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March 20, 2018 | Author: uhuhsu | Category: Femininity, Ethnicity, Race & Gender, Gender, Anthropology, Feminism


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CATEGORIAS ANALÍTICA E EMPÍRICA: GÊNERO E MULHER: Disjunções, conjunções e mediações1Suely Kofes Abstract Gender and Women - equivalent or substitutable term? With this question, this text examines two lheoretical tendencies - Joan Scott and Marily Strathern - some anthropological contributions and a literary parallel, to suggest lhe disjunctions and conjunctions betweenn “gender” and “women”. The mediation proposed is that gender - which maps a specific field of differences - and women - a substantive category, formulated by gender differences - are neither in opposition nor substitutable. I. Disjunções Na recente literatura sobre gênero encontramos, muitas vezes, uma crítica aos estudos sobre mulheres que, pelo seu caráter identitário, culminariam na constituição de uma teoEste texto foi apresentado durante a XVIII Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em Belo Horizonte, de 12 a 15 de abril, 1992, em uma mesa-redonda intitulada: “Estudos de Gênero: a interdisciplinaridade no campo teórico e a subjetividade no campo metodológico”. 1 e substitui-se esta categoria por gênero? Ao se propor pesquisar gênero há que necessariamente ter como pesquisadores homens e mulheres e recortar necessariamente objetos masculinos e femininos? Se se reconhece que.. que é a pergunta ou a observação. a minha intenção. não tão raras.Johan Scott. Aparentemente anedótico. chamandose de “centros de estudos de gênero e de mulheres”. por outro lado. E há um dado. e ter pesquisas que recortam (em seu primeiro projeto coletivo) apenas trajetórias femininas. isto é. a resistência das categorias substantivas (e que nem sempre são acionadas sob argumentos essencialistas) aos conceitos de outra ordem? Creio que é preciso começar a formular esta questão.referindome aos anos 80 . uma das críticas aos estudos de gênero. portanto. teoricamente. aparentemente anedótico. seriam equivalentes e. Para uma das teóricas sobre estudos de gênero . IFCH. qual a disjunção. ria parcial.20 Categorias analítica e empírica:. ou há distinções que pedem a manutenção do uso distinto? No segundo caso. mulher é uma categoria de gênero (“gendered”). afirma a sua incapacidade de compreensão dos sujeitos concretos. porque expressa alguns impasses sérios: a categoria de gênero permitiria uma substituição. aqui. Unicamp) sobre como é possível um centro de estudos de gênero ter entre seus membros apenas mulheres. dirigidas aos membros do Pagu (Centro de Estudos de Gênero. gênero é uma catego- . por onde compreender. e qual a conjunção possível? Em síntese. não se fala mais em mulheres. e o que indicaria. o que apenas é. substituíveis. Alguns centros de estudos. oscilam em se nomear apenas “centros de estudos de gênero”. acadêmicos.. e quando. para Scott.com múltiplas e complexas significações. Culturais sendo entendido não como produções de indivíduos ou coletividades. enfim tudo aquilo que constituiria as relações sociais. Columbia University Press.2 Gênero seria o conhecimento sobre a diferença sexual. Scott.gênero .e estou me atendo a esta autora pelo impacto de sua obra para os estudos de gênero. isto é. 2 . A resultante sendo um conhecimento que não se parcializa pelo seu objeto empírico. 1988. W. e aspectos normativos. seria através de um instrumento analítico . enfatizando-se significações. pesquisado. Conhecimento entendido como: sempre relativo. e se. Para Scott.que as diferenças entre os sexos constituem um aspecto primário da organização social.Suely Kofes 21 ria analítica. Entretanto. há um referente que permanece: as diferenças sexuais. gênero é a organização social da diferença sexual. Gender and the politics of history. não teria um estatuto de objeto em si mesmo. e que estas diferenças são fundamentalmente culturais. New York. rituais. J. práticas cotidianas. produzido por meios complexos. por amplos e complexos quadros epistêmicos e referindo-se não apenas às idéias mas também às instituições e estruturas. Afirma ainda Scott . como grupo ou categoria. gênero seria o conhecimento que estabelece significações para diferenças corpóreas.. mas há certamente outras autoras importantes e com pressupostos distintos . e se eu a leio bem. múltiplos e contraditórios sentidos. Mulher. Não refletindo ou implementando diferenças físicas e naturais entre homens e mulheres. artefatos. ela entende as categorizações de pessoas. coloca-se em cena a dimensão das relações sociais e dos atores sociais.22 Categorias analítica e empírica:. Recupera-se aqui uma certa dimensão do caráter classificatório embutido na noção de gênero e. por exemplo. invariavelmente. University of California Press. o teria em afirmações como: “gênero não é a diferença natural ou biológica”) atuando como um operador de reconhecimento de um campo específico entre as categorias de diferenciação. M. Gênero refere-se a categorias de diferenciação (no meu entender. agentes virtuais). Gênero não é afirmado como uma categoria analítica. seqências e tudo o que desenha a imagem sexual. Landon. Por gênero. êmicas). ou não. . que se refere a um tipo de categorias de diferenciações. o corpo ou psique de uma pessoa são percebidos como inatos a apreensão da diferença entre “os sexos”. agente (“agent”: autor de pensamento e ação). se. Estas categorias sendo referência para as pessoas nas suas idéias sobre as relações sociais e nas suas ações.: The gender of the gift. eventos. ao mesmo tempo. em Strathern.. Para Marilyn Strathern3. indicando os meios pelos quais as características de masculino e feminino tornam concretas as idéias das pessoas sobre a natureza das relações sociais. Gênero não teria em si mesmo qualidades definicionais (como.. e é a isto que gênero se refere. Los Angeles. 1988. com as noções de pessoa (formas objetivadas de relações. 3 Strathern. gênero é entendido como um nome.“unqualified” -. eventos e relações sociais. toma a forma categórica. Conforme esta autora. Berkeley. ação. . SP. universalmente. M. Mauss. são homens e mulheres.: Oeuvres. Lembremos. seria entre “same relations” e “cross-sex relations”). Johan Scott é uma historiadora feminista. 5 Malinowski. Abril Cultural. e Mauss. Gênero refere-se às relações internas entre partes das pessoas. por exemplo. Coleção Os Pensadores. vol. Minuit. E. pensar gênero simplesmente como uma questão da relação entre “male” e “female” (no caso da Melanésia. podem ser masculinos e femininos. mas nos é sugerido que os vaguyá. cujos conteúdos culturais e relações recíprocas são variados. as segundas ficando nas aldeias. Durkheim e Mauss4. as estrelas.Suely Kofes 23 Para Strathern.5 As teorias do parentesco também nos indicam a importância desta distinção. Malinowski descrevendo o Kula. sobre a separação entre homens e mulheres. B. Junções e Disjunções Não é nenhuma novidade..: “de quelques formes primitives de classification”. M. tanto quanto a sua externalização como relações entre pessoas. II. para a antropologia. em seu “modelo”.: Argonautas do Pacífico Ocidental. sobre as classificações primitivas: “As coisas são masculinas ou femininas. e no contato inicial com um código gráfico 4 Durkheim. objetos de valor do kula. Ou. o sol. Marilyn Strathern. torna-se impossível. Também não é novidade que masculino e feminino são categorias que designam não só pessoas. os primeiros partindo para o Kula. A primeira autora. XLIII. que a diferença sexual. Paris. 11. uma antropóloga.. a lua. . A segunda. se presta à elaboração de diferentes categorias sociais.”. Manchester. Françoise Héritier. 8 Douglas. Ithaca and Loodon. 1966. operaria o trabalho simbólico do parentesco. SP. diz que todo sistema de parentesco é levado a tratar conceitualmente alguns dados de base que são universais e que exprimiriam “a diferença”.6 Também na produção. V. 7 Turner. Le Seiul.8 E Sahlins. em todo o tempo e lugar.. Estes três constituiriam relações naturais universais. Paris. Isto quer dizer que algumas instituições importantes sempre se assentam na diferença entre os sexos”. fields and metaphors: symbolist action in human society. neste caso.: L'Exercice de Ia parenté. sobre os quais. 1981. lembremos apenas Victor Turner7 como exemplo sobre o simbolismo ritual e ação ritual. F. estaria a diferença sexual. M. quase por definição. Sobre a importância desta distinção. mesmo afirmando estar fazendo um reconhecimento banal.. com esta oposição. Gallimard. O processo ritual. Manchester University Press. fundamentalmente. a distinção entre os sexos é a distinção social primária. na análise do sistema de Héritier. de parentesco já se notará que seus símbolos operam. ao lado da sucessão de gerações e da ordem de nascimento. predominantemente.: Dramas. Também os rituais expressariam tal distinção e. Perspectiva. Cornell University Press. Sehism and continuity in an African Society. onde masculino e feminino e homens e mulheres estariam sendo jogados. 6 .: Pureza e perigo. a antropologia mostrou a importância desta distinção e seria esgotante lembrar todas as etnografias que remetem às atividades consideradas masculinas ou femininas. Petrópolis. e jogam. diz Mary Douglas: “Em culturas primitivas.24 Categorias analítica e empírica:. Entre estes dados. Vozes. 1974. depois de outras perguntas: “Não conheço cultura que tenha concretamente afirmado que não há diferença entre ho- Sahlins. sugere que o tecido. 11 Beauvoir. comparando-se sociedades do Pacífico e. aqui teríamos que concordar com duas afirmações de Strathern: a primeira. 10 9 . M. para afirmar. Perspectiva.macho e fêmea . Mead. Paris. S. Não deve ser casual que 1949 seja a data de publicação do Macho e Fêmea. masculino e feminino.11 O de Mead situa-se na antropologia. de Margareth Mead10 e O segundo sexo. estas e a sociedade americana. No primeiro parágrafo Mead pergunta: “Como devem pensar homens e mulheres sobre sua masculinidade e feminilidade?”.: Le deuxième sexe. na antropologia. A segunda. No livro. Sexo e temperamento. ou a antropologia inspiradas por estas teorias.9 Mas. O método é comparativo. o estudo sobre mulheres e sobre as relações masculino e feminino. 1979.: Macho e fêmea. de Simone de Beauvoir.e de gênero -. Gallimard. É o que nos diz esta autora com a primeira parte do livro: “O significado das perguntas que fazemos”. que uma vez descartado este mito se inventasse outro: o de que a antropologia e as teorias feministas.Suely Kofes 25 vestuário americano. Zahar. 1971. e “Como escreve um antropólogo”. SP. a de que é um mito que tenha sido o feminismo que motivou. da textura à cor e ao corte das roupas. M. expressa a distinção entre masculino e feminino. homens e mulheres. há termos mais marcadamente biológicos . RJ. 1949. 1969.: Cultura e razão prática. recortando a produção de mercadorias. Vozes. não comportam diferenças e inovações em relação aos estudos anteriores. RJ. do cará ter judeu. M. pela Fundação Respectivamente: páginas 23. 14 IN Beauvoir. opus cit. em seguida. e que recusar as noções do eterno feminino. que há mulheres na terra. Para Beauvoir: “Se a função da fêmea não é suficiente para definir a mulher. 5. não nega que existam judeus. cit.. Maria Luiza Heilborn. da alma negra. se admitirmos. pelo menos provisoriamente. de que mulher é um ser humano. como um livro “sobre a mulher”: “Durante muito tempo eu hesitei em escrever um livro sobre a mulher” é a frase com que Simone de Beauvoir inicia o livro e. negros e mulheres. 12 .: Le deuxième sexe. como o homem. no primeiro parágrafo. ajudam a raça humana a se ver de maneira mais completa”.26 Categorias analítica e empírica:. é bem conhecido. para o feminismo e para os estudos sobre a mulher. o que é uma mulher?”13 O impacto desta obra. 13. se recusarmos também a explicá-la pelo eterno feminino e. op.: Macho e fêmea.. 26. pergunta: “Mas há mesmo mulheres?” Em um encadeamento argumentativo vai afirmar que nem todo “ser humano fêmea” é necessariamente mulher.”. mas todo ser humano é singularmente situado. nós temos então que nos colocar a questão. em um ensaio que analisa os projetos do Concurso de Bolsas “Pesquisas sobre a Mulher”. mem e mulher.12 O segundo sexo defini-se. assim fazendo. 13 Respectivamente: páginas 11.37. Uma das conclusões de Mead é a complementaridade desta distinção: “Isto é parte da argumentação geral do livro: que as mulheres vêem o mundo de maneira diversa do homem e. aberto em 1979. in Mead. em Mead. nestes estudos.L. M. e metaliterária (ambas falam da literatura) destas duas obras.Suely Kofes 27 Carlos Chagas. um estudo de gênero. inclusive porque estou deixando de lado a dimensão literária.não muito problemática . . Por razões que me parecem óbvias: neste livro é enfaticamente descartada a naturalização dos chamados “papéis sexuais” . arbitrariamente. de sua trajetória e de seu destino. mimeo. a obra de 14 15 Heilborn. depois transformou-se em mulher. Orlando. do que falam os estudos sobre a mulher. Mas. Estou simplificando. resguardados os contextos de linguagem e questões particulares à época. eu são saberia avaliar.o corpo contendo e expressando múltiplas diferenças. op. o mais citado desta autora é Sexo e temperamento. M. encontrou-o como referência constante na bibliografia citada. Também a literatura poderia nos oferecer uma distinção semelhante se. Arrisquemos uma correlação: Orlando é uma biografia que fala do que falam as teorias do gênero.: “Notas sobre a antropologia da mulher”. Madame Bovary. para o feminismo e para os estudos sobre a mulher. com estas duas obras .15 Paradigmaticamente teríamos. cit. Mead. um estudo sobre mulher. de Virgínia Woolf. Antes e depois da transformação corpórea . e em Beauvoir. foi homem até os 30 anos.Macho e fêmea e O segundo sexo -. Mas. continuando a correlação. e ainda com riscos. como a biografia de uma mulher.14 O impacto da obra de Mead.: Sexo e temperamento. considerássemos duas biografias ficcionais: Madame Bovary. um campo de referências mais restrito que as categorias masculino e feminino. Recusam ainda as explicações de caráter totalizador. não haveria oposição. quando se fala em gênero. entre distintas teorias. que a distinção de gênero formula? Quando se fala em gênero há um alargamento do campo categórico e de sentidos. no meu entender.. Beauvoir estaria para a de Mead como a de Flaubert para a de Virgínia Woolf. Criticam o caráter identitário com que estes estudos referem-se à mulher. As categorias “mulher” ou “homem” recobrem. As teorias contemporâneas sobre gênero afirmam sua transcendência sobre as divisões e tradições disciplinares. Estes últimos teriam reduzido o horizonte compreensivo aos limites da categoria empírica. às vêzes diálogo.28 Categorias analítica e empírica:. e as primeiras poderiam ser consideradas como partes das segundas. mais do que as questões que estou colocando (embora acabem por aí chegar) o ponto nodal da discussão entre os estudos de gênero e os estudos sobre a mulher: a distinção dos campos epistemólogicos. E apontam os impasses epistemológicos dos estudos sobre a mulher. Mediações Não seria um tanto óbvio. Difícil negar a importância destas críticas.. onde se trava o duelo. Inclusive porque estas críticas situam. Desta forma. III. entre outras. exclusão ou substituição (mulher e/ou gênero. e enfatizam a diferença. considerar que mulher é uma categoria. gênero por mulher) mas gênero seria um instrumento que mapeia um campo específico . substantivos. sobre as experiências concretas dos sujeitos. . Quer onde estão sujeitos concretos. interrogações e pesquisas.estes temas. Refiro-me à relação entre universalidade e particularidade. homens e mulheres. na antropologia. p. esta relação ainda instiga. a contribuição que a antropologia acumulou em sua tradição sobre categorias de gênero. Universitário de Buenos Aires. Sobre esta relação. e sem entrar no mérito se é ou não satisfatória. Mas. além das contribuições contemporâneas. nos Tristes trópicos16: a de que só se vence a natureza reconhecendo seu império e concedendo a parte correspondente a suas fatalidades. aquele cujos referentes falam da distinção sexual. do meu ponto de vista. 16 Lévi-Strauss. Ed.Suely Kofes 29 de distinções. 236. BA. claro. fundamentalmente. como aquele sintetizado em uma afirmação de Lévi-Strauss. homens e mulheres. 1970. entre descrição e explicação. de classificação. seria importante considerar melhor. de alguns enigmas. tendem a ser pensados através de totalidades ou sistemas. entre categorias êmicas e éticas. Embora . em sociedades. mítico. normas e ação social. porque nesta disciplina as discussões sobre os estudos de gênero e sobre mulher podem também contribuir para as questões epistemológicas que a discussão contemporânea tem colocado em primeiro plano. quer onde nem mesmo encontramos estes sujeitos. E ainda. culturas. entre significação. de parentesco.ou talvez porque? .: Tristes trópicos. No primeiro caso. e do enfrentamento. C. e a importância estrutural da diferença. Além do reconhecimento. no segundo caso. trazida para esta discussão..30 Categorias analítica e empírica:. Mas ainda não seria um desafio enfrentar este enigma? Mas há outro desafio: talvez Orlando não subsuma Madame Bovary. . esta afirmação. é ardilosa. Evidentemente..
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