A pós-colonialidade e o artifício da história: quem fala em nome dos passados “indianos”?* Dipesh Chakrabarty É preciso levar o pensamento até o limite. Louis Althusser I Recentemente o projeto pós-colonial de Subaltern Studies** tem sido elogiado porque demonstra, “quiça pela primeira vez desde a colonização”, que “os indianos estão demostrando consistentes sinais de re-apropriação da capacidade para representar-se a si mesmos [dentro da disciplina da história]”1. Como um historiador membro do grupo de Subaltern Studies, penso que a felicitação contida nessa observação é gratificante, mas prematura. O propósito deste artigo é problematizar a ideia dos “indianos” “representando a si mesmos na história”. Por hora deixemos de lado os enrolados problemas de identidade inerentes à uma agência transnacional como a Subaltern Studies, onde os passaportes e os compromissos confunde às distinções de etnicidade de uma maneira que para alguns parece tipicamente pós-moderna. Tenho uma proposição mais perversa para apresentar. Trata-se de que no tocante ao discurso acadêmico da história – quer dizer, a “história” como um discurso produzido no âmbito institucional da universidade –, “Europa” continua sendo o sujeito soberano, teórico, de todas as histórias, incluindo as que chamamos “indianas”, “chinesas”, “quenianas”, etc. Existe uma peculiar maneira na qual todas estas outras histórias tendem a se voltar para uma variação de uma narração mestra que poderia se chamar “a história de Europa”. Neste sentido, a própria história “indiana” está em uma posição de subalternidade; só podendo articular posições de sujeito subalterno em nome desta história. Enquanto o resto deste artigo desenvolverá esta proposição, permita-me dar algumas variações. “Europa” e “Índia” são tratados aqui como termos hiperreais, no sentido que se referem a certas figuras da imaginação cujos referentes geográficos permanecem mais ou menos indeterminados.2 Assim, sendo figuras do imaginário são suscetíveis de serem debatidas, mas por hora tratarei como se fossem categorias dadas, materializadas, termos opostos que formam um binômio em uma estrutura de dominação e subordinação. Sou consciente de que ao tratá-los desta maneira me exponho à acusação de ser nativista, nacionalista, ou o que é pior, um pecado dentre os pecados, nostálgico. Os acadêmicos de tendência liberal protestariam imediatamente que qualquer * Tradução Erahsto Felício, revisão Gissele Raline Moura, junho de 2009. ** Trata-se do Grupo de Estudos Subalternos formados a partir de historiadores indianos que lançou a série de artigos Estudos Subalternos: escritos sobre história e sociedade indiana em 1982. (Nota do Tradutor) 1 Ranajit Guha y Gayatri Chakravorty Spivak, editores. Selected Sublatern Studies. New York, 1988; Ronald Inden, “Orientalist Constructions of India”. Modern Asian Studies . Nº 20, número 3 (1986): 445. 2 Devo a Jean Baudrillard o termo hiperreal (ver seu livro Simulations, New York, 1983), ainda que meu uso seja diferente do seu. ideia de uma “Europa” homogênea, indiscutivelmente se desfaz à menor análise. Isto é certo, porém assim como o fenômeno do orientalismo não desaparece sensivelmente porque alguns de nós alcançamos agora uma consciência crítica do mesmo, da mesma forma certa versão da “Europa”, materializadas e celebrada no mundo fenomênico das relações cotidianas de poder como o cenário do nascimento do moderno, continua dominando o discurso da história. A análise não a faz desaparecer. Que a Europa funcione como um referente silencioso no conhecimento histórico é de fato algo óbvio de uma maneira sumariamente ordinária. Pelo menos há dois sintomas cotidianos da subalternidade das histórias não ocidentais, terceiromundistas. Os historiadores do Terceiro Mundo sentem uma necessidade de se referir às obras de história europeia; por seu turno, os historiadores da Europa não sentem a obrigação de corresponder. Seja um Edward Thompson, um Le Roy Ladurie, um George Duby, um Carlo Ginzburg, um Lawrence Stone, um Robert Darnton ou uma Natalie Davies – para citar só alguns nomes ao azar de nosso mundo contemporâneo –, os “grandes” e os modelos do ofício do historiador são sempre, pelo menos, culturalmente “europeus”. “Eles” produzem sua obra em uma relativa ignorância das histórias não ocidentais e isto não parece afetar a qualidade de seu trabalho. Este é um gesto, entretanto, que “nós” não podemos corresponder. Nem sequer podemos nos permitir uma igualdade ou simetria de ignorância neste nível sem correr o risco de parecer “antiquados” ou “superados”. O problema, poderia acrescentar entre parênteses, não é exclusivo dos historiadores. Uma mostra despreocupada, mas apesar disso ostensível desta “desigualdade de ignorância” nos estudos literários, por exemplo, é o seguinte enunciado acerca de Salam Rushdie tomado de um texto recente sobre o pós-modernismo: “ainda que Saleem Sinai [dos Filhos da meia noite]* narra em inglês (...) tanto para escrever história como para escrever ficção, seus intertextos acabam duplicados: por um lado provem de lendas, filmes e literatura indiana; por outro do Ocidente – O Tambor de Hojalata, Tristram Shandy, Cem anos de saudade, etc”3. É interessante observar como este enunciado faz reluzir apenas as referências que provem do “Ocidente”. A autora não tem a obrigação de estar em posição de nomear com alguma autoridade e especificidade às alusões “indianas” que “duplicam” a intertextualidade de Rushdie. Esta ignorância, compartilhada e tácita, é parte de um suposto pacto que torna “fácil” incluir Rushdie nos cursos sobre pós-colonialismo dos departamentos de literatura inglesa. Este problema de ignorância assimétrica não é simplesmente questão de “servilismo cultural” (cultural cringe, para falar com meu lado australiano) de nossa parte ou de arrogância cultural da parte do historiador europeu. Estes problemas existem, mas podem ser atendidos de maneira relativamente fácil. Tampouco pretendo menosprezar, nos mínimos detalhes, os avanços dos * Filhos da Meia Noite é como Renajit Guha e Saleem Sinai chamaram a geração do grupo de Estudos Subalternos (N.T.). 3 Linda Hutcheon. The Politics of Postmodernism. Londres, 1989, p. 65. todas as demais histórias são questões de investigação empírica que encarna um esqueleto teórico que substancialmente é “Europa”. onde este propunha que a diferença fundamental entre as “filosofias orientais” (mais especificamente. 281-85. não podemos corresponder a este gesto? Existe uma resposta a esta pergunta nos escritos de filósofos que têm lido na história europeia uma enteléquia da razão universal. India and Europe: An Essay in Understanding. os que vivem em culturas não ocidentais. considerando tal filosofia como a consciência de si mesma da ciência social. filósofos e pensadores que tem dado forma à natureza da ciência social têm produzido teorias que abarcam à toda humanidade. Esta condição se expressa ordinariamente de uma maneira paradoxal.historiadores que mencionei. Quem permitiu aos modernos sábios europeus desenvolver semelhante clarividência a respeito de sociedades que ignoravam empiricamente? Por quê nós. como acrescentava. Uma proposição epistemológica bastante similar anima o uso que Marx faz de categorias como “burguês” e “pré-burguês” ou “capital” e “pré-capital”. pp. da maior parte da humanidade – ou seja. O paradoxo cotidiano da ciência social do Terceiro Mundo é que para nós estas teorias nos parecem. O prefixo pré significa aqui uma relação que é tanto cronológica como teórica. eminentemente úteis para entender nossas sociedades. enquanto que aquelas conservavam um caráter “prático-universal” e. “mítico-religioso”. “theoría” (ciência universal). estas declarações têm sido produzidas em uma ignorância relativa. Como bem sabemos. 4 Edmund Husserl. Desde varias gerações. cuja sombra se produz o conhecimento histórico no Terceiro Mundo. “falando em sentido universal: a filosofia”) era a capacidade desta de produzir “percepções teóricas absolutas”.. e se refere à natureza mesma dos próprios pronunciamentos da ciência social. New York. novamente. Ill. é teoricamente (quer dizer. segundo o argumento. 1988. Ver também Wilhelm Halbfass. pp. Nossas notas de rodapé aportam copiosos testemunhos das percepções que temos derivado de seu conhecimento e criatividade. 167-168. enquanto que o mundo se apresentava ele mesmo ante a theoría como uma “temática”. pois os filósofos europeus mais conscientes de sua própria reflexão sempre justificam teoricamente esta postura. quer dizer.1970. o que tornava possível uma práxis “cujo fim é elevar a humanidade mediante a razão científico universal”4. Isto em si mesmo não constitui um paradoxo. e em ocasiões absoluta. The Crisis of European Sciences and Transcendental Philosophy. O domínio da “Europa” como sujeito de todas as histórias é uma parte de uma condição teórica muito mais profunda. Estas filosofias “prático-universais” se dirigiam ao mundo de uma maneira “ingênua” e “direta”. Somente “Europa”. a indiana e a chinesa) e a “ciência greco-europeia” (ou. Este paradoxo é o que descreverei como o segundo sintoma cotidiano de nossa subalternidade. O surgimento da sociedade burguesa ou capitalista. . Existe uma versão deste argumento na conferência de Edmund Husserl dada em Viena em 1935. segundo ele. Evanston. traducción de David Carr. apesar de sua ignorância inerente de “nós”. no nível das categorias fundamentais que dão forma ao pensamento histórico) conhecível. ) elas mesmas (. (. p. Capital: A Critique of Political Economy.. 1890-1940.) produto de relações históricas. pp. Todas as histórias do passado a partir de então serão conhecidas (desde já.. por isso. pela primeira vez. Harmondsworth. A história se torna. pp. 1. contém dentro dela o sujeito legal do pensamento da Ilustração6. “não pode ser decifrado até que a noção de igualdade humana tenha adquirido a estabilidade de um preconceito popular”7. vol. quer dizer. Grundrisse. mais desenvolvida e mais complexa. de fato mais além da noção de igualdade jurídica que é tão sagrada para o liberalismo. vol. 3.) Os indícios de um desenvolvimento superior entre as espécies animais subordinadas (. nesse primeiro capítulo tão hegeliano do Capital vol. que o segredo do “capital”. 1. Rethinking Working-Class History: Bengal. a compreensão de sua estrutura. p. em termos de seus diferenciais a respeito dela. cujas meras variações têm desenvolvido uma importância explícita dentro dela.. historicamente falando. A categoria “capital”. Capital. pesa sua validade – precisamente por seu caráter abstrato – para todas as épocas. Princeton. etc.T. 8 Marx.marxists. também permitem percepções da estrutura e das relações de produção de todas as formações sociais desaparecidas.. Não é de surpreender que Marx dissera. não obstante são (... capítulo 7. (N. teoricamente conhecível. 6 Ver Dipesh Chakrabarty. teoricamente) desde o observador privilegiado que esta categoria é.. Moscú. Entre parênteses devemos nos recordar também de que a visão de Marx sobre a emancipação implicava uma viagem mais além do domínio do capital. Seguindo com as palavras de Marx: Inclusive as categorias mais abstratas. acessado em 24 de fevereiro de 2009. e em Marx. .org/archive/marx/works/1857/grundrisse/. 60. A sociedade burguesa é a organização da produção. enquanto categoria. 7 Marx. de Martin Nicholas. 1989. proponho. 593-613. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy.) podem ser entendidas só depois que já se conhece o maior desenvolvimento que pode ser alcançado. trad. leia-se “Europa”. 105.) 5 Ver este argumento em Karl Marx.diz Marx em Grundrisse* e em outros lugares. dá lugar pela primeira vez à uma história que pode ser compreendida mediante uma categoria filosófica e universal: o “capital”. As categorias que expressam suas relações. As coisas revelam sua essência categórica somente quando alcançam seu pleno desenvolvimento.. 1973. mas apenas publicado postumamente em 1939 ou 1941.8 Onde diz “capital” ou “burguesia”.. 1971. II Nem Marx nem Husserl falavam – pelo menos não nas palavras citadas anteriormente – em um espírito historicista. A máxima “a cada um é pago * Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie foi escrito entre 1857 e 1861 por Karl Marx como manuscrito preparatório para o que se tornou a Uma contribuição para a crítica da economia política e ao Capital. Ver http://www. 3 vols. como examinei em outro texto. a partir de cujas ruínas e elementos se construiu só. ou como disse Marx naquele famoso aforismo de Grundrisse: “a anatomia humana contem a chave da anatomia do símio”5. 469-512. A economia burguesa proporciona assim a chave para a economia antiga. cujos restos ainda parcialmente rebeldes estão presentes dentro dela. destas encenações “onerosamente incompletas”.10 Que categoria de transição ficou “onerosamente incompleta”? Sarkar alude à possibilidade de que houve várias e nomeia três: Muitas das aspirações despertadas ao longo da luta nacional ficaram sem se cumprir – o sonho gandhiano do camponês que chega a ser quem deve ser em Ram-rajya [o reino do lendário e ideal deus-rei Rama]. abre com o seguintes enunciados: Os sessenta anos e pouco que mediam entre a fundação do Congresso Nacional Indiano em 1885 e a consumação da independência em agosto de 1947 viveram quiça a transformação mais grandiosa na longa história do país. Delhi. 1. Modern India. e esta é a razão pela qual Marx continua sendo – pese o Muro de Berlim (ou pese as suas ruínas) – um crítico relevante e fundamental tanto para o capitalismo como para o liberalismo. do capitalismo. Estas narrações giram em torno do tema da “transição histórica”. as declarações metodológicas ou epistemológicas de Marx nem sempre conseguem resistir à leituras historicistas. Rethinking Working-Class History. 10 Sumit Sarkar. A maior parte das histórias do Terceiro Mundo são escritas dentro de problemáticas plantadas por esta narração da transição.segundo sua habilidade. salário igual”. Não obstante. Nem o sonho do camponês de um reino mítico e justo. cujos temas dominantes (ainda que e amiúde implícitos) são os do desenvolvimento. uma vez mais um exemplo do “nativo preguiçoso”?) – inauguramos nossos projeto de Subaltern Studies: É o estudo do fracasso histórico da nação para chegar a ser o que deve ser. Sarkar localiza a história da Índia moderna. um fracasso devido à insuficiência da burguesia assim como da classe trabalhadora 9 Ver Chakrabarty. Esta tendência pode ser encontrada em nossos próprio trabalho no projeto de Subaltern Studies. a cada um segundo sua necessidade” é muito contrária ao princípio de “ao trabalho igual. e é a partir desta ambiguidade central que parece mais apropriado começar nosso estudo. O livro Modern India de Sumit Sarkar (um dos colegas de Subaltern Studies). assim como os ideais da esquerda de fazer a revolução social. capítulo 7 em particular. Também com uma referência similar às “carências” – o “fracasso” de uma história para chegar ao seu encontro com seu destino (digamos. Um transição que de muitas maneiras continua sendo onerosamente incompleta. 1885-1947. (p. e por isso central para qualquer projeto pós-colonial e pós-moderno de escrita da história. 04). 1985. Meu livro acerca da história da classe operária teve que lidar com este problema 9. p. Sempre houve suficiente ambiguidade nestas declarações para tornar possível o surgimento de narrações históricas “marxistas”. como haveria que se revelar reiteradamente a história da Índia e do Paquistão (e de Bangladesh) independentes. inclusive os problemas de uma completa transformação burguesa e de um afortunado desenvolvimento capitalista não se resolveram completamente mediante a transação do poder em 1947. da modernização. nem uma “completa transformação burguesa” – dentro destas três carências. nem o ideal de esquerda da revolução social[ista]. E. . considerado com justiça um dos melhores livros sobre história da Índia dirigidos principalmente para as universidades indianas. xcv. A espada é nossa garantia. . quando não fazia falta um Michel Foucault para revelar a conexão entre violência e conhecimento: “o êxito das forças de sua Majestade”. uma ausência ou como algo incompleto que se traduz em uma “insuficiência” é óbvia nestas citações. p. “abrem as portas do Oriente às investigações dos curiosos”12.). publicada pela primeira vez em três volumes entre 1770 e 1772. menos da lei [pois]. Este era o passado de falta de liberdades. mas creio que representam um sentido de responsabilidade que é compartilhado por todos os membros do grupo de Subaltern Studies. na narração de Dow. além de ser supervisionado por um poder judicial onde “os servidores da justiça deveriam ser independentes de tudo. como tropo. o indiano seria convertido num súdito legal.. Os britânicos conquistaram e representaram a diversidade dos passados “indianos” mediante uma narração homogeneizadora da transição desde um período “medieval” até a “modernidade”. Para dar só um exemplo entre tantos que nos oferecem. 11 A tendência de ler a história da Índia em termos de uma carência. Em uma nota posterior.] ou [do tipo da] “nova democracia” – é o estudo deste fracasso o que constitui a problemática central da historiografia da Índia Colonial. dedicatória. p.1.. vol. se trata de uma antiga tendência que se remonta à aurora do regime colonial na Índia. esta narração da transição era uma desembaraçada celebração da capacidade do imperialismo para a violência e a conquista. a History of Hindostan de Alexander Dow. Os termos mudaram com o tempo. Selected Subaltern Studies. Uma variante posterior seria “feudal-capitalista”. era um sistema no qual “o poder legislativo.para a conduzir à uma vitória decisiva sobre o colonialismo e a uma revolução burguesa-democrática do tipo clássico do século XIX [. regido por um governo aberto à pressão da propriedade privada (“o fundamento da prosperidade pública”. 1. Dow explicava que o “despotismo” não se referia à um “governo guiado pelo mero capricho e inconstância”. 3 vols. Esta “jurisprudência fundamental” era o “respeito à lei” que contrastava.. (vol. pp. O despotismo era oposto ao governo constitucional inglês. cl. History of Hindostan. Contudo. É uma conquista absoluta. Subtraindo esta conexão entre a violência e a modernidade. dizia Dow) e à opinião pública.. 1. cxxxviii). Londres. Com o estabelecimento do poder britânico. 1812-1816. cxl-cxli). com o regime anterior que era “arbitrário” e “despótico”. Quando se formulou pela primeira vez nas história coloniais da Índia. 43. e chamou o “moderno” de “o respeito à lei”. o judicial e o executivo [estavam] encarnados no príncipe”. pois sabia suficientemente história para entender que isto não era correto para a Índia. As palavras citadas são de Guha. Alguma vez se chamou “despótico” ao “medieval”. 11 Guha y Spivak. senão o oficial [o juiz] se converte em um instrumento de opressão nas mãos do despotismo” (vol. e assim a considera o mundo. era dedicada ao rei como uma candura característica do século XVIII. dizia Dow. 12 Alexander Dow. Dow acrescenta: a nação britânica se converteu na conquistadora de Bengala e deveria estender algo de sua jurisprudência fundamental para assegurar sua conquista (. Lhes dar propriedades só os uniria aos nossos interesses de modo mais forte e os faria nossos súditos. seus costumes. 1964. Chaudhuri. Anos depois. 13 Ver L. ultrapassa o poder do pacto político [.14 Nas versões nacionalistas desta narração. suas instituições. Liberalism. gerações de elites nacionalistas indianas encontraram sua posição de sujeito. o regime britânico era um período necessário de tutela em que os indianos tinham que passar para se prepararem precisamente para o que os britânico lhes negavam. 14 Nirad C. pp. em 1951. eram aqueles que fizeram levar a cruz da “insuficiência”. colocou o tapete da “história indiana” entre os dois postes dos conjuntos homólogos de oposições: despótico-constitucional.Durante os séculos XIX e XX.. New York. mas que exaltavam como o fim de toda a história: cidadania e o Estado-nação. medieval-moderno. Sua religião. em várias ocasiões e dependendo da ideologia de cada um. modelado e animado pelo próprio regime britânico. os camponeses e os trabalhadores. cxlcxli) Não é necessário lembrar que isto seria a pedra fundamental da ideologia imperial durante muitos anos – súditos e não cidadãos. ao qual. Tanto para Rammohun Roy como para Bankimchandra Chattopadhyay. como mostra Partha Chatterjee. um indiano “desconhecido” que conseguiu vender sua “escuridão”. Dito de outro modo. The Autobiography of an Unknown Indian. Dentro desta narração compartilhada pela imaginação imperialista e nacionalista. pois os nativos nunca tiveram capacidade para a cidadania – e com o tempo se converteria em uma variedade da própria teoria liberal13. em nome dos nativos.. escrevia esta dedicatória para a história de sua vida: À memória do Império Britânico na Índia o qual nos outorgou a condição de súditos mas nos negou a cidadania. não obstante.]. pois. feudal-capitalista. 1. ou se a nação britânica prefere esta palavra – mais nossos escravos. todos nós apresentamos o desafio “Civis Britanicus Sum” porque tudo o que era bom e vivia dentro de nós foi feito. 1989. sempre havia lugar neste relato para personagens que encarnavam. as classes subalternas. dois dos intelectuais nacionalistas mais proeminentes da Índia do século XIX. o “indiano” sempre foi uma figura da carência. New York. a disposição mesma de sua mentalidade. dentro desta narração da transição que. o tema da “insuficiência” ou do “fracasso”. T. Hobhouse. 26-27. dedicatória. como nacionalistas. pp. A recomendação de Dow sobre o “respeito à lei” para Bengala-Índia era acompanhada da paradoxal garantia (para os britânico) de que não havia perigo de que semelhante respeito “inculcara” aos nativos “um espírito de liberdade”: Tornar os nativos da terra de Bangala livres. . os fazem próprios para a obediência passiva. Desde então os nacionalistas se ressentiam disto. (vol. ) 17 Minha compreensão deste poema foi enriquecida com as conversações com Marjorie Levinson e David Bennett. . Muitos dos rituais públicos e privados do individualismo moderno começaram a ser notados 15 Partha Chatterjee. 1965. p. * Obra literária ou artística imitada servilmente de outra. Pois tenho sonhado com climas mais brilhantes e livres onde habita a juventude e a liberdade celestial onde até os mais humildes se tornam felizes – onde a vista não se ofende ao ver um homem se inclinar ao sórdido interesse – são climas onde prospera a ciência. de uma falsa consciência15. seus arroios vestidos de ervas – alegres flores e céus sem nuvens ainda assim são mais que belos. inclusive. ainda que seja a minha terra. provincianismo ou. os nacionalistas indianos posteriores abandonaram também o desprezível desejo de se tornarem “europeus”. Calcuta. 16 Mudhusudan Rachanabali [em Bengala]. a palavra de origem anglo-indiana comunalismo [comunalismo] se refere àqueles que presumivelmente não conseguiram estar à altura dos ideais “seculares” da cidadania. O poema se inspirava aparentemente na vista das naus que partiam da costa de Bengala “até as gloriosas costas da Inglaterra”: A miúde suspiro como uma triste ave por deixar esta terra.Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse? Londres. 449. Michael Madhusudan Datter jibancharit [em Bengala]. As primeiras expressões – quer dizer. onde o homem vive em toda sua glória de forma mais verdadeira.segundo esta versão. ali me deixem morrer. e o gênio recebe sua justa honraria. 86. deixem-me viver ali. Contudo. Hoje. instituições e discursos do individualismo burguês em terras indianas. Calcuta. p. 1978. dependendo de sua preferência.16 Com seus ecos de Milton e de radicalismo inglês do século XVII. 1986. finalmente se deu conta da impossibilidade de ser “europeu” e voltou à literatura bengali para se converter em um dos nossos melhores poetas. e o rosto da natureza é esquisitamente doce: Para aqueles climas lanço meu impaciente suspiro. publicou o seguinte poema em 1842. escrito em inglês por uma estudante bengali de dezoito anos de idade. pouco encanto tem para mim. eram eles que necessitavam ser educados para os tirar de sua ignorância. e alguém podia ser “indiano” e “cidadão” ao mesmo tempo.T. Não demoraremos em analisar algumas das contradições deste projeto. antes dos primeiros passos do nacionalismo – deste desejo de ser um “súdito legal” deixam claro que para os indianos dos anos trinta e quarenta do século XIX ser um “individuo moderno” era se converter em “europeu”. o jovem autor bengali deste poema. uma revista da Calcutá colonial. Michael Madhusudan Dutt. Ver também Jogindranath Basu. The Liberary Glener. é claro que esta é uma mostra do pasticho* colonial17. A premissa do pensamento nacionalista era precisamente a suposta universalidade do projeto de se converter em indivíduos. supondo que “direitos individuais” e a “igualdade” abstrata fossem conceitos universais que podiam se fixar em qualquer parte do mundo. É inegável que o regime britânico tenha estabelecido as práticas. Dicionário Aurélio (N. vol.. A constituição adota uma definição quase classicamente liberal de cidadania. É possível ver isto. Juntos a estes gêneros chegou a industria moderna. Ahmedabad. Calif. 1963. 23 William E. como mostra o juvenil e ingenuo poema de Michael Madhusudan Dutt. Masks of Conquest: Literary Studies and British Rule in India. um sistema legal quase burguês (ainda que colonial) sustentado por um Estado que o nacionalismo haveria de ganhar e fazer seu. pp. onde no ápice destas descasava o Estado moderno19. já está à nossa vista23. Hind Swaraj (1909). Gandhi se deu conta disto desde 1909. 19 Ver o capítulo sobre Nehru em Chatterjee. este indivíduo moderno. a autobiografia e a história18. de Katherine Leary. 128-141. A narração da transição que tenho examinado avalizava estas instituições e por sua vez estava apontada por elas. in: Collected Works of Mahatma Gandhi. Segundo a fábula de sua constituição. como afirma William Connolly em Political Theory and Modernity. “carência” e “insuficiência” que de forma tão ubíqua caracterizam o sujeito falante da história “indiana”. medicina moderna e direito burguês. 20 M. os indianos de hoje são todos “cidadãos”. 10. K. Individuality.. Se o Estado moderno e o individuo moderno. On Autobiography. Pensar esta narração era pensar estas instituições. 1989. o primeiro passo de um esforço crítico deve surgir de um gesto de inversão22. In: Thomas C. Reconstructing Individualism: Autonomy. Political Theory and Modernity. 1989. History and Theory. New Delhi. 1983. astutamente afirmou em seu livro Hind Swaraj que isto era “fazer inglesa a Índia” ou. a tecnologia. trad. passim. 15. Gandhi.na Índia durante o século XIX. no súbito florescimento nesta época dos quatro gêneros básicos que ajudaram a expressar o ser moderno: a novela. para nós indianos. 1989. Esta “Europa”. 22 Ranajit Guha. Elementary Aspects of Peasant Insurgency. capítulo 2. Entretanto seu gesto me parece útil para desenvolver a problemática de histórias escritas fora da metrópole. Heller et al. Comecemos por onde a narração da transição termina e leiamos “plenitude” e “criatividade” nos lugares onde esta narração nos pede para ler “carência” e “insuficiência”. Londres. in Colonial India. em muitos aspectos. pp. 53-63. Stanford. Minneapolis. eds. pp. segundo suas palavras.. O nacionalismo de Gandhi deixa sua crítica desta “Europa”. mas não é minha intenção ver seu texto como um fetiche. em uma posição comprometida. e pensar o moderno ou o Estadonação era pensar uma história cujo sujeito teórico era Europa. “Fame and Secrecy: Leon Modena’s Life as an Early Modern Autobiography”. Ver também Philippe Lejeune. p. Nationalist Thought. nº 27 (1988): 103-118. III Agora irei abordar novamente os temas do “fracasso”. Como nas práticas do campesino insurgente da Índia colonial. Ao se referir às demandas dos nacionalistas indianos. então o fim da história. Connolly. “Boundaries and Sense of Self in Sixteenth-Century France”. por exemplo. Ver Natalie Zemon Davis. ter “um regime inglês sem os ingleses”20. Contudo. Ver também David Bennett. o cidadão. 163-184. não são mais do que dois lados inseparáveis do mesmo fenômeno. a medicina. desde já não era senão uma obra de ficção que o colonizador contou aos colonizados no processo de fabricação da dominação colonial21. “Postmodernism . a biografia. e Davis. 1986. 21 Ver o estudo de Gauri Visvanathan. Oxford. cuja vida política e pública é 18 Não estou afirmando que todos estes gêneros emergiram necessariamente com o individualismo burguês. and the Self in Western Thought. de mais ferrovias. and Culture. Deveria fechar esta declaração mencionando que se refere principalmente às autobiografias publicadas entre 1850 e 1910. Nossa leitura de Chaudhuri se vê entorpecida em parte por nossa falta de conhecimento da intertextualidade de sua prosa – por exemplo. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society.Cambridge. A vida pública indiana poderá imitar o papel da ficção legal burguesa da cidadania – normalmente esta ficção se encenava como uma farsa na Índia – mas. Não é que a forma da vida privada burguesa não tenha chegado com a dominação europeia. mas raras vezes plasmam retratos de um sujeito interminavelmente interiorizado. 25 Ver Sumit Sarkar. no segundo volume de sua aclamada e premiada autobiografia (na página 963). Desde meados do século XIX. mas proibitivo. Em todo caso. ed. até mesmo. . autobiografias. 49. pois aborda o que Chaudhuri “lembra” e “esquece” de “sua experiência da primeira noite”. O indivíduo burguês não nasce até que descubra os prazeres da vida privada. O único parágrafo.. existem novelas. o que existe acerca da vida privada burguesa e da sua história? Qualquer um que tenha tratado de escrever historia social “a la francesa” com material indiano se daria conta de quão impossivelmente difícil é esta tarefa25. pois esta vida privada burguesa.vivida na cidadania. Só vi um sorriso muito and Vision: Ways of Seeing (at) the End of History”. Nossas autobiografias são notavelmente “públicas” (portadores de construções da vida pública que não são necessariamente modernas) quando são escritas por homens. de modo que a elaboração de seu eu adquire dimensões diferentes. p. Essays on Economics. Mass.. cartas. Ainda assim. ainda que espero ter a oportunidade de examiná-la especialmente em outro luga. e contam a história da família quando são escritas por mulheres 26. como nos lembra Jürgen Habermas. cartas e autobiografias indianas. 1989. novelas e. no que dizemos aos nossos psicanalistas. in Iqbal Khan. as autobiografias de estilo confessional brilham por sua ausência. também deveria ter um eu “privado” e interior que se expõe sem cessar em diários. Uma vez que as mulheres se integra à esfera pública no século XX. “Social History: Predicament and Possibilities”. está “sempre orientada à um público [Publikim]”24.. diários. 256-274.] e a deixaram de pé em frente a mim. 26 Por razões de espaço.. Fresh Perspective on India and Pakistan. Oxford. pode ser que exista uma influência de uma recusa puritana em revelar “demais”. Politics. este fragmento continua sendo um eloquente exercício de construção de uma memória. Vela a intimidade com expressões como “tampouco lembro” ou “não sei como foi que” (para não mencionar o muito freudiano “descarrega minha consciência”) e este velo auto-construído sem dúvida parte do eu que fala: Me sentia terrivelmente incomodado ante a perspectiva de conhecer como esposa uma menina que era para mim uma perfeita estranha e quando a trouxeram [. Devo explicar que se tratava de um matrimônio arranjado (celebrado em Bengala em 1932) e Chaudhuri achava que sua esposa não apreciaria seu recém adquirido. 1985. deixarei esta afirmação sem fundamentar. que Nirad Chaudhuri dedica a descrever a experiência de sua noite de bodas é um exemplo tão bom como qualquer outro e vale apena citá-lo inteiramente. 24 Jürgen Habermas. não tinha nada para dizer. passatempo de comprar discos de música clássica ocidental. pp. Mas esta é uma categoria muito especial de “vida privada” – de fato se trata de uma “vida pública” diferenciada. de aliança e mestiçagem – com outras narrações do eu e da comunidade que não consideram o laço entre o Estado e o cidadão como o ápice da construção do social28. T. Então disse: “B. esta é a única passagem em que a narração da participação de Chaudhuri na vida pública e nos círculos literários se interrompe para dar lugar a algo que se aproxima do íntimo.. pp. raras vezes. contudo.tímido em sua cara e timidamente se aproximou e sentou junto a mim na borda da cama. Nós os hindus [. Harmondsworth. O. Negava com a cabeça enquanto dizia: “não”. H. Me senti animado[.. Londres. o ser privado interior que sem cessar trata de chegar à um público? O público sem o privado? Acaso seria mais um outro exemplo do “incompleto” da transformação burguesa da Índia? Estas perguntas foram provocadas pela narração da transição que. Depois de um momento eu lhe perguntei timidamente: “Ouve música européia?”. como já disse. [Chaudhuri ressalta em uma nota de rodapé: “Desde já. Respondeu com a cabela querendo dizer “sim”. N”. * Termo originário do francês que corresponde à mulher que faz anúncios públicos de forma pejorativa ou até usando de seu corpo (N. Isso me tranquilizou. segundo o qual. situa o individuo moderno no fim mesmo da história.] Então trocamos as primeiras palavras. . 215-222. E. se é que o fez. perguntei mais uma vez: “Podes soletrá-lo?”. “o respeito à lei”). Mas enquanto uma consequência do imperialismo europeu na Índia foi introduzir o Estado moderno e a ideia da nação com seu discurso concomitante de “cidadania”. divide a figura do indivíduo moderno nas partes “pública” e “privada” do eu (como o jovem Marx alguma vez assinalou em seu On the Jewish Question). Vou cuidar muito bem de você”.27 O desejo de ser “moderno” clama em cada oração dos dois volumes da autobiografia de Chaudhuri. 1987..] consideramos os extremos – totalmente vestidos e totalmente despidos – gestos de modéstia e tudo o que fica entre eles como grosseiramente sem pudores. A escrita feminina. Assim. de maneira direta e começar o romance de qualquer maneira que pudesse. Não obstante me arrisquei de novo e desta vez lhe perguntei: “Já ouviu mencionarem um homem chamado Beethoven?”. E. 1921-1952. nas 1500 e poucas páginas que escreveu em inglês sobre sua vida. o apalpou e disse: “como está fraco. estes temas tem existido – em uma reação contestatória. Great Anarch!: India. recostados um ao lado do outro. por sua vez. V.). Não quero dar à autobiografia de Chaudhuri uma representatividade que não tem. Seu nome lendário é agora símbolo da história cultural do encontro hindu-britânico. nós dois acabamos sobre as almofadas. totalmente vestidos. O horrível suspense sobre a música européia havia despertado de novo em minha cabeça e decidi descarregar minha consciência de uma vez e enfrentar o sacrifício. esta história de um varão indiano self-made que não tinha igual em seu zelo pela vida pública do cidadão e que. pp. On the Jewish Question. Chaudhuri. Ela pegou um dos meus braços. Nenhum homem decente quer que sua esposa seja uma allumeuse*”.. Não sei como foi que depois disso. Ingl.] e terminamos dormindo. é diferente e os acadêmicos apenas começaram a explorar o mundo da autobiografia na história da Índia. reproduz na escrita a outra cara do cidadão moderno. Não obstante. se fosse necessário. 27 Nirad C. 28 Ver Karl Marx. Não lhe agradeci e tampouco lembro. mas não me satisfez por completo. mediante a ideia dos “direitos do cidadão” (quer dizer. en Early Writings. Como temos de ler este textos. 350-351.. 1975. apesar de ter ouvido as palavras e ter sentido que me tocava. Thy Hand.T. E. Reluctant Debutante: Response of Bengali Women to Modernisation. por assim dizer. mas quero demonstrar que ultrapassa seus limites. de um capítulo da história da vida doméstica burguesa na Bengala colonial. inferior o que se tornaram os ideais da vida doméstica burguesa de meados da época vitoriana30. também. Londres.Esta afirmação.. J. Subaltern Studies. 1973. 1849-1905. “igualdade” e “direitos”. 1984. em nome do moderno (minha Europa hiperreal). 1983. em uma madura crítica imperialista à vida doméstica indiana-hindu. que aparecerá em David Arnold y David Hardiman. traducción de K. The Changing Role of Women in Bengal. Por isto não é surpresa que as ideias relacionadas com a vida doméstica. 8. IV O que apresentarei em seguida é o esboço. assim como as ideias de indivíduo “moderno”. Isto porque. o Estado. Folca. não estará sujeita à discussão. Como tem mostrado Meredith Borthwick. “liberdade”. N. passarei a examinar agora um fragmento desta história contestada na qual a vida privada moderna e o indivíduo moderno se mesclaram na Índia colonial29. A “história” é precisamente o lugar onde a luta continua para se apropriar.. Sobre a história da palavra civilização. O regime britânico instituiu na vida indiana a divisão idealística tricotômica sobre o qual descansam as estruturas políticas modernas. Princeton. em parte. A New Kind of History: From the Writings of Febvre. É que estas outras construções do eu e da comunidade. estas narrações amiúde manifestam por si só uma consciência anti-histórica. nunca terão o privilégio de fornecer às meta-narrações ou teleologias (supondo que não pode haver uma narração sem pelo menos uma teleologia implícita) de nossas histórias. são certas operações culturais por meio das quais os “indianos” desafiaram e modificaram estas ideias recebidas de tal maneira que puseram em dúvida dois postulados fundamentais que sustentam a noção de “modernidade” – a família nuclear baseada no matrimônio como sociedade e a construção secular e histórica do tempo. Entretanto. ainda que sejam documentáveis. então. O material – principalmente textos escritos em bengali entre 1850 e 1920 para ensinar as mulheres esse tema tão vitoriano: a “ciência doméstica” – se refere à classe média hindu de Bengala. destas outras localizações da memória. a sociedade civil e a família (burguesa). 30 Meredith Borthwick. 1849-1905. Devo esta referência à Peter Sahlins. ver Lucien Febvre. a privacidade e o individualismo burguês chegaram à Índia através do regime britânico. implicam posições de sujeito e configurações da memória que desafiam e sufocam o sujeito que fala em nome da história. A questão da “condição das mulheres” na Índia novecentista era parte desta crítica. pp. . eds. ou seja. a bhadralok ou “gente decente”. Ghulam Murshid e outros acadêmicos. Ghulam Murshid. na qual se considerava. quer dizer. Rajshahi. o que quero destacar aqui com o exemplo da bhadralok.. in Peter Burke. ed. Para ilustrar estas proposições. 219-257. vol. “Civilization: Evolution of a Word and a Group of Ideas”. na Índia do início do século XIX. Em passagens notáveis por sua 29 Ver um exame mais detalhado do que se segue em meu texto “Colonial Rule and the Domestic Order”. a ideia europeia setecentista de “civilização” culminou. Brighton. assim. da “igualdade” e do “despertar”. À medida em que a sociedade se refina com o desfrute de suas conquistas [. foi central para as estratégias discursivas. certos termos.. Um estado de dependência mais estrito e humilhante que este está estipulado para o sexo débil. da qual emergem lentamente na medida que a civilização avança [. Women in Western Philosophy. 32 Borthwick. Ithaca. em geral as classes médias da Índia sentem uma responsabilidade nesta acusação. The History of British India. vol. 1987. então temos aí o surgimento de uma característica interessante.. segundo as quais se criou uma posição de sujeito que permitia ao “indiano” falar. Ver também Joanna Hodge. Women and the Public Sphere in the Age of the French Revolution. 110-122. 1988. editado por H. eram mais discutidos acaloradamente do que outros. 1.31 Como é bem conhecido. Era uma palavra que era discutida apaixonadamente e nos equivocaríamos se acreditássemos que as paixões refletiam uma simples e aberta batalha entre os sexos. O que a literatura bengali sobre a educação das mulheres encenava era uma batalha entre a construção nacionalista de uma norma cultural da família patriarcal. 127-158.]. Wilson. M. Changing Role. “Rouseau’s Heirs: Primitivism.combinação de igualitarismo e orientalismo. É que nesta literatura sobre a educação das mulheres. 309-310. Os temas da “disciplina” e da “ordem” eram críticos na hora de dar forma às 31 James Mill. Ingl. James Mill em seu The History of British India (1817) juntava a temática família e a temática nação com a teleologia da “liberdade”: A condição das mulheres é uma das circunstâncias mais notáveis nos costumes das nações [. in Ellen Kennedy y Susan Mendus. mas a palavra liberdade. editores.. N. havia um grau de consenso sobre a a conveniência da “disciplina” e “higiene” doméstica como práticas que refletiam um estado moderno. Simon During.. burguesa e nuclear que estava implícito no discurso europeu-imperialista-universalista sobre as “liberdades” do individualismo. e o ideal de uma família patriarcal. . Romance. Londres. Por exemplo. and Other Relations Between the Modern and the Nonmodern”. Se alguém vê esta história como parte da história do indivíduo moderno na Índia. tradução de T. 1840. Landes.. patrilinear e estendida. 1967.]. Grande parte deste discurso sobre a educação das mulheres era emancipacionista na medida que falava a linguagem da “liberdade”. “Women and the Hegelian State”. A história das nações incultas representa uniformemente as mulheres em um estado de abjeta escravidão. A disputa sobre esta palavra. 33 O texto clássico em que esta suposição tem sido trabalhada até se converter em uma filosofia foi Philosophy of Right de Hegel. Y. Knox.] a condição do sexo débil pouco a pouco melhora.. É esta posição de sujeito que quero examinar aqui com mais detalhe. Joan B. e recebia a forte influência dos ideais ruskinianos e da idealização da vida doméstica burguesa 32. no final das contas. Do início do século XIX em diante. até que se associa em condições de igualdade com o homem e ocupa o lugar de auxiliar voluntário e útil. pp. patrilocal.. da cidadania e da sociedade civil33. entre os hindus dificilmente pode ser concebido. apenas funcionava no indicador de tal consenso social. pp.. se desenvolveu em Bengala (e em outras regiões) um movimento para reformar as “condições das mulheres” e para lhes dar uma educação formal. A dita palavra ficou assimilada à necessidade nacionalista de construir fronteiras culturais que supostamente separavam o “europeu” do “indiano”. H. pp. Oxford. sendo um outro termo importante da retórica do moderno. .]... 35 Desenvolvo este argumento de forma mais detalhada em Dipesh Chakrabarty. o que quero ressaltar são as diferenças entre ambos.].. Para citar um texto bengali sobre a educação das mulheres publicado em 1877: O lar de qualquer europeu civilizado é com a morada dos deuses. disciplina”. enquanto que ao seu redor haverá [algumas] cadeiras acomodadas com esmero [e] tudo brilhando de tanta limpeza. uma construção colonial.] pó voando no ar. cinzas acumuladas por aí. 1990.. A partir daí a família “indiana”. como um respeito à lei estabelecida pelo Estado. . a escrita da história executa tal separação sem cessar. “cadeia”] tivesse manifestado para se comprazer a vista [dos homens]. Não há ordem em nenhum lado. [Um monte de] esterco que tortura os sentidos [. separadas pelo tempo) é precisamente o eixo sobre o qual o sujeito colonial se separa de si mesmo. e isto era possível devido a educação de “suas” mulheres.. South Asia. ficava mal pontuada nos escritos nacionalistas sobre a vida doméstica moderna. pp.. todos os objetos da casa estão tão sujos que só provocam asco. mas requeria certos procedimentos para redefinir o eu. A “disciplina” era vista como a chave do poder do Estado colonial (quer dizer. sob as quais aportavam o valor e as virtudes da disciplina. Modernity. vol. O desejo da ordem e da disciplina na esfera doméstica pode ser vista.. uma criança melequenta urinando no solo e levando a terra úmida à boca [. nada parece sujo ou fede [. Todo o lugar está dominado pelo fedor que parece andar solto por toda parte [. Women. modernizador. Streesiksha. É como se [a deusa] da ordem [srinkhala. No centro da habitação haverá uma mesa com toalha e com um ramo de flores acima. E passo agora ao outro importante aspecto do europeu moderno. “ordem. 1877. disposto em seu lugar e decorado. Entretanto. moderno). ou seja. 34 Anónimo. assim. moscas voando por toda parte [. ordeiros e pontuais em tudo e em cada um dos detalhes de suas vidas. Baltimore. Em outras palavras. como um correlato do desejo nacionalista. não obstante.].fantasias nacionalistas da arte e do poder. mas a conexão entre disciplina pessoal e a disciplina na vida pública foi revelado no que os nacionalistas escreveram sobre a higiene doméstica e a saúde pública. 28-29. Cada objeto da casa está limpo. 1. in Public: Between Banners and Ballots. esta separação é a própria história. da narração da transição que temos visto. and India”. A conexão é reconhecivelmente modernizadora e é o que o indiano moderno compartilha com o europeu moderno35.. o movimento duplo de reconhecimento pelo qual conhece seu “presente” como o lugar da desordem e. uma construção histórica da temporalidade (medieval-moderna. no contexto da discussão da vida doméstica burguesa na Índia colonial. Aprofundar neste ponto ultrapassa os limites deste ensaio. srinkhal. “Open Space/Public Place: Garbage. 1825-1880. Falando de outra forma. Calcuta.].. Dizia-se que os britânicos eram poderosos porque eram disciplinados. é uma repetição. por onde também se separa deste espaço ao desejar uma disciplina que só pode existir em um futuro imaginado mas histórico.34 Esta divisão do eu do sujeito colonial. a retórica da “liberdade” e da “igualdade”. Mas entre em uma casa de nosso país e sentirá como se seu destino tivesse te transportado para lá para pagar por todos os pecados de sua vida. O argumento sobre a “liberdade” – nos textos que vamos tratar – era discutido em torno da Mary Ryan. de uma disciplina similar na esfera pública. uma mulher que escrevia para a revista feminina Bamabodhini patrika. escrevo inglês.). a mulher devia ser agora um indivíduo moderno. “livre”. minhas queridas! Se temos alcançado o verdadeiro conhecimento. segundo as quais a esposa também devia ser uma amiga. editado por Kshetra Gupta. que recebia educação inglesa. quer dizer. ou para dizer de outro modo. de decadência absoluta): Leio inglês. Como diria Kundamala Devi. Milton ou Locke na menor oportunidade e usa sua educação com arrogância para ignorar seus deveres junto à sua família estendida. amiúde tema de zombaria e desprezo na mesma narrativa e ensaística bengali que exaltava as virtudes da disciplina e da racionalidade científica na vida pessoal e pública. Calcuta. que afirma sua individualidade acima dos reclames da família conjunta ou estendida.T. 1981. A liberdade era usada para marcar uma diferença entre aquele que era “indiano” e o que era “europeu-inglês”. Indira Devi dedicaria sua Narir ukti * Termo que designa a qualidade de companheiro. Porto para os cavalheiros e Conhaque para os heróis. um delegado magistrado. . Devo mencionar aqui que o indivíduo moderno.36 Uma conexão similar entre o indivíduo moderno. Esta ironia tinha muitas expressões. 36 Dinabandhu racanabali.questão dos ideais vitorianos do matrimônio como sociedade (companionate*). penso em inglês. Em 1920. para a cultura da classe média bengali da época. encontra sua indignação com o mundo no álcool e na luxúria. O soberbo arrogante de seu domínio do inglês não tarda em derivar inevitavelmente ao tema das copas (sinônimo. em 1870: “Oh. p. Casamento realizado entre pessoas que são amigas (N. O personagem literário bengali mais conhecido que representa esta censura moral da individualidade moderna é Nimchand Datta na obra teatral Sadhabar ekadashi (1866) de Dinabandhu Mitra. Isto não é próprio de uma ama da casa bengali”37. Esta relação metonímica entre o amor à educação “moderna” inglesa (que simbolizava o indivíduo romântico na Bengala oitocentista) e o escorregadio caminho do alcoolismo fica sugerida na obra mediante uma conversação entre Nimchand e um funcionário bengali da burocracia colonial. e o egoísmo também se fazia presente na literatura sobre educação feminina. p. o que gostaria de tomar? – Rosé para as damas. A ideia da “verdadeira modéstia” era utilizada para armar esta imagem da “verdadeira” mulher bengali38. A mulher ultra livre se comportava como uma memsahib (mulher europeia). faz citações de Shakespeare. Nada ameaçava mais o ideal da família estendida bengali-indiana (ou a exaltada posição da sogra nessa estrutura) que esta ideia envolta de noções da vida privada burguesa. 138. 105. Nimchand. 38 Examino esta questão com mais profundidade em Chakrabarty. egoísta e desenvergonhada. em volta da questão de se a esposa devia ser também uma amiga do esposo ou não. meu bom amigo. Changing Role. “Colonial Rule”. A construção era descaradamente nacionalista (e patriarcal). sonho em inglês – note-se que não são criancices – agora me diga. echpechifico em inglês. 37 Borthwick. então não deem lugar em seus corações para o comportamento da memsahib. quase sempre aparece na literatura bengali do final do século XIX e do início do XX como uma figura inquietada por problemas. Narir ukti.. Assim se combatia a ideia 39 Indira Devi.] para libertar a alma da escravidão dos sentidos são as primeiras tarefas da liberdade humana [. segundo justificavam vários escritores. A “liberdade” no Ocidente. 40 Deenanath Bandyopadhyaya.(Uma mulher fala) – curiosamente se trata de uma defesa do modo de ser da mulher bengali moderna contra as críticas de escritores (em sua maior parte vinda dos homens) – às gerações de mulheres bengali ideais. Cambridge. Ver uma genealogia de como se usavam os termos escravidão e liberdade no discurso colonial da Índia britânica em Gyan Prakash. 1920.T. . significava jathechahachar. 30-31. a capacidade de servir e obedecer voluntariamente. Dizia-se na Índia. liberdade significava estar livre do ego.. Assim rezava o discurso bengali acerca da vida doméstica moderna em uma época colonial onde o surgimento de uma sociedade civil e de um Estado quase moderno já tinha introduzido as modernas questões do “público” e do “privado” nas vidas da classe média bengali. o direito à autocomplacência.].. o discípulo ao guru. mas suficientemente “modesta” para ser submissa e desprendida – estava ligado aos debates acerca da “liberdade”. com frequência não conseguiam apreciar esta distinção crucial (como arguiam alguns nacionalistas) entre a ama de casa e o serviço doméstico. Calcuta.). É óbvio que os empregados não estavam incluídos ainda na Índia na imaginação nacionalista.40 Há um viés irônico nesta espécie de teoria que deve ser destacado. É por isto que nas família indianas os meninos e as meninas se subordinam aos pais. as quais ela escreve: “Impávidas ante a natureza. e a dignidade e prestígio [próprios] à da comunidade [samaj]. Fica bastante claro que esta teoria da “liberdade na obediência” não se estendia aos empregados domésticos. Note-se como os termos liberdade e escravidão mudam suas colocações na seguinte citação: Poder se subordinar aos demais e ao dharma [dever-ordem moral-conduta correta] [. o estudante ao professor [. 1887.. pp. Calcuta.. dedicatória. se opor ao novo patriarcado como uma versão redefinida do anterior (ou dos anteriores). Nanabishayak prabandha. que comentavam a condição atada das mulheres indianas. de plácidas palavras. Pode ser crença ou sabedoria popular (N. como tenho tentado demonstrar. o rei ao dharma [. as esposas aos maridos e aos sogros. incansável em seu espírito de serviço [aos demais].. e capaz de contentar-se com muito pouco”39.. que à miúde se mencionava nesta literatura como exemplo dos “verdadeiramente” atados. o clichê e a banalidade. [enquanto que] se comovia com facilidade pelo sofrimento dos demais. os nacionalistas pretendiam demonstrar que os observadores (europeus).]. As idées reçues* burguesas sobre a vida doméstica e as conexões entre o doméstico e o nacional se modificaram aqui de duas maneiras significativas. fazer o que um queria..]. Este modelo da mulher bengali/indiana “moderna” – suficientemente educada para apreciar as modernas regras do corpo e do Estado. negligente até em seus próprios prazeres. Bonded Histories: Genealogies of Labor Servitude in Colonial India. o povo ao rei. * Termo usual no francês que representa uma opinião entre o estereótipo. 1990. Uma estratégia. era contrapor a norma cultural da família estendida patriarcal aos ideais burgueses patriarcais do matrimônio como sociedade. “verdadeiramente modesta” e “verdadeiramente indiana” adquire. Londres. pp. uma devoção e uma castidade voluntária43. com o prolongamento deste sentir. 1978. em cujas graças a família estendida (e o clã. Bombay. editor. considerada como a esposa do deus hindu Vishnu até o ano 400 d. H. uma autoridade sagrada ao subordinar a questão da vida doméstica às ideias religiosas da qualidade auspiciosa da mulher que unia o celestial ao humano em uma conceitualização do tempo que só podia ser anti-histórica. p. Quando a mulher não era consequente com seus ideais era dito que a família (estendida) e a linhagem familiar eram destruídas pelo espírito de Alakshmi (nãoLakshmi). pp. o que importa para nós são as duas negações sob as quais descansa este momento particular de subjetividade: a negação. Não há dúvida de que o sujeito falante aqui é nacionalista e patriarcal. Bharatlakshmi) vivia e prosperava. era posto um limite no ponto em que a modernidade e a exigência de uma vida burguesa ameaçavam o poder e o prazer da família estendida. en R. da vida privada burguesa e. 469-471.. Goddess Lakshmi: Origin and Development. e até mesmo. vol. unida em completa harmonia com seu esposo (e com sua família) mediante uma submissão. mesmo que de maneira ambígua.. p. Se se empenham em se superar na esfera do dharma e do conhecimento [.. nesta discussão da educação das mulheres. Hindu acar byabahar. D. Manomohan Basu.da privacidade moderna. 1873. Delhi. em nome da família estendida. Berkeley. A figura da mulher “verdadeiramente educada”. 42 Bikshuk [Chandrasekhar Sen]. como o modelo da esposa hindu. uma lealdade. Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition. Majumdar. C. 2. era mobilizar. 43 David Kinsley. no panteísmo cotidiano das famílias hindus. 77. De forma nenhuma o espaço cultural invocado por este impulso anti-histórico era harmonioso 41 Peter Burke.] haverá uma melhoria automática da [qualidade de] vida social”42. Calcuta. A expressão panteísmo cotidiano me foi sugerida por Gayatri Chakravorty Spivak (comunicação pessoal). durante muito tempo tem sido adorada no hinduísmo popular. Calcuta. 1951. Enquanto a educação das mulheres e a ideia da disciplina como tal raras vezes suscitavam oposições neste discurso sobre o indivíduo moderno na Bengala colonial.C. Assim lemos em uma panfleto: “As mulheres são as Lakshimis da comunidade. Upendranath Dhal. . The Renaissance Sense of the Past. Entretanto. 1988. Nationalist Thought. 1876. 1970. ou ao menos contestação. a negação do tempo histórico ao converter a família no lugar onde o sagrado e o secular se fundiam em uma representação perpétua de um princípio que era celestial e divino. Dizia-se que a verdadeiramente moderna ama de casa seria tão auspiciosa que marcaria o eterno retorno do princípio cósmico encarnado na deusa Lakshmi. as formas e figurações da memória coletiva que desafiavam. “Minor Religious Sects”. igualmente significativa. Lakshmi. 19-31. sujeito que emprega as degastadas categorias orientalistas de “Oriente” e “Ocidente”44. a deusa do bem estar doméstico. Bhattacharya. The History and Culture of the Indian People: The Age of Imperial Unity. Ki holo!. com igual importância. 60. o inverso obscuro e malévolo do princípio de Lakshmi. a separação aparentemente absoluta do tempo “sagrado” e “secular” onde se baseava e se baseia a própria ideia moderna (“europeia”) de história41. A outra estratégia. a nação. 44 Veja o capítulo dedicado a Bankim em Chatterjee. Mas agora tudo é tão diferente! Si Dada sugere uma coisa. M. esposa do famoso reformista social do século XIX que chegou à presidência de Bombay... contestada tanto pela luta das mulheres como pelas lutas das classes subalternas. ao combinar os temas contraditórios do nacionalismo.. 77. curiosamente uma das principais fontes de oposição aos esforços de Ramabai eram (além dos homens) as demais mulheres de família. Já estás fazendo mais do que as mulheres europeias.]. Não há dúvida de que elas.. Este exemplo tomarei da autobiografia de Ramabai Ranade. das lutas das mulheres contra os homens e ao mesmo tempo oposta à amizade entre 45 Ranade: His Wife’s Reminiscences. pois também falavam em nome de seu próprio sentido de repeito a si mesmas e às suas próprias formas de luta contra os homens: Não deverias ir à essas reuniões de verdade [disseram a Ramabai] [. 1963.. assim que me conformarei com um exemplo. traducción de Kusumavati Deshpande. As normas anti-históricas da família estendida patriarcal. Se darão por vencidos por puro aborrecimento [. Mas estas lutas não necessariamente seguem linhas que nos permitem construir narrações de emancipação pondo claramente de um lado os “patriarcais” e do outro os “liberais”. Na verdade as mulheres não deveriam sentir a proporção do quanto devem fazer? Se os homens mandam fazer cem coisas.. inclusive. G. Não tens que dizer não: mas no final de contas. p. A história da individualidade “indiana” moderna fica presa em demasiadas contradições para prestar semelhante tratamento.. da ideologia do clã patriarcal. É por isto que esta enorme família [. os homens não entendem de coisas práticas! [.. Na busca deste ideal. Renade. E depois. por exemplo.] A boa mulher [no passado] nunca era tão frívola [. Ou isto: É ela mesmo [a Ramabai] que gosta desta frivolidade de acudir às reuniões. Dada [o senhor Ranade] não parece tão entusiasmado. Ramabai começou a compartilhar o compromisso de seu esposo com a vida pública e amiúde tomaria parte (na década de 1880) de reuniões e deliberações públicas de homens e mulheres reformistas. Como ela mesmo disse: “foi nestas reuniões que soube o que era uma reunião e como devia me conduzir em uma delas”45.].. Contudo. Como podemos viver então com um sentido de respeito à nós mesmas e como podemos aguentar tudo isto? (84-85) Estas vozes.]. com o qual seu esposo de ânimos reformistas via como a forma de laço conjugal mais civilizada. A luta de Ramabai Ranade para salvar seu respeito a si mesma em parte era contra a “velha” ordem patriarcal da família estendida e em favor do “novo” patriarcado do matrimônio em sociedade. esta mulher quer fazer três. as mulheres deveriam fazer dez ao todo. mesmo quando o pensamento nacionalista se via obrigado a retratá-lo assim..]. Não disponho aqui de espaço para desenvolver este ponto. Delhi.. . a sogra e as irmãs de seu esposo. Mas é muito instrutivo escutar suas vozes (segundo se translucidam no texto de Ramabai). não precisa fazê-lo. falavam em nome da antiga família estendida patriarcal. Inclusive se os homens querem que faça estas coisas.ou estava livre de conflitos.] poderia viver junta de maneira decente [. deverias ignorá-los. só podiam ter uma existência debatida.. maridos e esposa. V Com tudo. minha Europa hiperreal continuará regressando também na dominação das histórias que contamos. Ilustrarei isto com um exemplo tomado da vida de Gandhi. a partir de então. A evidência do que se tem chamado “a negação da vida privada burguesa e do sujeito histórico” é reconhecida. E enquanto assim for. amiúde tem sido dada na esfera do não-moderno. nos lembram as profundas ambivalências que caracterizaram a trajetória da vida privada moderna e da individualidade burguesa na Índia colonial. com um conteúdo local”. como um episódio maior da marcha universal e (desde seu ponto de vista. pelas mulheres] feita para eles. os historiadores. poemas e outras formas de mobilização nacionalista – o que permitiu aos “indianos” fabricar um sentido de comunidade e recuperar para si mesmos uma posição de sujeito que se dirigisse aos britânicos. “O moderno”. continuará sendo entendido. finalmente) vitoriosa na cidadania. como tão acertadamente disse Meaghan Morris ao examinar seu próprio contexto australiano. 46 Meaghan Morris. “Metamorphoses at Sydney Tower”. Não obstante. . New Formations 11 (verano de 1990). mas prontamente se fazia evidente que as mulheres da casa não haviam comido durante todo o dia. mecanicamente ou de outra forma. por exemplo. Isto só nos deixa com a tarefa de reproduzir o que Morris chama “o projeto da inoriginalidade positiva”46. como um intelectual indiano lembra da experiência: Os homens voltavam de seus escritórios pela tarde e falavam da comida preparada pela família [ou seja. então. 10. mediante as quais tem sido levado a cabo as lutas no subcontinente indiano. Na luta contra o domínio britânico. de fazer com que a história da Índia seja vista. para destacar a importância política desta manobra cultural por parte do “indiano”. algo que já tenha sido ocorrido em outra parte e que se reproduzirá. “pai da nação”. jejuando em protesto contra o comportamento de seu próprio povo. a “originalidade” – aceito que não é o termo mais adequado – das linguagens. Meu exemplo se remonta ao ano de 1946. mediante manobras que lembram o velho ardil “dialético” tirado da manga da “negação da negação”. supostamente mais elevado. Não é preciso analisar a ideologia do patriarcado clânico. então. p. as arrumam para negar uma posição de sujeito a esta voz de ambivalência. para reconhecer que a metáfora da família estendida patriarcal e santificada foi um dos elementos mais importantes na política cultural do nacionalismo indiano. E ele. É a figura do cidadão que fala através destas histórias. Gandhi estava na cidade. no Estado-nação e nos temas da emancipação humana enunciados no curso da Ilustração europeia. amiúde foi o uso desta linguagem – em canções. “como uma história conhecida. mas é subordinada em seus relatos com o propósito. Houve em Calcutá horrorosos distúrbios entre hindus e muçulmanos por conta da partilha do país em Índia e Paquistão. as construções anti-históricas do passado amiúde proporcionavam formas muito poderosas de memória coletiva50. 1987. Elementary Aspects. Nation and Narration. October: The First Decade. “o sentimento de comunidade que pertence aos encadeamentos e às organizações políticas nacionais” com “esse outro sentimento de comunidade cujo modelo estrutural é a família [ou o clã estendido]” 48. 1-7. que em variadas lutas que tiveram lugar na Índia colonial. de estilo “mimético”51. eds. y Ashis Nandy. Se insistisse.. com justeza. a esposa ou a mãe confessaria que não podia entender como podiam comer quando Gandhi estava morrendo pelos crimes praticados por eles mesmos. vols. existe este duplo vínculo através do qual o sujeito da história “indiana” articula a si mesmo. p. A história indiana. 1989. pp. começou a se sentir dor [.. Como tal sujeito dividido.. 129-138 (N.T. Londres. Mass. e sim insistir que ao mesmo tempo haviam também tendências contrárias. Urbana. Homi K. Delhi. In: O local da cultura.. Marxism and the Interpretation of Culture. en Annette Michelson et al. A narração da 47 Amiya Chakravarty.[Aparentemente] não tinham tido fome. Da mímica e do homem – a ambivalência do Discurso Colonail. 1976-1986 Cambridge. instrumentos da memória coletiva que eram tão anti-históricos como anti-modernos49. The Intimate Enemy: Loss and Recovery of Self Under Colonialism. Gandhi’s Political Discourse. é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da modernidade.. e também Bhabha.. Delhi. 1998.47 Não há motivos para tomar esta descrição de forma literal.. citado por Bhikhu Parekh. 49 Véase Subaltern Studies. inclusive pelos punhos dos escritores socialistas ou nacionalistas mais dedicados. alguns deles fecharam voluntariamente por ordem de seus proprietários [. dentro do contexto das instituições “modernas” e as vezes em nome do projeto modernizador do nacionalismo..]. 1983. Belo Horizonte: Ed. nas palavras de Gaytri Spivak. vols. eds. 50 Subaltern Studies.]. O valor do sentimento tinha sido restabelecido. 317-326 [em português ver BHABHA. p. “Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse”. Isto não significa negar a capacidade dos “indianos” para atuar como sujeitos armados com o que nós das universidades reconheceríamos como “um sentido da história” (o que Peter Burke chama “o renascimento do passado”). 1988. precisamente ao mobilizar. y Guha. p. uma “Europa” construída pelos relatos que tanto o imperialismo como o nacionalismo tem contado aos colonizados. 1982-1992. 51 Homi Bhabha. continua sendo uma imitação de um certo sujeito “moderno” da história “europeia” e tem aspectos da busca por representar uma lamentável figura de carência e fracasso. A história colonial indiana está cheia de exemplos onde os indianos se arrogaram a posição de sujeito para eles mesmos.)]. 1990. Funde. 1-7. já que simboliza uma suposta unidade chamada “o povo indiano” que sempre está dividido em duas – uma elite modernizadora e um campesinato por modernizar. Gandhiji sabia quando começar o processo de redenção. . Por um lado. “Can the Subaltern Speak?”.. e desta meta-narração o sujeito teórico só pode ser uma “Europa” hiperreal. 163. Ill. UFMG. en Cary Nelson y Lawrence Grossberg. 48 Gayatri Chakravorty Spivak. editor. 277. mas a natureza da comunidade imaginada nestas linhas fica clara. ele fala desde o interior de uma meta-narração que celebra o Estado-nação. Assim. Restaurantes e centros de diversão tinham pouca clientela. Londres. O estilo da auto-representação que o “indiano” pode adotar aqui é o que Homi Bhabha tem chamado. “Can the Subaltern Speak?” Ver ainda a entrevista de Spivak publicada em Socialist Review 20. anti-moderno. A “história” como um sistema de conhecimento está firmemente embutido nas práticas institucionais que invocam o Estado-nação a cada passo – veja por exemplo a organização e a política do ensino. Por outro lado. A “economia” e a “história” são as formas de conhecimento que correspondem às duas instituições 52 Spivak. valorosas e heroicas. da vida pública e privada burguesa e do Estado-nação. o sujeito anti-histórico. incluindo aqueles que deixaram comodamente de fazê-los até o fim do século XVIII? Por que as crianças de todo o mudo hoje em dia devem lhe dar com uma assinatura chamada “história”. de historiadores individuais de libertar a “história” da meta-narração do Estado-nação. e as universidades. ver Ranajit Guha. que a escrita da “história” deve seguir. a “Europa”)52. Os Estados-nações têm capacidade para fazer cumprir seus jogos de verdade. . An Indian Historiography of India: A Nineteenth-Century Agenda and Its Implications. Por isto. Calcuta. De forma muito parecida à categoria de “subalterno” de Spivak (ou o campesino do antropólogo que só pode ter uma existência citada em um enunciado mais amplo que só pertence ao próprio antropólogo). pp. número 3 (julio-septiembre de 1990). 81-98. e é por esta causa que os discursos se apropriam dos instrumentos anti-históricos da memória e das “histórias” anti-históricas das classes subalternas. quando sabemos que esta obrigatoriedade não é nem natural nem antiga?53 Não é preciso muita imaginação para perceber que a razão disto está no que o imperialismo europeu e os nacionalismos terceiromundistas têm feito juntos: a universalização do Estado-nação como a forma mais conveniente de comunidade política. não pode falar como “teoria” dentro dos procedimentos de conhecimento da universidade. seleção. Então é preciso perguntar: Por que a história é uma matéria obrigatória da educação da pessoa moderna em todos os países hoje em dia. são parte do conjunto de instituições cúmplices deste processo. 1988. as manobras são levadas a cabo dentro do espaço do “mimético” – e dentro do projeto chamado história “indiana” – para representar a “diferença” e a “originalidade” do “indiano”. políticas que sobrevivem às ocasionais tentativas. apesar de sua distancia crítica. inclusive quando estes procedimentos de conhecimento reconhecem e “documentam” sua existência. por este sujeito e deste sujeito só pode falar a narração de transição que sempre acabará por privilegiar o moderno (quer dizer.transição continuará sempre sendo “onerosamente incompleta”. linear. Assim. as construções dos campesinos-trabalhadores de reinos “míticos” e de passados e futuros “míticos” encontram um lugar nos textos denominados história “indiana” precisamente através de um procedimento que subordina estas narrações às regras da evidência e ao calendário secular. Enquanto continuar operando dentro do discurso da “história” produzido na sede institucional da universidade. será impossível se distanciar do profundo conluio entre a “história” e a (as) narração (narrações) da cidadania. 53 Sobre a estrita conexão entre as ideologias imperialistas o ensino da história na Índia colonial. promoção e publicação dos departamentos de história. a compreensão de que todos “nós” fazemos história “europeia” com nossos arquivos. para evitar um entendimento 54 Sem implicar em todo este argumento. 1987. Chamemos a este projeto de provincialização56 da “Europa”. está (teoricamente) enraizada nas noções da ética da Europa do século XVIII 55 –. VI O projeto de provincializar a “Europa” se refere à uma história que. pp. por tanto. Oxford. existem paralelos aqui entre minha declaração e o que Gyan Prakash y Nicholas Dirks disseram em outro lugar. mediante suas agências e violências conjuntas. 184. Public Culture 2. Comparative Studies in Society and History 32. enquanto que o historiador “europeu” não compartilha uma categoria comparável sobre os passados da maior parte da humanidade. 25-33. número 2 (abril de 1990). En A History of Japanese Economic Thought.mais importantes que o surgimento (e mais tarde universalização) da ordem burguesa tem dado ao mundo – o modo de produção capitalista e o Estado-nação (onde a “história” fala à figura do cidadão)54.. o amparo da valiosa declaração de Carole Pateman – em seu livro The Sexual Contract – me faria afirmar que a concepção do indivíduo moderno pertence às categorias patriarcais do pensamento57. este projeto deve arrancar do fundamento de uma crítica e de uma transcendência radical do liberalismo (quer dizer. dá lugar à possibilidade de uma política e de um projeto de aliança entre as histórias dominantes da metrópole e os passados subalternos periféricos. só pode falar do tempo do projeto até o futuro. das construções burocráticas da cidadania. “Writing Post-Orientalist Histories of the Third World: Perspectives from Indian Historiography”. contudo. quer dizer. Dirks. diferentes e apesar de não europeus. Entretanto. Provincializar é um verbo que pode significar “por sob controle ou influência de província” o “tornar provincial ou provinciano” [Nota da edição espanhola]. Agradeço a Gavan McCormack por ele ter chamado minha atenção para este livro. com a qual comecei estas linhas. Calif. fundamento compartilhado nos últimos escritos de Marx e em certos momentos tanto do pensamento pósestruturalista como da filosofia feminista. Em particular. 383-408. Nicholas B. pp. um historiador terceiromundista está condenado a conhecer a “Europa” como o lar original do “moderno”. “History as a Sign of the Modern”. 1988. . a “Europa” que o imperialismo moderno e o nacionalismo (terceiromundista). não existe. número 2 (primavera de 1990). que agora parece “natural” para nossas construções dos sistemas mundiais. do Estado moderno e da vida privada burguesa que a filosofia clássica produz). Assim a subalternidade cotidiana das histórias não-ocidentais. Contudo. 56 No original provincializing. Como estes temas sempre nos farão voltar às proposições universalistas da filosofia política “moderna” (europeia) – inclusive a ciência “prática” da economia. Filosoficamente. tornaram universal. 57 Carole Pateman. Um historiador crítico não tem maiores opções ao não ser negociar este conhecimento. em termos de suas narrações auto-justificantes da cidadania e da modernidade. Ver Gyan Prakash. Ela ou ele precisa entender o Estado em seus próprios termos. Of Ethics and Economics. Stanford. The Sexual Contract. continua. p. Tessa Morris-Suzuki faz uma interessante leitura sobre este aspecto. 55 Ver Amartya Kumar Sen. como se diz. Marxism and the Interpretation of Culture. da razão. ganham. in Nelson y Grossberg. Como intelectuais atuantes na academia. não se pede uma recusa simplista. Para começar. e de quem. universais.58 O que intervem entre as duas coisas é a história – lutas contraditórias. apesar de administrada com um idealismo absorto – e é esta violência que tem um papel decisivo no estabelecimento do significado. de acordo com esquemas que buscam naturalizar e domesticar esta heterogeneidade. que é uma parte integrante do relato do imperialismo europeu. 354. o mesmo poderia se dizer das narrações da “modernidade” que. Não pretendo passar superficialmente os momentos anti-imperialistas nas trajetórias destes nacionalismos. Estas lutas incluem a coerção (tanto em nome como contrária à modernidade) – violência física. são sócios com partes iguais neste processo. enquanto esboço o que poderia ser. atualmente quase de maneira universal. tem sido apresentada de maneira que se vê como “obvia” para além dos terrenos em que se originou. Não se trata de mostrar que o racionalismo da Ilustração sempre é irracional em si mesmo. mas a demonstração como tal não diminui seus atrativos ou poder. O projeto de provincializar a “Europa”. da ciência. É demonstrável que esta Europa. Fredric Jameson recentemente nos fez recordar que a fácil comparação feita com frequência entre “uma concepção filosófica de totalidade” e “uma prática política do totalitarismo” é “funesta”. dos valores liberais. 2) e a compreensão de que esta comparação de uma certa visão da Europa com a “modernidade” não é obra exclusiva dos europeus. O projeto de provincializar a”Europa” tem que incluir alguns adicionais: 1) o reconhecimento de que a atribuição por parte da Europa do adjetivo moderno para ela mesma é uma peça da história global. das narrações onímodas. plurais e heterogêneas cujos resultados nunca são predizíveis. . não somos neutros nestas lutas e não podemos pretender nos situar fora dos procedimentos de conhecimento de nossas instituições. institucional e simbólica. “Cognitive Mapping”. como ideologias modernizadoras par excellence. que nem sempre foi evidente para todos. só ressalto que o projeto de provincializar a “Europa” não pode ser um 58 Fredric Jameson. é uma entidade imaginária. ao decidir. indiscriminada da modernidade. etc. devo dizer explicitamente o que não é. e sim de documentar como – mediante quais processos históricos – sua “razão”. não pode ser um projeto de “relativismo cultural”. por assim dizer. Não se pode nascer da postura que crê que a razão-ciência-universais que ajudam a definir a Europa como o moderno são sensivelmente de uma natureza cultural específica e pertencentes apenas às culturas europeias. p. por isto. na criação dos regimes de verdade. como o “Ocidente”. nem sequer em retrospectiva. Se um língua. das explicações totais. não é nada mais do que um dialeto respaldado por um exército. os nacionalismos terceiromundistas . assinalam uma certa “Europa” como o habitat primário do moderno.equivocado do que se segue. quais “universais”. em seu nome. Era um vacinador do governo com ordens de combater a resistência à vacina contra a varíola. Subaltern Studies. Lakshmi Singh se despertou gritando e correu como pôde para se esconder. o triunfo deste discurso sempre dependeu da mobilização. da “cidadania”. era parte integrante de algumas das primeiras e pioneiras investigações sobre as estatísticas médicas. Anustup. do Estado-nação. e demográficas da Índia. o resto da quadrilha submeteu o 59 David Arnold. Da violência fundacional. . en Arnold y Hardiman. Dois médicos estadunidenses (um deles presumivelmente de origem “indiana”) que participaram no processo descrevem desta maneira suas operações em uma aldeia da tribo Ho no estado indiano de Bihar: Na metade da serena noite indiana. tomo um exemplo recente da campanha indiana na erradicação da varíola nos anos setenta. 8. histórica) como pandêmica e cotidiana. Examinei alguns destes aspectos em um atigo em Bangala: Dipesh Chakrabarty. É inegável que a retórica e as reivindicações de igualdade (burguesa). contradições. 1988. A coerção da prisão colonial. vol. Não existe lugar onde esta ironia – os fundamentos antidemocráticos da “democracia” – seja mais visível que na história da medicina moderna. o rashtra: Oupanibeshik bharate mahamari o janasangskriti”. Knowledge. Ao desenvolver o inevitável enredo da história – uma forma disciplinada e institucionalmente regulamentada de memória coletiva – com as narrações globais dos “direitos”. Lá fora havia um esquadrão de médicos e policiais que imediatamente subjugaram Mohan Singh. Contudo. da auto-determinação mediante um Estado-nação soberano. nutricionistas. outro vacinador injetou a vacina contra a varíola em seu braço. de meios efetivos de coerção física. um magro e forte dirigente da tribo Ho. é a repressão e a violência que são ferramentas tão importantes na vitória do moderno como o poder de convencimento de suas estratégias retóricas. David Arnold dá um bom exemplo em seu recente ensaio sobre a história do cárcere na Índia. tomou um machado. retorceu seu braço para tirar a agulha... um intruso irrompeu através da porta de bambu da humilde choça de adobe. A ideia é escrever na história da modernidade as ambivalências. Seu esposo saltou da calam. Mohan Singh. como mostra Arnold. autoctonista ou atavista. e botou o intruso para frente da casa. Digo “sempre” porque esta coerção é tanto originária-fundacional (ou seja. fazendo com que a picada sangrasse. A quadrilha do governo o sujeitou até que conseguiram injetar suficientemente a vacina [. cujos discursos foram centrais na localização do corpo do moderno na interseção do público e do privado (tal como fica definido pelo Estado e sujeito às negociações com este). de quarenta anos de idade. de direitos dos cidadãos. Contudo. pois a prisão foi onde os corpos indianos estavam a disposição dos investigadores que promoviam a modernização59. and Penology in Nineteenth-Century India”. o que de fato tem importância nas histórias que implicitamente ou explicitamente celebram o advento do Estado moderno e da ideia da cidadania. em muitas circunstância dão poder em suas lutas a grupos sociais marginalizados – este reconhecimento é indispensável para o projeto de Subaltern Studies. Logo quando o deitaram no chão. Enquanto dois policiais o repreendiam. “Sarir. Da coação que continua em nome da nação e da modernidade. “The Colonial Prison: Power.]. não se pode expor a problemática da “Índia” ao mesmo tempo que desmantela a “Europa”. das esferas “pública” e “privada”.projeto nacionalista. samaj. uso da força e das tragédias e das ironias que a acompanham. da higiene pública e da higiene pessoal. As história que tratam de deslocar uma Europa hiperreal do centro até onde toda imaginação histórica gravita atualmente. cujo curso legal mundial já não pode se dar por assentado62. para que retorne a filosofia política – da mesma maneira em que moedas suspeitas regressam a seus donos em um bazar indianos – suas categorias. depois de tudo. 169. “Death for a Killer Disease”. in Richard J. mas não adiantou de nada. A tarefa. cujos protocolos de conhecimento sempre nos levaram de volta ao terreno onde todos os contornos seguem os de minha Europa hiperreal – o projeto de provincializar a Europa deve ser realizado dentro de sua própria impossibilidade. Lakshmi Singh mordeu com força a mão de um dos médicos. p. p. Por assim dizer.60 Não é possível ignorar o idealismo que acompanha esta violência. A declaração de Rorty é consequente com a prática de muitos europeístas que falam das histórias destas “sociedades democráticas” como se estas fossem histórias autônomas. Bernstein. mais tarde. Mass. um suicídio político. completas em si mesmas. nativistas. Tampouco se trata de um programa para uma simples recusa da modernidade.resto da família e vacinou cada membro. Quest. de “desenvolvimento” – tem no processo de gerar esta “tranquilidade”. editor. E deve ficar claro neste ponto que não peço um relativismo cultural ou histórias atavistas. . número 1 (1990). como se vê. em muitas situações. 3. o que seria. como se a autoconstrução do Ocidente fosse algo que ocorreu somente dentro das fronteiras geográficas que se fez para si mesmo. mayo-junio de 1978. não pode ser provincializada dentro da sede institucional da universidade. terão de buscar sem descanso esta conexão entre a violência e o idealismo que age no coração do processo onde as narrações da cidadania e da modernidade chegam a encontrar um lar-natural na “história”. O subtítulo do artigo em questão inconscientemente reproduz os instintos tanto militares como de beneficência da empresa: “como um exército de samaritanos expulsou a varíola da terra”. Habermas and Modernity. 1986. Rorty critica Habermas por que este está convicto “que o relato da filosofia moderna é uma parte importante do relato das tentativas das sociedades democráticas de tranquilizar suas consciências”61. dentro da mesma estrutura de suas formas narrativas.. “progresso” e. um por um. Devo esta referência a Paul Greenough. Este projeto contempla uma história que encarna esta política da desesperança. era invocado constantemente em auxílio às ideias de “civilização”. 62 Ver uma leitura interessante e que revisa Hegel neste sentido no debate entre Charles Taylor e Partha Chatterjee em Public Culture 3. 61 Richard Rorty. 60 Lawrence Brilliant e Girija Brilliant. será combater estas ideias que legitimam o Estado moderno e sua comitiva de instituições. Rorty ignora o papel que o “teatro colonial” (tanto externo como interno) – onde o tema da “liberdade” tal e como definido pela filosofia política moderna. Tenho aqui uma discordância fundamental com a postura assumida por Richard Rorty em um debate com Jürgen Habermas. Cambridge. Meu livro Rethinking Working-Class History tenta abrir um brecha nesta direção. E por último – como a “Europa”. “Habermas and Lyotard on Postmodernity”. Peço uma história que deliberadamente torne visível. suas próprias estratégias e práticas de repressão. Apesar disto. colocando-o acima de todas as demais possibilidades de solidariedade humana. A política da desesperança precisará de uma história que esclareça a seus leitores as razões de por que semelhante categoria é necessariamente ineludível. Tentar provincializar esta “Europa” é ver o moderno como inevitavelmente contestado. onde as coletividades não se definem pelos rituais da cidadania nem pelo pesadelo da “tradição” que é criada pela “modernidade”. Trata-se de uma história que tratará o impossível: olhar até sua própria morte para rastrear aquilo que resiste e escapa ao melhor esforço humano de tradução através de sistemas culturais ou outro tipo de sistemas semióticos. como tenho afirmado. . o papel que tem em conluio com as narrações de cidadania ao se assimilar aos projetos do Estado moderno. estes sonhos se repetirão enquanto os temas da cidadania e do Estado-nação continuam dominando nossas narrações da transição histórica. Isto. pois estes sonhos são o que o moderno reprime para poder existir. para que o mundo possa uma vez mais ser imaginado como profundamente heterogêneo. não existe sedes (infra)estruturais em que tais sonhos podem habitar. pois a globalidade do mundo acadêmico não é independente da globalidade que a categoria europeia do moderno tem criado. é impossível dentro dos protocolos de conhecimento da história acadêmica. Desde já. é escrever em cima das narrações dadas e privilegiadas da cidadania outras narrações das conexões humanas que se alimentam dos passados e dos futuros sonhados.
Report "CHAKRABARTY, Dipesh - A poscolonialidade e o artifício da história"