produção e entre direito e apropriação privada do saber e da razão como instrumentos dos meios de pro- dução condena a maioria da sociedade ao medo. sob os imperativos da cha- mada “sociedade do conhecimento” (a ciência como força produti- va diretamente inserida na acumulação do capital). A resposta será negativa. 102 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. o trabalho fabril. tornam obsoletos os saberes dos traba- lhadores e os próprios trabalhadores). os cidadãos são diferenciados em duas grandes categorias: a dos dirigentes. Indaguemos se. Não por acaso. sob os imperativos da divisão dita científica do trabalho fabril. o trabalho nas instituições de serviço público ou privado (como na saúde e na educação). com velocidade vertiginosa. para que o mercado receba mão de obra qualificada é preciso assegurar o aprendizado. correndo o risco. Por outro lado. por que as declarações não distinguem entre as várias formas da propriedade. Isso explica. cuja fór- mula poderia ser assim resumida: não é qualquer um que tem o 103 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. é preciso que outros direi- tos sejam também declarados para legitimá-la. É preciso que os não-proprietá- rios dos meios sociais de produção também sejam considerados proprietários – do seu corpo. Com efeito. caso não aceitem tal imposição. como dissemos anteriormente. os homens são declarados livres. lixo ou perigo para a sociedade. Ora. nem todos podem exercer esse direito sem ser criminalizados – as leis de censura se encarregam da limitação do direito ao uso da razão. pois. Sendo ra- cionais e livres. de crença e de expressão. como já dissemos. no entanto. é preciso perceber a contradição posta para a socie- dade a partir do momento em que os direitos são declarados e con- siderados universais. portanto. A ideologia da competência faz crer que a política é uma técnica conhecida somente por especialis- tas competentes e. de sua força de trabalho –. esvazia os direitos políticos dos cida- dãos e dissemina a despolitização da sociedade. todos os homens. Porém. daí declarar-se que os homens são todos seres racionais. de sua pessoa. Além disso. dos bens necessários à vida e. sem o que os indivíduos não se acham validados para as relações firmadas em contratos. de serem considerados associais. consistindo o contrato em ato livre e de consentimento entre as partes. visto que a sociedade está dividida em classes em luta. possuidores dos conhecimentos. a relação contratual exige que as partes sejam livres e iguais. é a ideologia da competência. MARILENA CHAUI excluídos do direito de produzir conhecimentos ou de exprimir seus conhecimentos e forçados a aceitar regras de vida ditadas pelos especialistas. No entanto. 10:17 . detri- to. evidentemente. falar e opinar. para que a propriedade privada dos meios sociais de produção possa ser tida como um direito. alguma escolarização. de opinião. com isso.p65 103 29/9/2010. têm o direito à liberdade de pensamento. como o contrato de trabalho pressupõe a liberdade. é preciso não esquecer que a razão afirma o direito de pensar. Mais eficaz do que a censura. econômico e social são de queda na desumanização. a morte cotidiana. que. encontra meios para bloquear ou frear o exercício de direitos declarados. entre o medo de perder poderio e o medo 104 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. as diferentes classes sociais têm medos diferentes. a cada passo. a classe trabalhadora teme o desemprego. uma vez declarado. falam em nome de algo que é pressu- posto pelos direitos e que por estes deve ser concretizado: falam em nome da justiça. em primeiro lugar. As classes populares não chegam a falar em nome dos direitos. Essa diferença dos medos é reveladora. que o contraponto se realiza entre manutenção de privilé- gios e perda de direitos. e essa discrepância abre uma brecha para pensar- mos a dimensão democrática dos direitos.p65 104 29/9/2010. na miséria absoluta. 10:17 . a queda vertiginosa na marginalidade. Nessa brecha. A classe dirigente teme perder o poder e seus privilégios. a desor- dem. medos de perder a condição humana e por isso medos que dizem respeito aos seus direitos. proprie- dades. medos que dizem respeito aos seus inte- resses. Poderíamos prosseguir. a violência patronal e policial. dizer que as declarações de direitos afirmam mais do que a ordem estabelecida permite e afirmam menos do que os direitos exigem. Mais do que isto. IV Em uma sociedade como a brasileira. então. O que queremos observar é que cada direito. A diferença social do medo revela. os medos dos que estão no baixo político. poderemos também ver a nova relação entre medo e direitos humanos. DIREITOS HUMANOS E MEDO direito de pensar e dizer qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer tempo para quaisquer outros. em segun- do lugar. a classe dominante teme perder riquezas. Revela. abre campo para a declaração de novos direi- tos e essa ampliação das declarações de direitos entra em contradi- ção com a ordem estabelecida. Em contrapartida. podemos falar em uma di- visão social do medo. isto é. que os medos dos que estão no alto político. a proletarização. a arbitrariedade dos poderes constituídos. econômico e social são os de perda de privilégios. mas isto já é o bastante. Podemos. a classe média teme a pobreza. bens. atravessa as instituições públicas e privadas. feitas para ser violadas. Situação claramente reconhecida pelos trabalhadores quando afir- mam que “a justiça só existe para os ricos”. Todas as relações tomam a forma da dependência. e onde a transgressão popular é violenta- 105 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. que se exprime no dito muito conhecido: “para os amigos.p65 105 29/9/2010. por seu turno. Situação que também penetra em uma consciência social difusa. Os indivíduos se distribuem imediatamente em superiores e inferiores. ainda que alguém superior em uma relação possa tornar-se inferior em outras. tudo. MARILENA CHAUI da injustiça. mando e obediência (situação que vai da família ao Estado. fazendo-a ser uma concessão regula- da e periódica da classe dominante às demais classes sociais. O que é a sociedade brasileira enquanto sociedade autoritária? É uma sociedade que conheceu a cidadania através de uma figu- ra inédita: o senhor (de escravos)-cidadão e que concebe a cidada- nia como privilégio de classe. da autoridade e do favor. exaltados como qualidades positivas do “caráter nacional”. que vivemos em uma sociedade profundamente autoritária. dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante. considerados naturais e. e estas. No caso das camadas populares. inócuas. da tutela. fazendo da violência simbólica a regra da vida social e cultural. que poderá ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem. É uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pes- soais são imediatamente transformadas em desigualdades. jamais trans- formadas ou contestadas. É uma sociedade na qual as leis sempre foram armas para pre- servar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opres- são. revelador da natu- reza da sociedade brasileira. a lei”. e esse contraponto é. 10:17 . em relação de hierarquia. jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensí- veis para todos. da con- cessão. isto é. é uma sociedade na qual as leis sempre foram consideradas inúteis. dependendo dos códigos de hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo. por ve- zes. Como consequência. para os inimigos. permeia a cultura e as relações interpessoais). os direitos são sempre apresentados como concessão e outorga feitas pelo Esta- do. nos anos 1970. porque a figura do caudilho carismático populista esta- va ausente. imenso espelho do próprio Estado. a van- guarda “esclarecida” tomando o lugar da classe universal “atrasada”). como lembra Marx). Os partidos políticos sempre tomam a for- ma clientelística (a relação sendo a de tutela) e. Donde. vanguardista (a relação sendo a de substituição pedagógica. que o designaram. enquanto a violação pelos grandes e po- derosos sempre permanece impune. conseqüentemente. É uma sociedade. É a estrutura do campo social e do campo político que se encontra determinada pela indistinção entre o público e o privado. definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado. para usarmos a expressão de Hegel (isto é. tutela e de- pendência. sem levarem em conta que a sociedade civil também está estruturada por relações de favor. e vice-versa. Nessa sociedade não existem nem a ideia nem a prática da repre- sentação política autêntica. Donde também a esdrúxula designa- ção do autoritarismo brasileiro (e latino-americano.p65 106 29/9/2010. o equívoco daqueles que apresentaram o “novo autoritarismo” como divórcio en- tre sociedade civil e Estado. de sorte que a vontade e o arbítrio são as marcas dos governos e das instituições “públicas”. que lhes parecem dotados da impessoalidade necessá- ria para definir o espaço público. 10:17 . à burocracia. no caso das esquerdas. Donde o fascínio dos teóricos e dos agentes da “modernização” pelos modelos tecnocráticos. reduzindo-se a “funcionários do universal”. mas sempre fascinados pelo po- der – identificado ao Estado – e pela tutela estatal. como “novo autoritarismo”. Os intelectuais – na maioria oriundos das classes médias urbanas – oscilam entre a posição de ilustrados (definindo para si próprios o “direito ao uso público da razão”. sem que percebessem que o autoritarismo é social ou a forma mesma da estrutura da sociedade. embora desejassem a posição de funcionários da “Razão na História”. isto é. em geral) pelos cientistas políticos. também. à opinião pública) e de vanguarda revolucionária (definindo para si próprios o papel de edu- cadores da classe trabalhadora). na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública. DIREITOS HUMANOS E MEDO mente reprimida e punida. 106 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. Disso vemos marcas profundas na vida intelectual e artística. ao mes- mo tempo. são considerados irresponsáveis (isto é. caso não esteja carregando identificação profissional (se for negro. são assim definidos: “Um negro parado é sus- peito. Dessa for- ma. repressão. então. Os trabalhadores rurais e urbanos são considerados ignorantes. desde o romantismo.p65 107 29/9/2010. é uma sociedade na qual a luta de classes é identificada apenas com os momentos de confronto direto entre as classes por iniciativa da classe trabalhadora – situação na qual é tida como “questão de polícia” –. nas prisões. perigosos. sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas “autoridades”. mal-adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista). entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão de obra. 10:17 . exigir a carteira de trabalho e prendê-lo “para averiguação”. é culpado”. sem que se considere sua exis- tência cotidiana sob a iniciativa da classe dominante por meio dos salários. MARILENA CHAUI Consequentemente. Há casos de mulheres que recorrem à Justiça por espancamento ou estupro e são violentadas nas delegacias de polícia. correndo. representados na cultura letrada branca pela imagem do Arlequim. vítimas da desnutrição e da fome absoluta). pre- guiçosos (isto é. As desigualdades econômicas atingem a proporção do genocídio (está prevista a morte de mais de 5 milhões de pessoas no Nordeste. vigilância. das técnicas de disciplina. em uma inscrição gravada na Escola de Polícia de São Paulo. Isto para não falar- mos da tortura. devendo ser exterminados ou. raça inferior e perigosos. “civilizados” (isto é. fundadora da “raça brasileira”. E. mas sem garantias trabalhistas porque “irresponsáveis”). estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas. de homossexuais. As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvi- das pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. ignorantes. prostitutas e pequenos 107 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. Os índios. a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apresentam “sinais de traba- lho” e a prendê-lo caso não encontre os supostos “sinais”). atra- sados e perigosos. e. Os negros são considerados infantis. a imagem índia é apresentada pela cultura letrada como heróica e épica. além de carteira de trabalho. a luta de classes não é percebida quando se realiza por meio das próprias instituições dominantes. incapazes de cidadania). em fase final de extermínio. Ocupante de terra alheia. estigmatizados não só pelas classes média e dominante. as classes ditas “desfavorecidas” sendo consideradas po- tencialmente violentas e criminosas. uma praga. 2ª ed. 108 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. 91. é tida como viciosa e. 3 KOWARICK. Idem. ibidem. o padrão de moradia reflete todo um complexo processo de segregação e discriminação pre- sente numa sociedade plena de contrastes acirrados. p. uma doença. surgindo aos olhos da sociedade como um usurpador que pode ser destituído sem possibilidade de defesa. Espoliação urbana. forjador de uma imagem que condensa todos os males de uma pobreza que. Em uma palavra. E ainda: “O fato de ser favelado tem desqualificado o indivíduo da condição de habitante urbano. Assim. e carregam os estigmas da suspeita. no mais das vezes. Mas a favela recebe de todos os outros moradores da cidade um estigma extremamente forte. da culpa e da incriminação permanentes. 1993. nem nesse aspecto mínimo o favelado tem aparecido enquanto cidadão urbano. as classes que a ciência política sinto- maticamente chama de “subalternas” o são. pois contra ele paira o reino da legalidade em que se assenta o direito de expulsão”. de fato.. centrados na propriedade privada. um quisto. 92-93. também considerada perigosa: a cidade olha a favela como uma realidade patológica. São Paulo. L. Paz e Terra. “Sem sombra de dúvida. uma calamidade pública”3. mas pelos próprios dominados. por ser excessiva. Preconceito que atinge profundamente os habitantes das favelas. 10:17 . p. cuja contrapartida necessária é a anulação de suas prerrogativas enquanto morador. este processo per- passa todos os patamares da pirâmide social em que os mais ricos procuram diferenciar-se e distanciar-se dos mais pobres. DIREITOS HUMANOS E MEDO criminosos. pois retira-lhe a possibilidade de exercício de uma defesa que se processa em torno da questão da moradia. Situa- ção ainda mais aterradora quando nos lembramos de que os instru- mentos criados para repressão e tortura dos prisioneiros políticos fo- ram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de violência. o favelado passa a ser definido por sua situação de ilegalidade e sobre ele desaba o império draconiano dos direitos fundamentais da sociedade. De uma forma mais ou menos acentuada.p65 108 29/9/2010. p65 109 29/9/2010. e. quando se colocam à beira das estradas à espera de caminhões que irão levá-los ao trabalho. isto é. calçamento. População cuja jornada de tra- balho. isto é. transporte. É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implementação da agroindústria criaram não só o fenômeno da migração. as favelas. em decorrência da dupla jornada. posto de aten- dimento médico). o termo periferia usado não apenas no sentido espacial-geográfico. e termina por volta das 4 BOSI. MARILENA CHAUI Curiosamente. boias- frias. 10:17 . designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços bási- cos (luz. 1972. esgoto. escola. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis. no caso das mulheres casadas. mas que não podem realizar esse desejo por abso- luta falta de tempo. nos bolsões de pobreza. volantes. É uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um “centro” e uma “periferia”. e pela falta de recursos financeiros para comprar livros. Vozes. diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias trabalhistas. dura de 14 a 15 horas. Não é menos significativo que políticos e jornalistas empreguem a expressão “luta de classe” (“classe” no singular). Em um estudo sobre leituras feitas por operárias4. Trabalhadores cuja jornada se inicia por volta das 3 horas da manhã. indicando que a luta e o conflito. Ecléa Bosi verificou que a maioria das mulheres casa- das desejaria ler. como “anomia”. 109 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. são um feito da violência trabalhadora ou popular. causada pelo cansaço e pela rotina do serviço fabril. quando se exprimem abertamente. quando muito. que as faz adormecerem sobre livros e revistas. revistas e jornais. Fato significativo do autoritarismo social. Ecléa. que encara essas situações como naturais ou. água. encontrada no “centro”. tais situações não são designadas por seu verda- deiro nome. como luta de classes (pois se trata da domina- ção de classes conduzida pela classe dominante). aliás. na linguagem dos sociólogos. Condição. mas social. de deficiência visual. da fadiga. inclui o serviço doméstico e o cuidado com os filhos. mas figu- ras novas na paisagem dos campos: os sem-terra. incluindo o tempo gasto em transportes. razão pela qual a cultura popular tende a ser apropriada e absorvida pelos dominantes através do nacional-popular. humilhados e envergonhados. quando são depositados de volta à beira das estra- das. DIREITOS HUMANOS E MEDO 6 horas da tarde. os caminhões se encontram em péssimas condições e são constan- tes os acidentes fatais. justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta. ovo e banana. o fato de que no Brasil. Os peque- nos têm medo de que a injustiça aumente. um novo membro da família – crianças ou mulheres – é transformado em novo volante. para substituir o morto. em que morrem dezenas de trabalhadores. sem que suas famílias recebam qualquer indenização. de que os grandes não 110 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp.p65 110 29/9/2010. isto é. já frios. compreende-se que o medo assuma duas direções principais: o alto teme o baixo como perigo de perda de força. Na medida em que vivemos em uma sociedade autoritária. mas também algo peculiar. até hoje. Pelo contrá- rio. no momento da refeição. privilégio. não se conseguiu ultrapas- sar aquilo que foi a tônica do processo inicial da industrialização capitalista: a visão das classes populares como classes perigosas que não são caso de política e sim de polícia. é uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições. não só podemos compreender por que existe o que chamei de divisão social do medo. prestígio e domínio. E nem sempre o trabalhador pode trazer a boia fria. Pelo contrário. o baixo teme o alto como pura violência. arbítrio e injustiça. A luta de classes se exprime como medo. devendo fazer longo trajeto a pé até a casa. pois prepara- dos nas primeiras horas do dia. 10:17 . nem sequer através da rotinização dos “conflitos de interesses” (à ma- neira das democracias liberais). Os grandes têm medo de perder o privilégio da violência e por isso afirmam que o povo é violento e perigoso – as classes populares são vistas como agentes do medo. Por fim. Bóias-frias porque sua única refeição – entre as três da manhã e as sete da noite – consta de uma ração de arroz. é uma sociedade em que a classe dominante exorciza o horror às contradições pro- duzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais. e os que não trazem se escondem dos demais. Frequentemente. Nesse contexto. p65 111 29/9/2010. Dissemos também que essa contradição é essencial para a história dos direitos humanos e civis porque. tanto assim que cada um dos direitos declarados tem como referência a existência de um poder público generalizador. perde legitimidade e se mostra como puro exercício da força e da violência. per- cebe-se que a carta dos direitos pressupõe a existência de repúbli- cas democráticas (mesmo que seja a democracia formal proposta pelo liberalismo). são cidadãos. pois se referem aos homens universal- mente. Ora. se não o faz. e os direitos. com clareza ou confusamente. e percebem. consequentemente. precisam ser reco- nhecidos e respeitados. Essa contradição é a chave da democracia moderna. 10:17 . que os grandes são os agentes do medo. A luta popular pelos direitos e pela criação de novos direitos tem sido a história da democracia moderna. não pode deixar de atender aos direitos de toda a sociedade. a contradi- ção entre o poder do Estado. o res- peito e a manutenção dos direitos humanos. de fato. se é verdade que o Estado está preso aos interesses de uma classe. jamais foi nem pode ser democrática. se as democracias fizeram um caminho histórico. pois. contraditoriamente. V Havíamos dito que uma contradição perpassa a ideia de direitos do homem e do cidadão nas sociedades modernas. torna inexistente a figura do poder e da lei exigidos como pressupostos da Declaração dos Direitos Humanos. no Brasil. também é verdade que. que é. não tem condições de garanti-los em sua universalidade. liberal ou conserva- dora. com seus direitos ali declarados. ocorre uma espécie de impossibilidade estrutural para o estabelecimento. poderio particular de uma classe social. o autoritarismo bra- sileiro torna impossível a existência de cidadãos. na verdade. uma vez declarados. É evidente que a classe dominante moderna. isto se deve justamente às lutas po- pulares pelos direitos que. e também pressupõe que os homens. Quando se lê a Declaração dos Direitos Humanos de 1948. e. que opera segundo a lei. MARILENA CHAUI tenham freios no exercício da violência. 111 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. qual seja. devendo ser garantidos como tais por um poder que. da voz e do voto. ao contrário. O primeiro. afinal. O segundo é que. a cidadania está referida ao direito de representação política. lazer etc. saúde. 10:17 . 2) como exigência do estabelecimento de garantias individuais. é a ambiguidade da (in)definição da propriedade pri- vada como direito. seja como efeito.) que podem tra- zer como consequência a luta pela igualdade efetiva e. como direito a ser re- presentado e como direito a ser representante. nos últimos anos. Observamos também que cada direito declarado abre o campo para a declaração de outros. portanto. revela o conjunto de obstáculos à trans- formação. E isso tem ocorrido no Brasil. dois aspectos que nos interessam aqui. Isso significa que uma declaração de direitos civis abre o campo para a busca e conquista de direitos sociais (condições de vida e trabalho. em três níveis simultâneos e diferentes: 1) como exigência do estabelecimento de uma ordem legal de tipo democrático. As lutas pela conquista da cidadania têm se efetuado. seja como complemento. cultura. políticas e culturais cujas linhas gerais defi- 112 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. como dissemos. entre outros. sociais. seu pressuposto é a existência de poderes públicos que pos- sam garanti-los. pode chegar à luta contra a propriedade privada dos meios sociais de produção. educação. se trata de uma declaração de direitos civis. DIREITOS HUMANOS E MEDO Observamos que a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 pos- sui. co- meçando pelo direito à redistribuição da renda. Seria injusto e parcial desconsiderarmos os esforços feitos por uma parte da sociedade brasileira para superar o autoritarismo so- cial. de sorte que o pressuposto da garantia política ou esta- tal dos direitos humanos os transforma em direitos civis. seja como recurso de legitimação. pois. O insucesso de muitas lutas sociais e políticas não invalida esses esforços. na qual os cidadãos participam da vida política por meio de partidos políticos. Dissemos também que a classe dominante não foi. não é nem será democrática e que por isso mesmo a ampliação do campo dos direi- tos decorre das lutas populares por cidadania. econômicas.p65 112 29/9/2010. Nesse nível. embora se refira a direitos universais da pessoa humana. implicando uma diminuição do raio de ação do Poder Executivo em beneficio do Poder Legislativo ou dos parlamentos. participação. MARILENA CHAUI nem o Estado de Direito. representação. a cidadania surge como presença sociopolítica dos trabalhadores – ou da dignidade dos trabalhadores. mas sobretudo que seja sa- tisfeita a exigência da classe trabalhadora de defender seus inte- resses e direitos tanto por meio dos movimentos sociais. sinalizando a possibilidade de vencermos o autoritarismo social com a instituição de uma sociedade democrática. a ênfase recai sobretudo na defesa da independência e da liberdade do Poder Judiciário. de tal modo que não só se desfaça a excessiva concentração da riqueza e seja modificada a política social do Estado. no qual vigoram pactos a ser conserva- dos e respeitados e o direito à oposição. Neste nível. sindicais e de opinião pública como pela participação direta nas decisões concernentes às condições de vida e de trabalho. Assim. 10:17 . dignidade e justiça têm sido a tônica das reivindicações democráticas que ampliaram a questão da cidadania. até agora excluídos de todas as práticas decisórias – e como questão de justiça social e econômica. estando a cidadania referida aos direitos e às liberdades civis. 113 3 Direitos Humanos e Medo 87 a 113 2 reimp. fazendo-a passar do plano político institucional (direitos civis) ao da sociedade como um todo (direitos sociais). 3) como exigência do estabelecimento de um modelo econômico que efetue a redistribuição mais justa da renda nacional. Nesse nível. liberdade.p65 113 29/9/2010. são referidas a fatos. – “guerra civil tácita” é empregada para a referência aos emba- tes entre garimpeiros e índios. o sentido com que são empregadas: – “chacina” e “massacre” são palavras empregadas para a referên- cia ao assassinato em massa de crianças. policiais e narcotraficantes. debili- dade das instituições políticas. massacre. às ocu- pações de terras pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais 115 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. como o da indistinção entre crime e polícia. Imagens e ideias elaboradas a partir da “banalização do mal”. como as de crise ética. essas expressões articulam-se para formar um núcleo definido pela presença visível e inapelável da violência. ou a ideias. A imagem do mal banalizado é construída a partir de outras imagens expressas em palavras como chacina.p65 115 29/9/2010. fraqueza da sociedade civil. para usarmos a ex- pressão cunhada por Hanna Arendt. brevemente. 10:17 . DEMOCRACIA E AUTORITARISMO O mito da não-violência I A dimensão pública assumida pela violência no Brasil. Estas imagens. Examinemos. tem levado à “banalização do mal”. por sua vez. favelados e encarcerados. guerra civil tácita. nos últi- mos anos. – “debilidade das instituições políticas” é empregada para a referência à ausência de partidos políticos fortes. a homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala nas grandes cidades. guerra civil tácita e indistinção entre crime e polícia – a violência é o que se exprime através dessas imagens. com perfil ideológico definido. críticas e fiscalização dos poderes da repúbli- ca. bem como à corrupção nos três poderes da república. – “crise ética” é empregada para a referência à corrupção políti- ca e aos laços secretos de empresários e banqueiros com os três poderes da república para a obtenção de recursos públicos para fins privados. localiza-se nelas. – “fraqueza da sociedade civil” é empregada para a referência à ausência de entidades e organizações sociais que articulem deman- das. essas expressões. Como dissemos. tendo como nú- cleo articulador a noção de violência. que passam a ocupar as ruas no comércio informal ou como mendigos e sem-teto. às falhas do sistema partidário e de repre- sentação parlamentar. já definida e localiza- da noutro lugar. particu- larmente jogo do bicho. aos acidentes de trânsito e ao assalto coletivo a mercados e supermercados por levas de famintos. contrapondo-se à “crise ética” e às desigualdades econômico- sociais que fomentam a “guerra civil tácita”. a questão ética. reivindicações. 10:17 . a violência é posta como sinônimo de chacina. esta não se encon- tra articulada àquelas imagens e expressões da mesma maneira. reúnem-se. de proveniência diversa e algumas há muito empregadas. massacre. – “indistinção entre crime e polícia” é empregada para a referên- cia à participação das forças policiais no crime organizado. ou seja. De fato. permanentes.p65 116 29/9/2010. Todavia. à falta de cultura política democrática e à ausência de cidada- nia política concreta. Crise ética. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO Sem Terra). ao arcaísmo e à lentidão do Poder Judiciá- rio. hoje. fraqueza da sociedade civil e debilidade das institui- ções políticas relacionam-se com a violência de outra maneira: indicam impotência no combate à violência. ao aumento do contingente de desem- pregados. narcotráfico. tráfico de armas e sequestros. a social e a política não 116 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. furor. g) forçar. b) infringir. alterar. inverter o sentido. particularmente a força exercida contra alguém (donde vio- 117 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. MARILENA CHAUI são percebidas como formas de violência. f) agir contra. impor uma atitude contrária à que se teria espontaneamente.p65 117 29/9/2010. Violentar: a) constranger pela força. e) contrário ao direito e à justiça. empregando a força ou a intimidação. obteremos as seguintes informações: Violência: a) qualidade de violento. c) deflorar. c) ato de violentar. d) que faz uso da força bruta. torcer o sentido. d) torturar. A distinção entre os dois grupos de imagens e expressões. f) violar. poluir. intenso. d) profanar. Violento: a) que age com ímpeto. atingir. b) brutalizar. uso da força. 10:17 . impetuoso. evitamos discutir em profundidade o fenômeno da violência. e) devassar. não é senão a nova maneira de repetir o modo como. e) agir sobre alguém ou fazer alguém agir con- tra sua vontade. estuprar. revelar segredos. brutalizar. ardor. II Se consultarmos um dicionário. coação. divulgar abusivamente. c) desnaturar. g) impor ideias contra a vontade de alguém. d) juridicamente: constrangimento físico ou moral. f) cons- tranger alguém brutalizando-o ou oprimindo-o. vivacidade intensa. b) que se exerce com força ou pela força. b) ato violento. h) desnaturar. um deles como portador da violência e o outro como impotente diante dela. Os verbos (violentar e violar). cólera. violar. o adjetivo (violento) e o substantivo (violência) derivam todos da mesma palavra latina vis. j) seviciar. tumultuoso. brutalidade. Violar: a) ofender com violência. transgredir. mas como instrumen- tos débeis para combatê-la. c) agitado. que significa força. no Bra- sil. Consultando os verbetes no dicionário. normas e leis que constituem o modo de ser de uma sociedade. assim. a violência é contrária ao direito e à justiça. torturar. o dicionário não nos impede de considerar a justiça e o direito como regras. Por sua origem na palavra latina vis. da vontade e das ideias de al- guém.p65 118 29/9/2010. De acordo com o dicionário. e a violência agiria contra a natureza deles. força. isto é. a vontade e a liberdade de alguém (estuprar. tornando-se para eles como que uma segunda natureza por meio dos costumes pelos quais interiorizam regras e normas. da justiça. vis designa as partes sexuais do ho- mem. o dicionário a faz surgir como uma forma de compor- tamento e de sentimento. por extensão. por- tanto. ao uso das armas como forma de relação entre os humanos. às forças policiais. abusiva. como paixão incontrolável: cólera. sevícia e abuso físico ou psíquico e moral. no plural. Todavia. 118 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. que as instituiu para regular a vida de seus mem- bros. constranger. percebemos um conjunto de significados relacionados entre si. profanar). as tropas. coagir) ou para manchar o que é sagrado (poluir. 10:17 . ainda pela origem latina. a violência possui um significado sexual afirmativo para os homens. da espontaneidade e da liberdade de alguém ou de alguma coisa) e como violação (do que é natural ou social). deflorar. devassadora. a violência nos remete às forças militares e. como forma de relação caracterizada pela opressão e pela intimidação. por extensão. A violência também aparece no dicionário como brutalidade. É apresentada como destrutiva. integram a natureza de alguns seres. provocando medo. pressupondo. Eis por que o dicionário faz a violência aparecer como transgressão (do direito. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO lência e violação). contrária à liberdade. formando um campo de sentido: vio- lência é tudo que age usando a força para ir contra a natureza própria de alguma coisa ou de alguém (é desnaturar). isto é. Finalmente. deturpar. que estes são naturais. violência é agir contra essa segunda natureza ou contra a vida social. e. é um ato que usa a força para ir contra a espontaneidade. deflorar). brutalizar. isto é. à lealdade (devassar segredos) e à justiça. devassar. mas assume sentido negativo quando essa força sexual se volta contra as mulheres (es- tuprar. as forças militares e. transgressão e paixão. vazio e plenitude). de um crime (quando desfigura alguém. dizer que a violência é a perda ou a falta de medida e de limites significa dizer que julgamos possuir uma medida para decidir se um ato. o necessário e o contingente. agitação. estamos saindo da esfera da natureza enquanto algo dado ou enquanto fato bruto para nos situarmos no interior da esfe- ra da cultura. céus e mares pela técnica. Sob este aspecto. portanto. devasta a natureza. o legíti- mo e o ilegítimo. tumulto. quando trai a confiança em uma relação. da deslealdade. Podemos falar na violência de uma dor (quando insuportável). fogem de toda medida. a destruição do meio ambiente pela exploração predató- ria). podemos falar na violência da própria natureza (o terremoto. quando destrói o outro fisicamente ou psiquicamente ou moralmente). Médon está na origem do verbo latino moderare: ou seja. isto é. a 119 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. da desonra. Com efeito. MARILENA CHAUI furor. palavra grega que significa imposição de critérios e de limite a coisas ou situações que. o possível e o impossí- vel. o belo e o feio. opressão. uma imagem. de uma paixão (quando mescla de vida e morte. perda ou abandono dos limites ou das fronteiras. o corpo. como ação de alguém fora de si ou de alguma coisa fora de controle e. o bem e o mal. 10:17 . perigosa. Julgamos possuir um métron que permite medir a diferença entre o violento e o não-violento. Como desnaturação. Violência e violação estão liga- das ao sentimento moral do ultraje. uma relação são ou não violentos. assim. do poder (quando age pela força das armas ou pela força persuasiva da mentira). a noção de medida está referida à noção de médon. A violência aparece. entendida como o modo de uma sociedade interpretar a realidade por meio de símbolos e valores pelos quais passa a medir e a diferenciar o justo e o injusto. isto é. o essencial e o acidental. uma prática.p65 119 29/9/2010. uma ideia. o verdadeiro e o falso. o prazer e a dor. um sentimento. ímpeto. o legal e o ilegal. Ora. a tempestade) ou contra ela (a devastação de rios. por não ter medida nem limites. o furacão. o espírito e a sociedade. da medida ou da avaliação. como aquilo que. a violência é a ausência de medida ou a desmedida. em si mesmas. na cultura ocidental. o vício e a virtude. violação. Quan- do nos colocamos na perspectiva do métron. das mulheres e dos mais fracos. simultaneamente.p65 120 29/9/2010. ou à mudança de posição de um corpo ou de parte dele (fazer um movimento com a cabeça. Esta pode ser qualitativa (uma coisa branca que fica 120 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. a coação ou a repressão. movimento significa mudança. Há pluralidade de medidas e critérios para avaliar a pró- pria identificação da violência com a força. a história dos numerosos sentidos que a palavra violência teve e tem na cultura ocidental. 10:17 . a violência torna-se inseparável da noção de margem e todo o problema consiste em saber onde está e qual é a margem que separa violência e não-violência. pressupõe a medida. dos costumes. pois diferentes culturas definem de diferentes maneiras a margem que separa o natural e o desnaturado. desde a Antiguidade. evi- dentemente. identifi- cando-a com a coerção. o justo e o injusto. Na verdade. no mundo. a fronteira e o limite) e como ques- tão social e cultural. psíquica ou moral. dois grandes tipos de movimentos1: o movimento natural 1 O conceito de movimento na linguagem e no pensamento gregos é mais amplo do que o nosso. sem comentários. Esses múltiplos sentidos poderiam ser resumidos na ideia de que a violência é um ato brutal e antinatural de transgressão e violação da natureza. Percebida como des- medida. usamos movimento para nos referirmos à locomoção ou à mudança de lugar. o dicionário resume. Porém. com a mão etc. III A ideia de que a violência é uma ação antinatural ou contrária à natureza de algum ser vem de Aristóteles. quando distinguiu. da justiça. jurídica e política. a violência é. do sagrado. ao ser tomada pelo prisma da desmedida (a qual. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO medida imposta não é a mensuração física de alguma coisa e sim a moderação ética. dizemos que há violência. Quando a relação entre dois ou mais seres se realiza através da força física. Em geral. inserida na esfera cultural do médon (a medida) e do moderare (a moderação) como ações deli- beradas para impor limite e freio ao que parece sem limite e sem freio. religiosa. o legal e o ilegal. do direito. é apenas o início das dificuldades. no entanto. Na língua e no pensamento gregos.). Isto. das leis. o legítimo e o ilegítimo. Na violência física. o nascimento. Por mo- vimento. por acidente e por artifício técnico. sendo forçado em uma direção que contraria a finalidade de sua natureza. A violência é “a irrupção de uma força estranha em um processo”. que o submete. Na linguagem filosófica. Por exemplo. amarelada. Eticamente. Por isso. portanto. aquilo que o faz ser o que ele é e que nele permanece quando passa por transformações. moveu-se). uma flor não se transforma em fruto quando arrancada da árvore por alguém. contrário à vontade racional que constitui a natureza própria do agente. MARILENA CHAUI (aquele que um ser efetua espontaneamente para realizar as finali- dades essenciais de sua natureza) e o movimento violento (aquele que é imposto do exterior a um ser para forçá-lo a realizar fins diferentes ou contrários à sua natureza). É também “obstáculo ou impedimento contrário ao impulso e à escolha”. sob o poder de uma força externa. transformar-se. um ser encontra um obstáculo ao seu movi- mento natural ou às suas transformações naturais. Refere-se ainda ao nascimento ou geração de um ser e à sua morte. É nesse sentido amplo de mudança em e de um ser que Aristóteles distingue movimento natural e movimento violento. a vida e o perecimento. se torna paciente ou passivo. entende toda e qualquer transformação ou mudança que um ser sofre ou realiza: mudanças qualitativas e quantitativas. tornando-o pas- sivo. Aristóteles distingue o que é por natureza. quantitativa (um coisa que aumentou de volume ou perdeu tamanho. sem que ele tenha nisto qualquer participação”. Por esse motivo. Na violência moral. Aristóteles. o qual. A natureza é a essência de um ser. o agente é arrastado a uma ação que não escolheu e de cuja causa não participa – quem o arrasta é um poder exterior ou uma força externa.p65 121 29/9/2010. entendendo “por natureza” o princípio interno que existe nos seres. devir e. 121 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. uma paixão é um movimento violento. mudanças de lugar ou locomoção. a distinção entre movimentos naturais e violentos significa a diferença entre mudanças conforme à natureza de um ser ou con- trárias a ela. moveu-se). 10:17 . mudar. movimento significa vir a ser. E na obra Ética a Nicômaco o filósofo apre- senta a definição moral da violência: “deve-se à violência aquilo cujo princípio é exterior àquele que é o objeto da ação. como os demais pensadores da Antiguidade. Da mesma maneira. De modo geral. com o socialismo. seu campo é a ética e a política. mas uma técnica não- violenta. em política. desejam. a vida virtuosa. porta ou carroça. imaginam. por si mesma. pois o agente téc- nico simplesmente extrai da coisa natural uma potencialidade nela contida e que. a técnica pode ser natural ou vio- lenta. escravo. Primeiramente com o cristianismo. são seres racionais. falam. 10:17 . por natureza (cristão e liberais) ou por ação historicamente determinada (socialistas). fomos habituados a considerar os seres humanos como aqueles que. mas o tirano governa para seu próprio bem. a violência se refere às relações entre os humanos. cadeira. ela não atualizaria. Na moral. essa violência é limitada. temeridade. O vício é violento porque desnatura um agente livre e o impede de realizar a finalidade de sua natureza. Assim. de linguagem e de vontade própria. preveem. agem. livres. depois com o liberalismo e. a tirania é violenta porque a finalidade natural da vida política é o bem comum e a justiça. os objetos técnicos são resultado da violência que os humanos fazem à natureza. pensam. lembram. o próximo e 122 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. mudo e passivo. é por desnaturação dos fins da árvore. cometendo injustiças contra os governados. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO Na perspectiva aristotélica. No entanto. o vício é a perda da medida por excesso ou por falta. por fim. a violência é o ato desmedido que trata um humano como irracional. rela- cionam-se com o espaço (diferenciam o alto e o baixo. pois arrancam as coisas naturais de seus fins próprios para dar-lhes usos e fins que não estavam presentes em suas naturezas próprias – a árvore dá flores e fru- tos naturalmente. A medicina grega não é uma ciência. instrumento. mas a coragem é virtude. o médico pode usar recursos violentos para fazer a natureza do paciente reagir contra a violência da própria doença para recuperar-se. que ela se transforma em mesa. No entanto. em senti- do próprio. vício por excesso. enquanto a virtude é a medida ou a moderação: covardia é vício por falta. Nessa perspectiva. A humanidade dos humanos se manifesta no fato de que sentem. pois o trabalho do médico é ajudar a natureza do pacien- te a fazer a cura e reencontrar a saúde. dotados de corpo e consciência.p65 122 29/9/2010. portanto por violência. mas não age com. narrativa cuja origem não 123 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. Diante dela. sujeitos morais e sujeitos políticos que. são sujeitos históricos. psíquico.) e com o tempo (diferenciam presente. podemos dizer que. Se assim é. na cultura ocidental. Porque são conscientes de si. individual. usando a força. silencioso. passado e futuro). MARILENA CHAUI o distante. desprovido de consciência e de vontade. viola a subjetividade (pessoal. Quer seja a pessoa (para o cristianismo). isso não altera a afirmação do conjunto de determinações que os constituem como sujeitos ou subjetividade. não será fantástico que se diga (e se acredite) que o Brasil é um país de não-violência? Ao referir-me à crença na não-violência brasileira estarei falan- do menos em ideologia e mais em mitologia. a cultura ocidental afirma que os seres humanos são su- jeitos. social). segundo suas memó- rias do passado e suas esperanças do porvir. A violência é a brutalidade que transgride o humano dos humanos e que. resis- tente ou maleável às nossas ideias e às nossas ações. o mito é uma narrativa sobre a origem do mundo e dos homens. despojado de uma relação ativa com o espaço (está no espaço. diferente dela e mesmo oposta a ela encontra-se a coisa ou o objeto inerte. passivo. se o cristianismo e o liberalismo tiverem razão. reage às forças espaciais). o indivíduo (para o libera- lismo) ou a classe (para o socialismo). dos ou- tros e do mundo e porque são agentes dotados de liberdade e de vontade. com o tempo (sofre a ação do tempo.p65 123 29/9/2010. se o socialismo estiver no verdadeiro. quais sejam: 1) como indica a palavra grega mythós. moral ou político pelo qual um sujeito é tratado como coisa ou objeto. pelo ou contra o tempo). IV Se o dicionário estiver correto. o centro e a periferia etc. 10:17 . se tivermos olhos para ver e ouvidos para ouvir. e estarei tomando o mito como uma lógica sociopolítica dotada das características que a antropologia e a psicanálise lhe atribuem. por pensar e agir em relação ao tempo. Sujeitos do conhecimento. reduzindo-a à condição de coisa. a violência consiste no ato físico. por exemplo). são transferidas para uma solução simbólica ou para uma solução imaginária. encontra meios para dizer o que está proi- bido de dizer e por isso exige interpretação. ou que fabrica um objeto novo com pedaços e restos de objetos díspares. 5) resulta de uma ação social – a necessidade social de explicar a gênese e a forma da sociedade – e produz. a estória vai incorporando. quebrados. dan- do-lhe sentido por meio da narrativa da origem da sociedade. por isso. reunindo e colando elemen- tos de diferentes proveniências cujo arranjo. Segundo Lévi-Strauss. Apesar da disparidade dos acréscimos. com o passar do tempo e a cada vez que é narrada. e assim por diante. de não-contradição (uma coisa não pode ser ao mesmo tempo e na mesma relação idêntica a si mesma e contrária a si mesma). do terceiro excluído (uma coisa ou é verdadeira ou é falsa e não há terceira possibilidade). o mito opera como bricolage2. É um enigma que pede deciframento. em todas as culturas. tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma transformação radical da sociedade e que. O mito nega a realidade. aparece como um todo dotado de sentido. 2) opera com antinomias. sem que esta possa ser identificada em um primeiro e único mito. O mito exibe ao ocultar e oculta ao exibir.p65 124 29/9/2010. que tornam suportável a realidade tensa e con- traditória. ao mesmo tempo que a explica e justifica imaginariamente. e cuja existência consiste em desdo- brar-se em numerosas narrativas que reiteram a mesma matriz. outras 2 Bricolage é uma palavra francesa que significa a atividade de um artesão amador que conserta um objeto usando pedaços de outros que nada têm em comum com ele (conserta uma mesa usando uma tampa de fogão. 124 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. 4) cristaliza-se como uma espécie de inconsciente coletivo que. sem uso. 10:17 . como todo inconsciente. novos episódios ou situação também sem relação aparente com a estória inicial. 3) refere-se simbólica e imaginariamente à estrutura social. estes se organizam em conformidade com a matriz que estrutura a narrativa e por isso o todo obtido a cada vez é dotado de sentido ou faz sentido. Essa palavra foi empregada pelo antropólogo Lévi-Strauss para caracterizar um pensamento que não opera em obediência aos três princípios lógicos definidos pela razão ocidental – princípio de identidade (uma coisa é necessariamente idêntica a si mesma). por repetir a matriz estruturante da narrativa. aparentemente sem relação com as primeiras. o bricolage cultural é a maneira pela qual. os mitos são construídos: a narrativa cria personagens compostas de partes de corpo humano e de vários animais. Na verdade. novas personagens. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO pode ser encontrada ou fixada. como resultado. velhos. Definida como acidente excepcional. um “surto”. va- lores. isto é. agora. que para isso põe em ação quatro procedimentos ideológicos. O mito pro- duz a imagem de um “nós” contra um “eles” que coloca estes últi- mos fora da nação. A violência é passageira. podemos dizer que a mitologia da não-violência brasileira é elaborada por intermédio de dois procedimentos principais: 1) um procedimento de exclusão: afirma-se que a nação brasi- leira é não-violenta e que os brasileiros não são violentos. portanto. a violência. isto é. à maneira do bricolage. uma “epidemia”. Assim. precisa ser explicada pela mitologia da não-violência. A violência é algo que pode acontecer sem afetar a essencial não-violência brasileira. uma “onda”. se há violência. é função do mito admitir que a violência existe (é um fato inegável). a nação é não-violenta e. mo- mentânea e pode ser afastada. 6) tem função apaziguadora e repetidora. comportamentos. MARILENA CHAUI ações sociais que o confirmam. a violência é algo acidental. A nação fica preservada em sua integri- dade (“nós” não somos “eles”) e em sua estrutura e sua organiza- ção (a violência é um acidente na superfície social). é praticada por gente que não faz parte da nação brasileira (mesmo que aqui viva e aqui tenha nascido). mas assegurando que não possui um laço essencial com a sociedade brasileira porque é praticada por “eles” em momentos passageiros de “surtos”.p65 125 29/9/2010. em suas margens. ideias. 2) um procedimento de distinção entre o essencial e o aciden- tal: por essência (ou por natureza). por- tanto. práticas que reiteram e repetem o arcabouço mítico ou a matriz que estrutura as narrativas. o crime contra a propriedade: o 125 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. recolhe da ideologia procedimentos para a consolidação do mito: 1) procedimento jurídico: a violência é localizada no crime e cir- cunscrita a apenas um tipo de crime. assegurando à socieda- de sua autoconservação sob as transformações históricas. 10:17 . De um modo geral. 10:17 . passou-se a considerar crime a tortura e o espancamento. ficando circunscrita às ações referidas pelo Código Penal. Por quê? Porque admitir que tortu- ra. de sorte que “eles” tenderão a ser os “pobres” e. a-nómos. os bandidos de colarinho branco. a violência é referida à violação de duas propriedades: a das coisas e a da vida. identificados como “defensores dos bandidos contra as vítimas”. Isto é. além de ficar reduzida à violação da propriedade privada. em casos excepcionais. “Eles” fazem parte de uma alteridade que ultrapassa a dimensão do crime para entrar na região assustadora da teratologia e da patologia. para a maioria da população bra- sileira. a violência continua a ser apenas o ato do bandido e do delin- quente que roubam e/ou matam. bandi- dos e violentos”. 2) procedimento sociológico: a violência é explicada por meio do conceito de anomia (palavra vinda do grego. de exceções). os “formadores de opinião populares” que. brasileiros”. O reforço do procedimento jurídico é trazido pelos agentes da camada mais conservadora da sociedade. e “eles”. juridicamente. que reduz os agentes violentos à condição assustadora de monstros (portanto. Somente com a nova Constituição (1988). A mídia repõe o mito. realizam duas operações principais: 1) a afirmação da separação “nós” e “eles” no seio da classe trabalhadora (dos “po- bres”) pela distinção entre “nós. graças à ação dos movimentos sociais. Ao contrário. racismo e discriminação sexual são violência seria admitir que as “forças da ordem” são violentas e que há violência nas relações sociais brasileiras. o homicídio e o latrocínio. do rádio e da televisão. por meio da imprensa. se permanecer miticamente localizada no bandido. A violência fica. 2) o ódio aos defensores dos direitos civis e sociais. a discrimi- nação racial e sexual. que sig- 126 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. No entanto. atribuído à presença inesperada de monstros no interior de uma sociedade essencialmente não-violenta. a violência conservará a separação entre “nós.p65 126 29/9/2010. enfatizando o perigo da desagregação da ordem pelo crime. circunscrita às formas de con- travenção vinculadas à propriedade privada e à circulação do di- nheiro e de mercadorias (o tráfico) e explicada pela patologia fo- rense. honestos e pacíficos” e “eles. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO roubo e o furto. deixam de ser um eficaz cimento afetivo-moral e legal das relações sociais. políticos etc. os conflitos sociais e políticos. marginalização econômica e social. com a perda de antigos e tra- dicionais laços da vida comunitária e a incapacidade para se adap- tar às leis da vida social moderna. em várias grandes cidades. 10:17 . integração que é efeito das normas (que governam os costumes) e das leis (que arbitram os valores morais. hoje. circunscrito. além de provocar desemprego pela desindustrialização. desespero. que perturbam a ordem so- cial moderna. temos a produ- ção de um “eles” determinado. e no curto prazo. usado pela sociologia de Durkheim. trazendo para as cidades pessoas que não possuem normas e regras da vida industri- al e urbana. Além disso. déficit fiscal etc. A ideologia sociológica introduz a distinção ente o “arcaico” e o “moderno”.). migrantes e trabalha- dores fabris tornam-se pessoas violentas. e no longo prazo. a urbanização e. imigrantes. a inflação e a recessão geram misé- ria. Por seu turno. à esfera dos 127 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. incompetentes. ignorantes. recessão. MARILENA CHAUI nifica ausência da norma. torna desadaptados os anti- gos trabalhadores industriais. da lei). tecnologicamente avançado. A mitologia apropria-se dessa distinção e distingue violentos e não- violentos em termos de arcaísmo e modernidade: violentos são os atrasados. A anomia é o momento. informatizada e automatizada. o surgimento do setor de serviços. fazendo reinar a violência. desemprego. isto é. em que as normas e as leis perdem o poder integrador. Que situação nova existe no país? De um lado. Os especialistas tomam a sociedade como conjunto de ações integradoras de seus membros. acidental. A mitologia da não-violência brasileira apoia-se no conceito sociológi- co da anomia para afirmar que o “surto” de violência atual decorre de um descompasso entre as instituições existentes e uma situação histórica nova. Assim. da eco- nomia de serviços. a industrialização. Novamente. geradas por inflação ou deflação. A industrialização e a urbanização ge- ram o fenômeno da imigração e da migração. localizando a anomia na passagem de um a outro. racional e não-violenta. crises econômicas.p65 127 29/9/2010. da regra. impossibilitadas de respeitar e interiorizar as leis dessa nova realidade. de outro. a implementação. agora. nessa história. para que o vencedor fale em seu lugar. não pertencem ao novo território no qual se situaram indevidamente. anteriormente. dono do poder. indivisa e progressiva ou moderna. não há o relato dos vencidos. A obra do “progresso” será realizada pela “or- dem”. isto é. em último caso. 3) o procedimento histórico ou a produção ativa da amnésia social: o relato oficial da história do Brasil. eram o monstro. fantasma do perigo. que ronda a boa modernidade pacífica e ordeira. Estas. o sem-lei. o imundo. Eis por que. outra. uma história na qual os acontecimentos são recortados e interpretados a partir da perspectiva do vencedor. por ser criminosos. tal como é elaborado pelos historiadores e reproduzido nas escolas (do primeiro grau à universidade). serão punidos e edu- cados pelas “forças da ordem”. mais perversa: a de que “eles” estão fora do lugar. Sobre estes. desordem. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO “estrangeiros” – imigrantes e migrantes – e dos “obsoletos” – os trabalhadores fabris. a violência fica circunscrita no tempo (na “passagem do tradicional para o moderno”). agora são o detrito e o abismo irracional. À imagem do atraso ignorante vem sobrepor- se. podem exterminá-los para o bem dos demais. Ainda uma vez. a desorganização. abate-se uma tríplice violência: a de seu silêncio. obstáculo à imagem da sociedade una. “Eles” são sujeira. tacitamente. formando um misto de invasão e detrito. que emerge do fundo imemorial do atraso e da ignorância. nos coloca perante aquilo que Walter Benjamin de- signou como a “história dos vencedores”. percebida como uma “transição” que acabará um dia. Os violentos estão localizados e determinados como “inimigos sociais desorganizados” que. um entulho humano que se aglomera pelas ruas e favelas. O “progresso” se encarregará de integrar os “bons” e eliminar os “maus”. os meios de comunicação vêm reforçar a ideologia e consolidar a mitologia: “eles” são o vício. 128 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. Se. sem afetar a integridade nacional não-violenta. A mitologia sociológica criminaliza e culpabiliza “eles” (os que vieram de fora ou têm que ficar de fora) e localiza o “eles” nas classes populares. ameaçando a segu- rança dos legítimos proprietários do espaço invadido. o feio. 10:17 .p65 128 29/9/2010. Praieira. A redução da contraviolência dos vencidos à condição de desor- dem e de perigo para a paz social. então. 1932. pois nela a contraviolência dos vencidos é transformada em momento acidental. 10:17 . 1930. Farrapos. que precisa ser elimina- do fisicamente (por prisão. enfim. não só a continuidade histórica é obtida pela eliminação dos vencidos. a de sua figura reduzida à do revoltoso violento. quando massacrados. 1924. Balaiada. reduzi- das a atos de fanatismo e banditismo ou como importação de ideo- 129 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. mas ainda é apresentada como vitória da justiça contra a injustiça. 1935. Assim. tortura e morte) e historicamente (pelo silêncio). Canudos. por que nessa história os índios aparecem através do relato do colonizador (e. cujo ponto de vista coincide com o do vencedor. amplia a narrativa mítica oferecendo-lhe balizas empíricas que confirmam a imagem da nação una e indivisa no tempo. 1964 ou 1968. justificada) e os negros são sistematicamente descritos e compreendidos a partir do olhar e das mãos do senhor de escravos (senhores que o benfazejo clima tropical converteu em assassinos). sua ordem e sua paz identificadas com a vitória do vencedor. bem como sua redução a um acidente na marcha linear da história do Brasil são o melhor dispo- sitivo ideológico para a consolidação do mito da não-violência de uma sociedade intrinsecamente justa e pacífica. explicitando este mesmo tempo como repetição e avanço da origem. o vencido se torna coisa manipulada pelo saber do historiador. supostamente factual e verídica. silenciado. cuja periodização lhe permite oferecer-se como consolidação da ordem contra as práticas sociais e políticas. são tomados simultaneamente como manifestações de violência social (sem que se pergunte qual é nem de onde vem) e como marcos de uma his- tória oficial única. e compreendemos. ipso facto. Sabinada. por- que suprime a desordem. Muckers. e. Palmares. 1946. enfileirados em uma sequên- cia homogênea que lhes rouba todo sentido histórico. MARILENA CHAUI pois.p65 129 29/9/2010. que se apresenta como contínua e progressiva. A narrativa histórica. a violência da própria história do vencedor. Um só e mesmo olhar traça a perspectiva temporal. são exibidos como selvageria ignorante e assassina cuja destruição sumária fica. Contestado. que. a ação dos vencidos é apre- sentada não como luta contra a violência (isto é.p65 130 29/9/2010. os sujeitos históricos são forçados à amnésia. segundo FHC e seus asseclas. cães e guardas. seu trabalho político de desvendamento das formas invisíveis da luta de classes no Brasil. Espoliados do direito à memória e perfilados como ameaça contínua à unidade nacional. Por quê? Porque. os movimentos de emancipa- ção e liberação só participam do “panteão da pátria” depois de integrados em um movimento unitário e contínuo e depois de “paci- ficados” pela ação do Estado. estar em um pólo ou em outro. cir- cunstancial ou acidentalmente. 130 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. sua formação. os conselhos populares). as guerras civis. 10:17 . 4) o procedimento da máscara: como o mito da não-violência é construído pela separação entre “nós” e “eles”. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO logias estrangeiras. o medo dos operários de serem mortos na rua parece ter o mesmo sentido do ato que leva o executivo da multinacional a cercar sua casa com muros. Em outras palavras. cada um pode. praticaram uma “corrupção jamais vista no Brasil”. mas como violência a ser eliminada para que se construa a imagem da não-violência. A luta de classes. contra a redução de sujeitos a coisas). enquanto ativamente vai sendo produzida a imagem do agente violento. Tudo isso está sendo ativamente lançado ao esquecimento. o mito trata homogeneamente todas as manifestações visíveis da violência: o quebra-quebra de trens e ônibus parece ter o mesmo sentido que o linchamento. transferência de renda e garantia de direitos contra a privatização do que é público. A direita pretende repetir sua prática violenta tradicional fazendo que a história do PT seja varrida da memória histórica. obrigados a esquecer até mes- mo os acontecimentos de que foram protagonistas3. suas políticas institucionais de participação (como o orçamento participativo. o corrupto. isto é. as levas de flagelados buscando re- 3 Os petistas ainda não se deram conta do sentido dos acontecimentos de 2005- 2006 como produção da amnésia social e política pela redução do PT aos atos de suas direções e de alguns parlamentares. a passeata dissolvida a cacetadas e gás lacrimogênio parece ter o mesmo sentido que o uso da rua por motoqueiros fazendo “cavalo de pau” ou jovens motoristas fazendo “rachas”. sob a imagem da desordem e do perigo. seu papel na criação da cidadania dos trabalhadores e dos direitos sociais. por exemplo. há uma violência visível. nas organizações de luta por direitos. mas. deslo- cando-se do “nós” para o “eles”. no sem-teto. o mascaramento pode ser mais sutil quando oculta de- terminadas formas de violência sob imagens aparentemente não- violentas. no sem-terra. que serve para encobrir a realidade da discriminação e afirmar a exis- tência da democracia racial. por um grande paradoxo. MARILENA CHAUI fúgio e alimento nas cidades parecem ter o mesmo sentido que os bandos de “justiceiros” pagos para eliminar “bandidos”. Desfeita a extrema polarização política. pois sabemos que não há democracia racial no Brasil. em segundo lugar. poli- ciais. na crian- ça de rua. À unidade ordeira e pacífica desta última contrapõe-se aquela como foco da violência e de pro- dução do “inimigo interno”. pois de sua redução ao silêncio depende a conservação dessa forma de rela- ção social. a prostitui- ção e escravização de meninas parecem ter o mesmo sentido que a ação policial exterminando crianças de rua. o “nós”. em qualquer lugar pode ser tido como violento. no desempregado. paramilitares e parapoliciais se prepararam para uma situa- ção de guerra civil permanente. aqui. no favelado. do paternalismo branco. 10:17 . o “eles” que ameaça. pois onde há paternalismo não pode haver democracia. a ideologia permaneceu como imagem da sociedade civil violenta. Em pri- meiro lugar. é dupla. Porém. assim. nomeando e localizando os agentes violentos. deixa de ser o oponente político para encarnar-se no migrante. e onde há paternalismo branco certamente os negros não foram consultados.p65 131 29/9/2010. É para sal- var a não-violência essencial da nação que se admite a presença da violência na sociedade civil. no índio. como máscara violenta da nação não-violenta. A violência. É o caso. há uma vio- lência sutil e invisível que é o próprio paternalismo. em qual- quer ação. noite e dia. o Estado brasileiro instituiu e disseminou a ideologia do “inimigo interno” com a qual as forças militares. agora. A sociedade civil surge. a qualquer momento. oposta à nação e à pátria. torna-se a máscara para encobrir a própria violência porque qualquer um. Em resumo. Desde os anos 1970. Este. no negro. no sindicalista. O paternalismo branco silencia o negro para afirmar o 131 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. a violên- cia. o traficante. mas ainda porque a imagem da fragilidade serve para encobrir a força real das mulheres (para o bem e para o mal. embora sejam contranatureza ou antinaturais. Outra máscara: a afirmação do caráter natural e sagrado da fa- mília. o policial corrupto. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO mito não-violento da democracia racial: pratica uma violência para inventar a não-violência. o pivete. são violentos por natureza. 2) 132 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. ou. um exame das violências domésticas pra- ticadas contra os membros da família que apresentam “desvios” sexuais seriam importantes para retirar o véu que recobre a sacralização do recesso do lar. o negro perigoso. Este é violento não só pelas práticas que implica. Ora. 10:17 . o trombadinha. des- truir-lhe a boa natureza. enfim. cuja hierarquia rígida torna o poder paterno inquestionável e legítima sua violência. pois são monstros. como essências identificáveis. o grevista provocador etc. De fato. Outra máscara: vimos que a noção de natureza sempre foi posta como critério e medida para a demarcação da violência como contranatureza. Outra máscara: o elogio da força e da virilidade masculinas e da fragilidade feminina para encobrir a violência do machismo.p65 132 29/9/2010. A máscara serve para ocultar a condição feminina não só porque serve para dissimular a dominação sob a imagem da proteção. A máscara naturalizante possui três efeitos principais: 1) dá um perfil mais nítido a “eles”. mas objeto sexual. isto é. permitindo apontá-los na sociedade. evidentemente). uma das máscaras mais interessantes da não- violência encontra-se no processo de naturalização dos agentes vio- lentos. ainda que superficial. “Eles” são uma natureza monstruosa. os violentos acabam sendo tidos como monstruosida- des naturais que penetram na sociedade para desnaturá-la. das causas dos estupros no interior da família. mas sobretudo por- que nele a mulher não é sujeito. É por um vício da natureza que sur- gem. limitando seu campo de ação. Um exame. ou um exame do número de abortos provocados para evitar os efeitos da cólera paterna (ou materna) ou para contornar os danos causados por um parceiro irresponsável. o nordestino-com-pei- xeira. são acidentalmente en- volvidos pelos naturalmente violentos. afirmando a unidade social como uni- dade nacional e colocando como violação acidental tudo quanto ma- nifeste a existência da divisão. se trabalha. a favelada. o “acidente” violento pode ser legítima e legalmente eliminado na qualidade de perturbador da ordem e da paz sociais. como to- dos sabem. Entretanto. mas essa enumeração é quase inútil. porque. um mito não é uma fantasia arbitrária. ausência de saneamento básico. o trombadinha. precárias condições de trabalho e de higiene. mãe irresponsável que não dispensou à criança os devidos cuida- dos de higiene e de alimentação. pois para cada situação mencionada é certo encontrarmos uma imagem pronta para desfazê-la ou ocultá- la. quanto mais revela sua determinação socioeconô- mica. O mito da não-violência está encarregado de negar a realidade das formas de dominação engendradas pela divisão social das classes no modo de produção capitalista. os asilos para idosos –. em uma inversão ideológica que culmina na maior de todas as violências: aquela que afirma a culpa da vítima (o pobre que é po- bre porque não trabalha ou. Se existe e se conserva é porque algo o sustenta e lhe dá força. que. Poderíamos ir longe enumerando situações de violência institucionalizada – Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Uma vez estabelecida a imagem nacional como não-violenta. sendo naturalmente violentos. Quanto mais pública a violên- cia se torna. 3) justifica e legitima o extermínio sumário “de- les”. condições gerais de moradia e de alimentação. É bem-sucedido 133 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. de natureza não-violenta. hospitais psiquiátricos. pois é construído justamente para retirar a violência do contexto em que se origina. ausência de recursos mínimos nas escolas públicas para atender às crianças mais carentes. isto é. são irrecuperáveis e inassimiláveis pela sociedade. 10:17 . tanto mais o mito ganha força. porque não poupa. garantindo a não-violência essencial do “nós”. a menina estuprada. a situação dos aposentados e desempregados. é um perverso por natureza). vista como provocadora e prostituta em potencial. são um risco permanente que não pode ser tolerado.p65 133 29/9/2010. da exploração e da dominação. MARILENA CHAUI inocenta os que. É preciso examinar dois aspectos da rea- lidade que garantem a permanência do mito. de modo invertido. a necessida- des sociais reais. Com efeito. O envolvimento de toda a sociedade brasileira em um projeto histórico comum legitima a exclusão social de todos os violentos e incapazes. entendido como modernização do capitalis- mo e como condição do bem-estar social e da participação política. Todavia. mas ainda a suposta violência de alguns aparece como crime de uns poucos contra todos. a primeira tarefa do mito consiste em apagar a realidade das divisões sociais e da luta de clas- ses. isso não basta. V Por que o mito permanece? Evidentemente. não só a divisão social das classes pode ser dissimulada. Por outro lado. como dissemos há pouco.p65 134 29/9/2010. deixam de fazer parte do povo brasileiro. apesar dos fatos que o 134 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. que. de uma vez por todas. por definição. no momento em que todos os membros da sociedade surgem unificados na qualidade de brasileiros. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO porque sua construção responde. reduzindo sua emergência à situação de meros momentos enlou- quecidos da sociedade (as ocasiões designadas com as expressões chacina e massacre) ou a momentos nos quais novas condições de vida se realizam em quadros institucionais antigos que não podem dar conta da novidade e geram violência naqueles que se sentem vítimas das condições adversas (as condições designadas com a expressão guerra civil tácita). Este aspecto é o que deve nos interessar agora. pois é vio- lência contra a nação. mas sobretudo persuade a todos (os brasileiros) da necessidade de se engajarem em uma luta comum pelo progresso econômico que acabará. com os surtos de violência. Uma das maneiras brasileiras de apagar o sentido real dos conflitos emergentes e reafirmar a não-violência consiste em elaborar ideologias nacionalistas e desenvolvimentistas por cujo intermédio a violência real possa ser reduzida a nada. 10:17 . a ideologia otimista do desen- volvimento econômico. ao tempo em que o desenvolvimento ainda está se processando). permite circunscrever a violência real a um tempo determinado (isto é. o Brasil passa pelo autoritarismo das ditaduras. É a sociedade do “sabe com quem está falando?”. Nem mesmo na família ou no círculo de amigos as pessoas são percebidas como iguais em direitos e sentimentos. que possui nosso mandato. o dirigente é um chefe. não a percebemos e podemos falar em nossa 135 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. o pedestre é inferior e o motorista. o pai é um senhor. o representante. isto é. superior. na política. jamais entre mim e os outros. 10:17 . E porque não percebemos essa reali- dade também não percebemos a violência como forma cotidiana e costumeira de nossas relações sociais e políticas. em rua proibida). meus iguais. A sociedade brasileira. discriminação étnica. discriminação sexual permeiam nossas relações sociais. MARILENA CHAUI desmentem: a estrutura autoritária da sociedade brasileira e a divi- são social sob a forma do privilégio e da carência. Como a violência é costumeira (pois o outro só existe como coisa minha ou para mim). é fortemente hierarquizada ou vertical e nela as relações sempre são entre alguém visto ou posto como superior e alguém visto ou posto como inferior. Discriminação de classe. As relações pessoais e sociais são sempre de mando e obediência. o professor e o médico são superiores compe- tentes.p65 135 29/9/2010. podendo atropelar e matar o outro que é nada e ninguém. na escola e no hospital. torna-se um mandante. ou ocupar o espaço público (que é comum a todos) como se fosse ex- tensão de sua casa. de seu quintal ou de seu jardim (privatiza-se o público quando se estaciona sobre a calçada. Esse costume nos faz acreditar que o autoritarismo é um fenômeno político refe- rido ao regime de governo e não nos deixa perceber que o autoritarismo é estrutural. 1) a sociedade autoritária Estamos acostumados a dizer que. senhor dos favores e rodeado por clientelas. o modo de ser e de se organizar da própria sociedade brasileira. conservando os traços do escravismo. entre mim e você (ou senhor/senho- ra). Na família. favor e cliente- la entre um superior e um inferior. periodicamente (e infelizmen- te). em fila dupla. não sendo o espaço de meus parentes e amigos. é de ninguém e por isso podemos nela lançar lixo e detrito. na rua. no trabalho. em vez de ser mandatário. A rua. Em contrapartida. “subversão da ordem”. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO não-violência. por uma terrível inversão ideológica. educação. nos asilos. 10:17 . A mesma inversão paradoxal aparece em nossa relação com a lei. Por isso. toda luta por direitos aparece como intolerável e perigosa porque põe em questão privilégios cristalizados. de trabalho escravo de crianças e mulheres. o desempregado. considerados culpa- dos por sua condição. nos causa indignação e revolta. pelo temor pânico dos con- flitos sociais. Em lugar de mudá-la. nos hospícios. surgem como “crise”. Assim. a criança abando- nada. Assim. moradia. podemos dizer que a primeira causa da permanência do mito da não-violência é a própria estrutura autoritária da sociedade brasileira. passeatas. preferimos violá-la. odeia-se o analfa- beto. abastecimen- to. de prostituição infantil. pois isto garante que somos melhores e superiores a ela. A “indústria da seca” e o flagelo das migrações não nos espantam. “peri- go”. movimentos po- pulares. Em suma. a tortura nas prisões. violência. movimentos sociais. 136 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. A mescla de indiferença. não nos consideramos autores delas (por meio de nossos representantes) e fazemos da transgressão (o famoso e elogiado “jeitinho”) a forma de nossa relação com a lei. o mito da não-violência transforma a luta por direitos em violência. desprezo e ódio – a violência da “banalização do mal” – produz um efeito reforçador do mito: identificamos nossa não-violência pelo “amor à ordem”. Greves. nas instituições de guarda das crianças. que não nos deixa ver o nosso cotidiano e as formas das relações sociais e políticas como violências. o encarcerado. isto é. eleições. a exis- tência de trabalhadores boias-frias. a prostituta. longe de fazerem parte de um cotidiano democrático (pois a democracia é o único regime político que considera o conflito legítimo e realiza o trabalho dos conflitos). O número de acidentes de trabalho e de desem- pregados não nos espanta.p65 136 29/9/2010. Porque as leis são feitas para garantir interesses e privilégios e não para traduzir direitos e garanti-los. nada disso nos comove. a impunidade dos crimes do “colarinho branco”. o analfabetismo gigantesco. o sem-teto e o sem-terra. a degradação dos serviços públicos de saúde. os acidentes de trânsito. o migrante. o extermínio de crianças e velhos. sendo os casos mais correntes a manu- tenção de criadagem doméstica. 10:17 . A substituição do princípio da igualdade formal é determinada pela emergência histórica da cidadania no contexto de uma socie- dade escravista. as leis aparecem como inócuas. a forma da cum- plicidade quando se estabelece entre os que se julgam iguais ou “mais iguais”. da tutela e do favor. que institui uma figura inédita: o senhor-cidadão. que põe todas as relações sociais sob a forma do mando e da obediência. b) indistinção entre o público e o privado: o cidadão é o senhor. nunca definindo di- reitos e deveres dos cidadãos porque sua tarefa é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. e o uso de “doutor” quando. dos ne- gros. o Estado é cartorial e patrimonialista e há os “donos do poder”. inúteis ou incompreensíveis. na relação social. concebe-se a cidadania como privilégio de classe. A ordem social hierárquica se exprime na famosa expressão “sabe com quem está falando?” e no fascínio pelos sig- nos de prestígio e de poder. cujo número indica aumento de status. feitas para 137 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. O bloqueio do espaço público é ativamente produzido. migrantes. sociais. assumindo. idosos) ou em monstruosidade (no caso dos homossexuais). fazen- do-a ser uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais. fazendo que a lei não deva figurar e não figure o polo público do poder e da regulação dos conflitos. MARILENA CHAUI Podemos resumir os traços do autoritarismo social nos seguin- tes aspectos: a) substituição do princípio liberal da igualdade formal pela afir- mação da naturalidade das desigualdades econômicas. Por isso. índios. da clientela. dos trabalhadores.p65 137 29/9/2010. o outro se sente ou é visto como superior. a república é oligárquica. Por este motivo. po- líticas e culturais e do princípio da autoridade hierárquica. Por isso mesmo opera a transfor- mação das diferenças em desigualdades naturais e destas em infe- rioridade natural (no caso das mulheres. porém. que poderá ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem. Em suma. pacífica e ordeira. A essas duas formas. 138 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. bloqueia as iniciativas dos movi- mentos sociais. secreto. uma vez que a cidadania é outorgada pelos dominantes e os partidos políticos são oligárquicos. Assim. o Estado percebe a socie- dade civil como inimiga e perigosa. por isso recebem uma significação precisa: são sinônimo de perigo. por meio do controle oligopólico dos meios de comunicação. O poder judiciário é claramente percebido como distante. é preciso acrescentar outra. instituindo mecanismos para impedir o trabalho dos conflitos e contradições sociais. e a discordância é posta como ignorância ou atraso. sindicais e populares. Da mesma manei- ra. o espaço privado se alarga e o espaço público encolhe: o Estado se desincumbe dos poucos direi- tos sociais conquistados pelas lutas populares. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO ser transgredidas e não para ser transformadas. Os mass media monopolizam a in- formação. e o desprezo condescendente. para os opositores em geral. econômicos e políticos. perigosa para o Estado e para o funcionamento “racional” do mercado. a classe dominante opera para manter a hegemonia. para as camadas populares.p65 138 29/9/2010. representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social. c) por ser oligárquico e patrimonialista. erguendo obstá- culos à constituição de uma esfera pública das opiniões como ex- pressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. assumindo sem- pre duas formas: a clientelista e a populista. a representa- ção se converte em relação de favor (no clientelismo) e de tutela (no populismo). d) construção de obstáculos para a prática política da representa- ção e da participação. Sob a ação do neoliberalismo. crise. 10:17 . o consenso é confundido com a unanimidade. desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar. Conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa socieda- de indivisa. transformando-os em serviços vendidos e comprados no mercado. a sociedade auto-organizada é vista como risco para a indivisão social e a união nacional. em que o governante assume a figura do pai e do salvador. portanto. e) a ordem hierárquica. isto é. a do poder como competência técnico-científica e a do poder como carisma ou expressão da personalidade excepcional do governante. estimula a despolitização. pois o que as une profundamente é a imagem do poder como mistério e privilégio. cuja finalidade é trazer aos trabalhadores alie- nados a “consciência correta”. a adoção da ideologia da competência é imediata. alimenta o fascínio pela competência tecnocrática. mantendo uma relação dire- ta com os governados. 10:17 . os incompetentes. fascínio refor- çado. a despolitização é o parado- xal efeito de duas atitudes aparentemente opostas. na qual a direção partidária substitui a classe trabalhadora e mantém com ela uma relação pedagógica. os competentes com direito ao mando. nos dias de hoje. e os que não os possuem. Entretanto. sem mediações institucionais. Dessa maneira. Em uma sociedade que beira o apartheid social. Essa ideologia sobredetermina a divisão socioeconômica das classes com a divisão entre os que possuem conhecimentos técnicos e científicos. só em aparência essas duas atitudes se contradizem. com isso.p65 139 29/9/2010. MARILENA CHAUI vinda da tradição das esquerdas: a vanguardista. justificando que sejam excluídos das deci- sões. com obrigação de obediência. ou seja. Essa sacralização do poder permite sua inversão: o governante fraco ou corrupto é satanizado. difunde a imagem da incompetência política dos cidadãos. Sacralização e satanização do poder indicam que este é percebido como uma esfera separada e exterior à sociedade. 139 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. A ideologia da competência faz crer que a política é uma atividade de especialistas que dominam sabe- res e técnicas e. acentuando assimetrias e desigualdades. como transcendente ao social. e. f) a forma oligárquica da república estimula o fascínio pelo Es- tado “forte” de cunho messiânico-populista. pela transformação da ciência e da tecnologia em forças produtivas e pela afirmação de que conhecimento e in- formação são poder. A cidadania se define à igual distância do privilégio e da carência. Uma carência é sempre específica e singular. 10:17 . não há sujeitos. como toda sociedade oligárquica. A polarização privilégio/carência.p65 140 29/9/2010. uma vez que o aumento dos privilégios e das carências poderia. a concentração oligopólica da riqueza social e o corte dos fundos públicos destinados à garan- tia dos direitos sociais. que opera com o desemprego estrutural. A estrutura autoritária e oligárquica da sociedade brasi- leira bloqueia a instituição do campo democrático e da cidadania e. agrava-se com o neoliberalismo. Um privilégio é sempre particular e não pode. universalizar-se em um direito. reforça a violência que atravessa o social e o político nas várias formas aqui mencionadas. sem deixar de ser privilégio. suscitar a percepção social da violência. como vimos. que sobredetermina a divisão social das classes. Onde não há direitos. por isso mesmo. a velocidade da rotatividade e da obsolescência precoce da qualificação da mão de obra. Nessas condições. A economia neoliberal opera por exclusão e pela formação de bolsões de opulência e de miséria. VI O filósofo Michel Foucault nos alerta para o risco de engano pre- sente na ideia de que o poder se limita apenas a uma instância sepa- 140 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. não conseguindo ultrapassar a esfera da demanda. generalizar-se em um interesse comum nem. Onde não há reconhecimento de sujeitos. é exatamente isso a violência. estes são tratados como coi- sas e. incapaz de generalizar-se em um interesse e universalizar-se em um direito. finalmente. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO 2) a divisão social sob a forma da carência e do privilégio A sociedade brasileira. repõe a divisão social e econômica das classes sob a forma de uma polariza- ção extrema. a dispersão e a fragmentação da produção (que rouba dos trabalhadores seus referenciais de classe e de organização). muito menos. aquela que tensiona e não resolve a divisão entre privi- légio e carência. o campo democrático é constituído pela criação e pelo reconhe- cimento de direitos. Ora. o mito da não-violência precisa ser mantido e reforçado. encarnada no Estado e com papel puramente repressivo ou relativo. A democracia está referida a um problema mais vasto do que imaginamos à primeira vista. do- mínio e sujeição em todas as relações sociais. pois deixamos a violência ser definida a partir do Estado e nos afas- tamos de sua realidade social cotidiana. nossa tendência será encarar a democracia somente em seu aspecto partidário/parlamentar e nos esqueceremos da demo- cracia como forma da existência social. isto é. Se localizarmos o poder e o exercício da dominação apenas na esfera do Estado. do trabalho à educação. não poderia ser conservado se 141 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. Será mais adequado. MARILENA CHAUI rada da sociedade. distinguirmos o poder (como esfe- ra da lei e da ação coletiva) das disciplinas. As práti- cas disciplinadoras estabelecem normas de mando e obediência. entre dominan- tes e dominados) em todas as esferas da vida social. teremos dificuldade para compreender como o mito da não-violência se enraíza na sociedade brasileira.p65 141 29/9/2010. suscitando sempre novas formas de sujeição e novas possibilidades de domina- ção. Se não encararmos a questão de- mocrática por esse ângulo. Dos vários riscos de engano. o mito da não-violência. e à separação entre dirigentes e dirigidos (e. os modos sociais de exercer a dominação no interior da sociedade e na política. em nosso caso. Inventa formas para seu exercício e acha-se difundido pelo interior das relações sociais. O poder. Assim. é produtivo e criativo. da alimentação à política fiscal. há pelo menos dois que merecem atenção: o primeiro concerne à democracia e o segundo diz respeito à conservação do mito da não-violência. pois diz respeito ao modo da divisão social das classes. da moradia à saúde. por isso. diz Foucault. mesmo quando sabemos que o Estado é instrumento de dominação de uma classe social. esta última só pode ser pensada e realizada se não tomamos o exercício da dominação como circunscrito à esfera estatal. Ora. ao tomarmos o poder apenas em sua face estatal ou apenas em sua face repressiva. que. às diferenças conflituosas entre o caráter parti- cular dos interesses contrários e o caráter universal dos direitos. 10:17 . irradiando-se em todas as direções. enquanto mito. nega a realidade da violência. portanto. do transporte às fontes de energia. encarna e realiza o mesmo poder que pareceria existir apenas no topo da sociedade. La Boétie afirma que é perfeitamente compreensível a submis- são de uma sociedade inteira a um poder estranho que a domina pela força. pois o servo está submetido à vontade do senhor. Brasiliense. diz La Boétie. cada um dos membros da sociedade se submete porque espera submeter os outros ao seu próprio poder. por menor que seja. 2001. tiraniza os que julga seus inferiores. é preciso dizer que se trata de uma sociedade tirânica. no século XVI. que se entrecruzam e se difundem no interior da sociedade e se soldam nos mínimos detalhes. A esse respeito. Para compreender o paradoxo da servidão voluntária. em cada uma de suas atividades e em cada esfera de sua existência social e privada. Discurso da servidão voluntária.p65 142 29/9/2010. La Boétie4 denominava servidão voluntária. São Paulo. vale a pena retomarmos aquilo que. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO não correspondesse a determinadas expectativas sociais. enquanto a servidão é o que impede a ação da vontade. A vontade se define pelo desejo de liber- dade ou como exercício da liberdade. uma sociedade tiranizada serve voluntariamente ao tirano porque cada um. para as quais a violência realmente praticada por todos e cada um deve aparecer como ação justa e legítima. Etienne de. a sujeição se deve ao fato de que cada um dos membros da sociedade. 4 LA BOÉTIE. Assim. Por que incompreensível? Porque o voluntário e o servil se excluem reciprocamente. isto é. Na servidão voluntária. mas que é aparentemente incompreensível a sujeição a um poder que os homens poderiam derrubar. é preciso perceber o modo como o poder se espalha pelo interior da sociedade. em seu lugar social. Em outras pala- vras. a existên- cia incompreensível de um impulso social voluntário para a submis- são. Assim. Há uma verdadeira reação em cadeia dos poderes. 10:17 . se quisessem derrubá-lo. 142 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. em vez de sociedade tiranizada. 000 exemplares.4/14. Os fotolitos do miolo e da capa foram executados pela Graphium Gráfica e Fotolito.p65 144 1/10/2010. João Pedro Stedile. A tiragem foi de 3. 4 Democracia e autoritarismo 115 a 144 2 reimp. o miolo foi impresso em Offset 75g. 12:59 . A capa foi impressa em pa- pel Carta Íntegra 220g. a democracia brasileira e o socialismo em coautoria com Leonardo Boff. LIVROS DE MARILENA CHAUI PUBLICADOS PELA EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO: • Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária Coleção História do povo brasileiro • Leituras da crise: diálogos sobre o PT. O texto foi composto em Times New Roman no corpo 11. Wanderley Guilherme dos Santos • Cidadania cultural: O direito à cultura A segunda reimpressão de Simulacro e poder foi realizada na cidade de São Paulo pela Gráfica Graphium em outubro de 2010.
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