Bioética como novo paradigma e saúde

March 19, 2018 | Author: marcelopelizzoli | Category: Phenomenology (Philosophy), Science, Sociology, Reality, Paradigm


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1Bioética como novo paradigma 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bioética como novo paradigma : por um novo modelo biomédico e biotecnológico / apresentação de Frei Antônio Moser ; Marcelo Pelizzoli (org.). – Petrópolis, RJ : Vozes, 2007. Vários autores. ISBN 978-85-326-3453-5 1. Bioética 2. Ciência – Aspectos morais e éticos 3. Ética médica 4. Pesquisa – Aspectos morais e éticos I. Moser, Antônio. II. Pelizzoli, Marcelo. 07-0509 CDD-174.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Bioética 174.2 3 Bioética como novo paradigma Por um novo modelo biomédico e biotecnológico Apresentação de Frei Antônio Moser Autores: Marcelo Pelizzoli (org.) Paulo Henrique Martins José Augusto Barros Leandro David Wenceslau Erliane Miranda Raphael Douglas Tenório Filho Gustavo Cunha Ricardo Timm de Souza Ray Moynihan Alain Wasmes 4 CC - This work is licensed under the Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License. To view a copy of this license, visit http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ or send a letter to Creative Commons, PO Box 1866, Mountain View, CA 94042, USA. Editoração: Sheila Ferreira Neiva Projeto gráfico: Capa: ISBN 978-85-326-3453-5 Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. 5 Sumário Apresentação – Bioética como novo paradigma (Frei Antônio Moser), Prefácio – A radicalidade do novo paradigma bioético (Marcelo Pelizzoli), 1. O paradigma energético e os novos significados do corpo e da cura (Paulo Henrique Martins), 2. Repensando o processo saúde-doença – A que responde o modelo biomédico? (José Augusto C. Barros), 3. Para além da doença – A medicina como promoção de saúde (Leandro David Wenceslau), 4. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético (Erliane Miranda e Raphael Douglas Tenório Filho), 5. Manipulação genética e reprodução humana (Gustavo Henrique de Brito Albuquerque Cunha), 6. Bases filosóficas atuais da bioética e seu conceito fundamental (Ricardo Timm de Souza), 7. A bioética como novo paradigma – Crítica ao cartesianismo (Marcelo Pelizzoli), 8. Vendedores de doença – Estratégias da indústria farmacêutica para multiplicar lucros (Ray Moynihan e Alain Wasmes), Anexo – “Carta à filha de minha neta”: Um outro mundo é possível... (Marcelo Pelizzoli), 6 Apresentação Bioética como novo paradigma Uma das maneiras para caracterizar um certo período da história é buscar as palavras-chave, normalmente remetendo para metais, acontecimentos considerados decisivos, ou para os mais diversos tipos de marcos. Se quisermos encontrar as palavraschave para caracterizar o momento presente, não teremos muita dificuldade: basta colocar um prefixo “bio” e acrescentar um sufixo qualquer. Assim: bioenergia, biodiesel, biogenética, biotecnologia, bioterror... Naturalmente que nesta caracterização não pode faltar a palavra bio-ética. Esta não apenas se tornou uma referência obrigatória quando se trata de pesquisas de laboratório, mas se tornou uma referência obrigatória para se entender o que pode ser considerada uma das maiores revoluções de todos os tempos. De fato, ao longo da história houve muitas revoluções, mais ou menos profundas. No entanto, todas elas agiam de fora para dentro, enquanto a revolução biotecnológica passa a agir de dentro para fora. Traduzindo, como nunca em eras precedentes, a revolução biotecnológica oferece ao ser humano a capacidade de conhecer e interferir nos mecanismos mais secretos da vida. Daí a estranha e paradoxal sensação que se apodera dos seres humanos: ao mesmo tempo de fascínio e de temor. A pergunta que surge espontaneamente é esta: diante de tudo isto, para onde vamos? Houve um período no qual as várias ciências retratavam os conhecimentos possíveis dos vários setores da vida. Hoje, na exata medida em que o biopoder avança, se percebe a necessidade urgente de conjugar todas as ciências para se poder contar com uma melhor radiografia da realidade. Concretamente, isto significa que, embora desde sempre os mecanismos vitais fossem articulados, por falta de conhecimentos adequados a humanidade não se dava conta da inter-relação tão estreita. E sobretudo, por falta de instrumentos capazes de interferir no núcleo central das inúmeras manifestações da vida, os malefícios já efetuados e previsíveis não eram tão assustadores. Hoje não apenas estamos assistindo à morte prematura e injustificável de uma multidão de seres vivos, temos o pressentimento de que o pior está para acontecer, porque já está acontecendo. De fato, a grande batalha que se trava hoje é entre humanização e desumanização, entre uma cultura da vida e uma cultura da morte. 7 É nesta altura que se compreende a importância decisiva da bioética como uma ciência que se propõe a estabelecer uma ponte entre as várias ciências e as mais diversas tecnologias, mormente aquelas que tratam mais diretamente dos segredos da vida. Encontrando-se no ponto de convergência de uma multiplicidade de saberes, a bioética é uma das esperanças de que, em meio às loucuras possíveis oriundas de tamanho saber e de tamanho poder, acabe triunfando o bom senso. Este bom senso vai se manifestar não apenas em questões pontuais, como também e sobretudo nas grandes coordenadas inspiradoras para uma nova maneira de ser e de viver nesta terra. Assim, a bioética, enquanto portadora de uma concepção filosófica e antropológica de cunho humanista, vai se constituir num verdadeiro novo paradigma: o paradigma que compreende tudo a partir do todo e que abraça o todo sem negligenciar nenhuma das partes. Esta holística intelectual, que requer uma prática correspondente é que se constitui no fio condutor desta importante obra que não apenas vem enriquecer o catálogo Vozes, mas vem contribuir para um novo gerenciamento dos recursos da terra e dos recursos humanos. A construção de uma “casa” onde todos possam e tenham gosto de viver é ainda um sonho, mas um sonho que começa a ser delineado através de abordagens como esta, na qual emerge um novo paradigma. Frei Antônio Moser 8 Prefácio A radicalidade do novo paradigma bioético Estar ciente das grandes mudanças histórico-culturais e teóricas de nosso tempo é tarefa urgente da sociedade incluída e organizada. Torna-se evidente que a mais importante e atual tarefa socioambiental da ciência e das humanidades hoje são os desafios da Ética, o seu sentido primeiro e suas possibilidades reais diante dos rumos ditos inevitáveis da sociedade de consumo no capitalismo. É devido às intervenções catastróficas e imprevisíveis da racionalidade instrumental (tecnocêntrica), que a tradicional Ética se torna aos poucos “bioética”, em vista dos dilemas socioambientais dantes impensáveis. Por que defender os seres não-humanos? Por que deixar de intervir na essência humana, psicológica e biológica, genética, para transformá-la? Por que não levar a manipulação atômica a todas as suas possibilidades? Por que não desenvolver a indústria com todos os meios do progresso material ilimitado? Não somos nós deuses na terra a ser dominada? Por acaso a medicina moderna não irá curar todas as doenças? São perguntas, hoje, obsoletas e ingênuas, além de perigosas e reveladoras de um tempo de crença positivista. Não obstante, continuam a ecoar em nossos paradigmas teóricos, guiando práticas científicas e modelos de organização social e institucional, onde ocorrem os mesmos discursos, mas emaranhados numa teia da acomodação. Porém, crescentemente, põe-se a questão da crítica, das alternativas éticas, filosóficas e institucionais diante da racionalidade tecnocientífica consentânea da desumanização e objetificação das relações pessoais e com a natureza viva. Estamos, pois, no cerne dos desafios trazidos por um grande e novo paradigma – onde estão a ética aplicada, ou a filosofia prática, ou ética prática, mormente sinônimos de bioética. Bioética como novo paradigma não é apenas mais uma moda, pois evoca um movimento social e de consciência diante dos franksteins tecnológicos produzidos pela tecnociência, diante das vinganças somáticas e psíquicas da tecnologia, diante das intervenções antrópicas fragmentárias, simplificadoras e unilaterais no ambiente complexo e de alta interdependência chamado natureza (natural, construída, corporal e humana), diante da resposta da natureza tornada “praga”, doenças, efeito estufa, seca, contaminação, iatrogenia e uma gama de reações 9 frutos da artificialidade rápida do “progresso”, em seus aspectos obscuros. Que novos efeitos esperar? A hipótese da Bioética como novo paradigma, o da era ecológica, no sentido que já o mentor (Potter) do termo queria dar: “ética da Vida, união do homem com a ecosfera”, evoca o movimento do espírito de um tempo, que tem nas mãos o destino da geração atual e futura; tempo que postula: simbiose ou morte! Não se trata apenas de tom catastrofal, mas de compreensão profunda do poder retido nas mãos de alguns senhores do destino apoiados por massas fascinadas. A economia de mercado pautada na noção de progresso material ilimitado e de intervenção humana sem pudores põe-se hoje como este fascínio, pregado como único modo civilizatório, como futurismo tecnocrático, onde todos, por fim, reencontrar-se-iam com seu sentido projetado dentro de um programa de computador que os guiam: a verdadeira matrix disseminada, a nova mente mecânica que não precisa pensar, protestar ou sofrer por amor. Por outro lado, surge a questão dos Direitos humanos, surge o habitar sustentável na ética ambiental (“ecologia”), surge a afirmação do feminino e da mulher, quiçá outro modo de pensar o civilizar-acolher humano; surgem os movimentos alternativos, os movimentos sociais engajados, culturas locais, a arte contemporânea arrebenta os padrões positivistas, a psicanálise deflora o desejo e o inconsciente para além das identidades maquínicas, a humanidade começa a gritar: um outro mundo é possível! Sim, bioética como novo paradigma nada mais é do que o apontamento de um novo tempo, de reconhecimento de rumos tortos, interesseiros, dilapidação do ambiente natural e construído, de ameaça à essência humana pela via cultural, mas também pela via genética, enfim, pela via da racionalidade instrumental. Esta, sim, ousou tomar o ser humano por meio e mero uso em vez de fim e dignidade sagrada. Não digo que precisaria haver uma religião para haver necessidade de ética ou bioética, mas, pelo menos, o reconhecimento de que o nosso brincar de Deus tem produzido um apartheid social e ambiental sem precedentes, bem como reveses e franksteins sentidos por nós a cada dia, em nossa precária saúde, em nossa qualidade de vida. Ser humano é ousar sim, avançar, progredir, crescer; não obstante, para onde e para quê? Para ser feliz... Tecnologia para ser feliz? Pílulas da felicidade? Comumente, quem é feliz vive com amor ou sabe amar e lutar. Por conseguinte, progresso, verdadeiro, é amar, amizade, felicidade, solidariedade, usufruto da natureza equilibrada, alimentação adequada, vida sem 10 estresse, ser humano respeitado, aceitação do outro, medicina promotora da saúde e não a indústria da doença, não a engenharia de órgãos nem a aplicação de técnicas fragmentárias. Como nossas instituições sociais, mormente a saúde e a urbanidade têm priorizado tais fins humanos? Que impacto tem em nossa consciência a precariedade dada nas doenças da pobreza, e mais, das grandes doenças causadas pela riqueza, ou acumulação dela? Quais os direitos das gerações futuras? Somos máquinas nas mãos de médicos-mecânicos ou seres afetivossimbólicos culturais? Somos passíveis de melhoramento genético ou é melhor investir mais no progresso humano-pessoal? Somos controláveis por drogas ou quem sabe precisamos mais é ser amados e incluídos? Nossos filhos podem ser cobaias? Alguém tem direito a nos fazer de cobaias para novas drogas e alimentos? Nossos fetos podem ter apenas função de produzir tecidos ou peças? Devemos engolir transgênicos e aditivos “guela abaixo”? Qual o impacto econômico, ambiental e social disso tudo? São apenas algumas questões bioéticas que evocam não apenas os imensos desafios que nos esperam, mas revelam o atual espírito do tempo, de um prisma inadiável para a humanidade, postura de defesa socioambiental, um paradigma pautado mais na ética do que no lucro, uma verdadeira racionalidade bio-ética. Os textos da presente obra procuram – de modo crítico e radical (raiz) – traduzir tais preocupações e expectativas desde um olhar científico e filosófico do novo momento, apontado para os temas mais essenciais à vida humana: a saúde e sua interface ambiental. Tais expectativas vêm de lugares próximos na ótica, mas distintos na geografia, tais como Pernambuco, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Austrália, e representam um movimento planetário de construção de uma outra saúde é possível, dentro do um outro mundo é possível, lema do Fórum Social Mundial. E são as mesmas investigadas pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Bioética e Ambiente do Dep. de Filosofia da UFPE, do Curso de Especialização em Bioética e da SBB-PE. Agradecemos aqui a apresentação e o apoio do Frei Antônio Moser, renomado autor e promotor na área da ética e bioética. Prof.-Dr. Marcelo Pelizzoli 11 1 O paradigma energético e os novos significados do corpo e da cura Paulo Henrique Martins* Introdução Para algumas associações médicas oficiais e para muitos dos médicos modernos – que foram formados na ciência de base alopática – as terapias alternativas apresentam uma ambivalência insuportável. Faltariam a elas, supõem esses profissionais, a exatidão e precisão científica dada pela pesquisa em laboratórios, e faltaria aos terapeutas alternativos uma formação criteriosa e sistemática que é oferecida pelos cursos de nível superior. As chamadas medicinas alternativas não teriam como provar esta perspectiva da precisão científica. Pois na medida em que propõem ser ao mesmo tempo modernas e tradicionais, sagradas e profanas, ocidentais e não-ocidentais, funcionais e interpessoais elas não poderiam se subordinar a testes de validade dados pela repetição controlada das experiências, como se faz comumente nos laboratórios. Para alguns esta ambivalência seria até prova de charlatanismo, ao contrariar os cânones da biociência médica moderna. Mas a ambivalência não é vista como problema para os que postulam que a ciência médica não se justifica apenas pelo teste de laboratório. Para estes há outros indicadores confiáveis para garantir a cientificidade do saber médico, entre eles sendo assinaladas: a) a qualidade dos cuidados na relação médico-paciente e o tipo de participação do paciente na construção da cura; b) a aceitação de outros métodos de validação do saber e seu sucesso, como, por exemplo, aquele produzido pela experiência vivida no próprio corpo. Nesta perspectiva de entendimento das terapias alternativas a partir de uma cientificidade aberta à ambivalência e à pluralidade experimental, pode-se dizer que elas são tradicionais quando valorizam as dimensões simbólicas, naturalistas e transcendentes de cura herdadas de medicinas não-ocidentais – o que entra em conflito direto com as crenças racionalistas da medicina oficial. Por outro lado, elas se propõem ser modernas – conforme constatamos freqüentemente nas nossas entrevistas com terapeutas alternativos –, quando reivindicam a cientificidade dos novos sistemas de cura, apoiandose em pesquisas experimentais corporais e energéticas (mesmo que não verificáveis em laboratórios). Por outro lado, a luta de terapeutas alternativos por reconhecimento oficial na Europa e suas conquistas, nos últimos anos, é prova deste tipo de mobilização. Do mesmo modo, o sucesso de novas políticas de saúde como o Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, está diretamente ligado às possibilidades de articular o saber alopático e outros saberes (alternativos e populares) nas ações de saúde territorializadas. Há, enfim, a emergência irrecusável, apesar de sua * O autor é sociólogo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bolsista de produtividade científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), autor de várias obras e artigos nacionais e internacionais, entre eles Contra a desumanização da medicina, Ed. Vozes. 12 diversidade, de um novo e complexo campo médico que tem impacto social universal inegável e que defende o valor da pluralidade científica, mesmo que tal pluralidade aponte para novos saberes e técnicas que se confrontam com o paradigma biomédico dominante1. O discurso científico proposto pelas terapias alternativas tem várias facetas. Mas, pessoalmente, a partir das nossas observações, cremos ser possível propor que constituem a expressão do novo paradigma na saúde, cuja definição mais exata cremos ser a de um “paradigma energético”. Seguindo as observações de T. Kuhn (1975) relativas às propriedades de um novo paradigma2, diríamos que este é um campo de conhecimento novo que se afirma a partir de suas próprias regras e códigos de reconhecimento. Como todo paradigma, este não se referencia apenas na validade técnica. Ao contrário, falamos de paradigma justamente porque existe um fundamento cultural e social que inspira o surgimento e a expansão do campo das terapias alternativas. O centro deste paradigma se chama “experiência vivida”. Existe, pois, uma disputa importante em torno da validade de métodos científicos a partir desta mudança de paradigmas. O modelo hegemônico, porém, continua sendo o cartesiano. Este, ao delimitar um 1 Sobre a crítica a este paradigma e a promoção de outro, veja aqui nesta obra os textos de Pelizzoli, Barros e Wenceslau. 2 O conceito de paradigma remete necessariamente à célebre obra de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (1975), na qual ele sugere que, num sentido forte, o termo paradigma dominante traduz uma visão de mundo particular do campo científico: um conjunto de generalizações simbólicas revelando a cultura própria de uma dada comunidade científica a qual se expressaria por metáforas, figuras e analogias. Esse conceito de paradigma vincula a idéia de ciência àquela de sociedade e, em particular, ao modo de reinvenção das crenças científicas por meio das instituições sociais e culturais. Para Kuhn, a ciência não evolui numa lógica de progresso contínuo, indo das técnicas primitivas àquelas avançadas, mas a partir do que, num certo momento, aparece para a comunidade científica como a representação de uma ciência normal e legítima. Nessa perspectiva, a mudança de paradigmas na medicina significa a perda do poder da “clínica moderna”, de bases alopáticas, que foi hegemônica nos dois últimos séculos. 13 território restrito de observação e de compreensão da realidade fundado numa percepção predominantemente visual que separa o observador (caracterizado pelo cientista no laboratório) do observado (o experimentocoisa) gera, fatalmente, uma representação dualista da ação social. Passase a impressão – errônea – de que a realidade é fundada sobre dois elementos essencialmente diferentes: de um lado, o sujeito, dotado de um olhar clínico e científico, de outro, o objeto, visualizado por um corpo mecânico3. Lembremos, a propósito, que este dualismo metodológico se transformou ao longo dos séculos, seguindo o movimento de secularização cultural e de passagem do controle do poder temporal da Igreja para a ciência e para o Estado. Enquanto num primeiro tempo, com Descartes, a nova ciência apresentava um alto grau de idealismo – ao se atribuir a origem do conhecimento à inteligência de uma figura divina escondida por trás do olhar calculador do cientista –, num segundo tempo, a perspectiva se inverteu. Não é mais o sujeito transcendental quem inspira o conhecimento, mas o próprio objeto que se apresenta sensualmente ao conhecimento através do que o empirismo sustenta ser a evidência empírica do objeto. Mas tal evidência é apenas aparente, pois ela se sustenta, como o demonstrou Le Breton (1990), num tipo de tecnociência empirista fundada na valorização do olhar dominador em prejuízo dos demais dispositivos sensoriais, em particular aquilo que Merleau-Ponty (1945) define como a capacidade de “sentir total” a realidade. Mas por trás das aparentes oposições sugeridas pelos dois termos da equação – o sujeito e o objeto –, existe uma profunda conexão entre o observador e o observado (SHELDRAKE, 2003). Para Merleau-Ponty esta experiência ativa do objeto pelo sujeito exige, todavia, uma transformação do campo mental, a qual permite, por sua vez, se desenvolver a atenção; ou seja, “para reatar [a atenção] a consciência seria preciso mostrar como uma percepção desperta a atenção, depois como a atenção a desenvolve e enriquece. Seria preciso descrever uma conexão interna, e o empirismo somente dispõe de conexões externas...” (MERLEAU-PONTY, 1945: 35). De fato, o paradigma empiricista que está na base da medicina alopática moderna foi produzido pelo reducionismo metodológico operado desde Descartes ao separar arbitrariamente no conjunto do aparelho sensorial duas funções: de um lado, aquela função representada pela visão, de outra as demais funções, a saber, o olfato, o paladar, a escuta e o tato. Para sermos mais precisos, este reducionismo não é apenas metodológico, mas também teórico, pois apresenta por uma figura mecânica algo – o sistema perceptivo – que é dinâmico e fluido. Tentaremos aprofundar esta crítica, apoiando-nos na abordagem fenomenológica e nas implicações desta abordagem sobre a compreensão da prática médica como um dom que apenas se revela por uma leitura diferente da corporeidade, aquela dada pelo paradigma energético. 3 Os limites da ciência mecanicista vêm sendo reconhecidos por número crescente de estudiosos. Uma reflexão original e clara a este respeito é aquela feita por Rupert Sheldrake no seu livro O renascimento da natureza: o reflorescimento da ciência e de Deus (São Paulo: Cultrix, 1997). 14 A percepção corporal e a experiência vivida O dualismo metodológico biocartesiano esconde um intelectualismo que pende de maneira incerta entre o idealismo e o empiricismo, revelando sua incapacidade de articular adequadamente sujeito e objeto, de imaginálos como componentes de um processo comum e contínuo que, segundo Merleau-Ponty, foi devidamente registrado por Heidegger ao afirmar que “o Homem é um sensorium comum e perpétuo que é tocado tanto de um lado como de outro”. Para melhor especificar este continuum, o autor de Fenomenologia da percepção sugere a noção de “esquema corporal”. Ou seja, com a noção de esquema corporal, não somente a unidade do corpo é descrita de um modo novo; é, também, através dela que se compreende a unidade do sentido e a unidade do objeto: “Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e ele é, ao menos com relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha compreensão” (MERLEAU-PONTY, 1945: 271)4. Na leitura fenomenológica, a questão do sujeito sempre está presente como reflexão radical mais ampla que engloba o objeto de forma interdependente, não por uma operação intelectual visando abstrair o mundo para valorizar o olhar racionalista e calculador, mas por uma operação centrada no interior do mundo e da vida: “Tudo o que sei do mundo, mesmo pela ciência, eu o sei a partir de um olhar próprio ou de uma experiência de mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido e se nós quisermos pensar a própria ciência com rigor e apreciarmos exatamente seu sentido e alcance, precisamos primeiramente despertar esta experiência do mundo com relação à qual a ciência constitui uma expressão secundária” (MERLEAU-PONTY, 1945: II, III). Para o pensamento empirista, refletir é um movimento de objetivação das sensações, sobretudo daquelas sensações visuais, para fazer aparecer um sujeito vazio cujo olhar percorre passivamente o objeto, aprendendo a descrevê-lo passivamente, chegando mesmo ao limite de designar o objeto como se fosse um sujeito. Para a “fenomenologia da percepção”, ao contrário, a tarefa de uma reflexão radical, isto é, daquela que quer se compreender a si mesma, consiste em reencontrar a experiência irrefletida do mundo, “para substituir nela mesma a atitude de verificação e as operações reflexivas, e para fazer aparecer a reflexão como uma das possibilidades do meu ser” (MERLEAU-PONTY, 1945: 279). Existe na realidade do senso comum uma série de experiências a serem trazidas à reflexão, o que depende, em última instância, das capacidades dos indivíduos de simbolizar o vivido pelas expressões estéticas e religiosas como de nomear as coisas pelas narrativas de vida, como lembra Brian Good (1998: 277). As diferenças entre os métodos objetivista e fenomenológico são importantes para a compreensão das relações entre a biomedicina cartesiana e aquele conjunto de práticas médicas que chamamos vulgarmente de terapias alternativas. O primeiro, o objetivista, nega a presença de um sujeito que articule uma ação intencional na medida em que valoriza preferencialmente a sensação do olhar enquanto ato concreto de conhecer, como se esse olhar existisse fora de um movimento mais amplo de sentir a vida como uma experiência integral. Este objetivismo empirista reproduz aquilo que é mais caro em Descartes: a desvalorização 4 Usamos sempre o original Phénomenologie de la perception. Todas as traduções aqui são nossas. 15 da experiência vivida como fonte de conhecimento da realidade em benefício de uma metodologia dualista que limita a compreensão da realidade a uma observação externa ao objeto. Uma abordagem simplificadora que limita a possibilidade do conhecimento a um único ângulo da realidade, como se o mundo pudesse ser observado de fora, pelo buraco da fechadura. Em um texto intitulado O filósofo e a sociologia, Merleau-Ponty, com o objetivo de defender o valor da experiência vivida para a sociologia, explica que “o objetivismo esquece esta outra evidência, que apenas podemos dilatar nossa experiência das relações sociais e formar a idéia de relações sociais verdadeiras por analogia ou pelo contraste com aqueles com quem vivemos...” (MERLEAU-PONTY, 1960: 100). O pensamento objetivista não rompeu com o abstracionismo cartesiano; apenas inverteu este procedimento: não sou eu (o Ego) quem olha, mas os objetos que estão dentro da sala que se apresentam para mim definindo o sentido e o percurso do meu olhar. Deste modo, os vários enunciados sugeridos pelo objeto – seja este o corpo ou a própria ciência médica – aparecem não como criação de um sujeito aberto a uma experiência vivida que é uma experiência de troca com outros indivíduos e com a natureza, mas, diversamente, como uma auto-apresentação do próprio objeto. O pensamento fenomenológico busca romper com este dilema dualista entre sujeito e objeto, sociedade e indivíduo, alma e corpo ao questionar as bases do método cartesiano. Ao assim proceder, redimensiona a relação entre natureza e cultura, entre mente e corpo, integrando uma nova e interativa compreensão da realidade. Os esforços de sistematização de uma perspectiva fenomenológica que resgate o lugar da experiência aparecem nitidamente em autores como Edmund Husserl (2000) e William James (1991). Mas a crítica do dualismo cartesiano aparece com maior nitidez a partir do momento em que o sentido linear e evolutivo da filosofia da história foi contestado pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (holocausto, bomba atômica etc.), levantando suspeitas sobre os mitos do progresso e da sociedade industrial. Neste momento todas as crenças sobre a modernidade como uma experiência de “ordem” e de “progresso” foram postas por terra, assim como as pseudocertezas a respeito de uma ação humana que se inscreveria numa certa evolução universal linear. Como diz Merleau-Ponty, “aquilo que por séculos apareceu aos olhos dos homens com a solidez de um Sol se revela frágil; o que era nosso horizonte predestinado se tornou perspectiva provisória” (MERLEAU-PONTY, 1982: 146). No lugar de uma filosofia da história fundada na ordem e no controle surge uma filosofia da errância fundada na incerteza, no paradoxo e na ambivalência entre ordem e desordem (BALANDIER, 1997). Sobre a natureza deste saber de errância esclarece Michel Maffesoli que: “O paradoxo é a marca essencial desses momentos cruciais, em que aquilo que está em estado nascente tem dificuldades para se afirmar face os valores estabelecidos. Nossa época não escapa a este tipo de situação... Nós nos acomodamos da riqueza exibida e da miséria exposta. A segurança crescente tem como inverso um sentimento de insegurança difuso” (MAFFESOLI, 1997: 19). Pode-se então falar do surgimento de uma certa ambivalência metodológica, uma forma de aparecimento da co-presença da ordem e do caos nos modos concretos de percepção da ação social. A ambivalência metodológica aponta para um novo lugar de compreensão do mundo e do objeto social que não mais se identifica nem com a tradição da visão metafísica nem com aquela após Descartes, do objetivismo empirista; estas duas visões são idealistas por se referirem não a um mundo 16 concreto e vivido, mas a um mundo idealizado, seja pela coisificação do sujeito, seja pela do objeto. A ambivalência metodológica permite se compreender que a filosofia da errância (ou da diferença, da alteridade) não segue um destino preestabelecido como acontecia com a filosofia da história, mas que se abre, a cada instante, a diferentes possibilidades, para frente e para trás, para um lado e para um outro, pois nada está assegurado, sendo a sociedade e os seus membros obrigados a aceitar e a conviver com a incerteza congênita. Esta gera efeitos práticos sobre a ação social que se traduz necessariamente por incertezas e riscos que não podem ser previstos pelos atores e instituições. O retorno proposto pela fenomenologia sobre a experiência vivida desfaz o dualismo metodológico fazendo reaparecer sujeito e objeto, alma e corpo como dois aspectos de uma mesma realidade. Valoriza-se o sujeito da ação, não aquele de origem metafísica, mas um outro, complexo e auto-referente, que procura sua autonomia no movimento de criação social pela aceitação das incertezas e riscos de cada passo dado. No dualismo metodológico cartesiano o sujeito aparecia como uma fenomenologia redutiva que reforçava a perspectiva de uma compreensão visual de mundo na qual o olhar exercia hegemonia no interior do processo perceptivo. Este reducionismo também era reproduzido pelo pensamento objetivista quando se negava a presença de um sentido preliminar à ação social para valorizar, no lado contrário, as descrições dos discursos sobre o objeto. No método fenomenológico, ao contrário, temos uma significação ampliada de um sujeito que se refere de modo ambivalente ao mundo vivido e que constrói suas representações de mundo a partir de um sentir ativo e intencional, de um desejo que se transforma em ação consciente e em prática política e institucional, enfim, em objeto. O entendimento da importância da percepção na constituição da realidade social é obscurecido pelas dificuldades de compreensão das sensações fora dos modos tradicionais como ela é definida pela psicologia e pela fisiologia. Neste sentido, a contribuição de Merleau-Ponty nos parece decisiva, pois ela se volta para a crítica ampla deste reducionismo metodológico no momento de afundamento da filosofia da história que é aquele da Segunda Guerra mundial. De uma parte, simplifica-se a questão filosófica relativa à capacidade de o Homem conhecer a realidade, supondo-se que as sensações são disposições separadas entre si – como pressupõe a psicologia –, como se fosse possível separar na prática a visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar. Ao contrário, lembra Merleau-Ponty (1945: 19), as sensações não são um conjunto de elementos separados, mas constituem uma unidade que funciona de forma integrada fazendo vibrar o corpo e permitindo uma experiência integrada do sentir o mundo. Noções como olhos e ouvidos são apenas culturais e passam a ser ambíguas se consideradas isoladamente, pois não permitem a distinção entre excitação corporal e percepção propriamente dita. Dizer que os olhos vêem e que as mãos tocam não traduz a experiência verdadeira do sentir. Esta apenas aparece através de 17 uma certa qualidade do sentir nascida de uma atitude de curiosidade e de observação que são apenas possíveis por uma reflexão, “uma visão segunda ou crítica que procura se conhecer na sua particularidade” (MERLEAU-PONTY, 1945: 246). Esta reflexão desfaz a atitude natural e displicente da visão e do espetáculo ao propor uma atenção mais intencionalmente direcionada para certos aspectos do campo, destacando certas particularidades: “a qualidade, a sensorialidade separada se produz logo que eu quebro esta estruturação total de minha visão, logo que eu cesso de aderir a meu próprio olhar e que em vez de viver a visão eu me interrogo sobre ela, eu quero tentar minhas possibilidades, eu desfaço o vínculo de minha visão com o mundo, comigo mesmo e com minha visão, para destacá-la e descrevê-la” (MERLAU-PONTY, 1945: 264). Merleau-Ponty sustenta igualmente que se os sentidos constituem uma unidade no processo de organização de um esquema corporal, as experiências fornecidas isoladamente, por exemplo, pela visão ou pelo tato, são diferentes: “a experiência não os apresenta como equivalentes: parece-me que a experiência visual é mais verdadeira que a experiência tátil, ao recolher nela mesma sua verdade anexando-a, porque sua estrutura mais rica me apresenta modalidades do ser que são insuspeitas para o tocar” (MERLEAU-PONTY, 1945: 270). Ao se fazer a crítica do pensamento objetivista pela “fenomenologia da percepção” compreende-se a razão que levou Descartes e seus seguidores a firmar uma filosofia reducionista. Para o pensamento cartesiano a percepção pelo olhar sugeria a impressão ilusória de que o mundo existiria fora do observador e, por conseguinte, este mundo poderia ser controlado e regulado por regras de classificação e de separação. Enfim, sem ferir a hegemonia do Deus cristão preocupado com a ordem do mundo, a ciência cartesiana nascente se via como um instrumento deste Deus ajudando-o a pôr ordem no mundo do homem, a começar pelo corpo deste mesmo homem (DESCARTES, 1999). O pensamento objetivista do século XIX ao negar a legitimidade da hipótese metafísica buscou manter intacto o imaginário cartesiano da ordem através do reforço dos mecanismos disciplinares sancionados pelo Estado e pelo Direito. O nascimento da moderna clínica médica no século XIX, exprimindo a busca do disciplinamento das práticas médicas (FOUCAULT, 2000), reflete este processo avançado da secularização em que o Estado e o Direito assumem funções legitimadoras e reguladoras até então pertencentes à Igreja. Nos casos das medicinas contemporâneas, podemos dizer que a biomedicina moderna se coloca ao lado de uma epistemologia redutiva ao valorizar os discursos do objeto (sobretudo da tecnociência e do capital mercantil) na constituição da realidade. No lado oposto, as medicinas alternativas se apóiam numa fenomenologia (e epistemologia) ampliada, que valoriza as experiências vividas, reflexivas e singulares, dos indivíduos e grupos sociais ao longo de suas trajetórias, experiências que não são dadas antecipadamente, mas no momento da ação social. Como veremos adiante, o modo como as percepções se articulam através de uma “atenção precisa” sobre o corpo constitui um elemento diferenciador central entre a biomedicina e as medicinas chamadas 18 alternativas. Enquanto a biomedicina fixa-se na explicação visual e abstrata do corpo, as terapias não-convencionais ampliam o campo perceptivo integrando a escuta5, o toque, o olfato e o gosto como dispositivos igualmente acionados na percepção integral de um corpo que possui múltiplas significações e que é aberto à circulação de diferentes possibilidades de entendimento da realidade vivida. Por este corpo percebido como fenômeno integral, o invisível se torna visível e vice-versa, já que ele é o próprio sujeito/objeto em ação. As medicinas alternativas trabalham, então, com um corpo-carne que não é mera abstração passiva, mas significação ativa na organização do mundo pelo fato de ser corposimbolização, construção que apenas emerge quando o sujeito é o objeto de sua própria reflexão e compreensão. A energética da cura: um dom original A concepção cartesiana do corpo é reconhecidamente limitada para se pensar a complexidade da medicina contemporânea. São, logo, arriscadas as tentativas de se generalizar o método biocartesiano para a compreensão da doença em todas as sociedades, independentemente das especificidades históricas e culturais, como se o modelo biomédico tivesse uma validade universal. Conforme Byron Good, os estudos comparativos que adotam as categorias e práticas correntes em biomedicina são, em geral, vistos como suspeitos em outras culturas; nessas, dificilmente os sintomas podem ser reduzidos a localizações físicas, estando igualmente relacionados a aspectos sociais e espirituais. Assim, conclui ele, “considerando a riqueza do contexto cultural no qual se forja o sofrimento humano como visto em inúmeras sociedades que temos estudado, a conservação de nossa linguagem biológica a 5 A psicanálise de Freud teve um papel decisivo para a alteração da percepção do sujeito ao introduzir a escuta como dispositivo de observação e compreensão do sintoma. A valorização da escuta nesta disciplina foi tão importante que permitiu uma mudança completa na forma de compreensão do sujeito que passa a ser representado sobretudo pela sua dimensão simbólica. Joel Birman nota que esta operação simbólica do descentramento se verifica em Freud em três níveis: descentramento da consciência para o inconsciente; b) descentramento do eu para o outro; c) descentramento da consciência, do eu e do inconsciente para as pulsões (BIRMAN, 1997: 20). 19 respeito da doença e dos cuidados como norma é algo profundamente inadaptado” (GOOD, 1945: 66). Do mesmo modo, e no sentido inverso, esta biomedicina moderna resiste muito a aceitar como sendo válidas outras práticas médicas que não se submetem ao mesmo princípio mecânico que funda a medicina moderna ocidental. A introdução da acupuntura no Ocidente, por exemplo, encontrou muitas resistências, mesmo sabendo-se que se trata de uma medicina com mais de cinco mil anos de existência e de comprovação prática, não podendo ser enquadrada sumariamente como modismo. De fato, tanto a medicina tradicional chinesa (acupuntura, fitoterapia, alimentação natural, massagens terapêuticas, entre outras) como outras medicinas não-ocidentais como aquelas indianas e indígenas/xamânicas não constituem algo à parte da cultura e da sociedade onde foram concebidas. A medicina chinesa funda-se num paradigma que difere radicalmente daquele da mecânica biológica que inspira a organização dos cânones da medicina ocidental moderna, pois, para os chineses, saúde e doença constituem processos complexos estreitamente articulados com as manifestações culturais, ambientais e espirituais (MEYER, 1986: 124). Nesta medicina chinesa, o corpo humano aparece como organismo sistêmico complexo e integrado, que não pode nem ser reduzido a seus componentes particulares, nem ser concebido como uma mera representação anátomo-biológica e funcional, como o faz o olhar científico da medicina cartesiana. A concepção chinesa da doença como uma perturbação do movimento das energias que se acumulam em certos pontos do corpo, bloqueando a circulação energética, desfaz o dogma biocartesiano da doença como um inimigo externo ao corpo (constructo que apenas se sustenta porque este corpo é também visto como algo externo ao sujeito). Pela sua importância histórica e prática, a medicina tradicional chinesa aparece como um dos alicerces fundamentais sobre o qual se assenta a nova medicina. Assim, nas medicinas alternativas a doença não é um fator estranho, mas algo inerente ao modo de funcionamento simbólico do corpo (MARTINS, 2003). A introdução da noção de corpo simbólico contribui para desfazer a dualidade ilusória entre corpo e alma e, por conseguinte, para obrigar a se repensar a doença, não como um fator orgânico reduzido, mas como um fenômeno que é determinado por fatores sociais, culturais, ambientais e psíquicos bastante relevantes e integrados entre si. O símbolo, diz Caillé, 20 “deve ser entendido na sua etimologia primeira. Ele é primeiramente o que (re)une o que estava separado, então o símbolo é o próprio dom” (CAILLÉ, 1998d: 131-132). A idéia do corpo não como mera massa biológica, mas como sistema simbólico que impregna a “carne” significa dizer que estamos em face de um fenômeno social por excelência. Marcel Mauss compreendeu cedo que as técnicas corporais eram um fenômeno social e que as maneiras de andar, nadar e outras eram específicas de cada sociedade. “O que se ressalta claramente disso é que nos defrontamos em todos os lugares com montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos. Esses atos são mais ou menos habituais e mais ou menos acidentais na vida do indivíduo e na história da sociedade” (MAUSS, 1999d: 384). Por seu lado, Byron Good, lembra que não se pode fazer antropologia médica sem se prestar “uma atenção renovada sobre a experiência humana, sobre o sofrimento e sobre as significações e interpretações, sobre o papel da narrativa e da historicidade, assim como ao papel das formações sociais e das instituições, no estudo do que significa essencialmente ser humano em uma cultura ou em outra” (GOOD, 1998: 69). A compreensão simbólica do corpo, da doença e da cura implica, pois, a consideração da idéia de um fato social total que apenas pode ser reduzido às partes para efeitos didáticos, mas não científicos. No plano simbólico as operações que reduzem, por um lado, o sujeito-racional ao olhar controlador e calculador e, por outro, o objeto-corpo a um dispositivo mecânico são arbitrárias e não permitem se compreender que corpo e alma sejam partes ativas de um continuum, o qual as medicinas alternativas traduzem pela metáfora da energia. Muitos sociólogos e antropólogos estudiosos das terapias alternativas e da cultura New Age associam, em geral, o termo energia a um discurso de natureza mística e religiosa. Para Françoise Champion, expressões como energia, holismo, pensamento positivo entre outros devem ser entendidas como elementos de um vocabulário que serve para facilitar a comunicação da experiência e a integrar o iniciado no que ela denomina de nebulosa mistico-esotérica (CHAMPION, 1990: 35). Por sua vez, Maria Carozzi afirma que o termo energia está associado à emergência de um novo marco interpretativo no qual é enfatizado o papel da natureza como agente de transformação do adepto (CAROZZI, 1999: 165). Enfim, para Fátima Tavares o princípio energético constitui um elemento discursivo que serve como referência unificadora de todas as diferenças verificadas na 21 prática terapêutica. Para ela, trata-se de uma expressão com múltiplas variações, mas que se refere, em última instância, à idéia de energia cósmica e de uma certa “consciência holística” (TAVARES, 1999: 118). No nosso entender, todas essas interpretações são válidas, mas insuficientes. Dando ênfase corretamente a um entendimento que tem inspiração “mística”, essas leituras deixam de lado, porém, uma outra dimensão da questão: a de que o termo energia é antes de tudo um símbolo, uma metáfora relativa à interação vital, pois “nosso vivido é a resultante da interação permanente de diversos mecanismos internos (celular, metabólico, nervoso) e externos (climático, geocósmico, cronobiológico, psico-afetivo, socioprofissional...” (GUASH, 1986: 142). Nesta perspectiva, não existe uma oposição entre, de um lado, o corpo simbólico articulado pela metáfora energética e, de outro, o corpo orgânico. Na perspectiva aqui adotada, o que denominamos de corpo orgânico também é simbólico, mesmo que esta dimensão imaginária constitutiva da vida humana tenha sido voluntariamente esquecida em favor de uma interpretação positivista dada pelo cartesianismo. Mas ao aproximarmos as lentes da realidade vivida, estas abstrações desaparecem para mostrar que a biomedicina não tem como escamotear a discussão do valor simbólico do corpo e da vida, mesmo que na organização de seu discurso e de sua prática a biomedicina tente minimizar os fatores extrabiológicos. Nas faculdades de medicina, por exemplo, em disciplinas como Fisiologia, Biofísica e Bioquímica, a energética médica é ensinada sob o título de “Bioenergética”. Mas, infelizmente, não se aprende quase nada nas faculdades médicas sobre este tema. A medicina oficializada no Ocidente, na busca de um conhecimento empírico objetivado pelo controle visual do corpo, não pôde integrar um conceito que na cura médica alternativa se percebe por um “sentir total”, e que envolve o próprio sujeito. Deve-se ressaltar que a “nova física”, primeiramente com Albert Einstein nos inícios do século XX, e, depois, com outros grandes cientistas estudiosos da física atômica, como Niel Bohr e Werner Heisenberg, contribuiu enormemente para a demonstração do corpo como equação energética, ou seja, de que partículas e ondas são um e mesmo fenômeno (embora o olhar cartesiano não o possa apreender com seus instrumentos clássicos). Deste modo, um físico bastante conhecido do grande público, Fritjof Capra, conclui que “o mundo apresenta-se, pois, como um complicado tecido de eventos, no qual diferentes 22 espécies se alternam e se sobrepõem ou se combinam, e desse modo determinam a contextura do todo” (CAPRA, 1992: 75). À luz destas inovações no campo da física somos levados a reconhecer que a biomedicina cartesiana de tanto reivindicar a verdade científica a partir de um postulado mecanicista, terminou prisioneira de um cientificismo materialista desatualizado “que opõe ainda matéria e energia quando as pesquisas de ponta demonstram que todo universo conhecido é feito de estados diferentes de energia” (GUASCH, 1986: 146). A tradução de energia como uma simbólica ou significação necessária à figuração de um novo sistema de cura que funcione a partir de um princípio relacional e total, que é aquele da sociedade e da vida em geral, é fundamental na emergência do paradigma energético. Ao conectar o corpo e a alma, ou então, o homem com os outros homens e o homem com o meio ambiente, a energia aparece como um dom, fazendo circular a vida através de movimentos de reciprocidades e de ambivalências, de alianças e conflitos, de solidariedades e oposições. Neste sentido, tomamos de empréstimo a definição de Bruno Karsenti do dom como um “operador simbólico”, o qual é relevante para se entender por semelhança a energia como expressão desse dom no campo da prática de cura. Diz Karsenti que “se o dom se infiltra na totalidade da vida social, independentemente dos níveis que se pretenda, é que ele é precisamente o operador simbólico que permite a esses diferentes níveis de se comunicar e de se agregar em uma unidade social pela qual é desde logo possível se traçar os contornos de uma cultura própria” (KARSENTI, 1994: 97). Assim, ao propormos que energia é o termo pelo qual o dom aparece como um operador estratégico na configuração do corpo como significação simbólica central na organização da vida, estamos sugerindo que o paradigma energético não se reduz a um tema específico da física, mas que é parte da compreensão sociológica do mundo. Trata-se de um novo paradigma que se forja nas experiências de fronteira, marcadas pela dor e pela esperança, pelo fim e pelo começo, pela vida e pela morte. Nas medicinas alternativas, energia constitui um significante que circula tanto no registro das práticas objetivas envolvendo curador e paciente, como naquele das práticas subjetivas, envolvendo o doente como sujeito privilegiado de sua cura ou de sua doença. A metáfora energética facilita compreender que curador e paciente sejam identificados como aspectos de um mesmo homem total em busca de harmonização com o cosmo de que faz parte. A energia também atua como 23 operador simbólico na restauração da relação entre técnica e magia no processo de cura alternativo. Ela avança, porém, em sentido diferente daquele seguido pela medicina biocartesiana que se preocupa, prioritariamente, com a universalização de uma razão instrumental, esquecendo-se que tal razão não nasceu do nada mas que foi justamente elaborada em cima da separação da técnica e da chamada magia. Esta medicina moderna esquece logo que a magia também é um fenômeno social legítimo – como a técnica – e que ela é, certamente, como lembra Mauss, a técnica mais antiga existente na sociedade humana (MAUSS, 1999a: 135). Queremos dizer que a energia como princípio simbólico unificador da vida humana, em geral, e das práticas de cura tal como elas aparecem nas medicinas alternativas, em particular, apontam para a presença de um dom muito especial, diríamos o dom fundador da medicina como instituição social. Caillé percebeu a presença deste dom fundador da sociedade ao propor que o dom constitui um sistema tripartite de trocas (dar-receberretribuir) antigo e anterior aos sistemas do mercado: “nós não saberíamos compreender a troca e o contrato, típicos da modernidade, sem discernir primeiramente suas formas arcaicas e anteriores, as formas do dom” (CAILLÉ, 2000b: 22). Seguindo esta pista oferecida por Caillé, Jacques Dewitte propõe um dom de apresentação, original e preliminar, que estaria presente na inauguração da vida, em geral, e naquela da sociedade humana, em particular. A idéia de auto-apresentação desenvolvida pelo biólogo Portmam, ao estudar as espécies animais, permite pensar que “há certamente alguma coisa como um excedente originário, uma manifestação primeira da vida que excede toda interpretação funcionalista” (DEWITTE, 1993: 32). Observe-se que nas sociedades tradicionais, o curador não se legitima por um simples diploma acadêmico, mas por um ritual de iniciação e de revelação particular que confirma a capacidade nata de certos indivíduos de tomarem para si o sofrimento dos outros, liberando-os do mal que os acometia. Afora as exceções representadas pelos charlatães de todos os tempos, no sistema das medicinas alternativas a revelação do curador também se faz por um trabalho de iniciação e de recebimento de uma graça, isto é, de um dom especial que permite ao curador exercer legitimamente o seu trabalho de cura. Neste sentido pode-se dizer que o dom inaugural de autoapresentação, dom que está presente na criação da vida em geral, aparece no caso da cultura humana e da terapia alternativa como 24 um dom particular que Dewitte denomina gratidão ou gratitude. Explica o autor que, diferentemente da consciência hinduísta da dívida, que é irrevogável (o sujeito humano é sempre um sujeito de dívida para com os deuses), a consciência moderna resolve esta limitação pela gratidão e pela realização de obras (DEWITTE, 1996: 103). Nesta perspectiva, energia é o termo que se revela mais apropriado para designar esta simbólica de cura que se desenvolve espontaneamente entre a técnica e a sabedoria chamada “magia”, dom que passa pelas mãos, olhos, palavras e odores do curador e que é designado por todos como energia. Assim, tanto a energia purificada que entra pelo corpo do curador e que passa para o doente ou, então, no lado oposto, a energia do enfermo que é purificada com ajuda do curador, ambas as possibilidades constituem um tipo de vivência que é ao mesmo tempo profana e sagrada. O objetivo último da técnica, aqui, não é expulsar a energia do corpo para assegurar sua pretensa normalidade mecânica. Tal visão não se sustenta, porém, na perspectiva interativa que domina as práticas médicas alternativas, pois o corpo é vida por ser movido energeticamente; a energia é a vida, ela é o próprio dom de vida. Nas sociedades tradicionais, o imaginário do curador era habitado por uma experiência de gratidão gerada por uma dádiva de cura inicial, interpretada como um presente ou uma obrigação divina, a qual era repassada adiante através de obras de cura. Nasciam assim os feiticeiros e mágicos. No sistema geral das práticas médicas alternativas atuais, a obrigação de retribuir o bem recebido é muito comum entre aqueles que dizem ter sido abençoados pelo divino com este dom de cura. Este caráter reaparece de modo mais ou menos implícito nas terapias alternativas, em geral, mas declaradamente em alguns modelos como o Reiki e Mãos de luz, que são técnicas de imposição de mãos sobre o corpo do doente. O depoimento seguinte de um mestre de Reiki é muito elucidativo da consciência moderna da dádiva de si, cuja devolução se faz pela realização de obras benévolas, mas que trazem em si este objetivo de repassar o dom da cura: “Uma pessoa adoecia, vinha conversar comigo de madrugada, eu tocava nela. No outro dia a pessoa vinha agradecer, a pessoa ficou curada. Então eu procurei estudar sobre as mãos, até dentro do Seisho no-ie (um tipo de seita japonesa). Mas lá eles disseram que eu não podia usar esses poderes dentro da sua filosofia. Então saí e fui procurar coisas sobre minhas mãos e conheci Lauro Trevisan (autor religioso de vários livros sobre auto-ajuda). Aprendi muito com ele” (Mestre de Reiki). 25 Energia pode, logo, ser entendida como uma metáfora que traduz pelo menos duas possibilidades discursivas. De um lado, ela revela o sagrado que se supõe esteja presente em cada um de nós (antes mesmo de estar nas instituições) e que se manifesta pelo dom primeiro da gratidão. Esta se expressa com relação ao simples ato de se viver e se completa como dádiva através de dons de cura que são passados a outros indivíduos próximos ou não. Em segundo lugar, energia é também um termo revelador no sentido de que ela aparece como operador simbólico central de um conjunto de técnicas e rituais de cura que são interpretados como sendo eficazes do ponto de vista prático. Aqui, o novo discurso terapêutico alternativo transgride o dogma da medicina cartesiana a partir de dois movimentos: um pelo resgate de tradições de cura não ocidentais; o outro pela busca de superação das fronteiras da racionalidade científica, restaurando rituais de cura que pretendem ser simultaneamente racionais e mágicos. Assim, um acupunturista entrevistado lembrou que a medicina chinesa não nasceu do conhecimento acadêmico e científico, mas do conhecimento popular. Ao longo do tempo, lembra ele, “esta ciência foi sendo aperfeiçoada, melhorada, mas não tem a ver com a medicina ocidental”. Do mesmo modo, um musicoterapeuta, figura erudita, com doutorado em Literatura no exterior, se questiona por que a ciência tem que ser necessariamente ortodoxa, clássica e acadêmica. Existe também, sublinha, uma ciência natural, espontânea: “Por que tem que passar pela universidade? Se fosse assim, a medicina popular não teria valor”. Como vemos, o surgimento dessas novas práticas de cura (algumas, aliás, muito antigas) responde à demanda ampla de recriação de um sistema simbólico que busca responder a algumas exigências práticas: uma delas é o de constituir um sistema de informações interdisciplinar e transdisciplinar não redutível às divisões disciplinares que caracterizam o funcionamento da medicina oficial ocidental; a outra demanda é de revalorização da cura como ação de duplo registro, nela estando associadas as dimensões da funcionalidade e da interpessoalidade. Semelhante trabalho de revalorização é decisivo para a legitimidade que adquire a nova medicina no momento presente. Energia é, logo, uma palavra-chave na cura terapêutica, por se referir a um fenômeno integrativo do ponto de vista social e cultural. Ela é o vórtice que reunifica a unidade sistêmica perdida pelo excesso de formalização e de especialização 26 disciplinar da medicina cartesiana e, também, com o efeito depredador do capital médico sobre os usos do corpo. A construção imaginária deste conceito estruturante das terapias alternativas como sistema de cura é um empreendimento difícil já que no seio deste bloco a expressão conhece diferentes interpretações. Assim, enquanto algumas modalidades terapêuticas ocidentais entendem energia como um movimento biomagnético (reichianos e bioenergéticos), outros compreendem energia como um circuito elétrico integrado (acupunturistas), e terceiros como fenômeno extra-planetário, uma energia de cura cósmica (reikianos)6. Do ponto de vista dos usos operacionais, o termo energia também se oferece a uma pluralidade de usos, como atesta Tavares (1999: 119). As possibilidades de definição e classificação são amplas, sendo o mais importante a compreensão da dinâmica simbólica de uma nova medicina que é eminentemente paradoxal: abrindo-se para a vivência simultânea do sagrado e do profano, do tradicional e do moderno e obedecendo a uma multiplicidade de lógicas instituintes. Energia aparece, sobretudo, como uma metáfora que permite traduzir a circulação dos bens da cura nos sentidos simbólicos e práticos, respondendo ao mesmo tempo a demandas de curas espirituais e a diversos distúrbios energéticos (desequilíbrios internos nos planos físico, emocional ou psíquico). Assim, a expressão energia traduz algo fundamental na existência de uma nova medicina, a de se constituir numa linguagem capaz de traduzir em diversas gramáticas a idéia do dom da vida como prática recíproca que compromete curador e paciente num mesmo processo interativo. Energia é o mesmo fenômeno conhecido em certas sociedades primitivas como hau, que para uns era o espírito da própria coisa dada, para outros o espírito do doador (ROSPABÉ, 1996). Esta dinâmica relacional em que a circulação do bem da vida se revela nos dois sentidos – do curador para o paciente e vice-versa –, constitui uma questão sutil, porém da maior importância para se entender o sentido 6 Desde já queremos salientar que esta discussão apenas pode avançar se formos capazes de supor a possibilidade de existência de outras lógicas de cura que não se reduzam àquelas do sistema dominante: aquela da razão instrumental, tida como a única razão que justifica as manipulações experimentais e que explica certas regras de classificação são tidos como dogmas intocáveis. 27 simbólico da cura. Nas suas origens, quando a medicina guardava uma dimensão sagrada evidente, a criação de vínculos de amizades entre as partes envolvidas era tida como comum e necessária. Mas com a medicina biocartesiana, esta relação interpessoal, antes considerada estratégica, passou a ser vista como desaconselhável para o sucesso da cura. Nos dias atuais, a indiferença com relação ao sofrimento e à dor do doente parece em muitas situações não mais estar ligada a uma condição técnica da biomedicina – a separação do médico e do doente –, mas a um jogo cínico no qual o que apenas vale é a possibilidade de se ganhar mais dinheiro com consultas e cirurgias em um tempo mais curto. A apropriação dos bens da vida, isto é, das “energias” que fazem circular a vida, por uma minoria motivada por interesses utilitários e mercantis reflete-se no plano cultural pelo enfraquecimento da solidariedade coletiva e pelo favorecimento do individualismo. Neste momento em que o utilitarismo se expande na prática médica – mediante a medicina mercantil ou pela definição de metas utilitárias para a aplicação de recursos orçamentários em hospitais – é preocupante observarmos a diminuição do número de médicos tidos como clínicos gerais. Estes que tradicionalmente são os guardiões de uma prática mais humana e de proximidade passam a sofrer a concorrência desleal de especialistas menos preocupados com a pessoa em sofrimento que com os ganhos utilitários da profissão; especialistas que cada vez sabem menos sobre a doença e sobre a cura, precisando crescentemente de máquinas e conselheiros de laboratórios para formularem seus diagnósticos e tratamentos. Todavia, apesar de não mais representar a maioria, os médicos clínicos gerais continuam a ser uma referência importante para se repensar o sentido da relação interpessoal na prática de cura, como podemos observar no depoimento abaixo: “Para haver disposição para o trabalho é necessário se estar em forma, isto faz parte de nossa responsabilidade. Apenas, então, o paciente poderá se apoiar naquele que cuida para conduzir seu próprio combate” (MAUREL-ARRIGHI, 1999: 83). Na concepção utilitarista dominante na medicina oficial moderna, cura é sinônimo de apropriação dos recursos da vida e da saúde com vistas a legitimar a acumulação do capitalismo médico, no sentido amplo, e a assegurar uma profissão bem remunerada para a medicina liberal privada, no sentido restrito. Nesta perspectiva, a doença é uma mercadoria a ser transformada em dinheiro e o doente um consumidor de produtos da indústria médica. A eficácia da transação depende essencialmente do 28 pragmatismo do especialista; toda aproximação é considerada indesejada. Diversamente, no seu sentido simbólico originário, a cura, já dissemos, é uma ação simbólica/relacional e técnica, e a prática da cura constitui um vínculo importante entre curador e paciente. A questão fundamental aqui é o dom, a circulação de um princípio de vida que passa do curador para o paciente e que é retornada num segundo momento. A graça recebida livremente daquele que tem o dom da cura gera uma obrigação de devolver por parte daquele que recebe esta graça. Ou então, quando não se pode pagar a dívida em razão de seu valor ser incalculável (o que é comum com os bens divinos, tidos como fundadores do vínculo), o próprio paciente se torna curador passando adiante a obra recebida. Esta segunda alternativa é mais comum nas terapias alternativas (MARTINS, 1999b e 2003). Usos correntes do discurso energético No que concerne o modo como o termo energia vem sendo utilizado contemporaneamente, é possível distinguirmos algumas modalidades-chave. Uma primeira e mais tradicional é a taoísta, pela qual energia é definida como polaridade em movimento (as energias yin e yang) que funciona, dizem os taoístas, em três planos: o do céu, o da terra e o do homem7. Esta concepção está na base tanto da tradição chinesa (da acupuntura, da alimentação natural e de práticas de harmonização corporal como o t’ai chi chuan) como da tradição sincrética japonesa (na meditação Zen e no Reiki – técnica de cura com imposição das mãos que teria sido sistematizada pelo monge católico japonês Mikao Uzui em 7 Na segunda parte do Livro das mutações, conhecido como I Ching, um documento milenar que tinha para os chineses a mesma importância que a Bíblia de Jerusalém para os ocidentais, são explicados esses três movimentos do seguinte modo: “Os santos sábios da Antigüidade compuseram o Livro das mutações da seguinte maneira: tinham como meta seguir a ordem da lei interna e do destino. Constataram, então, o Tao do céu e o chamaram de o obscuro e o luminoso. Constataram o Tao da terra e o chamaram de o maleável e o rígido. Constataram o Tao dos homens e o chamaram: o amor e a justiça” (WILHELM, 1996: 204). 29 fins do século XIX). Nestas perspectivas, taoísta e zen-budista, verificamos que a idéia de energia tem a ver tanto com certa força elétrica que atravessa o corpo humano através de certas linhas denominadas de meridianos, como igualmente com a idéia de uma força cósmica inteligente que liga o homem e a vida e, por essa via, com as forças organizadoras do universo (MARTINS, 2003). Uma segunda definição de energia bastante difundida atualmente nas terapias modernas de cura, com usos de respiração e de movimentos para a liberação de tensões fisicas, emocionais e psíquicas, está relacionada com as pesquisas de Wilhelm Reich (célebre discípulo de Freud), e de Alexander Lowen (fundador da bioenergética sendo, por sua vez, o principal discípulo de Reich). Para este último, a noção de energia tem a ver com as pulsões biomagnéticas, e a cura psíquica exige um trabalho adequado de liberação de emoções represadas (medos e raivas) no corpo e que impedem a boa circulação da energia e, por conseguinte, do prazer no corpo. Explica Lowen que o organismo vivo não pode ser reduzido a uma máquina e que todas as atividades humanas requerem energias: da batida do coração aos movimentos peristálticos do intestino, do caminhar, falar e fazer sexo. Deste modo, para ele, por estar a energia envolvida em todos os movimentos da vida, e também nos pensamentos e nos sentimentos, é importante se compreender os fluxos e as descargas energéticas, o que pode ser bem observado num indivíduo deprimido: “Apesar de a reação de uma pessoa deprimida resultar de uma interação de complicados fatores físicos e psicológicos, um ponto não admite dúvidas: a pessoa deprimida está também energeticamente deprimida” (LOWEN, 1982: 42-43). A terceira definição do termo energia nos é fornecida pela ciência física moderna e pelas conclusões teóricas que os estudos sobre os átomos e materiais invisíveis vêm produzindo a respeito da emergência de uma medicina quântica (CAPRA, 1983). Provavelmente, a física das partículas atômicas foi a grande responsável pela popularização do termo e pelo seu reconhecimento, já que a expressão ganhou foro reconhecidamente científico. O primeiro cientista a destacar esta idéia da vida como energia foi Albert Einstein, nos inícios do século XX, sendo seguido nas décadas seguintes por físicos consagrados, Heisenberg, Planck, Bohr, Pauli entre outros. Mas na perspectiva de humanização do termo energia, neste contexto contemporâneo, deve-se destacar a idéia 30 sustentada por alguns biólogos de que o planeta Terra constitui um ser vivo, Gaia, a antiga deusa-mãe (THOMPSON, 1990). Ou, então, por físicos como Fritjof Capra, que procura introduzir nova compreensão da realidade e dos sistemas vivos a partir da emergência de um novo paradigma, o da ecologia profunda (CAPRA, 1998)8. Estes e outros estudiosos da física e da biologia contemporânea reforçam uma compreensão humanística da energia capaz de integrar de modo complexo os diferentes sistemas da ordem humana, planetária e cósmica. Na visão racionalista antropocêntrica, o mundo era estático e o progresso histórico resultado da maestria racional do homem sobre o mundo. O importante seriam as grandes instituições que assegurassem este controle: a ciência positiva, o Estado e o mercado, por exemplo. Na visão energética cosmocêntrica, tudo é vida e tudo está em movimento, sendo a ordem das coisas obtida por um princípio vital que os liga, a energia. As instituições de destaque são, por conseguinte, os movimentos visando a mudança social e cultural (feminista, ecológico, pacifista etc.) e o movimento simbólico interior (a meditação, a subjetividade etc.). Nas entrevistas com os terapeutas fundadores, observa-se claramente esta preocupação com o caráter científico do termo energia, o que confirma nossa tese sobre um cosmocentrismo pós-moderno inspirado na idéia de totalidade humana. Em grande parte, os entrevistados recorrem aos avanços da física quântica moderna para legitimarem seus argumentos, como podemos perceber nos depoimentos abaixo: 8 Esta mudança de paradigmas estaria ocorrendo não apenas no âmbito da ciência, mas da sociedade como um todo, diz Capra. O termo profundo se define contra uma ecologia rasa, aquela antropocêntrica, centrada no ser humano. A ecologia profunda não separa seres humanos do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e interdependentes – a expressão do novo paradigma. “A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida” (CAPRA: 1998: 25-26). 31 Hoje, já existem médicos com a visão que os místicos indianos tinham há 4,5 mil anos, de que tudo o que a gente vê é simplesmente aparência; que o mundo físico é ilusório. Hoje, os físicos já chegaram a esta conclusão. A questão da energia atômica, por exemplo (instrutora de yoga). Estão começando a estudar os florais na ótica da física quântica. Ela é o caminho para explicar a terapia floral com todos seus conceitos de energia, onda, luz, etc. (terapeuta floral). A acupuntura está para a ciência médica assim como a matemática está para a física; ela é a ciência exata da medicina e tem um poder de resolutividade muito grande; resolve em poucas aplicações um problema de anos (médico acupunturista). Assim, esta idéia de um sistema de cura que considera a totalidade do ser humano e que funda esta nova compreensão médica num operador simbólico bem visível – a energia (do dom) – ganha legitimidade à medida que o termo também é integrado por certas disciplinas científicas contemporâneas. Conclusão Para finalizar, gostaríamos de lembrar que a convergência de elementos que antes, na modernidade médica, pareciam ser contraditórios, como a tecnologia, por um lado, e a “magia”, por outro, convergem com enriquecimento mútuo na nova medicina mundial que se esboça a partir das diferenças culturais e da pluralidade de técnicas existentes no campo da saúde. Tal releitura do campo médico não significa uma recusa do valor das inovações tecnológicas geradas pela biomedicina, como sustentam setores conservadores que querem preservar seus poderes e interesses, mas a inclusão de saberes, técnicas e olhares diferentes. De um lado, respeitando a lógica do laboratório, de outro, resgatando a experiência vivida para ampliar a explicação científica da saúde e da cura. O dom médico ou dom de cura constitui aqui um operador simbólico fundamental para articular a passagem entre o sagrado e o profano, entre o científico e o mágico, entre o moderno e o pós-moderno. Todos esses fatores nos levam, enfim, a concluir que o campo médico está se reorganizando institucionalmente para permitir a consolidação de um novo paradigma, o energético. Trata-se de um novo campo de saber, transnacional e aberto para as diferenças culturais. Sua diversidade é garantida na medida em que os cuidados de saúde são interpretados não mais a partir de uma metáfora mecânica do corpo humano, mas, diferentemente, de uma experiência de “sentir total” o próprio corpo e o corpo do 32 outro ou dos outros, que nada mais é que o corpo da própria sociedade humana. Bibliografia BALANDIER, G. (1997). A desordem – Elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Russel. BALESTIERI, F.M.P. (2000). A medicina da fé de Paracelsus e a psiconeuroimunologia da ciência atual. In: OLIVEIRA, M. & DE LEON. O velho e o novo em mil anos. João Pessoa: Manufatura. BIRMAN, J. (1997). Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Ed. 34. CAILLE, A. (2000a). Entretien avec Alain Caillé: le paradoxe féconde du don. In: Pratiques – Les cahiers de la médecine utopique, n. 8, décembre 1999-janvier 2000. Paris. ______ (2000b). Anthropologie du don: le tiers paradigme. Paris: Desclée de Brouwer. ______ (1998). 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Em seguida veremos o fenômeno da medicalização – conseqüência e estímulo concomitantes na hegemonia do modelo biomédico – contextualizando-a, brevemente, na sociedade de consumo, sob o império da lógica do mercado. Tomamos a questão dos medicamentos como exemplo das distorções advindas do incremento da medicalização e dos fatores a ela subjacentes. Ao final, comenta-se a respeito das limitações no alcance da desejada interferência positiva da medicina, uma vez feita a opção pelo modelo biomédico. Tratase de uma questão histórica, epistemológica e de impacto bioético crucial. 1. Modelos explicativos do processo saúde-doença: breve histórico Na trajetória evolutiva das concepções e da prática sobre a saúde e a doença podemos considerar alguns paradigmas que, começando com a visão mágico-religiosa, na Antigüidade, termina na abordagem do modelo biomédico, predominante nos tempos de hoje. Para a elaboração do contexto de caráter histórico, essencial à reflexão sobre o modelo biomédico aqui pretendida, nos inspiramos, em grande medida, nos textos de Bennet (1981), Capra (1982) e Lain Entralgo (1989). 1.1. As abordagens da medicina mágico-religiosa e da empírico-racional A medicina mágico-religiosa, predominante na Antigüidade, se inseria em um contexto religioso-mitológico no qual o adoecer era resultante de transgressões de natureza Professor-adjunto do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco e membro do Conselho Consultivo da Acción Internacional para la Salud (AIS) e do Conselho Diretor da Sobravime. Pós-doutorado em Saúde. Email: [email protected] * 37 individual ou coletiva, sendo requerido para reatar o enlace com as divindades, o exercício de rituais que assumiam as mais diversas feições, conforme a cultura local, liderados pelos sacerdotes ou xamãs. As relações com o mundo natural se baseavam em uma cosmologia que incluía deuses peculiares e espíritos tanto bons como maus. Os indivíduos pensavam a doença em termos desses agentes cabendo aos responsáveis pela prática médica da época aplacar essas forças sobrenaturais. Esse enfoque é ainda hoje aceito por milhares de pessoas, habitantes de sociedades tribais ou não, com a intromissão, concomitante por vezes, de elementos da medicina ocidental, dita científica. Avanço significativo no pensamento médico ocorre quando se dá um desvio do foco de interesse das forças sobrenaturais para o portador da doença, passando a mesma, gradativamente, a ser vista como um fenômeno natural, passível de ser compreendido e liberado da intromissão de forças divinas ou malévolas. Esse novo enfoque, que poderia ser designado como medicina empírico-racional, teve seus primórdios no Egito (papiros com fragmentos de textos médicos datam de 3.000 a.C.). No Ocidente, especulações com vistas a encontrar uma explicação não sobrenatural para a saúde e a doença devem muito aos primeiros esforços de alguns pioneiros em uma forma inédita de aproximação dos fenômenos, na busca do seu entendimento, particularmente na Grécia Clássica, iniciando-se no sexto século antes de Cristo, com o nascimento da filosofia (amor à sabedoria...) e as tentativas dos primeiros filósofos présocráticos em encontrar explicação para as origens do universo e da vida. Essa matéria-prima (arké=origem, começo), por eles visualizada como sendo a água, a terra, o fogo, o ar (e o “ilimitado” (apeíron)), está subjacente à teoria dos humores de Hipócrates (460-377 a.C.). Pensadas, de início, de forma isolada, acredita-se ter sido Empédocles (490-430 a.C.) o pioneiro na concepção do mundo como sendo formado pelo somatório dos quatro elementos que existiriam juntos e em termos iguais, formulando as bases de uma teoria dos elementos que, de alguma forma, estaria presente na medicina ocidental nos próximos dois milênios, teoria que foi aprimorada por outros filósofos atingindo o seu auge à época de Hipócrates, daí em diante persistindo, mais ou menos inalterada, até o século XVI. Associando a bile amarela, bile negra, sangue e fleugma, respectivamente, ao fogo, terra, ar e água, esses humores predominariam em determinada estação do ano, isto é, verão (bile amarela), outono (bile negra), primavera (sangue) e inverno (fleugma). 38 O chamado Pai da Medicina ocidental identificou a saúde como fruto do equilíbrio dos humores, sendo, por oposição, a doença, resultante do desequilíbrio dos mesmos. Alguns praticantes da medicina contemporâneos ou sucessores de Hipócrates interpretaram a teoria humoral de maneira mais estrita (abrindo exceção apenas para os ferimentos), enquanto outros admitiam a intromissão de agentes externos, como os venenos, na determinação das doenças. Algo da teoria dos humores sobrevive nos dias de hoje em algumas correntes do pensamento médicooriental, como é o caso da medicina tradicional tibetana ou da medicina ayurvédica e unani indianas. A noção de equilíbrio (crasis, em grego) associa-se à idéia de “proporção justa ou adequada” e foi desenvolvida de forma mais acabada por Alcmeon, pioneiro na aplicação dessa idéia de equilíbrio nas suas relações com a saúde e a doença. Contemporâneo de Pitágoras, esse filosófo trouxe contribuições marcantes para o que, atualmente, entende-se por medicina holística (holos = todo, integral). Para ele, equilíbrio implicava a interação de duas ou mais forças ou fatores na etiologia das doenças. Alcmeon, de algum modo, reconcilia idéias de Heráclito (540-480 a.C.), para quem os opostos podem existir em equilíbrio dinâmico ou sucedendo-se uns aos outros, com as de Pitágoras (580-500 a.C.). É levada, agora, em consideração não apenas uma mera oposição de duas forças, mas de um conjunto delas, em geral, aos pares, vislumbrando-se a idéia de um sistema no qual atuaria, sobre o indivíduo, simultaneamente, diferentes forças. Na nova concepção, a mistura dos opostos os neutralizariam, produzindo a harmonia, visível, por exemplo, na música ou na saúde. A escola de Alcmeon propugnava, como já o fazia Pitágoras, a existência de uma vida saudável através da meditação, adequação da dieta, moderação em tudo. Surge a concepção de que, tanto quanto o corpo social, o corpo humano requer delicado conjunto de controles para mantê-lo dentro dos limites apropriados. Era de se esperar que o pensamento hipocrático, tanto do seu líder, quanto dos seus discípulos, tivesse como pressupostos as contribuições dos filósofos que os antecederam ou dos seus contemporâneos. A escola hipocrática aprofunda estratégias de recuperação da saúde, mas, sobretudo, de prevenção das doenças e que se pode extrair dos fragmentos reunidos sob o título corpus hipocraticum – nos quais se pode notar a valorização do ambiente de trabalho, da habitação ou da dieta, na determinação do bom estado de saúde. 39 1.2. O galenismo Partindo dos pressupostos hipocráticos, Galeno (122-199 d.C.), um dos médicos que exerceram maior influência na história da medicina ocidental, fará avanços significativos nas concepções diagnóstico-terapêuticas, tendo as mesmas predominado durante nada menos que 14 séculos, isto é, por quase toda a Idade Média. Pesquisador clínico e escritor notável, suas idéias, inspiradas de início na escola de Hipócrates e seus sucessores, alcançaram, para a época, uma profundidade e repercussões notáveis. Anatomista, fisiólogo e terapeuta, Galeno realiza uma síntese do conhecimento médico existente fazendo-o avançar no contexto do Império Romano e da expansão do cristianismo. A idéia central de sua visão da fisiologia repousa no fluxo permanente dos humores, o que estaria na dependência das influências ambientais, do calor inato e, em grande medida, da ingesta alimentar e sua justa proporção. As causas mórbidas podiam ser internas (ligadas à constituição e predisposição individual), externas (excessos alimentares, sexuais ou de exercícios físicos) ou conjuntas. O diagnóstico deve ter por fundamentos o cuidadoso exame do doente, o conhecimento do seu estado quando sadio, seu temperamento, regime de vida, alimentação, além das condições ambientais e a época do ano. Vale ressaltar, no caso da terapêutica, a importância outorgada por Galeno à natureza, com a notável visão da vis medicatrix naturae (força medicadora natural). Extremamente válidas – e contemporâneas – são suas referências ao potencial curativo, mas também, venenoso, dos medicamentos. Para ele, deveria ser outorgada maior ênfase ao uso dos medicamentos fitoterápicos, considerando o fato de que os de origem mineral seriam mais tóxicos e os de origem animal, mais débeis. O enfoque galênico floresceu no contexto da hegemonia da filosofia escolástica, elaborada sobretudo por Tomás de Aquino, igualmente renomado pela sua condição de teólogo. Segundo o tomismo, o raciocínio lógico se constituía em uma forma de se chegar à verdade superior à representada pela observação empírica. Apesar de não se poder negar que a escola galênica forneceu as bases para a prática médica hegemônica na Europa, terminou por erigir-se em um dogma, ficando impermeável à incorporação das descobertas surgidas nos séculos XV e XVI. 40 1.3. A contribuição de Paracelso Paracelso (1493-1541) representa o modelo de transição entre a escola galênica e o modelo biomédico. Segundo ele, há uma ordem determinada que organiza o micro e o macrocosmo, ambos governados pelo princípio vital – por ele denominado de archeus. Influenciado pela alquimia, visualizava uma composição mineral na matéria, inclusive na orgânica, chamando a atenção para as semelhanças existentes entre os processos químicos e os processos vitais. Na determinação da doença, Paracelso identificava influências cósmicas e telúricas além de substâncias tóxicas e venenosas, bem como da predisposição do próprio organismo e das motivações psíquicas. A doença também se explicava em virtude de reações inadequadas dos elementos constitutivos do mundo (excesso de um ou de mais de um deles). Uma, entre as múltiplas orientações de Paracelso para uma correta prática médica, proclamava: A prática desta arte repousa no coração; se o teu coração é falso, o mesmo se dará com o médico que está dentro de ti. Onde não existe amor, não existe arte; portanto, o médico não deve estar imbuído de menos compaixão e amor do que os que Deus direciona aos homens. Autor de um conjunto de idéias que formavam um sistema médico complexo, sincrético (reunindo a alquimia, medicina popular, astrologia, a tradição renascentista e sua peculiar visão cristã do mundo), Paracelso se opunha vivamente às ideías do passado (em especial à teoria dos humores e ao pensameno galênico). Dotado de um temperamento excêntrico, passional, esteve no cerne de contendas com seus colegas, sobretudo ao propugnar o caráter de entidade independente para a doença, a qual necessitaria ser tratada com remédios específicos, muitas vezes, de origem química. Entre as suas contribuições terapêuticas podem ser citadas: o tratamento conservador das feridas e úlceras crônicas, baseado na crença no poder curativo da própria natureza; a introdução do laudanum (tintura de ópio); a utilização de compostos de mercúrio no tratamento da sífilis; o reconhecimento do bócio e do cretinismo como decorrência de deficiências minerais; a identificação de problemas hoje diagnosticados como silicose e tuberculose, que representariam riscos ocupacionais para os que trabalhavam em minas. A influência de Paracelso cresceu após sua morte e muitos dos seus admiradores se destacaram no exercício de uma prática médica afastada da convencional, ainda que atentos às inovações. Quase um século depois, o médico londrinense Robert Fludd 41 (1574-1629) estabeleceu uma espécie de ponte entre Paracelso e as novas correntes filosóficas dos séculos XVI e XVII (em especial, as chamadas “filosofias químicas” cujos adeptos propugnavam a compreensão da natureza através da análise química, o que, no âmbito da medicina, incluía uma oposição às idéias de Galeno, com duas correntes principais: uma, seguidora da tradição de Paracelso, com sua visão holística e mística do mundo; a outra, mais prática e mecanicista, preocupando-se menos com a essência das coisas e mais com sua forma e movimento (BENNET, 1987) . Fludd era adepto dos novos agentes químicos na terapêutica e sua oposição a Galeno fez com que sua entrada no College of Physicians ocorresse apenas à quinta tentativa. 1.4. O modelo biomédico O modelo biomédico-mecanicista, hoje predominante, tem suas raízes históricas vinculadas ao contexto do Renascimento e de toda a revolução artístico-cultural que ocorre nessa época, associada, igualmente, ao projeto expansionista das duas metrópoles de então – Portugal e Espanha – cuja consecução vai demandar o surgimento de instrumentos técnicos que viabilizem as grandes navegações (astrolábio, bússolas, caravelas, avanços na cartografia etc.), na tentativa, como se sabe, entre os fatores que prioritariamente estimularam o mencionado empreendimento, de reatar o intercâmbio comercial com as Índias, coarctado a partir da tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Como precursores significativos das mudanças radicais de ordem técnico-científica ocorridas a partir do século XV hão de ser citadas as contribuições dos astrônomos, particularmente, Copérnico e Galileu e, mais adiante, Kepler. A teoria geocêntrica ptolomaica, até então hegemônica e inquestionável, é substituída pela heliocêntrica, a despeito da força dos dogmas católicos proclamados como única forma aceitável de visualizar o universo e todo e qualquer fenômeno, ficando sob risco de enquadramento nos rigores da inquisição aqueles que deles discordassem. O filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) é o precursor de um método e uma escola filosófica pioneira na habilitação privilegiada do sujeito conhecedor (res cogitans) frente ao objeto ou realidade externa a ele e que vai ser conhecida (res extensa). No seu Discurso do método, Descartes formula as regras que se constituem os fundamentos do novo enfoque sobre o conhecimento e que persistem hegemônicos no 42 raciocínio médico ainda hoje. A primeira regra preceitua que não se deve aceitar como verdade nada que não possa ser identificado como tal, com toda evidência, isto é, hão de ser cuidadosamente evitados a precipitação e os conceitos prévios, não ocupando o julgamento com nada que não se apresente tão clara e distintamente à razão que não haja lugar para nenhuma dúvida. A segunda regra propunha separar cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto sejam possíveis e que sejam requeridas para solucioná-la. A terceira dizia respeito à condução do pensamento de forma ordenada, partindo do mais simples e fácil e daí ascendendo, aos poucos, para o conhecimento do mais complexo, mesmo supondo uma ordem em que não houvesse precedência natural entre os objetos de conhecimento. A última regra se referia à necessidade de efetuar uma revisão exaustiva dos diversos componentes de um argumento de tal maneira que seja possível certificar-se de que nada foi omitido (DESCARTES, 1960). Uma preocupação adicional de Descartes residia na certeza a que ele podia chegar por meio de provas matemáticas. A Isaac Newton coube a criação de teorias matemáticas que confirmaram a visão cartesiana do corpo e do mundo como grande máquina a ser explorada. Assim como a mecânica newtoniana possibilitou a explicação de muitos fenômenos da vida cotidiana, a medicina mecanicista passa a fornecer, gradativamente, os instrumentos requeridos pelos médicos para que pudessem lidar de forma cada vez mais satisfatória com uma parte crescente das doenças mais corriqueiras. Não podem ser negados – tanto quanto seria descabido fazê-lo nos dias de hoje – os notáveis avanços ocorridos no campo das ciências biológicas, a partir do século XVII, à medida que também evoluíam a física e a química. O que cabe, sim, é continuar questionando os descaminhos ou as estratégias e interesses que, em especial a partir da revolução industrial capitalista, passaram a prevalecer, e que, mais adiante, serão objeto de maiores considerações. Agora, o alvo do interesse médico passou da história da doença para uma descrição clínica dos achados propiciados pela patologia, isto é, como diz Bennet (1987), de uma abordagem biográfica para uma outra, nosográfica. Grande parte das descobertas da medicina moderna foi sendo, paulatinamente, validada pela abordagem biomédica. Alguns exemplos, entre tantos, dessas descobertas podem ser realçados, tais como os estudos anatômicos de Vesalius (publicados em 1543), a descoberta da circulação sangüínea por William Harvey em 43 1628, e da primeira vacina por Edward Jenner (1790-1823). Mais adiante, na década de 1860 e subseqüentes, a era bacteriológica se instaura com a decisiva participação, com merecido destaque, entre outros, de Louis Pasteur e Robert Koch, o primeiro evidenciando o papel das bactérias, seja no processo de fermentação, seja nas doenças, além de, entre outras contribuições, ter chegado às vacinas anti-rábica e contra o Anthrax, e o segundo, tendo descoberto o agente etiológico da tuberculose e formulado os postulados que tipificam o rigor do raciocínio mecanicista e sua insistência na correlação causaefeito: o microorganismo está presente e pode ser detectado em todo caso da doença; ele pode ser cultivado em meio de cultura apropriado; a inoculação desta cultura reproduz a doença em animal susceptível e o microorganismo pode ser recuperado, de novo, do animal infectado. A teoria microbiana passa a ter, já nos fins do século XIX, uma predominância de tal ordem que, em boa medida, faz obscurecer concepções que destacavam a multicausalidade das doenças ou que proclamavam a decisiva participação, na eclosão das mesmas, dos fatores de ordem socioeconômica. No campo da epidemiologia, o trabalho precursor de John Snow abriu caminho para a compreensão dos elos presentes na determinação das doenças pestilenciais ou epidêmicas e para a possibilidade de intervir sobre as mesmas. Obviamente, no que concerne à abrangência das doutrinas que tentavam compreender o processo saúde-doença, buscando entender a complexidade da sua determinação, já se chegara, no século XVIII, a enormes avanços. Veja-se a respeito os trabalhos de Rosen (1980; 1994), Sigerist (1961), Singer (1981), Foucault (1993), entre tantos outros. As descobertas mencionadas e tantas outras requeriam um modelo explicativo que pudesse incorporar as inovadoras concepções sobre a estrutura e funcionamento do corpo. Durante largo período de tempo, médicos e pacientes tiveram sua atenção voltada para o todo e a interação harmônica das partes. O novo modelo explicativo introduz a gradativa reorientação nos princípios e práticas que irão conformar a nova medicina, sendo mui ilustrativo o modelo mecânico que se erige como analogia para a compreensão do funcionamento do corpo: o relógio e suas engrenagens. Vale a pena, nesse contexto, realçar o fato de que, tanto quanto o próprio Descartes, tido como o pai do racionalismo na moderna filosofia, aos cientistas, de maneira geral, nos séculos XVI e XVII, não parecia difícil ou 44 incongruente conciliar a crença religiosa com suas observações empíricas. Contudo, o empirismo (na formulação de suas bases, não se pode esquecer a contribuição decisiva de Francis Bacon, o primeiro a formular os fundamentos do método indutivo) foi, aos poucos, tal como ressalta Bennet (1987), substituindo a especulação como fonte primordial da descoberta da verdade e dos segredos da natureza, o que pode ser observado com mais clareza, seja na astronomia, onde as antigas cosmologias, a despeito das reações eclesiásticas, deram lugar a novas teorias, seja na física, com Newton (teoria da gravitação universal, unificação das diversas explicações sobre a natureza e propagação da luz e tantas outras importantes contribuições). Bennet (1987), em todo caso, chama a atenção para não se exagerar no grau de culpabilidade imputado a Descartes e Newton pelos críticos da medicina mecanicista contemporânea. Para Bennet, suas concepções estariam bem distantes daquelas dos iatromecanicistas de hoje, cujo precursor máximo seria Julien Offray de la Mettrie (1709-1751), para quem mesmo as doenças mentais teriam uma origem física. A propósito, uma perspectiva de todo coerente com muito do que se pratica e investiga na psiquiatria contemporânea (uma apreciação crítica das doutrinas, sobretudo relacionadas às terapêuticas que elas propugnam, de escolas médicas dominantes na Europa e no Brasil nos dois últimos séculos, foi feita por Sayd (1999)). Se quisermos ilustrar ainda mais – e com exemplos mais ou menos recentes – o raciocínio mecanicista, podemos tomar o caso do diabetes. Em 1889, se descobre que a alteração metabólica, essência dessa enfermidade, podia ser reproduzida removendo-se o pâncreas, em 1921 detectando-se que a administração de insulina aliviava os sintomas. Estava-se diante de mais uma clara demonstração de como uma deficiência na “máquina” provocava doença que podia ser “curada” através do emprego de uma substância específica. Sucessos mais impressionantes proviriam das descobertas da imunologia, elucidação da estrutura do DNA e, mais recentemente, do mapeamento do genoma humano e das “conquistas” da engenharia genética. A adesão massiva ao raciocínio e práticas biomédicas tem a ver com as supostas soluções – muitas vezes, em realidade, meramente paliativas por não agirem nas causas propriamente ditas – precisamente por se concentrarem nas “partes” de um sistema ou de um processo que, na sua essência, é bem mais complexo. 45 Tanto quanto nas ciências biomédicas, o êxito do paradigma mecanicista, em termos das leis gerais que tentavam explicar os fenômenos da natureza, fez com que o mesmo se tornasse hegemônico por quase quatro séculos. A nova concepção, como ressalta Capra (1986), colocou em evidência a índole mecânica dos fenômenos celestes e terrestres e, logo, dos seres vivos, podendo-se considerar que a noção de um universo orgânico e vivo, com o qual o homem entretia relações harmônicas, é substituída pela de um mundo que passa a ser considerado como uma máquina, convertida na metáfora dominante da era moderna. O paradigma mecanicista só veio a sofrer algum questionamento quando outras teorias se fizeram necessárias para dar conta da explicação, em especial nos campos da física e da química, de determinados fenômenos. Tais são os casos, à guisa de exemplos, do eletromagnetismo, para o que foram importantes as contribuições de Faraday e Maxwell, ou das teorias quântica (Max Plank), da relatividade (Einstein) ou da Evolução (Jean B. Lamarck e Charles Darwin). 2. O fenômeno da medicalização É provável que a expressão mais acabada das distorções e conseqüências concretas do modelo biomédico, reducionista e cartesiano, de abordagem da saúde e da doença na vida dos indivíduos resida no que se convencionou designar como medicalização. Ivan Illich, por meio do seu livro Nemesis da medicina: a expropriação da saúde, publicado em meados dos anos setenta, foi um dos pioneiros em apontar os descaminhos da moderna medicina e sua sofisticação tecnológica. Seu texto suscitou profícuo debate e, apesar de eventuais equívocos, contribuiu para evidenciar as distorções do “complexo médico-industrial” e a necessidade de redirecionamento na forma como estavam sendo estruturados os serviços de saúde. Navarro, em 1975, mesmo ano da publicação do texto de Illich, em crítica a algumas das teses do mencionado autor, chama a atenção para o fato de que a industrialização e seus reflexos no campo da medicina são apresentados como causa dos prejuízos à vida dos indivíduos e não como um elo no contexto mais geral do sistema capitalista de produção e consumo (NAVARRO, 1975). Inúmeros estudos têm sido feitos a respeito da sociedade de consumo, da ideologia que o incentiva e da vinculação crescente do mesmo ao bem-estar e à felicidade. Uma bem 46 elaborada e acessível síntese das relações entre produção e consumo, no contexto do capitalismo, sob a ótica do materialismo dialético, foi feita por Giovanni (1980). Na medida em que o acesso ao consumo foi convertido no objetivo principal para o desfrute de níveis satisfatórios de bem-estar, bons níveis de saúde passaram a ser vistos como possíveis na estreita dependência do acesso a tecnologias disgnóstico-terapêuticas. A eficácia e efetividade das mesmas passam a confundir-se com seu grau de sofisticação. Como decorrência inevitável do aprofundamento no conhecimento dos pedaços do organismo, aparecem as super e subespecializações desbancando o antigo clínico geral (de alguma forma ressuscitado, na atualidade, com os médicos de família, tradicionais em países como Cuba, e presente nos Programas de Saúde da Família, institucionalizados pelo Ministério da Saúde). Os fenômenos referidos foram sendo instaurados ao longo da evolução ténico-científica pelas quais vão passando as ciências biomédicas, e se intensificam no último século, consolidando o modelo biomédico tecnocêntrico e, como parte dele, a medicalização. Esta pode ser entendida como a crescente e elevada dependência dos indivíduos e da sociedade para com a oferta de serviços e bens de ordem médicoassistencial e seu consumo cada vez mais intensivo (BARROS, 1984). Essa invasão desmesurada da tecnologia médica passa a considerar como doença problemas os mais diversos (situações fisiológicas, problemas cuja determinação são, em última análise, fundamentalmente de natureza econômico-social), como tal demandando, para sua solução, procedimentos médicos. Não importa que – ou quiçá, é isto que interessa – em muitos casos, os resultados obtidos constituam meros paliativos ou até mesmo sirvam à manutenção do status quo. O manejo da gravidez e do parto como se fosse uma “doença” e, por isto mesmo, requerendo atenção permanente do aparato médico, é um bom exemplo de algo fisiológico que é “medicalizado”, bastando citar, para confirmar a assertiva, a multiplicação dos partos cesarianos sem justificativa técnica, ou a monitorização sistemática da gravidez pela ultra-sonografia, mesmo em grávidas sem nenhuma história pregressa ou atual que possam vir a ser consideradas como “risco”. A redução, objetivamente mensurável, da mortalidade perinatal e materna é atribuída, em caráter exclusivo, ao moderno acompanhamento médico possível pela aplicação de inovações tecnológicas. É omitida a contribuição crucial, no descenso dos coeficientes mencionados, da melhoria nutricional, melhor distribuição dos serviços obstétricos básicos, redução da 47 quantidade de certas categorias de gravidez de alto risco (TAYLOR, 1979). Paralelamente às influências do mecanicismo e a extrapolação de seu raciocínio do mundo físico, do universo, para o mundo dos seres vivos, a medicalização sofre o impacto, a partir da Revolução Industrial que instaura o capitalismo, da transformação de tudo em mercadoria, em princípio destinada a produzir lucros. Está aberto o campo para a gestação do “complexo médico-industrial” e para a mais ampla possível mercantilização da medicina, com todos os malefícios daí decorrentes, especialmente no acesso não equânime e universal aos serviços médico-assistenciais, inclusive aos essenciais e o que é mais grave ainda, nas sociedades como a nossa marcada por cruel concentração da renda e, daí, de todos os bens e serviços. Ultrapassa os objetivos do presente texto a análise das estratégias eventualmente adotadas por indivíduos ou por organizações da sociedade civil (como os movimentos de defesa do consumidor, do desenvolvimento sustentável ou do meio ambiente) em favor de uma reorientação do modelo econômico fundado no neoliberalismo, hoje dominante em inúmeros países e, nesse contexto, do modelo médico-assistencial. Selecionar o medicamento, ainda que análises de teor similar pudessem ser, também, feitas em relação aos exames laboratoriais, e o papel que, sobretudo a partir de sua quimiossíntese industrial, ele passou a desempenhar no seio do sistema sanitário e na prática de consumidores e prescritores, poderá ilustrar sobremaneira, seja a medicalização, seja a perspectiva reducionista e os interesses a que serve o modelo biomédico. Diversos autores têm se ocupado, no Brasil, do tema, em muitos casos aprofundando um ou outro aspecto da complexa cadeia que vai da produção ao consumo dos medicamentos (GIOVANNI,1980; CORDEIRO, 1985; TEMPORÃO, 1986; BERMUDEZ, 1995; CARLINE, 1995; BARROS, 1995). O papel extratécnico dos medicamentos diz respeito à extrapolação de sua ação farmacológica, associada ao “valor-deuso”, para usar uma categoria marxista e que ultrapassa, igualmente, o seu “valor-de-troca” (caráter de mercadoria de um bem qualquer, utilizando o mesmo referencial teórico). A lógica de mercado, atuante desde os primórdios da indústria farmacêutica moderna, estimula, intensivamente, a extrapolação mencionada, agindo com suas técnicas promocionais, com grande vigor, em uma outra dimensão, que poderia ser designada como “valor simbólico”. Sobre médico e paciente paira uma 48 representação do processo saúde-doença e das estratégias para manejá-las que, de alguma maneira, inclui um caráter mágico, sendo este último pensado como o desejo de agir sobre algo, exercendo um domínio sobre ele ou sobre um de seus signos. Ao tomar um medicamento o que se quer é que o mesmo interfira sobre os sintomas ou sinais da doença (signo da fragilidade humana), sob a ilusão, mesmo que aparentemente respaldada nos pressuspostos técnico-científicos os mais sólidos, de que se está atuando sobre eles e, na medida do possível, dominando-os. Em uma sociedade em que, para quaisquer problemas, busca-se um “remédio” oferecido pela ciência, os antigos instrumentos de dominação mágica do mundo foram substituídos por objetos técnicos. Tal como ressalta Dupuy e Karsenty (1980), em virtude das funções atribuídas aos fármacos, a expectativa é de que os mesmos tragam algum conforto moral, diminuam a sensação de insegurança, aliviem a angústia, preencham vazios, em suma, ajudem a viver. Ao fazer uma análise do fenômeno da reificação e simbolização do fenômeno da saúde, dando ênfase à sua concretização através do medicamento, Lèfevre (1991) expõe mui apropriadamente, ao nosso ver, as relações no plano simbólico que médico e paciente entretêm com o produto. Até o século XVIII, o medicamento representava muito mais um recurso adicional disponibilizado aos médicos. Com o decorrer do tempo e, sobretudo, quando os produtos farmacêuticos passaram a requerer uma prescrição médica, a dimensão simbólica se intensifica mais ainda, tendo outras concepções assumido a condição de irracionais ou supersticiosas. A dimensão simbólica vai servir, igualmente, para escamotear o viés econômico que não se coaduna ao caráter sagrado, secerdotal, inerente ao profissional que atua como agente da cura (como tal, a prescrição se justifica em função da vida e da saúde, não sendo cabível especulações sobre gastos) (COMELLES, 1993). Os múltiplos aspectos socioculturais e comportamentais envolvidos na questão dos medicamentos têm sido objeto de diversos ramos das ciências sociais e sua aplicação à área da saúde, como é o caso da antropologia médica, sendo uma referência oportuna, com respeito, especificamente, aos medicamentos, a revisão feita por Nichter e Vuckovic (1994). 3. Grandes limitações do Modelo Biomédico Paralelamente ao avanço e sofisticação da biomedicina foi sendo detectada sua impossibilidade de oferecer respostas 49 conclusivas ou satisfatórias para muitos problemas ou, sobretudo, para os componentes psicológicos ou subjetivos que acompanham, em grau maior ou menor, qualquer doença. As críticas à prática médica habitual e o incremento na busca de estratégias terapêuticas estimulada pelos anseios de encontrar outras formas de lidar com a saúde e a doença (no seu conjunto designadas como medicinas alternativas ou complementares) constituem uma evidência dos reais limites da tecnologia médica. Mesmo que muitos profissionais cheguem a admitir a existência de componentes de ordem subjetiva ou afetiva que exercem influência até em casos de doenças em que as evidências orgânicas sejam mais explícitas, não se sentem, com freqüência, à vontade para lidar com estes componentes, pois para isto, via de regra, os profissionais não foram preparados. De fato, o modelo biomédico estimula os médicos a aderir a um comportamento extremamente cartesiano na separação entre o observador e o objeto observado. Proclama-se a necessidade de um “distanciamento objetivo”, visto como uma qualidade que cabe preservar ou mesmo incrementar, por mais que seja inerente ao ato médico, uma interação inescapável e mais ou menos intensa entre médico e paciente e que esta interação seja fundamental para o sucesso terapêutico. A intensificação da divisão do indivíduo em pedaços contribui sobremaneira para dificultar a valorização do todo. Até mesmo se nos restringirmos ao âmbito terminológico, os médicos ocidentais têm dificuldades em descrever o todo, a não ser por meio das partes. Desta maneira, por mais que alguns profissionais queiram visualizar seu paciente como um todo e situá-lo, de alguma maneira, no seu contexto socioeconômico, terminam por regressar ao reducionismo, pois este foi o modelo em que se pautou sua formação na escola médica. Tudo o que acontece aos pacientes, quaisquer das suas queixas ou sofrimentos são vistos – e, como decorrência, manejados – em termos mecanicistas, isto é, tenta-se “patologizar” (TAYLOR (1979) criou o neologismo diseasefication, ao nosso ver muito apropriado) e enquadrar tudo nos cânones da biomedicina (oxalá não seja esquecida a existência dos desvios-padrão!...). Um paciente que, hospitalizado e prestes a submeter-se a uma cirurgia, por ventura comenta suas preocupações com algum membro do corpo médico, rapidamente se lhe diagnostica um estado ansioso, merecedor da prescrição de um tranqüilizante. A própria morte, termo inevitável da vida, passou a ser vista como um reflexo da incapacidade do médico ou dos sistemas responsáveis pela 50 manutenção da vida. Apreciação crítica muito pertinente sobre os limites objetivos da medicina frente à morte foi feita pelo filósofo francês contemporâneo, André Comte-Sponville, em capítulo de um de seus livros, apropriadamente denominado Morrer curado (SPONVILLE, 2000). É interessante, ainda, ressaltar quão flexíveis são as correntes de pensamento antigas para incorparar, quando preciso, princípios e técnicas da medicina ocidental moderna, haja visto o exemplo dos médicos chineses de hoje, em cuja formação se incluem, mesmo com ênfase na escola médica específica, conhecimentos tanto da medicina tradicional quanto da ocidental moderna. Um problema adicional significativo diz respeito aos custos envolvidos nas novas tecnologias médicas para cujo enfrentamento os indivíduos ou o serviço público de saúde se sentem cada vez mais impotentes. Tal como já comentado antes, a lógica de mercado e os interesses envolvidos quando tudo foi transformado em mercadoria desempenha um papel extremamente importante nessa ampliação de gastos, na medida em que tudo é feito sob a égide da ânsia pela ampliação sem limites dos lucros, muitas vezes com pouco ou nenhum controle por parte do Estado ou de outros instrumentos que atuem em defesa dos interesses dos usuários dos serviços de saúde. Enfim, fazendo nossas as considerações de Bennet, o que as escolas médicas do passado – seja a antiga medicina grega, sejam, as ainda em vigor, concepções da medicina chinesa, ayurvédica ou unani – têm a ensinar ao médico ocidental, sempre cético em tudo que não se fundamente na anatomia, fisiologia e patologia modernas, é, sobretudo, a visão integral do paciente. Não se faz mister quaisquer subsídios, entre nós, para entender as partes. O que, sim, se faz necessário é a compreensão do todo e de como as partes interagem. Urge visualizar o indivíduo (o que significa, etimologicamente, “indivisível”) como único devendose, pois, considerar menos, se determinado tratamento funciona, pensando na maioria dos pacientes, mas se o tratamento funcionará para este paciente em particular, com estes problemas pessoais, neste tempo de sua vida, neste ambiente, neste recanto do país e do mundo. Em outras palavras, o enfoque primordial não deve continuar se concentrando naquilo que o paciente tem em comum com outros, mas nas suas peculiaridades. Estamos no tempo do novo paradigma, recuperando também práticas antigas consagradas. O problema central do modelo biomédico não reside numa espécie de maldade intrínseca que o caracterizaria, mas no fato 51 de que ele é demasiado restrito no seu poder explicativo, o que implica óbices importantes para a prática de médicos e pacientes. Tal como ressalta Bennet (1987), médicos sensíveis estão insatisfeitos com este modelo, não propriamente porque o mesmo não responde a muitos dos problemas clínicos, e sim devido ao fato de que tomam consciência das reações psicológicas dos seus pacientes e dos problemas socioeconômicos envolvidos na doença, mas não vêem como incorporar essas informações na formulação diagnóstica e no programa terapêutico. Nas concepções orientais – caso de medicina chinesa e sua teoria do yin-yang – o enfoque é substancialmente qualitativo, e as explicações que hão de ser dadas assumem a forma de valores. No ocidente há a tendência de se privilegiar as explicações de natureza quantitativa, reduzindo-e, com freqüência a “qualidade” à expressão numérica, estatística, da mesma, quando esta última, ainda que de grande utilidade, nos fornece uma “probabilidade” ou uma resposta em termos de “médias”. No que se refere aos medicamentos, ao hipervalorizar as funções que eles podem vir a desempenhar, além da geração de uma dependência pela qual se crê que, para todo e qualquer problema, independentemente de sua gravidade ou nexos causais, haverá uma pílula salvadora, deparamo-nos com um incremento nos custos, tanto econômicos quanto, propriamente, sanitários. Essa verdadeira “cultura da pílula” identifica bons níveis de saúde com alto grau de consumo. Prescritos ou não por médicos – já que, em nosso país, os balconistas de farmácia também atuam como prescritores (BARROS, 1997) – ou consumidos através da automedicação, a expectativa criada é sempre favorável em relação às novidades continuamente lançadas no mercado pela indústria ou prometidas para logo mais. Desconsidera-se por um lado que, muitas das supostas novidades, na realidade não o são (BARROS, 1996) e, sobretudo, que um padrão de saúde adequado, menos que fármacos, com mais freqüência requer mudanças sociais ou comportamentais ou, no caso do Estado, menos gastos com compra de medicamentos e mais com saneamento básico, educação ou melhoria nas oportunidades de emprego e de distribuição da renda. O referencial mecanicista, reforçando explicações que reduzem o processo saúde-doença à sua dimensão estritamente biológicomecanicista, propaga, inclusive pela mídia ou pelos sites da internet tanto as “soluções” que já vieram à luz, como as que estão prestes a fazê-lo (produtos para impotência, novos anti- 52 reumáticos e antidepressivos, fármacos para enxaqueca, osteoporose, obesidade ou para abandonar o hábito de fumar). O uso mais adequado dos medicamentos, ao lado de controles mais estritos sobre o registro de novos produtos, implementação de um sistema de farmacovigilância, indispensável ao acompanhamento das reações adversas que surgem póscomercialização, implica, entre outras estratégias, a disponibilidade de informações isentas do viés mercadológico, tanto para prescritores, como para consumidores. Já está mais do que provado que os produtores de medicamentos investem intensivamente em atividades promocionais (sobre as quais, aliás, urge impor regras que defendam os interesses da coletividade), tendo, inclusive, um duplo padrão de conduta, segundo o país onde disseminam seus produtos e as informações veiculadas sobre os mesmos (SCHULTESASSE, 1988; US Congress OTA, 1993; BARROS, 2000). A mudança começa a vir no viés do novo paradigma, não mais cartesiano, mas bioético. Referências bibliográficas BARROS, J.A.C. 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Washington DC: Government Printing Office. 55 3 PARA ALÉM DA DOENÇA A MEDICINA COMO PROMOÇÃO DA SAÚDE Leandro David Wenceslau* Introdução: O desafio da promoção da saúde Durante o século XX, diz-se que a medicina, enquanto um conjunto de conhecimentos e práticas humanas em transformação, evoluiu muito, mas dentro de dois movimentos fundamentais, muitas vezes opostos. Ao longo de todo o século passado, desenvolveu-se um movimento hegemônico, ou seja, uma determinada forma de se pensar (considerada científica), sentir e agir em saúde que se impôs como o único verdadeiro e, enfaticamente, como lei para uma grande parcela da humanidade, principalmente no mundo ocidental. Um segundo movimento, mais evidente nas últimas três décadas, constitui-se como grande questionamento e como busca de alternativas e resgate de tradições abandonadas diante deste modelo hegemônico. A construção da medicina – padrão – do último século e seu poder foi muito bem analisada por autores como Michel Foucault, como vemos em Nascimento da clínica (FOUCAULT, 2004), ou Madel Luz, em Natural, racional e social (LUZ, 2004). Nestes estudos clássicos, fica evidente o envolvimento da medicina nas transformações intensas que a humanidade viveu na sua filosofia, ciência, artes, dinâmica social, economia e relação com o divino, no período que se convencionou chamar de idade contemporânea, no capitalismo avançado. Hoje, há um conhecimento acumulado e consistente que indica a insuficiência deste padrão e concepção da saúde, dentro do que alguns chamam de paradigma biomédico e cartesiano, dentro do processo crescente de medicalização – alopática em especial. As alternativas começam a surgir como resposta à grande inquietação de pessoas em todas as classes sociais, quando não revoltadas, com a forma como sua saúde vem sendo planejada e atendida. Vale ressaltar que estas outras propostas de medicina não visam na maioria dos casos anular simplesmente o modelo padrão, mas complementá-lo ou situá-lo melhor no processo de cuidado das pessoas, resgatando seu verdadeiro sentido. Não se * Médico, UFRJ. Pesquisador em Promoção de Saúde, Saúde Comunitária, Terapêuticas Orientais e Bioética. 56 apresentam como candidatas a novas hegemonias, mas como um caminho a ser percorrido ao lado de outros, em vista da complexidade da saúde humana e suas várias facetas e abordagens. Na presente reflexão, lançamos algumas contribuições para elaboração do que pode ser chamada uma Medicina Promotora da Saúde. Não se trata de uma nova especialidade médica, mas de uma outra forma de se enxergar a medicina e seu papel na sociedade. Em muito, ela resgata princípios já trabalhados em outras práticas alternativas, como as medicinas orientais, ou a homeopatia ocidental, a medicina popular brasileira, e a medicina antroposófica. Trata-se de novos modos de olhar o processo saúde-doença e o indivíduo para além das dicotomias do problemático modelo biomédico vigente. Da cura das doenças à promoção da saúde A promoção da saúde vem se apresentando nos últimos trinta anos como uma proposta de reorientação das práticas sanitárias. Tem como princípios orientadores: a mudança do foco das intervenções sanitárias da doença para a saúde e o protagonismo de toda a população em tais intervenções, como principais responsáveis pela própria saúde. São duas direções que podem mexer profundamente no nosso atual modo de “comprar” a “saúde”. No entanto, esta mudança radical, ir às raizes, depende de que olhar lançamos à própria questão da saúdedoença. “O que é saúde?” Esta não é uma pergunta nova para o Ocidente. Platão e Aristóteles e a filosofia grega em geral têm muito presente esta perspectiva, associando-a com o bem, com a felicidade e com a finalidade da medicina enquanto justa medida, ética e equilíbrio dinâmico. No entanto, a partir da idade moderna ocorreu um processo de abandono das tradições, dando lugar à outra indagação: “o que é doença?”, em termos isolados. A parceria, firmada mais solidamente na idade moderna, entre conhecimento e poder sobre, controle e domínio exterior penetrou a epistemologia e os objetivos do saber humano. As doenças ganharam vida própria, nomes, descrições, classificações e representações, tornaram-se coisas, objetos, cuja existência é afirmada ou negada por seus estudiosos, como se fossem coisas simples, palpáveis e universais. Os médicos, para explorar uma posição de destaque na consolidação das novas estruturas de poder que se organizaram entre o fim do século XVIII e início do 57 XIX, foram convidados a transformar a sua ciência também numa ferramenta de controle, especificamente sobre o corpo humano e seu comportamento. Mesmo sendo a saúde uma experiência que aponta para um viver na liberdade, de realização, no aqui e agora, e que não é algo definitivamente controlável pela objetividade. As doenças emergem em meio aos labores das principais entidades das ciências da saúde, nicho de poder dos seus profissionais, conhecimento complicado, rico em detalhes, em informações que as diferenciavam umas das outras e as multiplicavam. Foi bastante comum a prática dos epônimos – em que os descobridores tinham seus nomes associados às patologias ou a sinais das mesmas, como forma de homenageá-los e reconhecer seu valor. O foco na doença tornou a saúde mais do que nunca uma questão para expertos e doutores, afastada das práticas naturais, tradicionais que sempre souberam lidar satisfatoriamente com a manutenção da saúde, principalmente com a prevenção9. A noção de saúde foi associando-se à de normal. Este poderia ser estatístico (é saudável o que é mais freqüente) ou ser uma convenção social (o que é útil ou aceitável para determinado grupo social num certo tempo e espaço) (cf. CANGUILHEM, 1995). As ciências da saúde se dedicaram ao trabalho de afirmar o que é normal ou patológico, e indicar como o segundo pode ser eliminado. O normal não necessitaria ser trabalhado já que ele é determinado de alguma forma, seja socialmente ou matematicamente. A dimensão social é, com certeza, uma das primeiras a sinalizar as insuficiências deste tipo de abordagem. Apesar do avanço em quantidade de conhecimento tecnológico que este movimento traz às ciências da saúde, este é inacessível à maioria 9 Certamente temos os relatos de epidemias e taxas altas de mortalidade bem como expectativa baixa de vida na Idade Média na Europa, por exemplo, ou em outros tempos posteriores. Mas isso não se deve à falta de avanço da medicina, mas antes à baixa qualidade de vida, hábitos alimentares perniciosos, condições de higiene precárias etc. Por outro lado, as tradições indígenas, orientais, mesmo gregas e de colônias sustentáveis até hoje dão o grande exemplo de saúde, prevenção e processos de curas naturais. 58 da população do planeta, trazendo, além do mais, efeitos colaterais incalculáveis. Existe um salto técnico enorme (no esquema químico-físico da calculabilidade e experimentação laboratorial), exatamente nas ferramentas diagnósticas, aquelas que permitem delinear/desenhar, ver e catalogar a doença; é raro não conseguirmos dar um nome ao que “alguém tem”, mas na mesma proporção é raro oferecermos uma terapia de qualidade ao que é diagnosticado, ao lado de uma visão de conjunto. Os médicos e demais técnicos em saúde têm como auge do seu trabalho o diagnóstico físico; este é comemorado como um êxito profissional, mas, inúmeras vezes, pouco conforto e poucas possibilidades de cuidado/cura estão presentes de fato10. A imposição do normal-patológico sobre o processo saúde-doença traz outra conseqüência: a necessidade de “consertar” o que está defeituoso. São necessários instrumentos para que a máquina corpo-humano volte ao funcionamento normal. As doenças, entidades externas que invadem o sujeito, precisam ser combatidas com outros agentes externos, capazes de eliminá-las. A descoberta de pequenos seres vivos, micróbios, que foram associados de forma causal às patologias foi complementada pelo estudo de agentes químicos capazes de destruí-los ou anular seus efeitos. Num espaço de poucas décadas, desenvolve-se obsessivamente a indústria farmacêutica com os antibióticos e vacinas. Não obstante, há um limite claro e matemático entre o normal e o patológico? Numa visão mecanicista e cartesiana haveria; já numa visão integradora não há este limite objetivo. A objetividade é encontrada também por outros meios. Não demora o surgimento de críticas a este modelo, o qual ganhou o status de padrão social aceito e foi erguido violentamente pelo mercado. Por outro lado, inicia-se o levantamento da multicausalidade das doenças – o clássico modelo de Leavell-Clark que identifica o agente, o indivíduo e o meio ambiente como fatores determinantes da geração da patologia – e pela necessidade de trabalhar na perspectiva preventiva, de evitar a doença (cf. AROUCA, 2003). Contudo, o 10 Cura, etmologicamente, significa cuidar. Neste sentido, curar é um processo humano e de saúde amplo, que envolve seres humanos e suas relações, condições sociais, ambientais e afetivas (psíquicas). Muitas vezes, mais do que o remédio químico ou a cirurgia, o paciente precisa da cura como cuidado humano. 59 foco continuou sendo as entidades patológicas e as intervenções químicas alopáticas. Na década de 1970, especificamente no Canadá, começa a ganhar corpo a proposta da promoção da saúde. No início, numa linha mais comportamental, defendia a adoção de uma série de comportamentos tidos como saudáveis, tais como uma rotina de exercícios físicos, alimentação natural balanceada e o combate ao tabagismo. Além disso, a população passa a ser convocada de diversas formas, em conselhos públicos, em iniciativas nãogovernamentais a participar da gestão da saúde pública, a pensar em mecanismos para garantir uma noção que ganhou bastante força dentro deste movimento: a “qualidade de vida”, através de políticas públicas saudáveis (cf. BUSS, 2004). Com o tempo, esta primeira tendência foi questionada, especialmente pelo movimento latino-americano da Epidemiologia Social, que a analisou como uma estratégia injusta de redução dos vultuosos e crescentes gastos da “medicina dos hospitais”, através da culpabilização das pessoas. Esta crítica ganha ainda mais força quando em 1986, doze anos após o início da experiência pública canadense, é realizada a I Conferência Internacional de Promoção de Saúde, em Ottawa, com uma série de princípios que foram interpretados como uma imposição estrangeira do modelo de atenção sanitária – desenhado para países capitalistas ricos aos países pobres. A participação popular se tornou uma nova norma adotada pelos técnicos e gestores da saúde, num patamar mundial, e não um caminho de autonomia e emancipação dos sujeitos em suas comunidades (cf. STOTZ, 2004). Ou seja, ainda não se pensava a idéia do sujeito da saúde, responsável por si e diante de sua comunidade. Esta polêmica no debate da promoção da saúde perdura até os dias de hoje. Por enquanto, esta última tem sido “mais um” departamento da saúde coletiva, e obtido pouco sucesso na sua vocação reorientadora. A tensão política que a envolve foi trabalhada em duas conferências temáticas regionais que ocorreram em Trinidad e Tobago (1993) e em Bogotá (1992), cobrando a responsabilidade dos governos na construção de condições mínimas de saúde, tais como saneamento, educação básica, segurança alimentar e política habitacional. Neste sentido, nestes primeiros anos de milênio, há iniciativas nos campos teórico e prático de tentar aproveitar as brechas trazidas pela promoção da saúde, para ensaiar algumas mudanças radicais na forma como nós humanos cuidamos do nosso corpo, da nossa alma, do nosso ser e do nosso planeta. 60 Uma medicina integradora As contribuições que a promoção da saúde pode trazer à medicina, e assim para a população em geral, foram pouco exploradas até o momento. Suas influências por enquanto têm acontecido principalmente no campo teórico-prático da saúde coletiva, com que a medicina mantém uma confusa interface. Esta difícil comunicação tem bases em tensões próprias das dicotomias ocidentais, como as que existem desde a Grécia Antiga, entre o público e o privado, o individual e o coletivo, e, mais modernamente, entre o estruturalismo e o individualismo sociológico, o behaviorismo e a psicanálise, etc. Continuamos a nossa busca desértica pela miragem no oásis. Em todo caso, este é um problema que muitas tradições orientais conseguem resolver, ao colocar em xeque o nosso conceito de self (ego) e nossa visão fragmentária, apresentando-nos a possibilidade de olharmos nossa pele como uma rede no meio do mar, que não lhe traz nenhum tipo de divisão; assim também conceber outro modo de lidar com a doença, tirando o foco do micróbio e da química e passando às condições de saúde integral. A medicina hegemônica dos nossos dias é a técnica de diagnóstico e tratamento de entidades patológicas que acometem indivíduos humanos tornados pedaços de carne ou agregados químico-mecânicos. Um bom médico, aí, é o que sabe manipular bem aparelhos e drogas, e não o que sabe reequilibrar a saúde de seus pacientes. Muito se tem debatido em torno de como humanizar este processo, para que gere menos sofrimento. Há um discurso ganhando cada vez mais espaço nas escolas médicas: as doenças têm portadores, pessoas a serem levadas em conta neste processo e em suas interfaces ambientais/sociais. Surgiu a idéia de retomar os antigos médicos de família, aqueles que conheciam a todos pelo nome, iam a sua casa para lhes atender, e realizavam inúmeros outros papéis, com destaque para o de conselheiro familiar. Inspiradas pela experiência da saúde em Cuba, surgiram aqui as propostas de medicina de família e comunidade, em que o médico – além destas funções – tem entre suas tarefas desenvolver uma mobilização social, cultural e afetivo-político com a população de determinado local. No entanto, a promoção da saúde nos convida a um outro desafio: é possível construirmos uma medicina para além das doenças? Em O nascimento da clínica (FOUCAULT, 2004), vemos como as doenças – da forma moderna como as 61 conhecemos – ganham vida no início do século XIX, e seu conhecimento é utilizado como ferramenta de controle das autoridades e da classe médica sobre os corpos humanos e comunidades. Podemos questionar um “dogma” sobre o qual se alicerçam as ciências da saúde na atualidade: doenças, como tais, existem? Os organismos humanos apresentam manifestações e processos temporários que relacionamos a uma experiência de bem-estar ou incômodo profundo, dor, sofrimento; mas foi a racionalidade médica tecnocêntrica e então acoplada ao mercado que as transformaram em patologias específicas. Quando alguém sente dor ao urinar, alguém sente dor ao urinar e ponto. É um médico quem nos afirma que se trata de uma infecção do trato urinário pela bactéria E. coli, e que isso tem apenas um modo de ser abordado. O seu organismo não traz nenhum letreiro ou código com esta informação. As bactérias, germes e outros microorganismos e os seres humanos convivem como unha e carne desde sempre. Não viveríamos sem eles. Logo, o que a nossa medicina hegemônica faz é interpretar uma série de sinais externados ou desvendados de nosso corpo, pegando um caminho de causalidade linear, em geral o único aceito, dentro do que se impõe uma terapêutica única, que pode ser encontrada em manuais prontos. E tenta encaixar os sinais em padrões literalmente doentios, que ela, enquanto um campo de conhecimento humano, acumulou durante dois séculos, numa velocidade de crescimento exponencial; mas se limitando aí a uma forma reducionista de enxergar os processos vitais, forma cartesiana, isto é, mecanicista, dicotômica, fragmentada e coisificante – fazendo perder o elemento pessoal, sistêmico, vivo e relacional neste mesmo movimento, agora traduzido como doença externa e inimiga11. Aplicando alguns dos princípios da promoção da saúde, apontamos algumas características do que acreditamos possa ser a medicina promotora da saúde. Mudando o foco Um dos grandes desafios de sairmos do porto seguro, porém falido, das doenças/patologias é ter de descobrir outros mares a navegar no oceano da saúde, que é o da vida e da morte. Como diz Sandra Caponi em seu artigo Saúde como abertura ao 11 Veja quanto a isso, nesta obra, o trabalho de P. Martins e o de M. Pelizzoli, bem como sua obra Correntes da ética ambiental (Ed. Vozes, 2003). 62 risco (CAPONI, 2004), enquanto a doença ganhou o lugar do público em nossa sociedade, a saúde infelizmente continua sendo uma questão privada. Trocar estes papéis é um dos grandes riscos que uma interpretação normativa e apenas técnica da promoção da saúde traz para o nosso tempo. Quais são as conseqüências da definição de um modelo de saúde único para uma sociedade? As práticas nazistas são um cruel exemplo de como se pode levar certos dogmas ao extremo. Todavia, esta proposta de reorientação abre possibilidades animadoras para o marasmo clínico contemporâneo se a enxergamos numa perspectiva formativa. Uma medicina promotora da saúde não vem para trazer a definição de saúde e repetir os erros do modelo biomédico e da medicalização excessiva vigente, mas para contribuir com os seres humanos, individualmente e coletivamente, para que descubram o que é saúde para eles e como podem vivê-la. Esta compreensão da medicina está comprometida com uma idéia ou construção de felicidade, de desenvolvimento social, de realização familiar e coletiva. Não está de acordo com a indiferença, com a falta de cuidado, ou com o mercado e lucro farmacêutico e das tecnologias da doença. Pelo contrário, acredita que decisões são colocadas em prática a todo tempo e implicam mudanças no que acontece conosco. Mas elas precisam ser tomadas lucidamente e não acatadas com fatalismo. Vislumbra resgatar o ser humano como sujeito de escolhas, responsável por seus desdobramentos no mundo da vida das nossas relações. É um modo de sentir-agirpensar essencialmente ético, de busca do ethos – do nosso ambiente, da nossa casa, da nossa origem, do sentido de estarmos vivos. Resignificando o método Os antigos gregos acreditavam que à experiência do adoecer estava associada a não realização da sua missão nesta vida. Uma das principais formas de cuidado era deixar as pessoas alguns dias em reflexão num espaço chamado kemiterium, olhando a própria vida e buscando o que deveria ser transformado nela (cf. SALIS, 2004). As grandes tradições orientais colocam o adoecimento como um desequilíbrio das energias vitais gerado pela própria pessoa e que fundamentalmente ela é capaz de modificar. “Se alguém é capaz de ficar doente, também é capaz de retomar a saúde” – eis um de seus lemas essenciais. Neste sentido, o que um médico pode 63 construir de conhecimento com a pessoa que busca sua ajuda é muito mais importante do que aquilo que pode fazer por ela. Assim, é transformado o papel tecnicista do médico moderno, para um médico aberto e interpretativo. Na medicina hegemônica atual, ele explica o que acontece com a pessoa segundo uma verdade única, que ele passa pretensamente a possuir, amparado nos aparelhos e calculado nos laboratórios, distante do processo da vida da pessoa e seu corpo. Nesta outra proposta, a interpretação continua sendo uma técnica fundamental, mas deixa de pertencer ao médico e passa a ser um papel dos seres humanos que estejam num processo de auto-cuidado. Cabe ao médico ser um parceiro deste processo e um instigador social desta atitude, oferecendo mecanismos que possam ajudar neste movimento de autodescoberta e de interação com a vida, onde não são claros os limites entre o que se chama de saúde e de doença. Esta proposta de medicina sintoniza epistemologicamente, por exemplo, com a fenomenologia e a hermenêutica, correntes da Filosofia, resgatando o diálogo entre consciência e realidade, colocando a relação sujeito-sujeito como dinâmica fundamental do processo de conhecimento, substituindo a relação sujeito-objeto dicotômica e isoladora, própria do cartesianismo. Nos aportes filosóficos da hermenêutica uma outra e mais concreta racionalidade humana é investigada, voltada para a práxis e o chamado mundo da vida, que conhecemos intimamente. “Práxis significa melhor realização da vida (energeia) do ser vivo, a quem corresponde uma vida, uma forma de vida, uma vida que é levada a cabo de uma determinada maneira (bios)” (AYRES, 2004). A humanidade aprendeu desde muito tempo a lidar com sua saúde em cada comunidade e geografias diferentes. Transformando as relações Trata-se de possuir autonomia em saúde. O buscador do cuidado sai de seu lugar de objeto da prática médica e passa a ser responsável por sua própria medicina. A busca da “sua medicina” resgata como algumas das tradições indígenas americanas trabalhavam o cuidado das pessoas nas suas tribos. Cada um tinha a sua própria “medicina”; o xamã tinha como papel ajudar a cada um a descobrir a sua, dentro de seu caminho. Hoje, felizmente, existem inúmeras formas de cuidado e diversas terapêuticas. Falta melhorar o acesso consciente das pessoas a tais formas, no fundo a si mesmas e ao sentido de suas relações. E este é o grande papel do médico promotor da saúde efetiva. É muito presunçoso acreditarmos que apenas a alopatia ou qualquer outra linha terapêutica tenha isoladamente as respostas. O médico também não deve ter obrigação de conhecer todas elas. Pode identificar-se com determinada forma de ver o mundo, de ver as manifestações corporais e mentais e trabalhar com ela, mas o seu papel mais importante é o de ajudar o buscador a encontrar 64 a sua própria senda e respeitá-la. Isto não significa ter um papel enganoso de facilitador neutro, mas de abertura, admiração e constante diálogo, coerente com suas escolhas, sem impô-las. E neste ponto, há um conflito claro entre a proposta da medicina promotora da saúde e a medicina hegemônica atual: a industrialização do “cuidado”. Os tratamentos tornam-se padronizados, e produzidos em verdadeiras fábricas de pacotes terapêuticos. Podemos ir desde as drogas farmacêuticas até mesmo algumas terapias não alopáticas que estão entrando na mesma lógica de consumo do mercado, e se tornado apenas mais um produto na prateleira dos clinical centers. A medicina promotora da saúde tem um desafio político expresso fortemente na luta por políticas públicas e educação que visem a integralidade – este trabalho de Hércules, que é na dimensão social reconhecer o universo em torno de cada ser humano, e que precisa ser reverenciado e respeitado nas práticas públicas. Considerações sobre uma nova prática possível Apresentamos algumas pistas que podem ser seguidas a fim de transformar a prática médica atual. A reflexão sobre a saúde nos chama a atenção para um ponto visceral deste caminho: não podemos afirmar uma medicina que seja melhor para a humanidade inteira. Foi nesta trilha, com nome de modelo científico evidente e único, que chegamos a nossa atual sociedade produtora de doenças (cf. ILLICH, 1975). Muito mais interessante que este movimento é pensarmos outra forma de exercer a vida social e ambiental, a construção de um modo-deser-cuidado (cf. BOFF, 1999), em que descubramos que dentro de cada um de nós existe um médico, um cuidador de si mesmo e do seu universo de relações. A crença essencial da promoção da saúde é a crença de que o ser humano, dentro de sua realidade social, política e histórica, pode transformar o seu caminho, por ele mesmo. Para isso, todos precisamos de ajuda, de apoio e principalmente de trocas de experiências. As nossas tradições em saúde/medicina são riquíssimas, tanto no oriente quanto no ocidente, e estão sendo resgatadas cada vez mais, devido ao seu sucesso. E junto deste movimento, construímos o novo papel da medicina em nossa sociedade, o de gerar trocas, descobertas e conscientização de experiências que de fato diminuam sofrimento e nos alimentem em nossa práxis. 65 Referências bibliográficas AROUCA, Sérgio (2003). O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Unesp/Fiocruz, 268 p. AYRES, José Ricardo (2004). Norma e formação: horizontes filosóficos para as práticas de avaliação no contexto da promoção da saúde. Ciências da Saúde Coletiva, vol. 9, n. 3, p. 583-592. BOFF, Leonardo (1999). Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 11 ed. Petrópolis: Vozes. BUSS, Paulo Marchiori (2004). Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: CZERESNIA, Dina (org.). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 15-38. CANGUILHEM, Georges (1995). O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. CAPONI, Sandra (2004). A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, Dina (org.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 55-77. FOUCAULT, Michel (2004). O nascimento da clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 231 p. ILLICH, Ivan (1975). A expropriação da saúde – Nêmesis da medicina. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 196 p. LUZ, Madel Therezinha (2004). Natural, racional, social – Razão médica e racionalidade científica moderna. 2 ed. revista. São Paulo: Hucitec, 209 p. PELIZZOLI, Marcelo (2003). Correntes da ética ambiental. Petrópolis: Vozes. SALIS, Viktor D. (2004). Ócio criador, trabalho e saúde. São Paulo: Claridade, 160 p. STOTZ, Eduardo (2004). Promoção da saúde e cultura política: a reconstrução do consenso. Saúde e Sociedade, vol. 13, n. 2, mai.ago., p. 5.-19. 66 67 4 Da eugenia à algenia e o paradigma bioético Erliane Miranda* Raphael Douglas Tenório Filho** Introdução Trata-se aqui de discutir a emergência do paradigma bioético, em contraponto ao paradigma dominante – biotecnológico. Para situar essa emergência entraremos no espaço aberto entre os movimentos da prática tradicional da eugenia à prática contemporânea da algenia. Eis que, desse vácuo, surge a necessidade de reavaliar as formas de lidar com a ética que deve orientar tais movimentos. De início, é preciso contextualizar historicamente a passagem da eugenia para algenia – como eixo promotor principal de mudança de paradigmas, onde se verifica uma conjuntura de fatores que não mais correspondem, apenas, às orientações éticas tradicionais. Em continuidade, é preciso abordar alguns discursos contemporâneos que reclamam – na mesma medida em que justificam – a necessidade de reflexão sobre a interdisciplinaridade, bem como a própria prática tecnocientífica, a partir de uma doutrina dentro do paradigma biotecnológico vigente. Finalmente, é preciso articular as evidências que levam à conclusão de que, uma vez esgotado um paradigma, faz-se urgente a compreensão de suas dimensões, para que se possa abandonar o amadorismo e se vivenciar plenamente todos os seus reflexos – positiva e negativamente; por conseguinte, apontaremos a contribuição de * Socióloga. Grupos de pesquisa: Bioética e Ambiente (Departamento de Filosofia – UFPE), Núcleo de Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGS/UFPE) e grupo de estudo Corpo, Limite e Técnica (PPGS/UFPE e CPPL-PE). Especialização em Bioética: Saúde e Sociedade, UFPE. E-mail: [email protected] ** Filósofo; mestrado em Filosofia (UFPE); pesquisador do Pibic; integrante do grupo de pesquisas Bioética e Ambiente (UFPE); co-organizador do Laboratório de Filosofia da UFPE; coorganizador da Ciranda Filosofia da Livraria Cultura Recife. Email: [email protected] 68 um dos mais ilustres filósofos contemporâneos na construção da Bioética como novo paradigma: Hans Jonas. Da eugenia à algenia O termo eugenia foi cunhado em 1883 pelo inglês Francis Galton, formado em medicina e pesquisador em estatística, além de um dos mais conhecidos primos de Darwin – o qual lhe exerceu grande influência a partir do livro A origem das espécies. Eugenia significa “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente”. O termo foi ainda mais difundido em 1869 com a publicação de seu livro Hereditary genius, no qual Galton atribui à hereditariedade mais influência sobre o ser humano do que a educação. Posteriormente, eugenia também foi um termo emprestado a conceitos como os de bem nascido ou de boa geração. Galton estava convencido de que o determinismo biológico era responsável por grande parte das características físicas, morais e mentais dos seres humanos e que, portanto, da “seleção” dos seus predecessores dependeria a herança que determinaria as mesmas características nas gerações futuras. É fato notório que a prática da seleção entre os humanos visando o melhoramento de espécies, incluindo a sua, sempre existira. Mas foi Galton o primeiro estudioso a elaborar um projeto com conteúdo metodológico e estatístico, que elucidasse uma “teoria” para essa proposta. Desde 1860, seus estudos se direcionaram para a doutrina da hereditariedade, onde seu principal objeto de estudo era famílias prósperas e numerosas, com a finalidade de detectar os indivíduos “eugenicamente favorecidos” dentre essas famílias. Chegou a propor, junto com a sociedade de sociologia, um Livro de ouro onde esses indivíduos pudessem ser catalogados. Dessa forma, é evidente que a perspectiva da eugenia, proposta por Galton, visava um processo de seleção e cruzamento racionais para evolução e conservação de uma raça constituída de seres humanos superiores: A eugenia coopera com os trabalhos da natureza para assegurar que a humanidade seja representada pelas raças mais bem ajustadas. O que a natureza faz cegamente, vagarosamente e implacavelmente, o homem pode providenciar rápida e agradavelmente. [...] O melhoramento de nosso estoque natural parece ser para mim um dos mais altos objetivos que nós podemos atender (GALTON, 1909: 42. In: CASTAÑEDA, 2003: 901 e 930). Sob um ponto de vista histórico, da época em que propôs um processo que “modificasse eugenicamente” a humanidade, Galton soube como se utilizar tanto da fé como da razão – apesar 69 de ambas estarem em pleno estado de ruptura – para reforçar seus argumentos em prol de uma sociedade eugenicamente modificada: se as restrições religiosas e os reforços legais já eram baseados em um contexto social de raças civilizadas, então a proposta da eugenia deveria ser considerada um avanço racional dessas mesmas bases já solidificadas. E, embora esse viés adotado por Galton tenha distorcido a verdadeira ética antropocêntrica12, é plausível que seu argumento contemplasse mais a afirmação desta ética, em ascensão, que da ética teleológica, em decadência. Apesar das manobras de discurso, a proposta da eugenia sempre esteve arraigada a aspectos econômicos e sociais. Os estudos eugênicos foram realizados exclusivamente em “famílias prósperas”. Havia visivelmente uma inclinação ao favorecimento de que os tais indivíduos eugenicamente favorecidos, ou dignos de serem considerados fonte para um “melhoramento de nosso estoque natural” estivessem sempre em classes sociais abastadas, e, portanto, já beneficiadas por condições econômicas que competiam para a pretensa superioridade intelectual – a partir de boa alimentação e educação, bem como para a superioridade fisiológica – a partir das condições de higiene e habitação. Dessa perspectiva, o processo de análise de Galton, eticamente, já estaria em falta com qualquer comprometimento de neutralidade científica. De uma outra perspectiva a eugenia como promotora das futuras gerações, também poderia ser identificada como um elemento de oportunidade para a inserção da burguesia – como nova classe social àquela época, nas dominantes classes políticas, tradicionalmente nobres, para lhes garantir sua ascendência (cf. VAZQUÉZ, 2004: 281-282). Sua proposta só ganhou força emblemática com sua desevolução, a partir da II Guerra Mundial, quando incorporou a verdadeira face da técnica como ameaça humana mundial. Essa predominância da técnica foi instaurada em todo o sistema 12 A ética antropocêntrica na modernidade é marcada justamente pela ocupação do homem no centro de um mundo real, politizado e científico, em processo de ruptura com qualquer forma de subjetividade humana, porém, ainda que racionalmente, também moral. Galton distorce o seu argumento, na medida em que apela para a religião como justificativa para dessa racionalidade em ascensão. 70 político-militar nazista, culminando em suas práticas de holocausto (morte dos judeus em especial), sob a bandeira de eugenia como higienização, ou purificação de uma raça – como principal meio de alcançar o objetivo dessa ideologia13. Na passagem da II Guerra Mundial com as especulações sobre formas de se aprimorar a eugenia, abriram-se precedentes para investigações científicas que aos poucos foram sendo apropriadas por diversos segmentos, sobretudo com expressivo interesse dos Estados capitalistas e da iniciativa privada. Alguns autores como Lewis Mumford, em sua obra The Pentagon of power, atribuem ainda uma imensa contribuição ao desenvolvimento dessas ciências aos avanços técnicos investidos por forças militares, sempre amparadas e estimuladas pelos seus governos, bem como aos mercados industriais, da mesma forma, e ainda por uma forte e protetora legislação de patentes. Operando a partir da noção de mudanças de paradigmas, de T. Kuhn – que compreende que o conhecimento científico não cresce de modo contínuo, mas sim opera por saltos qualitativos que têm lugar nos “períodos” de desenvolvimento, postos em causa e substituídos os princípios, teorias e conceitos básicos (cf. SANTOS, 1989: 32) – chegamos ao final do século XX com uma ciência cooptada ou “hibridizada” pela técnica, a tecnociência. Tecnociência: a hybrys cartesiana e mercadológica Partindo de convincente proposta de Ellul14, de que a ciência tornou-se um meio a serviço da técnica, é preciso rever os princípios que fundamentam essa proposta. Como fruto da modernidade, a tecnociência emerge dos procederes da ciência moderna, na condição de doutrina que é orientada pelo avanço da sua inter/mutidiciplinaridade entre as ciências naturais e (bio)médicas: bio-genética, bio-tecnologica, bio-dinâmica, etc. Faz-se necessário então, antes de concordar com essa proposta, entrar nas formas pelas quais se alicerçam esses procedimentos. 13 A ideologia nazista era a de construir uma raça pura, constituída de indivíduos superiores – física e intelectualmente. 14 Jacques Ellul, em 1969, na obra A técnica e o desafio do século, afirma que a técnica antecede a ciência. Em 1977 em sua obra Le système téchnicien, ele anuncia como imperativo da técnica: “Deve-se fazer tudo o que é possível de ser feito”. 71 Em Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia, Postman apresenta um argumento através de análise histórica em que localiza uma passagem importante desses procedimentos: da tecnocracia – século XVIII, ou século da mecanização ao tecnopólio – século XIX, ou século das Invenções comerciais. Para esse autor, “a tecnocracia não destrói [ainda] por completo as tradições dos mundos social e simbólico. Ela subordina esses mundos – sim, chega a humilhá-los –, mas não os deixa totalmente ineficazes” (POSTMAN, 1994: 54). A sonsa liberdade política e religiosa – aqui representadas como ícones culturais, introduzidas mudamente no cerne da vida social, é o instrumento utilizado pela tecnocracia para condicionar a sociedade e, posteriormente, “amanhar” a passagem para o tecnopólio – este sim, reduziria o homem a serviço da tecnologia e se colocaria como o estado de cultura. O tecnopólio constrói uma ponte para a politização das novas tecnologias que, doutrinada pela tecnociência, ignora um exame sobre as próprias organizações sociais nas quais se instala. Para Gérard Fourez15, esse desprezo incentiva as sociedades a adotar os modelos de aprendizagem que moldam as maneiras pelas quais as pessoas compreendem as ciências, causando assim a “vulgarização científica”, promotora de uma alienação contemporânea em relação a toda estrutura do paradigma biotecnológico – então vigente. Assim, uma vez vulgarizada a ciência e condicionada a técnica, o paradigma biotecnológico se nutre do cartesianismo e da mercadologia a partir da fragilidade de princípios morais, estremecidos pelo sistema político-econômico dominante – capitalista. Cartesiano porque diz que para qualquer coisa ser aceita, deve passar por certo método científico redutor (metodologismo) e esse método só aceita o que vem a ser comprovado de forma material (físico-química) e calculista, chamado de “método científico”, que induz a sociedade contemporânea a exigir que tudo seja “comprovado cientificamente”, como medida de segurança. Essa pode ser uma forma coerente de tentar entender o processo que promove os desligamentos – separação do corpo e da mente, a razão da emoção, a matéria do espírito, o caráter simbólico do psicológico da vida – creditados ao cartesianismo e 15 Cf. FOUREZ, 1995, cap. 9: “A tecnologia como política de sociedade”, p. 2218-2220. 72 produtos da hybrys (desmedida) que contamina os profissionais e pesquisadores da área tecnocientífica. Mercadológico por se interessar demais na criação contínua de desejos infinitos e o consumo infindável, visto que está imerso num sistema econômico capitalista. Lucra com a doença e não vê o doente nem a saúde como tal; lucra com o artificial, com os materiais poluentes, venenos, os supérfluos e descartáveis. Situa os seres humanos num mundo mecanicista e positivista, resultando assim na perda de sua dignidade, historicidade, o caráter psicológico, enfim, a perda do chamado mundo da vida. De fato, a revolução tecnocientífica, possibilitada pela interdisciplinaridade, ou ainda pela multidisciplinaridade, anunciou o que Jeremy Rifkin chama em O século da biotecnologia, de uma nova matriz operacional – produto de grandes mudanças econômicas ocorridas durante a união das forças sociais com as forças tecnológicas. Essa nova matriz seria composta de sete fios que compreenderiam, basicamente, da capacidade de investigação à invasão, culminando na mais expressiva apropriação dos elementos mínimos que constituem toda e qualquer forma de vida, possibilitando assim sua fragmentação, codificação, seleção, manipulação e conseqüente controle. Essa possibilidade, de fato, se concretiza a partir da decodificação do alfabeto da vida (cf. FERREIRA, 2003: 219240), a partir da qual é instaurada uma tensão entre as formas cultural e política, estabelecida pelo poder tecnológico, de lidar com a vida. Esse processo, segundo Rifkin, seria promotor de uma “segunda gênese”. Ele aponta, por exemplo, as tecnologias da engenharia genética como “ferramentas” da eugenia contemporânea. Classifica, ainda, essa eugenia em dois segmentos: a positiva, de aprimoramento ou incentivo de traços desejáveis, e a negativa, de aperfeiçoamento ou de eliminação sistemática de traços indesejáveis. O que começara com a especulação de aperfeiçoamento acabou promovendo uma reinvenção. Para essa reinvenção foi refinado o termo cunhado na década de 50 pelo Dr. Joshua Lederberg, biólogo laureado com Nobel e ex-presidente da Universidade Rockefeller – algenia, afirmando que a algenia deve emergir como uma nova estrutura filosófica e uma metáfora arqueada para o século biotecnológico: Algenia significa mudar a essência de uma coisa viva. As artes algênicas são dedicadas à “melhoria” dos organismos existentes e ao desenho de outros completamente novos, com o intuito de tornar seu desempenho “perfeito”. Mas algenia é muito mais que isso. É a tentativa da humanidade em dar significado 73 metafísico à sua emergente relação tecnológica com a natureza. A algenia é um modo de pensar sobre a natureza, e é essa nova maneira de pensar que determina o rumo da próxima grande época da história (RIFKIN, 1999: 34-35). Feita a passagem da eugenia para a algenia, a grande questão é saber se, diante de uma nova estrutura filosófica, podemos ainda viver sob a luz do paradigma biotecnológico. Da mudança de paradigmas à virada bio-ética É como se a evolução natural tivesse chegado ao seu estado terminal e a história tivesse sido “zerada”, e se tratasse, agora, de reconstruir o mundo através da capitalização do virtual (SANTOS, 2003: 129). Nas últimas décadas os problemas éticos relacionados às atividades científicas, médicas, biológicas e ambientais eclodiram com espantosa força e velocidade, mudando, assim, a forma do pensar e do fazer ético tradicional. Constitui um desafio para a Ética em que estamos imersos em nossos dias, providenciar um padrão moral comum para a solução dos problemas provenientes das atividades biotecnológicas contemporâneas. Dessa forma, a bioética se apresenta como proposta de um paradigma que seja capaz de orientar sistematicamente a conduta humana contemporânea sobre todas as suas possibilidades, para dialogar com o paradigma biotecnológico, com uma diferença – o exame dessa conduta à luz dos valores e princípios morais, e não simplesmente econômicos, políticos, técnicos ou cientificamente viáveis. A bioética nasce de uma cadeia de fatores que foram indiciados por aspectos éticos nunca vistos antes. Portanto, faz-se razoável o reconhecimento de que a bioética não viria à tona se não houvesse uma gama de problemas sérios a serem resolvidos ou prevenidos. Assim, o contexto do seu nascimento deve-se principalmente a: • dessacralização da medicina e empoderamento do cidadão; • o impacto das atrocidades dos “médicos” nazistas durante a Segunda Guerra; • luta pelos Direitos Humanos; • eminência da ameaça atômica; • luta pela paz; • direitos do paciente (autonomia); • temas polêmicos e sempre recorrentes, como: eutanásia, aborto, pena de morte, entre outros; 74 • mudança de paradigma na cultura, na arte, na psicologia (psicanálise); • emancipação e o novo papel da mulher na sociedade; • crítica ambiental e humanista aos estragos da tecnociência e sua racionalidade instrumental; busca de modos alternativos de vida; • perigos do rápido avanço do paradigma biotecnológico sem nenhum paradigma pronto para contestá-lo, ou mesmo dialogar com ele; • urgência do novo paradigma ecológico (cf. PELIZZOLI, 1999). O vocábulo bioética foi suscitado a partir de janeiro de 1971 pelo biólogo e oncologista Rensselaer Potter, e assim por ele justificado em sua principal obra: “Escolho bio para representar o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas viventes, e ética para representar o conhecimento dos sistemas de valores humanos” (POTTER, 1971). A proposta de Potter se apresenta como de amplo alcance e, portanto, pode ser antevista como a proposta que corresponde à idéia de paradigma (ecológico). De outra forma, o obstetra, fisiologista fetal e demógrafo holandês Andre Hellegers16 se apropriou do termo para fins da medicina e ciências biológicas: “Para Potter a bioética possuía um sentido macro, com forte conotação ecológica e holística, para Hellegers ela dizia respeito especificamente ao ser humano e às biociências humanas” (OLIVEIRA, 1997: 48). Nesse caso, a proposta de Hellegers se apresenta como proposta voltada a uma área restrita, ou ainda especista17, e que, 16 Criador do Instituto de Bioética Joseph and Rose Kennedy para o estudo da reprodução humana. Cabe aqui ressaltar que a perspectiva kennediana deixa a ecologia em segundo plano, priorizando a medicina e seus demais aspectos. 17 Termo criado por Richard D. Ryder, em 1973, para designar a ética voltada à justificação de práticas nocivas, lesivas e violentas contra seres de outras espécies, sob a alegação de que os deveres morais humanos são restritos somente aos seus próprios direitos morais e não se estendem a de seres dotados de qualquer sensibilidade ou consciência se esses não forem de origem da sua 75 portanto, corresponde à idéia de disciplina. Essa forma de conceber a bioética como disciplina foi intensamente assimilada pela ética aplicada e aclamada pela área médica. De onde cabe pressupor a legitimação de sua base contemporânea ser tão pragmática como seus referenciais e princípios18: • Autonomia – O ser humano tem o direito de usufruir do seu livre-arbítrio. Os serviços e profissionais de saúde devem respeitar a vontade, os valores morais e as crenças, a historicidade, as idiossincrasias de cada pessoa ou, em caso de ausência de sã consciência, de seu representante legal. Qualquer imposição tornar-se-á uma postura ditatorial e por isso agressão à intimidade do ser humano. O princípio do respeito à pessoa é ponto central nas discussões bioéticas. • Beneficência – O princípio da beneficência é o que diz que é dever nosso fazer o bem aos outros, independentemente de assim querer ou não. É obrigação ética de maximizar benefícios e minimizar danos ou prejuízos; nasce do reconhecimento do bem supremo que é a vida humana e do reconhecimento de sua dignidade, que transcende seus aspectos materiais, qualquer que seja a situação biológica econômica ou cultural em que o indivíduo se encontre. • Não-maleficência – O princípio da não-maleficência propõe a obrigação de não infligir dano intencional. Se uma pessoa já se encontra em um mal estado (dores, enfermidades, depressão, etc.) é sensato que se evite ao máximo mais um dano, seja lá qual for. • Justiça – O princípio da justiça é normalmente interpretado através da visão da justiça distributiva. A justa distribuição dos bens e serviços implica que o acesso a eles deve ser sempre universal; avaliar quem necessita mais deve preceder a atenção igualitária. É o princípio menos trabalhado no Principialismo, mas o mais importante para nós do III Mundo. Apresentada essas duas perspectivas, é clara a distinção entre a bioética como disciplina e como paradigma. Como disciplina, ela tem uma característica flexível, capaz de ser absorvida por áreas distintas que, ao mesmo tempo, por serem própria espécie biológica, ou seja, a espécie humana. 18 Principialismo é o modelo de análise ou paradigma que se funda na ética dos princípios. Sistematizado por Tom Beauchamp e James Childress na obra Principles of biomedical ethics. Oxford: Oxford University Press. 76 contemporâneas já são em sua essência inter/multidisciplinares, porém sensíveis a restrições ideológicas. Dessa forma, a bioética como disciplina é em si própria passível de contra-senso. Como paradigma, ela tem a pretensão de orientar os valores humanos, através do conhecimento, a partir de uma ação reflexiva e dialogal do agir humano sobre o mundo, se incluindo como parte deste – e esse é um dos pontos que mais distinguem as propostas dos dois paradigmas em discussão: o biotecnológico – orientado por uma doutrina e o bioético – orientado pelo conhecimento. Eis que, dessa distinção entre disciplina e paradigma, se faz tão necessária como oportuna, uma breve discussão sobre a consideração crítica do senso geral de que a bioética como paradigma é uma “ciência em construção” – idéia essa, corroborada pelo próprio “pai” da bioética19. De fato, o é. No entanto, é no outro lado dessa mesma moeda que se vê uma condição sine qua non para a virada da ética – a de esse estado de construção representar a oportunidade de uma ciência em construção corresponder, justamente, à capacidade de compreender o alcance das demais ciências em estado semelhante. Não se trata aqui de propor uma homogeneização das ciências já estabelecidas com as ciências em construção, mas sim, de admitir que só o contemporâneo possa corresponder a seu próprio tempo diante de mudanças tão significativas como as que as novas tecnologias têm colocado – disponibilizado ou mesmo imposto à humanidade: O destino de vocês é um mistério para nós. O que acontecerá quando os búfalos forem todos sacrificados? Os cavalos selvagens todos domados. O que acontecerá quando os cantos secretos da floresta forem ocupados pelo odor de muitos homens e a vista dos montes floridos for bloqueada pelos fios que falam? Onde estarão as matas? Sumiram! Onde estará a águia? Desapareceu! E o que será dizer ao pônei arisco e à caça? Será o fim da vida e o início da sobrevivência20 19 Potter, em 1998, classificou a bioética em três estágios: o primeiro como o da bioética ponte; o segundo como o da bioética global e o terceiro, e atual, como o da bioética profunda. O que nos leva a entender que se esse terceiro é o “atual”, ainda não é o definitivo. 20 A resposta do Cacique Seattle ao Presidente dos Estados Unidos da América ao receber a proposta de trocar as terras dos índios no oeste americano, para a criação de uma reserva nacional. 77 Ocorre que a questão existencial que deveria emergir de preocupações como a acima citada, e causar, no mínimo, uma crise na humanidade, vem sendo suplantada pela preocupação com uma re-organização econômica que contemple suas novas possibilidades de mercado disponibilizadas pelos produtos das novas tecnologias. Tal transição teve e tem um custo em valores (ora visíveis, ora invisíveis): perdas e ganhos que a humanidade não sabe ainda como contabilizar, mas que já representam considerada economia monetária. Assim, o paradigma biotecnológico põe, sutilmente, em prática a politização da sua economia, dentre outras formas, a partir dos produtos “criados” pela biogenética, como os transgênicos ou bioprodutos – eugênicos ou algênicos. De fato, a humanidade, em tempo idos – como na época dos primeiros filósofos, entre eles os ilustres pré-socráticos Heráclito, Anaximandro, Anaxímenes e Tales – era contempladora da physis (Natureza, a ordem do Cosmos), inserindo-se sustentavelmente na natureza. Ao observar a natureza, era esperado que ela se desvelasse, enviasse respostas. A idéia predominante era de que nada que se fizesse a Gaia21 surtiria efeito algum por sobre ela; as ações humanas eram consideradas inofensivas. A ignorância talvez tenha constituído o álibi para o que de lá até aqui aconteceu. Mas o álibi da ignorância foi se perdendo ao longo do declínio da visão clássica, levada até a idade média, se extinguindo no decorrer da modernidade – com o cartesianismo – até desaparecer sob o véu da re-evolução biotecnológica doutrinada pela tecnociência contemporânea e do mercado. É justo que também haja o devido reconhecimento ao lado positivo dos desenvolvimentos das novas tecnologias, bem como a validade “teórica” da sua proposta – a ver, melhorias de condições de vida a partir de tratamentos para diversas enfermidades na saúde animal e humana ou, ainda, a proposta de beneficiamento e aceleração de produção de alimentos. Mas a nossa discussão não visa a proposta teórica largamente difundida, mas sim os entraves práticos, discretamente ameaçadores, sobretudo à liberdade de autonomia do ser humano, que compõem todo o contexto dos exercícios do paradigma biotecnológico, a partir da abrangência tecnocientífica. É na passagem do alcance sobre o organismo de uma organização 21 Do grego Géia, que significa Terra. Na mitologia grega, seria a personificação da Terra como deusa. 78 externa para uma transformação interna que se encontra o vácuo desestabilizador para uma orientação ética, que aqui se coloca como emergente na busca por uma perspectiva que corresponda à realidade contemporânea. A realidade contemporânea anunciada é outra. A necessidade, ou a urgência, que o paradigma biotecnológico reclama não é nenhuma crise existencial e sim econômica; não se traduz em luta pela sobrevivência de nenhuma cultura e sim pela emergência de uma nova cultura – tão biotecnológica como seu paradigma. E o que esse paradigma defende é uma legitimação pautada sobre um argumento técnico, de que não há, de fato, nenhuma intenção em modificação da vida como fenômeno. Justifica, por exemplo, a legitimação de práticas como o patenteamento de bioprodutos se destinar a simples monopolização instrumental sobre “soluções técnicas”, não para serem impostas à sociedade, mas apenas para assegurar o seu investimento (cf. BARBOSA, 1997: 112-173). Neste sentido, não haveria novidade na questão técnica, e sim na correlação entre as novas tecnologias e os limites que precisam ser estabelecidos, perante o seu novo poder de alcance. Mas, se essa argumentação condissesse com o rumo que o uso das novas tecnologias têm tomado, como orientar eticamente as possibilidades de disseminação de espécies fora de seu habitat, que são disponibilizadas a partir do momento em que cada sistema vivo é preparado para equilibrar seu meio de acordo com os constituintes que nele reconhece? Como orientar eticamente os desenvolvimentos de Organismos Geneticamente Modificados (OGM) que admitem pesticida em sua “composição”? Ou ainda, como orientar eticamente a discussão que propõe definir o momento exato em que se constitui a vida?22 De acordo com Shiva (2000), muitos dos chamados “efeitos colaterais” dos processos da revolução biotecnológica, como a manipulação genética e processos de hibridização investidos, a exemplo dos cultivares, são ignorados, abandonados 22 A esse respeito, durante a discussão da Lei 11.105/05 – Lei de Biossegurança, que incluiu em sua pauta a liberdade científica para pesquisa com células-tronco embrionárias, sugeriu-se que fosse estabelecido para o início da vida o mesmo parâmetro que foi estabelecido para a morte – o funcionamento do sistema nervoso central. 79 e suplantados por outros processos ao invés de ser remediados, deixando como rastro prejuízos muitas vezes irrecuperáveis. Esta é uma das fragilidades da área biotecnológica, que resulta em um dos maiores receios da sociedade em relação à postura tecnocientífica contemporânea, a partir da expectativa da extensão da sua aplicabilidade aos cultivares e na aplicabilidade humana. Concomitantemente, um filósofo contemporâneo, Habermas (2004), chega a alertar em sua obra O futuro da natureza humana, sobre a ameaça quanto à própria biografia. Essa ameaça repousaria na disponibilidade de uma manipulação genética à revelia da terceira pessoa – ou diria “objeto”, antes mesmo do seu nascimento. Ou seja, estaríamos decidindo e ameaçando a integridade humana e biológica dos seres que ainda não nasceram. O que atualmente parece uma viela, muitos contemporâneos já vislumbraram como um momento de virada – uma virada da Ética em relação à própria Bio, a partir do contexto que vinha sendo constituído ao longo dos tempos, e sendo intensificado no curto período de um passado recente. Um dos que muito contribuiu para essas reflexões de hoje foi Hans Jonas – não por acaso um dos filósofos contemporâneos mais estudados. A contribuição de Hans Jonas para a construção do paradigma bioético Pertencente ao time daqueles filósofos de mentes inquietas, Hans Jonas diagnosticou criticamente o século da biotecnologia e montou uma ética para os novos tempos em que a técnica impera cada vez com mais força, antes mesmo de esperar o resultado real de suas intervenções. Dentre os fatores que o influenciaram, estão a ética judaica e a questão da alteridade (o outro como outro), e por conseqüência as atrocidades cometidas e a “moral suspensa” no decorrer das guerras, do nazismo, e a barbárie ocidental. Academicamente, Jonas contou com a influência direta de Martin Heidegger, de quem foi aluno e lhe despertou, sobretudo, a crítica à técnica23 e a ameaça à essência humana; e, não obstante, também se inteirou dos debates com o Marxismo, que tem ainda a contribuir para uma sociedade mais justa. Os trabalhos sobre a Gnose e a ascensão da bioética em nível acadêmico, institucional e social marcaram igualmente sua trajetória. 23 “A questão da técnica”. In: HEIDEGGER, 2002. 80 Com o exercício de suas reflexões, Jonas percebeu que as premissas éticas, até então conhecidas, já não eram válidas. E atentou para a necessidade de reflexão sobre a condição moral frente à mudança, de natureza, da ação humana, sobretudo, como a técnica moderna afetaria o agir humano quando, sob o seu domínio, se tornasse efetivamente diferente daquilo que tinha sido, através dos tempos. Em suas principais obras (JONAS, 1994; 1995; 2004) podem ser constatadas questões altamente relevantes acerca da experimentação com seres humanos, sobre a técnica, a responsabilidade, as gerações futuras, o papel da medicina, a biotecnologia, a ética e suas novas questões urgentes. Sua observação mais pertinente foi a de que nenhuma ética anterior levou em consideração a condição global da vida humana e o futuro distante ou até mesmo a existência da espécie; igualmente, nenhuma ética anterior foi preparada para abordar os seres não-humanos, pois são especistas. Repensar os princípios básicos da ética, procurar não só o bem humano, mas também o bem de seres não-humanos, ou seja, alargar o reconhecimento dos “fins em si mesmos” para além da esfera do homem e fazer com que o bem humano incluísse o cuidado delas – essas foram algumas das principais propostas que Jonas amadureceu durante seus questionamentos. Dessa forma, transcendeu a filosofia, intimando a todas as ciências a se unirem novamente em torno de questões de sobrevivência – não apenas física mas da essência humana. Como propósito, Jonas tinha a reflexão de todas as ciências em prol de uma ética ontológica (de essência) orientada para o futuro, como forma de proteger o agir humano de seu próprio desenraizamento. Pensar que o homem é agora mais do que nunca o criador a partir de seus atos e, acima de tudo, o “pre-parador” daquilo que será capaz de fazer em seguida, mas também que as coisas fogem ao seu controle, é uma das idéias que elucidam hoje a preocupação de Jonas. Agora, efetivamente, há questões que nunca antes foram objeto de legislação, caindo sob a alçada das leis com que a cidade global tem de se dotar para que possa haver um mundo sustentável para as gerações humanas que ainda virão. Desse modo, o princípio de precaução é uma marca forte do pensamento deste filósofo, devendo tomar força moral e de lei, representando os interesses maiores das comunidades. Foi a preocupação com as ações humanas que realmente fundamentou o que Jonas intuiu como novo imperativo – de dever – em resposta aos seus novos elementos: Nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do homem entre os objetos 81 da tua vontade. Portanto, não agir como se fôssemos a última geração no planeta. À luz desse imperativo estão questões como: até que ponto se pode desejar a imortalidade? Que modelo de ser humano estamos criando na intervenção biotecnológica? Que força e modelo há de representar o futuro no presente? São questões que nenhum antigo imperativo suscitou com propriedade, relevância e abrangência. A nova natureza do agir, a nova ética da responsabilidade em longo prazo, a nova humildade, são legados de Jonas, que orientam como a ética tem de se erguer sobre os seus mundanos pés – ou seja, sobre a razão, e a sua aptidão para refletir profundamente, referidas ao mundo prático. Enquanto que da fé se pode dizer que ela existe ou não existe, da ética não: forçosa é que exista; e a urgência de achar uma ética correta, pois ela se confunde com a própria manutenção da vida. Ao considerar a ação direta do homem sobre si mesmo, Jonas levantou a experimentação com seres humanos como destinada a ocupar o lugar da experiência natural. Da nova experimentação com o homem, a médica é seguramente a mais legítima; a psicológica, a mais dúbia; a biológica, ainda por vir, a mais perigosa. Embora não fosse mister a um contemporâneo da Segunda Guerra perceber tais tendências, articulá-las numa abordagem desprendida de devaneios e dotadas de seriedade se fazia mais do que um exercício filosófico; poder-se-ia avaliar mesmo como um verdadeiro exercício de contemplação da própria ação humana. Porque só a partir do momento em que seres sujeitos e dotados de sensibilidade se tornam passíveis de experimentação, como acontece nas ciências da vida, na investigação biomédica, a inocência da procura de conhecimento é perdida e levantam-se questões sérias de consciência. Jonas argumentava que a contrapartida da pessoalidade, quando negada ao sujeito-objeto da experimentação, que sofre a ação em nome de um fim alheio e não confirma claramente seu simples consentimento (que a maior parte das vezes não equivale a mais do que a permissão), não autoriza a transformação do sujeito em uma “coisa”. Jonas despertou para a existência da grande diferença entre a experiência física (artificialmente concebida) e da experimentação humana, onde se opera com o próprio original, a verdadeira coisa em todo o seu sentido. A agressão que consiste em fazer de uma pessoa um corpo ou mente experimental não é tanto o fato de a transformarmos num meio, mas o fato de a transformarmos numa coisa – uma coisa 82 passível de total submissão. O seu ser é reduzido ao de um mero simulacro ou amostra. Apesar da razoabilidade em relacionar os questionamentos de Hans Jonas com o as questões levantadas antes, se faz necessário esclarecer cuidadosamente sobre as questões que dizem respeito às necessidades, os interesses e os direitos da sociedade, em relação ao agir humano – como uma de suas principais preocupações, a sociedade representa uma abstração, enquanto o indivíduo representa uma concreção. E é, exatamente, sobre essa perceptiva que o pensamento de Jonas corrobora com a proposta da bioética como paradigma, para além da sua missão como disciplina: perceber na concreção do indivíduo a chave para orientar a abstração humana sobre sua própria sociedade, ou seu habitat – incluindo-se neste. Talvez, pela premissa contemporânea, subjacente à velocidade imposta desde a modernidade, de que o realizado já é passado, a contribuição de Hans Jonas pareça sempre mais atual no futuro do que no presente. A própria forma positiva da regra de ouro jonasiana: “Faz aos outros o que desejarias que te fizessem a ti”, e não a negativa kantiana: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” – marca de forma plena a contribuição daquele filósofo à construção do paradigma bioético, com a ética ontológica orientada para o futuro. Fazer – tomar a atitude a ser seguida, ao invés de proibir – criticar o que já foi realizado. Certamente, aquilo que for iniciado por uma reflexão profunda e com sensibilidade terá como fruto um agir conscientemente responsável. Bibliografia ARENDT, Hanna (1993). A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará. BARBOSA, Denis B. (1997). Licitações, subsídios e patentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris. CASTAÑEDA, L.A. (2003). Eugenia e casamento – História, ciências, saúde. Manguinhos, vol. 10(3), set.-dez. ELLUL, Jacquez. (1977). Le système téchnicien. Paris: Calman Levy. ______ (1969). A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 83 FERREIRA, Jonatas (2003). O alfabeto da vida (Da reprodução à produção). Lua Nova – Revista de Cultura e Política, 55-56. FOUREZ, Gerard (1995). A construção das ciências – Introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Unesp [Tradução de Luiz Pinto Rouanet]. HABERMAS, Jurgen (2004). O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes [Tradução de Karina Jannini]. 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Petrópolis: Vozes. 85 5 Manipulação genética e reprodução humana Gustavo Henrique de Brito Albuquerque Cunha* 1. A humanidade a caminho das mudanças genéticas If you can look into the seeds of time, And say which grain will grow and which will not, Speak then to me, who neither beg nor fear, Your favors nor your hate24. John Ziman afirma, ao comentar os efeitos sociais da ciência, que a mesma “impregna a sociedade em que vivemos” e “se debate com as pessoas em papéis muito diferentes” (ZIMAN, 2003: 5-6). A tecnologia tem mudado diversos conceitos sociais, alterando a maneira com que a humanidade entende os fenômenos sociais e suas atitudes para com seus semelhantes e, como ressalta Dworkin, nenhum outro campo de desenvolvimento científico pode ser comparado, nem mesmo remotamente, às mudanças que pode trazer às gerações futuras a manipulação genética (DWORKIN, 2000: 427). Dois exemplos claros de alterações sociais em virtude da tecnologia foram a televisão, que deixou de ter quatro ou cinco canais para ter centenas, alcançando desde os mais distantes países; e a Internet, cuja possibilidade de acesso à comunicação e à informação tem diminuído indiscutivelmente as fronteiras entre os povos. Todos esses avanços científicos têm provocado impactos sociais imprevisíveis. Durante a história recente, a idéia de verdade esteve imediatamente conectada à ciência. A descoberta da estrutura do corpo humano, a teoria da evolução das espécies, os conhecimentos astronômicos e assim por diante ocasionaram mudanças na cultura universal, gerando verdades novas e científicas sobre alguns dos mitos mais antigos da humanidade. * Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca – Espanha; professor de Teoria da Argumentação e Filosofia Geral na Faculdade dos Guararapes. 24 “Se podeis ver a seara do tempo, e predizer quais as sementes que hão de brotar, quais não, falai comigo, que não procuro nem receio, vosso ódio ou vosso amor” (William Shakespeare. Macbeth, ato I, cena III). 86 A ciência trouxe novas maneiras de observar os fenômenos da natureza, sendo as crenças e os conceitos religiosos sobre a gênese olvidados por grande parte das pessoas. No passado recente a manipulação genética iniciou o caminho oposto, pois surgem muitas incertezas quando se fala do futuro da humanidade ante a chegada das alterações genéticas que podem ocorrer (CANTÚ, 2000: 83)25, com ou sem o amparo do Direito. Por conseguinte, foi e continua sendo necessária uma “reabilitação da ética aplicada” para atender à emergência destes novos problemas (GÓMEZ-HERAS, 2002: 25). É imprescindível ressaltar que muitos países já têm legislação sobre a manipulação genética. Essa legislação, entretanto, não possui aplicabilidade universal. Portanto, algumas das possibilidades técnicas criadas pela manipulação genética, mesmo sendo proibidas por nossa legislação pátria, serão discutidas, pois este trabalho tem o afã de examinar o tema desde um ponto de vista internacional e atemporal, sobretudo porque concordo com Hans Jonas quando explicita a “automaticidade da aplicação do conhecimento técnico”. Resta, então, relevante adiantar-se – nos aspectos ético e jurídico – às possíveis aplicações da manipulação genética. 2. O ADN e seu papel na transferência da herança genética Life is a miracle between two mysteries, the mystery of its beginning and the mystery of its end. The Greek word was genesis. This genesis has always been, and still is nowadays to some extend mysterious 26 25 O autor defende que a genética de hoje é comparável com a manipulação de energia atômica na primeira metade do século passado. Creio que a semelhança maior existente entre a manipulação genética e a energia atômica é seu potencial de extinguir o que hoje chamamos de humanidade. 26 “A vida é um milagre entre dois mistérios, o mistério de seu começo e o mistério de seu final. O termo grego para o início era genesis. Essa genesis sempre foi, assim como continua sendo nos dias de hoje, um tema indiscutivelmente misterioso” (tradução do próprio autor). 87 Para que seja possível a discussão jurídico-filosófica sobre os avanços da manipulação genética, faz-se imprescindível que os pesquisadores das ciências humanas tomem conhecimento de aspectos técnicos da reprodução, estudando conceitos da biologia bem como da medicina, que propiciem um alicerce para seus estudos e suas futuras conclusões. Além de conhecer os aspectos técnicos da manipulação genética, o filósofo bioético tem que se manter atento às investigações e seus resultados (ROMEO CASABONA, 1994: 212). Evidentemente, não temos a pretensão de fazer uma descrição completa dos aspectos técnicos, pois de fato se busca num caráter humanístico apenas trazer aspectos técnicos desde a perspectiva de alguns juristas, sociólogos e filósofos (Romeo Casabona, Lydia Feito, Javier Sábada, Diego Gracia, etc.). 3. A terapia genética A terapia genética é, provavelmente, o avanço na história médica que mais esperanças e expectativas criou. Ao definir terapia genética, Herman Nys afirma que é a transferência de material genético a células de um paciente para curar ou prevenir uma enfermidade (NYS, 1998: 77). Esta modalidade terapêutica pode fazer com que doenças até hoje tidas como incuráveis sejam extirpadas do universo, levando as ciências médicas a um nível distinto. No entanto, a terapia genética ainda é tida como uma inovação sem relevantes resultados científicos, caso sejam levadas em conta as perspectivas positivas que foram criadas a seu respeito (MUÑOZ RUIZ, 2002: 439-440). Existem três tipos distintos de terapia genética: primeiramente a farmacológica, que consiste em transferir ADN manipulado a bactérias, criando medicamentos com efetividade muitíssimo mais ampla e elevada que a dos medicamentos regulares. Esta espécie de terapia já é de grande divulgação médica, sendo produzidos medicamentos transgênicos muito populares, como o Interferon, a insulina sintética (GRACIA, 2001b: 313)27 e a Somatotropina – o hormônio do crescimento. 27 A produção industrial de drogas recombinantes teve seu início oficial em 1982, quando o FDA (equivalente ao departamento de vigilância sanitária norte-americano) permitiu o registro da insulina recombinante. A insulina foi apenas o primeiro de uma série de medicamentos recombinados. 88 Através da terapia genética bacteriana também foi desenvolvido um grande número de vacinas tanto virais como bacterianas. Para o estudo das técnicas de terapia genética celular, é preciso incluir, neste tópico, dados sobre o Projeto Genoma Humano, pois são as informações provenientes dele que tornam viáveis as manipulações genéticas terapêuticas. No ano de 1986, houve nos EUA um congresso sobre a Biologia Molecular, onde se discutiu a possibilidade e as vantagens de estudar o genoma humano. Em 1989, também nos EUA, o National Institutes of Health criou um departamento para a pesquisa do genoma humano, denominado National Center for Human Genome Research, sendo realizada sua primeira reunião no mês de outubro do mesmo ano, sob a nomenclatura de Genoma I. Em 1990, finalmente, foi criado nos EUA o PGH – Projeto Genoma Humano. Paralelamente, em 1988, em Montreux, Suíça, foi fundada a Hugo – Human Genome Organization, buscando alcançar universalidade. Em 1992 foram publicados os primeiros mapas do genoma humano. Foi por intermédio dos mapeamentos que se pôde localizar nos cromossomos o espelho de algumas doenças genéticas e suas mutações. A evolução da informática vem possibilitando a diminuição nos custos do seqüenciamento, bem como tem-no tornado mais rápido (BENÍTEZ ORTIZ, 2001: 98). O genoma humano está composto por vinte e três pares de cromossomos contendo entre vinte e cinco e trinta e cinco mil genes, estando toda a informação genética presente em apenas 3% do ADN de todo o genoma. O cromossomo é uma única fileira de ADN composta por quatro tipos diferentes de bases: adenina, timina, guanina e citosina. A proposta do Projeto Genoma Humano é buscar o mapeamento de todos os genes humanos e o seqüenciamento de suas bases28. As bases de dados hoje existentes são celulares, genéticas e de seqüências nucleares. O Projeto Genoma Humano (PGH) tem como finalidade que estas bases de dados se tornem acessíveis aos médicos de todo o Planeta. Inicialmente o PGH tinha como objetivo desvendar todos os mapas do genoma humano até 2005. 28 “El avance de la genética”, publicado no jornal El País em 15/04/2003. Informa que depois de passados 13 anos do início do Projeto Genoma Humano, com um orçamento superior a três bilhões de euros, pouco se logrou no intuito de descifrar efetivamente o AND humano. 89 Entretanto, dificuldades técnicas forçaram a dilatação do prazo original. A Engenharia Genética busca alterar o caudal de uma espécie, modificando seu ADN, podendo dar, aos indivíduos procedentes da modificação, características inexistentes na espécie da qual é parte. Esta tecnologia do ADN recombinante possibilita a identificação, o isolamento e a multiplicação de organismos, mais ou menos complexos. Os avanços no Projeto Genoma Humano tornarão viável um conhecimento muito maior de cada corpo humano, antes, durante e depois de sua vida, causando incontáveis questionamentos éticos (já iniciados) que serão detalhados em seguida. As distinções entre os indivíduos estão impressas nas diferentes seqüências das quatro bases de nucleotídeos que cada ser vivo possui e, conhecendo o que significa cada combinação pode se entender aspectos físicos ou intelectuais de cada um (GERIN, 1995: 20). Já foi realizado o seqüenciamento do cromossomo 7, que representa aproximadamente 5% do genoma humano, segundo a edição eletrônica da revista Science publicada em 10 de abril de 2003. Como ressalta Maria Helena Diniz, o mapa completo do genoma humano permitirá à medicina obter melhores fármacos, introduzindo, por exemplo, um gen que combate o câncer de próstata nos homens, sendo, logo, desenvolvida uma terapia genética (DINIZ, 2002: 383). A indústria farmacêutica terá acesso a uma base de dados geral de moléculas, onde cada uma está, sendo possível ativar ou não uma proteína determinada, possibilitando, em tese, que o desenvolvimento de medicamentos seja muito mais rápido, eficaz e sistemático. A manipulação genética implica uma influência na estrutura de suporte que caracteriza biologicamente uma espécie, inclusive o homem. O conceito de cada espécie provém de características comuns de todos os seus integrantes, tendo, por exemplo, os homens, vinte e três pares de cromossomos. A terapia genética influencia na composição das células de um organismo, alterando essencialmente o patrimônio genético (HIGUERA GUIMERÁ, 1994: 223). Qualquer alteração nestas características fundamentais de cada espécie pode descaracterizálas como tal. A alteração das características fundamentais pode causar a pior de todas as ameaças oriundas da manipulação genética do ADN humano: a criação de extra-humanos, os “super-homens” (MORETTI & DINENCHIN, 1985: 57). Stella Maris Martínez assinala a possibilidade desse risco, ressaltando 90 que os pais poderão escolher a cor dos olhos e dos cabelos bem como a contextura física do ser humano por nascer. Afirma também que não será impossível que os cientistas propiciem aos pais a possibilidade de criar herança exatamente projetada para se enquadrar nos parâmetros físicos ideiais para uma determinada cultura (MARTÍNEZ, 1994: 38)29. Em abril de 2003, houve uma decisão judicial no Reino Unido, que aprovou a criação de um ser humano programado geneticamente para salvar a vida de seu irmão, o qual sofria de uma enfermidade que somente poderia ser remediada definitivamente com a doação de uma medula obtida de uma pessoa com características físicas determinadas, que fossem compatíveis com o sistema biológico do jovem enfermo. Ocorre que é praticamente impossível que haja uma pessoa com estas características, o que tiraria do menino as mais remotas chances de sobrevida. Assim, para salvar a vida do jovem Zain Hashmi seria indispensável a criação de um bebê programado geneticamente para ter as características necessárias compatíveis com o jovem Zain, para que houvesse alguma perspectiva médica de cura. Depois de um longo processo judicial, o Tribunal de Apelação Britânico concedeu aos pais de Zain Hashmi o direito de tentar criar o irmão, com sua genética preestabelecida. A criação de homens com estrutura genética determinada em laboratórios, mesmo que possa trazer esperança a incontáveis enfermos em situação similar à de Zain Hashmi, deve ser estudada com particular cuidado. Albin Eser expõe vários possíveis danos ético-jurídicos causados pela programação genética de seres humanos: violação do patrimônio genético do ser humano; seleção hipotética de pessoas em função de seus níveis genético-intelectuais30, criação de seres mais ou menos 29 Uma vez mais é imprescindível ressaltar que as mudanças genéticas salientadas são frutos de especulações. 30 “Con la genética se han levantado expectativas irreales”, publicado no jornal El País em 14/03/2003. Neste artigo se expõe que já existe na Islândia uma empresa, a Decode Genetics, que possui um banco de dados com a informação genética de 28.000 cidadãos, administrada pelo ex-professor de Harvard – Kari Stefansson. 91 fortes ou inteligentes deliberadamente31. Fernández Sassarego bem salienta que os cientistas poderão buscar “melhorar” o homem, aperfeiçoando-o, fazendo mudanças nos genes humanos, podendo modificar características que determinam a espécie humana per se (FERNÁNDEZ SESSAREGO, 1994: 258). A principal ameaça que trará a manipulação do ADN humano é justamente a possibilidade que terão os geneticistas de alterar inclusive aspectos de conduta e pessoalidade dos futuros homens, bem como criar cópias (clones) dos seres humanos com aspectos genéticos programados, sem respeito à sua individualidade32. 31 O exemplo de seres humanos mais ou menos desenvolvidos está claro na ficção de Aldous Huxley – Admirável mundo novo, na qual as castas sociais e culturais são preparadas em laboratórios, sendo a reprodução por meios sexuais proibida, asim como a manutenção de casais estáveis. Durante o desenvolvimento da criança das distintas castas, ela passa por um processo de lavagem cerebral em que lhe é descrita a vida em suas castas como superior a todas as demais. 32 “Sacrificado uno de los dos clones de banteng creados a partir de tejido congelado”, publicado no jornal El País em 10/04/2003. Há um projeto nos Estados Unidos da América para impedir, através da clonagem, que algumas espécies sejam extintas. Entretanto, conforme ressalta Theo Oberhuber, a clonagem pode servir para pôr alguns exemplares em zoológicos, não para recuperar uma espécie como o banteng, uma vez que a clonagem implica a perda de variedade genética e de capacidade de adaptação. Urge ainda mencionar que os experimentos de clonagem de mamíferos têm se mostrado perigosos, já que os animais nasceram com tamanhos muito maiores que o geral e com problemas de saúde, inclusive com envelhecimento precoce. 92 4. Manipulação genética de células germinativas Nem toda manipulação genética traz inerente a ameaça tratada no item anterior, razão pela qual trataremos especificamente da manipulação genética de células germinativas, uma vez que as alterações nas células somáticas resultam apenas em mudanças no corpo de um indivíduo, ao passo que a germinativa traz efeitos nas células reprodutivas, causando mutações nas gerações futuras. Experimentação genética terapêutica é a aplicação de técnicas de manipulação genética para alcançar resultados ainda não comprovados sobre a espécie humana, tendo como finalidade sempre a cura de uma doença (SOUZA, 2001: 36). A idéia de terapia está sempre ligada à cura de uma enfermidade, razão pela qual não se deve falar em terapia genética germinativa, e sim de manipulação germinativa, porquanto a busca de melhoras não implica seguramente a cura, pela quantidade de riscos associados, bem como pela dificuldade de previsão dos efeitos advindos da manipulação; em outras palavras: não se caracteriza a terapia. Não existe terapia genética germinativa oficial, conforme ressalta o citado médico, por ser proibida internacionalmente a prática de manipular células germinativas humanas. Entretanto, seria ingênuo crer que não existam experiências clandestinas de manipulação genética germinativa. Ocorre que a proibição faz com que não exista bibliografía sobre manipulação genética germinativa. Por isso, todos os argumentos que se exporão em seguida baseiam-se em especulações científicas. A experimentação genética pura, sem almejar a correção de uma anomalia, observando apenas os efeitos da experiência se denomina “eugenia genética” (ARAÚJO JÚNIOR, 1996: 7). A terapia genética de células germinativas é utilizada para permitir a cura de doenças não sujeitas a tratamento por meio de terapia genética de células somáticas. Sem embargo, a terapia de células germinativas pode vir a ser utilizada para gerar alterações com efeitos incertos na informação genética do futuro cidadão, com o suposto afã de melhorar a espécie humana. A terapia genética germinativa já tem sido aplicada com êxito em animais, sendo comprovada sua eficácia e rapidez ao serem produzidas velozmente as modificações buscadas nas sucessivas gerações. Este dado tem que ser observado com cuidado, pois pode gerar tanto benefícios quanto danos à humanidade. 93 Apesar da falta de bibliografia oficial sobre a manipulação germinativa humana, abordamos a manipulação não-terapêutica, ou seja, adentramos no campo da eugenia genético-laboratorial. Conforme se desenvolvam supostas melhoras pode surgir a possibilidade de que existam genes mais “desejáveis” na sociedade, o que pode, quiçá, levar a sociedade a comercializar genes. Há três distintas técnicas para manipular uma célula germinativa: primeiro, pode-se aplicar uma micro-injeção de uma seqüência de ADN em um zigoto. Este procedimento foi testado em laboratório com animais, sendo o percentual de embriões que alcançam o nascimento variável entre 10% e 30%, sendo comprovada a insegurança do procedimento. A segunda técnica utiliza retrovirus para levar o material genético ao embrião em seu período blastocístico (GRACIA, 2001b: 315). Por fim, a terceira técnica consiste no tratamento génetico do esperma, submetido a linhas de ADN que se busca implantar. Esta última técnica aparece como a mais rápida de todas, com maior capacidade para gerar alterações permanentes na herança. As alterações em células germinativas trazem mudanças irreversíveis no material genético manipulado, podendo ser utilizada para corrigir uma enfermidade, com a busca e mudanças de genes “defeituosos”, ou tentar “melhorar” a herança, através de características físicas ou intelectuais tidas como mais favoráveis por uma determinada cultura. A terapia curativa sempre tem sido defendida com base no argumento de que é dever moral da medicina diminuir os sofrimentos de um ser humano (LAPPÉ, 2003: 157). No entanto, inclusive as terapias germinativas curativas têm que ser observadas criticamente, pois, inicialmente, se comprovou em laboratórios que cobaias manipuladas geneticamente têm níveis de mutações mais elevados que as cobaias normais e maior propensão ao câncer que as cobaias geradas naturalmente. Ademais, pode acontecer que a terapia curativa seja acessível a uma parcela da sociedade mais favorecida economicamente que outras, o que faria com que enfermidades comuns pudessem se tornar em enfermidades de pobres, aumentando ainda mais o abismo social que hoje paira no Planeta. Diego Gracia considera a terapia genética como o caminho definitivo para o combate de todas as doenças humanas, afirmando inclusive que as enfermidades sócio-patológicas poderiam ser curadas pela terapia genética. Em outras palavras: a 94 manipulação genética, segundo o referido bioeticista, pode vir a mudar aspectos intelectuais de um cidadão; neste caso, para curar uma patologia social. Sem embargo, a alteração de aspectos intelectuais gera problemas ainda maiores de desigualdades entre ricos e pobres, razão pela qual a comunidade internacional tem que desenvolver orientações morais para evitar os avanços das desigualdades sociais, questionando se se deve aceitar as mudanças intelectuais, como o aumento de inteligência e memória. A manipulação genética deixa de lado o conceito de cura para dar espaço à idéia de alterações de características entendidas como negativas, para serem substituídas por outras, tidas como positivas. Assim, é cada vez mais difícil delimitar o momento em que se busca a cura ou a melhora. Logo, é necessário que seja discutido, inicialmente, o que pode ou não ser chamado de enfermidade. Marc Lappé afirma que possivelmente a manipulação genética de células germinativas pode se tornar possível em uma década, podendo trazer benefícios e malefícios, causando uma provável procura por determinadas características genéticas em detrimento de outras, gerando uma seleção de uma linhagem pretensamente perfeita (LAPPÉ, 2003: 155). Muito se fala sobre permitir a manipulação genética apenas em casos nos quais os fins fossem moralmente aceitáveis. Entretanto, é muito pouco inteligível establecer quem deve definir o que é moralmente aceitável ou não. A engenharia genética de melhora significa alterar a estrutura genética do ser humano sadio para possibilitar que ele tenha alguma característica física ou mental que seja socialmente desejável, como a estatura ou a memória. No atual momento não existe substrato tecnológico suficiente para se estabelecer sua segurança ou eficácia. 5. Algumas considerações sobre a eugenia Houve momentos na história em que governos desenvolveram políticas públicas de eugenia, como a escravidão negra nas Américas, o apartheid, a segregação racial estadounidense e, com maior notoriedade, as políticas eugênicas hitlerianas, mesmo sem que houvesse qualquer comprovação da suposta superioridade racial. Todos os momentos em que houve crença na superioridade de uma determinada raça, os Direitos Humanos mais básicos não foram respeitados. Seria possível que a certeza (mesmo que equivocada) de superioridade genética de um grupo faça com que retornem as políticas eugênicas, caso os 95 conhecimentos de genética venham a ser utilizados na melhora da espécie? 6. Aspectos bioéticos da manipulação genética – a ameaça aos Direitos Humanos denominados de “quarta geração” Conhecer algo não significa apenas saber suas características naturais e técnicas, mas apreender também suas implicações fáticas e morais. Neste sentido, Vilades Arriaga afirma que o conhecimento é uma “mescla ou conjunção de reflexões formais (lógico-matemáticas), fácticas e morais”. Ressalta também que, conforme Max Weber, o estudo das ciências sociais consiste em analisar as idéias de valor em acontecimentos isolados (VIDALES ARRIAGA, 2001: 60). Estes acontecimentos de que fala Weber podem ser entendidos hoje em dia como a manipulação genética, que deve ser analisada desde um matiz ético. Van Daele sintetiza a idéia afirmando que “o que a ciência faz tecnicamente possível, os controles morais devem fazer normativamente indisponível” (HABERMAS, 2002: 39). A manipulação genética pode trazer incontáveis problemas científicos, como citamos anteriormente, pois todas as experiências trazem alguma insegurança. Estes riscos nas terapias regulares, entretanto, são suportados pelos próprios pacientes. Já no caso das terapias genéticas, serão terceiros que arcarão com as conseqüências pelos riscos assumidos por pais ou responsáveis e cientistas. Ademais, caso fossem superados todos os problemas técnicos, existiriam variadas ameaças para aqueles que seriam frutos de terapias que buscassem a melhoria genética e, principalmente para aqueles que não pudessem dispor dos supostos benefícios da manipulação genética. Existem duas possibilidades distintas de “melhorar” as pessoas: desenvolvendo seu meio ou alterando seus genes. Portanto os pais já têm a liberdade para melhorar a inteligência de seus filhos por melhoras no meio, pela alimentação e pela educação, mas o que agora passa a ser provável é a segunda espécie de melhora: a genética. Os liberais tentam comparar as duas modalidades de melhora, afirmando que, se uma família pode dar a seus filhos melhores níveis de vida propiciados, através de gastos elevadíssimos em educação, não deveria haver nenhuma diferença entre as melhoras hoje existentes e as manipulações genéticas eugênicas, existindo uma paridade entre as desigualdades hoje existentes e as que possam surgir com a manipulação genética. A eugenia genética não seria um tipo de 96 cura de uma imperfeição, mas a tentativa de programar um embrião com qualidades que a seus futuros pais parecessem positivas (AGAR, s.d.: 172-173). Inicialmente, a arbitrariedade dos pais em projetar uma série de características para o quadro genético de seus filhos não significaria uma melhora imediata, pois, como em todo o processo educacional, os pais sempre cometeram e seguirão cometendo equívocos, apesar de suas boas intenções. No caso da busca por uma herança genética perfeita para seus filhos resta também claro que muitos pais tenderão a se equivocar, a exemplo de se poder indagar se o Estado deve intervir junto dos pais que utilizem drogas tóxicas e querem passar esta propensão à sua prole. Urge mencionar casos menos polêmicos, com respostas aparentemente menos lógicas: no caso de um casal homossexual, seria moralmente aceitável que, voluntariamente, se projetasse um ser humano com propensões à homossexualidade? Se surgir um cientista com o nível intelectual de Albert Einstein, ou um jogador de futebol como Pelé, seria lícito clonar suas habilidades? Exemplos de dúvidas sobre como utilizar a manipulação germinativa são incontáveis, mas uma coisa parece certa: o Estado teria que controlar as manipulações genéticas, não se sabe em que nível, seja para coibir a criação de pessoas geneticamente programadas para atividades criminais, ou para a agressividade, ou seja, para coibir a escolha indiscriminada do sexo dos filhos para evitar a superpopulação de um determinado sexo. Há argumentos favoráveis e contrários à manipulação genética. O aspecto positivo parece evidente e se baseia na cura de algumas enfermidades, ao passo que a distinção genética das diferentes classes sociais e entre as distintas regiões geográficas, se constitui em uma das desvantagens que a manipulação genética poderia acarretar. A busca agora científica da criação de super-homens faz viáveis os sonhos do clássico personagem de Mary Shelly, o Dr. Frankenstein. Por conseguinte, a pergunta que lançamos é sobre os possíveis erros científicos provenientes desta duvidosa técnica e se se justifica suportar os riscos ocasionados por seu procedimento. 7. A nova perspectiva científica do Século XXI Ouvidos novos para uma música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência nova para as verdades que até hoje 97 permaneceram mudas (NIETZSCHE, 2000: 110). Para aqueles que pouco discutiram o tema dos aspectos morais da manipulação genética este debate pode parecer demasiado antecipado. Entretanto, já existem questões sobre o genoma humano que merecem atenção, como a escolha do sexo do embrião, a procriação feita a partir de gametas de duas cobaias do sexo feminino e a possibilidade técnica de testes genéticos para descifrar a predisposição genética do indivíduo a sofrer uma determinada doença. Dworkin já destaca a dificuldade que existe para determinar se testes genéticos podem ser exigidos ou, ao contrário, proibidos, o que seria necessário em casos de disputas por vagas de trabalho (DWORKIN, 2000: 427). Hans Jonas mostra que a tecnologia tem leis de movimento próprias e continuadas, ou seja, que o homem não determina a velocidade dos avanços tecnológicos, principalmente pela impossibilidade de uma previsão com um nível aceitável de credibilidade. Agazzi pensa que não há ciência intrinsecamente má ou boa, sendo a sua aplicação quem efetivamente necessita ser, em alguns casos, lastimada, como por exemplo a Internet, que pode servir como um meio fantástico de informação ou ser utilizada para difundir materiais de pedofilia virtual. O mesmo ocorre com a manipulação genética, que poderá ser aplicada para curar uma enfermidade ou para práticas eugênicas. A dificuldade está em identificar parâmetros para classificar moralmente a ciência, o compromisso ético na ciência, respeitando a liberdade do homem (AGAZZI, 1996: 357-360). Hans Jonas complementa afirmando que as intenções da técnica não necessitam ser más para que os efeitos gerados por ela sejam nefastos, pois, por mais legítima que seja a vontade científica, suas conseqüências não imediatas podem criar uma situação negativa (JONAS, 1997: 3334). Por conseguinte, é mais difícil determinar quando se devem impor limites jurídicos ou morais às atividades científicas. 8. A internacionalização dos Direitos Humanos sobre os Direitos de Quarta Geração33 Nós nos transformamos naquilo que praticamos com freqüência. [...] A perfeição, portanto, não é 33 Esta distinção se encontra na doutrina que diverge sobre a existêcia de três ou quatro gerações de Direitos Humanos, sendo os referidos os relativos à biossegurança. 98 um ato isolado. É um hábito (Aristóteles). As alterações que a manipulação pode gerar fizeram com que a discussão ética sobre o genoma humano viesse a ser considerada como um capítulo dos estudos sobre Direitos Humanos, o que implica tratamento por instâncias supranacionais. O fator que gera preocupação nos estudiosos de ética é justamente a velocidade com que se agregam conhecimentos sobre a genética e a probabilidade de que esses avanços sejam ainda mais velozes nos anos seguintes. Por tudo isso, Martínez Bullé afirma que a tecnologia aplicada ao genoma humano pode tornar vulneráveis vários aspectos da dignidade humana (MARTÍNEZ BULLÉ GOYRÍ, 2000: 198-199). Em níveis internacionais, já existem declarações de direitos relativas ao genoma humano, elaboradas por distintas organizações, merecendo destaque a Declaração Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos; a Declaração Internacional sobre Bioética de Fukui (Japão); a Declaração sobre os Princípios de Conduta na experimentação Genética (redigida pela HUGO – Human Genome Organization) e a Declaração sobre o Projeto Genoma Humano (da World Medical Association). Ademais, existem também declarações continentais, como a Declaração Européia e a Iberolatinoamericana sobre o genoma humano. A quantidade de publicações e grupos de estudo existentes sobre os aspectos jurídicos e morais do genoma humano comprova a importância dos efeitos da manipulação genética também desde o ponto de vista das ciências consideradas sociais. 9. O genoma humano e a possível aplicação post-humana34 Alguns médicos que discutem os aspectos morais da biotecnologia molecular humana usualmente afirmam que os estudiosos de ética e juristas tratam a manipulação genética desde um nível inexistente no presente momento de desenvolvimento tecnológico. Afirmam, por conseguinte, que os filósofos éticos estão falando de ficção científica, não da realidade. Entretanto, as preocupações também existem, em parte da comunidade médica, 34 A expressão post-humana é utilizada porque a manipulação genética de células germinativas poderá levar à criação de um ser mais ou menos desenvolvido do que o ser humano como nós o conhecemos. 99 tendo em vista as experiências feitas com cobaias e as semelhanças naturais entre os processos reprodutivos de todos os mamíferos. O professor da Universidade de Salamanca Rogelio González afirma que, mesmo que não seja provável, existe a possibilidade técnica de desenvolver experiências em células germinativas humanas e que, de tal feita, provavelmente já se esteja tentando. Portanto, ficção científica ou não, o tema tem que ser abordado com todo o rigor e a antecipação possíveis, em virtude dos riscos que a possibilidade da manipulação genética germinativa humana pode acarretar. Quando foram elaborados os primeiros estudos sobre a fertilização in vitro, seu criador Dr. Stepoe foi ameaçado de sanções por seus colegas médicos por manipular embriões humanos, prática bastante difundida atualmente. O fato de existirem problemas morais e declarações de direitos proibindo a manipulação de células germinativas humanas na atualidade não significa que a situação não pode se modificar com o tempo. Em virtude disso, não me parece demasiada a anticipação dos filósofos éticos ante as possibilidades, ainda que aparentemente remotas, da manipulação genética humana germinativa. Já existe a possibilidade de utilizar gametas de duas cobaias do sexo feminino e mesclar as mensagens genéticas contidas nos nucleotídeos de suas células germinativas para tornar possível a reprodução. A reprodução com material genético somente feminino ocorre em algumas espécies de lagartos e insetos, mas inexiste na reprodução natural de mamíferos. A experiência realizada mais de seiscentas vezes na Universidade de Agricultura de Tóquio gerou apenas dois embriões normais, dentre os quais somente um nasceu. Evidentemente, o êxito na experiência com as cobaias faz surgir o debate sobre a viabilidade de experiências similares com seres humanos e a comunidade bioética já se pronunciou sobre o assunto, afirmando David Magnus que o procedimento técnico pode evitar processos judiciais de paternidade35. Entre os riscos científicos atuais mencionados por Martín Mateo, a Biologia Molecular aparece em primeiro lugar, mais especificamente as “aplicações extra-humanas” da Biotecnologia, com a recombinação do ADN (MARTÍN MATEO, 1993: 19-28). A ética aplicada à Biologia Molecular tem que reconhecer a dignidade do ser humano e todos os direitos e liberdades 35 “Ciência cria rato com duas mães e nenhum pai” Jornal Hoje – Rede Globo de 22 de abril de 2004. 100 fundamentais, establecidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e em um grande número de constituições democráticas. 10. Algumas conclusões O que concluímos brevemente é que existem vários e elevados riscos na manipulação genética de células germinativas humanas, alguns dos quais já mencionamos. É fato que não existe qualquer previsibilidade no desenvolvimento da ciência, não sendo possível saber o que será viável através da manipulação genética, tampouco a velocidade com que virão os avanços tecnológicos. Outro fato que deve ser ressaltado é a falta de informação de que dispõem os distintos povos do mundo sobre a manipulação genética, sendo tal desinformação certamente fruto de vontade política em manter a população ignorante no que tange aos temas relevantes ressaltados aqui. Por todo o exposto, é evidente que é imperioso buscar desvendar em que níveis devem ser aplicados os limites morais e jurídicos para evitar prejuízos sociais de maior monta. Salientamos que os prejuízos sociais aos quais nos referimos dizem respeito a discrepâncias não apenas regionais como universais. Portanto, restam à comunidade científica duas missões a serem seguidas: (a) aprofundar os debates dentro das instâncias de pesquisas, como universidades, ONGs e grupos de estudo, bem como (b) tentar conscientizar a população sobre os riscos provenientes da manipulação genética. Referências bibliográficas AGAR, Nicholas (s.d.). “Liberal eugenics in ethical issues in manipulatin the human erm line”. 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Pretende-se examinar, em primeiro lugar, o reposicionamento da ética em meio ao concerto das disciplinas filosóficas contemporâneas; em um segundo momento, proceder-se-á a um aprofundamento das articulações entre a ética e três dimensões sociognoseológicas essenciais para compreender a questão da bioética, hoje, a saber: a ecologia, a ciência e a justiça; e, finalmente, argumentar-se-á em favor do que temos chamado a “categoria fundamental da bioética”, procurando evidenciar de que modo esta categoria fundamental, implícita em toda e qualquer atitude eivada de intenções “eticamente adequadas” – ou seja, mobilizada pela preocupação ética concreta, e não apenas teóricoformal, do agir – tem de se tornar explícita no corpo da própria ação, no sentido, exatamente, da solidez categorial da legitimação filosóficoargumentativa desta ação e das teorias que dela derivam ou desde as quais se pretenda elucidá-las especulativamente. 2. O ponto de partida – A ética e a condição humana: a questão do fundamento Interessa-nos aqui mergulhar diretamente na complexidade e solidez do agir enquanto fundamento do ser humano, “humano” entendido como alguém que se compreende, exatamente, humano – alvo de atenções humanas ou auto-constituinte de sua própria humanidade36. Partamos assim de uma afirmação inicial: a ética não é, absolutamente, um elemento a mais – ou um elemento como qualquer outro – a ser levado em consideração quando se pensa * Prof. da PUC-RS; doutor em Filosofia; autor de dezenas de livros e artigos na área; coord. do Escritório de Ética em Pesquisa da PUC-RS; membro de CEP do Hospital São Lucas de Porto Alegre; bioeticista. E-mail: [email protected]. 36 Cf. nosso “Nós e os outros – Sobre a questão do humanismo, hoje”. In: PAVIANI, Jayme & DAL RI Jr., Arno (orgs.). Globalização e humanismo latino. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 203-212; e nossas obras na bibliografia final. 105 sobre a questão filosófica fundamental: a condição humana37. Em verdade, a ética é nada menos que o próprio fundamento da possibilidade de pensar o humano. Essa afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas esta estranheza se desfaz muito rapidamente, quando os termos definidores da questão são examinados com propriedade filosófica, ou seja, de modo estritamente argumentativo. Pois a própria idéia de pensar pressupõe a ética. Não existe pensamento enquanto tal fora de alguém que pensa (existem apenas representações segundas de pensamento, por exemplo, na forma de decantação escrita do mesmo), e esse alguém que pensa não é primariamente uma mônada fechada em si mesma, mas, de algum modo, o fruto humano – histórico-social – das relações – pois não existe o humano sem o tempo e a história e nem pensamento que não seja estrita expressão humana de linguagem, em suas mais diferentes formas38 – linguagens que expressam racionalidades plurais, e não uma Razão única à moda de Descartes ou Hegel39. E isto, seja no âmbito de sua gênese biológica (ninguém nasce senão de seus pais), seja em termos de sua geração social e histórica (ninguém existe fora de uma cultura e de uma língua que o acolhem, ou fora de estruturas materiais que o sustentam). Ser humano é provir e viver na multiplicidade do humano. E não qualquer multiplicidade, mas multiplicidade qualificada ou, exatamente, em termos filosóficos, multiplicidade ética, do agir de uns com relação aos outros e dos sentidos deste agir, de forma 37 Cf. nosso Sobre a construção do sentido – O pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2003. 38 Cf. WIEMER, Thomas. Die Passion des Sagens – Zur Deutung der Sprache bei Emmanuel Lévinas und ihrer Realisierung im philosophischen Diskurs. Freiburg/München: Karl Alber, 1988. 39 Cf. nossos Razões plurais – Itinerários da racionalidade ética no século XX (Porto Alegre: Edipucrs, 2004, especialmente p. 13-17 e 55-92) e Sentidos do infinito – A categoria de “infinito” nas origens da racionalidade ocidental, dos pré-socráticos a Hegel. Caxias do Sul: Educs, no prelo), bem como NESTROWSKY, Arthur & SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação (São Paulo: Escuta, 2000). 106 absolutamente não-indiferente e não-neutra, mas marcada a priori pela própria diferença axiologicamente determinada. Pois, para que a gestação tenha chegado a um bom termo, é necessário que nem nossa mãe, nem todos os que a apoiaram, houvessem agido de forma má, pelo menos não a ponto de impedir nosso desenvolvimento. O mesmo se dá, evidentemente, em cada um dos momentos de nossa vida, não apenas daqueles por nós facilmente percebidos como decisivos ou extremamente importantes, mas igualmente naqueles, aparentemente coloquiais, aparentemente irrelevantes, que constituem propriamente o dia-adia de nossa vida, a teia dos momentos na qual vivemos em nossa cotidianidade. Em suma: em todos os momentos de nossa vida, define-se em cada situação a continuidade ou não de nossa existência enquanto, exatamente, existência humana, não através de atos indiferentes e mutuamente intercambiáveis, mas na especificidade única e não-neutra de cada ato concretamente realizado40. Pois o factum essencial aqui é: um ato qualquer, isolado, pode tanto fazer viver como fazer morrer; embora tal coisa seja claramente perceptível nos grandes instantes decisivos da vida, onde a vida e a morte se encontram – tanto um ato heróico de sacrifício por outrem como um ato que mata outrem, tanto uma intervenção cirúrgica bem-sucedida como a destruição de aspectos da vida – na verdade tal fato se dá, de um modo ou de outro, em todo e cada um dos instantes da existência que, exatamente por este fato, se constituem em instantes da existência, e não em instantes qualquer, como segundos mecânicos de um relógio ou marcações em um calendário. Não há instante isolado, neutro ou indiferente para a vida; há apenas instantes que conspiram, ou para a continuação e promoção da vida, ou para sua corrosão e destruição. Esta é sua essencial nãoneutralidade. E isto por um motivo muito simples: o ser humano é um ser não-neutro por excelência. Essa não-neutralidade é simultaneamente, em termos filosóficos, o resultado da reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão. A idéia de neutralidade, em qualquer de suas concepções – científica, filosófica, existencial-axiológica –, se constitui efetivamente naquilo que temos chamado uma 40 Cf. nosso Existência em decisão – Uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig (São Paulo: Perspectiva, 1999) e Sentido e alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre: Edipucrs, 2000). 107 “patologia da temporalidade”41, e patologia grave, pois invasiva da medula existencial do humano; o tempo, no qual a humanidade, e, por decorrência, as ações éticas, acontecem. Ética é, assim, o fundamento pré-original – sustentação da própria origem – da condição humana que vive e medita sobre si, que age na condição precípua de condição humana, que pensa, com toda a gravidade de um pesado instante de decisão, sobre seu lugar, sobre sua casa, sobre seu mundo; ética é, neste sentido, essencialmente, uma questão eco-lógica (de oikos: “casa, lugar”, e logos; “reflexão sobre”)42. E, assim sendo, ética é o fundamento de todas as especificidades do viver, em suas mais complexas relações e derivações, das ciências e da tecnologia, da história das comunidades e da própria filosofia. Ética é o fundamento da vida humana – e não apenas enquanto refletida, mas, exatamente, no núcleo mais profundo de sua humanidade propriamente dita, concretude e conteúdo inconfundível – único – em relação a toda e qualquer formalidade vazia43. 3. Ética e ecologia 41 Cf. nosso Metamorfose e extinção – Sobre Kafka e a patologia do tempo. Caxias do Sul: Educs, 2000, especialmente p. 69-115. 42 Cf. nosso “Ética e ambiente – Por uma nova ética ambiental” (In: CLOTET, J.; FEIJÓ, A.; OLIVEIRA, M.G. (orgs.). Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: Edipucrs, 2005, p. 235246), bem como PELIZZOLI, Marcelo. Correntes da ética ambiental. Petrópolis: Vozes, 2003. 43 Cf. SUSIN, L.C. O homem messiânico – Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre/Petrópolis: E.S.T./Vozes, 1983. • SUSIN, L.C. “A consciência moral como consciência primeira – Uma interpretação do pensamento de Emmanuel Lévinas”. In: SUSIN, L.C. & GUARESCHI, P. Consciência moral emergente. Aparecida: Santuário, 1989. • Bem como nosso Sentido e alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 108 Podemos avançar ainda mais: poderíamos dizer que a relação entre ética e condição humana é uma só. Dissemos acima que “essa não-neutralidade [ético-humana] é simultaneamente, em termos filosóficos, o resultado da reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão”. Cumpre aqui elucidar melhor esta proposição. Em verdade, como poderíamos distinguir entre uma dimensão do agir que é refletida a posteriori por quem pensa a condição humana, e a própria condição humana de quem pensa o agir? Estamos, portanto, em uma espécie de circulo interpretativo. O grande risco que agora corremos é ficar encerrados neste círculo, em uma estrutura de desconsolo ou de finitude, que nos impeça de transcender a percepção imediata dos limites próprios que a condição humana nos impõe enquanto tal44. Sabemos que a ética é relação, e relação qualificada, com o outro, com a alteridade45; mas, será possível, no interior da estrutura de finitude na qual vivemos, conceber a possibilidade da própria alteridade? Será possível que nos relacionemos com seres que estão para além dos limites estreitos das nossas representações, dos nossos pensamentos, que surgem quando meditamos na profundidade da condição humana? É desse tema espinhoso que aqui trataremos. Para início, uma certa distinção terminológica. Que não se entenda aqui “ecologia” como uma ciência, ou ramo específico de uma ciência qualquer, tal como a biologia ou outra. É necessário que aqui se compreenda esta categoria em termos amplos, desde suas raízes – oikos e logos, termo composto que reúne estas duas palavras num sentido muito próprio. Ecologia é entendida por nós como sendo a dimensão de articulação, de reflexão, de compreensão e explicação do lugar, da casa, do mundo que habitamos, que vivemos, que é a sede de nossa condição humana, no momento em que esta condição humana reflete sobre si mesma. Assim, ética e ecologia se imbricam de forma muito precisa e muito clara. Podemos, para abordar esta questão desde um ponto de vista ao estilo das reflexões que temos até agora conduzido, tentar entender o tema da seguinte forma: não há 44 Cf. LUIJPEN, W. Introdução à fenomenologia existencial. São Paulo: EPU/Edusp, 1973. 45 Alteridade: a característica de algo outro permanecer outro, como tal diferente de mim. 109 questão ética, ou seja, não há questão humana, que não seja uma questão ecológica, assim como não há questão ecológica que não seja, por sua própria essencialidade eco-lógica, também uma questão humana. Ética e ecologia não estão apostas em algum conjunto arbitrário como se fossem dois termos oriundos de proveniência muito diferentes, um do ramo da filosofia, outro do ramo da ciência, como se aqui as estivéssemos artificialmente juntando. Na verdade, o que nos permite pensar desde o nosso preciso lugar no mundo é, justamente – como tentamos acima deixar suficientemente claro – a nossa estrutura ética de base. Esta estrutura ética de base não apenas nos permite pensar o lugar onde vivemos, a casa onde habitamos, o mundo no qual nos entendemos; ela exige que tentemos compreender e nos relacionar com este universo que nos cerca e que de alguma forma também somos nós. A ética é impensável fora de um lugar de sua realização, porque, como já sublinhamos anteriormente, e cumpre ainda uma vez ressaltar, não estamos aqui entendendo ética como uma dimensão utópica de realização prescritiva, ou como uma ordenação explanativa de termos ou ordenação lógica de conceitos. Estamos aqui entendendo ética como substância humana da própria humanidade, intimidade da realidade humana mais própria. Ora, o que pode ser mais importante para a humanidade do que pensar e realizar a si mesma, e onde poderia a humanidade, o ser humano, pensar e realizar a si mesmo, senão no seu universo, aqui compreendido exatamente desde o ponto de vista de uma espécie de nicho ético-ecológico? Portanto, é desde um nicho ecológico, desde uma fresta ecológica estreita, inconfundível e definidora, que pensamos, agimos e vivemos. É neste fulcro que construímos o sentido de realidade que permite que nos relacionemos conosco mesmos e com tudo e todos que nos cercam46. Assim, as grandes questões ecológicas não são, de modo algum, questões meramente científicas. Elas são, fundamentalmente, questões éticas, ou seja, de decisão ética; elas e a sua solução – ou não-solução –, é que virão a definir o futuro do próprio ser humano na terra, sua casa maior. Portanto, como podemos facilmente entender que aquilo que define o futuro do ser humano é justamente a sustentação ética do seu ser, então é fácil depreender que a questão ecológica é uma questão ética na 46 Cf. SOUZA, R.T. Sobre a construção do sentido – O pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 21-24. 110 sua origem e no seu sentido. Aliás, não é necessária uma reflexão assim tão sofisticada para percebermos aquilo que os cientistas mais lúcidos vêm ressaltando nos últimos tempos, a saber, que não existe questão ecológica que não seja uma questão humana, assim como não existe uma questão humana, uma questão social, que não seja uma questão ecológica. Em outros termos: a divisão metodológica que se faz quando se categoriza ecologia como uma ciência especial é procedimental, e não essencial. Na verdade, “ecologia”, enquanto percepção, compreensão de seu habitat, dos lugares do habitat do mundo em que vivemos, é na realidade a base de toda a ciência, porque não existe ciência sem um lugar para essa ciência ser referida e realizada. A ecologia, nesse sentido, como aqui a compreendemos, é todo um desdobramento ético da autocompreensão do ser humano no lugar que ele habita, que ele funda, de onde ele provém, e que convém cuidar, a bem da possibilidade de um futuro humanamente digno. Notemos claramente: as grandes questões ecológicas com que hoje nos deparamos não são questões que alguém pensou em algum momento inspirado ou em uma intuição científica. Pois as grandes questões ecológicas e seus correspondentes desafios são doenças da relação, são desdobramentos da incompreensão original da base ética, fundamental, que articula os seres humanos entre si e com os outros seres; enfim, são expressões de um “tempo patológico”. Temos assim, com bastante clareza, que ética e ecologia não podem ser pensadas sem uma mútua e rigorosa – imprescindível – referência, de índole muito específica e aguda. Ética é o agir próprio do ser humano no exercício de sua liberdade, e que se dá em um lugar, em um locus específico do universo. Ecologia é a compreensão deste locus; compreensão que, como vimos, apenas se pode dar a partir de um fundamento ético que permita pensar, que sustente a reflexão a partir da relação do ser humano com o mundo, mundo este sem o qual o humano não pode existir. Cabe ainda uma reflexão final nesta seção: colocamos ao início uma indagação, indagação que acompanha muitos filósofos e pensadores, sobre a possibilidade ou não de relação com o que está para além dos limites fechados, ou assim pensados, de nossas representações. A grave questão de fundo é: será possível a relação com o Outro? Não será tudo isso nada mais que uma quimera, ou desejo, que nunca será satisfeito? Ora, parece-nos que justamente as grandes questões ecológicas, na sua incisividade, na sua gravidade impostergável (que só não são percebidas por aqueles que nisto não têm interesse), parece-nos 111 que estas questões, por elas mesmas, nos puxam para além de nós mesmos, nos atraem para fora do círculo de auto-referência que a nossa subjetividade moderna configurou em termos de pensamento científico e filosófico. Pois vejamos: as questões ecológicas não são questões que podemos fingir desconhecer, elas são questões que determinarão o presente e o futuro da humanidade. Um pequeno exemplo é suficiente aqui: vejamos a questão da água potável. Caso não sejam reavaliadas e reconcebidas as formas de administração, uso e cuidado da água, teremos brevemente situações calamitosas em torno a este bem fundamental da vida, que se confunde com a própria vida. Ora, esta não é uma questão de razão, ou uma questão que possamos fingir não existir. É uma questão que nos atrai para fora de nós mesmos, é uma concretude absoluta, é uma questão de alteridade concreta. A água, da qual dependemos absolutamente, em todos os termos e sentidos, para viver, e da qual dependemos não só nós, mas todos os outros seres e as gerações vindouras, é um elemento outro em relação às nossas representações; trata-se de um elemento de uma concretude tão extrema que nenhuma representação é capaz de substituir, e as questões que traz a sua administração à reflexão sobre o seu sentido de preservação, a questão ecológica na qual se constitui, é um tema que está para além das circunvoluções intelectuais que o nosso cérebro, às voltas com suas habilidades próprias, seria capaz de destilar. Temos, portanto, aqui, a prova de que não estamos sozinhos no mundo, e para essa prova não necessitamos de uma complexa referência, sob a qual, na verdade, se embasa toda a nossa argumentação da existência do outro humano; é suficiente neste momento, para tal, pensarmos num elemento “químico”, para que se perceba indelevelmente, de forma definitiva, a alteridade que está para além das nossas representações. Ora, se é verdade que a ética é relação com o outro, então este pequeno sinal, que na verdade é um gigantesco sinal de existência da concretude, rearticula a própria metafísica e o próprio pensamento filosófico em torno a alguns eixos diferentes daqueles com os quais estamos normalmente acostumados. O pensamento como que sai de si mesmo, não para conquistar violenta e perversamente o que não é ele, não para analisar de modo infindável o que está no âmbito de seu imenso poder – como queria uma certa ciência e racionalidade modernas47 –, mas para se relacionar com aquilo 47 Cf. ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [“O conceito de 112 que não é ele. Teremos oportunidade de aprofundar este tema a seguir, na seção intitulada “Ética e ciência”; por agora, é suficiente dizer que pretender pensar o presente e o futuro na ignorância de tais questões ecológicas não é apenas a negação do próprio pensamento, mas é a negação da própria vida. Temos aqui, então, uma nova corroboração daquilo que foi anunciado na primeira seção. O universo, que podemos aqui conceber como sendo a multiplicidade dos múltiplos existentes, se constitui não em uma espécie de conjunto infinito de elementos analisados por uma racionalidade instrumental, mas pelas relações que estes múltiplos existentes estabelecem mutuamente em seu conjunto na construção do sentido que somos (ou não) capazes de captar. A racionalidade então, também é, de certa forma, subvertida; pelo menos, a racionalidade tal como estamos acostumados a pensá-la na tradição de uma filosofia que gostaria de retirar de cada coisa a sua essência para delas poder dispor logicamente. “Racionalidade” passa aqui a ser considerada uma dimensão ética da própria realidade, e “dimensão ética da própria realidade” significa nada mais, nada menos, do que quebrar os espelhos que configuram o sedutor quadro das reflexões que emprestam àquele que pensa a ilusão de infinito quando está lidando, na verdade, com coisas finitas. A reflexão é uma arma poderosa, mas o seu contra-veneno é muito necessário. Este contra-veneno se constitui na relação que somos capazes de estabelecer com o que não é nós mesmos: com a alteridade. 4. Ética e ciência Temos aqui um outro tema essencial para nossa investigação. É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões da vida. O ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade – é sacrificado48. esclarecimento”]. 48 Cf. nosso ensaio “Sistema e totalidade – Sobre idealismo, cientificismo e totalização no contexto da ecologia e da filosofia da natureza“. In: SOUZA, R.T. Em torno à diferença – 113 Por outro lado, sabemos, pelo testemunho doloroso do século que acaba de findar, que esta ciência tem muitas faces, muitas dimensões, e está muito longe de ser compreendida em todo o seu potencial, tanto construtivo quanto destrutivo. Na verdade, boa parte daquilo que temos chamado a “esquizofrenia civilizatória do século XX”49, ou seja, a convivência de situações absurdas do ponto de vista da dignidade da vida e de sua sobrevivência com situações de avanço científico inusitado e extraordinário, tem a ver com o desconhecimento destes potenciais. A que poderia se dever o desconhecimento destes potenciais? A resposta a esta questão não é extraordinariamente difícil; podemos avançar que, na verdade, uma das dimensões mais avessas ao controle externo é justamente a ciência, talvez por ter esta haver nascido, pelo menos em sua feição moderna, como uma espécie de superação dos muros externos de controle de pensamento. Esta vocação de desenvolvimento, que pode ser percebida na forma como a ciência foi destruindo uma série de barreiras a ela externas, do ponto de vista, por exemplo, filosófico, religioso e ideológico, acabou por se transformar no mote de seu próprio desenvolvimento. A ciência precisa de liberdade; ciência sem liberdade não existe. Esta retórica é, evidentemente, muito eloqüente, e tem a sua porção de verdade. Por outro lado, trata-se de uma retórica de uma extrema periculosidade. Há de se descobrir isso facilmente, na medida em que se descobre, por exemplo, as falácias do positivismo científico. A ciência, abandonada a si mesma e à sua própria lógica, é um animal selvagem e furioso recluso em uma sala repleta de obras de arte e cristais preciosos. Ele tentará sair da sala, e para isso quebrará muito do que ali se encontra. Em nome de sua liberdade, sacrificará muitos bens; em nome de sua sobrevivência, sacrificará muitas das dimensões também importantes, ou mesmo muito mais importantes que ele mesmo – como a vida mesma e suas esperanças –, que nesta sala se encontram. E esta é apenas uma das dimensões do problema. Mas uma dimensão que leva a desdobramentos muitíssimo perigosos, dos quais alguns exemplos são mui perceptíveis hoje Aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, no prelo. 49 Cf. nosso Totalidade & desagregação – Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 15-29. 114 em dia – por exemplo, a transformação da ciência em uma espécie de braço intelectual armado das lógicas de poder hegemônico50. Sabemos muito bem dos grandes dilemas que surgem no cérebro de qualquer criança quando descobre que, com uma pequena porcentagem dos gastos anuais com armas, se poderia acabar com a fome no mundo. Que lógica é essa, que subjaz a esta questão humana? Propomos refazer a pergunta: qual a justificativa para tal fato? Evidentemente não se trata de uma justificativa ética. Ciência e ética provém, diferentemente de ciência e ecologia, ciência e política, de fontes racionais algo diferenciadas na sua origem. Ciência, scire, scientia, saber, iluminar, invadir a realidade, expor as essências, descobrir os núcleos da existência, ir até aonde nunca outro ser humano tenha ido, estes sonhos modernos, mas que já repousavam in nuce na pré-história do logos51, todos eles têm como preocupação muito secundária o respeito por aquele que é o seu objeto, o objeto científico. Caso assim não fosse, não poderiam dissecá-lo, não poderiam analisálo. Mas a ciência não é analítica por natureza? Este é um dos dilemas centrais com os quais temos que conviver hoje, e que exige uma mobilização ímpar de energias intelectuais. Muito haveria que refletir neste sentido. Por agora, basta adiantarmos as seguintes considerações: tal como o ser humano, e exatamente como fruto do ser humano, a ciência nada tem de neutra. O mito da ciência neutra é muito conveniente àqueles que a manipulam, e que, com ela, manipulam a outros. Esta questão, que parecia nem ao menos ter lugar no cérebro de grandes pensadores e cientistas até há pouco tempo, parece definitivamente diluída, do ponto de vista teórico, ao fim da famosa querela do positivismo, onde se evidencia com clareza, hoje incontestável, que não há ciência nem cientista sem interesses muito além dos meros interesses “científicos” – 50 Cf. nosso Totalidade & desagregação – Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. 51 Cf. nosso “Da neutralização da diferença à dignidade da alteridade: estações de uma história multicentenária”. In: SOUZA, R.T. Sentido e alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 189-208. 115 interesses que, se não são claros, podem ser dissecados a ponto de exporem o seu núcleo de claridade. Ora, talvez este seja o pequeno elo que possa unir ética, vida humana, vida na Terra, com ciência: potência intelectual humana que se desprende da própria humanidade para transformar o mundo numa espécie de mera correlação entre objetos conhecidos e aqueles que conhecem os objetos. A ciência, pelo menos a ciência moderna (não estamos aqui falando da mais prudente ciência contemporânea), normalmente se instrumentaliza em tecnologia de invasão, não só dos átomos e das moléculas, mas igualmente dos povos e das consciências. Esta ciência não mantém com a ética um parentesco evidente. Todavia, um elo possível de aproximação está no fato de que ambas são não-neutras, porque ambas são produtos humanos. E nada do que é humano é neutro. Este é o ponto de partida. Se quisermos pensar uma articulação entre ciência e ética, teremos que estabelecer uma hierarquia clara. Qual a hierarquia com que temos convivido a partir da Modernidade? Exatamente a hierarquia entre a ciência e a ética, onde primeiro se pensa os interesses científicos, e depois se tenta resolver, se é que se tenta, os problemas éticos daí decorrentes. Porém, situações complexas e dolorosas que a contemporaneidade tem vivido instigam a inversão desta hierarquia que pareceu, a muitos modernos, “natural”. Ciência sem consciência é uma contradição suicida, mas, infelizmente, é uma contradição concreta, a mais encontrável de todas as situações, quando examinamos os dilemas humanoecológicos do planeta; em muitos níveis, podemos experimentála nas mais diversas dimensões da vida contemporânea e nos discursos que tentam legitimar todo tipo de descalabro socioecológico52. “Ciência com consciência”, por outro lado, 52 “Não cabe aqui discutir os mecanismos ideológicos que pretendem escamotear a crise ecológica na postulação de uma regeneratividade absoluta dos meios de enfrentamento desta crise no seio mesmo de um sistema econômico totalizado e que procura desesperadamente uma hegemonização (como exemplo eloqüente de argumentação falaciosa, veja-se FUKUYAMA, F. em seu O fim da história e o último homem, no capítulo em que trata das florestas da América do Norte, ignorando totalmente os 116 deve significar, para nós, ciência com ética como base. A consciência da ciência é a ética, ou seja, a reflexão sobre seu “antes”, “durante” e “depois”, seu sentido humano e histórico e, direta ou indiretamente, seu sentido vital. A ética é, desta forma, a possibilidade fundante e meta-científica da racionalidade científica, aquilo sem o qual a racionalidade científica, fechada em si mesma, acaba por implodir em sua totalização de poder e sentido, destruindo tudo em seu autodestruir-se. 5. A questão da categoria fundamental da bioética Chegamos ao fim de nossa breve jornada teórica pelas raízes da ética tal como a compreendemos. Porém, a ética, por sua própria natureza de encontro com o que “está além” dos limites do meramente razoável e bem-comportado, ou, o que dá na mesma, do meramente bem-ordenado, exige o que está para além da sofisticação da filosofia, refazendo seus passos e sustentando o encontro com o real, por mais inusitado que este se apresente. E mesmo pelo caminho interior da própria filosofia é tal fato claramente perceptível, como procuramos indicar na seção anterior. Este fecho é, portanto, uma espécie de convite para, no crivo agudo da existência vivida, pensarmos o que não mais elementares princípios de tudo o que já se sabe em termos de ecologia e outras ciências do ambiente. Vale a pena a referência explícita: ‘a despeito da depredação da chuva ácida, o nordeste dos Estados Unidos e muitas partes do norte da Europa têm hoje florestas mais densas e mais extensas do que tinham há duzentos anos’ (p. 120), omitindo que se refere a ‘reflorestamentos’ com finalidade extrativa e de reflorestamento imediato, assim como ‘ignora’ que a questão ecológica é infinitamente mais complexa que dados quantitativos, ainda que estes não fossem falaciosos)”. É aqui perfeitamente adequada esta nota de nosso ensaio “Ética e ambiente – Por uma nova ética ambiental”. In: CLOTET, J.; FEIJÓ, A.; OLIVEIRA, M.G. (orgs.). Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: Edipucrs, 2005, p. 244, nota 3. 117 cabe no pensamento. Pois nosso tema é bioética, e mais: a proposta de uma categoria central para a compreensão e fundamentação da bioética, hoje. Estamos acostumados a conceber o pensamento filosófico desde a famosa promulgação aristotélica da admiração, do Thaumazein. Aqui gostaríamos, porém, de ajuntar, ao Thauma, o “Trauma”. Gostaríamos de pensar, neste momento, o próprio fundamento do pensar, desde um ponto de vista que não é suficientemente considerado, quando se pensa no conjunto da filosofia e, por derivação, das ciências que dela provêm. Gostaríamos de pensar o momento onde nossa respiração é suspensa pela suspensão da própria vida que ocorre, por exemplo, na percepção de uma situação de injustiça cometida, o choque, algo que nos traumatiza, algo que nos revolve internamente, algo que desordena as nossas lógicas e faz com que a própria idéia de justificar o acontecido apareça como indecente53. Talvez seja este um dos inícios do pensamento, talvez seja isto que tenha dado origem ao próprio pensamento: o insuportável que, ao trazer à nossa consciência privada a consciência geral da precariedade da existência, nos interdita a paz. Pois é possível pensar também a filosofia como indignação. Indignação frente ao fato de que a realidade é tratada indignamente. Indignação frente à percepção do fato de que temos sido indignos das expectativas que, de alguma forma, se abrem a nós pela promessa de futuro que a nossa vida propõe. Indignação frente às habilidades do nosso intelecto em tecer teias justificativas para o injustificável. Indignação que se coloca como origem da necessidade de superar, em todo o sentido possível, o elemento de indignação, ou seja, de indignidade, que aqui é correlato ao tema da não-vida, e, portanto, ao tema da não-ética. Ora, um ponto de partida para pensar essa estrutura é, desde o ponto de vista do trauma da injustiça cometida, a estrutura contrapoponente da questão da justiça como fundamento da estrutura das relações humanas54. 53 Cf. nosso ensaio “O delírio da solidão: o assassinato e o fracasso original”. In: SOUZA, R.T. Sentido e alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 23-43. 54 Cf. nosso Razões plurais – Itinerários da racionalidade ética no século XX. Porto Alegre: Edipucrs, 2004, p. 127-166. 118 Note-se que o tema da justiça não é meramente um tema da filosofia política. O tema da justiça é uma ansiedade literal de todo e qualquer agir e pensar: justiça é a ética – o essencial da vida humana no tempo – tornada visível. Apenas, e aí está a grande questão, é possível utilizar o próprio pensar para camuflar este tema em meio a outros temas. Queremos aqui, porém, seguir na direção inversa; queremos ressaltar a que ponto este tema é central e, simultaneamente, culminante nas reflexões filosóficas e científicas, por decorrência, por definição e por origem que não são, como esperamos haver mostrado ao longo das seções anteriores, senão éticas. Pois a ética existe apenas em sua realização concreta, ou seja, na justiça realizada como negação peremptória da injustiça e de qualquer discurso que a pretenda justificar. Pois, a rigor, qual o sentido do mundo sem a nossa fidelidade na busca da justiça? Parece-nos não haver na história do pensamento humano nenhuma grande obra que tenha ignorado este fato, esteja ele presente de forma explícita, ou esteja ele implicitamente presente nos conteúdos que se desenvolvem. O ser humano, a condição humana, a finitude humana é, antes de tudo, nesse sentido, ansiedade por justiça. Ansiedade por ser justamente tratado. Ansiedade que, em termos relacionais, significa ansiedade por tratar justamente o que não é si mesmo, para que si mesmo tenha sentido. Justiça, portanto, não é – repetimos e acentuamos – uma categoria da filosofia, ou das ciências jurídicas, ou das ciências sociais, como qualquer outra categoria, mas é o essencial da própria possibilidade da filosofia, das ciências jurídicas, das ciências sociais e humanas, e da ciência em geral. E a vontade de justiça é a expressão humana da humanidade enquanto tal, a sua face visível. Justiça significa assim, aqui, a base possível do próprio pensamento e, simultaneamente, o seu telos, seu fim ou ponto de chegada, sua idéia reguladora máxima e definitiva: o imperativo de sua realidade. Justiça significa a exuberância da vida que se encontra consigo mesma. Porém, justiça não pode ser, a rigor, afirmada como realização plena no presente do indicativo. Justiça é uma ansiedade, é uma dimensão de construção que se constrói no tempo com tijolos infinitamente pequenos, porém infinitamente recorrentes, incansáveis, sólidos e delicados. Justiça é o objeto das ciências e da filosofia, porque é o conteúdo da própria humanidade, sem o qual a humanidade torna-se vazia. Como conceber a condição humana sem a ansiedade por justiça? Há quem consiga pensar fora da ansiedade por justiça? Parece- 119 nos que, levada a argumentação neste sentido, não há pensamento e construção humana digna deste nome que não seja expressão, mais ou menos bem-sucedida, da reparação desta ansiedade por justiça, desta falha básica da existência e da finitude percebidas como injustas. Mas, se assim é, como pode o tema da justiça muitas vezes estar deslocado a esferas quase imperceptíveis da própria especulação filosófica e científica? Não temos tempo agora para tratar da genealogia deste espantoso desvio55. Interessa-nos, muito mais, ressaltar o fato de que a justiça pretende se constituir, enquanto negação explícita e inequívoca da injustiça, em uma espécie de retórica ética máxima, uma eloqüência da vida. A vida eloqüente é a vida que exige justiça. Neste sentido, temos aqui uma espécie de terminação provisória das reflexões que até agora desenvolvemos no presente texto. Partimos de uma abstrata idéia de condição humana, procuramos aprofundá-la paulatinamente, passamos por diversas estruturas, camadas, sentidos de realidade que configuram o dia-a-dia da própria humanidade e das próprias reconsiderações a que o ser humano está sujeito na nossa época contemporânea, e culminamos esse pensamento retomando algo infinitamente original e originante, e infinitamente distante – a ansiedade absoluta pela justiça realizada, fundamento de toda ação humana. E assim podemos, se admitirmos tal lógica de desenvolvimento, supor que a ética é exatamente, e nada mais nem menos, do que isso: vontade de justiça em realização, visibilização temporal-existencial da justiça, justiça em todos os sentidos, justiça para com o que não é nós, justiça para nós como justiça para com o outro que nós. É evidente que daí se depreende que, se há algo que se segue à proposição de construção de um mundo com sentido humano-ecológico, a temática da justiça não pode senão repousar na raiz dessa proposta. Em outros termos, e em adequação à temática aqui desenvolvida: se há na idéia de bioética hodiernamente compreendida a preocupação, exatamente, da construção de um mundo com sentido humano-ecológico, não pode ser sua raiz mais profunda senão, exatamente, a vontade de 55 Tratamos deste tema em nosso ensaio “Da neutralização da diferença à dignidade da alteridade: estações de uma história multicentenária”. In: SOUZA, R.T. Sentido e alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 189-208. 120 justiça, e isso por um motivo muito simples: porque a bio-ética é a forma como esta vontade de justiça pode se estabelecer como central, conforme sugerimos ao longo deste texto. Na bioética, ética e vontade de justiça não podem, em hipótese alguma, ser desarticuladas; elas – expressões de resposta aguda e exigente a uma mesma inquietação humano-ecológica –, se configuram, na realidade, como dois momentos de um processo laborioso de interpretação e construção do próprio sentido de realidade do que se pretende. Neste sentido, a vontade de justiça, que habita desde sempre, como mostramos, o núcleo da ética, fundamenta o florescimento possível da bioética. 6. Como conclusão – Justiça como a categoria filosófica fundamental da bioética Revisemos agora, em uma linguagem mais direta e à guisa de conclusão, o que foi exposto. Um dos campos mais estudados e mais importantes das éticas aplicadas atuais é exatamente a bioética. Na linha lógica deste trabalho até aqui, não trataremos neste momento da bioética enquanto uma disciplina filosófica ou mesmo um campo interdisciplinar, mas trataremos antes, de uma forma algo propedêutica, da ética em relação com bíos, ou seja, da ética da vida enquanto fundamento, inclusive, para poder ser pensada a bioética. Pois, se aquilo que temos desenvolvido até agora faz algum sentido, como este sentido poderia se situar fora das questões vitais? Retornam aqui os argumentos e pressupostos de partida. É evidente que já fizemos referência implícita a este aspecto nos pontos que antecedem a este. Todavia, aqui se trata de ressaltar devidamente esta dimensão por si mesma. Não existe ética morta, ética de coisas despossuídas de seu ser ou de esquemas tão formalizados que são absolutamente vazios. A ética é uma relação da vida com a vida, é uma reconstituição radical – referida às raízes – das possibilidades de revitalizar a vida. E, assim, de uma forma apenas aparentemente reducionista, poderíamos sugerir que não existe ética que não seja, a rigor, uma bio-ética. Ou, de outra forma: não existe ética sem bio-ética, nem bio-ética sem uma base de compreensão ética da realidade como tal. Por outro lado, destaquemos que não existe elemento de realidade que não responda à relação, como bem sabem, por exemplo, os artistas; é uma espécie de vida da própria realidade, é uma vibração que se estabelece a partir da estrutura relacional. Naturalmente não estamos aqui sugerindo uma espécie de panbiologia, pan-biologismo inconseqüente ou indiferenciado, que acabasse por equiparar a dignidade de todos os seres umas às 121 outras. O que estamos, sim, a sugerir, é que, no próprio núcleo do pensar ético, existe já um elemento, ainda mais nuclear, de bíos, e esse elemento é revitalizado, potencializado, no momento em que as questões, por exemplo, da bioética, são ressaltadas e tratadas com a dignidade que merecem e exigem – ou seja, quando se trata de realizar a justiça que torna evidente, visível, o núcleo de sentido da ética enquanto tal. Não existe, nem pode existir ética fora da vida. Vida é sentido de vida, de agir; ética é agir com sentido de vida. Há uma inter-relação entre todas essas dimensões. Há uma espécie de canal comunicante que une todos esses aspectos, aparentemente díspares, em uma complexa teia de sentido. Por isso, não nos parece necessário insistir, neste momento, na pertinência evidente do trato das questões da ética no que concerne especificamente à sua aplicação à vida. Parece-nos esta constatação de tal forma evidente, que a simples idéia de negá-la em algum tipo de formalismo se torna mais uma vez uma espécie de quimera, ou uma obliteração do próprio pensamento, da vitalidade da racionalidade, pela transformação da racionalidade em razão violenta e totalizante, ou seja, com a vocação da morte56. Que isto se verifique freqüentemente nos mais variados campos da cultura contemporânea, e em estratégias geopolítica de nações poderosas, nada mais faz do que justificar os esforços que são necessários para que a unidade entre ética e vida se torne e permaneça tão clara quanto possível. Temos assim, portanto, uma ligação íntima e incontornável entre ética e vida. Se quisermos pensar ética, não podemos fazêlo por fora ou além dos parâmetros imperativos e definidores da dignidade da vida. Não existe ética que não seja bioética, assim como não existe vida que não seja uma questão ética por excelência, em sua não-neutralidade definitiva. Estamos aqui, novamente, em um sofisticado círculo interpretativo. Porém, como todos os círculos hermenêuticos, também este pode sofrer a mortal tentação da circularidade autoreferente. Ele precisa ser deslocado de sua silhueta, de seu thauma através do trauma do que não é ele: a alteridade. 56 Cf. nosso ensaio “O século XX e a desagregação da totalidade”. In: SOUZA, R.T. Totalidade & desagregação – Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 15-29. 122 A alteridade chega à existência através do traumatismo do novo. Ela funda o sentido da existência que não vê, em si mesma, em sua finitude, senão a nostalgia da existência. Em outros termos, a alteridade põe irrevogavelmente a roda da vida e da existência em movimento. O trauma significa: eu e minhas idéias não constituímos a realidade inteira. Há algo para além da realidade perceptível, da realidade representada e com a qual me comprazo na inteireza de um momento de gozo da totalidade. O trauma é a injustiça, ou seja, os quistos de não-vida – de nãoética, de não bio-ética – que se multiplicam e perduram no tecido da realidade, e que apresentam a alteridade com aquilo não que me traz vida, mas que me ameaça. Confundir a alteridade – condição de minha vida, ao me extirpar da tentação circular da tautologia interpretativa que culmina na morte pela neutralização de todo o diferente, de todo o Outro – com a ameaça de minha morte, invertendo os termos reais da questão e me blindando à realidade propriamente dita para além de minhas representações – eis a injustiça primigênia57. O que é a vontade de justiça, senão a vontade de superação do status de injustiça, em todos os sentidos deste termo? Ou, o que dá no mesmo: o que é a ética com a mais plena consciência de sua vitalidade – ou seja, a bioética em realização – senão a negação das forças da morte pela realização obsessiva da vontade de justiça, em todo e qualquer lugar em que a injustiça seja o factum, ou seja, em que a alteridade é negada? Temos assim, como conseqüência necessária, que a justiça, enquanto atrator vital do agir humano e telos das ações que se negam em capitular ante as tentações da não-vida58 – da ética que é sempre e necessariamente (bio)ética – é a categoria fundamental da bioética, simultaneamente expressão de sua essência e sua face visível, sem a qual esta não pode ser, a rigor, 57 Cf. nosso Razões plurais – Itinerários da racionalidade ética no século XX (Porto Alegre: Edipucrs, 2004) e Ainda além do medo – Filosofia e antropologia do preconceito. Porto Alegre: DaCasaPalmarinca, 2002. 58 Cf. nosso “Justiça, liberdade e alteridade ética – Sobre a questão da radicalidade da justiça desde o pensamento de E. Lévinas”. In: Veritas – Revista de Filosofia, vol. 46, n. 2, 2001, p. 265-274. 123 concebida, e da qual todas as outras categorias que pertencem ao campo de sua elucidação são derivadas. Bioética é, neste sentido, essencialmente vontade de vida e, portanto, vontade de justiça, pois é apenas na justiça como telos absoluto do viver que a neutralidade da não-vida pode ser superada. A justiça – o aindanão da justiça em realização – é o que suporta, em épocas de “ciência sem consciência” denunciada por Morin e outros, de “vida danificada” denunciada por Adorno e de alteridade violentada em todos os sentidos possíveis e imagináveis, denunciada por Lévinas, a sobre-vivência do vital. Não existe bioetica sem obsessão pela justiça, ou em situações de injustiça, a não ser em luta contra ela, assim como não existe realização da justiça senão quando a ética e a vida – que sempre foram íntimas – tornam-se plenamente conscientes, pela filosofia, desta intimidade, e propõem – bioeticamente – um mundo novo. Referências ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. CASPER, Bernhard. Das dialogische Denken – Eine Untersuchung der religionsphilosophischen Bedeutung Franz Rosenzweigs, Ferdnand Ebners und Martin Bubers. Freiburg, 1967. CIARAMELLI, Fabio. Transcendance et ethique – Essai sur Lévinas. Bruxelles: Ousia, 1989. DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004. ______ Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003. DREIZIK, Pablo (org.). La memoria de las cenizas. Buenos Aires: Patrimonio Argentino, 2001. 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Ou de ser tragado pelos hábitos vigentes. É doloroso acompanhar o que aconteceu em parte à questão ecológica, vê-la tornar-se um ramo específico de alguma área de estudo ou cuidados com o verde, animais e lixo ou marketing verde de empresas; igualmente, vê-la tornar-se discurso sem prática pessoal, vê-la tornar-se uma moral descontextualizada e cooptada por práticas ainda não sustentáveis. Com a bioética não é diferente. No grosso de seu uso – diferentemente da verdadeira visão bioética como questão civilizatória e de modelo de ciência, de sociedade e relações com a vida –, ela foi conduzida dentro da área de saúde voltada para a doença, para resolver dilemas morais, tais como abuso em pesquisas com seres humanos, aborto, eutanásia e os temas atuais da manipulação genética por exemplo. Coisas importantes, mas que não são o cerne da visão bioética fundante. A moral é feiticeira, principalmente na mão de filósofos, religiosos e políticos. Mas é ela, também, enquanto costume (de onde deriva “moral”) que mantém a dicotomia ou até esquizofrenia entre pessoas incluídas e outras excluídas, um ** Membro do CEP da UFPE; doutor em Filosofia; ecólogo e pesquisador em bioética; coordenação do Pós-graduação em Bioética da UFPE; autor das obras A emergência do paradigma ecológico e Correntes da ética ambiental, da Ed. Vozes. E-mail: [email protected] 128 apartheid social que é o maior desafio bioético e ecológico atual. Ou que mantém a visão da tecnociência e do mercado, contra as visões humanizadoras e naturalizadoras. Urge conhecer a árvore pelo fruto. Talvez alguns se perguntem se haveria uma ética que não seja voltada para a práxis, já que se trata sempre da consideração da ação; contudo, há sim, pois muito do que ocorre em filosofia oficial e na academia é eminentemente discurso, por vezes com pretensão de engajamento, por vezes com pretensão academicista. Falar, muitas vezes, é um modo de não fazer. Por outro lado, vemos que a ética está se transformando em bioética, sinal dos tempos e do esgotamento da moral tradicional. Este é hoje com certeza um dos campos de maior relevância social e de pesquisa e extensão dentro do campo da filosofia – tradicionalmente voltado ao desenvolvimento da teoria/especulação pura. O nosso interesse em ética aplicada/filosofia prática ou bioética deve-se a este recorte crítico, de temas sociais/ambientais urgentes, de interdisciplinaridade e intercâmbio de saberes de áreas afins ou mesmo aparentemente distantes, como a filosofia e a medicina, como bem demonstra esta presente obra. Crítico e fundamentado, o que significa denunciador e anunciador; denunciar a desumanização em saúde, ou a desnaturalização em ambiente (como na medicina cartesiana, químico-maquínica, e na agricultura química insustentável); anunciar o tempo de práticas de sustentabilidade, de volta à vida simples, de medicina natural e tradicional, saúde integral, corpo e mente; valores humanos e assim por diante. Certamente, é preciso estar a par da amplitude da (bio)ética ou da filosofia prática, que abrange temas que vão da ética ecológica, filosófica, médica (“biomédica”), Saúde pública, Direito (“biodireito”), biossegurança, direitos humanos e ramos afins, desenvolvimento sustentável, interculturalidade, políticas públicas e outros. É por isso que, de mãos dadas, estas áreas – que nunca podem fechar suas fronteiras, graças a Deus – constituem, juntamente com a práxis crescente de “um outro mundo é possível” – constituem o novo paradigma, o qual salvará a comunidade humana no planeta e recuperará a sustentabilidade dos valores humanos, espirituais, culturais, para além da violência da civilização do capitalismo e da tecnociência sem freios. O que estamos mexendo é muito atual e surpreendente, pois nenhuma postura filosófica e ética ocidental anterior está 129 capacitada para lidar com os dilemas atuais e a crise como ruptura de padrões de conhecimento. Muito menos deixar isso a cargo das ciências naturais ou da medicina da doença por exemplo. A própria corrente do principialismo, tão usado nos casos bioéticos biomédicos, por mais pragmática que possa ser conduzida, tem grandes limites, quando confrontada com bases humanistas, libertadoras e outras com matiz não anglo-americano mas sim europeu e latino. Basta ver o caso de Kant (e de todo Idealismo), esse ícone teórico da filosofia/ética acadêmica, com um conceito limitado e cartesiano de ser humano e de natureza, perdendo muitas “figuras da alteridade” que são chaves hoje, bem como a questão da consideração das gerações futuras59. Em todo caso, diante dos dilemas exige-se a força do diálogo aberto e contínuo, no encontro desafiador das diferentes posições, questionando tanto as práticas anti-socioambientais quanto seus fundamentos filosóficos60. Em busca de fundamentos Percebe-se que, em termos nacionais, praticamente não existe produção em bioética com tonalidade filosófica crítica e discussões de paradigmas, quanto mais que apresentem práticas alternativas em saúde e meio ambiente. As pessoas precisam saber mais profundamente o porquê de estarmos em crise, mas as produções são essencialmente voltadas para boas intenções morais, aspectos ligados à Comitês de Ética em Pesquisa ou dentro de casos médicos mais restritos. Para nós, é capital analisar as fundamentações em jogo e as orientações tecnocientíficas e éticas subjacentes. Trata-se de entender onde está assentado o modelo de ciência (tecnociência na verdade) praticado em especial na área da saúde e ambiente, compreendendo o seu grande momento de crise dentro das 59 Sobre esses temas, cf. nossa obra: Lévinas: a reconstrução da subjetividade. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. E nosso artigo em SUSIN (org.). Éticas em diálogo. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. E ainda sobre Hans Jonas em Correntes da ética ambiental. Petrópolis: Vozes, 2003. 60 Tenho em mente aqui fatos bem concretos, como transgênicos, medicina cartesiana, indústria química da doença, ao lado de fundamentos epistemológicos que os legitimam. 130 mudanças paradigmáticas atuais: da complexidade, da volta à natureza, da visão de sistemas, da sustentabilidade, da mente e emoções, do papel da comunidade e assim por diante. Se muitas vezes o filósofo é questionado em relação ao âmbito pragmático e aos desafios técnico-científicos das ciências naturais em seus objetos particulares, é fato também a sua vantagem (quando é um filósofo engajado) em relação aos seguintes modos de abordagem: maior lucidez epistemológica, no sentido de uma teoria crítica do conhecimento instituído, dos métodos, conceitos e postulados (metafísicos inclusive) utilizados pelo tecnocientista; preocupação social acentuada e com ela a preocupação ética; consciência do papel da compreensão humana interpretativa mais do que apenas a explicação objetivista ou fática (positivista); maior abertura para os saberes não-metódicos, ou os “alternativos”, bem como para com os saberes tradicionais e pontos de vistas diversos de outras culturas; não estar preso a modelos de procedimento congelados (“normais” porque aceitos – normose61) e reducionistas (reduzido à ordem químico-física fragmentária, por exemplo); proposição ao diálogo radical, visão mais global e consideração dos fundamentos em jogo, entre outros. Não é de menor importância considerar aqui o fosso construído entre ciências naturais e ciências humanas – bem como a expulsão da espiritualidade e a própria ética. A nós, cabe conduzir a denúncia do que sob os procedimentos institucionais pautados neste modelo de saber e poder, na saúde em especial, perpetua um modo epistemológico reducionista que nitidamente vai se enquadrar dentro de interesses do consumo na sociedade de mercado capitalista. Por conseguinte, em termos de ética e fundamentos, podemos ressaltar muitas posturas. Mas vamos nos ater a uma breve confrontação entre a “ética naturalista”, holística, de inspiração grega antiga e, como contraponto, uma “ética racionalista” – ao que acrescemos aí a nossa contribuição fundamental que são as características epistemológicas (e problemáticas) da revolução científica, que permearam o mundo do saber até hoje, fato que está a exigir consideráveis mudanças 61 O termo normose dá bem a entender isso: a doença da normalidade, ou seja, de que as coisas devem ser como estão porque são assim mesmo... Hipocrisia e falsidade de quem não quer mudar! 131 metodológicas/epistemológicas e práticas regeneradoras62. Isto feito, apontaremos muito brevemente como a Bioética está entrando dentro do novo paradigma mais amplo, a exigir não apenas boas intenções e filantropias morais, mas desconstrução e reconstrução de posturas teóricas, de visão de mundo, de modelos institucionais e de normatização social. 1. Visão naturalista antiga Aqui nos remetemos à ética grega em especial, a qual tenta justificar, conforme Gracia (1989), os juízos morais (de ação) apelando à ordem da natureza. Trata-se do antigo “viver conforme a natureza”, pressupondo-se a ordem natural das coisas onde o homem, ser de cultura, deve se inserir. O conceito de cosmos já indicava isso, bem como o de pólis, e, até mesmo para Platão, que vai além da filosofia da natureza, há um ideal de fundo de que o funcionamento da pólis deva imitar algo da ordem natural, da physis, pois esta, ao mesmo tempo que é dinâmica, caótica, compõe-se por um dinamismo que mantém a homeostase. A ética naturalista traz a noção de virtudes baseada em ações salutares; a saúde liga-se à disposição moral; harmonia corporal e bondade, por exemplo, são consentâneos. Justiça ligase a uma medida (métron), de não se deixar levar pela hybris, desmedida; e, assim, trata-se de justas medidas, o termo médio entre os extremos (como queria Aristóteles), o ajustamento à ordem natural. Contra a hybris e a hamartia (erro, pecado), temos o métron e o ortos (correção, caminho certo...), e Filosofia e Medicina são muito próximos nesta abordagem. “A virtude é disposição natural ou diásthesis katá physin, disposição equilibrada, regular ou harmônica (homologouméne), enquanto o vício é uma disposição antinatural (pará physin). Os gregos definiram a doença como diásthesis pará physin. A ética 62 Não se trata, apesar da confrontação proposital, de eleger a ética naturalista como a grande alternativa epistemológico-ética para a questão bioética ou mesmo socioambiental, mas de resgatar seu valor. Apontei uma visão mais dialética com a perspectiva hermenêutica, em Correntes da ética ambiental. Petrópolis: Vozes, 2003. 132 identifica-se com a bioética”63. A natureza corpórea é fundamental aqui; o estatuto do bios é menos dicotomizado do que vai ocorrer depois; até mesmo num considerado “idealista” como Platão o corpo, dialeticamente, não é abandonado como tal. Lembremos dos ginásios gregos, do cultivo do corpo, jogos e disputas... Os estóicos nos interessam, igualmente, pois olhavam a doença desde uma certa idéia de pathos, como desordem, desordem como kinesis pará physin, indicando assim que as doenças do corpo são ligadas às da alma (cf. idem). Recuperar a visão do ser humano como pathos – sentir, sofrer, padecer... – é fundamental na história do pensamento ocidental, mesmo que bem tarde, com Schopenhauer, Nietzsche, Freud e pensadores do século XX como Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas etc.). Numa tradição que valorizou o logos como ratio, racionalismo, ou ainda o zoon politikós, branco ocidental e europeu, trazer o “pato-lógico” destes ao centro da subjetividade é ameaçador e desmascara os ardis da razão ocidental, e, por conseguinte, da razão instrumental. Hoje, falamos também em “emoções perturbadoras”, e no seu papel abrangente, na medida em que se “a razão convence, a emoção arrasta”. A psicossomática recupera sua força inexorável, haja vista a notável relação das demandas emocionais e das doenças humanas. Os processos de cura dependem por demais da postura dos curadores e dos doentes; sendo assim, não se pode perder a dimensão simbólica da cura, presente no naturalismo64. O naturalismo, mesmo quando não tem uma abordagem centrada na autonomia da pessoa, como vemos em Hipócrates e a medicina grega antiga, carrega junto a possibilidade de intervenção pela dimensão simbólica e inter-humana, e não apenas tecnicista. Não é preciso dizer o quanto isso se aproxima de tradições do pensamento oriental antigo, no sentido da interdependência homem & cosmos, dos aspectos sutis da “energia” vital65, onde 63 Gracia, p. 323. 64 Quanto a isto, veja a brilhante obra de Paulo Henrique Martins, Contra a desumanização da medicina. Petrópolis: Vozes, 2003. Ainda, a premiada obra Curar, de David Servan-Schreiber. 65 É genérico falar em “pensamento oriental”. Pelo menos três grandes divisões deveríamos ter em conta: indiano (o mais significativo, donde o brahmanismo...), chinês e japonês. É um 133 seu desequilíbrio significa doença; não obstante, mesmo doença é necessidade de reencontrar/reorganizar energias dinâmicas que regem a natureza, a vida. Veja-se a quantidade de práticas tradicionais integrativas e sutis elaboradas: dietas natuais, ioga, arte marcial, meditação, visualização, mantras, massagens, exercícios, terapias diversas, alguns baseados em movimentos de animais e insetos. Isso nos lembra que os latinos medievais criaram um dizer basilar, esquecido pelo cartesianismo moderno: a preponderância vital, para a cura, da vis medicatrix naturae, a força vital medicadora da própria natureza, que nos habita. Mas o homem, como ser de cultura tecnológica, afastou-se demais dos processos e ordens dos ambientes, perdeu a cultura da eco-logia, as exigências biocêntricas, sua inserção num “eco (oikos, casa, comunidade...) sistema”66. Enfim, saúde, nos gregos, leva à medida, beleza, equilíbrio, e, assim, ao bem. De outro lado, doença, liga-se a maldade, horror, desequilíbrio. Medicina e moral são muito próximos67. A ética naturalista busca a concretude natural fundante nos modos de vida, não no sentido moral/moralista mais pessoal e formal, mas como regula vitae, ou ainda a regimen sanitas, desdobrada na vida cotidiana e relações vitais (casa, animais, família, relações, ambiente...). O ethos (daí “ética”, vem de “habitação”), antes de tudo, indica para as “disposições do homem na vida, seu caráter, costumes, e também a moral. Na mundo a parte que apenas nos aproximamos, com o pressuposto hermenêutico e lúcido de que nunca recuperamos a coisa própria do outro tempo e escrita como tal. Quanto à energia veja-se aqui nesta obra o texto de Paulo H. Martins. 66 Numa visão naturalista radical, a abordagem seria radicalmente biocêntrica, oposta ao antropocentrismo e ao agora tecnocentrismo; não obstante, não precisamos cair em tal tipo de armadilha teórica para ver o grande valor do naturalismo. Uma correção hermenêutica contemporânea nos ajuda aqui, para não cair em arcaismo e retorno mítico ao passado. 67 Cf. Gracia, p. 324. “A ética não foi na Grécia propriamente moral, mas física...”. 134 realidade, se poderia traduzir por modo ou forma de vida”68. Ética (ethos), no fundo, é habitar a vida, co-habitar (com outrem), com o clima, ambiente, recursos; é criar hábitos saudáveis, porque mantém a vida. No naturalismo, portanto, a moral segue orientações da natureza, e requer inexoravelmente o corpo, a medicina e o contexto relacional-vital. Isto é algo realmente produtivo para pensar hoje, por exemplo, a necessidade de medicina mais “natural”, ou práticas do gênero, como alternativas sociais aos efeitos do cartesianismo objetificador e dicotomizado69. Se medicina e filosofia eram unidas em termos de uma ética e concepção de relação estreita entre natureza e cultura, hoje o devem ser em termos epistemológicos, no sentido de refletir como os modelos de produção de saber médico-clínico contêm problemas, e, então, podem e devem urgentemente ser melhorados na sua abordagem da saúde e da doença – fundamentalmente uma relação humana e de resgate da saúdeequilíbrio. Os títulos de dois livros de Galeno servem para exemplificar a fundamental relação entre filosofia e medicina: Quod animi mores corporis temperament sequantur (Os costumes morais derivam da compleição humoral do corpo) e Quod optimus medicus sit quoque philosophus, (Quão bom médico sendo também filósofo). Aliás, neste contexto, o filósofo é um tipo de médico. “O médico que por sua vez é filósofo é igual aos deuses” (Hipócrates). Diga-se ainda que, muito do pensamento holístico atual, supostamente devedor do pensamento oriental antigo, pode encontrar base nesta postura grega, e que se encontra, dentro de um caldo cultural enorme, na base espiritual de nosso ocidente. Por outro lado, outra será a vertente e o ethos dominante entre nós, como seguirá no império da mediação tecnológica e 68 Zubiri. Naturaleza, historia, Dios. Madri: Alianza, 1987, p. 248. 69 Há uma série delas, dentro das chamadas medicinas doces, ou bradas, alternativas, tradicionais, integrais, naturalistas, preventivas, limpas, e assim por diante. Surgem devido aos limites e descontroles da medicina cartesiana, e como demanda da sociedade por cuidados de saúde mais acessíveis, duradouros, autônomos, enfim, mais naturais. 135 tecnocêntrica total70, pautado em certo modelo de racionalidade moderna. 2. Visão racionalista moderna Numa fundamentação idealista/racionalista, que nasce junto com a revolução científica e a burguesia (os burgos...), o dever ético resultaria do conhecimento, da idéia, do que seja a realidade determinada, a verdade das coisas inferidas pelo sujeito; ao que se determina o modo de comportamento. A subjetividade racional autônoma começa a ser a detentora de poder, poder-fazer, poder-saber, poder-ter. Há a pretensão de que a razão autônoma alcance as leis da realidade, pois há uma continuidade entre elas; o real é racional, e o racional real. Verdade, aqui, lembra a tradição do adaequatio rei et intelectus, porém, vai muito além da pretensão antiga e medieval. Na tradição grega, desde Sócrates/Platão, resta claro que conhecer a verdade é referir-se ao Bem último, ao fim bom das coisas, e, portanto, agir bem. O papel da idéia em Platão é fundamental, assemelhando-se a algo que permanece para além da corrupção das coisas. É o cerne da tradição metafísica, buscando o sentido que está por trás da aparência, a idéia, o ideal, fundamentando todo agir ético. Não obstante, impera em toda concepção (epistemologia) do saber clássico e medieval ainda o papel da ordem natural, das coisas que são feitas fundamentalmente para ser admiradas, numa ciência mais contemplativa, teorética, observativa (theorein como contemplação...), com menos potência de dominação e menos objetificadora. É com o Renascimento e com a revolução científica, e o Iluminismo, que há a mudança paradigmática mais drástica com o papel do homem como interventor e criador de 70 Divido aqui entre uma mediação técnica sustentável e branda, necessária ao homo technicus que já somos, e uma mediação técnológica totalizante. Se a fronteira entre natural e artificial não é mais objetivável, não significa que não devamos fazer a opção do respeito aos processos naturais. Um exemplo é a quantidade de cesarianas desnecessárias e mercadológicas feitas no Brasil, com a pretensa segurança da técnica sobre o procedimento natural; ou ainda, a grande desvantagem da alimentação química sobre a natural. 136 uma segunda natureza. A ratio desemboca também numa razão antropocêntrica dominadora. O homem (europeu) começa a assenhorar-se da história, da natureza. “Isto quer dizer que o homem não é uma parte da natureza, mas está acima dela. Este algo tem um nome concreto: realidade moral. O homem não é um ‘ser natural’, mas um ‘ser moral’... Frente à heteronomia dos critérios naturalísticos clássicos, a autonomia da nova razão moral”71. O homem promulga a lei, tal como ele infere leis da natureza, instrumentos e meios para dominá-la. Dominar a natureza, em quase todos os aspectos, é parte da vida humana; outra coisa é a permissão para a objetificação, dilapidação e modelos políticos e de desenvolvimento insustentáveis e “desnaturados”. Com certeza, os mentores da revolução científica não imaginaram onde estariam se metendo seus continuadores. Ao contrário das perspectivas adaptativas naturalistas gregas, medievais e também dos povos orientais e inúmeras comunidades étnicas diferentes pelo mundo, a modernidade dá cada vez mais ênfase ao papel da individualidade, no sentido de apoderamento sobre a diferença, a estranheza, a ordem e caos natural. Não se trata apenas de valorizar a subjetividade nos seus múltiplos aspectos (emocionais, religiosos, artísticos, românticos etc.), mas no equipamento (ego transcendental, a maquinaria do conhecimento e razão pura...) do sujeito conhecedor, que vai legislar sobre o universo, inferir, modificar e criar leis de funcionamento do real. Cognitivamente, até Kant pelo menos, funciona o esquema tradicional de vetor R-> S-> P-> I-> L (Real->Sentidos->Percepção->Idéia->Linguagem), onde pretensamente a linguagem veicularia o que é o real captado. Neste sentido, a tradição idealista, na vertente moderna, desemboca num deslocamento da ontologia clássica, do ser das coisas pautado na viva ordem natural, da visão cosmológica adaptativa, para chegar a uma reconstrução do sentido pela postura invasiva e reconstrutora do sujeito racional. O que nos leva a pressupor a ligação inexorável entre as explorações mercantis, o surgimento dos burgos e burguesia, o Renascimento, a revolução científica e o grosso da filosofia moderna (em especial os matemáticos Descartes e Kant). Este último, em especial, decreta a separação radical entre conhecimento científico e ética (bem como os “saberes não-científicos”, como o fez notadamente Descartes). Em suma, a ética não pode mais encontrar seu fundamento e sentido último no que são as coisas em essência, dentro do 71 Gracia, p. 328. 137 cosmos ordenado e na aproximação nossa ao sentido preestabelecido dos (eco)sistemas da natureza. Fazer valer uma ética a partir daí seria cair no que Hume chama de falácia naturalista72, e um erro de achar que devemos imitar a ordem natural e seu comportamento. Porém, o que é erro lógico para alguns, pode apontar para preciosos saberes não metódicos para outros. Custear incondicionalmente a razão antropocêntrica (do sujeito autônomo e senhor) não significaria, em suma, que aquele pretensioso projeto da razão ocidental de superar a natureza, os deuses e a Deus está se concretizando? O que dizer da razão instrumental aí? O homem começa a ficar órfão de mãe e de pai, para, no século XX, chegar à paradoxal orfandade da própria identidade (quem somos? o homem está morto! quem o matou: Nietzsche, Freud, Foucault e o estruturalismo? Provavelmente a própria metafísica tornada tecnociência!). Daqui temos já pronto o clima para o alavancamento tanto da postura dicotômica de um Descartes quanto de uma epistemologia que, ao mesmo tempo em que demole a cosmologia tradicional e sua relação com o Bios, erige a mediação da maquinaria objetificadora como crivo científico oniabrangente mas reducionista. Por isso que nossa medicina e agricultura, ou a própria biologia, se tornou o que se tornou: cartesiana. 2.1. Sobre a revolução científica e o cartesianismo Comecemos vendo algo pontual das características de época e exigências do contexto de Descartes, para depois, ligado a isso, ver as características da abordagem do saber da revolução científica e do que se convencionou chamar de cartesianismo – que para além da filosofia de Descartes, é um modelo científico muito poderoso e que penetra fortemente na vida social e institucional nos últimos 200 anos. • Perda da segurança da escolástica e sua visão de mundo fechada. 72 “Falácia naturalista”, termo de Moore (Principia ethica, 1903), que nota que em todo sistema moral que conhecia, o autor começa estabelecendo o que são as coisas, seus sentidos, e passa subrepticiamente das proposições de existência às de dever: é, logo deve; se é assim (Deus, ordem natural, universo etc.), então você deve agir conforme, naturalmente... 138 • Início da revolução científica (Kepler, Copérnico, G. Bruno, Bacon, Galileu), fruto da revolução burguesa (e o mercado...). Fascínio com a maquinaria nascente e os autômatos mecânicos, instrumentos de medição e aumento de visão. • Pluralização de saberes; divergências e contradições no saber tradicional, teorias que levam a uma certa ansiedade teológica e exacerbação científica. • Renascimento e renovação na cultura, artes, da técnica, o neoclássico etc. • Necessidade de um ponto de partida seguro e provável para o conhecimento rigoroso, a verdade dominável, objetivável. • Início da colonização do mundo pela Europa, navegações exploratórias... • Surgimento da ênfase no indivíduo e na razão. Ego... Surgimento do sujeito para além da determinação coletiva. • Revalorização da matemática, geometria e surgimento de uma nova física material. • Surgimento dos primeiros modelos de máquinas e o papel da experimentação científica. Estes elementos histórico-culturais dão a base para a ruptura teórica e prática com todo o mundo anterior, medieval, que vivia os processos vitais, sociais e ambientais de modo ainda orgânico e inserido, abrindo-se agora espaço para uma verdadeira revolução em direção à civilização tecnológica. *** 139 Agora, sinteticamente, mapearemos as características da abordagem do saber no espírito da revolução científica e do que se convencionou chamar de cartesianismo – tratando-se do grande modelo epistemológico73 que guiará as ciências naturais e por vezes as humanas até hoje. Estudar o cartesianismo e os modelos de ciência vigente é o ponto mais importante e crucial para entender o sentido da questão ambiental e bioética, juntamente com as crises de paradigmas de todas as áreas do saber hoje. Características epistemológicas básicas da revolução científica em seus efeitos problemáticos (eis o cartesianismo): 1) Instituição do método como fundamental/oniabrangente (metodologismo). Apenas o que passa pela determinação formal e material de determinado método (chamado científico) poderá ser validado. Ele passa a contar mais do que o próprio resultado dado na vida prática. 2) Reducionismo, pelo método, no espectro/campos objetivados pela pesquisa; ênfase na abordagem de elementos isolados, fragmentados, analíticos, compartimentados. Então, temos a fragmentação do saber e das disciplinas até hoje presenciada; a isto acompanha a atomização analítica da abordagem, e o especialismo, as especialidades que aprofundam, mas perdem a amplitude e a complexidade. Trata-se de reduzir a elementos separados manipuláveis, a métodos químico-físicos restritos em especial. 3) Tal fragmentação e o papel diretivo do método gera a perda da dimensão da complexidade e da 73 Epistemologia é uma das palavras mais importantes hoje na ciência. Trata-se de reflexão de fundamentos dos modelos científicos vigentes, seus métodos, hipóteses, as teorias etc., como um tipo de filosofia da ciência. Toda área tem fundamentos epistemológicos, de onde parte as orientações de pesquisa, do seu objeto de estudo, dos modelos de validação do conhecimento considerado verdadeiro e científico. É algo como uma teoria crítica abrangente do conhecimento em nível de ciência e seus fundamentos (M.L. Pelizzoli). 140 interdependência de fatores, ou seja, a visão sistêmica e sintética, já que a visão imperante é analítica. O resultado do procedimento simples, no sentido de um conhecimento produtivo (know how) ou produto que “funciona”, lança a falsa idéia de sua unidirecionalidade e inevitabilidade. A complexidade exigiria cuidados procedimentais redobrados e um princípio de precaução que “atrasariam” o chamado progresso. 4) Abre-se caminho para um materialismo científico, na consideração meramente de elementos de ordem físicoquímica. A medicina como “engenharia de órgãos” ou a agricultura pautada na abordagem químico-física do solo (desvitalizado), ou a consideração da mente e da psique como processos apreensíveis materialmente (cerebrais), passíveis de “correção” neuroquímica, são alguns trágicos exemplos deste materialismo. Cabeça e corpo sem mente e coração. 5) Ênfase quantificadora muito mais do que qualificadora ou humanizadora na pesquisa. Portanto, o papel enfático da matemática e de uma matematização da realidade; daí o apelo exaustivo ao calculismo. Ela será a grande linguagem explicativa (mas não compreensiva) de mundo, já que este seria ordenado por leis mecânicas, físicomateriais, químicas. Há a obsessão da quantidade, hoje, “quantidade de inteligência”, “quantidade de gens”, “quantidade de átomos”. 6) Predomínio absolutista das ciências naturais e seu estatuto epistemológico-metodológico sobre todo o saber. Ocorre a exigência de um pretenso rigor às ciências humanas, devendo estas serem rebocadas cientificamente pelas ciências naturais. É como se essas tivessem chegado ao âmago do real tão sonhado pela metafísica, mas pela via da matéria, do laboratório. 7) Reforço do processo de secularização (exclusão gradual do poder religioso, e do papel da espiritualidade) e a conseqüente expulsão do elemento sagrado da vida. Junto disso, o desencantamento do mundo, pela perda da dimensão simbólica, mítica, tradições culturais inseridas no ethos e oikos. O Sol passa a ser hidrogênio e hélio; o céu, gases; a pessoa, células e gens; as árvores, madeira, etc. A religiosidade passa a ser vista como primitivismo. 8) Início da clara concepção do saber como poder (Bacon). Poder científico, então atômico, biotecnológico, bélico... 141 Separa saber e ética. E poder se liga ao empoderamente de um ego cogito ligado a um ego conquiro (eu conquisto, venço). 9) Mecanicismo como grande explicadora do real (metáfora do mundo e do corpo como uma máquina). O universo compõe-se de compostos particulares engenhados, tal como engrenagens. Por fim, o mundo passa a ser de e até das máquinas; estamos em meio a programas de computador (como no filme Matrix). Temos peças intercambiáveis a serem manipuladas de forma simples. 10) Crítica e perda da tradição. O cartesianismo revela um salto e futurismo tecnológico que deixa para trás, como sem valor para o saber, a tradição, tudo o que foi conquistado como saber não metódico e não considerado científico (a medicina e a agricultura são os exemplos fatais). A mediação tecnocêntrica total invade até a dimensão da intimidade amorosa. A tradição e as culturas tradicionais são solapadas pelo novo modelo industrial com conseqüências culturais “fantásticas”; que nos deixam órfãos de ambiente, cultura, corporalidade íntima e comunidade. 11) Isto gera a perda da dimensão orgânica e viva da Natureza (incluindo o homem e seu corpo). É como se a natureza e o corpo não operassem com vitalidade ecossistêmica, processual, interdependente, não tendo uma sabedoria própria, mas precisasse o tempo inteiro ser corrigida, sanada, limpa, assistida, combatida no mais das vezes. Como se o centro do problema fosse os gérmens, vírus, bactérias, fungos, insetos, animais desagradáveis e “defeitos”! E como se não soubéssemos mais ganhar filhos, prevenir, amar e criar sustentabilidade! É como se precisamos de drogas tecnológicas da felicidade, pois estaríamos dilacerados em partes mecânicas sem “alma” (interioridade). 12) Temos, junto disso, a perda da dimensão psicossomática, especialmente na medicina e nas ciências da saúde em geral. O corte radical entre mente e corpo, emoção e biologia, é um corte epistemológico com conseqüências desastrosas, revelado na desumanização da medicina, na incompreensão do papel e limites das emoções, no papel da mente pessoal e da mente social 142 como centro da vida pessoal. É grave: o cartesianismo não sabe lidar com dimensões psicológicas e existenciais. 13) Por fim, em suma, a objetificação das relações homem-natureza e então homem-homem, pautadas na relação de dominação total no vetor S  O (sujeitoobjeto). Na filosofia, a visão de predomínio da racionalidade dominadora sobre o “frio universo material”. Por conseguinte, a dicotomização (pensamento-matéria, corpo-alma, razão-emoção, eu-outro) é acentuada. Objetificação não é só o fato de produzir objetos, ou de nos separarmos da Natureza, mas o estabelecimento de padrões ou paradigmas que moldam relações instrumentais, dentro da perda da dimensão essencial (natural e social) do homem, a ponto de que homem e natureza devam ser constantemente modificados e “melhorados”. Como conceito sintetizador (junto deste ponto 13) deste modelo epistemológico, com assustadoras implicações cosmológicas, ontológicas, culturais e éticas, temos o que se chama de cartesianismo74, neste processo de objetificação das relações sócio-vitais e do saber instituído. Não se trata apenas da filosofia de Descartes em si, mas de uma abordagem científica do saber e de uma atitude nova diante da vida, com conseqüências em valores e relações que se tornaram insustentáveis. Aqui estão as bases onde se assentou o determinismo científico, como explicação totalitária de tudo o que é investigado, através de leis da natureza cientificamente instituídas. Isso é sinônimo de cientificismo, pela oniabrangência quase mitológica, mesmo que desmistificadora, do saber científico e seus detentores. Aqui teremos então a base para a Revolução Industrial. Torna-se evidente a perda da perspectiva orgânica, de interdependência de fatores ambientais e humanos, naturais e culturais; cai-se pois numa abordagem mecanicista que retira a ambigüidade, o mistério e a complexidade das realidades ou dos seres vivos. O que significa também dizer da perda da visão holística, do todo, da unidade e da participação da consciência no mundo. Não podemos deixar de citar o respaldo 74 Outro autor capital para compreender o que estamos falando é Edgar Morin, com seus tópicos críticos sobre a ciência moderna, descritos em A inteligência da complexidade. Petrópolis: Vozes, 2000. 143 que isso tudo dá ao positivismo, não apenas no sentido de A. Comte, mas como visão geral de dominação do mundo como fatos objetivos em evolução, a serem inventariados e à disposição da manipulação objetificadora. Noção que não deve faltar em tal contexto, enfatizada mais tarde, é a de progresso material ilimitado; ele vem contra o progresso espiritual e humano adaptativo dos tempos anteriores e de outras visões de mundo de culturas diversas. Torna-se evidente, portanto, a imperiosa necessidade de discutir modelos paradigmáticos do saber no sentido de inferir quais e como dominam nosso “habitar” (nossa ética, nossa bioética), para então corrigi-los e complementá-los, como é o caso emergente aqui. Parte da dificuldade cabe ao fato de que saberes sustentáveis, tradicionais (como na medicina oriental ou natural, agricultura orgânica, terapias alternativas etc.) são e não são científicos. São no sentido de que muito do seu valor já é visível ou inferido na metodologia científica, mesmo que não adotados por falta de tradição e interesse econômico; são porque empiricamente se constatam seus exemplares funcionamentos75. Não são porque, comumente, não entram dentro dos cânones de validação do estatuto das ciências naturais, cartesianos em especial, redutores76. Não obstante, a maior parte da dificuldade de modelos alternativos reside nos termos políticos-econômicos: quem financia as pesquisas e práticas médicas, agrícolas, administrativas e socioinstitucionais em geral, e a que lucros devem corresponder. 3. Em busca de um novo paradigma histórico Ninguém ou teoria alguma será a detentora do melhor diagnóstico e tratamento para a perda/crise/ruptura civilizatória e 75 Enquanto o potencial de cura de câncer por métodos hospitalares gira em torno de 50%, na probiótica/unibioética (uma das medicina naturais orientais cujo nome central é Jong Suk Yum) – vai a mais de 90%! 76 Há uma avalanche de procedimentos sustentáveis, regimes de saúde, alimentação e terapias de que a sociedade se vale cada vez mais, beneficiando-se, e à margem dos manuais e das instituições de saúde pautadas na alopatia e intervenções artificiais fragmentadas. 144 tecnocientífica que vivemos. Isso posto, trata-se de prosseguir na análise crítico-desconstrutiva do paradigma cartesiano no sentido de perceber como ele se materializa nas práticas institucionais e sociais, em especial dentro da economia de mercado pautado na tecnociência e no tratamento do homem como meio para e não como fim em si (o mesmo vale para a natureza). É, ao mesmo tempo, a dimensão de intervenção política, organização civil, com uma “ciência com consciência”, percebida em sua dimensão histórica, existencial, interpretativa, política, complexa, social, e humana acima de tudo. A ética da vida, a sustentabilidade socioambiental, bem como ética da alteridade e responsabilidade, tornam-se o centro da questão77. Numa perspectiva histórica, apontemos rapidamente como a questão atual da bioética, em seu advento abrangente, pode ser incluída dentro do surgimento de um novo paradigma, mesmo que em construção, sendo tecido por vezes de baixo para cima, em cada pequeno nível local78. Há, pois, um contexto históricofilosófico de emergência da grande questão da ecologia. Referese basicamente a rupturas culturais e de matriz de pensamento, desde a passagem do séc. XIX para o séc. XX, da modernidade à “pós-modernidade”. Como segue: • Rupturas epistêmicas científicas: a Física Quântica dissolvendo o conceito clássico de matéria, átomo e as posturas fragmentárias; a Teoria da Relatividade de Einstein, demolindo noções tradicionais de tempo, espaço e realidade física determinada e fixa; a Teoria dos Sistemas e a démarche da Biologia; as abordagens da Complexidade Epistêmica; o princípio da incerteza com Heisenberg; o papel do observador como parte da experiência, entre outros desafios das ciências que geram uma série de impasses teóricos e de abertura de novas visões 77 São os referenciais que nos guiam, inspirados em Lévinas, Dussel, Jonas, Habermas e outros, e, no veio mais epistemológico, a hermenêutica, teoria da complexidade e rede, da auto-organização, budismo e outros. 78 Em 1999 intitulei esta questão no livro chamado A emergência do paradigma ecológico (Petrópolis: Vozes), indicando “ecológico” como nome geral abrangente para uma nova postura do saber, da ética e da política frente aos novos tempos. 145 surpreendentes da teia da vida e suas conexões que ignoramos na visão cartesiana. • O advento da fenomenologia e da hermenêutica, rompendo com a relação sujeito-objeto linear e separativa, e mostrando o papel da consciência do sujeito conhecedor na interpretação e no mundo; a noção revolucionária e filosófica de tempo (Rosenzweig, Bergson, Heidegger, Lacan, Lévinas), para além do tempo cronológico. Igualmente, o advento da questão do corpo mais que objeto, do corpo orgânico e vivo não mais separado da mente. • A necessidade do procedimento interdisciplinar na ciência em geral. • O chamado pensamento holístico, promulgando a recuperação da integridade e integralidade da abordagem do ser humano e da natureza em seus vários aspectos. • O advento da Psicanálise é crucial, subvertendo o sujeito identitário e racionalista. A quebra da idéia de identidade egológica (subjetividade heróica, sujeito forte...), quebra que acompanha a desconstrução das identidades culturais etnocêntricas. Aí também o surgimento do estruturalismo e da etnologia, trazendo à tona outras modalidades socioculturais de vida. Descobre-se as outras culturas na sua diferença irredutível. • A arte contemporânea demonstra muito disso tudo com antecedência e com força estética, o espírito de um novo tempo, mesmo trazendo um certo tom do caos. • A retomada do Romantismo nos movimentos sociais (ecologia), na literatura, na filosofia, na arte, na perspectiva encantada e espiritual (o retorno do que foi reprimido mas está dentro de nós). • Junto disso, a crítica à tarefa prometeica e megalomaníaca da civilização técnica (exemplo: pensadores da Escola de Frankfurt, Hans Jonas, as correntes do humanismo, a bioética, os ecólogos...) • Guinada das ciências humanas para a questão do diálogo, da centralidade da ética e a crítica ao declínio da essência humana na crise da metafísica (em vista do triunfo da razão instrumental, do positivismo, e do liberalismo/capitalismo imperantes em modelos insustentáveis). • Em filosofia em especial, os grandes “mestres da suspeita”: Nietzsche, Marx e Freud. E mais atualmente, 146 Foucault, Habermas, Gadamer, Lévinas, e o latinoamericano Enrique Dussel, para citar os mais significativos. Por conseguinte, a bioética como ética surge dentro deste grande paradigma nascente, no contexto em que despontam significativos eventos tais como: • Movimentos pela paz. • Atrocidades da II Guerra Mundial e tribunal de Nuremberg (1947). • Direitos Humanos e movimentos de Direitos em geral; Direitos difusos e do consumidor. • Volta à natureza e a questão ecológica. • Desenvolvimento Sustentável. • Movimento Feminista. • Defesa da Diferença e Alteridade (vários níveis), dos excluídos e populações vulneráveis. • Renascimento da sabedoria Oriental Antiga no Ocidente (várias práticas: espirituais, filosófica, psicológicas, médicas, corporais). Retomada da Filosofia existencial, das religiões, como por exemplo a não-violência e compaixão no Budismo (Dalai Lama). • Movimentos culturais pontuais stricto sensu, de protesto. • Movimentos sindicais, de luta pela terra, de reformas, revoluções sociais etc. É diante disso que se conclui pela emergência do paradigma ecológico (oikos e logos, a racionalidade e sentido da casa, no amplo e interdependente sentido do termo, envolvendo vizinhança, pólis e o planeta, começando igualmente na mente humana). A Bioética não pode ser separada deste “espírito do tempo”, e tomada apenas como novo ramo da biologia ou mesmo da teoria ética. Suas implicações e ilações são revolucionárias na raiz da questão, mesmo sem armas. Em vista de demonstrar a amplitude do que se trata, basta citar os grandes âmbitos de compreensão da realidade/conhecimento envolvidos: Epistemologia: fica evidente que se trata, como diz o livro de Einstein, de Como vejo o mundo. Epistemologia diz da raiz e procedimentos que guiam determinado saber colocado em cada ciência particular. Um médico ao se formar, aprende uma série de técnicas profissionais da terapêutica; porém, no momento em que se pergunta pela validade dos procedimentos científicos de pesquisa que o guiam, ou pelas noções de ser humano, doença e saúde que adota, ou seus métodos, ou se o corpo humano é visto 147 como máquina, quando assim o faz está no coração das questões epistemológicas. São de alta ordem, pois estão correlacionadas aos paradigmas, concepções e pressupostos que guiam a relação com o mundo ditada pelo conhecimento; isso, por sua vez, sustenta valores determinados, bons ou ruins, e mais ou menos cartesianos. Ontologia: Se mexemos em como vejo o mundo e o saber, o mundo muda, eu mudo, o sentido que se dá à vida é alterado. A ontologia, na esteira da metafísica, diz aquilo que é, a essência por trás das aparências. A ciência tem por trás de si toda uma ontologia, muitas vezes impensada, relativa ao modo como concebe o real, a matéria, o corpo humano, os animais, os ecossistemas etc. Mudança ontológica é uma transformação em essência. Veja-se que, com a civilização técnica, a própria essência do homem está em jogo, a sua constituição ontológica e íntima; e não precisamos ser “essencialistas” metafísicos para ver que existem modos humanos essenciais de ser a serem resgatados. Ética: Naturalmente, tudo isto é essencialmente uma questão de relação com a vida, com o Outro em largo sentido. A ética é colada à epistemologia e a todos estes níveis elencados. Não significa que se eu tiver uma nova visão teórica de mundo vou agir diferentemente, até porque tal mudança passa por uma competência e conversão ética, trilhada no nível pessoal, cultural e dos processos de socialização e poder. Não obstante, a nova postura epistemológica ontológica está na base desta ética e igualmente é alimentada por ela, num sentido circular. Político: Com o ético vai junto o político, como administração da casa, da pólis, da vizinhança, do tempo, da sociedade civil organizada, do Estado e dos governos atrelados às políticas públicas, sustentáveis, equilibradas ecologicamente e justas socialmente. Aqui, a democracia não pode ser apenas formal, mas acompanhada com a cidadania real, que passou pela consciência educada, construindo a história com as mãos da sociabilidade emancipada. Cosmologia: uma nova cosmologia, da era ecológica, da visão planetária, já é exigida há muito tempo. A destruição cosmológica imposta pelo cartesianismo fragmentou a coesão de mundo tradicional, deixou-nos em “frios espaços infinitos da geometria e da matemática”, como dizia Pascal. Tal cosmologia recupera e recria visão holística, o cosmos dinâmico-harmônico e interdependente, onde os processos naturais são respeitados em sua auto-organização e vida própria, complexidade e 148 imprevisibilidade. Tal vai exigir um pacto do homem com o cosmos, de simbiose e sustentabilidade ecológica. Estética: Radicalmente, isso tudo envolve uma mudança de sensibilidade (aisthesis, sensação). É uma nova sensibilidade para com as coisas vivas, para a ética, para a natureza, para a pessoa humana, para o que significa a ciência que tem o ser humano não por meio para... mas por fim em si, e junto dos outros seres vivos. Envolve emoção, a disposição afetiva para ir além do próprio narcisismo e da fome de poder. Sensibilidade também diz de beleza, viver é buscar beleza, alegria e felicidade em pequenas coisas. Modos sustentáveis de consumo e cidadania (cidade). Por fim Falar de novo paradigma, portanto, pode ser apenas uma nova e ampla hipótese; e, aplicado ao “espírito do tempo”, corre o risco de crer em processos evolutivos, teleológicos e até escatológicos. Todavia, aqui, apresenta-se a possibilidade de transcender os interesses imediatos da nossa geração, bem como o nosso planejamento pessoal e social muitas vezes limitado e preso a padrões aceitos e a uma falsa “normalidade”. A normalidade pode, também, ser “burra” e defensiva, encerrar-se nos processos de alienação de consciência e de massificação. O papel daquele que conhece – desperta – passa novamente pelo sentido social e ético do que está ocorrendo e do que ele faz, um outro nome para a práxis, ou engajamento, provavelmente o início da era da cultura de paz79. Como exemplo, lanço algumas perguntas que fazem transcender na direção paradigmática apontada, no momento do encontro da bioética e da filosofia com as ciências da saúde e ambientais em particular, o que serve para pensar os limites do estatuto epistemológico das ciências naturais dominadas pelo cartesianismo, ao mesmo tempo em que convida a um diálogo mais profundo e interdisciplinar. • Qual o lugar para as relações simbólicas e naturalistas na cura hoje? 79 Para tudo isso cf. nossa obra Correntes da ética ambiental. Petrópolis: Vozes, 2003. Sobre o despertar de um novo tempo, veja-se os filmes: Waking Life, o excelente What the bleep do we know, e o clássico O ponto de mutação. 149 • Qual o lugar para os saberes tradicionais sustentáveis na medicina e na agricultura, por exemplo? • Qual o lugar da intuição, da experiência de vida e da sabedoria acumulada pelos povos? • Qual o lugar para as práticas tradicionais, seja oriental, seja ocidental? • Qual o lugar da psique na intervenção humana? • Qual o lugar e importância de uma medicina preventiva e branda? • Qual o lugar da doença como manifestação psicossomática e autodefesa do sujeito? Ou seja, qual o lugar do pathos verdadeiro? • Qual o lugar da psicologia e da psicanálise na relação com a medicina? • Qual o lugar da epistemologia contemporânea, sistêmica, crítica, da alteridade, da teoria no sentido amplo? Qual o lugar então da razão não-instrumental, do logos compreensivo-interpretativo do saber? • Enfim, qual o lugar da ética do humano e da responsabilidade aí, diante das demandas da economia de mercado? Em nosso entender, essas inquietantes interrogações revelam por si os limites do paradigma da ciência antes exposto, bem como sua ligação com o modelo econômico vigente e a amplitude das mazelas a reverter, bem como a grande tarefa que se coloca para a chamada bioética e a filosofia prática em geral, em direção ao novo projeto civilizacional humanizador e ecológico que se avizinha. A vida é inexorável. Bibliografia BEAUCHAMP T. & CHILDRESS J. Principles of biomedical ethics. 4. ed. Nova York: Oxford, 1994. CLOTET, Joaquim. Bioética, uma aproximação. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. DINIZ, Débora & GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002. GRACIA, Diego. Fundamentos de bioética. Madrid: Eudema, 1989. 150 FLICKINGER & NEUSER. Teorias de auto-organização. 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Explicando que preferiria ver a Merck transformada numa espécie de Wringley’s – fabricante e distribuidor de gomas de mascar –, Gadsden declarou que sonhava, havia muito tempo, produzir medicamentos destinados às pessoas saudáveis. Porque, assim, a Merck teria a possibilidade de “vender para todo mundo”. Três décadas depois, o sonho entusiasta de Gadsden tornou-se realidade. As estratégias de marketing das maiores empresas farmacêuticas almejam agora, e de maneira agressiva, as pessoas saudáveis. Os altos e baixos da vida diária tornaram-se problemas mentais. Queixas totalmente comuns são transformadas em síndromes de pânico. Pessoas normais são, cada vez mais, pessoas transformadas em doentes. Em meio a campanhas de promoção, a indústria farmacêutica – que 80 Tradução: Wanda Caldeira Brant ([email protected]). Matéria no Le Monde Diplomatique-Brasil, (16/06/2006 – www.diplo.uol.com.br). Agradecemos aos autores e ao pessoal da revista pela gentileza. ** Redator médico; investigador em políticas e cuidado em saúde, em indústria farmacêutica e negócios nesta área; ganhador de vários prêmios por reportagens em Saúde e Ciência; autor do livro Vendendo doenças: como a indústria farmacêutica transforma a todos em pacientes. Nation Books, 2005. *** Alain Wasmes é jornalista renomado internacionalmente. 152 movimenta cerca de 500 bilhões de dólares por ano – explora os nossos mais profundos medos da morte, da decadência física e da doença, mudando assim literalmente o que significa ser humano. Recompensados com toda razão quando salvam vidas humanas e reduzem os sofrimentos, os gigantes farmacêuticos não se contentam mais em vender para os doentes. Pela pura e simples razão de que, como bem sabe o mundo financeiro de Wall Street, dá muito lucro dizer às pessoas saudáveis que estão doentes. A fabricação das “síndromes” A maioria de habitantes dos países desenvolvidos desfruta de vidas longas, mais saudáveis e mais dinâmicas que as de seus ancestrais. Mas o rolo compressor das campanhas publicitárias, e das campanhas de sensibilização diretamente conduzidas, transforma as pessoas saudáveis preocupadas com a saúde em doentes preocupados. Problemas menores são descritos como muitas síndromes graves, de tal modo que a timidez torna-se um “problema de ansiedade social”, e a tensão pré-menstrual, uma doença mental denominada “problema disfórico pré-menstrual”. O simples fato de ser um sujeito “predisposto”, considerado capaz de desenvolver uma patologia, torna-se motivo para reforçar um novo doente e uma doença em si. O epicentro desse tipo de vendas situa-se nos Estados Unidos, abrigo de inúmeras multinacionais farmacêuticas. Com menos de 5% da população mundial, esse país já representa cerca de 50% do mercado de medicamentos. As despesas com a saúde continuam a subir mais do que em qualquer outro lugar do mundo. Cresceram quase 100% em seis anos – e isso não só porque os preços dos medicamentos registram altas drásticas, mas também porque os médicos começaram a prescrever cada vez mais. De seu escritório situado no centro de Manhattan, Vince Parry representa o que há de melhor no marketing mundial. Especialista em publicidade, ele se dedica agora a mais sofisticada forma de venda de medicamentos: dedica-se, junto com as empresas farmacêuticas, a criar novas doenças. Em um artigo impressionante intitulado “A arte de catalogar um estado de saúde”, Parry revelou recentemente os artifícios utilizados por essas empresas para “favorecer a criação” dos problemas médicos81. Às vezes, trata-se de um estado de saúde pouco 81 Ler, de Vince Parry, “The art of branding a condition”. Medical Marketing & Media. Londres, maio de 2003. 153 conhecido que ganha uma atenção renovada; às vezes, redefinese uma doença conhecida há muito tempo, dando-lhe um novo nome; e outras vezes cria-se, do nada, uma nova “disfunção”. Entre as preferidas de Parry encontram-se a disfunção erétil, o problema da falta de atenção entre os adultos e a síndrome disfórica pré-menstrual – uma síndrome tão controvertida, que os pesquisadores avaliam que nem existe. Médicos orientados por marqueteiros Com uma rara franqueza, Perry explica a maneira como as empresas farmacêuticas não só catalogam e definem seus produtos com sucesso, tais como o Prozac ou o Viagra, mas definem e catalogam também as condições que criam o mercado para esses medicamentos. Sob a liderança de marqueteiros da indústria farmacêutica, médicos especialistas e gurus como Perry sentam-se em volta de uma mesa para “criar novas idéias sobre doenças e estados de saúde”. O objetivo, diz ele, é fazer com que os clientes das empresas disponham, no mundo inteiro, “de uma nova maneira de pensar nessas coisas”. O objetivo é, sempre, estabelecer uma ligação entre o estado de saúde e o medicamento, de maneira a otimizar as vendas. Para muitos, a idéia segundo a qual as multinacionais do setor ajudam a criar novas doenças parecerá surpreendente, mas ela é moeda corrente no meio da indústria. Destinado a seus diretores, um relatório recente de Business Insight mostrou que a capacidade de “criar mercados de novas doenças” traduz-se em vendas que chegam a bilhões de dólares. Uma das estratégias de melhor resultado, segundo esse relatório, consiste em mudar a maneira como as pessoas vêem suas disfunções sem gravidade. Elas devem ser “convencidas” de que problemas até hoje aceitos no máximo como uma “indisposição” são “dignos de uma intervenção médica”. Comemorando o sucesso do desenvolvimento de mercados lucrativos ligados a novos problemas da saúde, o relatório revelou grande otimismo em relação ao futuro financeiro da indústria farmacêutica: “Os próximos anos evidenciarão, de maneira privilegiada, a criação de doenças patrocinadas pela empresa”. Dado o grande leque de disfunções possíveis, certamente é difícil traçar uma linha claramente definida entre as pessoas saudáveis e as doentes. As fronteiras que separam o “normal” do “anormal” são freqüentemente muito elásticas; elas podem variar drasticamente de um país para outro e evoluir ao longo do tempo. 154 Mas o que se vê nitidamente é que, quanto mais se amplia o campo da definição de uma patologia, mais essa última atinge doentes em potencial, e mais vasto é o mercado para os fabricantes de pílulas e de cápsulas. Em certas circunstâncias, os especialistas que dão as receitas são retribuídos pela indústria farmacêutica, cujo enriquecimento está ligado à forma como as prescrições de tratamentos forem feitas. Segundo esses especialistas, 90% dos norte-americanos idosos sofrem de um problema denominado “hipertensão arterial”; praticamente quase metade das norte-americanas são afetadas por uma disfunção sexual batizada FSD (disfunção sexual feminina); e mais de 40 milhões de norteamericanos deveriam ser acompanhados devido à sua taxa de colesterol alta. Com a ajuda dos meios de comunicação em busca de grandes manchetes, a última disfunção é constantemente anunciada como presente em grande parte da população: grave, contudo tratável, graças aos medicamentos ! As vias alternativas para compreender e tratar dos problemas de saúde, ou para reduzir o número estimado de doentes, são sempre relegadas ao último plano, para satisfazer uma promoção frenética de medicamentos. Quanto mais alienados, mais consumistas. A remuneração dos especialistas pela indústria não significa necessariamente tráfico de influências. Mas, aos olhos de um grande número de observadores, os médicos e a indústria farmacêutica mantêm laços extremamente estreitos. As definições das doenças são ampliadas, mas as causas dessas pretensas disfunções são, ao contrário, descritas da forma mais sumária possível. No universo desse tipo de marketing, um problema maior de saúde, tal como as doenças cardiovasculares, pode ser considerado pelo foco estreito da taxa de colesterol ou da tensão arterial de uma pessoa. A prevenção das fraturas da bacia em idosos confunde-se com a obsessão pela densidade óssea das mulheres de meia-idade com boa saúde. A tristeza pessoal resulta de um desequilíbrio químico da serotonina no cérebro! O fato de se concentrar em uma parte faz perder de vista as questões mais importantes, às vezes em prejuízo dos indivíduos e da comunidade. Por exemplo: se o objetivo é a melhora da saúde, alguns dos milhões investidos em caros medicamentos para baixar o colesterol em pessoas saudáveis podem ser utilizados, de modo mais eficaz, em campanhas contra o tabagismo, ou para promover a atividade física e melhorar o equilíbrio alimentar. 155 A venda de doenças é feita de acordo com várias técnicas de marketing, mas a mais difundida é a do medo. Para vender às mulheres o hormônio de reposição no período da menopausa, espalha-se o medo da crise cardíaca. Para vender aos pais a idéia segundo a qual a menor depressão requer um tratamento pesado, alardeia-se o suicídio de jovens. Para vender os medicamentos para baixar o colesterol, fala-se da morte prematura. E, no entanto, ironicamente, os próprios medicamentos que são objetos de publicidade exacerbada às vezes causam os problemas que deveriam evitar. O tratamento de reposição hormonal (THS) aumenta o risco de crise cardíaca entre as mulheres; os antidepressivos podem aumentar o risco de pensamento suicida entre os jovens. Pelo menos, um dos famosos medicamentos para baixar o colesterol foi retirado do mercado porque havia causado a morte de “pacientes”. Em um dos casos mais graves, o medicamento considerado bom para tratar problemas intestinais banais causou tamanha constipação que os pacientes morreram. No entanto, neste e em outros casos, as autoridades nacionais de regulação parecem mais interessadas em proteger os lucros das empresas farmacêuticas do que a saúde pública. A “medicalização” interesseira da vida A flexibilização da regulação da publicidade no final dos anos 1990, nos Estados Unidos, traduziu-se em um avanço sem precedentes do marketing farmacêutico dirigido a “toda e qualquer pessoa do mundo”. O público foi submetido, a partir de então, a uma média de dez ou mais mensagens publicitárias por dia. O lobby farmacêutico gostaria de impor o mesmo tipo de desregulamentação em outros lugares. Há mais de trinta anos, um livre pensador de nome Ivan 82 Illich deu o sinal de alerta, afirmando que a expansão do sistema médico estava prestes a “medicalizar” a própria vida, minando a capacidade de as pessoas enfrentarem a realidade do sofrimento e da morte, e transformando um enorme número de cidadãos comuns em doentes. Ele criticava o modelo médico, “que pretende ter autoridade sobre as pessoas que ainda não estão doentes, sobre as pessoas de quem não se pode racionalmente esperar a cura, sobre as pessoas para quem os remédios 82 Ivan Illich. Némésis médicale – L’expropriation de la santé. Paris: Seuil, 1975). On-line temos: http://www.ivanillich.org/Principal.htm 156 receitados pelos médicos se revelam no mínimo tão eficazes quanto os oferecidos pelos tios e tias”83. Mais recentemente, Lynn Payer, uma redatora médica, descreveu um processo que denominou “a venda de doenças”: ou seja, a maneira como os médicos e as empresas farmacêuticas ampliam sem necessidade as definições das doenças, de modo a receber mais pacientes e comercializar mais medicamentos84. Esses textos tornaram-se cada vez mais pertinentes, à medida que aumenta o rugido do marketing e que se consolidam as garras das multinacionais sobre o sistema de saúde85. 83 Cf. Philippe Pignarre. O que é o medicamento? São Paulo: Ed. 34, 1999. 84 Lynn Payer. Disease-Mongers: How Doctors, drug companies,and insurers are making you feel sick. Nova York: John Wiley & Sons, 2002. Leitura complementar: 1) A revista médica PLoS Medecine traz, em seu número de abril de 2006, um importante dossiê sobre “A produção de doenças” http://www.medicine.plosjournals.org/ 2) Na França, as revistas Pratiques (dirigida ao grande público) e Prescrire (destinada aos médicos) avaliam os medicamentos e trazem um olhar crítico sobre a definição das doenças. 3) Jörg Blech. Les inventeurs de maladies – Manouvres et manipulations de l’industrie pharmaceutique. Arles: Actes Sud, 2005. 4) Philippe Pignarre. Comment la dépression est devenue une épidémie. Paris: Hachette-Littérature, 2003 [Col. Pluriel]. 85 157 Anexo “Carta à filha de minha neta”* Um outro mundo é possível... “Querida Sofia. Agradeço à vida por ter esse dom esporádico de poder olhar pela fechadura do tempo e ver um pouco do futuro, a partir das coisas ocultas no presente. Só assim pude escrever esta carta para você, conseguindo ler o passado no presente e o futuro interligado a estes. Fiquei realmente admirado em poder sentir um pouco de você, filha de minha neta, através do que vocês têm explicado aí como visão quântica da mente, nessa teia vital onde as ligações ultrapassam a localidade fragmentada e o tempo linear. Para nós, em 2006, isso ainda era uma coisa misteriosa demais, ou de cientistas meio complicados, de filósofos e místicos, ou então das videntes que consultávamos de vez em quando, com certo ar de surpresa. Estávamos no início da era da mente e das neurociências e do novo paradigma, a grande virada de consciência, da (des)sociedade industrial de consumo ilimitado para o novo tempo. Vocês sabem aí bem o que foi a ‘era cartesiana’, e o modelo de biotecnologia e de biossocialização que se expandiu mas também foi sendo desmascarado; é um pouco a história de uma cidade que vira uma montanha de lixo. Que bom que há um novo renascimento cultural e a ciência sistêmica e sustentável da humanidade cresce de fato, incorporando grandes saberes e tradições do passado, indo além da mera aplicação de técnicas e interesses econômicos lamentáveis que penetraram na nossa vida e na nossa mente. Moça, talvez tudo seja como um castelo de areia: afinal de contas, o que é que não muda? Você sabe disso pelo estudo da história e principalmente de como se deu as décadas da crise – da qual vocês estão ainda se reerguendo. Mas nós que vivemos naquele período dos primeiros anos do novo século XXI, travamos uma luta dolorida, e tivemos infelizmente o desprazer de contribuir para muitas catástrofes em cada ação que fazíamos ou produto que usávamos e não tínhamos coragem de mudar; mas também, por outro lado, começamos a contribuir * Prof. Marcelo Pelizzoli ([email protected]). Inspirada no olhar viceral de minha filha de dois anos, Sofia, e em resposta à reveladora carta tecnocêntrica Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon – verdadeiro marco na história da utopia científica controladora e manipuladora da natureza no Ocidente. 158 para a visão ecológica e humanista, que você minha bis-neta está começando a viver. Como foi isso? É uma longa história. É a história de um paradigma ou padrão cheio de fascínios e perigos, e de um modo de olhar o mundo que estava contaminado com nossos medos e desejos, o olhar e o mundo contaminados, de modo que agíamos mental e emocionalmente enraizados numa cultura predominantemente destrutiva, que inclusive comprava a cada momento nossos melhores cérebros, e por vezes até a alma e o coração de alguns. O filme Matrix, que deixei para sua avó, mostra um pouco dessa metáfora, de como nós fomos ficando cegos de tanto brilho, de tanto fascínio com as coisas que iam sendo transformadas velozmente, uma avalanche de consumos e meios artificiais, de mediações que nos impediam cada vez mais de viver o presente. Querida, nós ficamos cegos e obsessivos, ansiosos e deprimidos e solitários, e com uma produção vertiginosa de desejos, com a idéia de que deveríamos a cada momento renovar, trocar de produto, descartar e corrigir a natureza humana e não humana. Era a chamada cultura de progresso material ilimitado e tecnocentrismo, cultura do melhorismo artificial, os primeiros passos da biotecnologia cartesiana, quando tentamos decifrar (e até eliminar !) todo poder e auto-organização da natureza e do corpo, e ter um controle matemático-físico sobre a própria mente, sobre o nosso próprio inconsciente, aquilo que nos resguarda como seres humanos, ambíguos e abertos, complexos no entendimento mas simples para viver a vida. Graças a muita luta e sofrimento, a grandes choques que algumas pessoas desta geração tiveram que assumir já no século XX, vocês estão conseguindo aí contornar esse padrão, e unir o passado com técnicas sustentáveis cientificamente, politicamente, economicamente, ou seja, o social e o ambiental. E acho incrível como vocês incorporaram o saber espiritual para além de qualquer religião; a verdadeira ciência da vida não pode mesmo se afastar disso. Minha querida, apesar de ter entrado na humanidade na época do século XVII, a visão materialista e reducionista e fragmentária, se cristalizou propriamente apenas no século XIX e XX. Havia um clima de positivismo, apoiado numa pretensa objetividade dos fatos – reforçado pelas técnicas que começavam a funcionar – e isso impressiona não é? – fatos e objetos isolados que poderiam ser manipuláveis até a essência (átomo, molécula, gen...), como peças de um automóvel. Ao mesmo tempo, um clima de mal-estar, que nos levava também a um niilismo, a uma 159 descrença na vida e no ser humano. Você deve estar rindo disso, mas era assim que funcionava moça! O corpo era visto apenas por partes e de modo químico-fisico-experimental, um pouco mais que uma máquina ou aglomerado de células e elementos químicos que deveriam ser consertados e trocados. As pessoas olhavam para os objetos como se eles não dependessem do seu olhar, da sua mente. Fomos perdendo a idéia de cosmos e natureza, e a crença na vida natural. Os nossos filmes de futuro tinham um imaginário futurístico-tecnológico árido, seco, calculado e caótico ao mesmo tempo, mas profundamente mitológico, e onde não havia mais natureza humana ambígua e mundana, animal, ou espiritual, ou mesmo a natureza natural. Chegávamos ao absurdo de pensar em colonizar outros planetas porque o nosso poderia se tornar inviável! Imagine você vivendo dentro de uma bolha artificial como um ET? Nossas angústias existenciais foram aumentando tanto – na medida do próprio fascínio tecnológico e transformação das cidades em consumo – tanto que começamos a imaginar seres vindo à Terra, ou que havia outros planetas com vida e que fariam algum contato. Inclusive lançamos foguetes contendo arte, feitos e obras humanas para que outros seres pudessem achar. Que louca e nostálgica angústia de evasão, não é mesmo minha filha? Parece que estávamos prevendo os momentos de catástrofes que estavam acontecendo aos poucos. Mas, minha amada, nunca perdemos a fé no amor; amei você – acredite – nos olhos e no sorriso de sua avó, minha filha, que corria livre e espontânea sem saber o mundo que a esperava, sem saber quanta dor pairava no ar, quanto mentira e covardia, quanta falta de sensibilidade e quanta falta de inteligência em nome da crença nas máquinas e no mercado. Ela cutucava meu coração a cada palpitação, pois as crianças todas reluziam no brilho de seus olhos; a extrema fragilidade que vi em minha filha me evocava a nossa fragilidade, seres humanos e não-humanos, e vi como somos facilmente fascinados e vencidos pelo comodismo, pela auto-defesa, pela inércia e pela preguiça. Via ali o sofrimento das crianças do meu país; via ali sonhos lindos que mais tarde iriam se despedaçar em nome da competitividade, em nome da grande desordem da ordem burguesa vigente, em nome dos interesses de poucos e de um estilo de vida destrutivo, que “segurava as pontas” de um verdadeiro apartheid social. O olhar de Sofia me consumia por dentro, pois quanto mais eu estudava e pesquisava, mais se abriam coisas assustadoras na minha frente, e se tornava muito difícil convencer as pessoas e 160 lutar dentro da Matrix, ou prisão, pois às vezes, era melhor fazer de conta que não enxergamos, e então dormir, dormir e... morrer aos poucos. Mas o choro, os gestos frágeis e tão humanos das crianças, como o olhar de Sofia, um apelo silencioso, uma extrema fraqueza na força humana, uma alegria na tristeza e uma confiança sincera e pueril no olhar e na palavra do pai e da mãe, e de cada pessoa que encontrava, tudo isso me fazia arder o coração. Quando eu a abraçava, sentia o palpitar de seu coração, e num sublime momento de êxtase e dor, eu sentia como se o seu sangue estivesse em todo lugar como a água do planeta, e como se os movimentos de sua respiração fossem todo o ar que nos envolve e penetra, e como se o calor de seu corpo fosse o calor de todas as pessoas, e um pouquinho do Sol dentro da gente. Sofia, tive que presenciar muita gente passando frio ou torrando ao sol, pedindo esmolas ou vendendo pequenas coisas, enquanto “os de cima” andavam em carros importados com ar, se protegiam em apartamentos com vigias, cachorros, câmeras e grades sem fim, e armas; e iam do trabalho para casa e nos shoppings fechados no fim de semana: mesmo assim, eles não agüentavam muito, e às vezes iam a um parque aberto ou a uma praia com segurança semi-privada. Tive que presenciar o tempo de acumulação de dinheiro de uma forma absurda e completamente anti-ética, mas ao mesmo tempo tudo considerado legal! Acompanhei as privatizações e a desmontagem do poder regulador dos Estados, e como a Lei da produção e do mercado acirraram todas as contradições e invadiram quase todos os espaços da natureza e do corpo, mercantilizando gens, ar, água, terras, idéias, e tudo o que se possa imaginar. E vi ainda como tudo isso levou à catástrofe, da violência social, da poluição química em todos os níveis, do uso da doença para lucrar e de medicações não para ir às causas e à cura, e quanto menos a prevenção, mas para manter as pessoas sempre com doenças. Mas nunca duvidei de que: onde surgem grandes doenças, surgem grandes curadores! Eis você aí! Eis meus colegas de luta aqui, muitos deles sendo considerados radicais. Viva os radicais filha!, pois eles têm raiz, eles sustentaram a seiva da vida futura, eles pensaram além de si mesmos, de seus corpos e egos e assumiram a dor e a energia do mundo e da verdadeira evolução. Infelizmente, vi uma medicina baseada na evidência dos lucros farmacêuticos e de equipamentos e suprimentos, buscando desacreditar toda sabedoria e todas as práticas naturais e medicinas tradicionais, em nome de uma falsa cientificidade. 161 Buscando tirar a autonomia de saúde que as pessoas e comunidades sempre tiveram o poder de desenvolver; buscando ver o corpo fragmentariamente, e mais absurdo ainda: menosprezando causalidades emocionais e psíquicas – mentais – das doenças. Vi o crescimento dos gastos e pesquisas com grandes doenças, que seriam curadas geneticamente, e que depois, você sabe, desembocaria num grande golpe econômico que privilegiaria alguns, uma verdadeira eugenia e algenia, e que para muitos traria efeitos teratogênicos, e engodos, em nome do lucro, pois logo em seguida começamos a lidar cientificamente com a complexidade e interdependência de fatores, e a visão começou a mudar e pudemos recuperar conjuntamente os saberes socioecológicos e a visão integral. Cheguei a ver coisas fantásticas na saúde, que me marcaram muito, como estudar e conviver com medicinas e práticas tradicionais, e mesmo orientais, onde as pessoas eram tratadas como seres humanos integrais, onde se evitava e curava doenças ditas incuráveis, mas ao mesmo tempo a luta com um modelo biomédico que se armava contra tudo o que lhe ameaçava seu paradigma, suas técnicas e seus imensos capitais. Vi países serem enforcados economicamente por causa da medicina da doença e por condições de saneamento e ambientais precárias. Vi as universidades terem suas pesquisas quase todas financiadas por grandes grupos econômicos de falsa ética, e reforçar uma tecnociência que visava a produção contínua de consumo e mediações artificiais infindáveis e não os modos de vida simples e sustentáveis; vi laboratórios financiando pesquisadores, e invadirem os consultórios médicos com fármacos novos, manuais, presentes e congressos, onde pensamentos diferentes, alternativos ou mesmo tradicionais custavam muito a penetrar. Era a época da imagem e do marketing. Você não imagina, mas havia uma infinidade de estratégias disso, acadêmicas ou fora da academia; havia uma avalanche de imagens e de simulacros tidos como reais, de modo que não tínhamos mais tempo para pensar, para sentar, meditar, para sentir o pulsar da vida e conversar, e até nos relacionarmos como pessoas. O que mais me entristecia nesse momento? A hipocrisia; é ver como os discursos feitos em nome da moral ou mesmo da bioética eram, na maioria das vezes, inócuos, moralistas e faltavam proposições práticas efetivas, que fossem além das formações disciplinares e partidas, ou dos hábitos perniciosos da Matrix e do modelo de consumo da elite. Não conheciam 162 realmente a própria contaminação do seu agir, ou se conheciam não conseguiam dar passos significativos adiante, mudar o olhar e as práticas, ver de onde eles mesmos se erguiam e levantavam a voz, ver o próprio niilismo. Os melhoramentos empregados eram na maioria dos casos uma exigência de certificação e justificação aos novos procedimentos e invasões do mundo da vida e da cultura local com o poder das máfias mercantis. No início do século XX, acredite, estávamos num tempo ainda de grande conservadorismo e preconceitos, onde os desprovidos, os semterra, os transviados, os loucos, os radicais, os rebeldes, os questionadores, os desordeiros, os esquerdistas, os alternativos, tudo isso era sinônimo de ameaça; onde tudo era rotulado e assim colocado dentro de uma caixinha ou expulso da chamada vida econômica e do normal. Tempo de normose, a patologia sutil e gigantesca da falsa normalidade e ordem. Querida menina, hoje percebo um pouco melhor o quanto a nossa corrida, não apenas a armamentista, mercadológica ou de competitividade, mas a nossa corrida do dia-a-dia não tinha um rumo muito claro. É como o conto budista do cavalo corredor. “Um homem montado num cavalo passa correndo por outros e estes perguntam ao homem: para onde vai com tanta pressa, desse jeito louco? E o cavaleiro responde: por favor, pergunte ao cavalo!” É tragicômico, não é mesmo? Percebi o quanto se corre de si mesmo, o quanto se foge para mundos imaginários que se materializam em técnicas sobre fantasias, os chamados objetos de desejo, e o quanto isso mesmo nos evita de estar presente em cada momento e em viver a vida com intensidade. Filha, não vivemos o presente, parece que estamos passando por ele; parece que precisamos passar por um grande choque ou parada forçada, como um ataque cardíaco, ou um câncer maligno, um aviso da natureza humana e do planeta, para que a gente pare, simplesmente pare, e faça cada coisa em seu tempo, e esteja presente em tudo, e veja até que ponto estamos presos e dormentes, até que ponto somos marionetes de demandas que não são saudáveis mental e biologicamente. Eu não falo de esperança Sofia, comecei a olhar para mim e para o presente, como me concebo como ser humano e como concebo o outro. O agora é o único que tenho, é o único que conta, sei que vocês dependem dele, do que acontece em cada segundo de nossa vida aqui. Filha, comecei a recusar aos poucos a servir esse Senhor maldito. Não comprava mais venenos químicos, não comprava mais transgênicos, gordura trans; não comprava mais açúcar 163 branqueado com clorados ou sulforados, não comprava mais excessos de embalagens; não comprava mais doces químicos e porcarias, como coca-cola, ou margarinas e todo um monte de merda legitimada pelos órgãos de proteção do consumidor idiotizado e dos lucros bestiais. Em todo caso, sempre fui feliz e nunca isso me escravizou, e encontrei nas comidas e coisas simples uma diversidade enorme e prazeirosa, até numa boa bebida nordestina. Aprendi a fazer pão integral em casa, a comer coisas cruas cada vez mais, a comprar na feira ecológica e dos sem-terra, a economizar água e energia de todo tipo. Aprendi a comer de modo a evitar doenças; acima de tudo, comecei a aprender a meditar e um mundo novo se abriu para mim, e estava ali, bem dentro de mim e no olhar das pessoas que, no fundo, são todas muito preciosas. E o que fazia não era só para minha sobrevivência e qualidade de vida de meus filhos, era a real efetivação de uma nova sociedade, a qual sobreviveu graças a isso e outras coisas mais. Comecei a me organizar em ONGs e na política local. Aprendi que poderia cultivar amor cada vez mais me abrindo aos outros e diferentes, que poderia ceder lugar, que poderia ser mais generoso e dar mais, que poderia ter respeito profundo pelos seres humanos e não-humanos; que poderia usar bem menos drogas químicas; que poderia sofrer sem culpa e sentir dor pois sou um ser humano como qualquer outro. Aprendi que poderia andar mais a pé, respirar melhor, ajudar os necessitados, dar de meu tempo a minha filha e às pessoas e não só ao meu trabalho formal; aprendi a duvidar de tudo, tudo mesmo, e a me sentir de dentro para fora, e ser senhor das minhas escolhas. Aprendi a pedir desculpas e dizer que também sou fraco, mas cada vez mais ser sincero e dizer o que penso. Um grande ensinamento para mim foi que, apesar de ir me encaminhando para a raiz das coisas, vi que seria uma grande ilusão me considerar um milímetro que seja a mais ou melhor que os outros. Todos temos o mesmo valor, apesar das diferenças, todos temos e somos deuses dentro da gente; todos temos o diamante que é nossa mente-coração. E apesar disso, somos muito diferentes. Viva a diversidade ! Viva o amor. É ele no fundo que a tudo dissolve e ao mesmo tempo nos mantém e motiva...” Marcelo Pelizzolli
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