Candomblé - Hipertofia Ritual Das Religiões Afro-brasileiras (Reginaldo Prandi)

March 20, 2018 | Author: Luciano Teixeira | Category: Rituals, Morality, Africa, Religion And Belief, Philosophical Science


Comments



Description

Hipertrofia ritual das religiões afro-brasileirasReginaldo Prandi Universidade de São Paulo Texto publicado em Novos Estudos Cebrap, nº !, mar"o, pp# $$-%%# I &s religiões afro-brasileiras podem ser caracteri'adas como religiões rituais cu(a dimensão m)gica supera em muito a dimensão *ue di' respeito aos aspectos morais, tanto *ue, num outro estudo, referi-me ao candombl+ como uma religião a+tica, propriedade *ue, de certa forma, explica seu sucesso no mercado religioso de ,o(e -Prandi, .//.0# 1 candombl+ e outras modalidades religiosas de origem africana não estão so'in,os *uando atribu2mos sua expansão recente ao seu car)ter de ag3ncia prestadora de servi"os m)gicos# 1 pentecostalismo e o neopentecostalismo congregam in4meras denomina"ões mais interessadas em resolver problemas pessoais por meio dos poderes sobrenaturais do *ue propriamente internali'ar valores +ticos -5ariano, .///6 Pierucci e Prandi, .//!0# 1 catolicismo, na sua bem-sucedida versão da Renova"ão 7arism)tica, no percurso inverso do catolicismo das comunidades eclesiais de base, deixou de lado o interesse pelas *uestões sociais e preocupa"ões de ordem solid)ria para centra-se no indiv2duo e resolver, pela via m)gica, suas eventuais terrenas afli"ões -Prandi, .//$0# & imensa gama de variantes esot+ricas 8 disposi"ão no mercado de servi"os m)gicos completa esse *uadro em *ue a religião + cada ve' menos +tica, mais ritual e mais m)gica, em *ue a religião + menos religião e mais magia, em *ue a religião + menos institui"ão agregadora e mais servi"o, menos forma"ão e mais consumo# &s religiões e seus templos de ,o(e são ag3ncias de a(uda sobrenatural e espa"os de espet)culo e de la'er baseados ambos na expansão da emo"ão e frui"ão coletiva de sensa"ões# São, sobretudo, institui"ões de filia"ão tempor)ria *ue disputam entre si clientes e adeptos *ue, agora como clientes, devem igualmente pagar pelos favores religiosos, transformando as religiões na*uilo *ue c,amei de religião paga -Prandi, .//!0# 9esse *uadro de fal3ncia +tica das religiões no :rasil *uero situar as religiões afro- brasileiras, mais especificamente o candombl+, buscando identificar alguns fatores *ue teriam contribu2do para sua ,ipertrofia ritual e supervalori'a"ão do individualismo# 7,amo a aten"ão para o fato de *ue a maior parte das observa"ões apresentadas para o candombl+ vale ,o(e igualmente, em grau maior ou menor, para as diferentes modalidades *ue compõem as religiões afro-brasileiras, tanto em suas regiões de origem como na*uelas em *ue se instalaram no curso do s+culo ;;# <elas, certamente a umbanda + *ue apresenta ritual mais conciso e despo(ado, o *ue, entretanto, não corresponde a uma contrapartida +tica mais robusta# II &s religiões afro-brasileiras constitu2das at+ o in2cio deste s+culo e a*ui denominadas candombl+, xang=, tambor-de-mina e batu*ue reprodu'em em muitos aspectos as religiões originais dos orix)s, voduns e in*uices africanos# <elas ,erdaram o panteão, a*ui reorgani'ado, as l2nguas rituais, de significado es*uecido, o ritos, as concep"ões e valores m2ticos# & dimensão da religião mais ligada ao controle da moralidade, na >frica atendida pela celebra"ão dos ancestrais, embora parcialmente reprodu'ido em cultos isolados e de certo modo independentes, perdeu no :rasil muito de sua import?ncia original# 1s valores *ue orientam o comportamento dos seguidores na vida cotidiana não pressupõem o bem-estar comum do grupo, da sociedade ou da ,umanidade como categoria gen+rica# &s denomina"ões mais recentes, como a umbanda, reelaboraram toda a parte ritual das religiões afro-brasileiras de *ue se originaram e incorporaram muito dos valores cristãos do @ardecismo, adotando uma visão mani*ue2sta do mundo, não tendo desenvolvido nunca, contudo, um cAdigo de +tica voltado para a orienta"ão da moralidade dos fi+is em termos coletivos# Tantos as religiões afro- brasileiras tradicionais como as variantes modernas parecem desinteressadas do controle +tico de seus membros# & religião dos orix)s, dos voduns e dos in*uices reconstituiu simbolicamente no :rasil do s+culo passado a >frica *ue os negros africanos perderam com a escravidão, conforme () nos mostrou :astide -./$0, mas, embora fosse na origem uma religião de negros, a sociedade () era a brasileira, com institui"ões totalmente outras, sobretudo a fam2lia, uma sociedade *ue B contava com o catolicismo como fonte decisiva de identidade e sociabilidade# 9ão era então poss2vel ser brasileiro sem ser catAlico, mesmo *ue se fosse negro e mesmo *ue ser brasileiro fosse uma imposi"ão -Prandi, .///0# &ssim, a religião africana no :rasil constitui-se como religião de negros catAlicos, *ue () ,aviam perdido a fam2lia africana, com seus clãs, genealogias e antepassados# Cmbora os candombl+s ten,am reconstitu2do nas estruturas religiosas brasileiras e seus postos sacerdotais as ,ierar*uias de poder e as regras de administra"ão caracter2sticas da fam2lia e dos reinos africanos, uma parte decisiva da religião foi deixada para tr)sD a presen"a dos antepassados e de muitas entidades sobrenaturais *ue na >frica respondiam pelo controle moral dos ,omens e das mul,eres# Cntre os povos sudaneses, *ue deram 8s religiões afro-brasileiras os principais elementos formadores, o rei de cada cidade era o magistrado supremo, a *uem se devia a administra"ão da (usti"a# 5as eram v)rias a institui"ões *ue 'elavam pela manuten"ão da moralidade, desde os consel,os familiares e dos clãs at+ as sociedades secretas de cun,o religioso# Cntre os iorub)s, pelo menos tr3s dessas sociedades eram muito importantes, e ainda ,o(e l) sobrevivem, cobrindo cada uma extensos e diferentes territArios iorubanosD a sociedade Cgungum, a sociedade 1gboni e a sociedade 1r=, sendo as tr3s sociedades exclusivamente masculinas# 1s egunguns são os antepassados da cidade, esp2ritos de antigos fundadores de troncos familiares, vilas e cidades -:abaEemi, ./%F0# &nualmente recebem oferendas e são celebrados num festival de mascarados *ue os representam e dan"am pelas ruas da cidade, (ulgando pend3ncias, resolvendo disputas, apontando infratores da ordem familiar e p4blica, condenando criminosos# <i' &bra,am *ue o egungum + Gum in*uisidor sobrenatural *ue vem para (ulgar a conduta dom+stica do povo, especialmente as mul,eres e os criminososG -&bra,am, ./%.D .H/-..0# 1 antepassado tamb+m (ulgava os acusados de feiti"aria, *ue podiam ser condenados 8 pena capital# & sociedade 1gboni, muito enfra*uecida pela administra"ão colonial a partir do s+culo ;I;, era formada por c,efes locais encarregados de resolver *uestões pol2ticas e tamb+m morais# & sociedade de 1r=, temida entidade *ue ,abitava o interior de uma caverna m2tica e cu(a vo' troava como o terr2vel rugido de um boi enfurecido, (ulgava feiticeiros, mul,eres ad4lteras, ladrões etc# 1s condenados eram levados durante a noite para um bos*ue e ali executados pelos sacerdotes de 1r=# 1 culto aos antepassados, egunguns, reprodu'iu-se na il,a de Itaparica -:raga, .//B0, mas como modalidade religiosa circunscrita aos limites do terreiro, perdendo completamente J suas caracter2sticas de institui"ão +tica# 9ão dispondo de base territorial e muito menos comunit)ria em *ue pudesse exercer *ual*uer tipo de poder, formou-se nos moldes dos candombl+s de orix)s, como grupo de culto particular e independente dos demais candombl+s, da popula"ão negra e da sociedade local, embora se mantivesse como culto secreto e estritamente masculino, preservando ritos e indument)ria# 1s raros terreiros de egungum de Itaparica tiveram uma ou outra ramifica"ão em Salvador, Rio de Kaneiro e São Paulo, mas (amais alcan"aram a import?ncia dos candombl+s de orix)s e nem t3m sobre estes *ual*uer poder real de controle moral# Sobre o culto de 1r= temos vagas not2cias registradas no final do s+culo passado -Rodrigues, ./J0# 7onfundido com Lonoc=, entidade possivelmente de origem tapa, 1r= vivia nas matas da periferia de Salvador e seu castigo era impiedoso, mas com o passar do tempo acabou completamente es*uecido# & sociedade 1gboni, *ue implicava a exist3ncia do controle da administra"ão de diferentes cidades, sobreviveu apenas na memAria de poucos e em mitos de seus orix)s patronos# Uma outra importante sociedade iorub) de mascarados, esta controlada pelas mul,eres, tamb+m não teve futuro no :rasil, a sociedade Lueled+# & sociedade Lueled+ de mul,eres encarrega-se na >frica do culto 8s ancestrais femininas, assim como Cgungum celebra os ancestrais masculinos -MaNal, .//!0# Tamb+m organi'a os festivais anuais com dan"as de mascarados nas ruas# 5ul,eres de antigos candombl+s da :a,ia tentaram instituir entre nAs a sociedade Lueled+, mas parece *ue disputas entre diferentes terreiros impediram a iniciativa de ir adiante# Restaram algumas m)scara dessa +poca, *ue podem ser vistas em museus e cole"ões particulares# Cmbora a sociedade Lueled+ não tivesse a import?ncia das *ue citei anteriormente em termos de controle da moralidade, sua não institui"ão completa o *uadro de fal3ncia da reconstitui"ão em solo brasileiro das institui"ões religiosas iorub)s de organi'a"ão coletiva encarregadas de agregar toda a popula"ão, 'elar pelos bons costumes e punir os *ue se desviavam das normas, fossem eles, ladrões, assassinos, per(uros, incestuosos, ad4lteros, traidores, desonestos, feiticeiros e outros indese()veis sociais# III Ouando a*ui se constituiu a religião africana, o controle da moralidade p4blica di'ia respeito 8s institui"ões policiais e (ur2dicas e ao catolicismo, *ue era a fonte axiolAgica m)xima H para o comportamento e tribunal supremo da intimidade e da consci3ncia# 7omo catAlicos e brasileiros, os negros *ue se reuniam nos candombl+s de orix)s, voduns, in*uices e caboclos tin,am suas a"ões em sociedade vigiadas e punidas pela igre(a e pelo estado# Cm contrapartida, coube ao candombl+ regular as rela"ões de cada fiel com sua divindade, rela"ões *ue são particulares, uma ve' *ue cada ,umano est) ligado por descend3ncia m2tica a uma divindade espec2fica, numa pluralidade delas# &o sacerdote supremo do terreiro cabe então desvendar a filia"ão divina do fiel, oficiar os ritos *ue permitem estabelecer o pacto de interdepend3ncia entre o fiel e seu deus ou deusa, identificar os tabus do iniciado e prescrever periodicamente as oferendas *ue o fiel deve propiciar 8 sua divindade para *ue ela o recompense com sa4de, vida longa, conforto material, sucesso profissional, recon,ecimento social, felicidade familiar, amorosa e sexual# 9essas atividades vale-se do or)culo do (ogo de b4'ios, *ue + prerrogativa exclusiva do c,efe do terreiro# <ireitos e deveres, assim como lealdades e reciprocidades, são estabelecidos e cobrados na rela"ão fiel-divindade, com as necess)rias lealdades e pagamentos ao sacerdote-c,efe e seu corpo ,ier)r*uico-institucional, isto +, a mãe-de-santo e seu terreiro, () *ue sem essa intermedia"ão o acesso ao mundo sobrenatural não se reali'a# Cmbora atendendo a uma comunidade de culto, os candombl+s formaram-se como empreendimentos individuais, dirigidos segundo a vontade de seus c,efes fundadores e fa'endo parte de seu patrim=nio particular# & mãe-de-santo, ou o pai, sempre foi a autoridade m)xima do terreiro e todas as decisões, *ue, segundo a cren"a do candombl+ expressam a vontade do orix) dono do terreiro, *ue + o mesmo da mãe ou pai-de-santo, são incontest)veis# & mãe-de- santo + a mãe da fam2lia espiritual, a fam2lia-de-santo, e propriet)ria de fato da casa de culto e embora todo o grupo se estruture em ,ierar*uias e cargos *ue dependem do tempo de inicia"ão, rela"ões de parentesco e obriga"ões inici)ticas () cumpridas, a designa"ão de fil,os para postos de prest2gio e a nomea"ão para fun"ões rituais *ue implicam compartil,ar do poder da mãe dependem 4nica e exclusivamente da vontade da mãe-de-santo, *ue pode *uebrar regras e expectativas e nomear pessoa de sua rela"ão mais 2ntima, passando por cima de outros *ue suspostamente () estavam ritualmente preparados para o cargo em *uestão# Tudo + muito pessoal, tudo deve atender aos interesses de *uem manda e facilmente se observa a facilidade com *ue rela"ões afetivas suplantam direitos formais# <esde a origem, o candombl+ + uma religião personalista e individualista# IV 1 adepto do candombl+ somente presta contas de suas a"ões 8 sua divindade particular, com a *ual ele pode contar para ter uma vida livre de desgra"as, perdas e frustra"ões# :asta *ue ele cuide bem do orix), fa'endo suas oferendas nas +pocas regulamentares, oferecendo-se a ele em transe nas cerim=nias em *ue os orix)s comparecem para dan"ar com sua comunidade de ,umanos e respeitando os tabus rituais# São os tabus *ue definem o *ue o fiel não pode fa'er e não são os mesmos para cada um, dependendo do orix) da pessoa e de seu odu, *ue + uma esp+cie de reg3ncia m2tica origin)ria, *ue acompan,a o iniciado por toda a vida# 1s tabus são sobretudo proibi"ões alimentares, tamb+m restringindo certos comportamentos *ue não incluem significativamente a rela"ão com os outros, como, por exemplo, não tomar ban,o de mar, não subir em )rvore, não usar roupa al,eia, não raspar panela com faca# Tudo o *ue não + tabu do orix) ou do odu + permitido, ,avendo muita flexibilidade, podendo os tabus ser substitu2dos por outros e mesmo pouco cobrados# &s no"ões de certo e errado, as pautas de direitos e deveres, as interdi"ões, assim como as regras de lealdade e reciprocidade são moldadas na rela"ão entre o seguidor e seu orix), entre o fil,o ,umano e o pai divino# Csta rela"ão est) acima de *ual*uer outra coisa e acredita-se *ue a personalidade do fil,o reflete a personalidade do orix) *ue + seu pai ou mãe no plano m2tico, o *ue l,e atribui por ,eran"a uma gama de comportamentos e atitudes aceitos e (ustificados pelos mitos dos orix)s e *ue contrastam muito com os modelos de conduta cristãos# 9ão ,) um modelo geral v)lido para todos, pois depende-se sempre da origem m2tica de cada um, sendo m4ltiplas as origens poss2veis, uma ve' *ue são muitos os orix)s dos *uais os ,omens e mul,eres descendem# 9a lAgica polite2sta do candombl+, não se pode esperar *ue fil,os de orix)s diferentes ten,am os mesmo comportamentos, *ualidades morais, dese(os e aspira"ões# Por outro lado, os mitos dos orix)s Gnaturali'amG e aceitam comportamentos *ue implicam o envolvimento em atos como disputa, guerra, desaven"a, trai"ão, suborno, corrup"ão, usurpa"ão, falsifica"ão, rapto, incesto, sedu"ão, estupro, ass+dio sexual, roubo, destrui"ão, assassinato, logro, fraude, fingimento etc# Cm *ual*uer desses atos, o ideal + sair-se como o gan,ador, igualmente *uando se + a v2tima e algo', o *ue valori'a *ualidades como coragem, determina"ão e ast4cia# Cstar sempre atento e preparado para o poss2vel e iminente ata*ue *ue vem do outro + uma condi"ão necess)ria para a vida neste mundo, naturalmente ! concebido como um territArio competitivo e conflituoso# 5esmo no terreiro o cotidiano + encarado como espa"o de disputa, no *ual a afirma"ão das *ualidades m2ticas ,erdadas + constantemente incentivada# &s contendas dentro e entre terreiros não somente são vividas, mas são apontadas como inteiramente esperadas# Cmbora grande parte dos mitos ten,a se perdido, muito de seu conte4do foi preservado nos ritos *ue representam a saga dos orix)s, sobretudo nas cerim=nias p4blicas reali'adas no barracão sob o ol,ar de uma plat+ia de devotos visitantes, curiosos e simpati'antes# &ssim, atitudes beligerantes, bem como as *ue indicam a sensualidade da con*uista amorosa, por exemplo, são enfaticamente expressas na gestu)lia das dan"a dos orix)s, *uando o rito revive o mito# V 7om o passar das gera"ões, as l2nguas rituais do candombl+ foram es*uecidas# Cmbora todos os ritos se(am cantados -são centenas de cantigas e re'as0, somente palavras avulsas t3m ainda con,ecido seu significado e ningu+m mais pode se comunicar na l2ngua do candombl+, se(a ela de origem iorub), fon, *uimbundo, *uicongo etc#, con*uanto alguns grupos ven,am se esfor"ando no sentido de reaprender, na escola, a l2ngua es*uecida# 1 etnAlogo e babala= nigeriano Pande &bimbola, não sem ra'ão, atribui ao es*uecimento da l2ngua a 3nfase ritual excessiva, *ue ele c,ama de Gover-rituali'ationG, *ue se observa nos pa2ses da di)spora, especialmente :rasil e 7uba -&bimbola, .//$D ..H0# & perda do sentido das palavras e o conse*Qente es*uecimento da literatura oral teriam sido compensados pela complica"ão e elabora"ão excessiva dos ritos# 7omo as inova"ões são da iniciativa de cada terreiro, foi se formando um enorme repertArio *ue não + compartil,ado por todos, aumentando os pontos de tensão entre as diferentes casas# & 3nfase crescente nos ritos foi acompan,ada sempre de muita criatividade e certos exageros# Um desses exageros pode ser observado na prescri"ão de sacrif2cios, como tamb+m sublin,a &bimbola# &ssim, nos casos em *ue na 9ig+ria se costuma oferecer uma ave a um determinado orix), a*ui o n4mero de animais pode c,egar a uma de'ena ou mais, pois al+m de oferecer a prenda 8*uele orix), o devoto v3-se obrigado tamb+m a fa'er oferenda ao orix) mensageiro, ao orix) do pai-de-santo, aos orix)s patronos da casa etc#, devendo pois sustentar com seus recursos um rito extremamente dispendioso e *uase sempre fora do alcance de seu $ bolso, um luxo, di' &bimbola, *ue um africano não pode sustentar -&bimbola, .//$D ..0# 1 iniciado passa grande parte do tempo preocupado com a obten"ão dos recursos materiais necess)rios 8 sua obriga"ão, o *ue inclui tamb+m os gastos com roupas, utens2lios sagrados do orix), din,eiro para a festa e para pagamento das espArtulas do pai ou mãe-de-santo, () *ue na maioria dos casos o c,efe do terreiro vive de sua atividade sacerdotal# Ouando sua obriga"ão se concreti'ar e o fruto de sua dedica"ão, pelo menos na etapa final *ue *uebra o sigilo inici)tico, for exposto ao p4blico na festa do barracão, todos os ol,os estarão voltados para o apuro est+tico e o fausto da apresenta"ão# 9ingu+m estar) preocupado com virtudes e sentimentos religiosos, pois a religiosidade a*ui se expressa pela sua exterioridade, a forma embotando o conte4do# 7om a crescente import?ncia do rito, expandiu-se uma verdadeira ind4stria de artefatos sacros e se constituiu um diversificado con(unto de produtores e vendedores de artigos religiosos, nacionais e importados# 1b(etos antes feitos por artesãos *ue pertenciam 8s comunidades de culto foram sendo substitu2dos por artigos produ'idos industrialmente6 comerciantes especiali'aram-se na importa"ão de tecidos e roupas e na produ"ão e distribui"ão de rendas e bordados# Rerdadeiros supermercados de artigos religiosos passaram a estar dispon2veis nos mais diferentes pontos das grandes cidades# 1 5ercadão de 5adureira, no sub4rbio do Rio de Kaneiro, re4ne de'enas de lo(as especiali'adas, onde tudo pode ser comprado, desde tecidos, roupas, ob(etos de assentamento, contas, b4'ios, favas e sementes, velas, adere"os, artigos de pal,a, lou"a, cer?mica e ferro, ingredientes para os pratos da co'in,a dos orix)s, at+ fol,as e animais para sacrif2cio# &lgumas lo(as fa'em em ferro, na ,ora, ferramentas de orix) de acordo com o gosto e o desen,o do fregu3s# Csse mercado de artigos religiosos põe 8 disposi"ão do seguidor do candombl+ uma oferta *ue se renova a cada onda da moda e fa' dele um consumidor contuma'# 1s paramentos dos orix)s compostos de saias, cal"olões, la"os e faixas, mais as coroas, capacetes, braceletes, peitorais, torno'eleiras, al+m das ins2gnias de mão, como espadas, arcos e flec,as, cetros, bastões, le*ues, espel,os, espanta-moscas, tudo isso + produ'ido de acordo com a moda da +poca# 9otadamente no Rio de Kaneiro e São Paulo, onde os profissionais *ue ditam a moda no candombl+ são em geral os mesmos produtores est+ticos das escolas de samba, não + dif2cil perceber como o desfile de carnaval antecipa as prefer3ncias em desen,o e material *ue vestirão e adornarão os orix)s em transe nos barracões de candombl+ na*uele ano# % & rela"ão de interdepend3ncia entre religião, mercado consumidor e espet)culo limita cada ve' mais a aten"ão, o interesse e a concep"ão de religião do devoto do orix), orientando o foco de sua percep"ão para o rito, *ue aparece como sin=nimo pleno de religião# <e fato, *uando algo na vida do devoto não d) certo, *uando incidentes inesperados l,e tra'em sofrimento e dor, *uando suas expectativas não se reali'am, acredita ele *ue algum erro foi cometido na reali'a"ão do rito, fre*Qentemente atribuindo a culpa 8 mãe-de-santo *ue, por ignor?ncia ou m)-f+, não teria sabido aplicar as fArmulas corretas# 9ão l,e ocorre imputar a desdita a seu merecimento, 8 *ualidade de sua inten"ão, 8 sua f+ e esperan"a, como se d), em contraposi"ão, em religiões em *ue a dimensão moral + preponderante# & oferenda, a obriga"ão, o rito funciona ex opere operato# Uma ve' reali'ado corretamente, o ritual deve proporcionar os fins pretendidos, independentemente de inten"ões e atitudes envolvidas no rito, se(a da parte do ofertante se(a da parte do oficiante# S preciso, pois, con,ecer e reali'ar corretamente o rito# Se não der certo, deve ser corrigido# & ,ipertrofia ritual reflete-se na super-valori'a"ão da representa"ão c3nica das assim c,amadas cerim=nias de barracão, *uando os seguidores, em transe de seus orix)s e outras divindades e entidades, dan"am, caracteristicamente paramentados, aos som das cantigas rituais acompan,adas pelo ritmo de ataba*ues, agog=s e xe*uer3s, para uma plat+ia de crentes, clientes e curiosos# <an"am ao som de c?nticos, cu(as palavras tiveram seu significado perdido nos camin,os da di)spora, para uma plat+ia de curiosos *ue ali estão para usufruir da celebra"ão religiosa como espet)culo de exAtica est+tica, e tamb+m para uma plat+ia de crentes pertencentes a outros terreiros e fam2lias-de-santo *ue estão ali para avaliar, criticar e muito raramente elogiar a organi'a"ão cerimonial e a bele'a das dan"as, roupas e adere"os# Oue estão ali tamb+m para usufruir do candombl+ como la'er# S um lema *ue *uem oferece festa deve oferecer a mel,or festa, reunião *ue se conclui com um *uase sempre muito generoso e concorrido ban*uete ritual preparado com o produto do sacrif2cio# Tudo isso implica, certamente, competi"ão, imita"ão e exerc2cio da capacidade de inven"ão e criatividade# Tre*Qentar um local como o mercado de 5adureira, o *ue para muitos representa momentos de la'er e sociabilidade, propicia o contato com a moda com seus ob(etos sugestivos rec+m-craidos e novas mat+rias primas interessantes, de modo *ue cada um pode elaborar pessoalmente seus prAprios artefatos e arran(os, num exerc2cio infind)vel de reelabora"ão e enri*uecimento material do rito# / VI &o reprodu'ir originalmente no terreiro a estrutura da fam2lia polig2nica africana, o candombl+ adotou padrões de incesto severos, impedindo casamento e rela"ões sexuais entre os membros de um terreiro, *ue na verdade representa uma fam2lia extensa# Tamb+m a mãe-de- santo estava impedida de iniciar, por exemplo, seus fil,os carnais, o *ue obrigava o terreiro a estabelecer la"os inici)ticos com outros terreiros, refor"ando as rela"ões de reciprocidade entre as diferentes casas de culto# Igualmente, o c=n(uge de uma iniciado deveria ser iniciado pela mãe ou pai de outra casa, () *ue no plano religioso, se ambos fossem iniciados pela mesma mão, passariam a ser irmãos# & disputa ferren,a entre as casas-de-santo, a falta de confian"a entre os l2deres, a ambi"ão dos c,efes no sentido de ter cada ve' mais e mais fil,os-de-santo enfra*ueceram e mudaram os tabus de parentesco, passando-se, por exemplo, a se considerar irmãos apenas a*ueles cu(a cabe"a pertence ao mesmo orix), mesmo assim podendo-se mudar um deles para se evitar rela"ões entre irmãos# &s regras do tabu ,o(e não representam impedimento categArico, ,avendo muita flexibilidade para alterar as regras caso a caso, de acordo com os interesses do terreiro e de seu c,efe# Praticamente todas as rela"ões são admitidas dentro de um mesmo grupo de culto, sendo muitos os artif2cio aceitos para burlar as interdi"ões# 1 candombl+ costuma ser apresentado como religião libert)ria, sobretudo no *ue di' respeito 8 sexualidade# K) no final dos anos trinta, os relatos de campo da antropAloga americana Rut, Mandes -./!$0 sublin,avam as liberdades de escol,a sexual de ,omens e mul,eres dos terreiros de Salvador, não parecendo ,aver restri"ões sobre a conduta sexual, se(a ela referida a prefer3ncias ,etero ou ,omessexual# 9um segmento social caracteri'ado pela grande presen"a de fam2lias parciais ou incompletas, em *ue a mul,er era a c,efe e provedora, as rela"ões con(ugais est)veis não eram a norma e a preocupa"ão com valores morais associados 8 manuten"ão da fam2lia monog?mica est)vel estava longe da realidade# 9uma +poca em *ue os valores sociais *ue regulavam a vida em fam2lia e a vida sexual eram muito estritos, valores como vida sexual exclusivamente no casamento não fa'iam sentido para a popula"ão *ue se ligava ao candombl+# 1 alargamento de possibilidade de escol,a de parceiros sexuais, inclusive ,omossexuais, deve ter minado completamente os tabus do incesto *ue, originalmente, proibiam rela"ões entre os fil,os-de-santo de uma mesma casa -() *ue eram .F irmãos entre si0, entre pais e seus iniciados etc# Mogo os tabus religiosos estavam redu'idos 8 ingestão de alimentos e pe*uenas a"ões# Cmbora se fa"a muita cr2tica ao comportamento moral do outro, sempre na forma de fofoca e maledic3ncia, o candombl+ não dispõe de nen,um mecanismo formal de censura, aceitando em seus corpo de iniciados *ual*uer pessoa, mesmo *uando se trata de indiv2duos cu(a conduta moral, sexual ou não, os torna indese()veisl para outras religiões, *ue sA os aceitam *uando são capa'es de mud)-los# Cxemplo emblem)tico est) estampado numa reportagem da Revista da Folha de B/ de setembro de .///, em *ue sete pais-de-santo, fotografados em grupo com suas roupas lit4rgicas afro-brasileiras, v3m a p4blico para expor sua ,omossexualidade e falar da liberdade sexual no candombl+, liberdade *ue se (ustifica por meio de compara"ões, nem sempre fi+is, com a"ões e atitudes das prAprias divindades narradas pelos mitos dos orix)s 8s ve'es de fonte duvidosa# <e fato, o candombl+ + capa' de (ustificar as op"ões e condutas não somente de ordem sexual, mas *ual*uer outra# 9ão se cultiva, de todo modo, um modelo de conduta geral recomendado para todos6 a diferen"a + aceita plenamente e cada um responde por a*uilo *ue +# & pauta de a"ões a ser cumprida obriga o fil,o-de-santo a cuidar do seu orix), a *uem deve alimentar, vestir e apresentar em festa# Se tais a"ões estritamente rituais forem cumpridas nos per2odos das obriga"ões devidas ao orix), cada um + livre para ser e fa'er o *ue *uiser# VII Cm meados do s+culo ;;, *uando deixou de ser uma religião exclusiva de negros e se abriu para todos, o candombl+ () se mostrava como religião ritual e m)gica, em parte dependente, em termos financeiros e de prest2gio social, de um mercado de servi"os m)gicos para uma clientela sem la"os religiosos com a comunidade de culto# & abertura para os segmentos não negros da popula"ão e sua expansão para o Sudeste e posterior propaga"ão por todo o Pa2s sA fe' acentuar esta faceta do candombl+# 1 pai-de-santo passou definitivamente a se apresentar como o feiticeiro competente, capa' de fa'er e desfa'er *ual*uer magia em benef2cio do cliente pagante# & carreira sacerdotal transformou-se numa perspectiva profissional aberta a muitos (ovens pobres e sem escolaridade em busca de mobilidade social, uma ve' *ue, com sete anos de inicia"ão -8s ve'es menos e muito menos0 *ual*uer pessoa pode legitimamente se estabelecer como mãe ou pai-de-santo, iniciar fil,os e angariar clientela# & .. aceita"ão plena do ,omossexualismo fe' do candombl+ talve' a 4nica op"ão religiosa poss2vel para muitos (ovens discriminados pelas outras religiões e demais institui"ões socais, sobretudo no caso do probre sem perspectiva de mobilidade# & ,istAria de muitos pais-de-santo revela terem alcan"ado um sucesso ocupacional com um grau de ascensão social *ue dificilmente teriam logrado se não fossem as oportunidades oferecidas pela religião dos orix)s, constituindo- se para os (ovens seguidores como modelos de sacerdotes bem-sucedidos, independentemente de serem ou não modelos de virtude# 1 valor da ostenta"ão, *ue parece tão caro a muitas culturas africanas, gan,a relevo especial, devendo o pai-de-santo apresentar-se em p4blico com roupas vistosas e caras, preferencialmente importadas de pa2ses africanos, com a cabe"a envolta em tor"os de tecidos espal,afatosos, tra'endo na mão emblemas da reale'a tradicional, num con(unto de est+tica prApria, *ue o identifica imediatamente com o candombl+ a partir de estereAtipos fartamente explorados pela televisão# Podendo contar com uma sAlida oferta de produtos rituais *ue ampliam a ri*ue'a e a diversidade do rito como espet)culo *ue busca o recon,ecimento al,eio, o pai-de-santo dispõe ainda, no mercado interno dos servi"os religiosos, de m4sicos aptos 8 reali'a"ão dos to*ues e cantos indispens)veis 8s celebra"ões p4blicas, os *uais trabal,am por remunera"ão# 1 pai-de- santo não est) so'in,o 8 frente de sua comunidade, mas conta com a a(uda importante dessas ofertas, *ue podem ser mais ou menos demandadas, dependendo da prApria capacidade do pai de prover seus prAprios ritos sem a presen"a de auxiliares contratados# &l+m do fato de o tempo inici)tico m2nimo mostrar-se curto para um aprendi'ado mais detido dos fundamentos e pr)ticas religiosas, mesmo por*ue em geral um iniciado divide seu tempo de inicia"ão com seu tempo de trabal,o na vida profana, a maioria das atividades do aprendi'ado sacerdotal concentra-se na produ"ão e na reali'a"ão da festa, e em muitos casos o per2odo de treinamento regulamentar de sete anos + redu'ido em favor dos interesses de iniciados ansiosos em se estabelecer por conta prApria como c,efes de terreiro# &s casas-de- santo raramente desenvolvem atividades de desenvolvimento intelectual e moral de seus *uadros, mantendo-se sempre um falso clima de mist+rio, segredo e reserva sobre *uestões de doutrina, doutrina pouco ensinada e discutida e fartamente ignorada por pais e mães *ue não tiveram tempo, interesse ou oportuniade de aprender, descon,ecendo-se, por exemplo, as concep"ões de nascimento, morte e reencarna"ão *ue são fundamentais na religião dos orix)s# .B &os fatores *ue favorecem a ,ipertrofia ritual (unta-se pois a concep"ão corrente *ue se tem da profissão de pai-de-santo como sendo um feiticeiro agora socialmente legitimado pelo consumo esot+rico e midi)tico, *ue trabal,a por din,eiro para resolver os problemas de *uem dele precisar, como *ual*uer outro profissional do bem-estar do indiv2duo# Para se situar bem no mercado de muitos competidores, ter) este profissional *ue se fa'er vis2vel, bem vis2vel# 9ada mel,or, para alcan"ar a publicidade, *ue esmerar-se no rito, sobretudo *uando não se tem o treino necess)rio para se impor pela presen"a intelectual nem o carisma para se afirmar como l2der espiritual# 7omo sAi acontecer, em graus variados, tamb+m com os novos sacerdotes do catolicismo carism)tico, do neopentecostalismo e de tantos e tantos credos dispon2veis no mercado m)gico contempor?neo# Referências bibliográficas &:I5:1M&, Pande# Ifá Will Mend our Broken World: Thouts on !oruba Reliion and Culture in "fri#a and the $iaspora# RoxburE, &im :oo@s, ./$$# &:R&H&5, R# 7# $i#tionar% of Modern !oruba# Mondres, Hodder and Stoug,ton, ./%.# :&:&UC5I, S# 1# Eunun a&on the '%o !oruba# Ibadan, :oard Publications, ./%F# :&STI<C, Roger# "s relii(es afri#anas no Brasil# São Paulo, Pioneira, ./$# :R&L&, K4lio# "n#estralidade afro)brasileira: o #ulto de babá eu&* Salvador, Ianam) e 7C&1VUT:&, .//B# M&9<CS, Rut,# " #idade das &ulheres* Rio de Kaneiro, 7ivili'a"ão :rasileira, ./!$# M&P&M, :abatunde# The +,l,d- .pe#ta#le: "rt/ +ender and .o#ial 0ar&on% in an "fri#an Culture# Seatle, UniversitE of Pas,ington Press, .//!# 5&RI&91, Ricardo# Neopente#ostais: so#ioloia do novo pente#ostalis&o no Brasil# PICRU77I, &nt=nio Tl)vio de Reginaldo PR&9<I# " realidade so#ial das relii(es no Brasil# São Paulo, Hucitec, .//!# PR&9<I, Reginaldo# 's #ando&bl-s de .1o 2aulo: a velha &aia na &etr3pole nova# São Paulo, Hucitec e Cdusp, .//.# WWWW# Religião paga, conversão e servi"o# InD PICRU77I, &nt=nio Tl)vio de Reginaldo PR&9<I# " realidade so#ial das relii(es no Brasil# São Paulo, Hucitec, .//!# WWWW# 4& sopro do Esp5rito: a renova61o #onservadora do #atoli#is&o #aris&áti#o* São Paulo, Cdusp, .//$# WWWW# Refer3ncias sociais das religiões afro-brasileirasD sincretismo, bran*ueamento, africani'a"ão# InD 7&R1S1, 7arlos e Kaferson :&7CM&R -orgs0# Fa#es da tradi61o afro) brasileira# Rio de Kaneiro, Pallas e 7C&1, .///# .J RCRIST& <& T1MH&# 7" b8n61o/ painho: pais)de)santo fala& sobre ho&osse)xualidade7* .1o 2aulo/ n9 :;</ pp* :=):>/ <? de aosto de @???* R1<RILUCS, 9ina# ' ani&is&o feti#hista dos neros baianos# BX edi"ão# Rio de Kaneiro, 7ivili'a"ão :rasileira, ./J# .H
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.