DANIELLE PISANJ DE FREITASROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas, Ed. Nova Fronteira, 2006. ROSA Guimarães. Noites do Sertão: Buriti, Ed. Nova Fronteira, 2000. TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TEDIO: , UM OLHAR DASEINSANALITIC0 1 MEDARD BOSS , paciente era um médico de trinta e dois anos, de uma família de classe média, solteiro e sem laços religiosos específicos. Em toda sua vida, até onde podia se lembrar, sentia-se perseguido por sentimentos de culpa severos e persistentes, que tinham feito de suaexistência uma sucessão de atas autodestrutívos e autopunitivos. Entre os vinte e cinco e os vinte e oito anos de idade, tinha seguido uma análise de quatrocentas e vinte horas de duração, conduzida pelo terapeuta nos moldes da teoria freudiana. Suas associações livres e sonhos levaram-no, no decorrer de sua primeira terapia, à firme convicção de que sofria de um fone complexo de Édipo e de castração. Frequentemente tinha sonhos eróticos com uma figura materna, várias vezes com sua mãe real. Estes sonhos eram seguidos por punições advindas de uma figura paterna onírica que visava à completa e violenta destruição de símbolos fálicos. Nem o paciente, nem o analista podiam negar que suas açôes autodestrutívas procuravam, na verdade, apaziguar seu sentimento de culpa e sua angústia de castração. Entre a multiplicidade de possíveis símbolos fálicos, a 1. Título original "Tratamento modificado daseinsanaliticamente de uma neurose moderna do tédio com comentários do paciente", retirado do livro Psychoanalysis and Daseinsanalysis, de Medard Boss. BasicBooks, Inc., Publishers. New York . 2" edição. 1963 o 84 85 inexplicavelmente. parecido com uma faca. Sua busca por um terceiro psicoterapeuta após dois anos de intervalo se deu fundamentalmente devido à falta de orientação interior e a um vazio de sentimentos que o faziam enxergar tudo sob um olhar deformado e escarnecido. diferentemente de seu antecessor. com o bisturi de dissecação que ele havia utilizado no primeiro semestre de seu curso de medicina. procurando assim demoli-la e soterrar o sonhador entre as ruínas. embora em dimensões bem maiores. envolto na atmosfera camarada da fumaça de um cigarro. Entretanto. estes sentimentos de culpa foram aliviados de alguma forma com a decisão de trocar de analista durante o quarto ano de análise.e nem àqueles que o cercavam. confiar em seu próprio discernimento e deixar de olhar a si mesmo como doente ou anormal. mas podia sentar-se em frente ao médico. em estruturas arquetípicas comuns à humanidade. Isto lhe restituiu a confiança de que seus pensamentos. através das cuidadosas observações do analista. Ele aprendeu que havia tanta "realidade psíquica" ligada a estas últimas quanto em suas fantasias sexuais. atacou a base da torre com um imenso instrumento cortante. Suas roupas também tinham de estar cada vez mais imaculadas. ao mesmo tempo. no inconsciente coletivo de sua psique. continuava insatisfeito consigo mesmo e com o mundo em geral. um lenço perfeitamente branco. pois. sem que lhe pudesse faltar. no entanto. Procurou desenvolver um maior interesse por suas atividades médicas e. Através de diálogos semanais. na esperança de que trouxesse mais significado à sua vida. Certa vez. seja na sombria monotonia de seus sonhos. fundamentalmente. No fim do segundo ano desta psicoterapia. Mas não demorou muito para que o estado do paciente estagnasse novamente.MEDARDBOSS TRATAMENTO DEUMA NEUROSE DO TÉDIO: UMOlHAR DASEINSANALITICO escolha recaía cada vez mais em torres de igrejas. que muitas vezes lhe pareciam estranhos e absurdos. em hipótese alguma. Deveria. à convicção de que pensamentos e noções religiosas em geral correspondem a uma função psíquica primordial. o paciente tivesse aprendido a ver um símbolo fálico nestas torres de igreja sonhadas. que tinham que suportar seu pedantismo. 87 . 86 Avidamente agarrou-se ao conceito de que seus sonhos religiosos tinham origem. que tinha as feições inconfundíveis de seu antigo professor de anatomia. seja no caráter estereotipado de sua vida cotidiana ou na morosidade crônica de seu estado psíquico. apenas o induziam a limpar e polir incessantemente suas superfícies. Dedicou-se a colecionar cristais. o paciente foi levado. o analista lhe explicou que já havia ensinado a ele tudo o que estava em seu poder. não mais o isolavam da companhia do resto da humanidade. o sonhador se encontrava no andar térreo de uma torre gótica quando um velho. Estas peças preciosas. nada mudou durante os três anos de análise. daí em diante. mas sua autocensura não o ajudava . No entanto. O paciente sentiu-se muito mais seguro com sua nova terapia porque não era mais obrigado a deitar-se em um divã. O paciente fez o melhor que pôde. e que pouco ganharia com o seu prosseguimento. por exemplo. conseguiu através de tenacidade e consciência admiráveis se familiarizar meticulosamente com a-literatura psicológica. principalmente as de estilo gótico. via imagens propriamente religiosas nas igrejas sonhadas pelo paciente. Ainda que. e a reconhecer no professor de anatomia o disfarce simbólico de seu pai castrador. isto é. Em poucos meses a diversão desencadeou uma compulsão furiosa pela limpeza fanática. Tentou desenvolver um hobby. O segundo analista. O instrumento parecia-se. que duravam várias horas e nos quais o analista era quem mais participava (diferentemente do método freudiano). Culpava-se por ser um esteta tão exagerado. através da evidência convincente de inumeráveis referências mitológicas e etnológicas. Neste momento crítico.como sentimentos religiosos . de acordo com o sábio conselho de Freud. percebeu-se como habitante de um mundo de miragens irreais. A primeira grande dificuldade de sua terceira psicoterapia apareceu cerca de seis meses após seu início. estava suspensa uma corda grossa. restringia-se a dirigir a atenção do paciente com uma ou duas frases para a resistência e o enclausuramento das portas dos banheiros em seus sonhos e. memórias. não fazia a mínima diferença se algo espiritual . presa ao teto da igreja. o que é sempre uma indicação confiável de que a pessoa tem algo a liberar de seu ser mais profundo. provou ao colega analista de modo bem claro que. basicamente. emoções ou sensações corporais.MEDARDBOSS TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OlHAR DASEINSANALfTICO No início deste novo tratamento. Com astúcia. sonhos. nâo-autônomo. que tinha sido muitas vezes caracterizada pelo mesmo tipo de experiência noturna. por mais dolorosas. vergonhosas aparentemente descabidas ou inúteis que pudessem parecer. O paciente ficou um tanto reticente diante do desafio de buscar um esclarecimento de si mesmo sem a psicologia. ainda 89 . Onde haveria algo genuíno e real que fizesse com que valesse a pena viver? KIeist havia sido inteiramente consistente ao tirar sua própria vida quando. Sua experiência havia lhe mostrado que em psicologia as coisas aconteciam em um círculo vicioso. Mas. quase todas as noites. o paciente encontrava-se frente a uma porta trancada de um banheiro. sua necessidade de defecar era tão imperiosa que ele atirou-se com todas as suas forças sobre a porta e a arrombou. Novamente. fantasias. ao se postular um A dedutível de um B ou de um C ou de um X. ele não teve escolha senão suspender-se na corda do sino. Desta vez.fosse visto como mera sublimação de uma fixação libidinosa infantil ou se fosse pensado como algo originado numa função psíquica por um hipotético "arquétipo" no inconsciente coletivo. após ler a filosofia kantiana da inescrutabilidade das coisas em si mesmas. mas que ainda não consegue fazê-lo. Ele deveria deitar-se como tinha feito durante sua primeira análise e. quer com o analista. no entanto. no entanto. Mas ele talvez tenha superestimado a capacidade de seu paciente. Era a corda com a qual o sacristão tocava o imenso sino da torre. acima da pia batismal onde. deste colecionador de cristais hiper-limpos ao chacoalhar com suas questões a porta dos banheiros trancados. sem qualquer reserva ou precaução. idéias. ele percebeu que estava no meio de uma grande igreja diretamente em frente a pia batismal. O paciente assegurava que o mundo dos psicólogos modernos era muito mais espectral. quer consigo. o paciente apenas aborrecia-se porque estes sonhos pareciam levá-lo diretamente a sua primeira análise freudiana. " Um sonho forneceu o anúncio da psicose. já se adulterou este A como A em algo derivativo. Ele estava também insatisfeito porque o antigo "nada a dizer" da parte do analista havia recomeçado. consultava um psicoterapeuta. O analista estava preparado para enfrentar uma resistência turbulenta à terapia deste esteta meticuloso. estava disposto a abrir mão de futuras discussões científicas e assentiu sem questionamento. a questionar a inacessibilidade destes lugares sujos para o sonhador. com banheiros trancados. cuja relação com a esfera fecal intrusiva e com toda corporeidade "inferior" tomou depressa uma forma severamente psícótica. a partir disto. logo informou o terapeuta de que era somente por falta de opção que. mais uma vez. O analisando começou 88 a sonhar. dizer tudo o que lhe viesse à mente: fossem pensamentos. uma vez que não mais podia evitar estes âmbitos de seu mundo através do ato compulsivo de colecionar e limpar cristais "puros. pois nele revertia-se a um conceito de "realidades psíquicas" antes mesmo de se haver demonstrado a existência de uma única "psique". Pois. O terapeuta. Sobre esta pia. Desorientado. ao invés de entrar no banheiro como esperava. Inicialmente. o analisando foi aconselhado a deixar de lado a psicologia. Assim que acordou. ser 91 . correu para casa choramingando. chamando-o centenas de vezes "mamãe. Estes "delírios" sensoriais não podem ser entendidos em sentido inverso. a totalidade de sua existência estava igualmente absorvida na sua relação com a esfera fecal. o paciente ouviu "vozes" que o insultavam com diversos impropérios. Ele mal conseguia comer. fecal. Em sua fúria quebrou dois grandes vasos da sala de consulta atirando um no chão e o outro contra a parede. Ele estava ainda menos capaz de relacionar-se com esta esferacorno um si-mesmo livre e independente. No sonho inicial. Neste momento.MEDARDBOSS TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OlHAR DASEINSANALfTICO agarrando-se na corda. o paciente sucumbiu completamente ao âmbito terreno. o quadro clínico sugeria mais um típico surto esquizofrênico do que uma crise histérica. permitindo que verificasse. sozinho e com suas próprias mãos. no entanto. mas seus pés estavam presos nas fezes. Seu estado mostrava completa queda ou submissão ao âmbito fecal. Podem. Na agonia destas terríveis torturas corporais. mamãe. criando uma tensão que o puxava para cima. mas ainda estava terrivelmente angustiado. ao despertar de seu estupor. com toda essa movimentação frenética. a corda acabou por enroscar-se inextricavelmente em seu pescoço. seu ser inteiramente atolado na sujeira. com o paciente deitado. Pelo final do dia seguinte ele já havia se recomposto. Então. aliviou-se. de modo que a cada badalada do sino ele estava sendo rasgado em dois. no entanto. querida. logo ele estava atolado até os joelhos em seus próprios excrementos. Seus pés. O paciente agradeceu. Mas o pior de tudo era que a cada soar do sino lá no alto a corda. sua relação com esgotos ganhou tal domínio que o deixou totalmente entregue ao âmbito fecal. seus esforços desesperados para subir pela corda puseram em movimento o sino da torre. por pouco não atingindo a cabeça do analista. não precisa negar sua existência e excluí-la de sua vista. o paciente se atirou nos braços do terapeuta como uma criança se agarra a sua mãe. Durante o subsequente estado psicótico acordado. que uma pessoa não precisa se envergonhar de sua corporeidade. Permaneceu sentado ao seu lado o dia inteiro 90 e a maior parte da noite e alimentou-o através de sonda. querida'. chamando-o de "cagão". Antes que o surto acabasse toda a sala estava encharcada de água e o carpete repleto de pétalas de flores e cacos de louça. Este havia tomado a forma de seu aprisionamento na pia batismal e seu esforço desesperado para içar-se. Pior. pois ele somente ouvia. continuavam aprisionados em seus excrementos. Nos dias seguintes estava enfurecido com seu analista por tê-lo deixado sentir toda a imundície de sua corporeidade. ou como localizados numa área do cérebro a partir da qual seriam projetados. como derivados de um tipo de afeto interno ou de estímulos dentro de um órgão sensitivo. ele abriu os olhos como se despertasse de um sonho profundo. ele não percebia nada além disso em tudo que encontrava e sofria "alucinações olfativas e auditivas". procurou com todas as suas forças subir pela corda do sino até a torre da igreja. inexplicavelmente. por tê-lo aceito com todas as suas necessidades terrenas. imediatamente antes do irromper de sua confusão. se enfiou na cama. A qualquer lugar que fosse sentia cheiro de esgoto e fezes. Quarenta e oito horas depois. Psiquiatricamente. mais que nunca o analista assistiu seu paciente. roubando-lhe assim sua dignidade humana. no entanto. antes de tudo. isto é. Além disso. e nada o demoveria de assumir inteiramente o cuidado de seu paciente. Poucas semanas mais tarde. sentia e cheirava excrementos. que estas "alucinações auditivas" foram as "alucinações olfativas". Depois que sua raiva se esvaiu frente à calma imperturbável do analista. ele desperta. enroscava-se em volta do eixo do sino. fechou os olhos e entrou num estado catatônico por dois dias. Tentando escapar desta crescente massa de excrementos. Os movimentos de seu intestino não paravam. De alguma maneira. literalmente pela primeira vez em sua vida. o terapeuta pôde retomar a técnica clássica da análise. que gênio maligno o havia permitido cometer a blasfêmia de. Desde que ele havia se jogado nos braços do analista ao sair de seu estupor catatônico. Esta era. Ele havia rejeitado ambos os elementos e interpôs uma distância irreconciliável entre eles e si mesmo. cada vez mais. a um tempo anterior ao enganoso ponto de virada de sua história de vida. com certa rapidez.MEDARDBOSS TRATAMENTO DEUMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OlHAR DASEINSANAlfTICO compreendidos com base na condição da totalidade de sua existência. Por que ele constantemente precisava se defender do desafio que elas ofereciam através da transformação em abstraçôes psicológicas. basicamente. Finalmente teve de admitir que com todas as suas profundas idéias psicológicas ele estava. então. aberto a ele . sem nada dizer. Ele se perguntava. a relação com o mundo que correspondia ao estado verdadeiro de sua existência.durante os quais.mesmo. desamparado para compreender suas experiências religiosas. uma vez que ele nunca permitiu que o terreno-fecal ou o divino-celestial entrassem em seu mundo e nunca os aceitara em seus próprios direitos. por vezes. levar suas fezes para dentro de uma igreja e na pia batísmal. O paciente não podia negar que todas suas experiências oníricas eram intensas e arrasadoramente fortes e. Em um sonho recente. às vezes. A segunda parte desta suposição do médico era contestada com grande vivacidade pelo paciente. de fato. No entanto. irradiando da cúpula uma luz azulada e não-terrena. no curso de sua segunda análise. Era. Após mais seis meses de análise . ele poderia conquistar um modo de relação mais aberto.o paciente não mais precisava entender objetos e seres humanos como reflexos enigmáticos e fantasmáticos. ele não experienciou outras alucinações auditivas no estado de vigília. De outra feita. A partir de então. dizia ele. aqui que ele poderia consolidar-se. o analista precisava apenas estar lá. duvidou da imediata realidade da corporeidade. mais livre e mais amoroso com âmbitos cada vez mais amplos. O analista perguntou por que. Não mais precisava 93 . luminosas. continuamente. cheio de expectativas. em nenhum momento. tão beatíficas que iluminavam toda sua vida vígil também. por um curto período. em um genuíno si . quase todas as noites ele sonhava com o interior de igrejas? Como ele explicava a alternância curiosa e persistente destes sonhos com outros sonhos fecais e sonhos de sexualidade? As igrejas de seus sonhos por vezes eram escuras e. algo permaneceu muito difícil para o paciente perdoar. portanto. havia adquirido uma abrangente compreensão 92 da verdade psíquica de uma imagem arquetípica divina no inconsciente coletivo da psique humana. inclusive a relação com os âmbitos fecal e terrenos do mundo humano. Antes de tudo. do fato de ter sido completamente capturado no âmbito fecal. entre todos os lugares possíveis. Dessa maneira ele pôde amadurecer para entender porque não se atrevia a deixar que estas aparições divino-celestiais fossem as realidades imediatas assim como se apresentavam a ele. que poderia conseguir o que até agora ele não havia conseguido: a capacidade de caminhar independentemente e de assumir responsavelmente todas as possibilidades de relacionamentos. de recolher-se no comportamento de uma criancinha. então. seria dar ao paciente a possibilidade de voltar. Jesus Cristo havia aparecido corporalmente e olhava-o em silêncio. Muito lhe ajudou aqui uma questão colocada pelo terapeuta: não será da própria essência humana que ele deva o tempo todo se reconciliar com sua condição essencial de estar entre céu e terra? Talvez tenha sido exatamente esta tensão que o conduziu à desordem em seu sonho e em seu subsequente surto psicótico na vida acordada. A única coisa necessária. tais como o hipotético arquétipo? Enquanto estava sendo ameaçado pelos sonhos fecais e em sua confusão psicótica o paciente. ele havia escutado a poderosa voz de Deus reverberando em uma imensa catedral como um oceano de sinos tocando e que disse: "Eu sou quem eu sou". Tampouco apareciam para ele como algo simplesmente presente (Vorhanden). independente das múltiplas facetas e disfarces nos quais ela possa aparecer. com certeza. por si mesma. é um poderoso gesto em direção ao céu. de uma vivacidade incomum. Ele se casou e teve quatro filhos. através de sua erudição e cinismo. O âmbito fecal já o ocupava terrivelmente na sua primeira análise e. e o homem ser o professor de anatomia.MEDARDBOSS TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OLHAR DASEINSANALfTICO entendê-los como meras realidades psíquicas impingidas a partir de algo inescrutável para dentro de sua consciência através de órgãos sensitivos . sua relação religiosa básica. Este casamento. Agradece por cada novo dia. parte de um complexo sistema telescópico psíquico. na verdade desde que começara seus estudos de medicina. Todos os sentimentos de culpa são profundamente enraizados nesta dívida. o paciente fechou sua mente ao apelo da torre da igreja.os quais servem como arquétipos ou outro tipo de lentes refratoras. Deste modo. havia destruído a fé em Deus do paciente. por isso. desde o mais terreno até o mais celestial. "a torre da igreja orienta o olhar dos homens por uma longa distância em seu entorno até a morada de Deus". O professor de anatomia. procura explicar os motivos pelos quais suas duas primeiras tentativas de análise não tiveram êxito. o homem fica inevitavelmente em débito com relação àquilo que lhe foi originalmente confiado. foi sepultada e enterrada. Este sonho parou de atormentá-lo apenas quando o paciente ousou deixar a torre da igreja ser uma torre de igreja. 95 . Esta dívida também jazia sob os sentimentos de culpa de nosso paciente. Mas ele não havia simplesmente fugido de um encontro com um símbolo psicológico de natureza libidinosa ou arquetípica. objeto de sua admiração. aparecendo à luz de seu Dasein. uma vez que os menores gestos adquiriram um significado novo e muito mais rico. durante sua primeira etapa analítica. não se poderia dizer que o primeiro analista havia falhado em chamar a atenção do paciente para a analidade prevalente nos seus sonhos. em uma carta a seu terceiro analista. alcançou sua liberdade e sentiu-se pleno e completo. O que lhe ocorreu é que uma torre de igreja gótica. Como ele colocou. inacessível à aproximação direta e investidas de significado somente à luz de imagens do mundo e projetos de mundo (Welt-entwürfe). como as realidades intrínsecas imediatas que elas são. isto é. Como já foi 94 mostrado anteriormente. permitindo que ambos se aproximassem dele em seus significados e conteúdos plenamente genuínos. Por muito tempo. Cerca de onze anos se passaram desde o ameaçador episódio psícótíco pelo qual passou este paciente na sua última análise. A causa originária e última de sua eclosão (da culpa) foi sua fuga tanto da totalidade de sua corporeidade quanto de sua religiosidade. Por um bom período anterior a isto. Tornou-se capaz de acolher e levar a sério tudo o que lhe aparecesse. no entanto. Em seu trabalho ele é considerado um homem com força de vontade e capacidade de trabalho excepcionais e irradia uma cordialidade calorosa e bom humor inabalável. Assim. uma possibilidade importante da vida. trouxe grande enriquecimento humano para ambos os cônjuges. só pode ser compreendido como uma representação simbólica disfarçada de seu pai castrador. Há pouco tempo este homem. uma negação e o fechamento de alguém para qualquer possibilidade de comportamento impossibilita atingir seu verdadeiro si-mesmo em sua totalidade e. ele tinha sido constantemente atormentado por aquele sonho da torre da igreja gótica e de seu professor de anatomia que. excepcionalmente inteligente e sensível. Ele havia se fechado para a proximidade tanto do que é terreno como do que é divino em sua totalidade imediata. Minhas recordações do tempo que passei com meu segundo analista são como um repouso num jardim elegante de um arranha-céu americano. a imediata realidade dos fenômenos penetra de alguma maneira a blindagem da teorização psicológica. Isto explica porque não apareceu. enfeitado com lindos buquês de flores. estou bastante convencido. de uma "subjetividade" ou de uma "personalidade. Se.prado@gmail. se não quiser ser levada pelo primeiro vento que vier"? 96 Esta carta. no entanto. mais que aliviar seus sintomas. jamais chegou a minha altura o menor aroma da terra coberta pelo asfalto da rua. como no meu sonho da igreja e excremento. é claro) permanece aberto ao conteúdo indisfarçável das coisas como elas são. somente depois deste estado pueril é que meu renascimento e amadurecimento posterior puderam ter início. deixa-nos ainda com a questão de como é possível que muitos pacientes tornem-se visivelmente melhores mesmo sendo conduzidos por seus analistas meramente a uma compreensão intelectual de símbolos de um tipo ou outro. muito maior. e nas conversas psicoterapêuticas estávamos a quilômetros do estado infantil a que retrocedi na fase de confusão que eu experienciei quando estava com você. se a compreensão humana do analista. Durante aqueles dois anos. ao mesmo tempo. A recuperação será muito menos casual. através de anos de um esforço sincero para muito além do escopo das teorias psicológicas anteriores. ele conseguirá cada vez mais extrair alegria da responsabilidade confiada a ele e a dignidade da existência emprestada a ele enquanto ser humano. participar efetivamente da abertura e da liberdade humanas. Será assim. cada vez mais capaz de ajudar seus pacientes a. naquela situação psicanalítica. eu também não podia desenvolver-me genuinamente. ele escreve.com 97 . então. nenhuma corda firmemente atada ao teto. Todo o domínio do sagrado. tanto mais profundamente ela precisa afundar suas raízes na terra. para que eu pudesse agarrar e ancorar-me na minha descida para a região terrena e fecal. Ele sempre tentava reduzir as minhas igrejas oníricas a símbolos genitais. não era mais que uma espécie de produto de sublimação. Não diz Nietzsche em algum lugar: "quanto mais uma pessoa ascender para o céu. Como tudo o que era terreno permanecia selado. para ele. Somente agora compreendo de modo mais completo o que vi na última parte da análise com você: que havia uma fina trama contínua entre meus temas fecais e sexuais e as experiências religiosas que me prendiam tão profundamente.MEDARDBOSS TRATAMENTO DEUMANEUROSE DO TÉDIO: UMOlHAR DASEINSANALfTICO "Eu não me atrevi". aprofundada e enriquecida daseinsanaliticamente. para certas pessoas. O perigo de cair sem salvação na sujeira e no caos teria sido. de que aí reside o verdadeiro motivo daquele primeiro fracasso". entretanto.ABD fátima. Tenho que admitir que só recentemente pude ver isto claramente. A experiência de Freud nos ensinou que um pré-requisito da terapia psicanalítica é a "purificação" do terapeuta através de sua análise de treinamento. Uma resposta possível no presente estado de nosso conhecimento é a de que. Tradução: MARIA DE FÁTIMA DE ALMEIDA PRADO Membro da Associação Brasileira de Daseinsanalyse . de resto. Nenhum sonho fecal surgiu nesses dois anos. A possibilidade disto acontecer aumenta se o próprio analista em seu relacionamento com o paciente (de modo não deliberado. tão reveladora da elevada importância das relações terapêuticas. "a penetrar com tranquilidade nesta esfera da sujeira sem reservas porque desde o início sentia que para meu analista não havia força sustentável na esfera espiritual e religiosa. cujas dimensões certamente ultrapassam de muito os conceitos de uma "psique". o daseinsanalista chegar a vislumbrar a essência do homem como abertura-para-o-mundo. mostrar-se como uma mudança deliberada no próprio analista.