Barthes Mitologias
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O FRAGMENTO BARTHESIANO: Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dúbia poesia. André Gonçalves Lopes Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Orientador: Prof. Dr. Antônio José Jardim e Castro Revisora: Verônica Bareicha Rio de Janeiro Dezembro de 2010. ANDRÉ GONÇALVES LOPES O FRAGMENTO BARTHESIANO: Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dúbia poesia. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Orientador: Prof. Dr. Antônio José Jardim e Castro Revisora: Verônica Bareicha Rio de Janeiro Dezembro de 2010 Lopes, André Gonçalves. L864f O Fragmento Barthesiano. Quando a inquietante filosofia procura respaldo na dúbia poesia. / André Gonçalves Lopes. – Rio de Janeiro: UFRJ/2010. 366f. Orientador: Antonio José Jardim e Castro Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. Departamento de Ciência da Literatura, 2010. Bibliografia: 245-261 1.Barthes, Roland, 1915-1980 - Literatura Comparada Francesa e Brasileira. 2. Fotografia. 3.Escritura Curta. 4. Diário. I. Jardim, Antonio (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras/ Pós- Graduação em Ciência da Literatura. III. Título. O fragmento Barthesiano. IV Título: Quando a inquietante filosofia procura respaldo na dúbia poesia. CDD 869.37 O FRAGMENTO BARTHESIANO Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dúbia poesia. André Gonçalves Lopes Orientador: Prof. Doutor Antônio José Jardim e Castro Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro, UFRJ. _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. SUPLENTES: _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. Rio de Janeiro Dezembro de 2010 Ao Professor Doutor Antônio José Jardim e Castro, pela orientação dedicada e minuciosa; Ao Professor Doutor Alberto Pucheu, pelos valorosos conselhos na área de filosofia. Ao Professor Doutor Luís Alberto Nogueira Alves, pelo generoso entusiasmo por meu trabalho; À Professora Doutora Márcia Atalla Pietro Luongo, pelas orientações feitas em um trabalho inicial para esta tese. Agradeço. A Maria Cândida, minha saudosa avó materna, pelo seu carinho incondicional e compreensão infinita, presto este insufici ente tributo. A Maria Luisa, minha mãe, pala ajuda financeira e apoio emocional nas horas mais difíceis desta jornada, dentro e fora desta tese, declaro-me mais do que devedor. Tu dirás que repito Algo que disse antes. Di-lo-ei de novo. Devo dizê-lo de novo? Para chegares aí, Para chegares onde estás, para saíres de onde não estás, Deves seguir por um caminho em que o êxtase não medra. Para chegares ao que não sabes, Deves seguir por um caminho que é o caminho da ignorância. Para possuíres o que não possuis, Deves seguir pelo caminho do despojamento. Para chegares ao que não és deves cruzar pelo caminho em que não és. E o que não sabes é apenas o que não sabes E o que possuis é o que não possuis E onde estás é onde não estás. T. S. ELIOT [East Coker, - No. 2 - III of Four Quartets] – parafraseando a instrução espiritual de SAN JUAN DE LA CRUZ - SÉC. XVI RESUMO LOPES, André Gonçalves. O fragmento barthesiano: Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dúbia poesia. Orientador Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro. UFRJ/ FL; 2010. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura). Este trabalho, tripartido, trata da Fotografia a partir da visão de Roland Barthes transpassando-a com o conhecimento de outros do ramo da foto-edição; Escritura Curta e sua eficiente maneira de comunicar e curiosa forma de fazer Arte; terminando com Diário assunto muito usado na prática e ainda assim pouco pesquisado em teoria. Como objetivo secundário, pretendemos a partir do corpus observados e teoria estudada criar outras teorias, para que tais temas nunca terminem de dizer. Palavras-chave: fragmento, Roland Barthes, escritura curta, fotografia, diário. ABSTRACT LOPES, André Gonçalves. The fragment Barthes: When the disturbing philosophy for a new language into the dubious poetry. Thesis advisor Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro. UFRJ/ FL; 2010. Thesis (Ph.D. in Science Writing) This work, tripartite, the photograph comes from the vision of Roland Barthes running through it with the knowledge of the other branch of photo-editing; Short Scripture and its efficient way of communicating and curious way of making art, Diary ending with issue widely used in pract ice and still little researched in theory. As a secondary objective, we want from the body observed and studied theory create other theories, so that such issues never end said. Key words: fragment, Roland Barthes, writing short, photography, diary. SUMÁRIO 1. Introdução 10 2. Sobre o nome e alegorias 2.1. Assim nasce um nome 22 2.2. A importância das Alegorias 24 2.3 O porquê dessa estratégia 36 3. Procurando a palavra fragmento em Câmara clara 42 4. Escritura curta 4.1. A primeira vez que Barthes usou a palavra “fragmento” 71 4.2. Escrevendo fragmentos usando fragmentos 88 4.3. O prazer do texto 102 4.4 Mitologias - “Escrever para gerar polêmicas móveis e não verdades estáticas” 119 5. Diário 5.1. Quando a Escritura Curta encontra o Diário: Roland Barthes por Roland Barthes 144 5.2. O império dos Signos 174 5.3. Incidentes – Diário (Fragmento) coletivo de fragmentos 194 6. Conclusão 6.1. “Quando a inquietante Filosofia...” 200 6.2. “... procura uma nova linguagem dentro da dúbia poesia.” 234 7. Referências bibliográficas 253 7.1. Referência por meio eletrônico 258 7.2 BIBLIOGRAFIA de Roland Barthes publicada no Brasil 260 8. Bibliografia Barthes e fragmentos contendo fragmento (ANEXOS) 262 10 1. INTRODUÇÃO Na capa do livro O óbvio e o obtuso (Editora Nova Fronteira - BARTHES; 1990) encontramos um mosaico arcimboldesco: um todo (rosto) feito de outros todos (verduras, legumes, vegetais e frutas) ou inteiros convertidos em fragmentos, para unidos formar um único inteiro. Na escultura Vitória de Samotrácia falta cabeça e braços à deusa Atena e ainda assim não falta nada. Em M. C. Escher a admiração de suas obras sem os detalhes é pura ilusão, com estes é puro deslumbramento: estamos nos referindo ao Período das Metamorfoses 1937-1945 e ao Período das gravuras subordinadas à perspectiva 1946-1956. Em Adão de Michelangelo, por Lewis Lavoie 1 (figura abaixo) os meios e os fins se fundem. E para entender melhor estes fenômenos: fragmentos que se tornam um todo e um todo que não faltam fragmentos; um todo que é melhor visto em fragmentos e que em fragmentos é melhor oculto um todo; escolhemos Barthes: pesquisador e produtor de fragmentos. 1 Disponível em: http://www.muralmosaic.com/murals.html. Faces humanity series, acessado em 30/07/2010. 11 A primeira proposta desenvolvida por nós, para esta tese, se baseava em: entender a Literatura, e, criar Literatura a partir de como Roland Barthes usa/entende a palavra Fragmento. Nasceu da inquietação com a própria palavra Fragmento. Inicialmente na obra de Barthes: um trabalho prévio de leitura realizado em alguns livros deste autor para nossa dissertação de mestrado revelou uma insistência, uma repetição que não nos parecia gratuita, daí resolvemos, para nossa tese de doutorado, pesquisar de forma mais profunda a palavra, o assunto: fragmento. E o ponto de partida foi a localização da palavra “fragmento” tanto a nível paradigmático (maiúscula e/ou minúscula) como sintagmático (relação com palavras vizinhas) e desde já, antes de prosseguir com o trabalho, salientamos que a palavra fragmento será escrita, por vezes, com letra minúscula quando significar tão somente apenas o que se encontra nos dicionários e com letra maiúscula quando significar algo além de simples notação lexical e penetrar no mundo das ideias, portanto, merecendo a postura de nome próprio. Na obra de Roland Barthes há palavras que merecem uma atenção especial: Ideologia, estereótipo, sujeito, história, lógica, filosofia, psicologia, existencialismo, marxismo, estruturalismo, metalinguagem, mimesis, anamneses, hai-kai, e a própria palavra literatura; além de alguns pares de palavras “naturalmente opostas”: Razão-Desrazão, verso e reverso, marcado / não marcado, gosto / não gosto; além de outros pares opostos por algum motivo: amor e morte, criadores e combinadores, Campo e Cidade, verdade e validade, escritores e escreventes, escrita e escritura 2 ; e demais pares feitos pela diferença da primeira letra entre maiúscula e minúscula: Livro e livro, Natureza e natureza, Diário e diário, Nome e nome, Poesia e poesia, e nossa palavra chave: Fragmento e fragmento. “Meu discurso contém muitas noções aos pares 2 Em francês só existe uma palavra para designar a representação da fala ou do pensamento: écriture. Porém, temos em Português duas palavras: escrita e escritura. “Toda escritura é, portanto uma escrita; mas nem toda escrita é uma escritura (AULA: 75)” e como analogia propomos: Todo escritor é uma pessoa; mas nem toda pessoa é um escritor. 12 (denotação / conotação, legível / escriptível, escritor / escrevente)”. (BARTHES, 1977, p. 100). Isto não são todos os casos, somente alguns como exemplo. Essa maneira de amplificar o sentido denotativo, utilizando a grafia maiúscula, é algo muito comum em Roland Barthes, uso este que será copiado nesta tese. Depois, por ela mesma (a palavra fragmento): uma vez que a Física Moderna está constantemente dividindo o indivisível tudo no mundo pode ser decomposto em fragmentos, este fato por si só não é o inquietante, mas as consequências da fragmentação. Diante de um todo se retira um fragmento, que raramente é feito de forma aleatória, e por conta desta ação estamos diante de duas: primeira, um todo que não é mais um todo, que por falta se torna um novo todo; segunda, seu fragmento separado é agora, ele, um todo até ser devolvido ao mesmo lugar. Não estamos propondo aqui um vandalismo sobre obras, mas a criação mental de um gabarito que possa ser montado e desmontado para com ele testar novas formas de produção e quiçá entender o próprio processo criativo. Talvez a tese O Fragmento Barthesiano seja pequena demais para algo tão grande, e sem fim, mas ao menos ela iniciará a busca para tal. E por acreditarmos que a chegada não é o mais importante, mas percorrer o caminho, sim, prosseguimos. Mesmo criando um limitador à palavra fragmento, acrescentando o substantivo próprio Barthes acrescido do sufixo de proveniência “-iano” (diz-se de, relativo a), iremos entrar em outras áreas além da literatura como fotografia e religião, não de forma muito abrangente nem conclusiva, antes, de forma exploratória e indagadora. Mas como esta proposta: a localização da palavra Fragmento tanto a nível paradigmático (maiúscula e/ou minúscula) como sintagmático (relação com palavras vizinhas) se mostrou mais expositivo que explicativo, resolvemos dedicar nossa atenção à questão do Fragmento em si na obra de Barthes, pois tamanha reincidência sobre tal palavra (fragmento) e capítulos dedicados ao assunto não nos pareceram acidentais, outrossim propositais; então resolvemos buscar qual seu 13 propósito. No entanto, por acreditarmos haver muitas informações úteis na proposta anterior, na verdade um corpus: onde encontramos a palavra “fragmento” e se escrita com maiúscula ou minúscula e por que, não a descartaremos de todo. Assim como não estará de fora de nossa pesquisa algumas palavras que remetem a seu significado (a palavra fragmento); não que esta tese vá trabalhar/pesquisar todos os seus sinônimos, mas para que não haja “perdas” alguns serão trabalhados, pois estamos falando dos que ratificam a importância de tal palavra dentro do pensamento barthesiano e/ou a explicam, não raro, demonstrando, exemplo: “[...] de modo a tornar vivo um pedaço do corpo, uma lasca de homem, conservando sua vocação de „parte‟;” (BARTHES, 2007, pág. 78, grifo nosso), palavras que não são exatamente seu sinônimo, mas impossível não ver nelas uma cumplicidade com o nosso tema: fragmento. Mas o que seria a questão do Fragmento em si na obra de Barthes? Por se tratar de uma tese, muito vai ser lido e escrito sobre Barthes e sua obra, e sempre tivemos em mente duas preocupações: 1) Não aceitaríamos escrever um “Resumão de Barthes” e apresentá-lo como Tese. 2) É preciso coragem para decidir o que é, e o que não é Escrita de Fragmento em Barthes, pois uma vez que sua obra é: 2.1) Farta (ou polivalente), como, em nome de Deus, se separa o “joio do trigo” com um escritor do porte de Barthes? Como colocar no mesmo saco “<<Souk>> de Marrakech: rosas campestres no meio dos montes” – menor fragmento encontrado no livro Incidentes (1987- uma linha e meia) com “Poujade e os intelectuais” – maior fragmento do livro Mitologias (1972 - com oito páginas)? E mais, como comparar o livro Fragmentos de um discurso amoroso (2000), livro visivelmente de Escrita Fragmento com Crítica e verdade (1982), sendo este último possuidor de dezesseis incursões a palavra fragmento. Colunas paradigmáticas só precisam de 1 (uma) interseção (a/há explicação) para serem identificadas/entendidas, mas nossa proposta de tese não 14 é evidenciar, separar colunas por uma evidencia superficial do tipo “cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas palavras vizinhas: a obra é feita somente de páginas avulsas” (BARTHES, 1977, p. 102) e menos ainda juntá-las apenas pelo nome Barthes (ou Barthesiano), mas buscar entendê-las como quem quer entender o fragmento: “Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (BARTHES, 1977, p. 100), pois foi sobre a ideia e não sobre a forma que escolhemos trabalhar as obras de Barthes. Não que ele não fale sobre forma, e fala, mas por falar dela (a forma) de maneira includente e não excludente. “O índice de um texto não é somente um instrumento de referência; ele próprio é um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que há de delirante (de interrompido) na razão das frases” (Barthes,1977, p.101). 2.2) Não decisiva. E o que seria algo não decisivo? Como Susan Sontag (1986, p. 127) escreveu em Sob o Signo de Saturno... Tinha-se a impressão de que conseguia gerar ideias a partir de qualquer coisa. Bastaria colocá-lo diante de uma caixa de charutos e Barthes produziria uma, duas, muitas ideias – um pequeno ensaio. Não era uma questão de conhecimento (podia não conhecer a fundo certos temas de que tratou), mas de uma agilidade mental, a obstinada transição do que se podia pensar a respeito de um tema, desde que confluísse para a atenção. Como podemos perceber no fragmento transcrito, e já havíamos percebido isto há muito tempo – só não tínhamos a intimidade (e o prestígio) de que gozava Sontag para escrever/especular Barthes diante de uma caixa de charutos. O autor em questão nunca escrevia para estar certo, mas para causar reações. A apatia o incomodava. A “mesmice” o incomodava. Gostava de pendular entre o intelectualismo de quem escreve, com a certeza de que menos de um por cento das pessoas alfabetizadas e instruídas o irá entender como em A Controvérsia 15 Estruturalista: “Mas, se não emprego a palavra pensamento, não é por achá-la obscena; pelo contrário, é porque ela não é suficientemente obscena” (BARTHES, 1976, p. 159) e o informalismo absoluto de quem escreve apontamentos: “a gente tira então o caderninho de apontamentos,...” (BARTHES, 1977, p. 102). Na obra As Ideias de Barthes (CULLER, 1998, p.16-17) está escrito “tal como um jovem ciclista grita „Veja, mamãe! Sem segurar!‟, Barthes grita „Veja, mamãe! Sem conceitos!‟” E por que Barthes é assim? Talvez por ter percebido que poucas pessoas no mundo sabem quem foi Dédalo, mas quase todas já ouviram falar de Ícaro, pois de fato ambos fugiram do labirinto de Creta, mas em verdade somente Ícaro – desobedecendo – voou. A princípio, separamos a tese em três partes para melhor trabalhar/entender a questão do Fragmento em si, na obra de Barthes. E ao fazermos isso entendemos que não traímos o que dissemos no final do 2.1. Esta separação em três deve ser vista antes como uma organização espacial (exterior) a classificação formal, pois assim como na matemática pode-se obter o resultado de número 5 (cinco), por exemplo, em inúmeras equações na aritmética, álgebra, trigonometria, geometria e outras; em Barthes pode-se fazer o mesmo e encontrar O Fragmento Barthesiano nos mais variados temas estudados por ele como: Teatro, Narração, Romance, Fotografia, Escritura Curta e Diário. Escolhemos os três últimos por entendermos que esta questão, O Fragmento Barthesiano, se revela com mais intensidade neles a outros. Começaremos por onde nos pareceu mais flagrante tal questão: a imagem com suas representações, ou melhor dizendo, suas reapresentações... seu aparecer novamente. Como é feito e como é lido. Em suma, todas estas <<artes>> imitativas comportam duas mensagens: uma mensagem denotada, que é o próprio analogon e uma mensegem conotada que é o modo como a sociedade dá a ler, em certa medida, o que pensa dela. (BARTHES, 1982, p. 15) 16 A segunda parte seria a mais complexa de se trabalhar se nos ativéssemos a classificações formais (exterior), como optamos pelo seu conteúdo (interior) ficou mais polivalente, como Barthes coloca obras suas de formato tão singular no mesmo saco não seremos nós a nos preocupar com a forma de maneira excludente, grosso modo, classificatória. Seu primeiro texto ou quase (1942) é feito de fragmentos; essa escolha justificava-se então à maneira de Gide “porque a incoerência é preferível à ordem que deforma”. Desde então, de fato, ele não cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de L’Empire des signes, artigos e prefácios dos Essais critique, lexias de S/Z, parágrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du Texte.(BARTHES; 1977, p. 101) Como classificar formalmente algo que foi feito sem a preocupação do formal? Como corrigir algo que não foi feito para ser corrigido? E mais, correndo o risco de ao corrigir prejudicar consideravelmente o que realmente quis ser comunicado? Como calcular e padronizar páginas em algo que, algumas vezes, não tem alusão às páginas? Como classificar a importância de algo que foi escrito para aquele momento e logo depois descartado ou, quem sabe, para ficar guardado e marcado para todo o sempre? Mais uma vez temos que nos valer do que o autor nos ensinou “Essa sutileza é decisiva” (BARTHES; 1984, p. 127). Sem sutileza nada terá consenso e tudo será discórdia. Assim como o que ocorre na conhecida metáfora do copo: a mesma quantidade de líquido num copo leva cada um a vê-lo de forma diversa e até antagônica; o mesmo pode, e irá, acontecer com esta tese. Na terceira e última parte trabalharemos a importância de O Fragmento Barthesiano no Diário. Do fragmento ao diário Sob o álibi da dissertação destruída, chega-se à prática regular do fragmento: depois, do fragmento se desliza para o "diário”. Assim sendo, o objetivo disso tudo não é se dar o direito de escrever um "diário"? (BARTEHS; 1977, p. 103) 17 Ao terminarmos de ler o texto “A morte do autor” publicado em O Rumor da Língua (BARTHES, 2004. p. 57-64.) uma inquietação se instaurou: não seria melhor lê-lo novamente de trás para frente? Então resolvemos trabalhá-lo assim: de trás para frente “para devolver à escrita seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor” lendo apenas este encerramento, do texto em estudo, o restante (ainda não lido em nossa proposta de leitura-inversa) se apresentaria como algo absoluto, mas não o é. Esta morte é antes de tudo uma maneira de atingir a crítica que nunca se preocupou com o leitor e que agora se apresenta como uma defensora deste “O leitor, a crítica clássica nunca se ocupou; para ela não há na literatura qualquer outro homem para além daquele que escreve”. Considerando o leitor como aquele capaz de ser o “espaço exato em que se inscrevem” o “ser total da escrita” um lugar que não deveria ser preciso e fechado, mas no momento em que a crítica “atribui” um Autor ela o faz: “Dar um Autor a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita”. O scriptor é hoje um homem que acredita “dar conta do recado” com sua vasta matéria prima de léxico e sintaxe, forma que atropela substância, passado que representa o segundo anterior e não experiência anterior; em resumo: um texto que foi bem escrito é um texto que “fracassou”: “..., e o romance termina quando finalmente a escrita se torna possível”. Se a novela Sarrasine de Honoré de Balzac é o falhanço do homem baudelaire, Van Gogh sua loucura, Tchaikovsky seu vício... a “Polivalência Barthesiana” será a Bortheada na cara da crítica, palavra-valise (CAROLL, 1980, P. 197) neologismo que aprendemos a fazer graças à Alice no País das Maravilhas. Sim, vamos “matar” o Autor que a crítica tanto nos fez valorizar e rotular criando, assim, uma autêntica viseira (ou “tapa”) igual ao que os cavalos usam. Barthes “mata” os autores, mas não para de falar neles, admira e estuda, então que morte é essa? É a morte de uma crítica que apesar de acreditar numa escrita-múltipla, não a entende. O que Barthes admira nos escritores antigos é sua humildade em reconhecer que a “substância do conteúdo” 18 será sempre aquele lugar incrivelmente labiríntico onde a “forma do conteúdo” será apenas e tão somente apenas o ato de escrever, resultado de um cálculo tão absurdamente complexo que os significantes da língua, qualquer língua, só podem ser o que realmente são: tentativas de “dar conta de um recado” que só pode ser dado – em literatura – não dando! Sob pena de fracassar, para não dizer se iludir. O texto que Barthes defende é o texto que não pode ser escrito por vias normais, a menos, é claro, que se queira passar apenas uma mera mensagem, algo do tipo: eu falo – você entende, mas se o que queremos é o algo mais, então ele terá que fracassar. Barthes: libertando a escrita da "tirania do autor", atribuída pela crítica, dá a cada leitor o direito de adicionar, alterar ou simplesmente editar outro texto, formando assim o gabarito mental que propomos. Abrindo possibilidades de uma autoria coletiva ele incita escritores e leitores, a que estudem os textos e não os autores, pois assim como um texto não deve ser escrito para “prender” a história de vida de um autor não deveria ser sua “justificativa”, sua “explicação” sobre o quê e o porquê escreve. O diário que Barthes admira não é a agenda do dia a dia, o lembrete... É o perder-se para se encontrar. Valendo-se de autores consagrados, Gide e Proust - trabalha o Diário e a Biografia respectivamente, provando/ressuscitando o direito do autor se escrever/descobrir “[...] como é possível narrar alguém sem se projetar nesse alguém?” (BARTHES, 1974, p. 45) e convidando o leitor a fazer o mesmo “Entretanto, o próprio fim da comunicação a isso se opõe, pois essa seria uma mensagem fria, e por conseguinte inversa, já que o que eu quero comunicar é o próprio calor de minha compaixão.” (BARTHES, 1980, p. 18). E como fazer isto sem contagiar o leitor? Sem fazer dele um cocriador da obra, algo que a crítica nunca se preocupou “Em princípio, não há nenhuma proibição para a crítica, somente exigências, e em seguida, resistências. (BARTHES; 1980, p. 178). 19 Barthes percebe que o diário é um todo feito de fragmentos e que ao escolhermos um - o todo não é desfeito, é impossível no caso do diário, um trecho de nossas vidas não desaparece simplesmente porque rasgamos uma página, mas ao fazermos uma escolha (um fragmento de nossas vidas) como em: A costeleta (BARTHES, 1977, p. 68) e a partir dela contemplarmos novamente o todo e percebemos que ele em si não mudou, mas a maneira de como voltamos a ver este todo mudou. Parece que estamos falando da nave Argo onde cada peça gasta era substituída por outra nova, sempre uma nave nova e ao mesmo tempo sempre a mesma, mas será que é isto que ocorre com o diário ou com as biografias? A nave Argo Imagem frequente: a da nave Argo (luminosa e branca), cujas peças os Argonautas substituíam pouco a pouco, de modo que acabaram por ter uma nave inteiramente nova, sem precisar mudar-lhe o nome nem a forma. Essa nave Argo é muito útil: ela fornece a alegoria de um objeto eminentemente estrutural, criado não pelo génio, a inspiração, a determinação, a evolução, irias por dois atos modestos (que não podem ser captados em nenhuma mística da criação): a substituição (uma peça expulsa a outra, como num paradigma) e a nominação (o nome não está de modo algum ligado à estabilidade das peças): à força de combinar, no interior de um mesmo nome, nada mais resta da origem: Argo é um objeto sem outra causa a não ser seu nome, sem outra identidade a não ser sua forma. (BARTHES; 1977, p. 52-53) A partir dos autores que amava, Barthes começa a construção de uma nova Argo “Não tenho fundamentos para considerar tudo o que escrevi como um esforço clandestino e obstinado para fazer reaparecer um dia, livremente, o tema do „diário‟ de Gide?” (BARTHES, 1977, p.103) isto porque a ideia é “... todo escritor só se torna obra quando pode variar ...” (BARTHES, 1980, p. 19) não se trata de trazer à tona por copiar (reproduzir), mas trazer à tona por evoluir (produzir): “Uma obra é „eterna‟ não porque ela impõe um sentido único a homens diferentes, mas porque ela sugere sentidos diferentes a um homem único, que fala sempre a mesma língua simbólica através dos tempos múltiplos: a obra propõe, o homem dispõe.” (BARTHES, 1980, p. 213). 20 O Diário, quando analisado, proporciona um “eu” o todo, um “parte-do-eu” uma vez que escolhemos e o retiramos do todo, e um “novo-eu”, pois depois de vermos o todo não com a falta deste fragmento, mas pela visão deste fragmento, tal fragmento devolvido não volta para o todo de antes, mas para um novo todo, uma vez que agora, tomados por outra visão, como dizer que o antes se mantém o de antes? A menos que não tenhamos visto nada de novo “A criação ou reflexão não são aqui „impressão‟ original do mundo, mas fabricação verdadeira de um mundo que se assemelha ao primeiro, não para copiá-lo mas para o tornar inteligível.” (BARTHES, 1980, p. 51), lembrando que uma escolha raramente é aleatória, o que a fez ser escolhida (conscientemente ou subconscientemente) é o essencial para tal mudança. O Zen pertence ao budismo torin, método da abertura abrupta, separada, rompida (o kien é, pelo contrário, o método de acesso gradual). O fragmento (como o hai-kai) é torin; ele implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira então o caderninho de apontamentos, não para anotar um “pensamento”, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso. (BARTHES, 1975, p. 102) E pelo fragmento “(o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário)” (BARTHES, 1977, p.) o todo é visto (composto) e revisto, (recomposto) e o que serve para tornar o mundo inteligível não serve para nós mesmos? Entretanto, o que é real? Não o conhecemos nunca senão sob forma de efeitos (mundo físico), de funções (mundo social) ou de fantasmas (mundo cultural); em suma, o real nunca é ele próprio mais do que uma inferência; quando se declara copiar o real, isto quer dizer que se escolhe tal inferência e não tal outra: o realismo está, em seu próprio nascimento, submetido à responsabilidade de uma escolha. (BARTHES,1980, p. 78) Este “entender” pela fragmentação este “se deixar levar” não é algo criado e/ou exclusivo de Barthes, outros também o fizeram como ele mesmo aponta. Barthes leu André Gide que leu Montaigne (e escreveu um livro sobre) que é autor de um só livro: Ensaios, publicado em quatro 21 edições sucessivas, sempre os corrigindo, melhorando, juntando-lhes acréscimos com várias citações colhidas em suas constantes leituras, um autêntico escritor de fragmentos em pleno século XVI. E hoje, terá essa forma de escrita sido esquecida? Acreditamos que não, e para provar, viajaremos por literaturas que nos fascinaram por sua fidelidade ao Fragmento, ainda que seus autores jamais tenham pesquisado a evolução (história) de tal escrita. Como o Só por hoje (1998) dos Alcoólatras Anônimos, Reminiscências sobre Meishu-Sama (2004) da Igreja Messiânica (rica em literatura de Fragmentos) e outros autores, desde os mais conhecidos como Martin Heidegger e Susan Sontag aos menos como Arlindo Machado e Ivan Lima. Serão ambos utilizados, ora para ratificar as descobertas feitas por nós, ora para reforçar os exemplos encontrados e praticados por Barthes. 22 2. SOBRE O NOME E ALEGORIAS 2.1- Fragmento Barthesiano: assim nasce um nome. O capitão Walton então surpreende a criatura na cabine, no leito de morte de Frankenstein, pranteando seu criador. E pergunta: - Quem é você? E a criatura responde: - Ele não me deu um nome. Mary Shelley Para defender nosso argumento de que é possível entender a Literatura, e, criar Literatura a partir de como Roland Barthes usa/entende a palavra Fragmento, usaremos diversas estratégias de cunho comparativo, pois se em outras obras “Chico pode ser Francisco” por que em Roland Barthes não pode acontecer o mesmo? Parece confuso, mas iremos explicar. Começamos este capítulo com um rápido diálogo entre a criatura de Mary Shelley e um personagem - capitão R. Walton, para instigar a curiosidade: de onde veio o nome Fragmento Barthesiano? Parece óbvio, de Roland Barthes e seus estudos sobre A Escrita de Fragmentos, mas este autor não deu seu nome a tal pesquisa, diretamente, foi mais um caso de a proximidade e/ou a dedicação fazer sua contaminação, uma posse “... os colonos cuidaram de cartografá-la, isto é, de desenhar e de dar nomes a seus acidentes; esse primeiro ato de intelecção e de tomada de posse é um ato de linguagem” (BARTHES, 1974, p. 85) e assim como no monstro criado por Shelley, o criador vira posse de sua criação. Poderíamos ter começado por um dos muitos fragmentos escritos por Barthes, só em seu livro Roland Barthes por Roland Barthes (1977) temos: O círculo dos fragmentos (ps. 101-102), O fragmento como ilusão (p 103) e Do fragmento ao diário (p. 103); seria mais acadêmico, à primeira vista, é verdade, mas seria no 23 mínimo apressado irmos direto a questão, ao corpus, sem ao menos explorarmos ela (a palavra fragmento) encontrada já no próprio nome da tese. Por isso achamos melhor, ou pelo menos mais inovador, iniciar o trabalho lembrando o personagem mais fragmentado (se nos perdoam o trocadilho) da literatura mundial, Frankenstein; e de sua escritora. Uma vez que a biografia desta sempre é apresentada como sendo ela mesma um fragmento tirado de (ou inserido em) outras biografias mais famosas, sendo este “mais famosas” merecendo ser transcrito entre aspas, pois quem hoje lembra do filósofo William Godwin (pai) a quem acusam de ter pedido algumas ideias emprestadas a Rousseau e que nunca se lembrou de as devolver; ou ainda da pedagoga e feminista Mary Wollstonecraft (mãe) autora de uma famosa Declaração dos direitos da mulher; ou ainda do poeta Percy Bysshe Shelley (marido) cujo nome só é lembrado por poetas amadores e leitores profissionais, enquanto que a obra de uma “menina” (em 1818, tinha 21 anos) é lembrada e adaptada até os nossos dias. Tudo isso para dizer que o nosso Por onde começar (BARTHES,1974, p.77) começou pelo nome Fragmento Barthesiano, pois se tivéssemos começado por 1 (um) fragmento como justificar este escolhido a outros? E neste trabalho haverá hierarquia, classificação? Seria injusto e confuso se houvesse. 24 2.2. A importância das Alegorias. Alegoria: “Rubrica: artes plásticas, literatura - simbolismo que abrange o conjunto de uma obra, num processo em que o acordo entre os elementos do plano concreto e aqueles do plano abstrato se dá traço a traço.” (HOUAISS, 2009, p. 88). Ou seja: o que importa é a realidade representada elemento a elemento (fragmento a fragmento) em detrimento do conjunto (o todo), não que o resultado final não seja importante e ele o é, mas é o processo que o torna, que o faz nascer, onde encontramos o material necessário para operarmos na linguagem do artista. At ravés do tema Alegoria faremos a ligação da inquietação provocada pela palavra fragmento em si, com a palavra Fragmento na obra de Barthes. O sentido alegórico: para ler aqui a cabeça do Verão ou de Calvino, preciso de uma outra cultura que não a do dicionário [...] e a partir do momento em que se troca o dicionário das palavras por uma lista dos sentidos culturais, das associações de ideias, em resumo, por uma enciclopédia das ideias recebidas, entra-se no campo infinito das conotações.(BARTHES. 1984, p. 124-125) A alegoria não é um aviso direto como o que encontramos atrás dos maços de cigarro (Lei nº 9.246/1996), é mais como um conjunto de signos, uma polifonia fazendo de um único aviso muitos e de muitos um único. Algo que interessa a est a tese e não passou despercebida a Roland Barthes, cujo livro O Óbvio e o Obtuso (1982) trata do que poderíamos chamar de estética do visível: a fotografia, o cinema, o teatro, a pintura e a alegoria. A explicação sobre o título do livro pode ser encontrado no capítulo que fala sobre Eisenstein. E é nela que iremos focar agora para melhor entender este tema: a alegoria e sua relação com a tese. Usaremos algumas obras para melhor exemplificar: 25 Théodore Géricault, “A jangada da Medusa” (1818-1819) O quadro épico A Jangada da Medusa (1818 - 1819) por Théodore Géricault (1791-1824) é um verdadeiro representante de todas as mudanças artísticas de sua época requisitadas, sem a menor preocupação com classificação e/ou modismo. Géricault não escolheu uma escola, ele uniu todas a partir de fragmentos de estilo, criando uma obra híbrida. Vejamos: 1. Possui fragmentos da Renascença Italiana, foi inspirado por Michelangelo com seu O juízo final (1502 - 1508), mais especificamente o canto inferior direito, dedicado a Caronte. E inspirou seu amigo Eugène Delacroix (1798 - 1863) a criar a tela "Dante et Virgile aux enfers" (1822) ou "A barca de Dante". O juízo final (1502-1508) A barca de Dante (1822) 26 2. Possui fragmentos do Barroco, sob a influência de Caravaggio, com seu jogo de luz e sombras, vida e morte respectivamente; mas definitivamente não é para Deus (grande, posto em lugar alto e central) para quem eles olham e sim para um Argus (ou Argos: Άργος), não o alegórico/mitológico de Roland Barthes (BARTHES, 1977, p. 52), mas um dos barcos que seguiram junto com a fragata Medusa para a antiga colônia francesa do Senegal (pequeno e posto a meio e a direita do quadro), quase imperceptível, única esperança - não de homens virtuosos e convictos de suas ações, mas ao contrário de todas as escolhas feitas por seus colegas artistas, dessa vez, os heróis eram farrapos humanos, loucos, canibais, desgraçados no mais literal que esta palavra aparece nos dicionários. 3. Possui fragmentos do Neoclassicismo, escola onde os princípios da era clássica deveriam ser adaptados à realidade moderna, nesta vertente , artistas como Jacques-Louis David (1748-1825) com O Juramento dos Horácios (óleo sobre tela, 330 × 425 cm, Louvre) fez muito sucesso na França: o juramento de três irmãos fazendo uma saudação, jurando lutar pela República Romana até a morte, vinha ao encontro dos ideais de um governo nascido da Revolução Francesa, mas Géricault não foi à Antiguidade Clássica pegar um tema, uma situação que pudesse servir (ser interpretada) à realidade moderna ele foi ao jornal e escolheu uma vergonha nacional: uma fragata naufragou com bom tempo danificada por encalhar num banco de areia (O banco de areia de Arguin), erro primário que fez o povo francês se sentir inferior à marinharia inglesa, seus rivais no mar como Brasil e Argentina nos campos de futebol. 4. Possui fragmentos do Romantismo, Géricault rompe de forma violenta com o Racionalismo (característica romântica) mostrando, no quadro A Jangada da Medusa, um humanismo que retrocede o homem à sua origem o deixando quase ao nível animal. Com isso 27 exerceu seu nacionalismo priorizando o homem (o cidadão) comum sobre um governo que permitiu que tal tragédia acontecesse. Fez da Natureza a amiga e a inimiga com o céu dourado e o mar cor de musgo. E do homem um vencedor já que o navio Argus recolheu sobreviventes e não apenas corpos. Mas este quadro também pode ser considerado ponte para o que estaria por vir: o Realismo. É verdade que o que Géricault pintou não foi uma foto apesar de ter entrevistado os sobreviventes, construído uma jangada, estudado cadáveres e negros; mas tal idealização dos acontecimentos não comprometeu a objetividade que impera no Realismo, assim como sua visão do real não comprometeu o belo que impera no Romantismo. O quadro A jangada da Medusa tem um papel ilustrativo nesta tese “Terá o quadro um <<assunto>> (em inglês: topic)? De maneira nenhuma: tem um sentido, mas não um assunto.” (BARTHES, 1984, p. 85) Cada personagem é um Fragmento do que aconteceu. “E Diderot acrescenta (se assim podemos dizer); a criação do pintor ou do dramaturgo não está na escolha de um tema, está na escolha do instante premente, do quadro.” (Idem, ibidem, p.85) Este instante veio de um nível “informativo” visto que a fonte foi um jornal “[...] temos um parágrafo na página quatro do Montieur Universel.” (EDGE, 2006, p.29), mas o objetivo era ser uma símile de fotojornalismo? Não, a informação foi o começo, o ponto de partida para algo maior. 1. Um nível informativo, onde se acumula todo o conhecimento que me fornecem o cenário, os trajos, as personagens, as suas relações, a sua inserção numa anedota que eu conheço (ainda que vagamente). Este nível é o da comunicação. Se fosse preciso encontrar-lhe um modo de análise, seria para a primeira semiótica (a da «mensagem») que eu me voltaria (mas desse nível e dessa semiótica já não nos ocuparemos aqui). (BARTHES, 1984, p. 43) É na escolha da composição que o artista tenta passar, ultrapassar, a mensagem do “Óbvio”, sendo no “Obtuso” onde encontra condições para tal. 28 Quanto ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem <<a mais>>, como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugido, liso e esquivo, proponho chamar -lhe o sentido obtuso. (BARTHES, 1984, p. 45). É na alegoria onde encontramos melhor esse sentido obtuso, pois no momento que a obra, por meio de suas formas, representa uma ideia abstrata, está aberta toda uma gama ilimitada de intelecção. “O sentido alegórico: para ler a cabeça do Verão ou de Calvino, preciso de uma outra cultura que não a do dicionário” (BARTHES, 1984, p. 124). O abstrato não é uma linha reta de único sentido, é antes uma seta que aponta para onde encontraremos a bifurcação dos sentidos “Um ângulo obtuso é maior que um ângulo reto” (Idem, p. 45). Através da alegoria o artista não diz o que sente, mas exprime o que sente, nos ajudando com isso a nos expressar também, emprestando sua reação a nossa. O objeto estético resume e exprime numa qualidade afetiva inexprimível a totalidade sintética do mundo: ele me faz compreender o mundo ao compreendê-lo em si mesmo, e é por intermédio de sua mediação que eu o reconheço antes de conhecê-lo e que eu nele me reencontro antes de me ter encontrado. (Dufrenne, Apud RODHEN, 2007, p.13) Portanto, não estamos falando aqui de sinais ou símbolos menos ligados ao conceito de arbitrariedade do signo. Mas “a partir do momento em que se troca o dicionário das palavras por uma lista dos sentidos culturais, das associações de ideias, [...] entra-se no campo infinito das conotações” (BARTHES, 1984, p. 125). Estamos falando de composições feitas a partir de substituições, de linguagem não- verbal como no livro O corpo fala (WEIL & TOMPAKOW, 2007). Pois ao agir assim o artista “visualiza a essência abstrata em todas as existências concretas e [...] exprime, em alguma forma individual, a realidade universal” (ROHDEN, 2007, p.14). E tal realidade universal pode ser encontrada na obra escolhida por nós, A Jangada da Medusa. Ela possui algumas características que não nos passaram 29 despercebida: Uma tela escura para um tema mórbido, uma inquietação que não sabe como sair, e paralelismos eufêmicos para suavizar um tabu. E que foram confirmadas no livro O Deus da primavera, de Arabela Edge, 1 e aqui descritas respectivamente: Imitaria a técnica do sfumato de Leonardo – em que todas as cores eram fundidas até só ficar uma monocromia escura -, mas, para atingir aquela escuridão lustrosa, Géricult usaria o betume. (EDGE,2005, p. 118) - É pena - murmurou Corréad - que tenha abandonado a cena em que as cordas de reboque foram cortadas. - Santo Deus! – exclamou Géricault, pousando o guardanapo com brusquidão. – Não são os temas que estou a achar problemáticos, mas sim o efeito composicional. (EDGE, 2005, p. 141) Vernet pousou o copo. – Você tem trabalho para fazer, por isso é melhor começarmos. Onde devo tomar lugar nesta jangada? Géricault indicou-lhe a popa e pediu-lhe que se sentasse de pernas cruzadas, olhando em frente, repousando a cabeça numa mão. - Diga-me quem sou – disse Vernet. - Está a embalar o seu filho morto no outro braço. 2 (EDGE, 2005, p. 240) Cada personagem conta a história do que aconteceu; alguns objetos também o fazem como os lenços usados para chamar a atenção do navio que os salvou, como também o facão sangrento que revela de forma “excessivamente” sutil o que não foi sutil na jangada: o canibalismo. Estas sutilezas fazem parte da composição, no obtuso tudo é motivo, nada é gratuito “[...] devia situar -se na região da testa: a touca, o lenço-toucado estava lá para alguma coisa” (BARTHES, 1984, p. 48) a evidência do fragmentado e a sutileza do escondido não são antagônicas “sem que um destrua o outro” (BARTHES, 1984, p. 149), pois o “confundir o limite que se separa a expressão do disfarce” (BARTHES, 1984, p. 48) é a maneira como a alegoria “O 1 EDGE, Arabela. O Deus da Primavera, 2006, é uma obra de ficção, mas por possuir um forte comprometimento histórico fruto de uma pesquisa patrocinada por bolsa da Literature Board do Australian Council, resolvemos usar nesta tese. Sua riqueza de detalhes: fragmentos preciosos recolhidos em várias bibliotecas, nos inquietaram e nos impressionaram. Na contracapa deste livro temos: Tendo como pano de fundo a cidade de Paris no rescaldo da Revolução Francesa, O Deus da Primavera narra a história do pintor Théodore Géricault e da criação do quadro épico que se tornou um marco fundamental do movimento romântico em pintura e um marco político de consequências imprevisíveis para o seu autor: “A Jangada da Medusa”. 2 O canibalismo está simbolizado no gesto paternal de um dos sobreviventes que segura um jovem morto. É uma analogia de Géricault em relação à lenda do Conde Ugolino, que depois da morte dos filhos e netos, comeu-os para sobreviver. 30 sentido obtuso chegará a existir, a entrar na metalinguagem do crítico. Isto quer dizer que o sentido obtuso está fora da linguagem (articulada), mas contudo no interior da interlocução” (BARTHES, 1984, p. 53), o que distorce o limitante óbvio, para na metalinguagem alcançar sua realização: o espanto. Outro bom exemplo de obra alegórica é Alegoria de Guerra e Paz, de Peter Paul Rubens 3 , feito para lembrar Carlos I dos horrores da guerra. E como escolheu fazer isso? Da mesma forma que Géricault, por meio de uma verdade, um fato: as guerras são horríveis. Mas o artista não está preocupado com uma verdade contada, mas com uma verdade universalizada. A verdade é a experiência que o homem tem da realidade, esse saborear nunca poderá ser feito em sua totalidade apenas pelos sentidos, nem somente pelo intelecto; há que acrescentar a faculdade intuitiva da razão, que é o reflexo individual da Realidade Universal no homem (ROHDEN,2007, p.16) Por meio da imaginação, a composição vai sendo montada não para contar uma história, mas para nos dar significantes “um sentido obtuso é um significante sem significado” (BARTHES, 1984, p. 53) e com eles fazer nossa intelecção, nossa própria conclusão, nossa própria história. Através de uma proposta de visão, o artista convida o público a interpretar sua intenção, quanto mais abstrata for a obra mais interpretações ela suscitará. Se a interpretação vai ao encontro da intenção do artista ou de encontro, isso em si não é importante, pois o objetivo mais importante que uma obra pode alcançar não é seu entendimento, mas seu fazer pensar para se chegar a um entendimento, o olhar para agradar aos olhos será sempre pequeno em comparação com seu fazer refletir. Do que adianta achar o quadro belo se não conseguirmos ver nele, através de seus fragmentos: a fartura no tempo de paz simbolizada e posta ao lado direito do quadro 3 RUBENS, Peter Paul. Alegoria de guerra e paz. Disponível em:<http://www.navigo.com/wm/paint/auth/rubens/peace.jpg>. Acesso em22/06/2006. 31 com o leite que sai do peito de uma ninfa, frutas oferecidas por um sátiro e um animal selvagem manso (paz) em contraste com o lado esquerdo que possui a mulher louca (guerra) perigosamente perto de uma turma de meninas inocentes (o povo) ao centro e alheias ao que parece ser a discussão entre dois homens adultos (os governantes) também ao centro, mas num plano mais alto; a montagem não é acidental, é calculada para fazer refletir usando inteiros: personagens bem definidos quanto à proposta individual de cada um, e, quando devidamente agrupados a soma de cada indivíduo (fragmento), cada individualidade (proposta) cria uma unidade: o quadro, cuja proposta não é apenas ser belo. Peter Paul Rubens, “Alegoria de guerra e paz” (1629) Museu National Gallery, London Mas se por um lado nem todo fragmento precisa ser belo, por outro precisa ser suficientemente claro. Algo que estudaremos melhor quando analisarmos o livro de Barthes A câmara clara (1980), mais especificamente se o que ele chama de Punctum 32 pode ou não ser acidental. Para este capítulo, ainda introdutório, compararemos a alegoria de Rubens com o quadro Guernica (1937) de Pablo Picasso para mostrarmos como fragmentos tão diferentes podem ser tão iguais. GUERNICA Representação do bombardeio sofrido pela cidade espanhola de Guernica pela Legião Condor (LUFTWAFFE) em 26 de abril de 1937 4 . Se compararmos apenas as gravuras do quadro de Rubens com as de Picasso perceberemos que são bem diferentes, no plano artístico, mas quanto à intenção são iguais. Ambos os quadros falam dos horrores da guerra; o primeiro usa os fragmentos de forma precisa, ainda que postos lá para abstraírem, são fragmentos que incitam: cada qual a sua maneira e cujo somatório, o “quadro” (espaço) formam uma sugestão: a guerra pode acabar com tudo o que existe de bom. Com Picasso temos fragmentos fragmentados e não estamos falando de consequência cubista (estilo), que por si só também é bem fragmentado, mas do resultado de um bombardeamento, o fragmentar natural do cubismo: ver o objeto e representá-lo como se simultaneamente pudéssemos ver arestas que não seriam possíveis em um mesmo lado, na verdade um 4 Disponível em : http://cafehistoria.ning.com/photo/guernica-pablo-picasso?context=user. Acessado em 05/09/20010 33 separar que junta já que cria simultaneidade, ainda que impossível: paradoxo possível na arte; esse fragmentar se tornou uma espécie de “redundância macabra”: o resultado fragmentar dilacerante das bombas retratado pelo fragmentar do cubismo. Pedaços de personagens contando o que aconteceu, fragmentos que falam e que até hoje ecoam. Não é uma obra bonita como ele mesmo disse “No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo”. ("Não, a pintura não está feita para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo.") Pablo Ruioz Picasso (1881-1973) 5 . Barthes nunca escreveu sobre estas obras, lutou contra o nazismo escrevendo artigos para o "Combat": importante jornal esquerdista na época da resistência enquanto se tratava de uma tuberculose renitente (1934 a 1947). Mas então por que escrever sobre estes quadros? Por três motivos: 1) Porque queremos valorizar o fragmento em si antes de falarmos dele em Barthes. Assim como ele teve inquietações com “a touca, o lenço-toucado estava lá para alguma coisa” (BARTHES, 1984, p. 48) e o “O fotógrafo me ensina como se vestem os russos: noto o grosso boné de um garoto, a gravata de outro, o pano da cabeça da velha, o corte de cabelo de um adolescente...” (BARTHES, 1984, p. 49 e grifado em itálico na p. 50), achamos justo mostrar, antes de nos aprofundar, que nós também tivemos nossas inquietações, com nenhum boné em especial, mas com essa renitente presença: 1 (um) fragmento que nos incomoda, está visível, não há dúvidas, nossa verdadeira dúvida é: por que algo tão natural mexe conosco, Barthes s abe do que estamos falando “o sentido obtuso pode ser visto como um acento, como a própria forma de uma emergência, de uma prega (até de uma ruga), com que é 5 Disponível no Youtube; cómo se pintó el Guernica de Pablo Picasso – comVENCE - http://www.youtube.com/watch?v=JMf5Ff4BK0U&feature=related 34 marcada a pesada toalha das informações e das significações” (BARTHES, 1984, p. 54). 2) Estas obras foram usadas para ilustrar (pictoricamente) o gabarito mental de que falamos. O “tirar” da obra e a partir do fragmento colhido ter e ver novas obras “o problema actual não é o de destruir a narrativa, mas a de subverter; dissociar a subversão da destruição, essa seria hoje a tarefa” (BARTHES, 1984, p. 55). Isto dito por Barthes tem reflexo, pois o desafio hoje é esse mesmo, não a alteração das obras somente, mas sua alteração por multiplicação, variação, liberdade. Artistas e público em plena conspiração pela obra, eternamente de cada um, sempre em movimento pelo fragmento: um dia, durante a ocupação nazista na França, um oficial nazista ao entrar no apartamento de Picasso (revista de rotina) observou uma fotografia do mural Guernica (1937) na parede e, apontando para a imagem, perguntou: Foi você quem fez isso? E Picasso respondeu, após um segundo de reflexão: Não, vocês o fizeram. 3) Indo além de suas superfícies, praticamos a palavra “discernimento” em sua origem, o que não significa, pelo menos para o artista e para Barthes, exclusão dos matizes, dos paradoxos, dos contrastes, das ambival ências e até das contradições; muito pelo contrário, discernir é aceitá-los, é vê-los com clareza, pois discernimento, do latim discernere, que remonta ao grego ί, significa justamente: “distinguir”, “criticar”, “avaliar”, “decidir”, “julgar”, “reconhecer”, onde está implícito o ato de penetrar profundamente numa questão, procurando compreendê -la com o máximo de rigor, sensibilidade e criatividade. Por tant o o fragmento como método, pode e auxilia a crítica do jeito que Barthes a concebe: Pode-se dizer que a tarefa crítica (esta é a única garantia de sua universalidade) é puramente formal: não consiste em “descobrir”, na obra ou no autor observados, alguma coisa de “escondido”, de “profundo”, de “secreto”, que teria passado despercebida até então (...), mas somente em ajustar, como um bom marceneiro que aproxima apalpando “inteligentemente” 35 duas peças de um móvel complicado, a linguagem que lhe fornece sua época (existencialismo, marxismo, psicanálise) à linguagem, isto é, ao sistema formal de constrangimentos lógicos elaborados pelo próprio autor segundo sua própria época. (BARTHES, 1982, p. 161) Há outros autores que poderiam explicar a resposta de Picasso como Luis Humberto quando descreve de forma técnica a palavra “crítica”: A crítica é uma atividade absolutamente necessária e só ela pode – uma vez feita com competência – revelar parâmetros de referência de uma época. Conduzida com serenidade vai orientar o entendimento mais nítido da relevância ou não de propostas com aparências inovadoras. Essa responsabilidade é um peso enorme para o crítico que, na verdade, não é um juiz feroz apoiado na jurisprudência do próprio gosto, mas um analista respaldado em um conhecimento verdadeiro de como se desenvolvem os processos criativos. (HUMBERTO, 1983, p. 76) Mas escolhemos Barthes, pois o que Picasso fez foi “subverter não o conteúdo mas toda prática do sentido. (BARTHES, 1984, p. 54) E tais visões tão diferentes (do oficial nazista e Picasso) ocorrem pois “a imagem não é a expressão de um código, ela é deposito de um sistema, mas geração de outros sistemas” (Idem, 1984, p. 130). E explicado isso, só nos resta dizer: acreditamos que escolhemos bem. 36 2.2- O porquê dessa estratégia. Em conversas informais, e gostaríamos de salientar esse “informais”, com diversos professores, leitores e estudiosos de Roland Barthes, descobrimos um consenso que era dito, mas nunca escrito. Falamos da questão da complexidade de entender alguns fragmentos. Como o que foi escrito na página que inicia este capítulo (2. SOBRE O NOME E ALEGORIAS): “O círculo dos fragmentos”. Todos com quem falamos explicam a razão da complexidade dizendo sem hesitar: “Isso é filosofia”. Mas onde está escrito isso? O próprio Roland Barthes nunca afirmou isso de suas obras, pelo menos não assim de forma tão nua e crua. O que nos obriga a tomar mais cuidados. Acreditamos que uma possível prova de defesa deste argumento (maneira alternativa de alcançar filosofia) seja encontrada no Hai -kai. Este poema de origem japonesa tem a ousadia, o talento de dizer muito com o pouco. Isto requer uma breve explicação. A poesia japonesa não conhece a rima nem a versificação com acentos, e seu recurso principal, como na francesa, é a medida silábica. Esta limitação não é pobreza, pois é rica em onomatopeias, aliterações e jogos de palavras que são também combinações insólitas de som e sentido. (VERÇOSA, 1995, p.37) Ele é um pequeno poema que fotografa/descreve um momento em apenas três linhas, tornando assim os relata (físico ou abstrato / descrito) “pequeno” diante do muito que poderia ser dito, e ainda assim o tornando grande, pois ao relatá -lo pequeno: a/há procura e ao fazê-lo, o deslumbramento de seu real tamanho, um “Universo numa Casca de Noz” se nos permitem parafrasear a obra de Stephen Hawking, para exemplo. Também é importante lembrar, que o léxico, a palavra: Hai- kai é muito comum e fácil de ser encontrada nas obras de Roland Barthes. Não estamos querendo aqui dizer que Roland Barthes era um haicaísta “Mas por que o 37 haicai agora? Sobretudo, pela velha tenacidade de uma certeza barthesiana: o que faz sofrer a linguagem é a ideologia” (BARTHES, 2002, p. 85), mas que esta ideia que contém o espírito e razão de existir do Hai -kai, influenciou sua Escrita de Fragmento, a ponto de podermos dizer que sim: O Fragmento Barthesiano vai ao encontro do Hai-kai, para que como ele - sua redução forme ampliação. Mas como o fragmento (o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico, e como a retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar - me, não faço mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário (BARTHES, 1977, p. 103). Quando a fotografia foi inventada, os mais apresados disseram 6 que a arte de pintar quadros havia chegado ao fim, mas o que de fato ocorreu foi: que a arte de pintar quadros havia chegado a uma definição, a arte de pintar não tinha compromisso, e nunca teve ainda que até servisse para..., de reprodução, ou seja, produzir novamente; sua arte sempre foi una (obra primeira) e, portanto original, nunca uma segunda originada de uma primeira. Se analisarmos alguns elementos do primeiro quadro proposto: A jangada da Medusa, perceberemos claramente que tais posições na jangada foram propostas pelo artista e não retratadas pelo mesmo, ainda que tivesse, e teve, a colaboração direta de sobreviventes: “- Construirei sua jangada. Mas espero, Deus o ajude, que nunca encontre aquilo que procura.” Disse Lavillette, o marceneiro que estava a bordo da Fragata Medusa e construiu a jangada original (EDGE; 2005, p.114). Com a fotografia, ocorre o que poderíamos chamar de um “vício”, trazido do compromisso que havia na pintura, e poucos se deram conta da prática de tal “vício”. A máquina serve para retratar o que capta, como estamos falando de um processo químico que permite queimar tudo ao redor do que está sendo fotografado, 6 Gostaríamos de usar a palavra “especularam”, mas como muita gente observou tamanha foi a certeza deles que não cabe outra aqui. 38 aparentemente sem interferência humana, deu-se logo muita credibilidade a tal “não- interferência humana”, durante o processo de queima do sal de prata pela luz. Mas e quanto à interferência dos relata em si. Ou seja, a relação/cumplicidade de quem fotografa e o que é fotografado por intermédio do que ocorre dentro da máquina e fora da máquina. Tecnicamente, a Fotografia está no entrecruzamento de dois processos inteiramente distintos: um é de ordem química: trata-se da ação da luz sobre certas substâncias; outro é de ordem física: trata-se da imagem através de um dispositivo óptico. (BARTHES, 1984, p. 21) Quem já esqueceu a grande fraude fotográfica feita por duas meninas (as primas Elsie Wright e Frances Griffith, de Yorkshire, Inglaterra), onde fotografaram fadas no jardim, num domingo de 1917. Durante muito tempo ninguém soube explicar o ocorrido. Incansáveis testes foram feitos às fotos e à câmera e nada havia sido encontrado. Somente no ano de 1983, na edição de março de Science, o segredo foi revelado: elas, pura e simplesmente, recortaram e prenderam com alfinetes desenhos que Elsie havia feito e os puseram no jardim e ao seu lado. Das duas possibilidades descritas por Barthes os relata escolheram a segunda, o ambiente físico, o lado de fora, o manipular. Manipular? Se pessoas podem posar ao lado de estátuas, por que meninas não poderiam posar ao lado de fadas? Ceticismo Aberto – Fraudes Fotográficas 39 Infelizmente, como tudo foi encarado como uma “guerra” a ser vencida, poucos ou quase ninguém reparou que este t ipo de trabalho e/ou preocupação: a de mexer no fotografado para deixá-lo mais do que é, sempre existiu e foi usado na pintura, eis o “vício”. E esse mexer no fotografado, essa possibilidade, e o fato de interferência humana, mais do que levantar a suspeit a da credibilidade da fotografia, a deixa lado a lado com o processo de criação da pintura. As próprias meninas revelaram não terem pressa para revelar o truque, pois a ideia de poder acreditar em algo sobrenatural e puro como uma fada, fazia as pessoas terem esperança no futuro. O quadro A jangada da Medusa com suas posições milimetricamente estudadas, não tinham a função de fazer as pessoas refletirem sobre os limites que podem ser ultrapassados por um ser humano? Sim. E ele teria conseguido isso com uma reprodução exata de como estavam os sobreviventes, exatamente antes de serem resgatados, como numa fotografia? Acreditamos que não. Ao se mexer, os relata, sempre podemos produzir um “algo mais”. Então, com base nesse raciocínio, muitos poderão dizer: há perdas no fotojornalismo, mas felizmente, nem sempre há perdas; felizmente, há aqueles que sem manipular o sujeito com seus insuportáveis: “Fica ali”, “Mais pra direita”, “Levanta mais a cabeça”, e outros comandos artificiais que tem por objetivo: um pouco que jamais se tornará um muito, por mais que nos esforcemos. Há aqueles que conseguem, eles mesmos, graças a um olhar de artista e não de repórter, produzir arte suficiente em sua fria mensagem relatante, a deixando quente: “o fotógrafo, como um acrobata, deve desafiar as leis do provável ou mesmo do possível; em última instância, deve se tornar „surpreendente‟” (BARTHES, 1984, p. 56). 40 Olhares.com - Fotojornalismo Menino ganhando a vida como acrobata nas ruas do Rio de Janeiro. 7 E é nesse “algo mais” que iremos dedicar nossos esforços. Tudo isso para dizer que o atravessar de estilos é algo comum na arte e, infelizmente, ignorado e/ou desmerecido. É quase coisa para se dizer: isso é um preconceito! É publico o apelo dos estudiosos, quando dizem que a miscigenação melhora as raças. E o mesmo não pode acontecer com a arte? Thomas Moran William Henry Jackson Crystal Falls, 1871 Crystal Falls, Crystal Creek, 1871 27.9 x 20.6 cm (11 x 8 1/8 in) Yellowstone NP, YELL 50364 Yellowstone NP, YELL 8541 7 Disponível em: http://www.olhares.com/galerias/?id=20, autor desconhecido. Acesso em 22/06/2006. 41 Yellowstone, o primeiro parque nacional do mundo, não foi criado graças ao encontro das fotografias de William Jackson, que deu credibilidade , com as pinturas de Thomas Moran, que deu beleza? E o mesmo não pode acontecer com a filosofia, que está a busca de uma gramaticalidade que a entenda e/ou descreva, desde o tempo dos gregos? A sutileza é o elo mestre que une tudo que foi dito até agora. O Fragmento Barthesiano é o filho ilegítimo de um pai filósofo e uma mãe poeta, onde o filho nasceu com a cara da mãe, visto sua forma, mas com os olhos do pai, visto que os olhos são a janela da alma. Peguem um objeto usual: não o seu estado novo, virgem, que melhor dá conta da sua essência; é antes o seu estado curvado, um pouco usado, um pouco sujo, um pouco abandonado; é no dejecto que se lê a verdade das coisas. (BARTHES, 1984, p. 155) Como não somos peritos em filosofia, não somos peritos em poesia, não somos peritos em gramática, e, como já foi dito: o próprio Roland Barthes nunca se declarou, nem titulou suas obras; a única maneira de haver uma tese é situando seu cerne na palavra “sutileza”. Ela é o significado do significante: Fragmento. Mas não de forma denotativa, se fosse para ser apenas assim, outras poderiam ser empregadas como: resumo, mini-texto, recado, trechinho e outras formas curtas de escrita. Mas não, ela entrará aqui como significado do esquema da Metalinguagem, pois ela não será tratada aqui como uma denotação de tamanho menor, mas uma denotação de cunho maior. Ela será o espéculo que transforma o macro em mundo. “a semiologia da Fotografia está, portanto, limitada aos desempenhos admiráveis de alguns retratistas” (BARTHES, 1984, p. 62). 42 3. PROCURANDO A PALAVRA FRAGMENTO EM CÂMARA CLARA A palavra fragmento não foi encontrada no livro A Câmara clara: nota sobre a fotografia (BARTHES, 1984). Não estamos desapontados ou infelizes por isso, e tampouco nos consideramos fracassados em provar que graças a este léxico, na obra de Roland Barthes, é possível entender e produzir Literatura: isto porque Barthes usa a palavra fragmento como caminho, instrumento, para algo; sempre o “algo” era a razão de existir, de usar a palavra fragmento. Prova disso é Roland Barthes por Roland Barthes (1977) das páginas 101 a 103, onde encontramos textos específicos falando da palavra fragmento e ainda assim não é exatamente a ela que eles remetem. Palavra incompleta, coringa do baralho... Para que serve uma mão cheia de coringas sem ter sequências incompletas para serem preenchidas por eles? E por isso devemos considerar nossa pesquisa inócua? De jeito nenhum, já diz um velho ditado popular: para ver melhor precisamos dos olhos de outros. Roland Barthes, provavelmente, nunca pensou que um dia alguém escreveria uma tese de doutorado sobre a palavra fragmento em suas obras, que ele tanto usou como quem usa um improviso que resolve, uma carta que ignorando o naipe serve, uma palavra-seta que aponta para um texto- valise inspirado em Carroll. Então por que não esperar que em algum livro (ou texto) tal palavra não apareceria? Substância, senhoras e senhores, não forma. Prossigamos: “A língua simbólica a qual pertencem às obras literárias é por estrutura uma língua plural, cujo código é feito de tal sorte que toda palavra (toda obra) por ele engendrada tem sentido múltiplos.” (BARTHES. 1982, p. 214) Também não vem ao caso lembrar que a proposta deste livro, em particular, é a Fotografia e não a Literatura. Comecemos a analisar o livro em questão pela seguinte afirmação de Barthes: “A fotografia pertence a essa classe de objetos folheados cujas duas folhas não podem ser separadas sem destruí-los” (BARTHES, 1984, p. 15). Ora, mas isso é o que Saussure afirmava sobre o signo: “definido como a união de um significante e um significado (à maneira de 43 anverso e verso de uma folha de papel)” (BARTHES, 1993, p.42) ou em J. Teixeira: “Deve-se observar que não há signo sem significado, do mesmo modo como uma moeda não pode deixar de ter cara e coroa” (NETTO, 2003, p. 20); Charles Sanders Peirce (1839-1914) definiu o signo como “um signo ou representamen, é tudo aquilo que, sob um certo aspecto ou medida, está para alguém em lugar de algo” (NÖTH, 2008, p.65) e identificou dez principais classes de signos vindo de combinações possíveis (algumas não são possíveis de serem feitas, por isso dez ao invés de vinte e sete) de três tricotomias sendo o relacionamento do signo com o objeto: ícone, índice e símbolo os mais conhecidos. E ainda com Peirce considerou o ícone como o melhor representante de seu objeto “Ao contemplar uma pintura, há um momento em que perdemos a consciência do fato de que ela não é a coisa”. (Peirce Apud NÖTH, 2008, p.78). E como exemplo incluiu a pintura, o desenho, e a fotografia. O que Roland Barthes quer com esse pensamento é usar a teoria linguística como fonte teórica para melhor entendermos a fotografia. Algo que é muito bem-vindo, embora conhecer a teoria não nos torne melhores jogadores; o próprio Roland Barthes no início do livro vai dizer: “não sou fotógrafo, sequer amador” (BARTHES, 1984, p. 20), mas perto do fim dirá: “O que Marey e Muybridge fizeram, como operators, quero fazer como spectator: decomponho, amplio e, se podemos dizê-lo: ralento, para ter tempo de enfim saber.” (BARTHES, 1984, p. 148) Ou seja, ele vai usar o que sabe mais (semiologia) para tentar entender o que sabe menos (Fotografia), tentar ser tão bom na teoria quanto os fotógrafos foram bons na prática. Para nós a Fotografia é algo que pendula do funcional (foto 3x4) ao artístico (Alain Fleisher, Alfred Stieglitz e muitos outros) 1 e assim como Dante Alighieri (1265 – 1321) disse “Longo e árduo é o caminho que conduz do inferno à luz” e Chico Xavier (1910 - 2002) disse “A alma do animal está na busca da do homem como a alma do homem está na busca da dos 1 Recomendamos uma visita ao site MASTERS OF PHOTOGRAPHY para obter um melhor entendimento sobre esses fotógrafos-artistas e suas maravilhosas obras. A história e a contemporaneidade lhes devem tributo. Disponível em: http://www.masters-of-photography.com/T/talbot/talbot_flowers_leaves_stem.html 44 santos” (trecho do filme Chico Xavier, 2010) não é difícil perceber que há nas fotos uma espécie de busca ou evolução; falamos das fotos que estão no meio do caminho deste movimento pendular da fotografia: fotos funcionais que podem ser, ou consideradas, artísticas como o que ocorre no fotojornalismo e fotos artísticas que podem ser, ou consideradas, funcionais quando usadas para vender algo como o que ocorre na publicidade: “a Fotografia é uma arte pouco segura” (BARTHES, 1984, p. 32). Também existirá sempre uma individualidade, algo só nosso, algo que só nós poderemos explicar na hora de classificar uma foto “Pela marca de alguma coisa deu um estalo, provocou em mim um pequeno abalo, um satori, a passagem de um vazio (pouco importa que o referente seja irrisório)” (BARTHES, 1984, p. 77); Barthes fala por várias páginas (101 a 110) sobre a Foto do Jardim de Inverno (sua mãe criança) para no fim de tantas observações declarar: “Não posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno” (Idem, p. 110), prova de sua dificuldade em classificar, digo: até é possível classificá-la sim, o difícil é convencer os outros do porquê de termos classificado deste ou daquele jeito. Por isso Barthes diz: “Isso aproxima a Fotografia (certas fotografias) do Haiku. Pois a notação de um haikai também é indesenvolvível” (BARTHES, 1984, p. 78). Longo é o caminho e fácil é se perder nele: não saber onde começa uma classificação e onde termina. Por isso, na falta de um Virgílio que guiou Dante e um Emmanuel que guiou Chico Xavier, dissemos que a teoria linguística, escolhida por Barthes, era bem-vinda. Nela, o classificável (suas possibilidades e quais: nome de onde começa, nome dos níveis intermediários e nome de onde termina) se torna lugar comum, tabuleiro com peças, regras bem definidas, em suma: usar as “ferramentas” que já existem “à dignidade de uma língua” (BARTHES, 1984, p. 16) como ponto de partida para termos com o quê trabalhar. E repetindo: não estamos falando de algo inclassificável, mas de algo que ao ser classificado não “casa” com a opinião dos outros (polissemia); desenvolvível sim, consenso não. 45 E por falar em discordância: foi ele (Barthes) quem sugeriu uma correção em Saussure: “A Linguística não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é parte da Linguística” (BARTHES,1993, p.13), devido a sua vital utilidade, e se vital, por que não dizer importância? Ora, então ele está certo, que se inverta a ordem por justiça. Com base em tais teorias, nos faz refletir: será a fotografia um signo seguro? “privadas de um princípio de marcação, as fotos são signos que não prosperam bem, que coalham, como leite.” (BARTHES, 1984, p. 16). Pensem em um fotógrafo que por descuido “disparou” a máquina fotográfica sem enquadramento, sem foco, sem intenção, puro acidente e ao revelar encontrou algo amorfo sem qualquer sentido, algo que faria qualquer um dizer: “Perdeu-se!” Isto porque uma foto, como um signo, não pode ter seu significante separado de seu significado, todo significante tem significação, ou seja: potencial de significar e no momento em que conseguimos apreender seu significado temos o signo completo. No caso da fotografia, por seu caráter polivalente, sua significação se torna mais desafiante, pois seu “significante fotográfico” (BARTHES, 1984, p. 17) é variado, não é convencionado, nas línguas juntam-se os fonemas (limitados) e formam-se as palavras que, devido à dupla articulação (morfemas e fonemas), fazem um número quase infinito de associações. Nas fotografias, logo de início não temos alfabeto para padronizar o que quer que seja, tudo serve de escrita e assim como na língua uma palavra pode ser decomposta/fragmentada em, por exemplo: radical, vogal temática, morfemas de modo, tempo, número pessoal. Uma fotografia pode ser analisada/entendida por esse mesmo método de repartição/fragmentação. Enquanto na língua, porém, esses morfemas partidos são fixos e conhecidos, na fotografia eles são variados e desconhecidos. “ela gostaria, talvez, de se fazer tão gorda, tão nobre quanto um signo, o que lhe permitiria ter acesso à dignidade de uma língua” (idem, p.16). Por isso não 46 raro são os casos em que o entendimento não é alcançado, fazendo a pessoa desatenta dizer: “Perdeu-se!” ao invés de dizer: “Sensacional!”. Observem esta foto: 2 Shadowstreet A princípio, constatamos sua posição invertida, mas se dissermos que é assim que o fotógrafo a mostra (observem o título), o que diriam? Reparem, com esta proposta de inversão do significante alcança-se uma inversão do significado: as sombras, que são indícios (segundo Pierce) de que há sol e pessoas bloqueando o sol, tomam o lugar das pessoas e as pessoas se tornam sombras das suas sombras. “A fotografia é inclassificável porque não há qualquer razão para marcar tal ou tal de suas ocorrências” (BARTHES, 1984, p. 16). Mas apesar de não ter, de início, um alfabeto tem em princípio uma limitação: tudo o que ela mostra existe e é reconhecido, assim como num alfabeto. Uma pessoa que faça cara de raiva terá sua expressão reconhecida seja ela de que raça for, de que idade for, de que tamanho for. Cenários belos, horríveis, neutros (fundo branco) serão igualmente reconhecidos. Esse é o caráter superficial da fotografia, o que a faz “coalhar” metáfora utilizada para apontar exatamente isso: a sua superfície. E por sua superfície - considerada muito mais como apenas um dos dois elementos: significante, cuja união deste com o significado resulta em signo “pode-se dizer, pois, somente que a substância do significante é sempre material (sons, objetos, imagens)” (BARTHES, 1993, p. 50); visto que a chamada imagem é escrita pelos próprios relata (fotógrafo – fotografado) em questão “Parece que em 2 Esta foto (Shadowstreet) pertence à Galeria de Erathic Eric. Disponível em: http://www.flickr.com/photos/invad3r/481858198/ e acessado em 19/04/2008. 47 latim „fotografia‟ se diria: „imago lucis opera expressa‟; ou seja: imagem revelada, „tirada‟, „subida‟, „espremida‟ (como o suco de um limão) por ação da luz” (BARTHES, 1984, p. 121), ou seja “(não há foto sem alguma coisa ou alguém)” (Idem, 1984, p. 16), este em parte bloqueará uma parte da luz e refletirá uma outra, o sal de prata existente no interior de uma câmara escura receberá um instante de luz e sombras provocadas por este “alguma coisa ou alguém” e da sensibilidade do sal de prata a este conjunto nascerá a fotografia. Então podemos dizer que a fotografia é uma forma de escrita onde o fotografado é a caneta, a luz é a tinta desta caneta, o papel fotográfico é o papel específico que tem condições de receber tal escrita de um fotógrafo. Por haver sempre a necessidade de uma caneta para que haja escrita, a foto se tornou um instrumento a serviço da verdade, uma verdade “coalhada” como já disse Barthes “A Fotografia é sempre apenas um canto alternado de „Olhem‟, „Eis aqui‟; ela aponta com o dedo um certo vis-à-vis e não pode sair dessa pura linguagem dêictica” (BARTHES, 1984, p. 14). Isto para os que não são “iniciados” em tal arte (ou pesquisa). Não tocaremos, agora, na questão da participação e/ou influência do fotógrafo no papel desta escrita, optando em ficar, no momento, apenas com: “a arte recupera a sua própria contestação e faz dela uma nova arte” (idem, 1984, p. 168). A fotografia é reputada como uma arte exacta, empírica, totalmente dedicada ao serviço dos fortes valores positivos, racionais que não são a autenticidade, a realidade, a objectividade: no nosso universo policial, não é a fotografia a prova invencível das identidades, dos fatos, dos crimes? (BARTHES, 1984, p. 167) Quando Barthes fala em “coalhar”, está se referindo ao caráter superficial do significante fotográfico “Posso apenas varrê-la com o olhar, como uma superfície imóvel” (BARTHES, 1984, p. 156). Percebeu que haveria uma perda de informação se olhássemos para uma foto e só víssemos isso: um signo icônico interpretado apenas pela teoria do signo linguístico. Resolveu ir além. 48 Podemos considerar a fotografia como um fragmento de instante congelado para sempre, sendo este “para sempre” proporcional a resistência do papel onde foi revelado “...essa foto que amarelece, empalidece, apaga-se e um dia será jogada no lixo” (BARTHES, 1984, p. 140), um clássico “Que não seja eterno posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure” do Vinicius de Moraes (MOISÉS, 2004, p. 282), que Roland Barthes deixa bem claro em sua obra, assim como em outras, a questão da história (enquanto tempo, se nos perdoam a redundância); a questão das mudanças ocorridas ao longo do tempo nos faz perguntar como Roland Barthes nunca escreveu um ensaio sobre Cronos e seu apetite devorador. Em estudos sobre a Fotografia existem autores como Susan Sontag com Sobre fotografia (2007) e Vilém Flusser com Filosofia da Caixa Preta (2002) que estudaram com mais afinco o binômio: velocidade-tempo. Por Barthes não se alongar muito em tal binômio, mais melancólico “Para mim, a História é isso, o tempo em que minha mãe viveu antes de mim (aliás, é essa época que mais me interessa, historicamente)” (BARTHES, 1984, p. 98) a que técnico como fizeram os autores que sugerimos: Na obra de Sanders, todos estão devidamente situados, ninguém está perdido ou desconcentrado. [...] Sanders não sabia que fotografava um mundo em via de desaparecer. Vroman sabia (sobre os índios americanos). Também sabia não haver salvação para o mundo que registrava. (SONTAG, 2004, p. 76 e 77) Os aparelhos foram inventados para emancipar o homem da necessidade do trabalho; trabalham automaticamente para ele. O aparelho fotográfico produz imagens automaticamente e o homem não mais precisa movimentar pincéis esforçando-se para vencer a resistência do mundo objetivo. (FLUSSER, 2002, p. 67) Resolvemos, como Barthes: nosso autor principal, não nos alongarmos também neste subtema, recomendando apenas a leitura dos autores propostos, não que eles tenham escrito propositalmente sobre, mas por terem escrito proporcionalmente mais: se prosseguíssemos com o estudo deste binômio (velocidade-tempo): ganharia a pesquisa sobre fotografia, mas perderia a tese sobre Barthes, numa proporção de dois para ele contra quatro de Sontag e quatro de Flusser (sem incluir outros). E se fossemos falar sobre tal binômio não seguiríamos 49 o caminho proposto por nenhum deles; começaríamos descrevendo o que existe hoje de mais moderno: câmeras capazes de capturar o momento exato em que uma bala (munição) atravessa/atinge um objeto ou as asas de um beija-flor batendo em pleno voo - e a praticidade de tirar uma foto com um aparelho de celular e imediatamente mandá-la para uma caixa de correio eletrônico (E-mail) e dela para o mundo (o que os remanescentes da Guerra Fria estarão pensando agora?). Estaríamos, inicialmente, mais preocupados em produzir um texto técnico (novas tecnologias), mas sem ser tecnicista: como o que vemos no programa Olhar digital (RedeTV, todos os domingos às 15:45), para só depois podermos começar a filosofar sobre os efeitos disso no Sujeito. Pois acreditamos não ser possível falar de consequências (Sujeito que faz, envia, recebe e reage) antes de se falar das causas, na verdade os meios (o que existe – hoje – para o Sujeito fazer, enviar, receber, distribuir e redistribuir). O que foi escrito na aurora da fotografia (registro histórico) tem utilidade hoje, mas pela evolução do binômio velocidade-tempo, e por acréscimo: acesso fácil em ter e fazer, praticidade em distribuir (o que é seu) e redistribuir (o que você recebeu e é de terceiros), acreditamos que tais escritos precisam continuar, ser atualizados. Susan Sontag, em Sobre fotografia (2004), narra um filme: The cameraman, onde “um inapto e sonhador Buster Keaton” sempre atrapalhado com a câmera nunca consegue uma imagem descente, mas no fim consegue: seu macaquinho de estimação opera a câmera – por descuido – e capta “(um furo fotográfico de uma guerra de quadrilhas no bairro de Chinatown em Nova York)” (SONTAG, 2004, p. 68). E dito isso agora pensem: há milhares de celulares com câmeras nas ruas, estão sendo usadas, captando, divulgando via jornalismo e Internet, e, proporcionalmente, poucos estão escrevendo sobre tal fenômeno: o que está sendo feito com o que existe hoje. E voltando a falar da tese (O fragmento barthesiano) e de um livro escrito originalmente em 1980: mais uma vez reafirmamos não ter encontrado a palavra fragmento nesta obra, mas o que podemos aprender com ela (a obra, esta obra: A Câmara clara: nota 50 sobre a fotografia) a respeito de seu caráter fragmentário, sendo este fragmentário entendido desde o assunto em si: a fotografia como fragmento de um instante; e como organização, visto que apesar de possuir uma linearidade, não deixa de ser uma obra escrita por (ou a partir de) fragmentos. Além do fato de ela mesma ser um fragmento de obra destacada de uma bibliografia; bibliografia esta que também se dedicou ao cinema, comerciais, teatro, revista de moda e outros meios de comunicação que cercam nossa vida. Nunca o homem esteve tão exposto a estímulos: Eros e Tánatos provocados ao limite, e como resultado disso o superego “joga a toalha”. Por isso gostaríamos de descrever alguns pontos mais relevantes, sem necessariamente fazer uma analogia (comparação) com o texto escrito (Literatura), Barthes não o fez, diretamente nesta obra, e não seremos nós a fazer; sob pena de nos afastarmos ainda mais da proposta inicial (e lembramos): procurar a palavra fragmento e a partir dela entender e produzir Literatura. Sendo esta “Literatura” entendida aqui como um jogo de troca, um jogo feito com fragmentos. E é porque a literatura, em particular, é uma adivinhação que ela é ao mesmo tempo inteligível e interrogante, falante e silenciosa, engajada no mundo pelo caminho do sentido que ele refaz, mas liberada dos sentidos contingentes que o mundo elabora: respostas àquilo que a consome e, no entanto, sempre pergunta à natureza, resposta que interroga e pergunta que responde. (BARTHES, 1982, p. 55) E conforme formos “pinçando” alguns tópicos (os mais relevantes), analogias serão feitas quase que instantaneamente (mais do que já foi feito até agora); vejamos: A questão do Operator que é o fotógrafo e o Spectator que é aquele que consome e/ou é fotografado. Impossível não ver nisso o binômio escritor/leitor, aquele que escreve e aquele que consome; se aplicarmos aqui a proposta de “A morte do autor” ou simplesmente convidar o leitor (Spectator) a se por no lugar do escritor (Operator), como fazer isto sem se libertar do caráter superficial? Por que alguém ficaria melhor se levantasse mais a cabeça ou ficasse um pouco mais para a esquerda? É por este diálogo comum existente no básico da fotografia que 51 convidamos o leitor (Spectator) a se aprofundar num domínio que era exclusivo, segundo a crítica, dos escritores (Operator). E não era assim que os filósofos gregos faziam, do discurso básico (senso comum) para o aprofundamento, o questionamento do que é, hoje, conhecido como verdade? Entendemos que esta proposta de Barthes (Operator/Spectator) causa uma separação não com o objetivo de criar um novo produzir, mas entender melhor o que foi produzido e consumido. A câmara obscura (máquina fotográfica) como instrumento de transição e/ou deslocamento da realidade para um papel, algo tridimensional para o bidimensional; a reação química do sal de prata e os caracteres gráficos no papel, como proposta de reprodução do que se vê, sendo que no caso dos quadros ou da escrita o objeto almejado pode não estar necessariamente presente, mas no caso da fotografia “(não há foto sem alguma coisa ou alguém)” (BARTHES, 1984, p. 16) ou “Chamo de „referente fotográfico‟, não a coisa facultativamente real a que uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia. Enquanto a pintura pode simular a realidade sem tê-la visto.” (Idem; págs. 114 e 115) Tanto fotografia quanto pintura precisam de Operator: “A vidência do Fotógrafo não consiste em „ver‟, mas em estar lá” (Idem, Ibidem; pág. 76). Portanto, podemos dizer que a fotografia une necessariamente o observador e o observado “Assim, mais vale dizer que o traço inimitável da fotografia (seu noema) é que alguém viu o referente (mesmo que se trate de objetos) em carne e osso, ou ainda em pessoa” (Idem, Ibidem; pág. 118). Ao passo que na pintura o observado pode ser apenas interno, na mente do observador, exteriorizando no quadro o que é ou deveria ser o retratado. Mas como já vimos em uma foto propositalmente “invertida”, nem sempre, na fotografia, algo que – é – precisa continuar – sendo. Na fotografia o que está na mente 52 também pode ser exteriorizado, por outros meios ou por outras pessoas; proposital ou acidental. A respeito da fotografia em si, o Spectrum, Barthes chama a atenção para determinados detalhes (proposital ou acidental) que quase nos escapam, quase, pois assim que são notados... O espanto! “muitas dessas fotos me prendiam porque comportavam essa espécie de dualidade que eu acabava de detectar” (Idem, Ibidem, pág. 40). Resolveu chamar de Studium a esse varrer com o olho, um estudo assumidamente superficial “que não quer dizer, pelo menos de imediato, „estudo‟, mas a aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular” (Idem, Ibidem; pág. 45). E de punctum aquele que vem quebrar a harmonia, ele não é colocado, visto que já está lá (aliás, sempre esteve lá), nós é que o descobrimos. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do Studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem transpassar. Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas.(BARTHES, 1984, p. 46) Analisaremos agora duas fotos, que não estão no livro de Barthes, trazidas aqui apenas para pesquisarmos se pode haver Punctum proposital, ou seja, se pode haver intenção do fotógrafo, manipulação, para haver/provocar, digamos um espanto? Isto porque para alcançar nossa proposta estamos dispostos a, e lembramos o escrito na introdução: [...] entrar em outras áreas além da literatura, não de forma mui to abrangente nem conclusiva, antes, de forma exploratória e indagadora. Portanto e m Robert Doisneau, Paris, 1950 temos dois beijos: um “Le baiser de L´Hotel de Ville” que apesar de parecer ter sido arrebatado, capturado, foi na verdade encenado. E em Square du Vert-Galant o principal do primeiro vira detalhe no segundo... Ou não?!?! 53 Le Baiser de l'Hotel de Ville, Square du Vert-Galant Em Luis Humberto temos o seguinte comentário: Se temos o intuito de, pelo uso ordenado de uma linguagem, passar às pessoas o resultado de nossas descobertas e invenções, devemos conceder-lhes a possibilidade de se defrontarem com surpresa e dar-lhes o direito de fazerem, elas próprias, suas redescobertas. Isso pode ser conseguido não explicitando demasiadamente o conteúdo, mantendo-o deliberadamente oculto, permitindo apenas frestas que animem a curiosidade e o gosto pela procura de um sentido não imediatamente percebido, como se deixássemos alguns cantos escuros, só entendidos quando a vista se acostuma. É necessário confiar aos destinatários a interpretação do não expresso. (HUMBERTO, 1983, p. 89. Grifo nosso) Uma rápida olhada e a segunda foto só seria um guarda a conversar com uma senhora enquanto uma criança olha para o outro lado. Provavelmente a foto em questão não chamaria a atenção de Barthes, pois “Certos detalhes poderiam me „ferir‟. Se não o fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente.” (BARTHES, 1984, p. 75). Talvez Doisneau tenha tido a intenção, nesta segunda foto, de criar uma espécie de “canto escuro” de Luis Humberto ou “campo cego” de Barthes para surpreender o espectador. Mas qual fotógrafo pode garantir o sucesso de um Punctum intencional, visto que tal resultado não está mais nas mãos dele. Em verdade todos nós tentamos algo assim, tentamos criar um diferencial, caso contrário o que seria um melhor ângulo, para que posar para uma foto? Mas o Punctum de que Roland Barthes fala não se enquadra nessas tentativas, é algo que muitas vezes está além do próprio resultado que o fotógrafo quer alcançar. Vejamos esta foto: 54 A Navy Corpsman of the First Hospital Company assists a wounded Republic of Korea Marine. Photo taken in 1967. Chu Lai, Republic of Vietnam. 3 Quem, com toda a honestidade do mundo, reparou que este soldado ferido (Spectrum) na foto (Studium) perdeu as duas pernas (Punctum)? Se esta foto conseguiu “pegar” você (Spectator), pense agora no seguinte: ao não se centralizar a amputação criou-se um “canto escuro” para desvelamento. Talvez o fotógrafo (Operator) tenha pensado nisso, mas talvez ele tenha apenas “batido” uma foto (hipótese mais provável) e como sabedor do que fotografou, não achou “escondido” uma amputação com bandagem branca em um lençol branco em uma foto preto e branco em um canto inferior direito, que sobre um papel branco sem margens na foto a fez praticamente desaparecer. Isto tudo para dizer que um Punctum pode até mesmo, sem a intenção do fotógrafo, acontecer. Em resumo, “A morte do autor” ocorre mais facilmente na fotografia, não que os autores da fotografia não sejam importantes (e em alguns casos menos conhecidos), é que na fotografia há sempre aquela preocupação que sempre deveria existir nos textos: um desafio claro para a interpretação: admirar o Studium do texto sem deixar de procurar o Punctum que seguramente há neles. Na fotografia, devido à falta de um alfabeto que reduziria os significantes a um número bem menor, o desafio de entender, de conseguir ler, se torna mais assumido; é bem verdade que com as letras podemos formar as palavras como em “carro” e com o Alfabeto Fonético Universal (AFI) o seu som ['kaɾu], mas com a foto de um não temos 3 Nota: esta foto não pertence à obra em estudo. É uma iniciativa nossa de reforçar e/ou trazer novos exemplos. Disponível em: THE VIETNAM WAR PHOTO ALBUN, http://www.geocities.com/~nam_album/ Acessado em 19/04/2008. 55 um simples entendimento do que estamos vendo, há toda uma “contaminação”, um sobrepor de informações que vai - e muito - além do que as palavras conseguem fazer, não importando a fonte usada e seu tamanho, pois esses métodos de ampliar o significado “enfeitando” o significante até surtem algum efeito, por isso utilizados, mas não é disso que estamos falando; na foto de um carro é inseparável o chão onde ele está, a cor, marca, ano... Informações que já são natas no momento em que vemos “(como Kertésk poderia ter „separado‟ o chão do rabequista que sobre ele anda?” (BARTHES, 1984, p. 76, foto na p. 74) e que no caso da escrita só podem existir transmutando o significante a um nível artístico o deixando/tentando paralelo com o caso do desenho ou da fotografia por extensão pictórica; um bom exemplo do que estamos querendo dizer pode ser encontrado nos caligramas. É pelo “excesso” de informações, por assim dizer, que é possível transformar certezas em outras certezas. Por exemplo, onde está o carro neste anuncio 4 (2009) de exposições de carros? Por isso na fotografia o leitor não se torna, se considera tão inocente (passivo), participa do “jogo”: o jogo do desvelamento, para com ele não só entender, mas usufruir do que entendeu: Um vendedor veste um manequim na vitrine, uma cliente olha, é convidada a entrar, mas ela agradece e vai embora, o que ela queria não era comprar era tão somente apenas pegar a ideia para em casa montar algo “igual” com o que já tem e continuar na moda. 4 Disponível em <http://contagiros.wordpress.com/2009/06/18/lancamento-do-poster-oficial-do-salao-de- frankfurt-2009-na-alemanha/>. E nome do Designer: Ademilson - Mek – Disponível em : http://brainbox.labin.pro.br/?p=480. Ambos acessados em 20/11/2009. 56 Agora uma questão: o esconder pode ser entendido/considerado como significação? Primeiramente é necessário lembrar que em muitos livros de semiologia a significação aparece como uma seta desenhada/representada acima dos: significante (Se) e significado (So) em direção (e que resultam) ao signo “A significação pode ser concebida como um processo; é o ato que une o significante e o significado, ato cujo produto é o signo” (BARTHES, 1993, p. 51) e dito assim parece simples: trata-se de falar e ser entendido, caso contrário quem não entendeu tal palavra sabe que ela tem uma significação e ao ir ao dicionário e saber seu significado, então tal palavra passa a ser entendida como signo pleno. Mas como algo que está escondido pode comunicar? Resposta: somente quando for descoberto, tal descoberta alterará o primeiro significado. Mas essa descoberta, quando feita, desencadeia nossa proposta: a partir da escolha de um fragmento, ver o todo, sobre a ótica deste fragmento. Ele será um significante menor que alterará o significante maior (fragmento alterando o todo), como ocorre com a dupla articulação seja por morfema ou fonema temos uma alteração, nova palavra, conduzindo a significação para outro significado, diferente do primeiro. Gabarito mental em pleno funcionamento. Mas existe também a questão do valor. “A significação tampouco pode ser confundida com o valor do signo embora, como reconhece Saussure, seja difícil saber como este se distingue daquele.” (NETTO, 2003, p. 23). Mas para o que queremos este valor vai ser tratado aqui de forma individual, ou seja: valor para mim. Barthes quer entender o “eu gostaria de saber o que, nessa foto, me dá o estalo” (BARTHES, 1984, p. 36) algo que pode existir com ou sem a intenção de quem a produziu. Se inicialmente temos uma intenção de comunicar e para tal mexe-se com a forma do significante para influenciar o significado: “um esforço de promoção social para enfeitar-se com os atributos do Branco (esforço comovente, na medida em que é ingênuo)”. (BARTHES, 1984, p. 71). Com o Punctum já não nos interessa o significante inteiro e menos ainda o que esta lá de propósito, mas somente as partes que “descubro”, que realmente me “punge” e como cada parte escolhida e retirada mentalmente vai 57 ter, e tem, seu significado, o processo de significação que leva cada pequeno pedaço a significar a si mesmo, pode modificar o significante principal a ponto de seu significado original ficar completamente modificado. Algo escondido não é o mesmo que algo que não existe. Ele (o escondido) está lá, sempre esteve. “Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do Studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar.” (BARTHES, 1984, p. 46). Portanto, num primeiro momento temos um signo (signo icônico), que sempre foi o mesmo, que cumpriu seu papel de mostrar, e o entendemos (signo pleno). Depois que passamos a fase do “Posso apenas varrê-lo com o olhar, como uma superfície imóvel” (BARTHES, 1984, p. 156) percebemos que algo nele, um fragmento do todo (forma do significante), nos chama a atenção; um fragmento que pode ter sido colocado lá intencionalmente pelo Operator ou não, isto está além da capacidade dele, não depende só dele. Quando Roland Barthes descreve o que chamou sua atenção, num primeiro olhar, em uma foto: de James Van der Zee: Retrato de família, 1926 (Idem;1984, p. 70) somente em muitas páginas seguintes ele se dá conta de um detalhe que lhe fugira antes “No entanto, a partir do momento em que há Punctum, cria-se (adivinha-se) um campo cego: por causa de seu colar, a negra endomingada teve, para mim, toda uma vida exterior a seu retrato” (Idem, Ibidem; p. 86 Grifo nosso). Ou seja, o colar não foi o “motivo” da foto, o Operator teve uma intenção, montou um cenário, mas o que lhe chama a atenção é a composição cênica e não os atores ou a peça em si. Não que eles não tenham valor, mas para sair da superfície eles devem “ceder” o valor. O Punctum (ou “pungente”) é sempre pessoal: “para mim”, e dezesseis páginas depois, da página 70 (onde apontou alguns: a larga cintura, braços cruzados para trás das costas, e é claro seus sapatos) para a 86, aquele fantasma (Spectrum) da negra endomingada ainda o “incomodava”. 58 Como já havíamos dito, as palavras podem ser decompostas em unidades menores. Parece ser mais fácil trabalhar com signos mais conhecidos, mais seguros, mas mesmo com eles podemos ter surpresas. Vejamos o curioso caso do filme Amistad (Steven Spielberg; 1997) onde encontramos um diálogo no mínimo pitoresco: o advogado Baldwin (Matthew Mc Conaughey) tentava explicar por intermédio de um tradutor que ele pretendia, queria, gostaria de libertar seus clientes e num dado momento pergunta ao tradutor por que ele não estava traduzindo, perguntou se não existiam essas palavras na língua dos escravos africanos que estavam sendo julgados e este respondeu que o problema não estava nas palavras, mas no tempo verbal (futuro do pretérito), pois na língua deles, na verdade, cultura, sempre que alguém diz que vai fazer, faz, portanto, o futuro do pretérito não existia. Ao refletir sobre esse curioso caso que envolve essa peculiaridade do futuro do pretérito, começamos a pesquisar. O tempo verbal em português está dividido em três: presente, o passado subdividido em três que correspondem à ordem de afastamento: pretérito perfeito, passado recente; pretérito imperfeito, passado mais distante; pretérito mais-que-perfeito, passado mais distante ainda. Mas o futuro não está subdividido em três como o pretérito e por ordem de afastamento; ele é dividido entre o que se irá fazer e a possibilidade de não se realizar o que se iria fazer, pois quando realizado responde-se no presente ainda que já tenha se realizado há algum tempo. Por isso este tempo é tão “ingrato” por assim dizer. Dificilmente alguém “fica bem” usando o futuro do pretérito. Começamos então a investigar. Se ele aponta para uma impossibilidade de sucesso, por qualquer razão que seja, tentamos usar a lógica da matemática que também funciona em português: um número negativo vezes outro número negativo é igual a um positivo, então tentamos: “Você não é incompetente.” funcionou, o advérbio anulou o prefixo de negação, agora vamos tentar outro exemplo com o futuro do pretérito para vermos se o advérbio acaba com a impossibilidade “nata” deste tempo verbal: “A diplomacia não acabaria com a guerra”. Constatamos agora que não funcionou, aliás, piorou, pois enquanto em “A 59 diplomacia acabaria com a guerra” haveria uma possibilidade, chance de ela acabar se usada ou quando usada, com o advérbio de negação ela não só ainda não acabou como continuaria mesmo havendo diplomacia. Mas e se usássemos este tempo em verbos que não gostaríamos que acontecessem. Vamos tentar: “Ele se afogaria sem a boia” então, ele não se afogou. E em “Ele morreria de infarto” então não morreu. Finalmente, um jeito de usar o futuro do pretérito sem ficar “mal na fita”. Parece uma bobagem essa curiosidade sobre um morfema tão usado por todas as classes sociais, mas quantos já se atreveram a pensar sobre ele dessa maneira? Estamos levantando essa lebre para dizer: se em algo fixo, pequeno, sabido e estudado como um tempo verbal é possível ter toda uma significação comprometida - imaginem em algo que é livre, existente no mundo e arbitrariamente convencionado. Como pode cada parte de uma fotografia, cada fragmento que compõem o todo ter o mesmo significado para as pessoas. A resposta é: não. Poderíamos até notar o colar da negra 5 , mas este colar nela teria para nós o mesmo significado que teve para Barthes? É por isso que o Punctum é sempre muito pessoal, nele não existe apenas a possibilidade de existir ou não, também sempre vai existir o quanto queremos que ele afunde. Uma espetada que poderá ser só de leve: uma negra com colar; uma profunda como um soldado sem as duas pernas colocado propositalmente sem moldura em uma folha branca; e uma mais profunda ainda sobre o futuro do pretérito que pode ser apenas os morfemas RIA e 5 BARTHES, 1984, p. 70. 60 RIE para um estudante do primário, parte de uma justificativa para quem não cumpriu o prometido ou uma inquietação linguística para quem percebeu num filme uma situação do dia a dia pouco estudada. A fotografia a pesar de não ser a coisa em si e não ter suas “marcações fixas” como na língua, facilita, e muito, a tarefa de encontrar seu significado. Poucos “representantes” do significante conseguem fazer o mesmo de forma tão rápida e fiel. O discurso combina signos que certamente têm referentes, mas esses referentes podem ser e na maior parte das vezes são “quimeras”. Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. [...] Os realistas, entre os quais estou, e entre os quais eu já estava quando afirmava que a Fotografia era uma imagem sem código – mesmo que, evidentemente, códigos venham inflitir sua leitura -, não consideram de modo algum a foto como uma “cópia” do real – mas como uma emanação do real passado: uma magia, não uma arte. (BARTHES. 1984, p. 115) Para haver punctum no texto é necessário que haja pelo menos uma palavra (em nível de primeira articulação ou até mesmo uma única letra em nível de segunda articulação), um fragmento que nos remeta a um instante de “revelação”. Quem já não passou por uma situação em que uma única palavra (alterada ou não por uma letra, proposital ou não por uma situação – o ato falho como verdade que o superego não conseguiu segurar); talvez esquecida em nosso passado, talvez criada por neologismo por alguém mais hábil ou sensível; já não nos abalou... Apanhados como que por um soco de súbito. Como a Fotografia é contingência pura e só pode ser isso (é sempre alguma coisa que é representada) – ao contrário do texto que, pela ação repentina de uma única palavra, pode fazer uma frase passar da descrição à reflexão -, ela fornece de imediato esses “detalhes” que constituem o próprio material do saber etnológico. (BARTHES, 1984, p. 49) Como a proposta de Barthes é fazer uma análise de um ponto de vista de quem não se assumiu como fotógrafo; nada mais justo que trazer a tona uma invenção (mais uma metáfora explicativa) da aurora da fotografia, um instrumento, ironicamente chamado de não- 61 fotográfico, apesar da história da fotografia pagar tributo a ela (invenção) e ao seu respectivo inventor. WOLLASTON CAMERA LUCIDA 6 Trazendo para sua obra, este invento, Barthes tenta aproximar os relata de quem os observa (e vice-versa, não é mesmo?), tenta dar mais credibilidade ao que é relatado, ou se preferirem, tornar o meio de transição do real para o papel menos indireto (reações químicas por mãos e instrumento para escrever, desenhar ou riscar) e mais puro - ainda que se mantenha a mão do homem a fazê-lo, este homem sempre tão suspeito, mas ao se tornar limitado/aprisionado a apenas circunda a imagem que ele vê, por tal “aprisionamento” dá-se credibilidade. Barthes tenta entender/achar o tão falado, excluído, normalizado – Sujeito; aquele que é citado, puxado por todos os membros pelas ciências; a História puxa uma perna, a Sociologia a outra, a Antropologia um braço, a Psicologia o outro e no topo de tudo puxando a cabeça até o limite de uma lesão – a ideologia que nada mais é que “a ideia enquanto domina” (BARTHES, 2002, p. 41), mas domínio de que ou sobre quem... Do outro Sujeito? E ainda assim o Sujeito está lá em cada ciência se escrevendo e tentando se entender. Pois o Sujeito em Barthes nada mais é que os relata (fotógrafo – fotografado, escritor – leitor) escrito no singular. 6 Esquema do traçado dos raios de luz através do prisma de uma câmara lúcida: os raios de luz provenientes do objeto atravessam a face semiespelhada, incidem na face espelhada e se refletem novamente na face semiespelhada dirigindo-se aos olhos do observador que vê a imagem como se ela estivesse sobre o papel. A imagem é virtual, não é projetada no papel - só o observador a vê. Se alguém estiver ao lado do pintor enquanto ele desenha, não terá como saber se ele está desenhando diretamente do objeto ou "copiando" a imagem projetada sobre o papel. 62 A proposta de Barthes é entender esse Sujeito que produz Sujeitos reproduzindo-os nos diversos significantes de que dispõe; e conforme o significante vai se acasalando com seu significado... Eis o signo; e conforme este e aquele signo se unem... Eis um signo ampliado. E aqui está o desafio de descobrirmos quem somos pelo que produzimos e/ou reproduzimos. No que diz respeito à fotografia, Barthes até acredita que é possível isso acontecer, apesar dele próprio admitir que este Sujeito adore posar “Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” 7 . Ora, como está escrito no Banquete, de Platão (PLATÃO, 1979, p. 32) 8 : “- Esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não está a mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente”. Resumindo: só se deseja o que não se tem, é natural que o homem busque ser, mais especificamente na foto, o que acredita ser ou o que quer que acreditem que ele seja. Buscar uma perfeição não é doença, acreditar que se possa alcançar tal perfeição é que é: Abraão foi um só, mas todo judeu tem a obrigação de tentar ser igual; Jesus foi um só, mas todo cristão tem a obrigação de tentar ser igual; Maomé foi um só, mas todo islâmico tem a obrigação de tentar ser igual, Buda foi um só, mas todo budista tem a obrigação de tentar ser igual; caso contrário, para que rezar? No que acreditar? Como viver? Agora que provamos que o posar não é uma fuga deliberada, um esconder-se, mas uma “escolha de viver”; não devemos ver nisso um método falho de se ver/encontrar o Sujeito (Homem), mas pelo contrário, se é/há uma escolha e sabemos disso, o erro estaria em esquecer isso: o posar como algo natural; fazer uma análise da fotografia como uma tautologia é onde reside o erro, pois uma verdade “decalcada” em uma folha, seja por qual instrumento for: câmara clara, câmara escura, lápis, pincel não deixa de ser artística só por ser 7 BARTHES, 1984, p. 22. 8 Platão (428 ou 7-348 ou 7 A. C.) – Diálogos / Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores). 63 uma verdade, talvez, em alguns casos, ela consiga ser mais artística que as próprias produções propositalmente artísticas justamente por serem verdade. J.F. Diorio, fotojornalista do Estado de São Paulo, virou manchete após ser premiado pelo World Press Photo 2004, na categoria Notícias Gerais. Diorio, com 14 anos de estrada, foi fotografar um incêndio na favela do Buraco Quente, em São Paulo, no mês de agosto de 2004. Entre as três e sete horas da tarde, ele registrou mais de 200 imagens. Gente desesperada, crianças correndo, barraco pegando fogo, mulher chorando, homens tentando salvar o pouco que possuíam, bombeiros cumprindo seu dever. Detalhe: É possível ler na placa, ao centro: VEMDESE UM BARRACO (com “M” e sem hífen). Daí o fato de alguns artistas repudiarem o fotojornalismo, é que ele é por demais sintético, eternamente preso a uma tautologia. Barthes termina seu livro dizendo estar a disposição da sociedade dois meios de se ver a fotografia: o primeiro “consiste em fazer da Fotografia uma arte, pois nenhuma arte é louca (BARTHES, 1984, p. 172) e o “outro meio de tornar a Fotografia sensata é generalizá-la, gregarizá-la, banalizá-la, a ponto de não haver mais diante dela nenhuma imagem em relação à qual ela possa se marcar, afirmar sua especialidade, seu escândalo, sua loucura. (BARTHES, 1984, p.173). 64 Até é possível encontrarmos alguma arte no fotojornalismo, mas como sua proposta principal não é esta, nos resta apenas a inveja pela oportunidade aproveitada e o lamento de sua raridade 9 . Parisiense chora, nazistas em Paris. Após 5 anos de luta. Os nazistas choram. ACABOU! Aqui pomos uma minifotonovela: fotos que por si só não falariam muito, mas devidamente agrupadas contam uma estória, um resumo da Segunda Guerra Mundial. Há livros de foto especializados em fotojornalismo e talvez, por eles existirem, devamos rever nosso comentário sobre ser rara a proposta de se fazer arte com a verdade (jornalismo), mas como muitos sabem: a proposta de um jornalista é primeiro com os fatos e somente depois com uma possibilidade de “arte” e colocamos a palavra entre aspas, pois ao se buscar ou fabricar uma foto tem-se como objetivo um fazer pensar, mas antes de falarmos sobre este último vamos explicar o que entendemos por “buscar” e “fabricar” com um exemplo tripartido: um fotógrafo designado para cobrir a morte de um traficante chega ao local de um crime. Assim que chega dá de frente com um corpo caído no chão (o traficante), ele dispara a máquina sobre o Sujeito convertido em Objeto Fotográfico, vai até a redação do jornal e voilà - 9 Disponíveis em: 1) Parisiense chorando: sometime around August 25th 1944. Disponível em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/43_0023a; 2) Homem anotando os anos com giz: Sgt. Edward Hill, Manchester, England, captured five years ago at Dunkerque was freed when American Seventh Armored Division, First Army captured Dulag-Luft POW Camp, ca. 03/29/1945 - Disponível em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/23_0482a; 3) Mulher fazendo a saudação nazista: disponível em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/23_0464a; 4) Foto de marinheiro beijando enfermeira na Times Square (Nova Iorque), o momento foi imortalizado pelo fotógrafo Alfred Eisenstaedt (1898 – 1995) em 14 de Agosto de 1945: Disponível em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/5a50764r Acessadas em: 18/04/2007. 65 já está tudo pronto para ir à prensa. A este tipo de visão, bem curta por sinal, sugerimos dar o nome de Primoris Visum: trata-se de expressão em latim, criada por nós, que significa “Primeira Visão” isto para não ofender ninguém e ajudar a enumerar o exemplo, na verdade situação, tripartido. Corpo de um dos traficantes que morreram em operação da Polícia Civil nas favelas da Coreia e Rebu no bairro de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro; 10 traficantes e ao menos um policial morreram durante troca de tiros. 10 Agora imaginemos um segundo fotógrafo, ele vai até o local, vê o corpo caído, numa Primoris Visum, depois observa ao redor e de repente - e não mais que de repente - um poste “rouba” a atenção, e por quê? Porque nele há um “inocente” cartaz com os seguintes dizeres (só um exemplo): CIGANA DA ESTRADA. ADVINHA-SE O FUTURO. Ora, para um fotógrafo de verdade, se nos perdoam a franqueza, sensibilidade é tudo! Perder uma oportunidade de juntar ironia à referência é coisa de quem tem visão curta e só serve mesmo para apertar botão, como o macaquinho narrado por Sontag (2004): boa foto só se tiver sorte. Com um pouco de paciência, “busca-se” uma posição para que - cartaz e corpo - tenham ambos bons lugares na foto, e não raro são os casos em que o detalhe ganha o lugar mais nobre na foto a que o próprio acontecimento original. 10 De Alexandre Campbell/Folha Imagem. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/i_cotidiano_00001.shtml. Acesso em 19/04/2007. 66 Pés no chão... Autor: RAFAEL BARRETO 11 É bem verdade que não sabemos se o corpo em questão era cliente ou não da dita cigana, afinal de contas, pode ser apenas uma coincidência, uma casualidade; quem pode dizer que o coitado escolheu morrer ali e ainda por cima para o cartaz sair na foto. Mas isso não importa mais, o importante é que o trabalho jornalístico foi feito: fotografar o morto e ainda levar de bônus uma provocação ao leitor do jornal, porque esta ironia acrescentada na foto deve ser considerada isso mesmo: uma provocação e não uma dúvida atroz sobre fatos concretos, como se a própria questão fosse: seria ele o (ou um) traficante? Esta dúvida, em si, não é mais responsabilidade do fotógrafo; os repórteres que corram atrás do fato. A inclusão deste cartaz, este Accessorium sequitur principale (o acessório segue o principal) não tem por objetivo atrapalhar as investigações ou prestar falso testemunho, é antes um fotojornalismo de Attentus Visum (Vista Atenta) e já está pronto e divulgado o nome desta outra forma de fotografar. Talvez, no futuro, alguns fotógrafos (os que lerem este trabalho) a chamem de Secundus Visum (Segunda Vista), mas acharemos isso um grande desperdício, se realmente acontecer, pois o nome Attentus Visum (Vista Atenta) não só nomeia como também já explica a diferença existente, que é antes da ordem da atenção uma mera colocação. Agora, vamos a terceira e mais controversa das visões aqui criadas por nós: Animus Simulandi (Intenção de Simular). Um fotógrafo sobe o morro para fotografar um traficante 11 Disponível em http://br.olhares.com/pes_no_chao_foto1809308.html. Acesso em: 03/08/2008. 67 morto, durante a subida passa por um poste e neste lê o cartaz que já descrevemos. Até aí, nada de mais, ao chegar ao local do crime percebe que há outro poste ao lado do corpo, mas este – infelizmente – não possui tal cartaz. Antes de fotografar o corpo sente que está perdendo uma oportunidade de ouro. Não aceitando sua fraca-sorte, volta até o outro poste, retira o cartaz, vai até o poste do morto e o coloca, procura um ângulo em que seja possível valorizar ambos e... Lá vai ele todo satisfeito para a redação do jornal, já ouvindo os “Parabéns!” dos colegas pela sensibilidade demonstrada e oportunidade de fazer o jornal vender mais por ter uma foto “diferente” da concorrência. Condenar este tipo de “fazer foto” é condenar quem tenta fazer de uma estória uma arte. Mais uma vez concordamos com quem diz: não é prioridade do fotojornalista fazer arte, tais manipulações atendem a necessidades de uma concorrência, é verdade, mas como se ultrapassa tal concorrência, com arte? Na verdade, o diferencial que este fictício fotógrafo do exemplo alcançou o fez sobre a inquietação e não sobre o trágico pura e simplesmente como a concorrência o fez e faz. Mas esta inquietação não é a mesma produzida pela arte? Uma arte que não faz pensar, refletir, se perder e se encontrar é uma arte condenada à mera classificação: existiu, mas não viveu. “Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (BARTHES, p. 22, 1984). Não podemos comparar o termo batizado aqui, por nós, com o termo jurídico Concilium fraudis (Plano de fraude), pois se assim o fizermos estaremos sendo como aquelas pessoas intransigentes que não aceitam metonímia: você diz “Eu li Machado” e elas corrigem “Machado de Assis não é um livro, é uma pessoa.” 68 Pânico na Zona Leste Autor: Bruno Miranda Homem embriagado em frente a um ônibus incendiado pelo PCC (ele sabe que está sendo fotografado). 12 O objetivo de criarmos estes nomes em latim não é o de pura e simplesmente imitar Barthes, assim como ele mesmo admitiu “não sou fotógrafo, sequer amador” (BARTHES, 1984, p. 20) e escreveu que se esforçaria em ser tão bom como eles “O que Marey e Muybridge fizeram, como operatores, quero fazer como spectator” (BARTHES, 1984, p. 148) decidimos nós em dar prosseguimento ao seu pensamento: enquanto que em “Operator é o fotógrafo. O Spectator somos todos nós [...] E aquele ou aquela que é fotografado [...] eu chamaria de bom grado de Spectrum” (BARTHES, 1984, p. 20) utilizamos sem nada a acrescentar, em Studium e Punctum entendemos que foi estudado/analisado do ponto de vista de quem é (Spectrum) ou vê (Spectator) a fotografia “Eu tinha à minha disposição apenas duas experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha.” (BARTHES, 1984, p. 21 e 22). Sugerimos então criar – igualmente em latim – nomes para o que acreditamos ser do domínio Operator, algo que Roland Barthes não quis fazer “Uma dessas práticas me estava barrada e eu não deveria procurar questioná-la: não sou fotógrafo, sequer amador” (BARTHES, 1984, p. 20). E como nós também não somos fotógrafos profissionais, mas ao menos amadores (palavra que vem de: amado, amor) resolvemos nos aventurar. Em Primoris Visum (Visão Primeira) temos a falta de sensibilidade (ou talento) por parte do Operator, que em virtude de 12 Disponível em http://br.olhares.com/panico_na_zona_leste_foto706406.html. Acesso em: 26/06/2006. 69 tal visão limitada produziria Studium limitante e sem valor, algo realmente feito para ser apenas varrido com os olhos e nada mais; a Attentus Visum (Vista Atenta) e a Animus Simulandi (Intenção de Simular) são propostas de divisão do Punctum barthesiano, mas sendo ambas intencionais e na medida do primeiro ser de ação natural, ou seja, aproveitando o que está circunscrito ao redor do Spectrum (fotografado) e o segundo montado, fabricado. E mais uma vez ressaltamos que pode ser atingido ou não – realmente não depende só do Operator – mas nesse caso aqui calculado/pensado por nós há justamente a preocupação de minimizar ao máximo o fracasso de se atingir o Punctum, utilizando desde o que está ao alcance do “„pequeno orifício‟ (estênopo)” (BARTHES, 1984, p. 21): Attentus Visum (Vista Atenta) como o que está fora, mas “montado” para seu alcance: Animus Simulandi (Intenção de Simular). O que estamos tentando dizer é que é possível estudar/encontrar o Sujeito por fotos sim, mas com a devida “peneiragem”. E como se faz isso? O estudo que Barthes fez sobre a fotografia em A Câmara clara: notas sobre a fotografia e O óbvio e o obtuso nos ajudam a entender este Sujeito tão requisitado pelas outras ciências (história, psicologia e outras). Sujeito que faz e é feito nelas como assumiu Barthes na foto, são duas posições diferentes “a do sujeito olhado e a do sujeito que olha” como o autor que escreve e que é lido, como o cientista que estuda e no entanto é ele mesmo o objeto de seu estudo. Reconhecendo-se campos opostos que se interagem, e, dentro de cada um analisando suas ações, é possível entender onde logramos êxito ou fracassamos (em entender o Sujeito ou apenas “figuralizá- lo”) e porquê. É através dessa “peneiragem” que nada mais é que uma organização – não para classificar, mas para tornar o Sujeito e os meios criados para entendê-lo, vê-lo, mais próximos de um processo de intelecção (profundidade/filosofia) e não apenas ilustração (superfície “coalha”): “Essas são as duas vias da Fotografia. Cabe a mim, escolher, submeter seu 70 espetáculo ao código civilizado das ilusões perfeitas ou afrontar nela o despertar da intratável realidade.” (BARTHES, 1984, p. 175) Uma tarefa por vezes difícil, é verdade - “satisfação completa de nosso apetite de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem está excluído” - (BAZIN apud MACHADO, 2005, p. 36); quase tão difícil como foi para Diógenes de Sínope que passeava, em pleno dia, pelas ruas de Atenas com uma lâmpada acesa. O que ele queria? Dizia Diógenes: "Procuro um homem". E Barthes? Este nos ajuda a procurar o “homem” que Diógenes procurava e que hoje atende pelo nome de: Sujeito. 71 4. ESCRITURA CURTA 4.1- A primeira vez que Barthes usou a palavra “fragmento” Em seu livro Novos ensaios críticos (1974), Roland Barthes começa com, nada mais nada menos, que La Rochefoucauld e suas máximas. Por sinal é onde encontramos pela primeira vez a palavra fragmento; esta não foi encontrada na primeira página sobre La Rochefoucauld, esta honra foi dada à palavra fracionado: “Essas duas leituras não são contraditórias, pois na coletânea de máximas, o discurso fracionado permanece um discurso fechado” 1 ; somente na página seguinte, no terceiro parágrafo sobre este escritor e moralista francês, é que encontramos a palavra que deu origem a tese: “As reflexões são fragmentos de discurso, textos desprovidos de estrutura e de espetáculo; através delas, uma linguagem verbal, bastante arcaica, é que rege o traçado da máxima.” 2 Para um francês este ilustríssimo senhor deve ser tão conhecido como é Machado de Assis para nós. Ainda que este escritor brasileiro não seja muito conhecido por máximas, até porque nunca escreveu um livro de máximas como fez La Rochefoucauld; ainda que muitos consigam ver máximas em fragmentos/trechos de suas obras: Não me podes negar um facto, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado. 3 E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo, cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida. 4 1 BARTHES, 1974, p. 9. 2 Idem,1974, p. 10. 3 ASSIS, Machado de. Capítulo 149 - Teoria do Benefício. in: Memórias Póstumas de Brás Cubas' Disponível em: < http://vbookstore.uol.com.br/nacional/machadodeassis/cubas.pdf>. Acesso em 21/07/2008. 4 ASSIS, Machado de. Capítulo XLV. In: Quincas Borba. Disponível em: < http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00992.html>. Acesso em 21/07/2008 72 Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... 5 Os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso do que nos que não juram nada. 6 Machado só será lembrado aqui para ilustrar uma das dificuldades que encontramos ao ler crítica literária de outros países. Estamos propondo esta analogia para explicar as dificuldades existentes em estudar uma crítica literária de outro país, no caso, da França para o Brasil e, acreditamos, vice-versa. Vejamos, quantos franceses entenderiam o seguinte fragmento (nosso) de crítica literária do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: É um erro dizer que a proposta narrativa da obra é por inversão cronológica, visto que ele (Brás Cubas) nasce no capítulo 9 (nove) chamado Transição “e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.” 7 E não no último, como se era de se esperar em uma proposta verdadeiramente de i nversão. Para se entender tal comentário será preciso, mais que notar a relação que existe entre as palavras que estão escritas e as que são implícitas por analogia, já que um “nasce” escrito será posto em oposição à “morte” não escrito; e o termo “inversão cronológica” será posto em dúvida por tal analogia já escrita e pelo termo “verdadeiramente de inversão”. Resumindo e concluindo, mais vale recomendar a leitura do livro com atenção especial (ou aviso) a sua maravilhosa dedicatória: “Ao verme que primeir o roeu as 5 ASSIS, Machado de. O Espelho In: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Disponível em <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/espelho.html>. Acesso em 21/07/2008. 6 ASSIS, Machado de. O Sermão do Diabo. In: A Semana : Gazeta de Notícias - 04/09/1892. Ortografia atualizada. Disponível em: <http://www.biblio.com.br/Templates/ MachadodeAssis/osermaododiabo.htm>. Acesso em 21/07/2008. 7 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Disponível em: < http://vbookstore.uol.com.br/nacional/machadodeassis/cubas.>. Acesso em 21/07/2008. 73 frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” (Op. cit.). Ao começar seu livro por “Reflexões ou sentenças e máximas” 8 , Barthes já mostra uma preferência por uma escrita curta, de fragmentos, caso contrário por que este a outros? Para nós isto é um gesto flagrante, que anuncia o que está por vir. O nome deste escritor é uma verdadeira incógnita para os não-educados na França; é mais fácil ter ouvido falar em Michel Foucault (1926 - 1984) um importante filósofo e professor do Collège de France (1970 a 1984) visto ser mais contemporâneo, mas do Duque de La Rochefoucauld (1613 - 1680), um moralista do século XVII só sendo um estudioso desta área. Para Barthes e até mesmo para qualquer francês que tenha tido uma educação escolar razoável, este nome é tão familiar quanto foi Machado de Assis para um brasileiro de equivalente posição escolar. CITAÇÕES de La Rochefoucauld (1613 – 1680) 9 Raramente conhecemos alguém de bom senso, além daqueles que concordam connosco. Tema: Bom Senso É prova de inteligência saber ocultar a nossa inteligência. Tema: Inteligência A gratidão da maioria dos homens não passa de um desejo secreto de receber maiores favores. Tema: Gratidão As virtudes perdem-se no interesse como as águas do rio se perdem no mar. Tema: Virtude A confiança que temos em nós mesmos, reflecte-se em grande parte, na confiança que temos nos outros. Tema: Confiança Ninguém deve ser elogiado pela sua bondade quando não tem força para ser mau. Tema: Bondade Se resistimos às nossas paixões, é mais pela fraqueza delas que pela nossa força. Tema: Vontade Há pessoas desagradáveis apesar das suas qualidades e outras encantadoras apesar dos seus defeitos. Tema: Sociedade 8 Título do capítulo La Rochefoucauld: “Reflexões ou Sentenças e Máximas”, 1977, p. 9. 9 LA ROCHEFOUCAULD, F. Máximas. Disponível em: <http://www.citador.pt/citador>. Acesso em 21/07/2008. 74 A esperança, enganadora como é, serve contudo para nos levar ao fim da vida pelos caminhos mais agradáveis. Tema: Esperança A prudência e o amor não se fizeram um para o outro; à medida que o amor aumenta, a prudência diminui. Tema: Prudência Barthes sugere haver dois modos de se ler as máximas deste autor: um por citações onde “aí colho um pensamento”; e o outro de “enfiada”, como ele mesmo diz, “leio as máximas uma a uma”. Dá-nos a entender que prefere mais a primeira, pois assim ele escolhe com a que mais se identifica; enquanto a segunda, talvez por ser mais intensa, prolongada; nos traz por demais o autor destas: “as máximas de La Rochefoucauld insistem a tal ponto sobre as mesmas coisas que não é a nós que desvendam e sim ao seu autor, às suas obsessões e ao seu tempo” (BARTHES, 1974, p. 9). Neste livro, Barthes não faz o que alguns poderiam chamar de uma introdução à história da escrita. Trata-se, antes, de uma tentativa de mostrar que não há literatura sem uma moral da linguagem e de afirmar a existência de uma realidade formal independente da língua e do estilo. Um não-iniciado terá muitas dificuldades em entender o que ele tenta mostrar. Até porque, nos consideramos iniciados em tal autor (Roland Barthes) e ainda sentimos dificuldades em ler suas obras. Se Ítalo Calvino (1993, p. 11) nos perdoa o pastiche: Barthes é um autor que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Num primeiro tempo, tudo se reduz à luta de uma pseudo-Physis (Doxa, natural etc.) e de uma anti-Physis (todas as minhas utopias pessoais): uma é detestável, a outra é desejável. Entretanto num tempo ulterior, essa luta mesma lhe parece demasiadamente teatral; ela é então surdamente rejeitada, distanciada pela defesa (o desejo) do Neutro. O Neutro não é pois o terceiro termo - o grau zero - de uma oposição ao mesmo tempo semântica e conflituosa; é, num outro elo da cadeia infinita da linguagem, o segundo termo de um novo paradigma, cuja violência (o combate, a vitória, o teatro, a arrogância) é o termo pleno. (BARTHES, 1977, p. 142). 75 Ele propõe diferenciar as máximas das reflexões usando para isso um misto de estrutura (gramatical) fechada e sensibilidade. Como as reflexões são “fragmentos de discurso” (BARTHES, 1974, p.10) isso as aproxima mais da realidade oral a que propriamente a da escrita, que no seu início foi uma tentativa de reprodução da fala, mas com o tempo veio à evolução e esta (a escrita) gerou um mundo só seu, e é nesta permeabilidade que Roland Barthes entra e sai como um fantasma que atravessa paredes. Mais interessado em conhecer as diferenças para maximizar seu espanto do que criar novos rótulos (isso a Gramática Descritiva já faz muito bem, obrigado); Barthes nos mostra as sutilezas existentes nas obras como um adulto que ensina uma criança a amarrar os sapatos pela primeira vez. Ainda nesta linha de explorar as capacidades de transgressão que existem em algumas máximas, falamos em máximas e não reflexões, pois como ele mesmo disse: “encontraremos, entretanto, algumas máximas isentas de qualquer estrutura; isto porque, embora ainda não ocupem muito espaço, elas já abandonaram a ordem sentencial, estando a caminho da Reflexão, isto é, do discurso.” E é no “ repetir”, que encontraremos não só mais uma maneira de se rebelar contra uma retórica convencional, mas também pela segunda vez a palavra fragmento do livro. O repetir pode ser parcial (fragmento). Já a máxima vai além: agrada-lhe repetir um termo, sobretudo quando esta repetição pode marcar uma antítese: “Chora-se para evitar a vergonha de não chorar”; esta repetição pode ser fragmentária, permitindo que se repita uma parte da palavra sem repetir a palavra em si mesma: “O interesse fala todas as línguas e desempenha todos os papéis, até mesmo o do desinteressado”. (BARTHES, 1974, p. 18.) E é também nesta página que encontramos a palavra jogo, que ele irá tão bem descrever em outro de seus livros: AULA (2002). Aqui ele apenas faz uma introdução: “O conceito está sem dúvida em jogo; mas este jogo está a serviço de 76 uma técnica muito antiga, a do sentido; de modo que escrever bem consiste em saber jogar com as palavras, o que leva fatalmente para mais perto do traçado oposicional que rege fundamentalmente o nascimento de uma significação”. (BARTHES, 1974, p. 18). Aqui damos por encerrado este capítulo (La Rochefoucauld: “Reflexões ou sentenças e máximas”) e iniciamos o próximo... Em AS PRANCHAS DA “ENCICLOPÉDIA” lamentamos a falta de imagens para auxiliar a sua posição de que “ao separar as imagens do texto, enveredava a Enciclopédia por uma iconografia autônoma do objeto, cuja potência saboreamos hoje integralmente, pois já não examinamos essas ilustrações com fins puramente informativos, como se pretenderia mostrar aqui” (BARTHES, 1974, p. 27). Quisemos achar uma gravura de um moinho por dentro e de uma armaria com dois duelistas combatendo ao fundo, mas não fomos felizes em nossas buscas. Seria melhor que o próprio Barthes o fizesse, mas, talvez, como o livro foi escrito em 1972, não houvesse ainda recursos gráficos bons o suficiente para acrescentar a esta obra as imagens com seus respectivos textos, exemplificando de f orma icônica, ainda que superficial (como toda imagem faz), seu ponto de vista sobre tais recursos iconográficos; numa época em que a Enciclopédia era realmente A Enciclopédia, não mais uma fonte de pesquisa, mas a única fonte de pesquisa, todo conhecimento do mundo perfeitamente “colocável” em livros, e como sabemos, hoje, isso é simplesmente impossível. Daí o motivo de lamentarmos não haver um pequeno lembrete histórico a esse respeito. Pelo visto, Barthes acreditava que não era só por nomes que era possí vel se apropriar das coisas, mas também por imagens: “Mal chegaram ao cume do monte [...], os colonos cuidaram de cartografá-la, isto é de desenhar e de dar nomes a seus acidentes; esse primeiro ato de intelecção e de tomada de posse é um ato de 77 linguagem, ...” 10 . Embora este fragmento tenha vindo da página oitenta e cinco, ele será de boa valia para explicar o posicionamento de Roland Barthes frente às imagens da Enciclopédia na página trinta. E será neste posicionamento onde encontraremos pela terceira vez a palavra fragmento. Formalmente (o que é muito perceptível nas pranchas) a propriedade depende essencialmente de um certo fracionamento das coisas: apropriar-se é fragmentar o mundo, é dividi-lo em objetos prontos, sujeitos ao homem na proporção mesma de seu descontínuo: pois não se pode separar sem terminar designando e classificando, e daí nasce a propriedade. 11 Encerrando o capítulo AS PRANCHAS DA “ENCICLOPÉDIA” temos pela quarta vez a palavra fragmento, onde temos o entendimento de que a ação de fragmentar o mundo para melhor entendê-lo nos faz cair em uma armadilha típica de um círculo vicioso, pois cada interpretação de uma parte gera uma nova parte, tão intensa como a primeira e tão nova parte como a primeira o foi. A Enciclopédia procede incessantemente a uma ímpia fragmentação do mundo: entretanto, o que chega a encontrar ao término de todo este quebrar não é o estado fundamental das causas puras; as mais das vezes, a imagem a obriga a recompor um objeto que é na verdade um contrassenso; uma vez dissolvida a primeira natureza, surge uma outra, tão constituída quanto a primeira. Numa palavra: a fratura do mundo é impossível: basta um olhar – o nosso – para que o mundo se torne eternamente pleno ( 1 ). 1.“Image, raison et déraison”, em: L‟uivers de l‟Ecyclopédie, 130 pranchas da Enciclopédia de Diderot e d‟Alembert, Libraires associes, 1964. Em CHATEAUBRIAND: “VIE DE RANCÉ ” encontramos mais um tema da literatura francesa pouco conhecido por quem não foi criado na França. Quem é Chateaubriand e essa tal “Vie de Rancé”? François- rené, visconde de Chateaubriand (Saint -Malo, 4 de Setembro de 1768 - Paris, 4 de Julho de 1848) é um escritor e homem político francês. Jean-Armand le Bouthillier de Rance - nascido em Paris, 9 janeiro, 1626; falecido em la Trappe, 27 outubro, 1700. Segundo filho de Denis Bouthillier (senhor de Rance). Abade e reformador de Notre Dame de la 10 Barthes, 1974, p. 85. 11 Op. Cit., pág 30 78 Trappe, (no departamento de Soligny-la-Trape), o primeiro a ser reformado, em 1662. A Ordem Tr apista (oficialmente, Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observância, ou em latim Ordo Cisterciensium Strictioris Observantiæ, OCSO), é uma congregação religiosa católica derivada da Ordem de Cister, devendo o seu nome ao mosteiro cisterciense de Nôtre-Dame de la Trappe 12 A vida de Rance é um livro bem conhecido na França, visto que o personagem já foi escrito não só por Chateaubriand como por muitos outros. 13 Foi realmente surpreendente pesquisar a vida deste abade, cuja uma parte da vida foi dedicada às alegrias mundanas, e por que não? Ele era pródigo e rico. Mas o falecimento de algumas pessoas influenciou sua vida e ele acabou passando o resto dela dedicado aos livros santos e a clausura. O investigador sempre deixa suas marcas no objeto investigado, não havendo, de certo modo, sentido em falar -se de realidades que não sejam realidades para o pesquisador e que, portanto, são realidades que não pertencem exclusivamente ao mundo exterior (NETTO, 2003, p36). O que Barthes pretendeu ao escrever este capítulo foi trazer a questão do tempo para a literatura e a questão da marca deixada pelos autores nos resultados de suas pesquisas. O que pode hoje transmitir a um homem incrédulo, ensinado pelo seu século a não sucumbir ao prestígio das “frases”, esta biografia de um trapista da época de Luís XIV, escrita por um romântico? (BARTHES, 1974, pág. 42) 12 Nota: é possível encontrar várias fontes sobre Rancé, mas todas vêm da mesma fonte - The Catholic Encyclopedia, Volume I. 13 LE NAIN, Vie du R. P. Armand Jean Le Bouthillier de Rancé (Paris, 1715); MARSOLLIER, Vie du T. R. … de Rancé (Paris, 1703); MAUPEOU, Vie du T. R. … de Rancé (AParis, 1702); D 'INGUIMBERT, Genuinus Character R. in X. Patris … de Rancœ;i (Rome, 1718); CHÂTEAUBRIAND, Vie de l'Abbé de Rancé (Paris, 1844); DUBOIS, Histoire de l'Abbé de Rancé et de sa réforme (Paris, 1866); D'EXAUVILLEZ, Histoire de l'Abbé Rancé (Paris, 1842); SCHMID, Armand de Rancé, Abt. u. Reformator von La Trappe (Ratisbon, 1897); SERRANT, L'Abbé de Rancé et Bossuet (Paris, 1903); DIDIO, La Querelle de Mabillon et de l'Abbé de Rancé (Amiens, 1892); BUETTGENBACH, Armand Jean de Rancé Reformator der Cistercienser von La Trappe (Aix- la-Chapelle, 1897); FELLOW, Visit to the Monastery of La Trappe (London, 1818); GONOD, Lettres de Rancé (Paris, 1846). Disponível em: Ökumenisches Heiligenlexikon, The Catholic Encyclopedia, Hinweise zur "Catholic Encyclopedia", Jean-Armand le Bouthillier de Rancé. 79 Essa marca deixada pelos autores é um fato que não é questionado enquanto existência, visto que é fato: “como é possível narrar alguém sem se projetar ne sse alguém?” 14 , mas questionado em nível de incidência, visto que a repetição torna o ato de se esconder um fracasso, no caso de Chateaubriand, este se revela de forma fragmentária. Chateaubriand não se projeta, ele superimprime-se, mas como o discurso é aparentemente linear, sendo-lhe difícil toda operação de simultaneidade, o autor só pode forçar sua entrada, fragmentariamente, numa vida que não é a sua; a Vie de Rance não é uma obra bem vazada: é uma obra partida (agrada-nos esta “queda” incessante); de maneira contínua, porém sempre breve, o fio do Reformador é interrompido em benefício de alguma súbita recordação do narrador: Rancé chega a Comminges depois de um tremor de terra: foi assim que Chateaubriand chegou a Granada; ... 15 Em nenhum outro capítulo encontramos tantas vezes a palavra fragmento; só nesta página é possível localizar três, este que já foi revelado acima e mais dois abaixo. Logicamente que o fato de seu raciocínio ainda não ter acabado colaborou com o fato, mas vamos combinar que isso não justifica de todo o uso da repetição de tal palavra. É que ela tem, sem dúvida, um poder de resumo e ainda assim de esclarecimento que não pode ser negado, tanto em Barthes como em outros, mas em Barthes isso é tão flagrante como a vida de Chateaubriand na narração da vida de Rance. Rancé deixa periodicamente transparecer Chateaubriand: nenhum outro autor jamais se anulou tão pouco; há algo de duro nesta Vie, toda feita de estilhaços, de fragmentos combinados mas não fundidos; Chateaubriand não se sobrepõe a Rancé: ele o interrompe, prefigurando desta maneira a literatura do fragmento, na qual as consciências inexoravelmente separadas (do autor e do personagem) já não adotam hipocritamente uma voz compósita. Com Chateaubriand, o autor enceta a sua solidão: o autor não é o personagem: institui-se uma distância que Chateaubriand assume sem a ela resignar-se; daí todos aqueles retornos que conferem à Vie de Rancé uma vertigem peculiar. 16 14 Idem, pág. 45 15 BARTHES, 1974, p. 46. 16 Idem, p. 46. 80 Como já foi dito, mas não concluído, esta palavra carrega consigo um pode r lexical tão singular que podemos até dizer que deixa seu eco em outras, ou melhor, por razões geográficas no texto poderíamos especular que quem vem antes , vem como que para se tornar tapete desta; e quem vem depois, agora sim, como um eco. Exemplos: vejam quem aparece antes do primeiro fragmento destacado neste capítulo: “sendo pelo contrário fracionário e abrupto” 17 . E agora vejam quem vem antes do segundo fragmento (sendo este segundo possuidor de duas palavras – Fragmento): “Existe neste esmiuçamento fracionado, que é justamente o oposto de uma assimilação, e por conseguinte de uma “criação”, de acordo com o sentido corrente, algo de não aplacado, como uma estranha ressaca: o eu é inesquecível: sem jamais absorvê-lo” (BARTHES, 1974, p. 46) logo a seguir encontramos o fragmento já citado. E logo depois mais um eco (ou tapete do que está por vir. Já que em casos desses: de estar depois de um e antes de outro; ela acaba por se tornar híbrida), verdadeiras palavras elos se preferirem, que entendemos haver na obra de Barthes: “(por vezes uma frase, por vezes um parágrafo), teremos um permanente fracionamento do sentido, como se Chateaubriand não conseguisse nunca eximir -se de voltar-se subitamente para “outra coisa” ...” 18 É bem verdade que havíamos dito que não trabalharíamos com os sinônimos de tal palavra, mas também é verdade que dissemos que estes não seriam ignorados de todo. Se por um lado o trabalho com sinônimos deixaria a obra por demais obesa e relativa, por outro, ignorá-los por completo deixaria a obra com, digamos: suspiros de lamentação. E para encerrar o capítulo temos uma espécie de compensação, é como se ele precisasse pedir desculpas por Chateaubriand e sua escrita de fragmentos 17 Idem, p. 46. 18 Idem, Ibidem, p. 47. 81 introdutórios. Talvez a expressão “pedir desculpas” esteja um pouco forte, mas “compensação” não nos parece estar em exagero com o proposto. Quem tiver escolha de palavras melhor para descrever o fragmento que será posto agora, que o faça. A palavra literária (visto ser dela que se trata) aparece assim como um destroço imenso e suntuoso, como um resquício fragmentário de uma Atlântida onde as palavras, saturadas de cor, de sabor e de forma, de qualidades em suma e não de ideias, brilham como estilhaços de um mundo direto, impensado, que nenhuma lógica viria embaçar, ou encher de tédio: no fundo, o sonho do escritor é ver as palavras pendentes como belos frutos da árvore indiferentemente da narrativa” 19 Para encontrarmos o próximo fragmento, teremos que dar um passo largo até o capítulo PIERRE LOTI: “AZIYADÉ”. Logo no iní cio encontramos números que anunciarão a partição do capítulo em subtemas. O primeiro, onde já é possível encontrar a palavra que queremos, chama-se: O Nome. É oportuno dizer que neste livro há um capítulo exclusivo que trata deste tema: o nome, mais especificamente Proust e os nomes, que não foi analisado aqui por não possuir a palavra da qual a tese é razão de existir. Talvez possamos aprender a desiludir o nome de Aziyadé de maneira proveitosa, e depois de deslizar do nome precioso para a imagem triste de um romance fora de moda, remontar em direção à ideia de um texto: fragmento da linguagem infinita que nada relata mas pelo qual perpassa “algo de inédito e de tenebroso”. 20 Tudo isso para dizer, mais uma vez, que todo escritor deixa em sua obra marcas que ajudarão a entender sua estória e sua história. Não há escrita sem o mínimo comprometimento com a paixão, não há escrita sem heróis personagens inspirados em personagens heróis. E é no fim deste fragmento, no capítulo seguinte – 2. Loti, que Barthes irá revelar todos os nomes que estão por trás de um único nome, um nome que carrega consigo três situações: nome do personagem, persona (personagem literário em que o 19 BARTHES, 1974, p. 48. 20 BARTHES, 1974, p.100. 82 autor se encarna) e autor “pois o Loti que escreveu o livro não coincide de modo algum com o herói Loti: não possuem a mesma identidade: o primeiro é inglês e morre muito jovem; o segundo Loti, cujo prenome é Pierre, é membro da Academia Francesa de Letras, ...” (BARTHES, 1974, p. 101), que na verdade trat a-se do pseudônimo de Julien Viaud (1850 – 1923) o autor em questão. O que interessa nesse capítulo para esta tese serão dois detalhes: o primeiro é o fato de Aziyadé ser considerado semiautobiográfico, um assunto que nos interessará mais à frente sobre o diário ser ou não obra literária “deverei manter um diário tendo em vista publicá-lo? Poderei fazer do diário uma „obra‟?” (BARTHES, 2004, p. 446 – 447). O segundo pelo escritor usar seu próprio pseudônimo para nomear um personagem “O maior interesse não está no pseudônimo (fato corriqueiro em li teratura) e sim no outro Loti, no que é e não é seu próprio personagem, o que é e não é o autor: não me parece que existam outros casos como este na literatura” (BARTHES, 1974, p. 101). Na verdade existe um caso parecido: Gide (1869-1951), escritor, que não aparecerá neste capítulo, e que Barthes trabalhará quase que exclusivamente em obras posteriores, como exemplo: logo nas primeiras páginas de INÉDITOS: 2004, mas o que Gide tem a ver com os três nomes (nome de personagem, nome de pseudônimo, nome do autor)? Seu primeiro trabalho Les Cahiers d'André Walter (Os cadernos de André Walter) foi feito de fragmentos de seu diário “Sob o álibi da dissertação destruída, chega-se à prática regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o “diário”. (BARTHES, 1977, p. 103); dentro de tal obra cria um personagem que cria um personagem: estamos diante de um escritor (Gide) que cria um personagem- escritor (André Walter) que cria um personagem-escritor (Allain), afastando-se assim de si mesmo através da impessoalidade que um personagem permite (ou melhor: dois), mas no caso de Loti se temos um afastamento pelo uso de pseudônimo, temos 83 ao mesmo tempo uma aproximação (persona), já que usa seu próprio pseudônimo para nomear um personagem (Loti); revelando assim, de forma renitente, a razão que nos interessa: este livro, estas pesquisas sobre obras semibiográficas apontam para o que estaria por vir: o interesse de Barthes pelo assunto Diário. As próximas palavras „fragmento‟ serão encontradas no livro (ou capítulo, visto que se trata de uma anexação, mas resolvemos chamá-lo de livro) O grau zero da escrita: 1953. É importante ressaltar que este livro por si só já dá uma tese, e, portanto, não será possível estudá-lo apenas com as duas palavras fragmento encontradas nele. No entanto, ao se estudar tal questão (o grau zero da escrita) dentro do livro e fora dele, encontramos a constatação da importância da Escrita por Fragmentos: esforço Barthesiano de escapar ao policiamento da escrita, sempre ameaçada pelo estilo das diversas escritas da dominação. A escrita atravessou assim todos os estados de uma solidificação progressiva: primeiro objeto de um olhar, depois de um fazer, e finalmente de um assassínio, ela atinge hoje uma última transformação, a ausência: nestas escritas neutras, chamadas “o grau zero da escrita”, temos o movimento de uma negação e a incapacidade para o realizar de uma duração. 21 Barthes irá usar de empréstimo, para este texto, o termo “neutro” (do grau „zero‟) da análise linguística no sistema da língua (Jakobson e Lotz: sobre o problema do fonema zero). Desde o Grau Zero da Escrita (1953) à sua Lição (pronunciada em 1977 e publicada em 1978) no Collège de France, Barthes utilizou um conceito de escritura que difere do conceito de escrita. Na verdade, veremos, que esta obra (sua conclusão) será embrionária para o discurso de sua Aula Inaugural. 21 BARTHES, 1974, p. 119. 84 Com base em fragmentos de autores que ele gosta: “A escritura branca, a de Camus, a de Blanchot ou de Cayrol, por exemplo, ou a escritura falada de Queneau” (BARTHES, 1974, p. 119) considera tais escrituras como não marcadas pelo estilo, ou pela rigidez das formas (evitando portanto servir qualquer Lei, ou ordem social ; mas como nem tudo que reluz é ouro: encontrou um problema “Infelizmente, nada é mais infiel do que uma escritura branca” (BARTHES, 1974, p. 161) ela incorre continuamente em cristalizações sucessivas da linguagem, transformando-a numa “rede de formas endurecidas abafada cada vez mais o frescor primeiro do discurso” (Idem, 1974, p. 161). E é importante salientar que mesmo não encontrando a palavra fragmento no capítulo INTRODUÇÃO, este deve ser lido com muita atenção, pois é ele um fragmento retirado do jornal de esquerda Combat: O que pretendemos aqui é esboçar essa ligação; afirmar a existência de uma realidade formal independente da língua e do estilo; tentar mostrar que esta terceira dimensão da Forma também liga, não sem um trágico suplementar, o escritor à sociedade; fazer sentir, enfim, que não existe Literatura sem uma Moral da linguagem. Os l imites materiais deste ensaio (do qual algumas páginas saíram em Combat, em 1947 e 1950) indicam suficientemente que se trata apenas de uma Introdução ao que poderia ser uma História de Escritura 22 . Barthes preocupado com o pouco entusiasmo da esquerda com a luta cultural trabalhou em suas análises com a ideia de que a literatura tem de ser a subversão da forma, o logro, a trapaça da linguagem. Em Oposições classificadas conforme a relação entre os termos da oposição de Elemento de Semiologia (1993, p. 81) encontramos: O segundo problema colocado pelas oposições privativas é o termo não- marcado: chama-se grau zero da oposição; o grau zero não é, pois, a bem dizer, um nada (contrassenso corrente, no entanto), é uma ausência que significa; atingimos aqui um estado diferencial puro; o grau zero demonstra o poder de qualquer sistema de signos que, destarte, fabrica sentido „com nada‟: “a língua pode contentar-se com a oposição de alguma coisa com nada”. 22 BARTHES, 1974, p. 120. 85 Dito isto, em linguística, a ausência de um fonema não si gnifica necessariamente que ele não exista, pois esta ausência é significativa, o não estar lá diferencia um significado de outro; é como nos tempos de escola, quando o professor de matemática dizia que zero era número e os alunos não entendiam muito bem; como algo que significa zero podia ser relevante? E um professor muito experiente retrucava com exemplos práticos “Perguntem a alguém que está zerado, mas sem dívidas, se zero é número; ou melhor ainda, peçam aos seus pais que lhes tirem um zero da mesada e vejam se dá para ser feliz assim” (lembrança de nosso ensino secundário). O mesmo ocorre em linguística; o mesmo, sugere Barthes, ocorre no texto: vai interpretar a neutralização como um emergir no discurso (no «texto») de algo que se observa apenas nos seus efeitos, e que se deixa simbolizar bem pela folha branca de papel, que prefiguraria a brancura da nova escrita, mas também o risco de maculação (pelas «marcas» indevidas) dessa escrita. Como podemos notar, Barthes traz do passado uma linha de pensamento (já existente) e adapta ou amplia para os nossos dias tal pensamento para iluminar problemas e especular soluções. Passemos agora, diretamente, para as palavras fragmento encontradas: O QUE É A ESCRITURA? O estilo não passa de metáfora, [...], o estilo é sempre um segredo; [...]; seu segredo é uma lembrança encerrada no corpo do escritor; a virtude alusiva do estilo não é um fenômeno de velocidade, como na fala, onde o que não se diz permanece, mesmo assim, um ínterim da linguagem, mas um fenômeno de densidade, pois aquilo que se mantém erguido e profundo sob o estilo, congregado dura ou ternamente nas suas figuras, são os fragmentos de uma realidade completamente estranha à linguagem. O milagre de tal transmutação faz do estilo uma espécie de operação supraliterária, que leva o homem ao limiar da potência e da magia. Pela sua origem biológica, o estilo situa-se fora da arte, ou seja, fora do pacto que liga o escritor à sociedade. 23 23 BARTHES, 1974, p.123. 86 A ESCRITURA E O SILÊNCIO Essa arte tem a estrutura mesma do suicídio: nela, o silêncio é um tempo poético homogêneo, que aperta a palavra entre duas camadas e a faz explodir não como fragmento de um criptograma, mas sim como uma luz, um vazio, um assassínio, uma liberdade. (Sabe-se o quanto tal hipótese de um Mallarmé assassino da linguagem deve a Maurice Blanchot.) Essa linguagem mallarmeana é Orfeu que só pode salvar o que ama renunciando a ele, mas que assim mesmo olha um pouco para trás; é a Literatura levada às portas da Terra prometida, ou seja, às portas de um mundo sem Literatura, mas do qual caberia aos escritores dar testemunho. 24 Como já dissemos no início deste capítulo, ele é por demais complexo para apenas duas incidências de fragmento darem conta. Elas nem sequer aparecem nos trechos mais importantes (explicativos e/ou conclusivos), são meras palavras que merecem mesmo o estatuto de serem escritas com letras minúsculas. No entanto, ao terminar o estudo deste, constatamos a presença delas em letras maiúsculas quanto à compreensão. Para Barthes o “grau zero” é uma espécie de diferença de potencial que permite a dinâmica do sentido, mas também a cristalização dos sentidos, a sua organização em estilos, em imagéticas, dotadas de Poder, que incorpora toda a decisão do Poder, uma nova forma que no fundo não traz nada de novo: falhanço, utopia. A frase em que nos diz que “Cada escritor que nasce abre em si o processo da literatura; mas se a condena, concede-lhe sempre um prazo, que a Literatura vai usar para reconquistá-lo” (BARTHES, 1974, p. 166-167) é bem indicativa no malogro do sentido, que ao mesmo tempo em que se arrisca à queda na repressão, ganha nova vitalidade na maneira como esse risco é afrontado. Barthes acredita que essa ordem branca da linguagem, que se acha para além da Lei, procura adequar a universalidade da linguagem (gabarito mental) à universalidade do mundo, prova: “que não pode haver linguagem universal fora de uma universalidade concreta, e não mais mística ou nominal do mundo civil” e conclui dizendo “A Literatura torna -se a Utopia da 24 BARTHES, 1974, p.160. 87 linguagem”. (BARTHES, 1974, p. 166-167), a única que pode, como ele mesmo disse em sua Aula Inaugural, vencer o fascismo da língua. 88 4.2- Escrevendo fragmentos usando fragmentos Fragmentos de um discurso amoroso (2000) é um dos livros mais conhecidos de Barthes por sua irreverência: palavra que não denota algo necessariamente engraçado - senso comum, mas devido ao que os dicionários lembram/apontam: seu prefixo de negação, a palavra torna-se o que realmente é: não reverência, não obediência. Mas o quê e a quem? As respostas estão na primeira página escrita por Roland Barthes após o índice. “A necessidade deste livro se apoia na seguinte consideração: o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão” (BARTHES, 2000, p. 11). Isto porque seu discurso é impreciso e louco: 1) Mas como alguém (Sujeito) que - ainda hoje - é estudado pode escrever algo preciso sobre sua inquietação, sua imprecisão? Barthes acena com uma possível solução: Podemos chamar essas frações de discurso de figuras. Palavra que não deve ser entendida no sentido retórico, mas no sentido ginástico ou coreográfico (Idem, p. 14). O que Barthes chama de “figura” é o fragmento (“frações de discurso”) de nossa tese só que com outro nome, ou melhor, com um sentido mais elástico (“ginástico ou coreográfico”). A tese que defendemos inclui esta imprecisão - não no sentido de “errar”, mas no sentido de “criar”. O preciso costuma ser um lugar que não aceita outros lugares, o preciso é singular e o impreciso é plural, “O demônio é plural („Meu nome é legião‟, Lucas 7-30)” (Idem, p. 108). 2) É “LOUCO. O sujeito é atravessado pela ideia de que está ou está ficando louco”. (idem, p. 215) E como nos ensinou um professor de psicologia na Faculdade de Educação: um louco não tem problemas, quem tenta entender o louco ou tirá -lo da loucura é que tem, pois o louco é aquele que por não gostar ou não conseguir resolver seu problema – entrou/criou em um mundo só seu onde neste mundo o 89 problema que o assolava não o incomoda mais. Talvez por isso o discurso amoroso e o louco sejam descritos/considerados como solitários, um bom esconderijo dificilmente serve para dois e quando serve raramente é confortável. E por conta disto “foi completamente abandonado pelas linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excl uído não somente do poder, mas também de seus mecanismos (ciências, conhecimento, artes)” (BARTHES, 2000, p. 11). Mas o Sujeito que tenta ser compreendido aqui, não é alguém que busca respostas para sua inquietação ou loucura, é alguém que quer simplesmente ter o direito de falar: “o lugar de alguém que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que não fala” (BARTHES, 2000, p. 13). E que por ser difícil falar - pega palavras que já foram proferidas, em outros contextos, trazidas agora para um novo, não muito diferente do seu original (por isso trazidas), mas agora sendo um novo: novos significados se fazem por assimilação e deslocamento de seu original; não basta apenas falar sobre o mesmo, não se trata apenas de colunas paradigmáti cas, mas de sintagmas criados a partir de fragmentos que não são só recortados, mas como ecos se somam a um coral de outros ecos e seu plural se torna uno por resultado final de uma estrutura, mas eternamente plural em seu agrupamento de sentido feito por “grupos de frases” (BARTHES, 2000, p. 17) que têm como tarefa mais do que repetir em um novo lugar, criar em conjunto novas vozes e/em novos lugares. O Fragmento como lugar de fuga da Literatura, ou melhor: fuga dos regentes dela, lugar onde o Sujeito pode descansar de ser o que as outras “ciências, conhecimento, artes” acham que ele é e ser ele mesmo, seja ele quem for. As palavras nunca são loucas (no máximo perversas), é a sintaxe que é louca; não é ao nível da frase que o sujeito procura seu lugar – e não o encontra – ou encontra um lugar falso que lhe é impossível pela língua? (Idem, p. 16). 90 Fragmentos de um discurso amoroso foi um livro escrito por Barthes em 1977, ano em que se anuncia/aproxima uma virada, pois se nos anos 60 se normaliza o sujeito, nos anos 80 se retorna a ele. “Um sujeito que foi expulso pela porta para depois reaparecer pela janela” (DOSSE, 1993, p. 65). Mas não é o mesmo sujeito que retorna “No entanto, não se trata de simples retorno do sujeito tal qual era visto outrora, na plenitude de sua soberania postulada e de uma transparência possível” (DOSSE, 2001, p. 41) nesta década ainda se estudarão as estruturas, mas sem a exclusão do sujeito, pois como fazer “experiências”, testar os limites das estruturas sem pô-las à prova de quem irá as ler. Enquanto nas Mythologiques I-IV, (1964- 1971) de Claude Lévi-Strauss o autor exprime quanto universal é o ser humano, em Mythologies (1957) Roland Barthes já exprimia o quanto era universal a maneira como um ser humano podia influenciar o outro: por meio das palavras certas nos lugares adequados. Com Fragmentos de um discurso amoroso vai além. Não está interessado em “convencer” ninguém, é um “experimento” para dar voz a um sujeito normalizado pela língua, e pela mesma língua que o aprisionou - tenta o libertar; como um salva-vidas sabe: a única maneira de escapar de uma correnteza na praia é fazendo uma curva, nadando para fora, mas a favor (se deixando levar), caso nade ao contrário dela, em direção à praia, por mais que pareça próximo, o banhi sta (Sujeito) não conseguirá vencê-la e fatalmente se afogará. Talvez teve, Roland Barthes, pensamento semelhante e dentro da própria língua, por meio de montagens/estruturas tão valorizadas no apogeu do Estruturalismo, fazendo uma curva a favor , conseguiu se libertar, conseguiu dar voz. Mas ele o faz com a voz de outros, é verdade, mas em A Morte do Autor (BARTHES, 2004. p. 57-64.) fica claro que não há problema algum em tentar reproduzir (produzir novamente) uma outra voz “o texto é um tecido de citações”, pisar onde outros já pisaram “o escritor não pode deixar de imitar um 91 gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas, de as contrariar umas às outras”, e não estamos falando aqui de qualquer um, mas como o salva-vidas: fazer o mesmo para obter o mesmo “Proust deu à escrita moderna a sua epopeia: por uma inversão radical, em lugar de pôr a sua vida no seu romance, [...] fez da sua vida uma obra”, se eles conseguiram ter sucesso: se escrever sem se importar com a opinião da crítica e as limitações impostas por sintaxes castrantes “é a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia – impossível de alguma vez ser confundida com a objetividade castradora do romancista realista” (BARTHES, 2004, p. 59), por que não seguir em frente, não somente para copiá-los, como já dissemos, mas para além de lhes prestar o devido tributo, prosseguir com seus pensamentos, agora não mais repetidos – como prova (ou acreditamos estar provando) o Fragmentos de um discurso amoroso: um repetir que devido ao seu deslocamento se torna um novo criar. Ao longo de suas obras tenta trazer o Sujeito de volta ao cenário, não como alguém que cria regras para depois as utilizar: escolheram a língua para normalizar o sujeito, mas “linguisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como „eu‟ outra coisa não é senão aquele que diz „eu‟: a linguagem conhece um „sujeito‟, não uma „pessoa‟, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para „sustentar‟ a linguagem, isto é, para exauri -la.” (BARTHES, 2004, pág. 60). Não, este homem é um ser naturalmente inquietante, e, por ser “naturalmente” não deve ser tratado como um paciente que está no divã. Esse sujeito que Barthes nos fala é um homem em paz com sua inquietação. É um ser que não pretende resolvê-la, apenas conviver com ela. Não é um psiquiatra que tenta entrar na cabeça de um louco (denotativo), é um “louco” (metafórico) que tenta dividir seu esconderijo com alguém. Solidão que procura se anular com outra solidão, mas não é ouvida e/ou 92 entendida. Como compreensão e intransigência raramente se combinam, o verdadeiro amor não pede para o outro mudar, pede apenas para ele próprio não precisar mudar. No que diz respeito a uma das proposta da tese: a localização da palavra Fragmento... Curiosamente, de todas as obras lidas é nesta que encontramos o menor número de aparições da palavra Fragmento. Apesar de a obra ter a tal palavra no próprio título, esta não abunda na obra. Isto porque o título do livro aponta para um possível método (estrutura) para se chegar ao Sujeito, neste primeiro momento não o universal, mas um em particular: aquele que faz (cria) um discurso amoroso, não para meramente romancear, mas por tentativa-e-erro, eco/reflexo, repetição fragmentária que se revela de fato outro texto e não repetição per si, eis o método, o Fragmento mostra o caminho, mas não é ele próprio o caminho, é como aquela brincadeira que fazemos quando alguém pergunta para aonde (usado em verbos de movimento) vai a estrada e respondemos que “A estrada” não vai a lugar nenhum... Somente as pessoas que seguem seu caminho é que vão. Obra fragmentada como o personagem do livro Frankenstein, não se trata aqui somente de cabeça de um, braço de outro e por aí vai, aqui , ela é bem mais fragmentada que isso, num único dedo podemos encontrar três falanges, cada uma pertencente a alguém. Portanto, temos uma obra que pertence a Barthes feita de fragmentos de outras que não pertencem a Barthes. A escolha das partes foi dele como foi para o doutor Victor Frankenstein. E como alguém que estava tentando dar voz a um “Sujeito” excluído/esquecido, fez do Fragmento o método e não o assunto, então por que se preocupar com quantas vezes a palavra fragmento aparece? O método já estava revelado no título, foi praticamente o quanto bastou, seu quinhão, para ela (a palavra: fragmento). Por isso a palavra fragmento quase não aparece. E quando aparece é muitas vezes no rodapé, prova de sua fragmentalidade: método - e 93 aqui nada mais que isso; interessando apenas a aplicação do Fragmento e não no nome (a palavra: fragmento) presente na obra. Entretanto não nos passou despercebido certas palavras ou expressões que nitidamente remetiam a ela como o já mencionado “frações de discurso” (BARTHES, 2000, p. 14), “cada figura” (Idem, p. 15), “matrizes de figuras” (Idem, p. 16), “grupos de frases” (Idem, p. 17), “suas figuras não possam se arrumar: se ordenar” (Idem, p. 18) e “pedaços de origem diversa” (Idem, p. 19). É claro que não estamos esgotando aqui todas as possibilidades de palavras ou expressões que a substituem; são apenas alguns exemplos do que foi encontrado e percebido. Resultado, além do próprio título, só encontramos a palavra fragmento: 1) Em notas de Rodapé WINNICOTT, Fragmento de uma análise (comentado por J. - L.B.). Pág. 112. NIETZSCHE: todo esse fragmento, evidentemente, segundo Nietzsche- Deleuze, principalmente 60,75. Pág. 158. BALZAC: “Ela era experiente e sabia que o caráter amoroso é assinalado de alguma forma nas pequenas coisas. Uma mulher instruída pode ler seu futuro num simples gesto, assim como Cuvier sabia dizer ao ver o fragmento de uma pata: isso pertence a um animal de tal dimensão” etc. (Os segredos da Princesa de Cadignan). Pág. 262. 2) E em duas páginas Rusbrock Pequeno grupo dos “Mortos de Fome”, dos Suicidas de amor (quantas vezes um mesmo enamorado não se suicida?), aos quais nenhuma grande linguagem (a não ser, fragmentariamente, a do Romance Passado) emprestou sua voz. Suicídio - IDEIAS DE SUICÍDIO, pág. 271. Tabula gratulatória THEODOR REIK, Fragment d‟une grand confession (Denoël) 25 . WINNICOTT, Fragment d‟une analyse (Payot) Ambos encontrados na página 296. 25 Este fragmento é encontrado na pág. 83 como nome de REIK; provérbio citado por Reik, 184. E citamos: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, é sempre embaixo da lâmpada”. 94 Durante o processo releitura ficávamos atentos às palavras, visto que não só a leitura em si nos interessava, era preciso achar a palavra que justificasse a existência desta tese (e do próprio título do livro). Durante este processo algumas palavras nos causavam palpitações, dizíamos: “É ela!” e não era, “Achamos!” e não era de novo. Isso somado com o fato de não ir encontrando a bendita palavra. Com o tempo, foi gerando uma inquietação que viria a ultrapassar o campo do léxico. Foi então que nos lembramos de nossa proposta, no início da tese: Mas como esta proposta: a localização da palavra Fragmento tanto a nível paradigmático (maiúscula e/ou minúscula) como sintagmático (relação com palavras vizinhas) se mostrou pobre, portanto ineficaz 26 e logicamente, pelo que já esclarecemos: O Fragmento em Fragmentos de um discurso amoroso é um método, um caminho para se andar, não o tema em si, seria pobre, portanto ineficaz se buscássemos só isso: ela, a palavra „fragmento‟. Mas como também dissemos que não abandonaríamos esta vertente de todo, continuamos a explorar o léxico, até porque quem sabe haveria um “jogo” nele: o léxico? As palavras começadas apenas pelo “F” + “R” + “A” e sem necessariamente o “G” como já era de se esperar, uma espécie de radical incompleto, já nos deixavam ansiosos; portanto as palavras frações e, pelo incrível que pareça, frase já chamavam nossa atenção sempre que apareciam; figura também mexia conosco, mas esta com bem menos intensidade visto que o “I” já anunciava o fracasso, tornando a presença do “G” numa simples lamentação. Mas a palavra que foi a gota d‟água que transbordou o balde foi Fragrância (BARTHES, 2000, p. 210), talvez pela palavra haicai ter aparecido ao lado dela, dentro de uma sequência de exemplos que tentava explicar e/ou visualizar “O quadro 26 Cf. p. 12. 95 amoroso” (BARTHES, 2000, p. 209). Ora, estar ao lado dela desta maneira revela, sem dúvida, uma relação que ultrapassa a contiguidade; cria quase um parentesco. Logo depois, apareceram outras como nauFRAGaria (BARTHES, 2000, p. 216) e FRÁGil (BARTHES, 2000, p. 221), sendo esta última bastante sugestiva para o que queremos e/ou procuramos. Pois será esta palavra – fragmento – forte o suficiente para sustentar uma tese ou frágil como uma curiosidade acadêmica que logo será contestada? Nesta obra grafada com letra minúscula por certo não se sustenta, visto aparecer pouco (como prova o corpus), mas com letra maiúscula, visto aparecer no título (como tese): sim, ela assim/aqui será forte; lembramos mais uma vez o início da nossa tese: gostaríamos de salientar que a palavra fragmento será escrita, por vezes, com letra minúscula quando significar t ão somente apenas o que se encontra nos dicionários e com letra maiúscula quando significar algo além de simples notação lexical e penetrar no mundo das ideias, portanto, merecendo a postura de nome próprio (cf. p. 9). Afinal, como já dissemos, esta tese pode ser facilmente provada como facilmente questionada: pois como as provas ou “corpus” são os mesmos, tanto para o sim como para o não; a metáfora do copo meio cheio ou meio vazio se torna altamente pertinente. E acreditando haver - ou ser possível criar - um “jogo” lexical dentro desta obra (Fragmentos de um discurso amoroso) propomos agora uma analogia, tal qual a (analogia) encontramos no dicionário Houaiss ( 2009) na rubrica filosofia: “na filosofia grega, identidade de relação entre pares de conceitos dessemelhantes (como na proposição „a inteligência está para a opinião assim como a ciência está para a crença‟)” ou ainda, se preferir dentro da própria rubrica línguística “processo de mudança linguística que consiste na alteração de uma forma, para adaptá-la a um modelo preexistente (p.ex.: o neol. aidético foi criado prov. por analogia com 96 diabético, morfético)” (HOUAISS, 2009, p. 125): se considerarmos, por comparação lexical, aglutinação fantasiosa criada por nós, a palavra metáfora como “filha ilegítima” das palavras metamorfose e Novesfora 27 , a palavra Fragrância (BARTHES, 2000, p. 210) passou a ser considerada por nós como a mãe da palavra fragmento; mas e o pai, ou melhor seu complemento: o segundo elemento da aglutinação, palavra que aparece no dicionário como “modo pelo qual elementos distintos se unem e integram, formando um todo em que dificilmente se reconhecem as partes originais” (HOUAISS, 2009, p. 69). Então fomos à procura do pai (ou de um pai). A tarefa não era fácil, assim como até hoje não o é no que diz respeito a filhos ilegítimos. Entretanto, achamos alguns fortes candidatos à titulação de pai e muito respeitosamente os convidamos a fazer o exame de DNA lexicológico. Lembramos que isto que está sendo feito agora é apenas um “jogo”, uma brincadeira, Barthes declarou “Podemos chamar essas frações de discurso de figuras” (BARTHES, 2000, p. 14) e nós, que procuramos pacientemente a palavra, resolvemos dividir com o leitor nossa experiencia ao longo de tal procura/pesquisa; nós que pen(s)amos (penamos e pensamos) em tal busca acreditamos que conquistamos o direito de fazer tal “jogo”. Se Barthes brincou/montou tais “figuras” em sua obra para com o deslocamento delas produzir algo mais, por que não fazer o mesmo em um nível mais básico elegendo não as “figuras” (plural): conjunto de frases (“frações de discurso”), mas as palavras (singular) que nos inquietaram? Seja por símile gráfica ou fônica - com a palavra fragmento. Se desta brincadeira não surgir algo de útil a esta tese, fica ao menos a homenagem a quem escreveu “Palavra que não deve ser entendida no sentido retórico, mas no sentido ginástico ou coreográfico” (Idem, pág.14). 27 Nota: “Noves fora” não costuma ser escrito junto, mas por razões de “sentido uno” aqui será escrito assim. 97 O primeiro corajoso foi apalavra momento: extraído de “No haicai japonês, o código exige que haja sempre uma palavra que indique o momento do dia e do ano; e o kigo, a apalavra-estação” (BARTHES, 2000, p. 231), este foi trazido à clínica por seu pai haicai, que como bom japonês não tolera desonra. Mas como os testes foram inconclusivos e a fila precisava andar, continuamos. A palavra enamoramento extraída de: RAPTO. Episódio tido como inicial (mas pode ser reconstituído depois) durante o qual o sujeito apaixonado é “raptado” (capturado e encantado) pela imagem do objeto amado (nome popular: gamação; nome científico:enamoramento). (BARTHES, 2000, p. 245) Era por demais sui generis, até as palavras “sujeito apaixonado” apareceram: verdadeiro tema do livro cujo método para dar voz a ela foi o Fragmento. Mas ainda assim era muito cedo para encerrarmos a procura e continuamos; havia também o acasalamento: extraído de “Certamente é preciso algo que dê partida ao amor, como ao rapto animal; o engano é ocasional mas a estrutura é profunda, regular, assim como é cíclico o acasalamento entre os animais” (BARTHES, 2000, p. 248), mas estando convencidos de que ele foi o ato em si e não o noivo, dispensamos seu teste. O mesmo aconteceu com movimento: extraído de “por outro lado, bem que percebo o pequeno movimento de agressividade que levou X... - sem que ele mesmo o saiba – a me transmitir uma informação que magoa.” (BARTHES, 2000, p. 255), afinal, o que é um acasalamento sem movimento. O encantamento: extraído de “Werther se fantasia. De quê? De namorado encantado: ele recria magicamente o episódio do encantamento, aquele momento em que ele foi siderado pela imagem.” (BARTHES, 2000, p. 258) parecia mais um daqueles amantes à moda antiga que jamais aguentariam ouvir um “tomar no rabo” Proustiano de sua amada e também foi dispensado. 98 Quando Albertine deixa escapar a expressão grosseir a “tomar no rabo”, o narrador proustianos fica horrorizado, pois é o gueto temido da homossexualidade feminina, da conquista grosseira, que se revela repentinamente: uma cena inteira pelo buraco de fechadura da linguagem. (BARTHES, 2000, p. 40) E por falar em não aguentar, eis que surge também, lá no início do livro, um estremecimento: extraído de... Adorável quer dizer: este é meu desejo, tanto que único: “É isso! É exatamente isso (que amo)!” No entanto, quanto mais experimento a especialidade do meu desejo, menos posso nomeá-la; à precisão do alvo corresponde um estremecimento do nome; o próprio do desejo não pode produzir senão um impróprio do enunciado: Deste fracasso da linguagem, só resta um vestígio: a palavra “adorável”!(a boa tradução de “adorável” seria o ipse latino: é ele, é ele mesmo em pessoa) (BARTHES, 2000, p. 32). Mas este apesar de possuir certa força, que até encontramos em fragmento, não foi considerado o pai. A honra ou o martírio que carrega este nome (Pai) foi dado a quem mais apareceu no livro. Quantas vezes? Não sabemos, mas é muito fácil encontrá-lo e ele é: pensamento. Sem ele não há nada, e não falamos aqui do Nada budista que de fato é tudo. Não, aqui é nada de niente, de nada feito, de coisa alguma... Puff. Alguns podem até estar pensando que as outras apresentadas também tiveram sua cota na criação da palavra fragmento. E não estamos aqui para tirar o direito de ninguém, afinal as palavras mãe e pai, aqui, são apenas pares criadores figurados, e sendo assim damos o direito de qualquer um criar outros pares criadores. Seguindo esta linha de pensamento criador e fictício, acreditamos que o pensamento foi quem fecundou a fragrância, como fecundou outras, como fecundou tudo. Nada acontece sem que antes tenha sido pensado. Não teremos, aqui, a ousadia (heresia) de dizer que ele (o pensamento) é Deus, mas assim como Deus teve seu papel como criador, acreditamos que ao dizer isso, a semelhança já estará revelada. 99 Percebemos agora que ao brincar com o léxico, tal brincadeira só seria possível/alcançada quando tais palavras (léxico) escolhidas eram não só escritas, mas também reveladas onde se encontravam, revelando assim a importância de um sentido que vai além do estilístico, penetrando largamente no semântico e não só gráfico e/ou fonológico, como inicialmente (ingenuamente?) foi proposto/experimentado por nós. E feito isso, agora como ficariam os corpus escolhidos por nós - agrupados como Roland Barthes fez/ensinou no livro Fragmentos de um discurso amoroso? Vamos responder a isto agora: Werther 1. [...] O quadro amoroso, assim como o primeiro rapto, é feito de lembranças posteriores: é a anamnésia, que só reconstitui detalhes insignificantes, não dramáticos, como se eu me lembrasse apenas do próprio tempo e nada mais; é um perfume sem suporte um grão de memória, uma simples fragrância; alguma coisa como um gasto puro, como só o haicai japonês o soube dizer, que não é recuperado em nenhum destino. (BARTHES, 2000, p. 209-210) Werther 2. Achamos que todo enamorado é louco. Mas podemos imaginar um louco enamorado? De modo algum. Eu só tenho direito a uma loucura pobre, incompleta, metafórica: o amor me deixa como louco, mas não comunico com a sobrenatureza, não há em mim nada de sagrado: minha loucura, simples perda da razão, é insignificante e até invisível; de resto totalmente recuperada pela cultura: ela não mete medo. (É entretanto no estado amoroso que certos sujeitos razoáveis adivinham de repente que a loucura existe, é possível, esta bem próxima: uma loucura na qual o próprio amor naufragaria.) (BARTHES, 2000, p. 216) Haicai No haicai japonês, o código exige que haja sempre uma palavra que indique o momento do dia e do ano; e o kigo, a apalavra-estação. Do haicai, a notação amorosa guarda o kigo, essa leve alusão à chuva, à tarde, à luz, a tudo que banha, espalha. (BARTHES, 2000, p. 231) RAPTO. Episódio tido como inicial (mas pode ser reconstituído depois) durante o qual o sujeito apaixonado é “raptado” (capturado e encantado) pela imagem do objeto amado (nome popular: gamação; nome científico: enamoramento). (BARTHES, 2000, p. 245) Werther 3. [...] Certamente é preciso algo que dê partida ao amor, como ao rapto animal; o engano é ocasional mas a estrutura é profunda, regular, assim como é cíclico o acasalamento entre os animais” (BARTHES, 2000, p. 248), Rusbrock 4. [...] por outro lado, bem que percebo o pequeno movimento de agressividade que levou X... - sem que ele mesmo o saiba – a me transmitir uma informação que magoa.” (BARTHES, 2000, p. 255) 100 Werther Werther se fantasia. De quê? De namorado encantado: ele recria magicamente o episódio do encantamento, aquele momento em que ele foi siderado pela imagem.” (BARTHES, 2000, p. 258) Proust Quando Albertine deixa escapar a expressão grosseira “tomar no rabo”, o narrador proustianos fica horrorizado, pois é o gueto temido da homossexualidade feminina, da conquista grosseira, que se revela repentinamente: uma cena inteira pelo buraco de fechadura da linguagem. (BARTHES, 2000, p. 40) Lacan 3. [...] Adorável quer dizer: este é meu desejo, tanto que Proust único: “É isso! É exatamente isso (que amo)!” No entanto, quanto mais experimento a especialidade do meu desejo, menos posso nomeá-la; à precisão do alvo corresponde um estremecimento do nome; o próprio do desejo não pode produzir senão um impróprio do enunciado: Deste fracasso da linguagem, só resta um vestígio: a palavra “adorável”!(a boa tradução de “adorável” seria o ipse latino: é ele, é ele mesmo em pessoa). (BARTHES, 2000, p. 32) O que quer dizer "pensar em alguém"? Quer dizer: esquecê-lo (sem esquecimento a vida é impossível) e despertar frequentemente desse esquecimento. Por associação, muitas coisas te trazem para o meu discurso. "Pensar em você" não quer dizer nada mais que essa metonímia. Porque, em si, esse pensamento é vazio: eu não te penso; simplesmente te faço voltar (na mesma proporção que te esqueço). É essa forma (esse ritmo) que chamo de "pensamento": nada tenho para te dizer, a não ser que esse nada é para você que digo: (BARTHES, 2000, p. 59) Goethe "Por que recorri novamente à escritura? Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente, Porque, na verdade, nada tenho para te dizer; Entretanto tuas mãos queridas receberão este papel." (BARTHES, 2000, p. 59) Gíde ("Pensar em Hubert", escreve comicamente na sua agenda o narrador de Paludes, que é o livro do Nada.) (BARTHES, 2000, p. 59) É claro que esta brincadeira lexical feita aqui, só poderia existir em uma tese sobre F(f)ragmentos e fora de uma tautologia: a coisa por ela mesma (palavra muito utilizada por Barthes). Mas a inquietação que nos perseguiu ao longo deste livro precisava ser revelada, pois se por ventura alguém se dispuser a conferir se o trabalho de busca e captura da palavra fragmento foi bem feito, fatalmente encontrará a mesma inquietação ou outras. E se isso acontecer, recomendamos que sente-se e escreva alguns fragmentos sobre o que está sentindo “a gente tira então o caderninho de apontamentos, não para anotar um „pensamento‟, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um „verso‟” (BARTHES, 1975, p. 102). Para terminar este Freud dd 101 capítulo só falta o título, para esse corpus feito por nós, agrupados como Roland Barthes o fez: Fragmentos de uma leitura inquietante. 102 4.3- O prazer do texto O que é um sentimento de prazer se não um sentimento animal, não aqui posto de forma pejorativa, mas como algo natural: não é o homem um animal racional, os animais também não sentem prazer? E o que é um texto se não algo produzido para ser lido: símbolos colocados em uma superfície, que quando decodificados geram uma mensagem, mas para quem? Parece tudo muito claro e por isso algo até desnecessário de se dizer, mas para nós que temos como tema, objeto de procura a palavra fragmento, dar uma parada (antes mesmo de começar?) é de bom tom, pois nossa palavra totêmica, por assim dizer, só aparece 3 (três) vezes: ―fragmentos‖ (BARTHES, 2002, p. 19), ―fragmentado‖ (Idem, p. 55) e ―fragmentação‖ (Idem, p. 74) e visivelmente ―concordado‖ nas três vezes em que apareceu contra as vinte e sete (27) da palavra ―sujeito‖ (pp. 8, 12, 13, duas vezes na página 18, duas vezes nas páginas 21, 23, três vezes nas páginas 28, 40, 41, 48, duas vezes na 58, 59, quatro vezes na 72, quatro vezes na 73, 74, 75) e todas às vezes, no singular! E também não nos passou despercebido: ―o traço de um corte‖ (BARTHES, 2002, p. 28), ―repartidos‖ e ―fracionam‖ sendo estes dois últimos na mesma página (BARTHES, 2002, p. 36). Lembrando que na introdução da tese dissemos que trabalharíamos com alguns sinônimos, não todos, apenas com os que achássemos pertinentes. Mas por que essa diferença de 1 (um) para 9 (nove)? Nada mais natural já que quem escreve, escreve primeiro para si: seu primeiro crítico ―Gide sempre afirmou que escrevia por necessidade e que teria se suicidado se não tivesse podido escrever‖ (DELAY, 1992, p. 575) e uma vez saciada tal ânsia, depois, a questão ―Ponho-me a questão do texto do ponto de vista do outro; o outro não é aqui o público, ou um 103 público (essa é a questão do editor); o outro, colhido numa relação dual e como que pessoal, é quem me ler.‖ (BARTHES, 2004, p. 458), ou seja, o revelar para o outro: tão sujeito como/quanto ele. E o que fazer agora, mudar de palavra (para sujeito?), pedir uma licença (caráter de exceção)? Ainda não, continuemos com o que temos: a palavra (fragmento), num primeiro momento, parece ser aplicada de forma pejorativa: (1) Leiam lentamente, (2) leiam tudo, (3) de um romance de Zola, (4) o livro lhes cairá das mãos; (5) leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, (6) esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: (7) vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada (BARTHES, 2002, p.19) Mas com Roland Barthes e sua escrita furiosa, caneta carregada de pontuações que fazem os leigos tropeçarem como quem pula nas pedras de um rio pela primeira vez; em poucas linhas todo um universo que precisa ser desvendado com calma, e com o mesmo cuidado de quem quer desmontar uma bomba ou resolver um enigma, nos valeremos agora da mesma técnica adotada por ele em S/Z: cada linha analisada (―O significante de apoio será recortado em uma sequência de curtos fragmentos contínuos, que aqui chamaremos lexias, já que são unidades de leitura‖)(BARTHES, 1992, p. 47), não à exaustão, mas à opinião (―e para cada lexia, esses significados não visam estabelecer a verdade do texto [...] mas sim seu plural) (Idem, p. 48). Não será aqui apenas uma repetição de estilo, mas a partir deste: fragmentar sim, mas não só; organizar lentamente - na verdade dar mais ênfase/tempo às paradas: uma vírgula com o tempo de um ponto final; ressuscitar significados há muito esquecidos: não ficar com apenas o ―Eu acho que sei o que significa essa palavra‖, mas ir de fato ao dicionário – pedir ajuda – e descobrir o porquê de Roland Barthes a ter usado. E comecemos: 104 (1) Leiam lentamente, - Há duas velocidades, obviamente outra mais rápida; desde Novos ensaios críticos (seu primeiro livro) em La Rochefoucauld: ―Reflexões ou sentenças e máximas‖ seu primeiro capítulo: ―Pode-se ler La Rochefoucaud de dois modos diferentes: por citações, ou de enfiada‖ (BARTHES, 1974, p. 9) sua primeira linha; estamos falando de um livro publicado, originalmente, em 1953 e, agora, de O Prazer do texto publicado, originalmente, em 1973 e ele (Barthes), vinte anos depois ainda fala de ―velocidades‖ e provavelmente ainda estaria falando se não fosse pela velocidade de uma caminhonete (de uma lavanderia) que o atropelou na rua des Écoles, diante do Collège de France, no dia 25 de Fevereiro de 1980, um dia nublado – lembram testemunhas, só não sabiam ―nublado‖ o quanto. Roland Barthes faleceria 6 de março, nove dias depois, em consequência dos ferimentos. (2) leia tudo, – E existe outra maneira de ser senão tudo? Sim, pois junto com a variação de velocidade, por assim dizer, vem também uma escolha: ―citações‖ ou ―enfiada‖. Na primeira ―aí colho um pensamento‖ (BARTHES, 1974, p. 9) e na segunda ―leio as máximas uma a uma, como uma narrativa ou um ensaio‖ (Idem, p.9). (3) de um romance de Zola, - Roland Barthes não é Zola, então devemos lê-lo como? Se em obras clássicas parece ser possível uma escolha: por citações ou de enfiadas, em Barthes (escritor contemporâneo/moderno) apenas usando a segunda maneira, isto se torna, no mínimo, perigosa, não que haja o risco de ―As máximas de La Rochefoucauld insistem a tal ponto sobre as mesmas coisas que não é a nós que desvendam e sim ao seu autor‖ (Idem. p. 9), mas por sua maneira de escrever: pontuações que tornam a leitura ramificante (para dizer o mínimo); palavras de 105 pouco uso cotidiano como tmese e charivari (escondidas/esquecidas) 1 , que Barthes sabe ser do conhecimento de poucos, mas sabe também que se escrevesse tendo como base apenas o senso comum (o mediano, vocabulário rotineiro), jamais seria o bom escritor que foi. E mesmo para aquelas palavras que pensamos conhecer devemos ficar atentos, pois seu texto só será pertinente para os que realmente conhecem as palavras e não apenas sua ―superfície‖ 2 ; não estamos querendo, com estas observações: palavra que não conhecemos e palavra que pensamos conhecer ou apenas conhecemos sua ―superfície‖ - chamar o leitor de inapto, mas apenas alertar para um hábito existente no texto barthesiano: estilística melindrosa que tem por 1 ―tmese‖ (pág. 17): - substantivo feminino 1 Rubrica: gramática. Estatística: pouco usado. m.q. mesóclise 2 Rubrica: linguística. Separação de dois elementos (normalmente adjacentes) que compõem uma palavra ou uma construção, pela inserção de um termo intermediário (nas línguas clássicas, pode ser simples intercalação — como o elemento pré-verbal separado do verbo na poesia grega — ou até mesmo ter as características do hipérbato, como no latim) (HOUAISS, 2009, pág.1850) . ―charivari‖ (pág. 18): - substantivo masculino 1 barulho ensurdecedor; barulheira 2 manifestação ruidosa; gritaria, alvoroço 3 estado de tumulto; balbúrdia, confusão 4 Rubrica: música. Cacofonia musical (HOUAISS, 2009, pág.449.) __________________________ 2 ―articulação‖ (pág. 18): - substantivo feminino Ato ou efeito de articular (-se) 11 Rubrica: linguística. Propriedade das formas linguísticas de serem suscetíveis de desmembramento em unidades menores (HOUAISS, 2009, pág.196). ―perempto‖ (pág. 19): - adjetivo Que não se encontra mais em vigor; que foi extinto por perempção; caduco (HOUAISS, 2009, pág.1472). ―interstício‖ (pág. 19): - substantivo masculino Pequeno espaço entre as partes de um todo ou entre duas coisas contíguas (p.ex., entre moléculas, células, dedos etc.) (HOUAISS, 2009, pág.1100). ―fruição‖ (pág. 19): - substantivo feminino 1 ato, processo ou efeito de fruir 2 posse, usufruto de vantagem ou oportunidade 2.1 Rubrica: direito civil. Num sentido amplo, aproveitamento ou utilização de uma coisa 3 ato de aproveitar satisfatória e prazerosamente alguma coisa (HOUAISS, 2009, pág.932) . 106 objetivo a carnavalização, palavra esta, aqui não só no sentido de subversão, mas também no sentido liberatório (libertador), pois se em Aula ele afirma que a língua é fascista ―pois o fascismo não é o impedir de dizer, é obrigar a dizer‖ (BARTHES, 2002, p.14) fica a pergunta: como algo que é fascista pode permitir que alguém (Sujeito) fuja de seu poder ―a língua entra a serviço de um poder‖ (Idem, p. 14) usando suas mesmas ferramentas? Será essa forma deturpada ―trapacear com a língua‖ (Idem, p. 14) tão eficiente assim? E a resposta nos parece ser: sim, mas infelizmente tal ação é para quem sabe. Talvez por isso só seja possível ―desvendar‖ o autor Roland Barthes por câmera lenta: método mais seguro em se descobrir trapaças. (4) o livro lhes cairá das mãos – e isto por quê? Porque o escritor de hoje ainda não aprendeu a trapacear ―essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução‖ (BARTHES, 2002, p. 16) ou ainda não teve a coragem de se projetar sobre quem escreve ―como é possível narrar alguém sem se projetar nesse alguém‖ (BARTHES, 1974, p. 45), ou ainda não teve uma vida como a de Proust que por uma, digamos, inversão ―em lugar de pôr a sua vida no seu romance [...] fez da sua própria vida uma obra‖ (BARTHES, 2004. p. 57- 58.), diferente de ―Chateaubriand: nenhum outro autor jamais se anulou tão pouco‖ (BARTHES, 1974, p. 46), Proust também praticava a tal trapaça de Barthes ―atribuiu-se a tarefa de confundir inexoravelmente, por uma substituição, a relação entre o escritor e as suas personagens‖. E o dia que aprenderem (escritores modernos) que ―o romance termina quando finalmente a escrita se torna possível‖ (BARTHES, 2004. p. 57-58.), todos nós teremos o prazer de ter a reação de quem não conseguiu segurar o livro. 107 (5) leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, - As palavras ―texto moderno‖ só aparecem duas vezes neste livro, ambas no mesmo parágrafo (p. 19); mas ao retrocedermos um pouco encontramos claramente o que Barthes quer dizer com ―Daí dois regimes de leitura‖ (BARTHES, 2002, p. 18), numa narrativa clássica o leitor fica tentado (e muitas vezes o faz) a ―sobrevoar ou passar por cima de certas passagens (pressentidas como ‗aborrecidas‘) para encontrarmos o mais depressa possível os pontos picantes da anedota‖ (Idem, p. 17) e ao fazer isso fica igual a ―um espectador de cabaré que subisse ao palco e apressasse o strip-tease da bailarina‖ (Idem, p. 17), o texto moderno é esse óbvio: ―ter -se-á alguma vez lido Proust, Balzac, Guerra e Paz, palavra por palavra?‖ (Idem, p. 17). (6) esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: – Se este livro (originalmente escrito em 1973: moderno, contemporâneo) for lido de forma rápida e já sendo ele fragmentado, perder-se-á muitas sutilezas, palavra que já salientamos na introdução desta tese: ―Essa sutileza é decisiva‖ (BARTHES, 1984, p. 127) - ser de vital importância; pois somente com a atenção que uma leitura lenta pode proporcionar percebemos que o que Barthes sugere neste parágrafo não é apenas um confronto entre ―narrativa mais clássica‖ (Idem, 1984, p. 17) e o ―texto moderno‖ (Idem, p. 19), mas sim um confronto desigual, que uma leitura rápida nos deixaria escapar: o que ele sugeriu foi, de fato ―leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola‖ ou seja ―lentamente‖ e ―tudo‖ em oposição a ―leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno‖, por tanto não se trata de simples clássico oposto ao moderno, mas um clássico: lento e tudo – oposto a um moderno: rápido e fragmentado. 108 (7) vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada. – Realmente, se este livro for lido rápido - muito se perderá, mas a quanto ser fragmentado: isto não será um problema: ―não é a extensão (lógica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significância‖ (Idem, p. 18). Barthes escreveu (como método) neste livro o que gosta de encontrar nos clássico, um ―jogo‖, um saber ―trapacear‖ com a língua para mudar o desempenho da linguagem ―Mas a língua, como desempenho de toda linguagem...‖ (BARTHES, 2002, p. 14), que poucos conseguem entender, mesmo ele (Barthes), agora, ao explicar o que fez: ―como no jogo da ‗mão quente‘, a excitação, provém, não de uma pressa processiva, mas de uma espécie de charivari vertical (a verticalidade da linguagem e de sua destruição)‖ (Idem, p. 18), não obterá êxito, pois muitos têm pressa e poucos pesquisam o significado de algumas palavras e como dissemos no início deste capítulo há palavras que merecem ser investigadas: as que desconhecemos e as que pensamos conhecer. E o ― sujeito‖ para quem Roland Barthes escreveu o livro, aparece aqui como ―vocês‖, mas independente dessa ―interpretação/atribuição‖ que demos, a palavra chave deste livro – que não é a palavra ―fragmento‖, mas sim ―sujeito‖ – e esta aparece algumas linhas (duas vezes) acima ―é no momento em que cada mão (diferente) salta por cima da outra (e não uma depois da outra), que o buraco se produz e arrasta o sujeito do jogo – o sujeito do texto‖ (Idem, p. 18 – grifo nosso). E agora em um comentário único, fugindo t emporariamente do método usado por Barthes em S/Z, falaremos agora não de um encontro com a palavra ―fragmento‖, mas com o que acreditamos ser uma símile, e por não contradizer tudo o que escrevemos e acreditamos (se isso acontecesse estaríamos dispostos a discutir e quem sabe até rever tudo, mas não foi o caso) achamos pertinente seu estudo. Mas se creio, ao contrário, que o prazer e a fruição são forças paralelas, que elas não podem encontrar-se e que entre elas há mais do que um 109 combate: uma incomunicação, então me cumpre na verdade pensar que a história, nossa história, não é pacífica, nem mesmo pode ser inteligente, que o texto de fruição surge sempre aí à maneira de um escândalo (de uma claudicação), que ele é sempre o traço de um corte, de uma afirmação (e não de um florescimento) e que o sujeito dessa história (esse sujeito histórico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar -se levando em conjunto o gosto pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca é mais do que uma ―contradição viva‖: um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, através do texto, da consistência de seu ego e de sua queda. (BARTHES; 2002, p. 28) Aqui não temos a palavra ―fragmento‖, mas temos uma expressão no mínimo inquietante, isto é, para quem tem a obrigação para com tal palavra (fragmento) em sua tese, ou seja: nós. Não daria para passar despercebida tal expressão. Se enquanto em outros livros foi possível/viável estudar certos sinônimos (não todos, só os que achássemos pertinentes), como fugir de nossas obrigações diante de um ―o traço de um corte‖: isso não é o mesmo que ―fragmento‖ só que em plena ação? Todo o contexto mostra sua força: ―corte‖ versus ―florescimento‖ e uma possível, a nosso ver, comparação com o que já estudamos de Punctum em Barthes. Ou seja: ser pessoal e por isso, muitas vezes, estar fora do alcance de quem quis produzir o Punctum, podendo ele mesmo: o autor do Studium, ser pego por um Punctum que ele mesmo não previu. O próprio Gide escrevia de tal maneira que fazia a obra agir sobre quem escrevia (ele mesmo), acreditando que uma obra fracassa quando não consegue alcançar tal modificação no escritor. Aqui, Barthes se assumiu como ―sujeito‖, ou melhor, um antropos (άνθρωπος) da história (é assim que ele costuma chamar o ―sujeito‖) em particular dentre o antropos ( άνθρωπος) que são todos, que somos todos nós ―e que o sujeito dessa história (esse sujeito histórico que eu sou entre outros)‖. Na terceira palavra ―sujeito‖ ele já retrata aqui a possibi lidade de existir um antropos (άνθρωπος) em paz com o que procura (ou encontra?), um ser tão especial que somente dentro da Literatura: sentido de produtor e leitor, poderia receber um nome tão sutil como ―sujeito‖, que dás entranhas da gramática é descrito como ―aquele que sofre ou pratica a 110 ação‖ aqui descrito como ―sujeito clivado 3 ‖, mas de todos os significados possíveis atribuídos a este adjetivo (clivado), qual o mais pertinente? Terá Roland Barthes pensado em ―divisões do zigoto‖ já que escreveu ―(e não de um florescimento)‖; substituição de uma oração relativa no lugar de um sintagma - já que escreveu ―o traço de um corte‖; ou tal palavra foi usada como quem compara o texto como algo uno como um mineral, mas ao mesmo tempo fragmentável ao longo de pl anos paralelos? Em Barthes certas palavras precisam ser esgotadas ao extremo, sob pena de não vermos a mágica na hora em que ela acontecer: ―não é a extensão (lógica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significância‖ (Idem, p. 18). Na página trinta e seis (36) encontramos mais duas palavras que remetem a ―fragmento‖ e são elas: ―repartidos‖ e ―fracionam‖. ―... Cada povo tem acima de si um tal céu de conceitos matematicamente repartidos, e, sob a exigência da verdade, entende doravante que todo deus conceitual não seja buscado em outra parte a não ser em sua esfera‖ (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro. (BARTHES; 2002, p. 36- Grifo nosso) O que dá força a primeira palavra é sua vizinha pré-posta ―matemática‖, ela produz ares de precisão (como em ares de fidalgo) que de fato não existe, já que 3 ―clivado‖ (pág. 28): vem de clivagem - substantivo 1 Rubrica: embriologia. Cada uma das divisões iniciais do zigoto 2 Rubrica: gramática gerativa. Encaixe de uma oração relativa no lugar de um sintagma (Ex.: ele gosta de poesia, passa a; é de poesia que ele gosta) 3 Rubrica: mineralogia. Propriedade que apresenta um mineral de se fragmentar ao longo de planos paralelos Ex.: a c. da mica em lamelas feldspato 4 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: política, sociologia. Separação, diferenciação ou oposição de grupos sociais ou étnicos 5 Rubrica: química. Quebra de uma molécula complexa em moléculas mais simples 111 estamos falando de povo, que é constituído de ―sujeitos‖, que por sua vez mudam de opinião como um ator muda de cena, então como precisar? Mas ao constatarmos que isto pertence a Nietzsche - este detalhe exegeta morre e ela ganha nova força, pois o que o escritor quis de fato dizer é que não importa a precisão em repartir, pois tal repartição virá sempre de ―sua esfera‖, ou seja: novos fragmentos podem ser montados, mas sempre serão limitados ao que a ―esfera‖ deles puder oferecer. E por que Roland Barthes se vale deste comentário? Porque para ele a linguagem també m possui um lugar limitante ―estamos todos presos na verdade das linguagens‖, nela também há uma luta pelo poder ―Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa‖ e esta doxa o que é senão a soma dos ―matematicamente repartidos‖ de Nietzsche, lugar uno e provavelmente pobre até o dia em que a verdade possa ser encontrada em outras esferas. E enquanto isto não acontecer não vai adiantar o famoso ―Dividir para conquistar‖ que Napoleão pegou emprestado de Júlio Cesar e nunca devolveu - ―os falares se fracionam, lutam entre si‖, pois a verdade de quem ganha será sempre uma verdade impositiva ―Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem‖, sempre lutando para não ser substituída ―a linguagem vem sempre de algum lugar‖ por isso, sem dúvida, um lugar de eterna guerra ―é topos guerreiro‖ e sendo assim, bem poderia ter utilizado a palavra topo-macheo (τoπο-μαχeο) que significa ―guerrear ocupando os pontos estratégicos‖ (PEREIRA, 1990, p. 577). Pena que na página quarenta e um (41) não apareça a nossa palavra estudada, é lá onde encontramos o que Barthes pensa sobre ideologia dominante: [Diz-se correntemente: ―ideologia dominante‖. Esta expressão é incongruente. Pois a ideologia é o quê? É precisamente a ideia enquanto ela domina: a ideologia só pode ser dominante. Tanto é justo falar de ―ideologia da classe dominante‖ porque existe efetivamente uma classe dominada, quanto é inconsequente falar de ―ideologia dominante‖, porque não há ideologia dominada: do lado dos ―dominados‖ não há 112 nada, nenhuma ideologia, senão precisamente – e é o último grau da alienação – a ideologia que eles são obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de empréstimo à classe que os domina. A luta social não pode reduzir-se à luta de duas ideologias rivais: é a subversão de toda ideologia que está em causa.] (BARTHES, 2002, p. 41) É bem verdade que um pouco antes, na página quarenta (40), aparece a palavra ―cortada‖, mas como aconteceu com sua sinonímia anterior, na página trinta e seis (36), foi usada de forma pejorativa, crítica, quase um salpico; exceto para dizer que às vezes o fragmentar não adianta, pode até ser feito, mas quando a origem/fonte está comprometida por ideias/ideais limitantes o que fazer? E isto compromete a tese? Não, apenas avisa que, muitas vezes, fragmentar é preciso e acontece a toda a hora, mas de pouca valia terá se o que for fragmentado, seus pedaços, não tiverem a liberdade de ser outras coisas se não o que a doxa ou a tópica permitir. Agora, voltemos ao método S/Z de Barthes: (1) A. me confia que não suportaria que sua mãe fosse desavergonhada – mas suportaria que o pai o fosse; (2) acrescenta: é estranho, isso, não é? (3) – Bastaria um nome para pôr fim a seu espanto: Édipo! (4) A. está a meu ver muito perto do texto, pois este não dá os nomes – ou suspende os que existem; (5) não diz (ou com que intenção duvidosa?) o marxismo, o brechtismo, o capitalismo, o idealismo, o Zen, etc.; (6) o Nome não vem aos lábios; é fragmentado em práticas, (7) em palavras que não são Nomes. (8) Ao se transportar aos limites do dizer, numa mathesis dá linguagem que não quer ser confundida com a ciência, (9) o texto desfaz a nomeação e é essa defecção que o aproxima da fruição. (BARTHES, 2002, p. 55 –Grifo nosso) (1) A. me confia que não suportaria que sua mãe fosse desavergonhada – mas suportaria que o pai o fosse – o sexismo nada mais é que a ―atitude de discriminação fundamentada no sexo‖ (HOUAISS, 2009, p. 1740), Balzac com base justamente nessa predeterminação: quem faz o que, onde – criou uma obra esplêndida: em S/Z algo que deveria ter sido percebido logo de início, não foi ―E algum dia subiram mulheres ao palco, em Roma?‖ (BARTHES, 1992, p. 31), que Barthes não hesitou em analisar: nesta parte (a de número 469) considera revelado o que o personagem é ―Zambinella é um eunuco‖ (Idem, p. 203) só que de forma sutil: o personagem não 113 responde, apenas abaixa a cabeça e como no fragmento sacado ―o Nome não vem aos lábios‖, mas existe. (2) acrescenta: é estranho, isso, não é? – não nos inquietou aqui a pergunta em si: se era ou não estranho, mas a permissão de dar ao outro (―sujeito‖) não a oportunidade de responder, mas a oportunidade de julgar, pois o que seria esta resposta senão uma sentença, mais do que uma mera explicação. (3) – Bastaria um nome para pôr fim a seu espanto: Édipo! – Barthes tem certa preocupação com os ―nomes‖, estes, mesmo quando não pronunciados estão lá, ocultos por nuvens de medo ou desconfiança (quem sabe?), mas estão lá, pode -se senti-los, talvez até melhor que quando são de fato pronunciados. (4) A. está a meu ver muito perto do texto, pois este não dá os nomes – ou suspende os que existem – Barthes aponta tal prática de ocultamento no texto, talvez, aqui o mágico comece a explicar como se faz o truque, a trapaça. (5) não diz (ou com que intenção duvidosa?) o marxismo, o brechtismo, o capitalismo, o idealismo, o Zen, etc.; - Mas essa ―trapaça‖ não é exclusiva da literatura, dos textos; outros também fazem usam do ocultamento e junto com os nomes não ditos se escondem também as intenções não ditas: para o bem e para o mal. (6) o Nome não vem aos lábios; é fragmentado em práticas, - O fragmento serve para esconder tanto quanto serve para revelar, no segundo caso - não um revelado somente (oculto versus exposto), mas a alteração do que já era exposto: o camuflado ―O senhor não sabe quais criaturas fazem os papéis femininos nos domínios do Papa?‖ (BARTHES, 1992, p. 31); no primeiro caso – o ocultamento se faz não em retirar os elementos, mas em expor demasiados elementos típico, conhecidos; mas que por um descuido do sujeito passivo, provocado/iludido por 114 demasia de informações sui generis do sujeito ativo (fragmentos encadeados em série), fica escondido por interpretação errônea e não por ocultação física. (7) em palavras que não são Nomes. – A palavra (nome) ―eunuco‖ simplesmente não aparece na novela Sarrasine de Balzac: ―O senhor não sabe quais criaturas fazem os papéis femininos nos domínios do Papa?‖ (BARTHES, 1992, p. 31), ―–, pois até um... – Não terminou a frase.‖ (BARTHES, 1992, p. 32), ―a origem de uma fortuna que provém...‖ (Idem, p. 34), ―Não se fabricam mais dessas infelizes criaturas‖ (Idem; p. 35). (8) Ao se transportar aos limites do dizer, numa mathesis dá linguagem que não quer ser confundida com a ciência, – É curioso, essa palavra ―mathesis‖ que quer dizer matemática: já apareceu em O Prazer do texto citado por Nietzsche e agora talvez por Descartes, se a entendermos como uma alusão a mathesis universalis (matemática universal): designação criada por ele para tentar ―padronizar‖ a razão usando as teorias matemáticas; ela vem (é dita) e ao mesmo tempo recusada (―que não quer ser confundida com a ciência‖), Barthes não nega a utilidade da matemática, caso contrário por que citá-la três vezes (―matematicamente repartidos‖ p. 36, ―mathesis geral‖ p. 45, ―mathesis da linguagem‖ p. 55)? Mas sempre a usa do mesmo modo daqueles que ele cita, de forma adaptativa: ―Palavra que não deve ser entendida no sentido retórico, mas no sentido ginástico ou coreográfico‖ (BARTHES, 2000, p. 14). (9) o texto desfaz a nomeação e é essa defecção que o aproxima da fruição. – É na omissão de uma palavra (―desfaz a nomeação‖) por sua substituição (―defecção‖: abandono voluntário e consciente de uma obrigação ou compromisso, apud HOUAISS, 2009, p, 605) que o que se quis dizer é dito, não mais agora de forma sutil (dentro do texto), mas por sua ausência o questionamento de não a usar, 115 fugir, gera no ―sujeito‖ (fora do texto) um novo texto; o que se usou para ―eufemizar‖ uma situação (constrangedora?) na verdade a ―hiperboleizou‖: eis a fruição! Agora trabalharemos a última palavra ―fragmento‖ encontrada no livro; mais uma vez a palavra ―sujeito‖ a acompanha. (1) Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura – ou dos leitores de prazer; não seria sociológica, pois o prazer não é um atributo nem do produto nem da produção; só poderia ser psicanalítica, empenhando a relação da neurose leitora na forma alucinada do texto. (2) O fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentação das citações, das fórmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. (3) O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metalinguagens (esta classe reuniria todos os logófilos, linguistas, semióticos, filólogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). (4) O paranoico consumiria ou produziria textos retorcidos, histórias desenvolvidas como raciocínios, construções colocadas como jogos, coerções secretas. (5) Quanto ao histérico (tão contrário ao obsessional), seria aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na comédia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que já não é o sujeito de nenhum olhar crítico e se joga através do texto (o que é muito diferente do se projetar nele). (BARTHES, 2002, p. 74 – Grifo nosso) (1) Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura – ou dos leitores de prazer; não seria sociológica, pois o prazer não é um atributo nem do produto nem da produção; só poderia ser psicanalítica, empenhando a relação da neurose leitora na forma alucinada do texto. – O prazer não ser de responsabilidade nem do produto: resultado final, nem da produção: ato de produzir, sendo assim, só restaria mesmo recair sobre o sujeito: ―leitura‖ e ―leitores‖ são atributos do sujeito. (2) O fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentação das citações, das fórmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra – Mais uma vez lembramos que a escolha de palavras que Barthes faz em suas obras é de vital importância; algumas vezes esclarecedoras, mas em outras intrigantes, por exemplo: 116 ―fetichista‖ não é necessariamente um homem apressado em obter prazer, então por que a usou? Talvez pelo fato de sua característica mais marcante ser a – individualidade – do seu objeto de prazer, para ele só interessa ―aquilo‖, daí a permissão de excluir o resto, cortar, fragmentar. (3) O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metalinguagens (esta classe reuniria todos os logófilos, linguistas, semióticos, filólogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). – aqui temos palavras que nos remetem a várias sutilezas, verdadeira orgia de sutilezas, se nos permitem dizer: começando com ―obsessional‖ bem poderia estar em itálico, já que o próprio dicionário Houaiss não a reconhece, mas o de Inglês o reconhece como ―obsession‖ (COLLINS, 2001, p. 222) por tanto, temos um neologismo formado do inglês (já que em português seria obsessão, obsessivo, obsesso e não obsessional) com o prefixo ―al‖ que indica ―relativo a...‖ como em ―comportamental‖; a palavra ―voluptuosidade‖ tem mais definições ligadas a prazer, sexo, libido a que volume propriamente dito; a palavra ―logófilos‖ geralmente esta mais liga a um sentido pejorativo a que elogioso, principalmente quando a encontramos perto de ―filólogos‖: Em Elementos de filologia românica temos o seguinte comentário ―Ao ‗filólogo‘ interessa a comunicação, o conteúdo significativo e enriquecimento da mensagem, enquanto para o ‗logófilo‘ palavras são palavras apenas. Evidente é o sentido pejorativo de ´logófilo‘‖ (BASSETTO, 2001, p. 24) e pelo visto Barthes não concorda com este sentido, caso contrário por que incluir este nome ao lado de outros em que admitem a palavra como algo ―ginástico ou coreográfico‖ (BARTHES, 2000, p. 14) ? 117 (4) O paranoico consumiria ou produziria textos retorcidos, histórias desenvolvidas como raciocínios, construções colocadas como jogos, coerções secretas. – Este tipo parece exerce um ―jogo‖, mas não o ―jogo‖ de que Barthes prega em Aula, a escrita paranoica, a princípio, parece ser usada para fugir do poder, mas na verdade ela nada mais é que uma consequência de uma vítima, talvez sequelada, deste poder e não a própria mente em sua fuga por trapaça e/ou esquiva.. . (5) Quanto ao histérico (tão contrário ao obsessional), seria aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na comédia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que já não é o sujeito de nenhum olhar crítico e se joga através do texto (o que é muito diferente do se projetar nele) – Um histérico não é uma pessoa que classificaríamos como alguém que gosta de ganhar dinheiro, mas se entendermos como ―aquele que se mostra extremamente nervoso e exaltado‖ (HOUAISS, 2009, p. 1028) por dinheiro, então entendemos que em sua pressa de ganhá-lo - se perde, atropela as sutilezas, que até são substituídas por outras, mas por sua evidência fracassam ―Certos detalhes poderiam me ‗ferir‘. Se não o fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente pelo fotógrafo‖ (BARTHES, 1984, p. 75) e assim como nas fotos um punctum colocado no texto não deve ser ―histérico‖. A ―charivari‖ é um ―barulho‖ que para Barthes causa uma multiplicação de possibilidades, mas para outros uma impossibilidade de compreensão, daí a solução de acelerar a leitura; o que torna o texto moderno perempto não é a fragmentação, mas essa pressa de alcançar um prazer que de fato existe, mas está escondido/colocado fora de alcance para aqueles que não quiserem participar do ―jogo‖, um ―jogo‖ que só é possível numa releitura, pesquisando, comparando: internamente e exteriormente ao texto do livro, dentro da obra Barthesiana como em 118 outras, enfim, tudo o que uma pessoa (―sujeito‖) apressada/ansiosa não quer, e no fim o que restará? Provavelmente alguém que não gostou de um livro chamado: O prazer do texto. Em Novos ensaios críticos, Barthes diz que podemos ler La Rochefoucauld ―por citações, ou de enfiada‖ (BARTHES, 1974, p. 9), em O prazer do texto propõem ―Leiam lentamente tudo, de um romance de Zola [...] leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno‖ (BARTHES, 2002, p.19); e nós o que fizemos? Ficamos com os dois, de forma adaptada, mas ficamos com os dois: nós lemos por ―citações‖ já que nossa proposta era procurar e entender como Roland Barthes usa/entende a palavra ―fragmento‖ e depois que a localizamos nós lemos de ―enfiada‖ tudo que estava relacionado a ela. 119 4.4. Mitologias - “Escrever para gerar polêmicas móveis e não verdades estáticas” Em Mitologias (1957), livro dividido em duas partes, na primeira encontramos breves artigos mensais intitulados “Mitologia do Mês” para Les Lettres Nouvelles e que acreditamos: formam uma escrita de fragmento, não que cada capítulo (artigo) seja fragmentado como em Fragmentos de um discurso amoroso (1977) ou em O prazer do texto (1973), mas por os considerarmos fragmentos completos cuja soma resulta em um inteiro - o mito: segunda parte intitulada “Myth Today” (2. O MITO, HOJE). Mas sendo assim o que torna este livro diferente de outros escritos por ele como Crítica e Verdade (1966) ou A Aventura Semiológica (1985)? A diferença está justamente na existência de uma segunda parte - que funciona - como uma “cola” ou uma área limitante em nosso gabarito mental, sendo esta última palavra (limitante) usada aqui não de forma pejorativa, antes funcional para não nos perdermos no grande e polivalente corpus apresentado por Barthes: Luta livre (o mundo do cath) (BARTHES, 1972, p. 11), cinema (os romanos no cinema), brinquedos (um microcosmo adulto), bife com batatas fritas (quem já não disse ou ouviu: “você esteve na minha casa, comeu da minha comida”) (Idem, p. 54), cozinha ornamental (“... à própria finalidade da cobertura, que é de ordem visual,...”) (Idem, p. 77), strip-tease (ler este mito junto com “10. Trajes” de Pierre Loti: “AZIYADÉ” de novos ensaios críticos é algo bem complementar) (Idem, p. 93), fotografia (fotos-choque: “não basta que o fotógrafo nos „signifique‟ o horrível para que o sintamos” (Idem, p. 67) e fotografia eleitoral: “... a fotografia possui um poder de conversão que se deve analisar”) (Idem, p, 102) e isto não são todos os exemplos que encontramos em Mitologias (1957), são apenas alguns. 120 O importante agora é entendermos que a diferença não reside apenas no fato de haver pura e simplesmente uma segunda parte, só em A Aventura Semiológica (1985) existem três, mas por esta segunda parte (apesar dela mesma estar sub-dividida em onze partes) apresentada no livro Mitologias (1957) funcionar como a explicação teórica dos fragmentos em ação, que é a primeira parte toda (1. MITOLOGIAS). Se só tivéssemos a primeira no livro, este bem poderia ter outros nomes como “Provocações” ou “Inquietações”, teríamos um inteiro sim, do mesmo jeito, mas seria um inteiro volátil. Fragmentos (artigos/capítulos) reunidos apenas pelo título não deixam de ser fragmentos, mas não são os fragmentos que queremos estudar, são pobres, são só exemplos (“Todo exemplo é vagabundo”: como diz nosso orientador), são peças de qualquer quebra-cabeças, loucos por demais “Estou louco” (BARTHES, 2000, p. 215); para algumas obras o melhor é ser “fraco-atirador” como Barthes. E por Mitologias (1957) ser/ter diferença escolhemos esta obra em detrimento de outras menos representativas. É por ser como ela é: conteúdo funcional e não somente parte (uma das partes) do que é, que chegamos à conclusão: Mitologias (1957) é seguramente uma das melhores obras para se trabalhar em se tratando de Escrita de Fragmento. Exprimi esse ofuscamento e essa esperança no posfácio das Mitologias, texto cientificamente envelhecido talvez, mas texto eufórico, pois que dava segurança ao engajamento intelectual dando- lhe um instrumento de análise e responsabilizava o estudo do sentido dando-lhe um alcance político. (BARTHES, 2001, p. XIII) Em A Aventura Semiológica (1985), de onde veio este fragmento acima, também temos/encontramos um agrupamento de textos (fragmento) “Os textos que se seguem pertencem todos ao que foi a atividade de pesquisa e de 121 docência de Barthes” (BARTHES, 2001, p. VII), mas como ocorre também em Crítica e verdade (1966) não há neles algo como o que ocorre em Mitologias (1957): um posfácio que dá “vida” ao que foi apresentado anteriormente. Tanto no primeiro: dividido em três partes (1.ELEMENTOS, 2.DOMÍNIOS, 3.ANÁLISEA) como no segundo: dividido em ENSAIOS CRÍTICOS e CRÍTICA E VERDADE as partes não se interagem como ocorre assumidamente em Mitologias (1957) e admitido pelo próprio Barthes no livro A Aventura Semiológica (1985). É verdade que ele coloca Crítica e verdade (1966) na lista de livros que ele considera Escritura Curta, em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), e exclui A Aventura Semiológica (1985), pois como podemos notar pelas datas, este último só seria escrito dez anos depois. Desde então, de fato, não cessou de praticar a ecritura curta: quadrinhos das Mythologies e de L‟Empiere des signes, artigos e prefácios dos Essais critiques, lexias de S/Z, parágrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plasir Du texte.(BARTHES, 1977, p. 101). Mas para o melhor desenvolvimento desta pesquisa elegemos trabalhar assumidamente com este: Mitologias (1957), deixando/usando outros livros com seus respectivos fragmentos para momentos que julgarmos oportunos, como acabamos de fazer em unir o método que Barthes usou em S/Z (1970) para trabalharmos no livro O prazer do texto (1973) e neste método incluímos fragmentos de outras obras tanto as de Barthes como as de outros. Mas a tese não se limita só a “copiar” técnica e “colar” fragmentos. Também há a preocupação em contribuímos com o pensamento de Barthes, dando uma continuidade a seu trabalho. Fizemos isso em Câmara clara (1980): ao imputarmos um pensamento pela ótica de quem tira a foto: o Operator 122 (Primoris Visum, Attentus Visum, Animus Simulandi) já que como ele mesmo disse: “Uma dessas práticas me estava barrada e eu não deveria procurar questioná-la: não sou fotógrafo, sequer amador” (BARTHES, 1984, p. 20) e por isso escreveu sobre a ótica de quem é (Spectrum) ou vê (Spectator) a fotografia “Eu tinha à minha disposição apenas duas experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha.” (BARTHES, 1984, p. 21 e 22). Em Novos ensaios críticos (1972) comparamos La Rochefoucauld e suas máximas com o que poderíamos chamar (e quem sabe um dia se chamará) as máximas de Machado de Assis. Ao analisarmos Fragmentos de um discurso amoroso (1977) fizemos um texto final usando todo o corpus estudado ao estilo que usou para produzir o próprio livro. Em O prazer do texto (1973) já dissemos o que fizemos (usamos o método em S/Z) e neste agora, Mitologias (1957), uniremos a semiótica explicativa de Barthes “esse meio era a semiologia ou análise fina dos processos de sentido” (BARTHES, 2001, p. XIII) com exemplos (corpus) potencialmente equivalentes se não em assuntos ao menos equiparados em euforia “mas texto eufórico” (BARTHES, 2001, p. XIII), esta será nossa contribuição, neste. A propósito do mito, diz Barthes que tudo pode lhe servir de suporte: Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, nat ural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas.(BARTHES, 1972; p. 131) Partindo de casos concretos da vida cotidiana francesa, Barthes pretendeu realizar um trabalho de depuração dos mitos contemporâneos, numa crítica ideológica da cultura de massa. Algo o incomodava profundamente no modo como esses mitos se veiculavam, na confusão entre Natureza e História 123 sobre a qual eles se instalavam ”esse meio era a semiologia ou análise fina dos processos de sentido graças aos quais a burguesia converteu a sua cultura histórica de classe em natureza universal” (BARTHES, 2001, p. XIII). Queria chamar a atenção para os significados ocultos que, desprevenidamente, consumimos nos diferentes discursos. O próprio desses discursos (fossem eles verbais ou icônicos) era apresentarem-se com uma aparência de naturalidade absoluta, como aquilo que simplesmente é assim, que o senso comum não discute, mas apenas aceita. O autor analisa o embuste na própria forma de mensagem que, desmontada, revela sua artificialidade. Ora, a eficácia da mensagem ideológica reside justamente no fato de ela se apresentar como transparente, sem nenhuma intenção, pois um mito sempre conta com um “álibi” pronto: seus praticantes sempre podem negar (ou esconder) que um sentido de segunda ordem esteja envolvido, afirmando que vestem certas roupas por uma questão de conforto ou de durabilidade, e não de sentido. Quando Barthes considera o automóvel moderno... O equivalente das grandes catedrais góticas: quero dizer, a suprema criação de uma era, concebida com paixão por artistas desconhecidos e consumida, em sua imagem, senão em seu uso, por todo um povo que se apropria dele como de um objeto perfeitamente mágico (BARTHES, 1967, pág.150 do original em francês) 1 Como um automóvel pode ter todo este poder? Estamos falando de quatro rodas e um volante, certo? Ou ao adquirirmos um nouvelle Citroën estaremos ganhando mais do que simples locomoção? 1 Roland Barthes, MYTHOLOGIES (versão francesa, a versão traduzida para o português NÃO POSSUI DEZ MITOS: L‟acteur d‟Harcourt, Dominici, Romans et Enfants, Paris n‟a pás été inondé, Quelques paroles de M. Poujade, Adamov et lê langage, Racine est Racine, Lê procès Dupriez, Lê Tour de France comme épopée E La nouvelle Citroën; sendo este último - o citado - encontrado na pág. 150 do original em francês). 124 Barthes não revela neste ensaio as artimanhas usadas na propaganda, prefere agora entrar na fila como todos os outros e como os filósofos faziam na antiguidade, vai aos poucos provocando: onde estaria o encanto, por que tanto alvoroço? Ele existe, é fato, está até na capa da Paris Match nº 340. Neste momento Barthes trabalha dentro da língua, combate ilusão não com explicação, mas antes com um “ver melhor”; enquanto outros discutem se o copo está meio cheio ou meio vazio, o mitólogo abre uma conversa sobre a própria metáfora do copo: o que torna esta discussão profícua até hoje. E como Barthes só vai trabalhar como semiólogo na segunda parte, ficou para nós a tarefa de analisar semiologicamente a “razão” de tamanho alvoroço, e já que não vivemos na França do ano de 1955 o melhor é pegarmos hoje (2010) o que existe de melhor para nos ajudar na árdua tarefa. Em Semiótica visual (PIETROFORTE, 2007) encontramos um professor/autor que estuda os textos de J. M. Floch 2 , em Sémiotique, marketing e communication ele encontrou um texto que atende não só a propaganda de automóveis, mas a propaganda de um modo geral, no capítulo “J‟aime, J‟aime, J‟aime...” (FLOCH, 1995, p.119-152) tal ensaio propõe uma apologia dos modos de valorização utilizados pela propaganda publicitária, que pode fornecer as bases para a rede de relações que buscamos determinar: 2 O semioticista francês Jean-Marie Floch (1942 – 2001) é considerado um dos fundadores da Semiótica visual, foi um dos principais e mais próximos colaboradores de Algirdas J. Greimas na elaboração da teoria semiótica geral. 125 a valorização prática corresponde aos valores de uso, concebidos como contrários aos valores de base (são os valores utilizados, como o manuseio, o conforto, a potência,...); a valorização utópica correspondente aos valores de base, concebidos como contrários aos valores de uso (são os valores existenciais, como a identidade, a vida, a aventura, ...); a valorização lúdica corresponde à negação dos valores utilitários (a valorização lúdica e a valorização prática são contraditórios entre si; os valores lúdicos são o luxo, o refinamento,...) a valorização crítica corresponde à negação dos valores existenciais (a valorização crítica e a valorização existencial são contraditórias entre si; as relações qualidade/preço e custo/benefício são próprias dos valores críticos).(FLOCH Apud PIETROFORTE, 2007, p.33, grifo e setas nosso) Toda propaganda trabalha cruzando essas informações, ora evidenciando uns e escondendo outros, por exemplo: há uma marca de detergente que diz fazer o mesmo trabalho do concorrente a um preço mais baixo, ou seja, a valorização prática (lavar mais, menos trabalho) é evidenciada junto com a valorização crítica (custo/benefício), mas eis que vem o concorrente e diz que ambas as visões de valor estão distorcidas, pois para se fazer o mesmo trabalho 126 seria preciso fazer mais de uma lavagem (quebra da valorização prática), logo isso não seria prático e por conseguinte também não seria econômico (quebra da valorização crítica). E vale salientar que ainda não vimos o primeiro concorrente dar uma resposta (contrarréplica) a essas duas quebras. Na propaganda La nouvelle Citroën temos a clara valorização utópica, que Antonio Vicente Pietroforte salienta “utópico aqui não quer dizer ilusório, mas relativo a uma meta final” (PIETROFORTE, 2007, p. 32) que bem poderia ser exemplificada como “A cenoura na frente do burro”; quem não quer vencer na vida, e mais, mostrar que venceu. Para que isso aconteça a valorização crítica (custo/benefício), que no quadro semiótico apresentado nega a utópica (identidade, vida, aventura), não entra aqui como obstáculo uma vez que é caro, mas como superação de obstáculo: uma vez que isso, o preço, não impediu o sujeito de acrescentar à valorização prática (a necessidade de se deslocar) o conforto de quem merece mais por ter feito mais, a valorização lúdica (luxo, refinamento). O mitólogo se coloca numa posição de cumplicidade com relação ao que ataca, conforme articula aquilo que não é preciso dizer, desvelando o sentido mítico - ele não nada contra a correnteza, mas como um judoca que usa a força do próprio adversário contra ele mesmo, com a língua, usa: não o “obrigar a dizer” (BARTHES, 2002, p. 14) do fascismo, mas um completar ao dizer. Um sujeito compra um televisor de LCD maior, maior que o do vizinho, logo vai se divertir, pois é um televisor maior,e, maior que o do vizinho. Em Mitologias (1957) Barthes revela o “jogo”, a “trapaça salutar” que lemos em Aula (BARTHES, 2002, p. 16), pois aqui o que está em jogo não é um “ouvir a língua fora do poder” (Idem, p. 16), mas um revelar o poder para que 127 ele perca sua força, sua influencia, enfim, um “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8:32) como está escrito na bíblia não para demonstrar religiosidade, pois Barthes era “Protestante num país católico como a França, canhoto num mundo de destros e homossexual assumido em plena sociedade conservadora” 3 , mas para avisar o “Sujeito” de que "Nem tudo que reluz é ouro." (Adágio Popular). E quem sabe, conhecê-lo melhor. E após a primeira parte, onde não encontramos a palavra fragmento, logo no início do que é “O MITO COMO SISTEMA SEMIOLÓGICO”: Efetivamente, como o estudo de uma fala, a mitologia é apenas um fragmento desta vasta ciência dos signos que Saussure postulou há cerca de quarenta anos atrás, sob o nome de semiologia. A semiologia ainda não se constituiu. No entanto, desde o próprio Saussure, e por vezes independentemente do seu trabalho, todo um setor da pesquisa contemporânea retorna incessantemente o problema da significação: a psicanálise, o estruturalismo, a psicologia eidética, certas novas tentativas de crítica literária que Bachelard inaugurou, pretendem estudar o fato apenas na medida em que ele significa. Ora, postular uma significação, é recorrer à semiologia. Não quero dizer com isto que a semiologia cubra igualmente todas estas pesquisas: elas têm conteúdos diferentes. Mas todas têm estatuto comum, são todas elas conteúdo elas ciências dos valores; não se contentam em circunscrever o fato: definem-no e exploram-no como um valor de equivalência. (BARTHES, 1972, p.133) Para falarmos desse parágrafo transcrito acima, será preciso fazermos uma rápida visita à Elementos de Semiologia (BARTHES, 1993). Logo no início Barthes propõe uma correção ao pensamento de Saussure que era: “que a Linguística era apenas uma parte da ciência geral dos signos” (BARTHES, 1993, p. 11). Pois ao analisar mais de perto esta questão A semiologia só se ocupou, até agora, de códigos de interesse irrisório, como o código rodoviário [...] parece cada vez mais difícil conceber um sistema de imagens ou objetos, cujo significados posam existir fora da linguagem: perceber o que significa uma substância é, 3 BAYLEY, Barthes is Back. Disponível em <http://www.jorwiki.usp.br/gdmat06/index.php/Barthes.>. Acesso em 20/11/2009. 128 fatalmente, recorrer ao recorte da língua: sentido só existe quando denominado, e o mundo dos significados não é outro senão o da linguagem” (Idem, p. 12) Sendo “linguagem” aqui entendida como forma de pensar. Mas o que ele quer dizer com isso que acabou de ser revelado? Como o “pensar” pode mudar um significado? Através da significação, que nada mais é que o significado aberto, buscar novos significados, em resumo, o potencial de/para significar. Por exemplo, vamos usar os “códigos de interesse irrisório, como o código rodoviário” (Idem, p. 12), quem já parou para pensar em quantas possibilidades existem em uma simples placa de: Proibido estacionar. Vamos contar juntos e descobrir: 1ª – O sujeito avista a placa de “Proibido estacionar” e não estaciona. A placa é entendida no seu sentido denotativo (valor de dicionário) 4 4 Acreditem se quiser, foi dificílimo achar uma foto de “Proibido estacionar” sendo respeitada na Internet, esta aqui foi conseguida em um Site sobre fotografias (Meu mundo em Preto e Branco - A visão do mundo nos olhos de um fotógrafo amador). Autor da foto: Carlos Altman , titulo: Proibido. Disponível em: <http://i211.photobucket.com/albums/bb278/irmaosbrain2/proibido-estacionar-post.jpg>. Acesso em 16/06/2007. 129 2ª – O sujeito – alega – não ter visto a placa de “Proibido estacionar” 5 , pois esta se encontrava escondida por folhagens. 3ª – O sujeito avista a placa de “Proibido estacionar” e como ele não está de carro, não só pode como serve 6 . 4ª – O sujeito avista a placa, mas como esse sujeito não é um sujeito qualquer 7 ... e como já diz a música ZÉ NINGUEM do Biquini Cavadão “Eu 5 Esta foto foi tirada em 29 de abril de 2007 em Menino Deus, Porto Alegre, RS, Brasil, usando um Sony Ericsson W800i. Por analoca (Ana Paula Locatelli), título: Warning Sign. Disponível em http://www.flickr.com/photos/analoca/477244759/ Acesso em 29/06/2007. 6 Autor da foto: João Miguel, título: Proibido estacionar. Disponível em http://www.trekearth.com/gallery/South_America/Brazil/Northeast/Pernambuco/Triunfo/photo1035273.ht m. Acesso em 23/07/2009; 7 Foto esquerda de Angelo 'Thunder' e Rafaela Mattia, título Guarda municipal dando exemplo. Disponíveis em: 130 sou do povo, eu sou um Zé Ninguém Aqui embaixo, as leis são diferentes ...” 8 5ª – O sujeito avista “uma placa” 9 , mas alega só ter obrigações com as “placas oficiais” 10 6ª – O sujeito avista a placa de “Proibido estacionar” e, para não ter que obedecer ou ter problemas, retira a placa 11 : como fez esse flanelinha, nesta foto publicada pelo jornal O LIBERAL no dia 27/02/2007. “Flanelinha, < http://umdenosdois.blogspot.com/2009/11/guarda-municipal-dando-o-exemplo.html. E foto direita disponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/08/123919internauta+flagra+carro+da+secretaria+da+faze nda+estacionado+em+local+proibido+em+vitoria.html>. A Gazetaonline não divulgou o nome do internauta (autor da foto) por motivo de segurança, o título: Internauta flagra carro da secretaria da fazenda estacionado em local proibido em Vitória. Aceso em 23/08/2009; 8 Letra da música disponível em: http://letras.terra.com.br/biquini-cavadao/44611/ Acesso em 23/08/2009. 9 Placas ridículas, postado por ViOxX on 12 de agosto de 2008 Marcadores: Imagens / disponível em: http://static.blogstorage.hi-pi.com/photos/portrui.spaceblog.com.br/images/gd/1224357019/Proibido- Estacionar.jpg Acesso em 16/06/2009. E Estacionamento proibido, por : Odete Ronchi Baltazar. Disponível em: http://www.riototal.com.br/coojornal/odetebaltazar053.htm. Acesso em 16/06/2009. 10 Disponível em : http://www.placasonline.com.br/sistema/ListaProdutos.asp? Aceso em 16/06/2009 11 A foto acima foi publicada pelo jornal O LIBERAL no dia 27/02/2007. O jornal não revelou o nome do fotógrafo por motivo de segurança. Disponível em: http://euodeioflanelinhas.blogspot.com/2009/07/flanelinha-e-flagrado-retirando-placa.html. Acesso em 16/06/2009. 131 espertalhão, retira placa que proíbe estacionamento na 15 de Novembro”, simples como isso! 7ª – O sujeito avista a placa de “Proibido estacionar ônibus e caminhões”, mas como quem a colocou parece ser intransigente (talvez insensível) com quem trabalha, logo, quem trabalha parece ser intransigente (talvez impaciente) com quem a colocou: “Caminhões fazem fila em local proibido para estacionarem Valparaíso, na Serra (ES). Diariamente!” 12 12 Foto: enviado por Pedro Carlos Monteiro Filho | CIDADÃO REPÓRTER. Disponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/03/613013- motoristas+de+caminhao+nao+respeitam+placa+de+proibido+estacionar+em+valparaiso+na+serra.html. Acesso em 16/06/2009; 132 8ª – O sujeito avista a placa de “Proibido estacionar” e a “respeita”: não estaciona na rua... estaciona na calçada 13 , afinal, dá para o pedestre passar! ?!? 9ª – O sujeito avista uma placa, mas não a entende, pois ele está em Portugal 14 e não no Brasil, e lá as placas são diferentes. 10ª – O sujeito avista a placa de “Proibido estacionar”, mas como - não vai demorar - estaciona do mesmo jeito. A foto a seguir é de uma reportagem 13 Por Flávio Lapa Claro em 13/02/2009, título: Os donos do país. Disponível em: http://www.investigadordepolicia.blog.br/wp-content/uploads/2009/02/das13feb_0011.jpg . Acesso em 16/06/2009; 14 A primeira sem autor por se tratar de placa oficial. Disponível em: <http://www.4freephotos.com/pt/Estacionamento_proibido_assinar-image- f83c5738224858691f1d1f1b21e7a445.html . Acesso em 16/06/2009. - E a segunda por: João Dias, título: Padrão dos descobrimentos, disponível em: http://br.olhares.com/proibido_estacionarmorarfoto621565.html>. Acesso em 16 /06/2009. C16 - Paragem e estacionamento proibidos Indicação da proibição permanente de parar ou estacionar quaisquer veículos. Esta segunda foto possui uma brincadeira visual, mas só será entendida por quem conhecer o significado da placa em Portugal 133 do jornal O Globo “Os veículos, segundo a Guarda, ficaram no local por menos de meia hora” 15 . 11ª – O sujeito avista a placa de “Proibido Estacionar”, mas como “calcula” que haverá espaço, estaciona: “Motoristas ignoram entrada de garagem - Texto e fotos enviados ao jornal Zero Hora por Júlio Alexandre Santos, 42 anos, representante comercial e morador da 24 de Outubro” 16 Como podemos observar o que parecia, de início, à prova de dúvidas se transformou numa Babel de interpretações adaptadas, e como isso foi possível? 15 Viaturas da guarda municipal estacionadas em lugar irregular na Rua Gotemburgo, em São Cristovão, por Cleber Júnior. Disponível em< http://oglobo.globo.com/rio/mat /2009/03/10 / guarda-municipal- estaciona-carros-sobre-calcada-em-local-proibido-754778204.asp> Acesso em 16/06/2009; 16 Motoristas ignoram entrada de garagem, por Júlio Alexandre, enviados ao jornal Zero Hora. Disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1862292.xml&template =3898.dwt&edition=9866§ion=821. Acesso em 16/06/2009. 134 Enquanto a semiologia estuda a “substância visual” (BARTHES, 1993, p. 12): a arbitrariedade do signo, o símbolo como algo menos arbitrário mas ainda assim arbitrário, não é consenso universal (vide Portugal) por isso “menos”. Outros poderiam constituir o símbolo atual: a letra “E” que inicia a palavra “Estacionamento”, em negrito, tamanho de folha A4, em um círculo vermelho que a sinaliza com mais uma diagonal que a proíbe, e, ainda assim todos seriam transpassados por interpretações que fazem a regra específica para todos se transformar em casos individuais para alguns; pois “logo que passamos a conjuntos dotados de uma verdadeira profundidade sociológica, deparamos novamente com a linguagem” (Idem, 1993, p.12). Muitos podem dizer que esta pequena mitologia sobre: placas de transito aqui demonstrada; não só como possibilidades teóricas, mas por fatos que ocorrem em nossa sociedade, daí ser mitologia, e devidamente documentadas por jornais; não pertence à Semiologia, mas a outras ciências, o que será uma verdade se nos ativermos apenas a sua teoria básica, pois se a utilizarmos além disso “cujas unidades não são mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso; estes remetem a objetos ou episódios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela” (Idem, 1993, p. 12). Mesmo que escrevamos, com todas as letras: é proibido estacionar, tal escrito pode ser alterado ou até acrescido de outros, como vimos e provamos por matérias jornalísticas, que o adaptam e até mesmo o anulam, ora, se isso acontece com o próprio da língua: sua escrita, por que não aconteceria o mesmo com seus substitutos? E como combater essa liberdade em demasia que esquece que seu limite só vai até onde começa o dos outros? 135 A Semiologia é talvez, então, chamada a obsorver -se numa translinguistica,cuja matéria será ora o mito, a narrativa, o artigo de imprensa, ora os objetos de nossa civilização, tanto quanto sejam (por meios da imprensa, do prospecto, da entrevista, da conversa e talvez mesmo da linguagem interior, de ordem fantasmática). (Idem, 1993, p. 13) Não há como comemorar o sucesso ou denunciar o fracasso de um sistema de comunicação fora da própria comunicação “parece cada vez mais difícil conceber um sistema de imagens ou objetos, cujos significados possam existir fora da linguagem: perceber o que significa uma substancia é, fatalmente, recorrer ao recorte da língua” (Idem, 1993, p. 12). E baseado nesta observação, Barthes admite a possibilidade de: ... revirar um dia a proposição de Saussure: a lingüística não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é uma parte da Linguística; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso (Idem, 1993, pág. 13) Num exemplo prático, Barthes cita uma capa da revista Paris-Match, que mostra um soldado negro, envergando o uniforme francês, na posição de saudação militar, com os olhos fixos na bandeira nacional (BARTHES, 1972, p. 138). Eis agora um outro exemplo: estou no cabeleireiro, dão-me um exemplar do Paris-Match. Na capa, um jovem negro vestindo um uniforme francês faz a saudação militar, com os olhos erguidos, fixos sem dúvida numa prega da bandeira tricolor. Isto é o sentido da imagem. Paris-Match, N° 326 25 JUIN – 2 JUIL, 1955. 136 Mas, ingênuo ou não, bem vejo o que ele significa: que a França é um grande Império, que todos os seus filhos, sem distinção de cor, a servem fielmente sob a sua bandeira, e que não há melhor resposta para os detratores de um pretenso colonialismo do que a dedicação deste preto servindo os seus pretensos opressores. Eis-me pois, uma vez mais, perante um sistema semiológico ampliado: há um significante, formado já ele próprio por um sistema prévio (um soldado negro faz a saudação militar francesa); há um significado (aqui uma intencionalidade de “francidade” e de “militaridade”); há enfim uma presença do significado através do significante. (BARTHES: 1972) Mostrem este fragmento de Mitologias para alguém que fez Marketing ou até mesmo Jornalismo e ouvirão um sonoro “É claro! Nenhuma capa é gratuita ou aleatória.” E se pedirmos para eles falarem um pouco mais do trecho final “perante um sistema semiológico ampliado” (BARTHES, 1972, p. 138) eles irão ser redundantes “Tudo que não é gratuito, não é gratuito”. Por exemplo: Um creme rejuvenescedor é tudo o que você precisa vender, não é necessário vender junto (e/ou explicar) as vantagens de se tornar mais jovem. Já está incluído, isso é que é um “sistema semiológico ampliado”, na verdade sobreposto, trepado como pião no cavalo e agarrado como um carrapato... e sempre foi assim, só se vende se for assim. O segredo, dirão eles, é ser sempre sutilmente impositivo, pois na verdade você não está impondo nada é a sociedade em que você vive que impõe. Você só está oferecendo o creme “sistema-minimizado-explícito” – o et coetera (e outras coisas) “sistema-amplificado-implícito” é quem se encarrega do que fica-mal você dizer. Falta examinar um último elemento da significação: a sua motivação. Sabe-se que, na língua, o signo é arbitrário: nada obriga “naturalmente” a imagem acústica árvore a significar o conceito árvore: o signo, neste caso, é imotivado. No entanto, este arbitrário tem limites, que derivam das relações associativas da palavra: a língua pode produzir um fragmento do signo por analogia com outros signos (por exemplo diz-se aimable e não amable, por analogia com aime). (BARTHES; 1972, p.147) 137 Para falarmos deste fragmento usaremos também uma foto, na verdade um cartaz de cinema, que possui um fragmento quase imperceptível, que apesar de sua evidencia está no próprio título (INDIGÈNES). Estamos falando do filme “Dias de Glória”: Um soldado negro pega num tomate, alguém segura sua mão e diz: “O tomate não é pra você!” logo a seguir inicia-se um tumulto. O sargento não consegue resolver o problema criado por motivo racista e chama um oficial de patente maior. E antes de entrar no recinto... – Esse artilheiro morreria por nós sem pestanejar, capitão. Mas, se houver injustiça, vamos ter problemas. – Você conhece bem os indígenas. – Evite esse termo. – E muçulmanos? – Tão ruim quanto. – Como quer que os chame ? – De homens, capitão... de homens. No título temos algo que poderia soar para nós, falantes do português, como “Indigentes”, já que por analogia lexical só faltaria acrescentar o “t” para formar tal palavra “(por exemplo diz-se aimable e não amable, por analogia com aime)” (BARTHES, 11972, p. 138), sua tradução correta é: indígenas, mas como essa palavra é mais usada/entendida para designar índios, e como os estereótipos que temos não são os de soldados da Segunda Guerra Mundial (cartaz do filme) mas figuras seminuas com arcos e lanças - ficou por acréscimo de sentido a primeira tentativa de tradução e não a verdadeira, que por sinal (a verdadeira) é realmente 138 bem mais pertinente ao filme em questão, mas esta compreensão só ocorre quando abandonamos nossa humildade de só conhecer um (1) significado: o de pessoas seminuas com arco e flechas, e entramos na aventura de conhecer mais, aí o que era óbvio “relativo a ou população autóctone de um país [...]” se revela esclarecedor para o confuso: o porquê desta palavra a outras: “[...] ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador” (HOUAISS, 2009, p. 1073) ou seja, um título perfeito para um filme que mostra argelinos (colonizados) servindo aos seus colonizadores assim como o soldado negro da foto o faz. Quanto à significação mítica, não é nunca completamente arbitrária, é sempre em parte motivada, contém fatalmente uma parte de analogia. Para que a exemplaridade latina coincida com a denominação do leão, uma analogia é necessária: a concordância do atributo; para que a imperialidade francesa se apodere do negro que faz a saudação militar do negro e a saudação militar do soldado francês. A motivação é necessária à própria duplicidade do mito; o mito joga com a analogia do sentido e da forma: não existe mito sem forma motivada 7 . (Barthes, 1972, p. 147) 17 Trata-se do primeiro nível de significação, o denotativo, o óbvio, ou melhor o quase óbvio, pois como já vimos, algo simples como um “Proibido estacionar” pode e tem várias formas de significar/interpretar, ou ao menos de ser obedecida. Mas não é possível ficarmos no básico (significante mais significado igual a signo) por muito tempo. Barthes fala de “rosas” que significam “rosas”, mas ao mesmo tempo explica que não existe apenas isto, há a intenção que jamais pode ser desassociada: “Do mesmo modo que, no plano da experiência, do vivido, não posso dissociar as rosas da mensagem que transportam” (BARTHES, 1972, p. 135). As formas e cores são 17 Este fragmento é continuação do parágrafo onde encontramos a palavra fragmento e possui como Nota de rodapé o seguinte comentário: (7) Do ponto de vista ético, o que é incômodo no mito é precisamente o fato da sua forma ser motivada. Pois, se existe uma “saúde” da linguagem, é o arbitrário do signo que a fundamenta. O que é repulsivo, no mito, é o recorrer a uma falsa natureza, é o luxo das formas significativas – como esses objetos que decoram a sua utilidade com uma aparência natural. Esse desejo de oferecer à significação o peso, a caução de toda a natureza, provoca uma espécie de náusea: o mito é demasiado rico, e o que ele tem a mais é, precisamente, a sua motivação. Esta náusea é a mesma que sinto perante as artes que não decidem escolher entre physis e a anti-physis, utilizando a primeira como ideal, e a segunda como economia. Esteticamente, é uma baixeza jogar simultaneamente nos dois campos. (BARTHES, 1972, p.147 - a numeração refere-se a nota de rodapé existente no livro) 139 interpretadas como um soldado negro envergando o uniforme francês. “Mas, arriscando-me a ser ingênua”, escreve Barthes, “Vejo muito bem o que isso significa para mim: que a França é um grande império, que todos os seus filhos, sem distinção de cor, a servem fielmente sob sua bandeira e que não há melhor resposta aos detratores de um alegado colonialismo que o zelo demonstrado por esse jovem negro ao servir a seus alegados opressores” (BARTHES, 1972, p. 138). O fato de realmente haver soldados negros no exército francês dá à fotografia uma certa naturalidade ou inocência; seus defensores podem dizer que ela é simplesmente uma fotografia de um soldado negro e nada mais, isto porque não estão diante de uma fotografia de um soldado branco fazendo a saudação para a bandeira argelina. No filme apresentado por nós há uma espécie de inversão, enquanto que em Madame Baterfly (ópera de Puccini) uma mulher oriental se apaixona por um ocidental, aqui temos uma mulher francesa que se apaixona por um homem argelino, suas cartas são censuradas e suas chances encerradas, pois no filme eles não terminam juntos. A motivação é fatal. No entanto, não deixa de ser muito fragmentária. Para começar não é "natural": é a história que fornece á forma as suas analogias. Por outro lado, a analogia entre o sentido e o conceito é sempre apenas parcial: a forma renuncia a muitos análagos, conservando apenas alguns: conserva o telhado inclinado, as vigas aparentes do chalé basco, abandona a escada, a granja, a pátina etc. devemos mesmo ir mais longe: uma imagem total excluiria o mito, ou, pelo menos, obrigá-lo-ia a considerá-la apenas na sua totalidade: este último caso é o da pintura, toda ela baseada no mito do “cheio” e do “acabado” (é o caso inverso, mas simétrico do mito do absurdo, onde a forma mitifica uma “ausência”; no caso da pintura mitifica um excesso de presença). Mas em geral, o mito prefere trabalhar com imagens de pobres, incompleta, onde o sentido já diminuído, disponível para uma significação: caricaturas, pastiches, símbolos etc. Finalmente, a motivação é escolhida entre várias possibilidades: posso dar à imperialidade francesa muitos outros significantes, além da saudação militar de um negro: um general francês condecora um senegalês maneta, uma freira oferece uma tisana a um negro doente, um prof essor branco dá aula a jovens negrinhos atentos: a imprensa encarrega-se de demonstrar todos os dias que a reserva dos significantes míticos é inesgotável. (BARTHES; 1972, p.148) A “motivação” é ideológica e a ideologia é “precisamente a idéia enquanto ela domina” e no caso dos dominados temos a emprestada “do lado dos „dominados‟ [...] 140 a ideologia que eles são obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de empréstimo à classe que os domina.” (BARTHES, 2002, p. 41). Como já dissemos poderíamos dar outros significantes para “Proibido estacionar”, mas estes falhariam igualmente, pois cada um acharia neles o significado que melhor pudesse desfrutar: a motivação escolhida, pois quando uma flor desabotoa se vai ao mel por dois caminhos: um por onde a abelha voa e a formiga entre os espinhos. Qualquer matéria significante (qualquer coisa na vida social revestida de significado) pode, Segundo Barthes, se tornar um mito: basta sobrepor ao seu sistema semiológico prévio (denotativo) um segundo nível de significação (conotativo). Ou seja, o quadro que encontramos em ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA (BARTHES, 1993, pág. 96) no que se refere à conotação, é utilizado no quadro de MITO em MITOLOGIAS (BARTHES, 1972, pág.137): Língua Conotação MITO No mito, podemos encontrar o mesmo esquema tridimensional, ainda que este esteja de cabeça para baixo em MITOLOGIAS: o significante, o significado e o signo. Aliás, quem está de cabeça para baixo é o esquema em ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA já que representa a denotação e repre- senta a conotação, ficando o signo implícito (não escrito) nele e explicito (escrito) em MITO. Mas o mito não é apenas um sistema que copia a conotação: o que é signo no primeiro sistema (denotação), transforma-se em simples significante do segundo (conotação); ele torna-se ampliado visto que não estamos mais falando apenas de comunicação e sim de significação. Por tanto, mais do que falarmos aqui de: um Se So Se So 1.signifi- cante 2.signifi- cado 3. signo I. SIGNIFICANTE II. SIGNIFICADO III. SIGNO Se So Se So 141 termo final de uma primeira cadeia semiológica que irá se transformar em primeiro termo de um sistema aumentado; o estudo que realmente está por trás do mito é: o que é que está realmente sendo vendido em oposição ao que está sendo comprado. A “isca” da ideologia está funcionando ou precisa ser aprimorada? Outros significantes podem ser criados, mas nunca apenas para serem “rosas” são “rosas”, mas para serem “rosas”: a extensão do meu amor, pois “não posso confundir as rosas como significante e as rosas como signo: o significante é vazio, o signo pleno, é um sentido”. (BARTHES, 1972, p. 135) Em A BURGUESIA COMO SOCIEDADE ANÔNIMA, Barthes usa a palavra “fragmento” para revelar o que está escondido: como uma ponta de sapato que se projeta de uma cortina determinados nomes, como no caso: burguesia, parecem causar um certo incômodo, pois causam divisões, são rótulos cujo o objetivo, mais do que meramente nomear, separar. Este fenômeno de subtração da denominação é importante e é preciso examiná-lo um pouco mais detalhadamente. Politicamente, a hemorragia do nome burguês produz-se através da idéia de nação. Foi uma idéia progressiva, em tempos, que serviu para excluir a aristocracia; hoje, a burguesia dilui-se na nação, mesmo que para isso, seja necessário rejeitar os elementos que ela considera halógenos (os comunistas). Este sincretismo dirigido permite que a burguesia recolha a caução numérica dos seus aliados temporários: todas as classes intermediárias, logo “informes”. Um uso prolongado não conseguiu despolitizar profundamente a palavra “nação”: o substrato político permanece, bem próximo, prestes a manifestar-se subitamente: existem, na Câmara, partidos “nacionais”, e o sincretismo nominal ostenta assim o que pretendia esconder: uma disparidade essencial. Assim, o vocabulário político da burguesia postula já que existe um universal: nela, a política é já uma representação, um fragmento de ideologia. (BARTHES; 1972, p.159) E diluída/escondida dentro de algo universal como “nação” a burguesia usa sua voz, a propagação de suas idéias (ideologia) em um ambiente supostamente igualitário: pessoas do povo eleita pelo povo, nada mais just o e ao mesmo tempo nada mais perigoso, pois a democracia “permite que a burguesia recolha a caução 142 numérica dos seus aliados temporários” e após o referendo os aliados temporários se tornam isso mesmo: temporários. E na página seguinte continua usando a palavra “fragmento” para revelar, mas dessa vez não mais a ocultação de um nome: burguesia, no meio de um projeto unificante: nação, mas para dizer que só é possível combater, com alguma eficiência, o poder (“a idéia enquanto ela domina”) se for de dentro para fora, como um Cavalo de Tróia, como ele mesmo sugere em Aula (2002) e faz em todos os seus livros. Existem, sem dúvida, certas revoltas contra a ideologia burguesa. Constituem aquilo a que se chama, de um modo geral, a vanguarda. Mas tais revoltas são socialmente limitadas, permanecem recuperáveis. Para começar, porque provêm de um fragmento da própria burguesia, de um grupo minoritário de artistas e de intelectuais, sem outro público que a própria classe que contestam, e que dependem, ainda, do dinheiro dessa mesma classe para se poderem exprimir. E, ademais, estas revoltas inspiram-se sempre numa distinção muito nítida entre o burguês ético e o burguês político: o que a vanguarda contesta é o burguesismo da arte e da moral; é, como nos belos tempos do romantismo, o marceneiro, o filistino; mas contestação política, nenhuma. (BARTHES; 1972, p.160) Mas esta forma de combater exige um preço, ele diz, e isso também é revelado, também tem que ser pesado; aquele que veio da burguesia vive dela, deve a ela e apesar de querer/desejar um mundo melhor neste “mundo melhor” aquele que a combate raramente estará disposto a perder seu “mundo melhor” para que o mundo dos outros fique melhor. Daí o motivo de Barthes apontar para a existência de duas vanguardas: uma interessada na arte e na moral e outra em política; e, quanto aos artistas que vem e dependem da burguesia, a primeira. Para concluir este capítulo faremos, agora, um apanhado geral do que foi o “fragmento” neta obra: Mitologias (BARTHES, 1972). O livro é considerado de fragmento, pois o próprio Roland Barthes o aponta na enumeração de obras de escritura curta (fragmento) em Roland Barthes por Roland Barthes “ele não cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies...” (BARTHES, 1977, p. 101). Neste livro, Barthes, chama a mitologia de fragmento “a mitologia é apenas um 143 fragmento desta vasta ciência dos signos” (Idem, p. 133). Em nossa tese afirmamos que através de um gabarito mental o “fragmento” pode ser retirado de seu inteiro e contemplar o todo sem ele, assim como contemplar a si mesmo sem o todo e até mesmo contemplar outros fragmentos, como ele, se relacionando entre eles mesmos; neste obra o fragmento faz este movimento mental através de “relações associativas da palavra: a língua pode produzir um fragmento do signo por analogia com outros signos” (BARTHES, 1972, p. 147). O motivo que nos leva a deturpar interpretações, que deveriam ser claras, é o cerne de tudo; mas enquanto o motivo é uno (a razão do sujeito) o deturpar é fragmento (a linguagem do sujeito): “A motivação é fatal. No entanto, não deixa de ser muito fragmentária” (Idem, p. 148). E para concluir, Barthes, chama a nossa atenção para algo que já havíamos percebido e também dito na tese: um todo que é melhor visto em fragmentos “porque provêm de um fragmento da própria burguesia” (Idem, p.160) e que em fragmentos é melhor oculto um todo “Politicamente, a hemorragia do nome burguês produz-se através da idéia de nação. [...] nela, a política é já uma representação, um fragmento de ideologia” (Idem, p. 159). Se por um lado a palavra “fragmento” só aparece – escrito – neste livro com letra minúscula, por outro aparece – implícito – como letra maiúscula, pois se não posso nunca desvincular as rosas da mensagem que elas transportam, como desvincular a palavra “fragmento” de sua palavra maior “Fragmento”, sua filosofia. 144 5. DIÁRIO 5.1. Quando a Escritura Curta encontra o Diário: Roland Barthes por Roland Barthes Livro que une experiências anteriores como S/Z (1970), que trabalha com fragmentos em forma de lexias “O significante de apoio será recortado em uma sequência de curtos fragmentos contínuos, que aqui chamaremos lexias, já que são unidades de leitura” (Barthes, 1992, p. 47); Império dos Signos (original de 1970 também) que o incentiva a fazer um gabarito mental de que falamos e que de fato é a tese: a essência do fragmento “Ele apenas me fornece uma reserva de traços cuja manipulação, o jogo, inventado, me permite „afagar‟ a ideia de um sistema simbólico inédito, inteiramente desligado do nosso.” (BARTHES, 2007, p.8) e O Prazer do texto (original de 1973) “Então o velho mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não é mais uma punição, o sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel feliz.” (BARTHES, 2002, p. 8). Por tudo que foi mostrado/montado: os fragmentos de textos anteriores ao livro que estudamos agora, Barthes faz das lexias algo “inteiramente arbitrário” (Barthes, 1992, p. 47) e a partir delas produz um vazio “Império dos Signos? Sim, se entendermos que esses signos são vazios e que o ritual é sem deus” (BARTHES, 2007, p. 146). ROLAND BARTHES por Roland Barthes: livro de fragmentos onde cada lexia carrega consigo uma arbitrariedade/independência que não a obriga a completar o seu antecedente, apenas degrau físico para o sucessor. 145 A simbiose possível Em nenhum outro livro, Barthes falou tanto sobre o “fragmento” e ainda assim não é a ele que remete. Método quase suspeito (impreciso?) de conhecer o “Sujeito”, que neste caso é ele mesmo. Aqui léxico vira filosofia e filosofia recorre/deve ao léxico: Permite intimidades “No começo do ano, ele recenseava solenemente, no quadro negro, os parentes dos alunos que tinham „tombado no campo de honra‟; os tios, os primos abundavam, mas fui o único a poder anunciar um pai” (BARTHES, 1977, p. 51); Trabalha de forma alegórica, ou melhor, alegoresca: “Afinidade carnavalesca do fragmento e ao ditado: o ditado voltará aqui algumas vezes, como figura obrigatória da escritura social, farrapo da redação escolar ”. (BARTHES, 1977, p. 51); Descreve um gesto, metafórico é verdade, mas ainda assim um gesto: “O gesto do arúspice”. Em S/Z (p. 20), a lexia (o fragmento de leitura) é comparada àquele trecho de céu recortado pelo bastão do arúspice. (BARTHES, 1977, p. 54) e o que é este livro senão um diário metaforizado, fragmentos ao gabarito mental desfeito e espalhado; Repete palavras, como o hai-kai: “[...] é, sem remissão, um continuum de imagens: a película (bem denominada: é uma pele sem brecha) segue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatutária do fragmento, do hai-kai”. (BARTHES, 1977, pp. 61-62), que já haviam sido trabalhadas incansavelmente em obras passadas: “Ao mesmo tempo que é inteligível, o haicai não quer dizer nada.[...] Assim o haicai parece dar ao Ocidente direitos que sua literatura lhe recusa, e comodidades que ela 146 lhe regateia” (BARTHES, 2007, p. 91). E continuariam sendo em outras futuras como Fragmentos de um discurso amoroso (livro seguinte), no capítulo “Amor inexprimível” (BARTHES, 2000, p. 139-141) boa parte dele é dedicada ao hai-kai e seu experimento; Produz vazios “lancei a costeleta e sua gaze do alto do balcão, como se estivesse dispersando romanticamente minhas próprias cinzas, na rua Servandoni, onde algum cachorro deve ter vindo farejá-las.” (Idem, 1977, p. 68-69); Considera a amizade um campo rico a ser explorado, lugar onde o sujeito se recria (“ele encontra a prática daquele novo sujeito cuja teoria se busca hoje”) e ao tentar se encaixar (“captar-se nela”), se encontrar (“à questão da heterotopia”), cria um gabarito mental em pleno movimento e, para que não se perca, escreve: “Assim se escreve dia a dia um texto ardente, um texto mágico, que nunca terminará, imagem brilhante do Livro liberto.” e a palavra que queremos só figura neste parágrafo como nota sem importância, isto porque, o principal já foi dito: “Assim, por magia, este fragmento foi escrito por último, depois de todos os outros, como uma espécie de dedicatória (3 de setembro de 1974)”.(BARTHES, 1977, p. 71-72). Gostar de dividir Não são sinônimos, são paradigmas barthesianos, temas comuns para algo incomum: o gabarito mental desfeito com suas peças (possibilidades) expostas, uma preferência em método um... “Gosto pela divisão: as parcelas, as miniaturas, os contornos, as precisões brilhantes (tal é o efeito produzido pelo haschsich, segundo Baudelaire), a vista dos campos, as janelas, o hai -kai, o traço, a escritura, o 147 fragmento, a fotografia, o palco à italiana, em suma, o que se quer, todo o articulado do semanticista ou todo o material do fetichista.” (BARTEHS, 1977, p. 77). Maria vai com as outras Nelson Rodrigues (escritor, jornalista, dramaturgo e teatrólogo) já dizia: “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar” (ROLLEMBERG, 2000, p. 25) e pelo visto Barthes concordava: “Formações reativas: uma doxa (uma opinião corrente) é posta, insuportável; para me livrar dela, postulo um paradoxo” (BARTHES, 1977, p. 78). E apesar de dizer “A Doxa é constantemente alegada, mas não é definida: nenhum fragmento sobre a Doxa.” (BARTHES, 1977, p. 81) em O Prazer do texto (livro anterior) já falava da existência de duas “o tempo da doxa, da opinião, e o da paradoxa, da contestação.” (BARTHES, 2002, p.25). E tudo se resume a isto Finalmente chagamos onde o “fragmento” abunda para... E ainda assim, dele, nada fala. Não se bate palmas para o martelo de Michelangelo, mas o “fragmento” não é mero instrumento inanimado, ou parte material abandonada; por ele todo um espaço é preenchido e desfeito, eternamente pesquisado, pois eternamente em movimento. E quem fará tal usufruto? O “Sujeito”, elemento ativo-passivo do “fragmento”. O círculo dos fragmentos Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê? (BARTHES, 1977, p. 101) 148 E tudo começou assim Escrever por fragmentos não é escrever pouco por se conhecer pouco, muito pelo contrário, no escrever pouco reside toda uma síntese que mostra o quanto a pessoa observou, e, não raro: observação singular. É uma síntese que não peca pela pobreza de informação, é antes uma primazia da escolha da informação e o que fica registrado não deixa dúvidas: ele sabe. Seu primeiro texto ou quase (1942) é feito de fragmentos; essa escolha justificava-se então à maneira de Gide "porque a incoerência é preferível à ordem que deforma". Desde então, de fato, ele não cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de L'Empire des signes, artigos e prefácios dos Essais critiques, lexias de S/Z, parágrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du Texte. (BARTHES, 1977, p. 101) Deus reside nos detalhes Quem, em algum momento da vida, já não se deparou com a atípica situação de ser o único a ver algo que os outros não consegui am ver, um punctum pessoal, o colar da negra endomingada (BARTHES,1984, p. 86), e, a partir daí o comum para todos passa a ser o exclusivo seu. Ele já via a luta livre como uma sequência de fragmentos, uma soma de espetáculos, pois "na luta livre o que é inteligível é cada momento, e não a duração" (My, 14); ele olhava com espanto e predileção esse artifício esportivo, submetido em sua própria estrutura ao assíndeto e ao anacoluto, figuras da interrupção e do curto-circuito. (BARTHES, 1977, p. 101) O fragmento frankensteiniano Antes de ser barthesiano poderíamos arriscar dizer que ele foi frankensteiniano, pois Victor Frankenstein jamais escolheria um membro deformado 149 para compor sua criação ou os olhos de um cego; parece evidente, mas depois de pronto poucos se lembram disso: todo “o todo” é feito de certas escolhas “certas” (oposto de errado). Não somente o fragmento é cortado de seus vizinhos, mas ainda no interior do fragmento reina a parataxe. Isto se vê bem quando se faz o índice desses pedacinhos; para cada um, a reunião dos referentes é heteróclita; é como um jogo de rimas prévias: "Tomem-se as palavras fragmento, círculo. Gide, luta livre, assíndeto, pintura, dissertação, Zen, intermezzo; imagine- se um discurso que as possa ligar." Pois bem, será simplesmente este fragmento. O índice de um texto não é somente um instrumento de referência; ele próprio é um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que há de delirante (de interrompido) na razão das frases. (BARTHES, 1977, p. 101) A escolha dele pela minha Quando pomos o gabarito mental em movimento, trocamos os fragmentos do original de posição, assim como muitas vezes trocamos o próprio fragmento original por um dos nossos, na mesma posição ou em outra, uma completa mudança ás vezes, é verdade, mas ainda assim sempre com 2 (duas) coisas em comum: a obra (com seus fragmentos e espaços) e o prazer (individual com aspirações ao coletivo). Não tendo praticado, em pintura, mais do que borrões tachistas, decidi começar uma aprendizagem regular e paciente do desenho; tento copiar uma composição persa do século XVII ("Senhor caçando"); irresistivelmente, ao invés de procurar representar as proporções, a organização, a estrutura, copio encadeio ingenuamente pormenor por pormenor; de onde certas "chegadas" inesperadas: a perna do cavaleiro acaba encarapitada lá no alto do peito do cavalo, etc. Em suma, procedo por adição, não por esboço; tenho o gosto prévio (primeiro) do pormenor, do fragmento, do rush, e a inabilidade para o levar a uma "composição": não sei reproduzir "as massas". (BARTHES, 1977, p. 101 e 102) Causa e efeito Quando se quer resumir e/ou explicar o que é a relação “causa e efeito”, geralmente se usam exemplos pitorescos como: camisinha furada (causa) – mulher 150 grávida (efeito) ou sacar dinheiro (causa) – ser vítima da “saidinha de banco” (efeito) e poucos param para pensar que enquanto a causa é sempre una, o efeito é sempre plural. O efeito de ser mãe dura a vida dela (ou do filho) toda, o efeito traumático de ser assaltado dura, também, toda uma vida. Quando trocamos a palavra “causa” por “razão” ou “motivo” fica mais fácil para o aluno entender, assim como trocar a palavra “efeito” por “consequência”: qual a “razão” ou “motivo” que traz um aluno para a sala de aula? Resposta: o diploma ou passar em algum concurso. E qual o efeito ou consequência que fica após a conquista do diploma ou o fracasso em algum concurso? Resposta: a assimilação da matéria por ter estudado muito que servirá para dar aulas no exercício da profissão ou de base para um estudo mais intenso para o próximo concurso. E mais uma vez: a causa é una e o efeito é plural. Enquanto, em Barthes, escrever fragmentos é causa, o gabarito mental que ele gera é efeito, o plural. Gostando de encontrar, de escrever começos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por que ele escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos começos, tantos prazeres (mas ele não gosta dos fins: o risco de cláusula retórica é grande demais: receio de não saber resistir à última palavra, à última réplica). (BARTHES, 1977, p. 102) A gente... Existe maneira mais carinhosa de falar “Sujeito”, e se incluir neste sujeito que fala, do que usar o informalismo “a gente”? Muito poderia se escrever sobre o Zen e sua curiosa prática de abertura pela não-escolha de pensamentos, o deixar vir: catarse 1 perigosa, mas ainda assim necessária, pois como alguém pode ter liberdade 1 HOUAISS, 2009, p. 422. substantivo feminino 1 na religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertação, expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe 2 Rubrica: estética, teatro. 151 para escrever, desmontar originais, montar novos se, se encontra aprisionado na prisão mais intransponível que se tem notícia: aquela em que a chave fica do lado de dentro da cela. Barthes ao escrever “a gente” não só se inclui ou permite um informalismo comum entre amigos, como pelo fragmento mostra a outros sujeitos como se vira a chave da cela que nos mantêm presos. O Zen pertence ao budismo torin, método da abertura abrupta, separada, rompida (o kien é, pelo contrário, o método de acesso gradual). O fragmento (como o hai-kai) é torin; ele implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob a forma de pensamento- frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira então o caderninho de apontamentos não para anotar um "pensamento", mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um "verso". (BARTHES, 1977, p. 102) Respondendo com perguntas Paulo Leminski já dizia em uma entrevista que a TVE Brasil mostrava esporadicamente ao longo de sua programação; os "Clipoéticos" eram "interprogramas" de até 30 segundos de duração, inseridos nos intervalos da programação, explorando a relação entre poesia e imagem, veiculando versos de consagrados artistas nacionais e estrangeiros; dizia ele: “A poesia é uma daquelas coisas que não precisa de por quê (?) – pra que por quê?” e com o fragmento, poderíamos fazer a mesma contestação ou não? Seria ele demasiado fraco, confuso, solitário? O que importa? purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões, esp. dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico 3 Rubrica: medicina. evacuação dos intestinos 4 Rubrica: psicanálise. operação de trazer à consciência estados afetivos e lembranças recalcadas no inconsciente, liberando o paciente de sintomas e neuroses associadas a este bloqueio 5 Rubrica: psicologia. liberação de emoções ou tensões reprimidas, comparável a uma ab-reação 6 Rubrica: psicologia. efeito liberador produzido pela encenação de certas ações, esp. as que fazem apelo ao medo e à raiva 152 Como? Quando se colocam fragmentos em sequência, nenhuma organização é possível? Sim: o fragmento é como a ideia musical de um ciclo (Bonne Chanson, Dichterliebe): cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas: a obra é feita somente de páginas avulsas. O homem que melhor compreendeu e praticou a estética do fragmento (antes de Webern) foi talvez Schumann; ele chamava o fragmento de intermezzo; ele multiplicou em suas obras os intermezzi: tudo o que produzia era finalmente intercalado: mas entre que e quê? Que quer dizer uma pura sequência de interrupções? (BARTHES, 1977, p. 102) O Hai-kai musical A seguir temos o fragmento exemplificado/caracterizado na música “O fragmento é seu ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na máxima), mas de música: ao „desenvolvimento‟, opor-se-ia o „tom‟” (BARTHES,1977, pp. 102-103): o gabarito mental que defendemos, exemplificado/explicado aqui – na música, é verdade, mas não somente a ela (nela) se aplica. Barthes traz à tona novamente o nome de Webern (Anton von Webern 1883–1945) 2 só que agora como persona principal e não mero sucessor de Schumann. Webern é considerado por alguns como um haicaísta da música; ao ouvirmos duas das músicas mais representativas de seu estilo (Five Pieces for Orchestra Op.10 3 e 6 bagatelles for string quartet 4 ) entendemos o porquê de serem utilizadas como exemplo, mas ficou um lamento, pois assim como o que ocorre com o Hai -Kai poucas pessoas entendem/percebem o – elaborar – por trás da obra, em “NEN NEN NI / KÍKU NI OMOWÁN / OMOWARÊN” de Shiki, um dos discípulos de Bashô, 2 Com exceção dos seus Op. 1 e 2, todas as obras de Webern são atonais. O seu estilo muito pessoal, extraordinariamente conciso, puro e transparente, afirmou-se quase desde os primórdios. Algumas obras, como as admiráveis Cinco peças Op. 10 para orquestra, ou as Seis bagatelas para quarteto, são breves e sutis que fazem lembrar o estilo dos hai-kai japoneses. Mas uma vez ultrapassada a surpresa que pode ser provocada por uma desintegração da melodia, da harmonia e o ritmo, do timbre, levada ao limite para além do qual a música deixaria de existir, o descobre, nesta arte, um secreto lirismo extraordinariamente penetrante. Disponível em < http://www.classicos.hpg.ig.com.br/webern.htm>. Acesso em 21/07/2010. Grifo nosso. 3 Disponível no YouTube - Webern - Five Pieces for Orchestra Op.10: http://www.youtube.com/watch?v=CTn0Y016atE&feature=related. Acesso em 21/07/2010. 4 Disponível no YouTube - 6 bagatelles for string quartet: http://www.youtube.com/watch?v=t7uDPvT_vNg&feature=related. Aceso em 21/07/2010. 153 Paulo Leminski traduziu: “todo ano / pensando nos crisântemos / sendo pensado pelos mesmos”; talvez sabendo que para muitos seria de difícil compreensão resolveu fazer uma tradução mais acessível que resultou em: “nem vem que não tem / eu penso crisântemo / crisântemo em mim também.” (LEMINSKI, 1983, p. 35). Mas e quanto à obra de Webern, como explicar o que Arnold Schoenberg passou oito anos estudando: “estudo das técnicas de contraponto, do uso dos timbres, do tratamento das dissonâncias e da forma, [...] que serviriam para sistematizar as possibilidades harmônicas e melódicas de uma peça atonal: o método dodecafônico” (RODRIGUES, 2010). Resposta: Fazendo o mesmo que Paulo Leminski fez; tendo como base a substância e não a forma do fragmento: arriscamos como exemplo, contemporâneo do que Barthes tenta explicar (a importância do fragmento para a composição), a música The Sound of Silence de Simon & Garfunkel tocada atualmente (filme WATCHMEN cena do enterro do Comediante) 5 , lembrando que não somos músicos... Na melhor das hipóteses apreciadores, nela há uma bateria que entra de forma complementar ao violão, mas há momentos em que ela se “manifesta” de forma impositiva mas ainda assim sutil, e dentro da sua sutileza, somente em alguns momentos (na hora certa) se torna um fragmento do todo com o todo e ainda assim com vida própria. Nada mais natural já que inicialmente, quando esta música foi incluída no primeiro álbum da dupla (Wednesday Morning, de 1964), só havia o violão, que com mudanças de velocidade, paradas repentinas e dedilhados esporádicos – fazia as mudanças de ritmo da música, que atualmente é feito pela bateria de que falamos, simbiose perfeita, ela só substitui/completa o suficiente: boa dica para quem usa o gabarito mental. E parafraseando Barthes: quanta soberania ela (a bateria) conquistou em “não ir longe”. Quem fizer a comparação auditiva dessas 5 Disponível no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=p910iXIbYmk&feature=related 154 músicas, aqui propostas por Barthes e por nós, perceberá que nosso exemplo – apesar de tão diferente do dele (forma) – bebe da mesma água (substância) ou chega ao mesmo destino ainda que por caminhos bem diferentes. O fragmento é seu ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na Máxima), mas de música: ao “desenvolvimento”, opor-se-ia o “tom”, algo de articulado e de cantado, uma dicção: ali devia reinar o timbre. Peças breves de Webern: nenhuma cadência: que soberania ele põe em não ir longe! (BARTHES, 1977, p. 102 - 103) A permissão de ser metafórico No fragmento seguinte encontramos, não a ilusão, mas a permissão de ser metafórico, de ser você mesmo, mas escrito de outra maneira, visto de outra forma; não se trata de ser sistemático, mas de ser elitista consigo mesmo pela escolha de palavras, prova são os exemplos: não sinônimos pela descrição denotativa, mas símiles pela ideia que representam. O imaginário é a permissão de sermos nós mesmos pelo álibi que a fantasia permite ter. O fragmento como ilusão Tenho a ilusão de acreditar que, ao quebrar meu discurso, cesso de discorrer imaginariamente sobre mim mesmo, atenuo o risco de transcendência: mas como o fragmento (o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico, e como a retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar-me, não faço mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário. (BARTHES, 1977, p. 103) Escrever redobrando sua própria história E eis que mais uma vez aparece o nome de Gide (André Paul Guillaume Gide, 1869-1951), e por quê? Talvez por ter sido um escritor cujo primeiro trabalho Les Cahiers d'André Walter (Os cadernos de André Walter) foi feito de fragmentos de 155 seu diário; trata do que poderíamos chamar de uma metalinguagem da metalinguagem, sendo esta palavra entendida aqui no sentido de empréstimo do que realmente representa: “linguagem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial” (HOUAISS, 2009, p. 1282), isto porque em sua obra, diferente do que acontece em Machado de Assis - neste último a própria narrativa trata de se autoexplicar: o personagem-narrador da obra (Dom Casmurro) fala sobre a obra (a obra fala da obra), em Gide seu diário (Língua-Objeto) transforma-se em obra (Metalíngua) tradutora de si mesmo. E nesta obra pratica uma metalinguagem (a obra dentro da obra), numa espécie de encaixe: Gide fala de si, através de um personagem que também usa um personagem para falar de si: nela estamos diante de um escritor (Gide) que cria um personagem-escritor (André Walter) que cria um personagem-escritor (Allain), afastando-se assim de si mesmo através da impessoalidade que um personagem permite: seu álibi, e no caso dele em dois níveis (dois personagens: o primeiro gerando um segundo), quanto mais se afasta mais pode ser livre (usufruto de um álibi reforçado em dois níveis), mas tamanha liberdade tem um preço e seus personagens começam a ficar loucos um após o outro; talvez essa liberdade excessiva, liberada no papel, tenha funcionado como válvula de escape (catarse), Gide sempre afirmou que escrevia por necessidade e que teria se suicidado se não tivesse podido escrever 6 .Usamos os Sistemas Modelizantes Primário e Secundário: Língua-Objeto e Metalíngua do livro Fundamentos de linguística contemporânea de Edward Lopes 7 mais o significado de “metalinguagem” do dicionário Houaiss para frisar bem as diferenças que existem entre essas 6 DELAY, J. La jeunesse d’André Gide. Paris,Gallimard, 1992, vol. I, pág. 575. 7 “Se alguém realiza um filme baseado num romance, pratica uma operação de transcodificação na qual o romance é a língua-objeto traduzida, e o filme é a metalíngua tradutora. Essa primeira transcodificação pode ser seguida por outras; se eu vi o filme do exemplo acima, posso, digamos, contá-lo com minhas próprias palavras, a um amigo que não o tenha visto. Nesse caso, o filme, que era a metalíngua tradutora do romance, passa a ser língua-objeto para a nova metalíngua que é a minha narração do filme (segunda transcodificação)” (LOPES, 2003, págs. 18 e 19). 156 terminologias. Poder-se-ia até dizer que o que ocorre de fato são sucessivas alterações entre língua-objeto e metalíngua (diário, Gide, André Walter, Allain), sim, mas que nome poderíamos dar para essas sucessivas alterações? Quanto a nós, ficamos satisfeitos em chamar de metalinguagem, ainda, como já dissemos no início desta análise, que de empréstimo de sua significação, digamos , clássica. É muito natural que um escritor se esconda por trás de um personagem (primeira metalinguagem: personagem que fala de si em sintonia com autor que fala de si) e através dele “exorcize” certas inquietações; quem poderá negar que o próprio Machado de Assis já fez desabafos usando, por exemplo, um apólogo: A agulha e a linha “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!” (MOISÉS, 1995, p. 285), mas em Gide isso foi muito além, sua genialidade reconhecida por Barthes. Do fragmento ao diário Sob o álibi da dissertação destruída, chega-se à prática regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o “diário”. Assim sendo, o objetivo disso tudo não é se dar o direito de escrever um "diário"? Não tenho fundamentos para considerar tudo o que escrevi como um esforço clandestino e obstinado para fazer reaparecer um dia, livremente, o tema do "diário" de Gide? No horizonte terminal, talvez esteja simplesmente o texto inicial (seu primeiro texto teve por objeto o Diário de Gide). (BARTHES, 1977, p. 103) A catarse como rubrica médica: evacuação dos intestinos Em O rumor da língua (1987), Barthes comenta o que percebeu em suas tentativas de escrever um diário: num primeiro momento a escrita é fácil, talvez tão fácil como ir ao banheiro, não se trata aqui de catarse na rubrica psicológica, mas da rubrica médica: evacuação das fezes; num segundo momento o que parecia ser algo, de início, prazeroso, se transforma em decepção no dia seguinte (pouco tempo posterior), pois como levar a sério algo tão simples? Um Hai -Kai também é simples e 157 sua beleza não desaparece no dia seguinte, é que no caso de tais poemas o – elaborar – faz toda diferença, de outro modo não o teria comparado a Webern; num terceiro momento, valendo-se de uma certa distância temporal “vários meses, vários anos depois” (BARTHES,1987, p. 303), o escrito lhe ajuda a lembrar de situações vividas, o que lhe dá prazer, mas o que mais lhe intriga é justamente o fato das lembranças remetidas pela escrita irem além do escrito, e, justamente o que não foi escrito: o “marginal” ao que foi escrito, digamos assim, é o que mais lhe dá prazer “mas, coisa curiosa, ao relê-lo, aquilo que melhor revivia era o que não estava escrito, os interstícios da notação” (BARTHES, 1987, p. 310). O "diário" (autobiográfico) está entretanto, hoje em dia, desacreditado. Cruzamentos: no século XVI, quando se começava a escrevê-lo sem repugnância, chamavam-no um diaire: diarrhée e glaire (diarreia e ranho). (BARTHES, 1977, p. 103) Um pouco de ligação narcísica? Ainda em O rumor da língua, Barthes faz uma conclusão com ares de confissão “Em suma, neste ponto, nenhum interesse (salvo pelos problemas de formulação, isto é, de frase), mas uma espécie de ligação narcísica (suavemente narcísica: é preciso não exagerar)” (BARTHES, 1987, p. 303). E como não ser narcísico (em qualquer nível que seja) em um diário? E por que chamar de dejetos? Por só interessar a quem o escreveu? Barthes, deixe ao leitor a escolha dos adjetivos... Está bem? Produção de meus fragmentos. Contemplação de meus fragmentos (correção. polimento, etc). Contemplação de meus dejetos (narcisismo). 158 O charuto de Freud Certa vez, alguns discípulos (os mais audaciosos) perguntaram a Freud (Sigmund Freud, 1856 - 1939) sobre a possibilidade de seu charuto representar um símbolo fálico. O psicanalista, não querendo fomentar tal questão (fórum íntimo) respondeu com algo que entraria na história como uma das respostas mais sintéticas e evasivas que alguém pode fazer uso em sua própria defesa: "Às vezes um charuto é apenas um charuto" (CHICHESTER & ROBINSON, 1999, p. 32) 8 . Certas “frases” são escritas não para explicar, mas para jogar (sentido de lançar) ao leitor “uma essência reduzida do Fragmento”, para que com ele possa jogar (sentido de jogo) e não apenas ler (sentido de “preto-no-branco”). A Frase A Frase é denunciada como objeto ideológico e produzida como gozo (é uma essência reduzida do Fragmento). Pode-se, então, ou acusar o sujeito de contradição, ou induzir dessa contradição um espanto, quiçá uma volta crítica: e se houvesse, título de perversão segunda, um gozo da ideologia? (BARTHES, 1977, p. 112) Do óbvio para o mais além Agora iremos encontrar uma “dica” de como este livro foi escrito, mais do que seu processo de montagem, sua preocupação; uma espécie de fragmentos que vem de fragmentos: um índice suspeito, tentativa de classificação? Não, é mais como a gravura Puddle (Charco) 9 de M. C. Escher onde a descrição em si do que se vê não é relevante (estrada mole e lamacenta, dois tipos diferentes de marcas de pneus, dois conjuntos de pegadas indo em direções opostas, duas faixas feitas por bicicletas e um charco ao centro refletindo a floresta a sua volta), assim como a descrição do que Barthes fez neste fragmento, em si, também não o é, mas em sua simplicidade 8 Alguém certa vez perguntou a Sigmund Freud, o mascador de charutos e pai da psicanálise, se aqueles charutões eram símbolos fálicos. “Às vezes”, teria respondido Freud, “um charuto é só um charuto.” (CHICHESTER & ROBINSON, 1999, p. 32.) 9 Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Puddle_(M._C._Escher). Acesso em 29/07/2010. 159 (excessiva?) um questionamento se autorresponde: e por que o óbvio não seria um lugar tão bom como outro qualquer para o imaginário se nós estamos falando de encenação? O imaginário O esforço vital deste livro visa à encenação de um imaginário. "Encenar" quer dizer: escalonar suportes, dispersar papéis, estabelecer níveis e, no fim de contas: fazer da ribalta uma barra incerta. Importa pois que o imaginário seja tratado segundo seus graus (o imaginário é uma questão de consistência, uma questão de graus), e existem, ao longo desses fragmentos, vários graus de imaginário. A dificuldade, entretanto, reside de não se poder numerar esses graus, como os graus de bebida alcoólica ou de uma tortura.(BARTHES, 1977, p. 113) A 3ª pessoa do plural e o espelho Barthes aponta para uma antiga solução quando o autor pressentia que o “embaraço fosse sempre seguro”. Hoje em dia refugiar -se na terceira do plural: quando não se sabe ou não se quer determinar, e quanto alívio esta permissão gramatical não dá aqueles que precisam de um subterfúgio. Mas mais importante que isso é o comentário (aviso?) que Barthes faz quando o sujeito assina seu imaginário. Se esquecermos por um momento que o nosso cérebro tende sempre a nos proteger, e lembrarmos que ao entrar num mundo imaginário estaremos usando muito mais do nosso subconsciente a que o racional propriamente dito (caso contrário não seria imaginário, mas sim cálculo), esta informação aqui postada por nós já será o suficiente para dar crédito à preocupação de Barthes quanto a um “sujeito, desdobrado (ou imaginando-se tal)” em fazer seu, digamos, inventário alternativo. 160 Antigos eruditos acrescentavam por vezes, sabiamente, após uma proposição, o corretivo "incertum". Se o imaginário constituísse um trecho bem delimitado, cujo embaraço fosse sempre seguro, bastaria anunciar cada vez esse trecho por algum operador metalinguístico, para se eximir de o haver escrito. Foi o que se pôde fazer aqui para alguns fragmentos (aspas, parênteses, ditado, cena, redente, et c.): o sujeito, desdobrado (ou imaginando-se tal), consegue por vezes assinar seu imaginário. Mas esta não é uma prática segura; primeiramente, porque há um imaginário da lucidez e porque, separando os níveis do que digo, o que faço não é, apesar de tudo, mais do que remeter a imagem para mais longe, produzir uma segunda careta; em seguida, e sobretudo, porque, frequentemente, o imaginário vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre um pretérito perfeito, um pronome, uma lembrança, em suma, tudo o que pode ser reunido sob a própria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu. (BARTHES, 1977, p. 114) Descrições incertas, mas necessárias Certa vez, um professor de Psicologia I da Faculdade de Educação /UFRJ nos ensinou algo muito interessante a respeito dos sonhos, dizia ele: sempre que se tem um sonho daqueles bem malucos (com muitas coisas estranhas acontecendo ao mesmo tempo), para se ter uma pista do que o nosso subconsciente está permitindo vir à tona, basta descrevê-lo com palavras e aquela palavra que mais se repetir será a que - de fato - deve ser estudada, por exemplo: em uma descrição fala-se de um vaso “torto”, um pouco mais “torto” para cima do que “torto” para baixo; era só um pouco “torto” mas ainda assim “torto”. Mas isso é muito mais eficiente quando é outra pessoa que faz a contagem das palavras possivelmente relevantes. O revelar de um sonho é prova de confiança com o outro e simultaneamente um pedido de ajuda (cumplicidade?). Impossível falar de um sonho para alguém sem terminar com um: o que você acha? O sonho seria pois: nem um texto de variedade, nem um texto de lucidez, mas um texto de aspas incertas, de parênteses flutuantes (nunca fechar parênteses é exatamente: derivar). Isso depende também do leitor, que produz o escalonamento das leituras. (Em seu grau, o Imaginário se experimenta assim: tudo o que tenho vontade de escrever a meu respeito e que finalmente acho embaraçoso escrever. Ou ainda: o que só pode ser escrito com a complacência do leitor. Ora, cada leitor tem sua complacência; assim, por pouco que se possa classificar essas complacências, torna-se possível classificar os 161 próprios fragmentos: cada um recebe sua marca de imaginário daquele mesmo horizonte onde ele se acredita amado, impune, subtraído ao embaraço de ser lido por um sujeito sem complacência, ou simplesmente: que olhasse.) (BARTHES, 1977, p. 113 - 114) O labirinto de folhas Dédalo e Ícaro foram lançados ao labirinto como forma de punição, mas o que Barthes sugere agora, não é um fragmentar-se para complicar as coisas, até dá para complicar, mas não é para isso; o se dar o direito de se fragmentar é como passear por um labirinto de folhas de um jardim, você não o faz para se estressar, faz para não pensar em nada e ao não pensar – defesas elaboradas (mecanismos de defesa do ego, Freud) se desfazem, todo, um todo desnudo pelo ato de dispersar-se. Dédalo e Ícaro, guardem suas asas, pra que asas se eu posso ver claramente que o labirinto é feito de “pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (BARTHES, 1977, p. 101). E aos poucos a própria obra se responde. A pessoa dividida? Para a metafísica clássica, não havia nenhum inconveniente em “dividir” a pessoa (Racine: “Trago dois homens em mi m”); muito pelo contrário, provida de dois termos opostos, a pessoa funcionava como um bom paradigma (alto/baixo, carne/espírito, céu/terra); as partes em luta se reconciliavam na fundação de um sentido: o sentido do homem. Eis por que, quando falamos hoje de um sujeito dividido, não é de modo algum para reconhecer suas contradições simples, suas duplas postulações, etc.; é uma difração que se visa, uma fragmentação em cujo jogo não resta mais nem núcleo principal, nem estrutura de sentido: não sou contraditório, sou disperso. (BARTHES, 1977, p. 153) Apesar de numerado, sem referências diretas Quando vimos o quadro com suas “observações” devidamente enumeradas, logo pensamos estar diante de uma correlação direta com o quadro exposto, mas não, ao tentarmos fazer uma (de cima para baixo, de baixo para cima, da direita para 162 esquerda, da esquerda para direita) nos perdemos completamente. Ao que parece as “observações” falam muito e até carregam consigo relações com o conteúdo exposto no quadro, mas elas não o fazem de forma direta, Roland Barthes fala, joga, taca, quem sabe até desabafa; fragmentos organizados/contados por números e ainda assim dispersos. Quem sabe (?) o objetivo dele foi fazer uma espécie de “Numere a segunda coluna de acordo com a primeira”: quadro e textos separados numa mesma página, ligados pelo leitor. Fases Observações: 1. o intertexto não é, forçosamente, um campo de influências; é antes uma música de figuras, de metáforas, de pensamentos-palavras; é o significante como sereia; 2. moralidade deve ser entendida como o exato contrário da moral (é o pensamento do corpo em estado de linguagem); 3. primeiramente intervenções (mitológicas), depois ficções (semiológicas), em seguida estilhaços, fragmentos, frases; 4. entre os períodos, evidentemente, há encavalamentos, voltas, afinidades, sobrevivências; são em geral os artigos (de revista) que assumem esse papel conjuntivo; 5. cada fase é reativa: o autor reage quer ao discurso que o cerca, quer a seu próprio discurso, se um e outro começa a tomar demasiada consistência; 6. assim como um prego empurra o outro, segundo se diz, uma perversão expulsa uma neurose: à obsessão política e moral, sucede um pequeno delírio científico, desfeito por sua vez pelo gozo perverso (com um fundo de fetichismo); 7. o recorte de um tempo, de uma obra, em fase de evolução – embora se trate de uma operação imaginária – permite entrar no jogo da comunicação intelectual: a gente se torna inteligível. (BARTHES, 1977, p. 156) Intertexto Gênero Obras (Gide) (desejo de escrever) Sartre Lê degré zéro Marx mitologia social Escritos sobre o teatro Brecht Mythologies Saussure semiologia Eléments de sémiologie Système de la mode Sollers S/Z Julia Kristeva textualidade Sade, Fourier,Loyola Derrida Lacan L’Empire des signes (Nietzsche) moralidade Lê plaisir du Texte R.B. par lui-même 163 Com um mínimo de organização Barthes propõe no fragmento a seguir uma espécie de “organização mínima” onde tal organização não oprimiria o processo de criação, ou seja: as ideias poderiam ser desenvolvidas sem uma necessária continuação, sem que a próxima ideia tivesse que completar (como a interação entre os parágrafos de uma “dissertação”) a antecedente. A ordem “Uma ideia por fragmento, um fragmento por ideia” seria apenas organizada pela ordem alfabética (e separadas por: ponto e vírgula?). Este livro: Roland Barthes por Roland Barthes é construído/montado por pensamento semelhante, mas aqui a ordem alfabética não é usada; como alguém que dá uma dica, Barthes escreve este fragmento, talvez, pensando/lamentando: quantos entenderão que tudo aquilo que é “privado de sentido” deve ser estudado com mais “euforia” e não com mais pressa “apressasse o striptease da bailarina” (BARTHES, 2002, p. 17) justamente porque é: privado de sentido. O alfabeto Tentação do alfabeto: adotar a sequência das letras para encadear fragmentos é entregar-se ao que faz a glória da linguagem (e que provoca o desespero de Saussure): uma ordem imotivada (fora de qualquer imitação), que não é arbitrária (já que toda gente a conhece, a reconhece e se entende a seu respeito). O alfabeto é eufórico: terminadas a angústia do “plano”, a ênfase do “desenvolvimento”, as lógicas retorcidas, terminadas as dissertações! Uma ideia por fragmento, um fragmento por ideia, e para a sequência desses átomos, nada mais do que a ordem milenária e louca das letras francesas (que são elas próprias objetos insensatos – privados de sentido). Toda regra tem uma exceção Sempre que tivermos uma regra que, digamos, conspire a favor - ela não só deverá ser obedecida como continuada, mas, se porventura esta “conspiração” for rara, é de “bom tom” abrir mão dela em prol de algo mais proveitoso; não é difícil 164 imaginar Barthes pensando em livro feito totalmente de fragmentos felizes: a tabuada de nove com seu curioso resultado alcançado escrevendo os números de nove a um (a contar do 9x1= 9) e depois do um ao oito (à frente e depois de 9X2= 1 8); seguido de um método mnemônico eficiente para saber qual o certo: “Entre mim e ela / Entre eu e ela” e assim iria até que todas as boas ideias (“efeitos de sentido”) se esgotassem; seria a alegria dos alunos e o descanso dos professores, seria o exemplo que Barthes não deu. Ele não define uma palavra, ele nomeia um fragmento; ele faz exatamente o inverso do dicionário: a palavra sai do enunciado, ao invés de o enunciado derivar da palavra. Do glossário, apenas retenho o princípio mais formal: a ordem de suas unidades. Essa ordem, entretanto, pode ser maliciosa: ela produz, por vezes, efeitos de sentido; e se esses efeitos não forem desejados, é preciso romper a ordem alfabética em proveito de uma regra superior: a da ruptura (da heterologia): impedir que um sentido “pegue”. (p. 157-158) Vai dar muito certo ou muito errado Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Encourado: Vá vendo a falta de respeito, viu? João Grilo: Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de Canário Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta de respeito! Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me. Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré. (SUASSUNA, 2005, ps. 144-145). Valha-me Nosso Barthes, Pai de Textos de Prazer! O fragmento é deleite, o burro não vai entender. A tese vai sossegada, a banca aceita se quiser. Já fui aluno, fui mestre, mas hoje sou doutorando. De barthesiano, fui ariano, só me falta ser reprovando. Orientador: Vá vendo a falta de respeito, viu? Orientando: Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho que Canário Pardo nunca escreveu, se não eu vou dormir. Isso tem nada de falta de respeito! Já fui aluno, fui mestre, mas hoje sou doutorando. De barthesiano, fui ariano, só me falta ser reprovando. Valha-me. Nosso Barthes. Me critiquem ensinando. LOPES, André – O auto da Escrita Compadecida. Rio de Janeiro, 2010. 165 E isto foi o que nós entendemos por “determinados fragmentos pareçam seguir por afinidade” e “Corte! Retome a história de outra maneira” (BARTHES, 1977, p. 158). A ordem de que não me lembro mais Ele se lembra mais ou menos da ordem em que escreveu estes fragmentos; mas de onde vinha essa ordem? Segundo que classificação, que sequência? Ele não se lembra mais. A ordem alfabética apaga tudo, recalca toda origem. Talvez, em certos trechos, determinados fragmentos pareçam seguir -se por afinidade; mas o import ante é que essas pequenas redes não sejam emendadas, que elas não deslizem para uma única e grande rede que seria a estrutura do livro, seu sentido. É para deter, desviar, dividir essa inclinação do discurso para um destino do sujeito, que em determinados momentos, o alfabeto nos chama à ordem (da desordem) e nos diz: Corte! Retome a história de outra maneira (mas também. Por vezes, pela mesma razão, é preciso romper o alfabeto). (BARTHES, 1977, p. 158) Por que alguém sobe uma montanha? É interessante, quando uma criança usa a preposição “por” seguida do pronome interrogativo “que” temos uma pergunta, quando um adulto usa as mesmas ferramentas gramaticais temos um questionamento. Ao que parece, quando crescemos, o mero nome ou simples descrição dos fatos não nos satisfaz, sabê-lo é só o início (rótulo?) de um infindável questionamento; ultrapassada esta etapa (pergunta ou nome) corremos para seu aprofundamento, afinal não queremos ser enganados, nada acontece por acaso, só o malefício é gratuito, não somos mais crianças; o saber virou “arma e escudo” que usamos ao preço de perder a inocência: não posso mais urinar no jardim, pois não sou mais criança, mas se eu voltar a urinar no jardim isso me transportará, ainda que por poucos segundos, à minha infância? Somente se eu urinar como uma criança, ou seja: sem pensar em criar nomes para aquilo e/ou fazer perguntas; fazer como aquele que sobe uma montanha pelo simples fato dela estar lá. 166 “Que quer dizer isto?” Paixão constante (e ilusória) de apor a qualquer fato, mesmo o menor deles, não a pergunta da criança: por quê? Mas a pergunta do antigo grego, a questão do sentido, como se todas as coisas estremecessem de sentidos: que quer dizer isto? É preciso, a qualquer preço, transformar o fato em ideia, em descrição, em interpretação, em suma, encontrar para ele um outro nome que não o seu. Essa mania não faz acepção de futilidade: por exemplo, se constato - e apresso-me a constatá-lo – que, estando no campo, gosto de urinar no jardim e não em outra parte, quer o imediatamente saber o que isso significa. Essa fúria de tornar significantes os fatos mais simples marca socialmente o sujeito, como um vício: não se deve desengatar a cadeia dos nomes, não se deve desencadear a linguagem: o excesso de nominação é sempre ridicularizado (M. Jourdain, Bouvard e Pécuchet).(BARTHES, 1977, p. 161) Obediente ou dançante? Há no filme Beleza Americana (1999) um momento “poético” em que Ricky (Wes Bentley) 1 descreve seus sentimentos ao mostrar um vídeo que fez de um saco plástico voando ao vento: obediente como um fantoche ou dançante como uma bailarina flamenca? O quarto dele está escuro, com uma música de piano tocando bem suave ao fundo, é verdade: isso cria um “clima”; mas se nos ativermos apenas à cena do saco plástico voando, rapidamente perceberemos que não se trata de mera crítica à poluição ou uma câmera esquecida ligada em um canto qualquer; trata-se de um momento “eternizado”, e não estamos falando de uma super-cena como a épica corrida de bigas do filme Ben-Hur (1959) 2 , é quase como se fosse uma lembrança de tudo o que perdemos por olharmos e não vermos. Em Partir-se sem quebrar (psicanálise e budismo), Mark Epstein descreve os momentos que teve num inverno em Massachussetts: conforme relaxava, sua percepção a respeito das coisas que o rodeavam mudava quase que proporcionalmente. Nnum dado momento se perguntou “Como é que aconteciam essas coisas tão incríveis no exato momento em que eu me 1 Beleza Americana (1999) dirigido por: Sam Mendes. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=xu8_8TJC9E8&feature=player_embedded#!>. Acesso em 18/08/2010. 2 Bem Hur (1959) dirigido por: William Wyler. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=_3V_whThy0E&feature=related>. Acesso em 18/08/2010. 167 detinha?” e logo a seguir responde sua própria pergunta “Levou mais tempo do que estou preparado para admitir, para que eu percebesse que essas coisas sempre estavam acontecendo. Apenas eu estava enfim prestando atenção...” (EPSTEIN, 2002, pp. 165-166). Como um Hai-Kai visual essa cena vem nos lembrar que um dos maiores espetáculos da terra sempre vem nos visitar quando ainda estamos dormindo: o nascer do sol. (Aqui mesmo, exceto nas Anamnses, cujo preço é exatamente este, não se suporta nada que deixe de significar; não se ousa deixar o fato num estado de in-significância; é o movimento da fábula que tira de qualquer fragmento real uma lição, um sentido. Um livro inverso poderia ser concebido: que contasse mil “incidentes”, proibindo-se de jamais arrancar-lhes uma linha sequer de sentido; seria precisamente um livro de hai-kais.) (BARTHES, 1977, p. 161) Fora da ordem de incidência Toda palavra que aparece no dicionário tem seu sentido denotativo expresso por ordem de incidência na língua. Com Roland Barthes isso não acontece: em alguns casos, para se entender – de exatamente à aproximadamente – o que ele quis dizer deve-se ir ao dicionário, não importa se você sabe como se escreve tal palavra ou saiba seu significado, com Barthes sempre há uma espécie de, não uma supersignificação onde todos os significados da palavra são requisitados, mas dentro de todos os seus significados uma das suas incidências é sempre mais representativa que as outras e não raro a que não conhecíamos, mas ela (incidência-surpresa) está lá no dicionário à espera que alguém a leia. Por exemplo: a palavra “recesso” – a maioria das pessoas pensa logo em “recesso dos políticos”, mas vocês sabiam que este significado, que é o primeiro que vêm à mente das pessoas, é justamente o último que aparece no dicionário HOUAISS (2009), será que o dicionário falhou nesta dita “ordem de incidência”? Provavelmente o que ocorreu foi o somatório de uma língua 168 que ainda esta viva e em constante transformação (vide acordo ortográfico recente) com a esperança que um dia a palavra “recesso” não nos remeta à mente: ter problemas resolvidos – só – depois do recesso “dos funcionários públicos”. Barthes, a nosso ver (nossa pesquisa), usou a incidência de número 3 (três) das 6 (seis) que existem no dicionário: “a parte mais íntima de um ser; âmago, essência, imo - Ex.: é preciso que cada um conheça seus próprios r.” (HOUAISS, 2009) neste fragmento que se seguirá; sem ir ao dicionário poderíamos até entender que o sujeito está tirando “férias” de si mesmo, mas sendo assim o que o tirar férias de si mesmo teria a ver com “riscos”? Com a incidência que destacamos, graças à consulta do dicionário, agora, tal palavra faz muito mais sentido. E, a quem possa interessar “enfatuação” vem de “enfatuar” que significa “tornar cheio de vaidade, de presunção” (HOUAISS, 2009, p. 756). O recesso 3 Em tudo isto existem riscos de recesso: o sujeito fala de si (risco de psicologismo, risco de enfatuação), ele enuncia por fragmentos (risco de aforismo, risco de arrogância). (BARTHES, 1977, p. 162) 3 “recesso” (pág. 1622): - substantivo masculino 1 local remoto e afastado; retiro, recanto, lugarejo Ex.: espalhar a educação por todos os r. do país 2 Derivação: por extensão de sentido. local íntimo e resguardado Ex.: no r. de seu quarto, a menina sonhava 3 Derivação: sentido figurado. a parte mais íntima de um ser; âmago, essência, imo Ex.: é preciso que cada um conheça seus próprios r. 4 Rubrica: anatomia geral. pequeno sulco 5 Rubrica: astronomia. afastamento de um astro Ex.: o r. do Sol 6 Rubrica: termo jurídico. período em que estão paralisadas as atividades de um órgão público 6.1 Rubrica: termo jurídico. interrupção regulamentar dos trabalhos legislativos e judiciários 169 A eterna troca do que se desgasta Já no fim do livro, Barthes começa a chegar à mesma conclusão de quem escreve uma tese: termina-se não por achar que ela está pronta, mas por se ter certeza que não aguenta mais. Certos livros (trabalhos, obras, teses, etc.) são como o cão da raça husky siberiano: se você escovar todo dia, sai um puldo (na escova), todo dia. Enquanto houver vida construtora a matéria física será renovada; enquanto houver vida leitora a matéria abstrata será renovada. É como Ítalo Calvino disse: “4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descobert a como a primeira & 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura” (CALVINO,1994, p. 11). A prática do Fragmento (letra maiúscula, filosofia) só terá fim quando faltarem no mundo essas duas matérias. A siba e sua tinta Escrevo isto dia após dia; e vai pegando, vai pegando: a siba produz sua tinta: amarro meu imaginário (para me defender e me oferecer, ao mesmo tempo). Como saberei que o livro está acabado? Em suma, como sempre, trata -se de elaborar uma língua. Ora, em toda língua os signos voltam, e, à força de voltar, acabaram por saturar o léxico – a obra. Tendo debilitado a matéria desses fragmentos durante meses, o que me acontece, desde então, vem encaixar-se espontaneamente (sem forçar) sob as enunciações que já foram feitas: a estrutura se tece pouco a pouco, e, ao fazê-lo, ela galvaniza cada vez mais: constrói-se assim, sem nenhum plano de minha parte, um repertório finito e perpétuo, como o da língua. Em dado momento, nenhuma transformação é possível, a não ser a que aconteceu ao navio Argo: eu poderia guardar o livro durante muito tempo, mudando pouco a pouco cada fragmento. (BARTHES, 1977, p. 174) Como fazer para que uma gota d’água jamais seque No filme Samsara (2001), logo no início, é possível ler um koan 4 , que pergunta “Como fazer para que uma gota d’água jamais seque?” e o filme se 4 Koan: é uma frase oferecida a cada discípulo, de acordo com sua natureza. Essa frase é muitas vezes, muitas vezes, ilógica e até risível [...] é a própria vida com seus paradoxos e situações ilógicas. Ex.: "Batendo duas mãos 170 desenrola mostrando os questionamentos de um monge, que achava estar no direito de conhecer a dor que tanto estudava nos livros, mas nunca havia experimentado por ter sido levado ao templo ainda tão novo, fato que não era raro, na verdade, quase uma regra naquele lugar, uma solução para os aldeões que não tinham como sustentar seus filhos. No fim do filme, e somente no fim, é revelada a resposta, o que nos trouxe uma grande surpresa, pois a informação que tínhamos sobre os koans é que eles não tinham respostas, são enigmas feitos propositalmente para não terem, seu objetivo é forçar um esvaziamento da razão, uma limpeza do gabarito mental, criar um quadro todo branco para daí se permitir toda uma gama de possibilidades, que em um gabarito mental já previamente preenchido não se permitiria ter. Resultados “viciantes”, fragmentos “contaminados” não interessam aos praticantes do zen-budismo. Mas este do filme tinha e era... Pensando bem... Leiam a resposta que Roland Barthes deu para ele mesmo e descubram 5 . O texto sintomático Como devo fazer para que cada um destes fragmentos nunca seja mais do que um sintoma? – É fácil: deixe-se ir, regrida. (BARTHES, 1977, p.182) Toda grande ideia começou com um pequeno insight Um incêndio pode começar por uma simples ponta de cigarro, uma doença com um único vírus que possui um bilionésimo do nosso tamanho; são incontáveis as quantidades de coisas que começam pequenas e depois se tornam grandes. Mas só desgraças? Não, foi o que veio à mente na hora de começar a escrever, agora nos vem à lembrança que o próprio nascimento é algo que começa pequeno como uma célula, uma na outra temos um som; qual é o som de uma mão?" (tradição oral, atribuída a Hakuin Ekaku, 1686-1769 in: SUZUKI, 2003, p. 37-38). 5 Para quem não conseguiu (ou sequer tentou): a resposta está em “regrida”, quando fazemos uma gota d’água regredir a fazemos voltar para a sua origem. Resposta do Koan: Levando-a para o mar. 171 que rapidamente se divide e cresce, por tanto, o ato de nascer, o sair do útero não é o verdadeiro começo, é apenas um outro começo, um mais visível e compartilhado de forma menos egoísta: mãe e filho. Talvez as ideias sejam assim também, basta um simples Insight para nunca mais vermos o mundo do mesmo jeito, de um fragmento de observação, como um incêndio nos queima, como um vírus nos contamina, como um nascimento a ideia sai do “útero mental” e vai pro papel, agora, escrita passa a ser dividida com o mundo, não sendo mais obrigação única do criador dar desenvolvimento: pensem no quanto foi escrito quando Isaac Newton corrigiu a afirmação: a gravidade não é uma força externa que puxa para baixo, mas uma força interna que puxa para o centro, e desta simples e pequenina observação a Terra deixou de ser plana e os navios não mais cairiam no “abismo”: nome que se dava ao que se acreditava ser a orla da terra. Mais tarde Ele tem essa mania de dar “introduções”, “esboços”, “elementos”, remetendo para mais tarde o “verdadeiro” livro. Essa mania tem um nome retórico: é a prolepse (bem estudada por Genette). Eis aqui alguns desse livros anunciados: uma História da escritura ( DZ, 22), uma História da retórica (1970, II), uma História da etimologia (1973), uma nova estilística (S/Z, 107), uma Estética do Prazer textual (PlT, 104), uma nova ciência linguística (PlT, 104), uma Linguística do valor (ST, 61), um inventário dos discursos de amor (S/Z, 182), uma ficção fundada sobre a ideia de um Robinson urbano (1971, I), uma suma sobre a pequena burguesia (1972, II), um livro sobre a França, intitulado – à maneira de Michelet – Nossa França (1971, II), etc. Esses anúncios, que visam, no mais das vezes, um livro-suma, desmesurado, paródico do grande monumento de saber, só podem ser simples ato de discurso (são exatamente prolepses); eles pertencem à categoria do dilatório. Mas o dilatório, de negação do real (do realizável), não é entretanto menos vivo: esses projetos vivem, nunca são abandonados; suspensos, eles podem retomar vida a qualquer instante; ou pelo menos, como o rastro persistente de uma obsessão, eles se realizam, parcialmente, indiretamente, como gestos, através dos temas, dos fragmentos, dos artigos: a História da Escritura (postulada em 1953) engendra, vinte anos mais tarde, a ideia de um seminário sobre uma história do discurso francês; a Linguística do Valor orienta, de longe, este livro aqui. A montanha dá à luz um ratinho? É preciso revirar positivamente esse provérbio desdenhoso: a montanha não é demais para fazer um ratinho. (BARTHES, 1977, p. 183-184) 172 Mentira! Nós contamos o exato número de 50 (cinquenta) palavras “fragmento” escritas no livro em 21 páginas (51, 54, 62, 72, 77, 81, vinte e sete vezes da 101 à 103, 112, 113, duas vezes na 114, 153, 154, três vezes na 157, duas vezes na 158, 161, 162, duas vezes na 174, 182, 184) e agora o livro nos diz que a encontramos em apenas três? E dentro destas três excluíram a página 103 com sete vezes a palavra fragmento mais a descrição de “diário”, e colocaram a 158 “A ordem de que não me lembro mais” com apenas duas inscrições, quem nem sequer estão com letra maiúscula como o que ocorre na 112 “(é uma essência reduzida do Fragmento)”: única vez em que isso aconteceu no livro todo. Não deu para entender. Pontos de referencia: Fragmento: 101, 102, 158 (BARTHES, 1977, p.198) Ilustrações * 109 Roland Barthes, manuscrito de um fragmento. (BARTHES, 1977, p. 202) Sumário Fragmentos: 49 100 – O círculo dos fragmentos: 101 – O fragmento como ilusão: 103 – Do fragmento ao diário: 103 – [...] (BARTHES, 1977, p. 203) E depois de pensarmos muito, chegamos à óbvia conclusão que não poderíamos terminar este capítulo, senão do mesmo modo que Roland Barthes terminou o livro dele. Mas do nosso jeito, a gravura escolhida não é mera paráfrase icônica, ela é um feliz achado que fizemos, pois não só “conversa” com o desenho de anatomia de Barthes como deixa bem claro que o “sujeito” e não apenas o autor, mas todos nós – sujeitos – somos assim: a soma dos pedaços de nós mesmos, perdendo alguns, ganhando outros, como a nave Argus. 173 Encyclopédie de Diderot: Anatomia Puzzle (Biffy Clyro) Os troncos da veia cava com seus Album de uma banda escocesa Ramais dissecadoos, num corpo adulto. desenhada pelo designer gráfico (BARTHES, 1977, p. 202) THORGERSON, Storm (1944 - ). (O mesmo da banda Pink Floyd) 174 5.2. Império dos Signos – Diário O texto não “comenta” as imagens. As imagens não “ilustram” o texto: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, àquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagens, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos. Roland Barthes 1 E é desta maneira que Barthes começa seu livro O império dos signos (1970). Fica bem claro, num simples folhear, que este não difere muito de Roland Barthes por Roland Barthes (1975). Mas qual seria, então, a diferença bási ca entre eles, além das datas? De imediato daria para apontar a profundidade da escrita. No primeiro, (1970) seu aprofundamento é mais sutil, mais informal, como o que encontramos em um diário, mas no segundo (1975) o texto é bem mais elaborado/rebuscado tornando as explicações pouco claras e os exemplos pouco entendidos. Façamos uma rápida comparação: Ele apenas me fornece uma reserva de traços cuja manipulação, o jogo inventado, me permite “afagar” a ideia de um sistema simbólico inédito, inteiramente desligado do nosso. (BARTHES, 2007, p. 8) E como exemplo: “E é também um vazio de fala que constitui a escritura; é desse vazio que partem os traços com que o Zen, na isenção de todo sentido, escreve os jardins, os gestos, as casas, os buquês, os rostos, a violência.” (Idem, p.10) do original de 1970. Não somente o fragmento é cortado de seus vizinhos, mas ainda no interior do fragmento reina a parataxe. Isto se vê bem quando se faz o índice desses pedacinhos; para cada um, a reunião dos referentes é heteróclita; E como exemplo: “é como um jogo de rimas prévias: „Tomem-se as palavras fragmento, círculo. Gide, luta livre, assíndeto, pintura, dissertação, Zen, intermezzo; imagine-se um discurso que as possa ligar.‟" (BARTHES, 1977, p. 101) do original de 1975. 1 BARTHES, 2007, p. 5 175 Ao que parece, Barthes, estava se preparando para escrever apontamentos como: “a gente tira então o caderninho de apontamentos, não para anotar um „pensamento‟, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um „verso‟” (BARTHES, 1977, p. 102). E foi o que ele fez, mas não podemos nos esquecer: a obra seguinte não é Roland Barthes por Roland Barthes (1975), como já dissemos no capítulo anterior, é O prazer do texto (1973) e, segundo o próprio Barthes (o livro Roland Barthes por Roland Barthes, mesmo ainda sendo escrito, já figura em sua própria tabela, dentro do livro, com o título em francês: R.B. par lui-même), não haveria diferença entre estes dois: ele os coloca juntos quanto ao “Gênero”, mas entre eles e o primeiro (1970) já haveria, Barthes os separa: é que enquanto este dois (1973 e 1975) são da ordem da “moralidade” e descreve moral como “2. Moralidade deve ser entendida como o exato contrário da moral (é o pensamento do corpo em estado de linguagem)” (BARTHES, 1977, p. 156), o anterior (1970) é “textualidade” que é descrita 2 “1. O intertexto não é forçosamente, um campo de influências; é antes uma música de figuras, de metáforas, de pensamentos-palavras; é o significante como sereia” (Idem, pág. 156), e não devemos entender aqui esta última palavra (sereia) apenas como um ser mitológico feito de dois corpos (mulher e peixe), mas por não sabermos para qual lado ela pende mais, fica-se com ambos, cria-se um nome unitário, sereia, que os une (isto porque existe um nome que consegue fazer isso) e quando não existe faz-se, nem que para isso tenha-se que usar uma “palavra-valise” 2 Há uma tabela que aparece na página 156 de Roland Barthes por Roland Barthes (no Brasil:1977) seguida de Observações, ambas não se comunicam por uma ordem específica, como já foi dito anteriormente; na tabela construída por Barthes aparece a palavra “textualidade” que no dicionário Houaiss (2009) figura apenas como: qualidade, condição ou caráter do que é textual (p. 1840), e “textual” como o que é relativo a texto (p. 1840), e “texto” como: conjunto das palavras escritas, em livro, folheto, documento etc. (p. 1840) Já a palavra “intertexto” que figura não na tabela, mas nas Observações, no dicionário Houaiss tal palavra figura como: texto literário preexistente a outro texto e que é aproveitado, por absorção e transformação, na elaboração deste, ou que o influencia. (p. 1100) Logo, entendemos que “textualidade”, por se tratar de descrição geral, é mais abrangente que “intertexto”, por se tratar de descrição mais específica, mas isso não o torna menos representante para o que escrevemos acima, apenas se quis ser menos “obeso”, ser mais simplistas; pois – praticamente – toda “Observações” serviria para dizer o que é “textualidade”, assim como também serviria para todo o resto da tabela. 176 de Lewis Carrol como Vitor Hugo fez com o personagem Darmés que escrevia “aristocracia” por “haristaukrassie”: a fusão do demônio Haristum, que dá permissão às pessoas de passarem pelo fogo sem se queimarem (Exu, no Brasil) – a palavra “aristocracia” em francês é aristocratie escrita sem “h” – com a palavra francesa crassie que significa: imundice e como o próprio Hugo completa “A palavra, escrita desta maneira, é assaz terrível...” e Barthes, admirado comenta “Hugo (Pierres) apreciava vivamente a extravagância do significante” (BARTHES, 2002, p. 76). É esta chamada “extravagância do significante” que ele não cansa de esticar; mas não o faz de forma apelativa, muito pelo contrário, é pela sutileza, do menor fragmento para o todo, do melhor/menor olhar para um fragmento, que um todo se torna mais do que é, sempre visto e nunca enxergado. Em O império dos signos (1970) não achamos nada que remetesse a uma palavra-valise. Então por que se falou nisso? Porque é um bom exemplo de como se “estica” um significante, algo que Barthes fazia e procurava em outras obras, e no Japão ele encontrou muita matéria prima para trabalhar, dissecava tudo o que via, e tudo o que via era sutil, rotineiro, e mais uma vez sutil; talvez como que por excesso (sutil), desconfiou, assim como nós com a palavra “fragmento”. E como alguém que “gosto de urinar no jardim e não em outra parte, quero imediatamente saber o que isso significa. Essa fúria de tornar significantes os fatos mais simples marca socialmente o sujeito” (BARTHES, 1977, p. 161), Barthes, pelas sutilezas (ou seu excesso) procura conhecer o sujeito japonês. Os significantes escolhidos não eram inventados como o que ocorre com as palavras-valises, mas eram meticulosamente escolhidos “algo de aquático (mais do que aquoso)” (BARTHES, 2007, p. 22). E assim como nos outros livros a palavra “fragmento” aparece aqui como mera parte integrante de uma descrição mais pormenorizada: um fragmento (minúsculo) de Fragmento (Filosofia) e prova disso é 177 o fato de: a primeira vez que a palavra “fragmento” aparece, não carrega consigo nada de mais, mas ainda assim tem sua importância, pois como explicar o “tremor do significante” (BARTHES, 2007, p. 22) através de um paralelismo entre comida e língua sem a palavra que estudamos, como seria possível “„afagar‟ a ideia de um sistema simbólico inédito, inteiramente desligado do nosso.” (BARTHES, 2007, p.8) sem ser por ela (F/fragmento)? Nossa estratégia (o que chamamos de: como “entrar” no livro) será trabalhar os comentários mais produtivos de Barthes no tocante à Fi losofia do Fragmento, inicialmente, existente na periferia da palavra “fragmento” (minúscula) 3 , mas não só – ou haveria perdas. A primeira palavra aparece no capítulo intitulado A ÁGUA E O FLOCO, neste Barthes faz uma comparação da comida, inicialmente sua apresentação: “A bandeja de refeição parece um quadro dos mais delicados” (BARTHES, 2007, p. 19) com a escrita japonesa. Assim, a comida japonesa se estabelece num sistema reduzido de matéria (do claro ao divisível), num tremor do significante: são estes os caracteres elementares da escritura, estabelecida sobre uma espécie de vacilação da linguagem, e assim se apresenta a comida japonesa: uma comida escrita, tributária dos gestos de divisão e de retirada que inscrevem o alimento, não sobre a bandeja da refeição (nada a ver com a comida fotografada, as composições coloridas das revistas femininas), mas num espaço profundo que dispõe, em patamares, homem, a mesa e o universo. (BARTHES, 2007, p. 22) A palavra que estudamos só é usada por Barthes para falar de uma espécie de paradoxo existente no arroz: “ele é, ao mesmo tempo, coesivo e destacável; sua destinação substancial é o fragmento, o leve conglomerado” e termina sua observação com “aquilo que chega à mesa apertado, colado, desfaz-se ao golpe dos dois palitos sem contudo se espalhar” (BARTHES, 2007, p. 21). E tais observações são relevantes, pois vão ao encontro do que Barthes acredita ser uma forma eficiente 3 Não há palavra “fragmento” escrita com letra maiúscula no livro. 178 de se fazer escritura (oposto à escrita) 4 , pois é preciso mais que forma para se ser “Fragmento”, é preciso ser “Profundo”: “Pois a escritura é precisamente aquele ato que une, no mesmo trabalho, o que não poderia ser captado no único espaço plano da representação.” (BARTHES, 2007, p. 22) A segunda palavra é encontrada no capítulo PALITOS, e será neste também onde encontraremos a palavra “haicai” 5 , palavra que seria estudada mais vezes e que, curiosamente, não aparece em O prazer do texto (o que aparece é a palavra zen 6 duas vezes: BARTHES, 2002, p. 44 e 55; palavra de importante ligação siamesa com o Hai-Kai), mas aparece de forma razoavelmente abundante em Roland Barthes por Roland Barthes (1975): [...] é, sem remissão, um continuum de imagens: a película (bem denominada: é uma pele sem brecha) segue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatut ária do fragmento, do Hai-Kai. (Idem, 1977, p. 61- 62); O fragmento (como o Hai-Kai) é torin. (Idem, 1977, p. 102); Tomem-se as palavras fragmento, círculo. Gide, luta livre, assíndeto, pintura, dissertação, Zen, intermezzo; imagine-se um discurso que as possa ligar. (Idem, 1977, pág. 101) Lembrando que ele (Barthes) considerava o 4 Nesta Aula, ele propõe o uso indiferenciado de literatura, escritura ou texto, para designar todo discurso em que as palavras não são usadas como instrumento, mas postas em evidência (encenadas, teatralizadas) como significantes. Toda escritura é, portanto, uma escrita; mas nem toda escrita é uma escritura, no sentido barthesianos do termo. Extraído de AULA (BARTHES, 2002, p. 75). E fazendo um paralelismo com o que foi dito em Aula de Barthes: Todo ator é um sujeito, mas nem todo sujeito é um ator. 5 Em Roland Barthes por Roland Barthes a palavra Hai-Kai é escrita com “K” e em O império dos signos com “C”. A melhor explicação para as diferentes formas de grafia da palavra Hai-Kai está em Millôr Fernandez, obra de mesmo nome (Hai-Kais): HAI-KUS OU HOKKUS (pequena introdução para os não-iniciados) - O Haiku aparece em geral nos nossos dicionários com a grafia de Hai-Cai por dois motivos básicos: o primeiro, a guerra que os filólogos patrícios resolveram deflagrar à linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germânico e só andar com passo de ganso. A batalha é, evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na língua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mítica, de JK, também banido da vida política brasileira. O segundo motivo do não-uso da grafia Haiku é a homofonia da segunda sílaba com outra palavra da língua portuguesa, designativa de certa parte do corpo de múltipla importância fisiológica. Essa palavra os filólogos só usam a medo. Quando a colocam no dicionário fazem sempre questão de acrescentar (chulo). Assim, entre parênteses. (FERNANDES, 1997, p. 3-6) 6 Ele próprio está fora da troca, mergulhado no não-lucro, o mushotoku zen, sem desejo de ganhar nada, exceto a fruição perversa das palavras (mas a fruição não é nunca um ganho: nada a separa do satori, da perda). Paradoxo: esta gratuidade da escritura (que aproxima, pela fruição, a da morte) o escritor cala-a: ele se contrai, exercita os músculos, nega a deriva, recalca a fruição: são pouquíssimos os que combatem ao mesmo tempo a repressão ideológica e a repressão libidinal (aquela, naturalmente, que o intelectual faz pesar sobre si mesmo: sobre sua própria linguagem). (BARTHES, 2002, p. 44). A. está a meu ver muito perto do texto, pois este não dá os nomes – ou suspende os que existem; não diz (ou com que intenção duvidosa?) o marxismo, o brechtismo, o capitalismo, o idealismo, o Zen, etc.; o Nome não vem aos lábios; é fragmentado em práticas, em palavras que não são Nomes. (Idem, p. 55) 179 “intermezzo” como um Hai-Kai, assim como algumas peças de Webern: “O homem que melhor compreendeu e praticou a estética do fragmento (antes de Webern) foi talvez Schumann; ele chamava o fragmento de intermezzo”. (Idem, 1977, p. 102); [...] mas como o fragmento (o Hai-Kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico, e como a retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar-me, não faço mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário (Idem, 1977, p. 103); Chamo de anamnese a ação – mistura de gozo e de esforço – que leva o sujeito a reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade da lembrança: é o próprio Hai-Kai. (Idem, 1977, p. 118); Assim, as proposições do Hai-Kai são sempre “simples, correntes, aceitáveis” (EpS, 93)(Apud BARTHES, 1977, p. 126); (Assim, por vezes, nos Hai-Kais do Japão, a linha das palavras escritas se abre bruscamente e é o próprio desenho do monte Fuji ou de uma sardinha que vem gentilmente ocupar o lugar da palavra despedida.) (Idem, 1977, p. 145); Incidentes (minitextos, recados, Hai-Kais, anotações, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha), etc. (Idem, 1977, p. 160). Por pura curiosidade, gostaríamos de deixar registrado o espanto que tivemos em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), é que mesmo depois de aparecer 7 (sete) vezes (sem contar com o “intermezzo” e “Webern”, que remetem a ela) a palavra “Hai-Kai” não aparece nos “Pontos de referência”! Mas bem que merecia, não que quantidade seja qualidade, mas por esta palavra ter/ser qualidade. E para nós, como foi demonstrado/transcrito, a palavra Hai-Kai sempre foi recrutada/requisitada para melhor exemplificar a importância do “Fragmento” e apesar de muitas vezes transcrita quase que ao lado e/ou referindo-se a ele, não é o “fragmento” a que ela se refere, mas ao “Fragmento”, pois apesar da única vez em que ela apareceu com letra maiúscula (RB por RB, 112) não estar acompanhada da palavra Hai-Kai, acreditamos que é do “fragmento” (pedaço) que se chega ao “Fragmento” (Filosofia). E em O império dos signos (1970) isso acontece direto: “o futuro do pepino não é o amontoado ou o espessamento, mas a divisão, o tênue espalhamento, como é dito neste haicai: Pepino cortado/ Seu suco escorre/ 180 desenhando patas de aranha” (BARTHES, 2007, p. 24 e 25), aqui não encontramos a palavra “fragmento”, mas encontramos palavras, no mínimo, suspeitas/cúmplices: “divisão”, “espalhamento” e “cortado”. Mas e a palavra “fragmento”? Esta acompanha o título do capítulo (Palitos), e acompanha duas vezes, na primeira: “o palito – sua forma o diz suficiente – tem uma função dêitica: ele mostra a comida, designa o fragmento, faz existir pelo próprio gesto da escolha, que é o índex” (Idem, 2007, p. 25) e na segunda: “Outra função dos palitos, a de pinçar o fragmento de comida (e não mais de espetar, como fazem nossos garfos)” (Idem, 2007, p. 26). A todo o momento Barthes compara a/à maneira do ocidente a/à maneira do oriente, desde sua apresentação, que no capítulo anterior ele comparou com a própria língua japonesa e suas possíveis potencialidades de utilização na do ocidente, e no fim dele (capítulo) acabou por fazer a comparação mais esperada: a comida de lá com a de cá: “Na França, uma sopa clara é uma sopa rala” e no Japão “um elixir reconfortante pela pureza: algo de aquático (mais do que aquoso)” (Idem, 2007, p. 22). E como a apresentação do prato já havia sido feita, sobrou para este (PALITO, segunda palavra “fragmento”) o como comer, toda a delicadeza de uma comida serena sendo consumida quase que por magia, absorção de quem traga uma cigarrilha suave, sente o cheiro de um perfume, quiçá mama o leite materno; contra o método quase espartano de atacar a comida ocidental com facas de corsários e garfos de gladiadores. E, continuando com as diferenças, Barthes se mantêm no caminho da comida. No capítulo seguinte A COMIDA DESCENTRADA encontramos 2 (duas) vezes nossa palavra. A primeira fazendo uma repetição “à medida que pegamos, com a ponta de nossos palitos, alguns fragmentos desse guisado recém-cozido, outros alimentos crus vêm substituí -los.” (Idem, 2007, p. 30). A segunda fazendo uma 181 retomada do capítulo onde apareceu pela primeira vez nossa palavra, o que aborda a aparência (a bandeja): [...] sobre a mesa, sobre a bandeja, a comida nunca é mais do que uma coleção de fragmentos, dos quais nenhum é privilegiado por uma ordem [...], mas colher, com um toque ligeiro dos palitos, ora uma cor, ora outra, ao sabor de uma espécie de inspiração que aparece, em sua lentidão, ... (Idem, 2007, p. 32, grifo nosso) No capítulo O INTERSTÍCIO começa-se a falar do cozinheiro, mas rapidamente voltamos para a comida “A enguia (ou o fragmento de legume, de crustáceo)”, alimentos que se transformam por ação da fritura, que se enchem de buracos, de vazios; não é difícil imaginar, para quem conhece a obra de Barthes, como ele deve ter ficado com vontade de mergulhar um texto na fritura da enguia, só para ver se ao retirá-lo de lá ele: [...], reduz-se a um pequeno bloco de vazio, a uma coleção de buracos; o alimento chega, assim, ao sonho de um paradoxo: o de um objeto puramente intersticial, ainda mais provocante porque esse vazio é fabric ado para que nos alimente dele (às vezes, o alimento é construído em bola, como uma bolha de ar). (Idem, 2007, p. 34) Mais uma vez, para quem conhece a obra de Barthes, é quase impossível ler os comentários que ele faz sobre a comida japonesa e não compar ar de imediato com o texto do ocidente, com o que ele chamaria em Roland Barthes por Roland Barthes de “Assim se escreve dia a dia um texto ardente, um texto mágico, que nunca terminará, imagem brilhante do Livro liberto” (BARTHES, 1977, p. 71), sendo este último comparado/fruto de uma rede de amigos; Barthes está sempre comparando, sempre tentando mostrar o caminho a partir do que se conhece, ou se pensa conhecer, lugar comum (comum, mas nem tanto). Em O império dos signos os detalhes não são descritos como alguém que quer ou vai escrever um livro de receitas, não é assim que se escreve um livro de receitas, é assim que se escreve um livro de provocações; na 182 falta do cheiro os detalhes na fartura do texto; faltam ligaduras - mais uma para aprendermos. A tempura é liberada do sentido que ligamos tradicionalmente à fritura, e que é o peso. A farinha reencontra nela sua essência de flor espalhada, diluída tão levemente que forma um leite, e não uma pasta; tomado pelo óleo, esse leite dourado é tão frágil que recobre imperfeitamente o fragmento de comida, deixa aparecer um rosa de camarão, um verde de pimentão, um marrom de berinjela, retirando assim, da fritura, aquilo de que é feito nosso bolinho, e que é a ganga, o invólucro, a compacidade. (BARTHES, 2007, p. 34-35, grifo nosso) No filme A Time to Kill (1996) um advogado branco (Matthew McConaughey) aceita defender um pai negro (Samuel L. Jackson), que fez justiça com as próprias mãos quando sua filha negra de dez anos foi estuprada por dois homens brancos bêbados e racistas; nas alegações finais ele pede para os jurados (todos brancos) fecharem os olhos e imaginarem a menina sozinha, na estrada, sendo arrebatada, amarrada, surrada, violentada, e, por fim pediu para que os jurados imaginassem o seguinte: “Agora imaginem que isso aconteceu com uma criança branca!” e ganhou a causa. Tudo isto escrevemos para propor agora o seguinte: troquem a palavra “comida”, do fragmento acima, pela palavra “texto”, mas só ela; deixem todo o resto do jeito que está e depois respondam: isto é ou não é o que Barthes deseja para um bom texto? E se nos permitem a ousadia, quem sabe na primeira vez que ele escreveu este parágrafo não escreveu com a palavra texto e, depois, ao perceber o ato falho: corrigiu. E podem fazer o mesmo nest e que se segue, só que neste façam com a palavra “alimento”: O que importa é que o alimento seja constituído de pedaços, de fragmentos (estado fundamental da cozinha japonesa, na qual a cobertura – de molho, de creme, de crosta – é desconhecida), não apenas pela preparação, mas também e sobretudo por sua imersão numa substância fluida como a água, coesiva como a gordura, de onde sai um pedaço acabado, separado, nomeado e contudo crivado; mas o cerne é tão leve que se torna abstrato: o alimento não tem por invólucro senão o tempo (aliás muito tênue) que o solidificou. (BARTHES, 2009, p. 36, grifo nosso) 183 De imediato (segunda linha), temos a palavra “fragmento” descrita como fundamental (mas só na cozinha japonesa?); seguida de palavras que remetem a ela: 2 (duas) vezes a palavra “pedaço(s)” e um verbo formador de fragmento: “separado”; além da repetição (ou do reencontro) da palavra “sutileza” por meio de outras palavras e/ou expressões: “substância fluida como a água”, “leve”, “abstrato” e “(aliás muito tênue)”: todos excelentes exemplos do que Barthes chamou de “tremor do significante” (BARTHES, 2007, p. 22). Agora nossa pesquisa dará um pulo de cinco capítulos (Pachinko/ Centro da cidade, centro vazio/ Sem endereços/ A estação/ Os pacotes) e aterrissará no ca pítulo de nome AS TRÊS ESCRITAS, e ao lermos descobrimos que bem poderia se chamar OBunraku, ou será que não? O capítulo começa, não com a descrição do que é o Bunraku, mas, como se as pessoas já soubessem, ou por indução saberão quando lerem, Barthes fal a direto do boneco-sol com todos os seus ajudantes-satélites ao redor; trata-se do teatro profissional de bonecos, mas do teatro em si pouco mais de três linhas e uma foto grande de duas páginas; não fala o que é o teatro, mas para que serve o teatro, sua descrição funcional. Com o boneco e seus ajudantes que lhe dão vida: um rico texto, não economizou detalhes, mas apesar de toda sua importância/preferência ainda assim, inicialmente, muito técnico e nenhuma foto, estas são iniciativa nossa: Homem com dois assistentes 7 Desenho/esquema 8 7 BUNRAKU (cultura do Japão), autoria de Nihonline (2002). Disponível em: <http://www.nihonline.com.br/cultura/maio/bunraku_020503.asp> . Acesso em 16/04/2010; 184 Somente na página seguinte encontramos “O Bunraku pratica três escritas, que dá a ler simultaneamente em três lugares do espetáculo; a marionete, o manipulador, o vociferante: o gesto efetuado, o gesto efetivo, o vociferante” (BARTHES, 2007, p. 66) e então a técnica, aos poucos, começa a se unir a algo maior: três fragmentos realizando um Fragmento. Como a marionete já foi exaustivamente descrita, Barthes vai direto para a voz e em seguida para o gesto: são três escritas separadas que funcionam juntas, mas qual o sentido disso? Através da separação cria-se um afastamento e tal afastamento enfatiza, ao separar, ao saber que está separado, que o personagem não é o ator, o que nos resta? O gesto puro 9 : o que um boneco articulado pode fazer se não apenas mexer? Aquele que faz passar do inerte para o móvel 10 : será que ele vai fazer isso tão bem feito, que fará as pessoas não repararem nele, mas apenas no seu produzir o gesto? A voz 11 que é emprestada ao boneco móvel vem de um recitante imóvel “(em cena, os recitantes ocupam um estrado lateral)” (BARTHES, 2007, p. 67), e, por isso a soma de tudo torna o boneco mais vivo que seus ajudantes, talvez o “único” vivo a estar no palco, prova disso é “(as pessoas choram no momento do suicídio da boneca - amante)” 12 (Idem, 2007, p. 67). Tudo isto para explicar o único trecho (neste capítulo) com a palavra que estudamos: 8 BUNRAKU, autoria de JNTO (Japan National Tourism Organization). Disponível em: <http://www.jnto.go.jp/eng/indepth/history/experience/z.html>. Acesso em 16/04/2010; 9 Ningy Joruri, demostración final, autoria de Irukina: Gesto puro, apenas o movimentar-se. Disponível em : <http://www.youtube.com/watch?v=OPkeMk9mjoY&feature=related> . Acesso em 16/04/2010; 10 Autoria de ibucyan1: a atuação, não mais um boneco que apenas mexe, mas uma verdadeira representação. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=eVOo4zjlIoU&feature=related> . Acesso em 16/04/2010; 11 Japanese Melody Collection. Yanotayu Takemoto, Gidayu Tune Collection, autoria de DSchannel : a voz acompanhada de instrumentos. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=F1ZEmla6GLE . Acesso em 16/04/2010. 12 No YouTube existe um vídeo: 文楽 que não mostra o exato momento da morte da amante, mas mostra o quanto ela sofreu. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=eVOo4zjlIoU&feature=related>. Acesso em 16/04/2010. 185 Como Brecht havia visto, aqui reina a citação, a pitada de escrita, o fragmento de código, pois nenhum dos promotores da representação pode atribuir à sua própria pessoa aquilo que ele nunca escreve sozinho. (BARTHES, 2001, p. 71) E mais uma vez, mesmo sendo curto, aparecem palavras que estremecem o significante: “pitada de escrita” reforçando e/ou repetindo “fragmento de código” e “ele nunca escreve sozinho” demonstrando que de 3 (três) fragmentos (três escritas) nasce o que podemos chamar de Fragmento. Agora, pulando dois capítulos (Animado/Inanimado, Dentro/Fora, mesuras) chegamos a um que não possui a palavra “fragmento”, mas que para nós foi impossível ignorar, pois se trata de um capítulo inteiramente dedicado ao “haicai”, palavra que será tantas vezes comparada ao Fragmento em obras futuras. Só para se ter uma ideia da importância deste capítulo vejam este fragmento: O haicai apetece: quantos leitores ocidentais não sonharam em passar pela vida com um caderninho na mão, anotando aqui e ali algumas “impressões” cuja brevidade garantiria a perfeição, cuja simplicidade atestaria a profundidade. (BARTHES, 2007, p. 90) Como não perceber que este livro O império dos signos (original de 1970) foi embrionário para um dos fragmentos mais significativos/lembrados de Roland Barthes por Roland Barthes (original de 1975), para quem estuda a obra barthesiana: O Zen pertence ao budismo torin, método da abertura abrupta, separada, rompida (o kien é, pelo contrário, o método de acesso gradual). O fragmento (como o Hai-Kai) é torin; ele implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob a forma de pensamento- frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira então o caderninho de apontamentos não para anotar um "pensamento", mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um "verso". (BARTHES, 1977, p. 102) grifo nosso. E ele prossegue: “Assim o haicai parece dar ao Ocidente direitos que sua literatura lhe recusa, e comodidades que ela lhe regateia” (BARTHES, 2007, p. 91). E depois de lido isto com o texto “A morte do autor” publicado em: O Rumor da 186 Língua (BARTHES, 2004. p. 57-64.) fica a pergunta: será que estamos falando de uma literatura que castra ou uma crítica que condena ao apontar/apreciar outros? Talvez pelo público estar saturado de obras “apontadas” perdeu-se ou se desconhece outras possibilidades de liberdade. O Hai-Kai vai aparecer muitas vezes na obra de Barthes e sempre de forma elogiosa, ainda que quase invejosa. Ele ( Hai-Kai) permite que o sujeito seja “fútil, curto, comum” (BARTHES, 2007, p. 91); com apenas “(seus tr ês versos de cinco, sete e cinco sílabas)” (Idem, 2007, p. 94) pode-se “suspender a linguagem, não em provocá-la” (Idem, 2007, p. 95); seria uma maneira eficiente de “trapacear” ( Aula), como um lutador de artes marciais: seria usar a força existente na língua, seu lado fascista “pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES, 2002, p. 14) contra ela mesma, não apenas a derrotando, mas mostrando onde ela “errou”. No livro MUSASHI, de Eiji Yoshikawa, um autor japonês, há uma passagem bem interessante que mostra o diálogo de Musashi com um ancião (Nikkan, o monge superior do templo Ozoin); nesta passagem lê-se: - Louvo sua atitude. No entanto, meu jovem, você é muito forte, direi até forte demais. Tomando as palavras do ancião como um elogio, Musashi sentiu o rosto abrasar-se e disse com modéstia: - Pelo contrário, tenho certeza de que sou ainda imaturo, tendo muito a aprender. - Concordo; eis porque tenha talvez de aprender a conter um pouco a sua força. Terá de aprender a ser um pouco mais fraco. (YOSHIKAWA, 1999, p. 248) Isto porque para um praticante de artes marciais é impossível controlar a força do outro sem antes aprender a controlar a sua própria força. O Hai-Kai não é uma escrita fraca é antes uma escritura controlada, é um tirar a força, seu excesso, sua opressão. E como fazer isso? Simples, do mesmo modo que se pratica as artes 187 marciais: com pratica, e isto dito vai ao encontrado do pensamento barthesiano: primeiro por falar tanto no Hai-Kai e segundo por escrever em Aula: “Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever.” (BARTHES, 2002, p. 16-17). Sem prática jamais seremos bons, mas pratiquemos de forma correta, e comecemos por tirar a força. E no capítulo seguinte, A ISENÇÃO DO SENTIDO, vale a pena transcrever: “A brevidade do haicai não é formal; o haicai não é um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento breve que acha, de golpe, sua forma justa.” (BARTHES, 2007, p. 99), pois no próximo: O INCIDENTE, ele não só continua a falar de Hai-Kai como aparece a nossa palavra estudada, mais uma vez, ligada a ela: O número, a dispersão dos haicais, por um lado, e a brevidade, o fechamento de cada um deles, por outro lado, parecem dividir, classificar o mundo até o infinito, construir um espaço de puros fragmentos, uma poeira de acontecimentos que nada, por uma espécie de abandono da significação, pode ou deve coagular, construir, dirigir, terminar. É que o tempo do haicai é sem sujeito: a leitura não tem outro eu senão a totalidade dos haicais de que esse eu, por fração infinita nunca é mais do que o lugar de leitura. (BARTHES, 2007, p. 103) Grifo nosso. Barthes considera o Hai-Kai como uma espécie de espelho, isto porque no Ocidente “o espelho é um objeto essencialmente narcíseo: o homem só pensa no espelho para se olhar” (Idem ,2007, p. 103). Enquanto que “no Oriente, ao que parece, o espelho é vazio” (Ibidem, p. 103) e quem ratifica bem este pensamento é Paulo Leminski que no artigo Click: Zen e a arte da fotografia (Oku, viajando com Bashô , original de 1995) escreveu: O Hai-Kai valoriza o fragmentário e o aparentemente banal e o casual, sempre tentando extrair o máximo do significado do mínimo de material, em ultrassegundos de hiperinformação. [...] O mundo que o Hai-Kai procura captar é um mundo objetivo, o mundo exterior. Um mundo de coisas onde o eu está quase sempre ausente, sujeito oculto, elidido. Mas não é um mundo morto, uma mera descrição. Por trás das objetividades do Hai-Kai, sempre pulsa (sem se anunciar) um Eu maior, aquele eu que 188 deixa as coisas ser, não as sufoca com seus medos e desejos, um eu que quase se confunde com elas. (LEMINSKI, op. cit., p. 475) Grifo nosso. Como podemos perceber por estes dois fragmentos (Barthes e Leminski), Hai - Kai e sujeito jogam um com o outro, como a criança e o dedo descritos em A arte cavalheiresca do arqueiro zen (original de 1975): Como a criança que segura o dedo de alguém. Ela o ret ém com tanta firmeza que é de admirar a força contida naquele pequeno punho. Ao soltar o dedo, ela o faz sem a menor sacudidela. Porque a criança não pensa: “agora vou soltar o dedo para pegar outra coisa”. Sem refletir, sem intenção nenhuma, volta-se de um objeto para outro, e dir-se-ia que joga com eles, se não fosse igualmente correto que são os objetos que jogam com a criança. (HERRIGEL, 2003, p. 41) E este foi o melhor exemplo que encontramos para unir “um eu que quase se confunde com elas” (BARTHES, 2007) com “Um mundo de coisas onde o eu está quase sempre ausente, sujeito oculto, elidido” (LEMINSKI, apud VERÇOSA, 1996). E no capítulo seguinte, TAL, continua com este desenvolvimento e dá exemplos típicos de quem resolveu tirar “então o caderninho de apontamentos não para anotar um "pensamento", mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um "verso". (BARTHES, 1977, p. 102): o Hai-Kai. E alega não poder ser usado para “o comentário”, isto porque, e agora teremos que falar um pouco de suas regras, que ele não fala, mas teremos nós que dizer, pois o Hai-Kai, dizem os mestres, não pode ser pessoal: e isso não significa que você não possa expressar sua opinião, até pode, mas não poderá ser julgador. Para evitar escrever um texto mais longo, e talvez confuso, vamos ao exemplo: uma vez andando numa rua próxima de casa percebemos que havia grades elétricas em todos os prédios do lado direito e do lado esquerdo da rua, num rápido insight, nos veio à mente o nome “Auschwitz” (Campo de extermínio) com seus “currais-elétricos” e logo depois um Hai-Kai, quase que sem querer, nasceu: Mo-ro – em – Ausch-witz / gra-des – e-lé-tri-cas – por / to-da – Ge- na-ro (Av. Genaro de Carvalho, Recreio, RJ) e ainda por cima nasceu com a 189 contagem recomendada pelos haicaístas: 5 (cinco se separarmos Ausch-witz), 7 (sete) e 5 (cinco) sílabas. Mas isso (a contagem das sílabas) não foi o mais importante , foi o fato de não julgarmos Auschwitz, não julgarmos o que as pessoas precisam fazer para diminuírem o risco de assalto, apenas fizemos um Hai-Kai; a comparação, o julgamento, o “comentário” de que Barthes fala: “entra naquela suspensão do sentido que, para nós, é a coisa mais estranha, pois torna impossível o exercício mais corrente de nossa fala, que é o comentário.” (BARTHES, 2007, p. 110) e que nos pareceu um tanto pejorativo fica a cargo dos outros sujeitos, porque entendemos que o nosso - “sujeito” aqui - ficou de fora. E até hoje ficamos sem saber, sinceramente, se foi o Hai-Kai que jogou conosco ou fomos nós que jogamos com ele, tamanho foi o arrebatamento. Ainda neste capítulo, TAL, usa a palavra “traços” (fragmento?) e ainda a coloca assim: em itálico apesar de não ser uma palavra estrangeira como insight: “Tais traços (esta palavra convém ao haicai, espécie de leve cuti lada traçada no tempo) instalam o que pôde ser chamado de „a visão sem comentário‟” (BARTHES, 2007, p. 110). Se pairava uma dúvida sobre se “traços” poderia ter alguma semelhança com a palavra “fragmento” a palavra “cutilada” (golpe desferido com cutelo, espada ou outro instrumento cortante: HOUAISS, 2009, p. 591) não deixa mais margens para dúvidas. E mais uma vez temos que falar de outra regra do Hai-Kai, a questão do tempo, e não estamos falando de tempo no sentido de “estações do ano” da regra tradicional que diz: “uma alusão à estação do ano, presente em todo Hai -Kai.” (LEMINSKI,1983, p. 44), mas do tempo no sentido fotográfico, sentido de presente imediato: “o verdadeiro Hai-Kai é aquele que desponta de súbito, inteiro, íntegro, sólido objeto do mundo, num momento decisivo que não depende da vontade, do 190 arbítrio do poeta.” (LEMINSKI, apud VERÇOSA, 1996, p. 477). E logo a seguir Barthes “questiona” (e colocamos esta palavra entre aspas) a sua validade para a literatura: “o haicai não serve a nenhum dos usos (eles mesmos, entretanto, gratuitos) concedidos à literatura: insignificante (por uma técnica de interrupção do sentido), como poderia ele instruir, exprimir, distrair?” (BARTHES, 2007, p. 111). Mas se por um lado consideramos o dito dele sobre “o comentário” como algo pejorativo, agora, consideramos o último como provocador, pois vejam o que Roland Barthes diz sobre literatura em Crítica e verdade (original de 1966): Em literatura, como na comunicação privada, se quero ser menos “falso”, é preciso que eu seja mais “original”, ou, se se preferir, mais “indireto”. (BARTHES, 1982, p. 19) Nunca há criadores, apenas combinadores, e a literatura é semelhante à barca de Argos: a barca não comportava – em sua longa história – nenhuma criação, apenas combinações; presa a uma função renovada, sem que o conjunto deixasse de ser a barca Argos. (p. 21) O escritor concebe a literatura como fim, o mundo lha devolve como meio; e é nessa decepção infinita que o escritor reencontra o mundo, um mundo estranho, aliás, já que a literatura o representa como uma pergunta, nunca, definitivamente, como uma resposta. (p. 33) E é porque a literatura, em particular, é uma adivinhação que ela é ao mesmo tempo inteligível e interrogante, falante e silenciosa, engajada no mundo pelo caminho do sentido que ele refaz, mas liberada dos sentidos contingentes que o mundo elabora: respostas àquilo que a consome e, no entanto, sempre pergunta à natureza, resposta que interroga e pergunta que responde. (p. 55) Agora que foi lido, nos respondam: onde o Hai-Kai como ele o concebe e descreve não entra no que foi escrito acima, onde? Questionamos nós, agora. Por isso colocamos a palavra questionamento entre aspas, por isso consideramos a pergunta feita como uma provocação ou como uma “pergunta que responde” (op. cit., p. 55). E já que falamos tanto no Paulo Leminski, vamos mais uma vez, repetir o que já escrevemos no capítulo de Roland Barthes por Roland Barthes (1977): “A poesia é uma daquelas coisas que não precisa de por quê (?) – pra que por quê?”. Logo a seguir Barthes fala de monges que se sentavam “só para ficar sentado” (BARTHES, 2007, p. 111) e o escrever, qual o problema de se escrever “„ só para 191 escrever‟?” (Ibidem, 2007, p. 111), isso não seria literatura? E o escrever para não ficar louco, só é literatura porque é André Gide? O Hai-Kai pode ser “insignificante” em formato, mas é grande em conteúdo, e é por ser/ter este paradoxo (grande e pequeno), que dá à linguagem a oportunidade de retirar sua força, reduzir seu “fascismo” e ao fazer isto dá à literatura: instrução, expressão, distração. Poderíamos dizer mais sobre o “Hai-Kai barthesiano”, na verdade ficamos tentados a escrever um capítulo sobre isso, pois experiência sobre o Hai-Kai não nos falta: nossa dissertação de mestrado foi “DE RONINS E SAMURAIS, os Hai-Kais de Millôr Fernandes cotejados com os de Paulo Leminski” e como tal palavra estava sempre próxima da palavra que nos propusemos a estudar não seria uma tarefa difícil, mas seria um tanto repetitivo, justamente por já termos t rabalhado tanto com ela ao longo desta tese, ainda que de forma oportunista, esporádica, sempre a reboque do fragmento; por isso resolvemos resistir à tentação e continuamos sem fazer o tentador capítulo proposto. Em O GABINETE DO SIGNO encontraremos a última palavra de nosso estudo, e aqui ela não aparece como fragmento, mas como fragmentação, se mantém um substantivo, é verdade, mas não mais como seu anterior, este agora não nomeia o resultado da partição, divisão, mas nomeia sua ação de partir -se, dividir-se, para só depois se tornar fragmento. E quem faz essa ação? O sujeito. E por que o faz? Para ver o todo de modo diferente, um outro todo, um pequeno todo. Seu uso neste capítulo participa apenas de uma descrição, quando Barthes diz que ao viajar “(na rua, de trem ao longo dos subúrbios, das montanhas)” (BARTHES, 2007, p. 145) percebe uma organização, fruto de união e fragmentação “percebo aí a conjunção de um longínquo e de uma fragmentação, a justaposição dos campos (no sentido rural e visual) ao mesmo tempo descontínuos e abertos” (Idem, 2007, pág. 192 145) e imediatamente tenta entender, talvez até integrar -se a esta paisagem, mas não consegue, seus “vazios” dão liberdade demais, sente-se por demais livre/perdido para a interação: [...] nunca sou sitiado pelo horizonte (e seu relento de sonho): nenhuma vontade de inflar os pulmões, de estufar o peito para garantir meu eu, para me constituir em centro assimilador do infinito: levado à evidência de um limite vazio, fico ilimitado sem ideias de grandeza, sem referência metafísica. (BARTHES, 2007, p. 145-146) E por que ele quer essa interação com a natureza, representada aqui pela paisagem, não qualquer uma, mas uma com “vazios”, vazios que o incomodam? Vamos responder em duas partes: a primei ra resposta pode ser encontrada dentro no livro A origem da obra de arte de Martin Heidegger (2005), que afirma ser possível fazer uma união pelo que existe no – óbvio – da separação. No fim, criatura e criador se fundem não existindo um sem o outro, mas vistos melhor um sem o outro: A salvaguarda da obra não isola os homens nas suas vivências, mas fá -los antes entrar na presença à verdade que acontece na obra, e funda assim o ser-com-e-para-os-outros (das Für-und Miteinandersein), como exposição (Ausstehen) histórica do ser-aí a partir da sua relação com a desocultação. [...] Assim, nunca perguntamos a partir de nós, que nesse perguntar não deixamos a obra ser uma obra, antes a representamos como um objecto que deve suscitar determinados <<estados de alma>> (HEIDEGGER: 2005, P. 54-55) A segunda seria a resposta a essa espécie de inquietação com o “vazio” que o incomoda tanto, que ele encontra na paisagem, nas casas, em tudo, e ele sabe que isso significa alguma coisa, prova é que em um dado momento diz: “Império dos Signos? Sim, se entendermos que esses signos são vazios e que o ritual é sem deus” (BARTHES, 2007, p. 146). Barthes precisa de um referencial, um guia para tentar entender esse “vazio” que o cerca no Japão. Refugia-se em Mallarmè “Olhem o gabinete dos Signos (que era o habitat de Mallarmè)” (Idem, 2007, p. 146) ainda que de forma rápida, algo como quem diz: já tivemos algo parecido no Ocidente. Mas não era a mesma coisa, um começo, uma desculpa, um consolo, mas não a mesma coisa. 193 Mallarmè utilizava os símbolos para expressar a verdade através da sugestão, mais que da narração; é através desse “por que Mallarmè?” que alcançamos a pista do que Barthes procura e não encontra, ao menos não nesse livro. Já estamos no último capítulo e suas últimas palavras são: “..., não há nada para ser agarrado” (Idem, p. 148), e mais uma vez usa o itálico para uma palavra que não é estrangeira. Então o que poderíamos dar como resposta para tal inquietação? Mallarmé (?), perto, mas não o bastante, caso contrário ele mesmo, mais conhecedor de Mallarmè que nós, o teria dito. Acreditamos que um brasileiro, um curitibano, velho conhecido desta tese, tem a resposta; disse ele... Numa conversa de poetas, contou que um dia mostrou uns Hai -Kais seus a Caetano Veloso (n. 1944), e o baiano multimídia perguntou como se apreciava um Hai-Kai. Leminski, rápido no gatilho: "Haikai tem três linhas e cinco buracos. os buracos são mais importantes que as linhas". (LEMINSKI, apud VERÇOSA, 1996, p. 486) Resposta para o “vazio”? Depende, não foi Barthes quem disse: “resposta que interroga e pergunta que responde (BARTHES, 1982, p. 55), quem sabe?” 194 5.3 Incidentes – Diário (Fragmento) coletivo de fragmentos Como se escreve um capítulo sobre a palavra “fragmento” em um livro onde ela só aparece duas vezes? Mas sim a passagem à escrita de encontros – de incidentes – que poderiam ter constituído o tecido de um romance, subtraindo praticamente todos os tipos ou personalidades constituídos: restos de romance sem suportes pessoais; descontado igualmente qualquer entrosamento contínuo da narração, que lhe imporia inevitavelmente uma <<mensagem>>: o <<romanesco>>, por essência, é fragmento. (BARTHES, 1987, p. 8, grifo nosso) É preciso muita atenção agora, e só iremos explicar o porquê no próximo parágrafo, o texto é curto e bem fragmentado, contém textos de Barthes, mas recomendamos que se releia o início, pois ele é explicativo mais que enunciativo, e vamos ao segundo: uma nota de roda pé. O manuscrito está titulado, paginado e comporta mesmo, como veremos, indicações para uma última revisão: o que assinala que estava destinado à publicação – um dia mais tarde 1 1 Que se trata aqui de um exercício ou de um primeiro fragmento, é atestado por uma nota que se segue ao texto: „interrompidas aqui (22 Set. 79) as Vãs Soirées. 1) Para não perder tempo e liquidar o mais possível a preparação dos Cursos. 2) Para verificar as notas – e a partir de agora escrever tudo em fichas‟. (BARTHES, 1987, p. 8-9, o Itálico não é nosso) Agora o porquê de pedirmos atenção redobrada, reparem no detalhe: estas palavras “fragmento” não foram escritas por Barthes, mas por seu editor e amigo François Whal (“Nota do Editor”) que pediu algo sobre, não o diário como pode se imaginar, mas sobre a homossexualidade. Barthes lhe deu escritos, anotações feitas ao longo de dois anos em Marrocos e que seriam seminais para o que se revelaria, em virtude de sua morte precoce, seu projeto último: o romance, que encontramos em A preparação do romance vol. I e II (1978-1979). E como tais palavras vão ao encontro do pensamento barthesiano, consideramos válido – sim – que tais palavras (só duas e sem serem dele diretamente) apareçam nesta tese. Lembramos que em Fragmentos de 195 um discurso amoroso (2000) as quatro palavras (fragmento) que aparecem também não são dele, exceto o título, pertencem a: Nietzsche, Balzac, Rusbrock e Theodor Reik, sendo os dois últimos no roda pé, assim como um dos casos em Incidentes (1987). Quem quer – realmente – encontrar teoria sobre o Diário terá que ir a outros livros, como o próprio editor recomenda: Roland Barthes por Roland Barthes (1977) “Incidentes (minitextos, recados, Hai -Kais, anotações, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha)” (p. 160) – mais o texto “Que quer dizer isto?” (pág. 161) onde encontramos o diário comparado ao Hai-kai “Um livro inverso pode ser concebido: que contasse mil „incidentes‟, proibindo-se de jamais arrancar-lhes uma linha de sentido; seria precisamente um livro de hai-kais.” (Ibidem) – e O rumor da língua (2004) “Não, a justificativa de um Diário íntimo (como obra) não pode ser senão literária, no sentido absoluto, mesmo que nostálgico da palavra. Vejo aqui quatro motivos.” (pp. 447-448); e é deste último que vêm os fragmentos, que lemos em Incidentes (1985) e fazem o pequeno texto, recortado do editor, trocar o enunciativo pelo explicativo: 1) Poético: “oferecer um texto colorido por uma indi vidualidade de escrita, por um, <<estilo>> (dir-se-ia outrora), por um idiolecto próprio do autor” (BARTHES, 2004, pp. 447-448 ou 1987, p. 9) e tudo isto escrito, e enfileirado, pode ser encontrado em vários fragmentos, mas o que nós escolhemos para exempl o por sua irreverência (cor, estilo) foi: Três jovens Chleus 1 , na falésia, exigem uma lição de francês. <<Como é que se diz...?>> ao responder-lhes, reparo que o aparelho sexual cabe todo 1 “Chleuh”, palavra que também pode ser escrita chleu ou Schleu, tem origem no nome de uma tribo do Marrocos colonizada pelos franceses no início do século XX. Quando um francês não entende ou sente dificuldade em entender a língua de alguém costuma chamar essa pessoa de Chleuh, quase sempre pejorativa, seria como chamar alguém de gringo no Brasil. Origine des mots boche et chleuh, postado por Bastien. Disponível em: <http://www.culture-generale.fr/histoire/622-origine-des-mots-boche-et-chleuh>. Acesso em: 20/05/2010. Detalhe: no Brasil existem japoneses (Bairro da Liberdade - SP) que chamam os brasileiros de Gaijin (外人): gringo, e Roland Barthes em pleno Marrocos fazia o mesmo. 196 num paradigma oclusivo: cu/ cona/ caralho. 2 Eles próprios, imediatamente filólogos, ficam admirados. (BARTHES, 1987, p. 47) 2) Histórico: “dispersar em poeira, dia a dia, os vestígios de uma época, com todas as dimensões misturadas” (BARTHES, 2004, pp. 447-448 ou 1987, p. 9). Poderíamos usar um exemplo (corpus) do livro Incidentes (1985), mas como o próprio fragmento usado pelo editor não veio deste livro, optamos pelo do original: (Releitura: esse trecho agradava-me, sem dívida, de tal modo fazia reviver as sensações daquela noite; mas, coisa curiosa, ao relê-lo, aquilo que melhor revivia era o que não estava escrito, os interstícios da notação; por exemplo, o cinzento da rua de Rivoli enquanto esperava pelo autocarro; inútil de resto tentar descrevê-lo agora, senão vou perdê-lo de novo em proveito de outra sensação não dita, e assim sucessivamente, como se a ressurreição se fizesse sempre ao lado da coisa dita: lugar do Fantasma, da Sombra.) (BARTHES, 2004, p. 457) 3) Utópico: “constituir o autor em objeto de desejo: de um escritor que me interessa, posso gostar de conhecer a intimidade, a tradução quotidiana do seu tempo, dos seus gostos, dos seus humores, dos seus escrúpulos”; e agora nos valeremos do corpus de um livro, que o editor não recomendou, mas recomendamos nós, INÉDITOS Vol. 2 – Crítica (2004): A obra de Gide constitui sua profundidade; admitamos que seu Diário é sua superfície; ele se desenha e justapõe seus extremos; leituras, reflexões, narrativas mostram quão distantes são esses extremos, quão vasta é a superfície de Gide. (BARTHES, 2004, p. 4) 4) Amoroso: “constituir, enquanto idólatra da Frase, uma „oficina‟... não de belas frases, mas de frases certas”; talvez o melhor exemplo para entender essas palavras seja do nosso livro estudado, agora, mais especificamente o fragmento do dia 28 de Agosto de 1979. ...; chamava-se François; mas o hotel estava cheio; dei -lhe dinheiro, jurou-me que dali por uma hora estava no encontro que marcámos, e naturalmente não estava. Perguntei -me se realmente teria fito mal (toda a gente se espantaria: dar dinheiro a um gigolo, antes!) e disse para comigo que, visto que no fundo também não tinha assim tanta vontade de dormir com ele (nem com mais ninguém), o resultado era o mesmo: deitando-me 2 Este “paradigma oclusivo” existe tanto no português quanto no francês. 197 ou não, às oito da noite estaria no mesmo ponto da minha vida; e como o simples contacto dos olhos, da palavra, me erotiza, foi esse o gozo que eu paguei. (BARTHES, 1987, p. 71, texto em português de Portugal, grifo nosso) Incidentes (1985) é um livro de “pratica” como Barthes mesmo disse “Sob o álibi da dissertação destruída, chega-se à prática regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o “diário”. (BARTHES, 1977, p. 103) um fragmento que o editor poderia ter usado, mas não usou, preferiu o fragmento que compara o diário ao Hai-kai, e, como temos vários textos curtos no capítulo Em Marrocos, outrora..., fica a pergunta, são Hai-kais? Antes de respondermos é preciso lembra que para haver uma comparação basta, no mínimo, dois elementos e uma semelhança; onde ela (semelhança) não precisa ser total, apenas relevante o suficiente para a tal comparação. Os Hai-kais (ou Hokkus) eram, em sua origem, a primeira parte (três linhas: 5/ 7/ 5 sílabas) de um poema maior: o Tanka (5/ 7/ 5/ 7/ 7 sílabas) sendo este último feito por duas pessoas: a primeira faria os três primeiros (Hokku) e a outra os dois dísticos de sete (Wakiku), como a primeira parte era quem ditava o andamento do resto do poema, aos poucos ganhou autonomia. Com a autonomia popularizou-se e se dividiu em dois estilos: um voltado para a profundidade das coisas (o Zen) e o outro para a diversão se valendo até mesmo de termos vulgares. E explicado isto vamos procurar, neste livro Incidentes (1987), nos textos curtos de Barthes, semelhanças com algumas características do Hai-kai: Alguma profundidade religiosa: “Abder quer uma t oalha limpa que, por medo religioso da sujidade, é preciso pousar ali, de parte, para mais tarde se purificar do amor. (p. 22); Um momento presente que vai ao encontro da estética fotográfica: “A criança que foi descoberta no corredor dormia dentro de um cartão, e a cabeça dela emergia como se tivesse sido cortada. (p. 23); Uma contemplação digna do Zen: “<<Souk>> de Marrakech: rosas campestres no meio dos montes de menta” (p. 44); Uma anedota, que é muito engraçada justamente por ser verídica: “<<Senhor, lembra-te, nunca deves dar boleia a um Marroquino que não 198 conheças>>, diz-me este Marroquino a quem dou boleia e que não conheço.” (p. 45) O KAKEKOTOBA não é um trocadilho, é antes uma brincadeira com as palavras, como se uma palavra deixa-se em outra “seu perfume, sua saudade” (LEMINSKI, 1983, p. 39); em Barthes temos: “Azemmour: comprei uma terrina de lata; o vendedor, jovem e desdentado, propõe -me um encontro na sua <<garçonniere>>”, talvez Barthes tenha achado curioso o nome da cidade do Marrocos, pois ela tem em seu nome a palavra “amor” em francês: “amour” com a palavra “zen” em seu interior, (que foi escrita com uma bilabial por anteceder outra bilabial); logo a seguir no lugar que tem dois “m” ele encontra um rapaz que lhe faz uma proposta em um lugar que tem dois “n”: gorçonnière (apartamento destinado a encontros amorosos). E como podemos perceber é fácil entender porque Barthes diz “fragmento (como o hai-kai) é torim” e “o fragmento (o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico” e do “fragmento se desliza para o “diário” (BARTHES, 1977, pp.102-103). O diário que Barthes admira e tenta fazer é o diário que intercala fragmentos do objeto com o próprio texto fragmentário, utilizando-os não para convencer alguém, e talvez “ilustrar” não seja uma boa palavra, mas vamos usá-la. Através de um afastamento que a fragmentação permite, este sujeito fragmentado (Barthes ou qualquer outro que o use) produz fragmentos de si, os melhores? Talvez não, talvez algo que vai do tosco ao sublime, sua estrada, seu andar. Quem faz o caminho de Santiago de Compostela sabe, parafraseando Fernando Pessoa, que parafraseou Pompeu (general romano, 106-48 AC: "Navigare necesse; vivere non est necesse") “Navegar é preciso, viver não é preciso” 3 , que no caso de quem faz o caminho seria: caminhar é preciso, chegar lá (Catedral de Santiago de Compostela) não é preciso. Faz-se o caminho pelo caminho, pelas descobertas que serão feitas dentro do sujeito pelo próprio sujeito e não pela simples vi sita à catedral. No caso de Barthes poderíamos usar a outra parte do poema (Navegar é preciso): “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. E foi o que ele fez, nos dando seus fragmentos nos permite vislumbrar um Barthes que ele mesmo não desenharia: 3 PESSOA, 1974, p 15. 199 seu texto inacabado, eternamente inacabado, caso contrário “o romance termina quando finalmente a escrita se torna possível” (BARTHES, 2004, p.59). Só me restarão os <<gigolos>>. (Mas que farei então durante as minhas saídas? Noto sempre os jovens, desejando imediatamente, neles, ficar apaixonado por eles. Qual será para, mim o espetáculo do mundo?). Toquei um pouco de piano para O., a seu pedido, sabendo já que eu tinha desistido dele; ele tinha olhos muito bonitos, e rosto suave, abrandado pelos longos cabelos: um ser delicado, mas inacessível e enigmático, ao mesmo tempo meigo e distante. Depois mandei -o embora, dizendo que eu tinha de trabalhar, sabendo que estava acabado, e que além dele alguma coisa tinha acabado: o amor de um rapaz. (BARTHES, 1987, p. 98) Mas este aqui não foi seu último escrito, em Incidentes (1987) sim, mas seu verdadeiro e último escrito foi encontrado em sua máquina de escrever, após sua morte; no papel que lá jazia “Malogramos sempre ao falar do que amamos...” (BARTHES, 2005, p. XVIII), era uma página de um trabalho começado sobre Stendhal. O que mais podemos dizer se não: mais um fragmento para ser analisado, eternamente analisado; ele próprio começou e por certo não o terminaria, ao menos não como gostariam os críticos. E aqui terminamos este capítulo, também acabou o cigarro, já tomamos nosso chá de camomila e a ansiedade simplesmente não passa, vai ser mais uma noite da coruja; o sol já vai longe e fica aqui mais uma tentativa de homenagem a Barthes, um texto como ele gostaria de ler: “o texto é um tecido de citações” (BARTHES, 2004, p. 62), um texto que termina falando de cigarro, chá e outras tentativas não escritas de combater a ansiedade. Um texto cheio de fragmentos barthesianos e com um final barthesiano: com o fim do maço (incidente) 4 findou-se o capítulo. 4 Incidente - acontecimento imprevisível que modifica o desenrolar normal de uma ação (HOUAISS, 2009, p. 1063). Há outras definições/denotações no dito dicionário, mas por Barthes, só esta já basta. 200 6. CONCLUSÃO 6.1- “Quando a inquietante Filosofia...” A filosofia deve ser sempre uma atividade ―multitemporal‖ 1 , permeando as camadas do tempo em um vaivém sem limites. E deve sempre começar por três perguntas temporais: 1) ―O que é isso?‖, Barthes f ez pergunta semelhante em Roland Barthes por Roland Barthes (1977, p. 161) e que foi repetida pelo seu amigo e editor em Incidentes (1987, p. 7), representando o presente; 2) ―Qual a causa disso?‖, referindo-se a um Hai-kai em O império dos signos (2007) indagou ―Que dizer disto‖ (Op. cit., 2007, p. 110), representando o passado; 3) ―Qual a consequência disso?‖, a respeito de Proust escreveu ―ao fazer do narrador, não aquele que viu ou sentiu, nem sequer aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (o jovem do romance...)‖ (BARTHES, 2004, p. 59), representando o futuro. Muitos têm medo de fazer tais perguntas, talvez porque tenham medo de não encontrar as respostas, ou, medo do que vão encontrar. Barthes teve a coragem de fazer as perguntas e teve, a sua maneira, a coragem de respondê-las. Barthes como crítico literário, não há dúvidas, mas e como filósofo? Para responder a essa questão vamos nos valer do cotejamento do texto Definições da Filosofia de Emmanuel Carneiro Leão 2 com o capítulo Quando a paixão é filosofia... 3 do professor doutor Antônio Jardim. E gostaríamos de começar esse cotejamento frisando bem a diferença existente entre ―paixão da filosofia‖ e ―filosofia da paixão‖, proposta por este 1 Colocada entre aspas, pois o dicionário Houaiss (2009) não a reconhece. 2 Emmanuel Carneiro Leão: Tempo brasileiro, Edições 128-131, 1997, pág. 145. 3 Manuel Antônio de Castro: A construção poética do real, 7 LETRAS, 2004, pág. 91 – 112. 201 último professor, pois, numa rápida e despreocupada leitura de tais palavras, postas assim, podem até parecer um corolário 4 , como o que achamos em Por que ler os clássicos ―4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.” (CALVINO, 1993, p. 11), mas não o são. O dito professor começa seu texto com o comentário ―Se, por um lado, não pretendemos fazer uma filosofia da paixão, por outro, não pretendemos apenas expor nossa paixão pela filosofia‖ (CASTRO: 2004, p. 91). Nós, apesar de concordarmos com tal afirmação, achamos por bem explicar/narrar sim, um pouco do que entendemos sobre ―paixão pela filosofia‖ e tentar explicar/exemplificar por que a ―filosofia da paixão‖ não interessa a muitos. E inspirados pelas palavras de Emmanuel Carneiro Leão: ―Pensador é aquele que aprende com a experiência de viver.‖ (LEÃO: 1997, p. 145), começaremos de forma empírica, revelando uma experiência do passado: num grupo de estudos bíblicos, em 2004, um participante (pesquisador) pedi u a todos que abrissem a Bíblia em João 2, 15 ―E tendo feito um azorrague de cordéis, lançou todos fora do templo, também os bois e ovelhas; e espalhou o dinheiro dos cambiadores, e derribou as mesas‖. Dizia que tal passagem era sempre retratada com Jesus ―fora de controle‖ a expulsar os comerciantes do templo em todos os filmes que tinha visto sobre este, e sempre passados e reprisados na Semana Santa (Páscoa). Mas, como neto de um talabarteiro e alguém que fora criado em fazenda, sabia muito bem como se f azia um ―azorrague‖ e para que servia; tratava-se de um chicote cujo fabrico artesanal levava dias e mesmo que os apóstolos ajudassem Jesus isso levaria horas e não 4 3 Derivação: por extensão de sentido. Verdade que decorre de outra, que é sua consequência necessária ou continuação natural. 202 instantes, e nunca era usado para machucar o animal, mas apenas para assustar estalando-o no ar, pois de outro modo ele poderia ficar furioso e atacar o atacante, e homens livres numa feira não fariam o mesmo? Sua tese era que tal chicote não estava sendo produzido para bater nas pessoas, até porque isso simplesmente não condizia com a filosofia pacifista de Jesus, mas se uma pessoa quisesse que um animal, que não o conhecesse, lhe obedecesse, realmente teria que usar um azorrague. Frisava a todo o momento que Jesus não tinha pegado um, mas feito um. O que ele queria provar, e conseguiu naquele grupo, foi que Jesus não fez o que fez sob forte comoção, o tempo que leva para fazer um azorrague era a prova, e nas escrit uras não havia relato de pessoas feridas ou de alguma briga por revide às agressões de Jesus. Percebi que naquele dia todos saíram da sala como se tivessem encontrado um tesouro. A vontade de fazer novos descobrimentos, saber mais, descobrir mais, era latente em todos. Tamanha ansiedade, tamanha fome por mais informação só podia ser descrita por uma palavra: paixão, não pela pessoa da pesquisa, mas pela pesquisa em si. Ele teve um insight, algo pequeno como uma ponta de cigarro acesa, mas que incendiou a alma de todos. Tamanha experiência só pode ser explicada pela expressão ―paixão da filosofia‖. Agora, se pensarmos em ―filosofia da paixão‖ a postura e os exemplos mudam radicalmente, pois se por um lado há muita coisa escrita, por outro, olhando de perto, não há nada. Tentativas existem, os poetas e autores musicais são seus maiores representantes, mas quando a ―paixão‖ arde forte, mesmo eles ou principalmente com eles, a palavra certa não aparece e o autor é obrigado a usar o que tem, o que já foi dito, o que desde sempre foi dito. Talvez por isso Carneiro Leão tenha dito ―..., não se diz apenas a mesma palavra, se diz 203 sobretudo a mesma coisa‖ (LEÃO: 1997, p. 145). E baseando-nos nestas, escolhemos como exemplo dois fragmentos de letras de música: Love de John Lennon, Amarantine de Enya e um Hai-kai de Matsuo Bashô em Matsushima: Lennon - Love (Amor) O amor é real, realidade é amor O amor é sentir, sentindo amor Amar é querer ser amado Amar é toque, tocar é amor Amar é alcançar, alcançando amor Amar é pedir para ser amado Amor é você Você e eu Amor é saber Enya - Amarantine Você percebe quando distribui o seu amor [...] Você sabe que o amor está em tudo o que você diz; [...] Você o sente nas batidas do coração durante o dia. Você sabe que o amor é assim. Amarantine... Amarantine... Amarantine... Amor é Amor é Amor... Matsuo Basho - Matsushima (ilha, shima, dos pinheiros, matsu) é tida como um dos lugares mais bonitos do Japão. Matsushima, ah, Ah, Matsushima, ah, Ah, Matsushima. (Tradução: Leminski) (Sendo os dois primeiros disponíveis em Terra 5 e o Hai-Kai em VERÇOSA: 1996, p. 196). Ao expor o que entendemos de um e de outro - o especulado corolário se desfaz. Agora, podemos ter um mínimo de certeza que o leitor vai acompanhar nossos passos, entender porque não se trata de ―um mero predicado da outra‖ (CASTRO: 2004, p. 94). É bem verdade que a ―Paixão é um possível desencadeador da reflexão e, sendo assim, tem a ver com filosofia, uma vez que filosofia é reflexão.‖ (Idem: 2004), mas reflexão para (em direção a...) quê? Uma procura por palavras que nunca foram ditas? Como se diz: ―eu te amo‖ sem dizer exatamente essas palavras? Os motivos de um (―paixão da filosofia‖) podem, e são, diferentes do de outro (―filosofia da paixão‖), mas ambos vão ter uma semelhança: todos vão usar o ―gabarito mental‖ como lugar comum para a montagem e desmontagem de tudo o que é conhecido para o ―não conhecido‖ ou 5 Disponível em http://letras.terra.com.br/john-lennon/22574/traducao.html e http://letras.terra.com.br/enya/314890/. 204 ―não ainda descoberto‖, autêntica estrada para a evolução, ou ―uma‖ evolução, já que a ―verdade‖ é peça que se movimenta ao bel prazer de quem a ―vende‖. No texto, temos uma proposta de partição/fragmentação, sobre como compreender a filosofia. Começa com Platão: A filosofia como ideia, filosofia esta que, para nosso entendimento, não passa de uma proposta de ―gabarito mental‖ bem básico. A filosofia das ideias, portanto, é uma filosofia que paira soberana sobre qualquer contingência, afastada o suficiente de qualquer contingência, para não se deixar extinguir por qualquer percalço eventual que pudesse levar à extinção desta. (CASTRO: 2004, p. 97). Em seguida, temos A filosofia como teoria, onde num ―primeiro sentido: considerar o aspecto sob o qual uma coisa é presente; e no segundo: visão e guardiã da verdade, do processo de des-velamento.‖ E está dita a palavra rei de nosso entendimento: ―des-velamento‖. A paixão de ser mais que os outros, sair da média, deixar de ser medíocre (de qualidade média) pelo saber mais; um estudo que ―torna tudo claro, evidente e distinto‖ (Idem, p. 100), pois se diante de provas factíveis: um azorrague não pode ser feito em instantes, como continuar a pensar o mesmo que os outros? A filosofia como método, em Barthes é o Fragmento, método de montagem e desmontagem do que se tem e/ou conhece, para numa nova ordem por colocação e/ou ausência, obter um resultado jamais pronto, pois sempre sujeito a novas mudanças, sempre flexível, sempre um caminho, que é importante por ele mesmo; pois o fragmento não é ele em si importante, mas pela possibilidade de tornar tubo móvel/fragmentado, permite a possibilidade de ―peças‖ menores, ter o jogo: peças, e por tê-las a possibilidade de jogar. Assim como: 205 A filosofia não é o caminho, ela está no entre caminho. A filosofia não é e sim está a caminho e é por estar a caminho que ela pode não só descrever o mundo mas pode criá-lo. Estar a caminho não é ser o caminho. A filosofia está no caminho do ser e é este caminho o lugar de sua morada. (CASTRO: 2004, p. 101) Os métodos não são importantes, em si, e mesmo o resultado também não o é, pois o jogo só é divertido enquanto se joga; ganhar ou perder são sensações efêmeras, mas jogar é sempre um prazer. Em Barthes ―A palavra jogo e seus derivados percorrem a Aula, do começo ao fim‖ (BARTHES: 2002, p. 82) e por que não dizer em toda sua vasta obra? Com Barthes um jogo não começa quando ele o anuncia, como fazem outros, mas pelo escrito, e talvez mais ainda pelo não escrito, faz nascer nos seus estudiosos a ―paixão pela filosofia‖. Por exemplo: quantos, dos que leram S/Z de Balzac, perceberam o mesmo que Barthes, o escrito dele: ―SIM. Tabu sobre a palavra eunuco‖ (BARTHES: 1992, p. 213 e 215) provocado por um não-escrito, pois, palavra nunca pronunciada na obra por Balzac. Mas ao nosso ver, Barthes passou muito rápido (não-escrito) por uma questão: enquanto, na juventude, o personagem Zambinella ditava beleza nos dois mundos e ao ponto de enganar um artista (Sarrasine), na velhice em nenhum dos dois mundos/gêneros lhe restava refúgio, como homem: velho feio; como mulher: bijuterias ―brincos de ouro que lha pendiam das orelhas, pelos anéis cujas pedrarias brilhavam em seus dedos ossificados, e por uma corrente de relógio que cintil ava como engastes de um colar de diamantes num pescoço de mulher‖ (Idem, p. 19) e nada mais. Na obra, o escrito ―teve como modelo uma estátua de mulher‖ é tema maciçamente trabalhado ―Afirmar que o Adônis não é homem é, ao mesmo tempo, remeter a uma verdade (é um eunuco) e a um engodo (é uma mulher)‖ (BARTHES, 1992, 206 p. 102). Mas tal empenho só foi possível graças a esse fato: o personagem ter sido belo(a) nos dois mundos, nos dois gêneros, graças a juventude. Barthes tratou a perda da juventude quase como um detalhe, um binômio de menor importância: ―sintaticamente o vazio não deve contradizer o enrugado da velhice; paradigmaticamente, magro e vazio opõem-se à plenitude dura, vegetal, tensa, da jovem‖ (Idem, p. 88). E por que dissemos isso tudo? Porque as questões não terminam aqui. Ao estudarmos a proposta de Barthes (escrito) em comparar o quadro da obra ―Adônis deitado sobre uma pele de leão‖ (BARTHES: 1992, p. 12) a Endimião de Girodet 6 descobrimos que o personagem masculino da obra exibia uma genitália masculina completa, ora, mas se estamos falando de ―eunuco‖, como isso é possível? Teria Barthes se impressionado tanto com os toques serenos do pastor (feminilidade?) e a pele de jaguar (por pele de leão), detalhes cuidadosamente pintados por Anne-Louis Girodet Trioson (Montargis 1767 - Paris, 1824) que se esquecera de um detalhe, detalhe este que as editoras 7 que publicam (com verbo no presente) seu livro não esqueceram: quando se tratar (re-tratar) de um eunuco, nunca mostrar genitálias. 6 Girodet, Endimião, 1791, óleo sobre tela, 198 x 261 cm, Louvre, Paris. Disponível em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/Lw72iuwdaJ1sp4GiuufSKQ. Acessado em dezembro de 2010. 7 BARTHES, Roland: S/Z , Editora: Edições 70, Coleção: Signos, Ano: 1999 / BARTHES, Roland: S/Z Editor: Seuil, ano de edição: 1970 / BARTHES, Roland: S/Z, Nova Fronteira, 1992. 207 Se o objetivo da comparação era apenas enaltecer a beleza ou apenas ratificá-la, por que não se referir a Narciso, sempre retratado com as genitálias cobertas, mesmo em Caravaggio, pintor extravagante ao pintar homens. Será que o entusiasmo, em ressaltar como tal personagem era belo nos dois mundos, o fez cair numa esparrela ou estamos diante de um caso onde uma simples ―licença literária‖ ou ―quadro não é fot o‖ resolve o caso? Possível resposta em Carneiro Leão: ―Assim se diz que alguém é filósofo quando encara com serenidade tudo que acontece, descobrindo os limites positivos e negativos de todas as coisas e causas, de todos os efeitos e fados‖ (LEÃO: 1997, p. 147). E ao fazermos o dito de Carneiro Leão ―encara com serenidade...‖ percebemos que Barthes nunca se equivocou, as editoras é que se preocuparam demais, pois, reparem na dita genitália: (Girodet, O sono de Endimião, 1791, óleo sobre tela, Louvre) 8 Coberta por uma sombra triangular, mais se assemelha a pelos púbicos em um ―Monte de Vênus‖ a que uma genitália masculina reprodutora de 50 filhas com a deusa grega da lua: Selene, reza o mito. Então Barthes não errou, errou (?): ―só têm resposta às perguntas malfeitas, as perguntas bem-feitas nunca têm resposta.‖ (LEÃO: 1997, p. 150). 8 Disponível em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/jJ-i7KlrUj2Nm6zW1FAn2w. Acessado em 21/12/20010. 208 Tal insight, como o participante (pesquisador) fez, só foi possível graças ao processo de ―des-velamento‖. Ainda que grosseiro e desnecessário aos olhos de muitos, para nós, uma chance de ser surpreender como um dia fomos surpreendidos. A filosofia também é descrita como ―amar o saber‖, algo que ficou bem divulgado por Jostein Gaarder em O mundo de Sofia (1995): A palavra ―filósofo‖ é empregada hoje em dia em dois sentidos levemente diferentes. Por filósofo entendemos, sobretudo, aquele que tenta encontrar suas próprias respostas para questões filosóficas. Mas um filósofo também pode ser um especialista em história da filosofia, sem necessariamente querer desenvolver sua própria filosofia. (Op. cit, 1995, p. 346) Acreditamos que Barthes se enquadra um pouco em cada um destes dois sentidos descritos por Gaarder. Na primeira descrição ele tenta – sim – encontrar respostas, não exatamente para questões filosóficas no geral, mas no sentido específico de Filosofia da Literatura 9 ; ainda dentro da obra de Gaarder podemos encontrar (escrito em Caps Lock): E essa capacidade Barthes tinha ―Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cairá das mãos;...‖ (BARTHES, 2002, p. 19), sua inquietação: por que era tão raro isso acontecer. Na segunda seria muito precipitado falar que Barthes buscava uma filosofia própria, mas também não ficava só no estudo e admiração. O filósofo 9 O que entendemos por ―Filosofia da Literatura‖ nada mais é que o questionar sobre (...), investigação que não difere da dos próprios críticos literários. A única diferença, se existe, é que tal investigação é mais privilegiada quando feita por pessoas, não raro, consideradas ―críticos‖, e, os críticos literários podem ser considerados filósofos, na verdade, qualquer pessoa pode ser, basta para tal ter em mãos um texto e uma inquietação. (GAARDER: 1995, Pág. 27) 209 pode e deve dar continuidade, não uma manipulação, antes uma colaboração; como disse José Carlos Michelazzo (1999, p. 22), sobre Martin Heidegger: ―O seu propósito não é ir atrás daquilo que os primeiros pensadores pensaram, mas, ao contrário, daquilo que eles não pensaram, mais até, daquilo que até hoje, ao longo de toda a história da filosofia, ainda não foi pensado‖. Mas isto não é, ou não deveria ser, apenas a intenção de um filósofo (Heidegger), mas a missão de todos os filósofos. Não é só ler o que é deles, mas criar a partir deles. Mas em verdade, a palavra ―Sofia‖ significa um pouco mais do que amar o saber: Φίλος é originalmente, na língua grega, um pronome possessivo que dá conta do que pertence a alguém de maneira irreversível, tal como o nosso joelho nos pertence. Não diz então ίλος de qualquer espécie de posse transitória. Não se deve talvez nem falar, neste caso, de posse mas de pertença, daquilo que nos foi dado pela natureza e que ela mesma, só por si, não nos pode retirar. Φίλος é, de modo radical - um próprio. Um próprio tal como uma pronúncia não é separada do que pronuncia, senão na linguagem tornada mero meio, mero instrumento de comunicação. Assim, ίλος é o que é próprio e não pode deixar de sê-lo. A palavra οφία por sua vez, originariamente, dizia não de qualquer espécie de saber, mas de um saber específico — o saber do bardo, do aedo, do poet a, do cantor. Assim, o saber dito por οφία, não era para ser compreendido como um saber genérico e que a tudo servisse. Era o sabor proporcionado por urna determinada atividade que se dele fosse extirpada o próprio sentido desse sabor se desvaneceria. (CASTRO: 2004, p. 103) Barthes não estava explicando a origem da palavra ―filosofia‖ quando escreveu ―(saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia)‖ (Idem, p. 21) na obra Aula, mas encontramos praticamente as mesmas palavras, citadas de Curnonski ―dizia que, na culinária, é preciso que ‗as coisas tenham o gosto do que são‘‖ (BARTHES: 2002, p. 21), ou seja, analogicamente, a escrita pode ser 210 considerada como o lugar comum de todos aqueles que sabem escrever, e, Filosofia do grego Φιλοσοφία, literalmente, dentro deste contexto significa amor à sabedoria; escritura é a escrita daqueles que procuram sair do lugar comum, mesmo sabendo que ―não se diz apenas a mesma palavra, se diz sobretudo a mesma coisa‖ (LEÃO: 1997, p. 145) este indivíduo almeja ser diferente, único, produz mais pela paixão ―que alguém se empenha pela causa da filosofia‖ (Idem, p. 145), que neste caso significa ―O saber que se diz σοφία tem a ver com uma determinada experiência e quando dela desligado não é mai s saber, não é mais sabor, não é mais nada.‖ (CASTRO: 2004, p. 103). A singularidade que Barthes realçou é a mesma que é realçada quanto ao ―saber/sabor‖ em filosofia. E o capítulo se encerra com O resgate poético: a paixão da filosofia. Trata-se de um resgate, da busca de um lugar comum, onde ―paixão da filosofia‖ e ―filosofia da paixão‖ completa-se harmoniosamente, pelas palavras - não apenas ditas -, mas pelas ditas que passaram por um ―crivo‖, uma escolha, uma sensibilidade; o que poderia ser um dito para o momento, se converte em um dito para todo o sempre. Há muito tempo atrás, homens disseram que um país pequeno e com poucos recursos teria problemas, a menos que alguém fizesse algo para reverter a situação. E alguém o fez, colocou homens em barcos e os mandou para o mar. Agora vejamos como fica esta mesma história contada de outro jeito 10 : As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; 10 CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Org. de António José Saraiva, Porto: Figueirinhas, 1978, p. 59. 211 Com Barthes e sua definição de ÉCRITURE: ESCRITURA (BARTHES: 2002, p. 74) percebemos que a primeira narração não passa de uma ―escrita‖ ou palavras usadas como instrumento, e a segunda ―postas em evidência (encenadas, teatralizadas) como significantes‖ (IDEM, p. 75). O que é próprio do canto do poeta é o que é digno de ser cantado, o que é digno de permanecer e realizar memória, o que é digno de ser memorável e o que institui tal dignidade é o que é próprio do cantar poético. Isso era a σοφία. (CASTRO: 2004, p. 106) No capítulo que estudamos, lemos: ―O canto não exclui, integra no instante todas as possibilidades do real, e o real é tão mais real quanto mais ele cria e experiência do instante‖ (CASTRO: 2004, p. 108); algo que encontra reflexo, quem sabe inspirado/parafraseado, em AUTOPSICOGRAFIA de Fernando Pessoa 11 : O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. (SENA: 1961, p. 24) Enquanto Manuel de barros afirma: ―Minhocas arejam a terra; poetas a linguagem‖ (Apud, CASTRO:2004, p. 109), Barthes fala em Texto/Tecido: Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha). (BARTHES: 2002, p. 74 e 75) 11 SENA, Jorge de, O Poeta é um fingidor, Lisboa, Ática, 1961, p. 24. 212 Se pelo processo de escolha: um montar pelo fragmento; uso do ―gabarito mental‖: para produzir um ―mais que simplesmente dito‖, instrumental versus teatral, para ser um mais que os outros, ou, produzir para durar mais que os outros, percebemos que o ―sapo” do Hai-kai de Bashô não é diferente do ―sapo nu‖ de Manoel de Barros. Pois ―a linguagem é linguagem para antes do que se pretende que ela seja‖ (CASTRO: 2004, p. 110). E sendo assim: ―A filosofia quase nunca é uma filosofia da paixão. A paixão quase nunca é uma paixão da filosofia. Mas é certo que ambas são.‖ (Idem p. 111). E sem almejarem ―respostas‖, pois o dito que dizem não é resposta, muito menos pergunta, mas talvez um desafio. As possibilidades são tão infinitas quant o à criatividade permitir, e sendo assim, uma estrada sem fim: ―E como convém é como caminham juntas passo a passo, fazendo de cada passo o próprio do caminho e da caminhada‖ (Idem, p. 111). Ou se preferirem, como diz a letra de Cantares de Joan Manuel Serrat: Cuando el jilguero no puede cantar. Cuando el poeta es un peregrino, cuando de nada nos sirve rezar. "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar..." 12 E o que nos diz tal letra? Que quando as palavras seção/secam só nos resta lembra que ―O caminho que se constitui como tempo e lugar é construído pelo exercício da própria caminhada ou pela caminhada do que é sempre e inexoravelmente próprio‖. E dentro do que é ―próprio‖ em Roland Barthes, acreditamos que o termo ―Filosofia da Literatura‖ é muito mais pertinente para Barthes a que ―Ciência da Literatura‖, pois este sempre considerou ―o discurso da ciência não é 12 Disponível em: http://www.letras.com.br/joan-manuel-serrat/cantares, acessado em dezembro de 2010. E vídeo em: http://www.youtube.com/watch?v=Lj-W6D2LSlo. 213 necessariamente a ciência‖ (BARTHES, 2004, p. XII), ou seja: descrição e prática ocupam espaços diferentes. Além disso, sempre acreditou que a Literatura era um território indomável, incerto e sendo assim o termo ―Filosofia‖ se torna mais pertinente, pois é o lugar do que é incerto do início ao fim, diferente da ―Ciência‖ que é um lugar incerto, mas apenas no início. Como prova: Leyla Perrone-Moisés no prefácio de O rumor da língua: Cada vez que Barthes tomou um texto literário com o objetivo de domá-lo por uma metalinguagem, foi o indomável que o seduziu e que o provocou, em vez de uma simples grade de leitura do texto-objeto, a produção de um novo texto tão complexo e fascinante quanto aquele que lhe servia de impossibilidade e um logro. Para ser ciência nos moldes clássicos, a ciência da literatura deveria dispor de uma metalinguagem rigorosa, como a da matemática ou da lógica formal; ora, estas são insuficientes para prestar contas de todas as sutilezas da multiplicidade de função do signo literário. (p. XIII – XIV). Dentro do que poderíamos chamar de Filosofia da Imagem, Barthes desenvolveu trabalhos sobre fotografia, teatro, cinema e artes visuais no geral como ―As pranchas da ‗Enciclopédia‘‖ em Novos ensaios críticos (1972), ―Arcimboldo‖, em O óbvio e obtuso (1982); dentro do que poderíamos chamar da Filosofia da Escritura Curta colheu fragmentos de discursos amorosos em várias obras para produzir Fragmentos de um discurso amoroso (1977), fez pequenas críticas sobre literatura em O prazer do Texto (1973) e comentou sobre o cotidiano (francês) em Mitologias (1957), trabalhou com lexias em S/Z (1970), estudou citações em Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura (1972 e 1953 respectivamente) e estudou fragmentariamente o Hai -kai colocando-o em várias de suas obras; dentro do que poderíamos chamar de Filosofia do Diário estudou tal fenômeno em vários autores sendo os mais 214 aprofundados André Gide e Alain Girard (Inéditos, Vol. 2), como entende o ―Diário‖ o melhor trabalho está em O rumor da língua (1984) e quanto a sua prática poderíamos recomendar: O império dos signos (1970) Roland Barthes por Roland Barthes (1975) e a obra póstuma Incidentes (1987). Não é difícil considerar a filosofia como uma ciência para a ciência, uma antecâmara do pensar. Não sabemos se podemos chamá-la de metapensamento, pois devido a sua ―multitemporalidade‖ fica difícil vê-la apenas como algo que passa/ultrapassa o pensamento, ela antes transpassa e transpassa e transpassa indefinidamente, não está preocupada com o desfecho, que alguns chamam de verdade, ela não tem pressa em chegar ao fim do problema, pois sabe que a solução está no caminho e não no fim deste: não se chega ao fim de nada senão pelo caminho. Barthes percorreu o caminho: da Universidade de Alexandria (Egito) passando pela École Pratique des Hautes Études chegou ao ponto mais alto de sua carreira ao ser nomeado para o Collège de France, em 1976, para a Cátedra de Semiologia Literária. Em virtude do tempo de sua escrita, foram trinta anos de produção literária: em 1950, começou sua carreira no estrangeiro como professor e foi a partir dessa data que começou a escrever os ensaios que seriam usados em O grau zero da escrita (1953) e não parou de escrever até A câmara clara (1980, ano de sua morte 13 ), e sua polivalência fica a pergunta, ou as perguntas, feitas por Leyla Perrone-Moisés (2010) em Roland Barthes - O prazer da palavra: Quem foi, afinal, Roland Barthes? Um teórico da literatura? Um crítico literário, teatral, cultural? Um semiólogo, analista das imagens e da moda? Um teórico da fotografia? Um filósofo? Um conselheiro sentimental? Em que corrente intelectual situá-lo? Foi um marxista? Um estruturalista? Um subjetivista? A que gênero pertencem seus escritos? Jornalístico, ensaístico, 13 Roland Barthes nasceu em Cherbourg, 12 de Novembro de 1915 e faleceu em Paris, 26 de Março de 1980, ao sair de uma aula (ministrava um curso sobre Marcel Proust e a fotografia) em 25/2/1980, foi atropelado por um carro de entregas de uma lavanderia, nas Rue des Écoles, em frente ao Collège de France. Em 6 de março, nove dias depois, morreu em consequência dos ferimentos e lesões. 215 romanesco, didático? A que período: clássico, moderno, pós-moderno? [...] A teoria barthesiana é, portanto, uma teoria mutante, que evolui e se transforma ao longo dos anos. Por isso é impróprio chamar Barthes de crítico marxista sociológico ou de semiólogo, porque essas denominações corresponderiam apenas a determinadas fases de sua carreira. Embora sempre em transformação, o teórico Barthes conservou as lições das fases abandonadas. Para nós esse comentário de uma das mais respeitáveis tradutoras e pesquisadoras de Roland Barthes – confirma nossa suspeita de que nele existe o vaivém sem limites, que permeia as camadas do tempo: prova de sua ―multitemporalidade‖. Confiramos suas obras (publicação original / obra consultada): 1) Em O grau zero da escrita (1953 / 1974), primeiro livro publicado, temos uma obra que indaga até que ponto a História social ou dado momento histórico condicionam ou interferem na construção de uma obra literária e onde se situa o espaço para a liberdade de criação "uma história da linguagem literária que não é nem a história da língua, nem a dos estilos, mas apenas a história dos Signos da Literatura" (BARTHES, 1974, p. 117) e tal obra é seguida de Novos ensaios críticos (1972 / 1974) onde ele nos dá toda a sua medida de crítico ao reexaminar vários ensaios repletos de sugestões instigantes sobre as obras de Júlio Verne, Flauber, Proust e Chateaubriand; sendo este uma reflexão livr e sobre a condição histórica da linguagem literária. 2) Assim como o seu segundo livro Michelet (1954 / 1991) é um estudo sobre o ensaísta e historiador francês Jules Michelet (1798-1874) autor de alguns dos maiores clássicos da historiografia; 3) Mitologias (1957 / 1972) reúne pouco mais de cinquenta breves artigos inicialmente publicados na revista mensal Lettres Nouvelles a partir de 1952, é um livro que alerta sobre o que se consome de forma despretensiosa: os mitos; onde passa a analisá-los como sistema semiológico. 216 4) Em Sobre Racine (1963 / 2008) sugere que este estaria numa espécie de equilíbrio tenso entre sentido posto e sentido retirado, vazio e preenchimento; falando a respeito da tática do signo raciniana, Barthes esclarece muito sobre sua própria escrita: também nela se encontra uma economia que nunca perde de vista a relação tensa entre sentido posto/sentido retirado. 5) Com Elemento de Semiologia (1965 / 1993) temos o resultado de cursos ministrados por ele, de maneira sistemática e bem dosada com que apresenta a matéria, de natureza bem didática. Dividido em quatro grandes partes (I. LÍNGUA E FALA, II. SIGNIFICADO E SIGNIFICANTE, III. SINTAGMA E SISTEMA e IV. DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO), correspondentes a rubricas oriundas da Linguística Estrutural, retoma os conceitos de signo tal como foram postulados pelos primeiros autores que escreveram sobre o tema: Peirce e Saussure. Com este livro-curso Barthes dá ao leitor uma instigante visão geral do campo de estudo da Semiologia e dos instrumentos teóricos, por via dos quais se podem realizar a pesquisa semiológica. 6) Crítica e Verdade – (1966 / 1982) é uma coletânea dos ensaios críticos, alguns como Escritores e Escreventes, Literatura e Metalinguagem, O que é crítica, Literatura e Significação, etc., criou um certo desconforto na intelectualidade francesa acadêmica e conservadora, pois segundo o próprio autor, a crítica não é uma tradução: ―O crítico não tem de reconstruir a mensagem da obra, mas somente seu sistema, assim como o linguista não tem de decifrar o sentido de uma frase, mas de estabelecer a estrutura formal que 217 permite a esse sentido ser transmitido.‖ (BARTHES, 1980, p. 162). Este livro já foi traduzido para numerosas línguas, o que comprova sua importância. 7) Em o Sistema da moda (1967 / 1979) é preciso que se esclareça: não é de moda que se trata tal obra, como de início parece, mas de seu discurso. Barthes já dizia que o encanto da Moda era produzido muito mais pelas palavras do que pelas roupas em si. Ele, tão certo disso, entrou numa jornada em busca do sistema da Moda, e, para construir seu campo semântico, seu vocabulário básico, pesquisou em inúmeras revistas especializadas. Seu ponto de partida é a constatação de que existem três tipos de vestuário: o real, o imagético e o escrito. Embora saiba que a fotografia de moda reveste-se de um interesse especial, ocupa-se apenas do vestuário-escrito ―O vestuário descrito é um vestuário fragmentário. Em relação à fotografia, ele é resultado duma série de escolhas, de amputações‖. (BARTHES, 1979, p. 14). Foi através desses pequenos enunciados que conseguiu provar que as ―palavrinhas mágicas‖ das revistas e jornais é que eram as verdadeiras responsáveis pelo fascínio da Moda. 8) S/Z (1970 / 1992) não é exatamente um livro de fragmentos como em Mitologias (1957), é mais um livro fragmentado, ou melhor, uma novela fragmentada: "Sarrasine" de Honoré de Balzac, cuja a fragmentação foi feita à luz de uma análise estruturalista sim, mas não só, por trás de cada análise (foram XCIII subtemas ao todo) de comprometimento semiológico vinha uma opinião de comprometimento social (foram 561 opiniões sobre...), homem sabedor de ser pertencente a uma cultura julgadora ―(510) – Ah! És uma mulher – exclamou o artista em delírio – , pois até um... – Não terminou a frase. – Não – continuou – , nem ele seria capaz de tanta baixeza. [...] SIM. Tabu sobre a palavra eunuco.‖ (p. 231) e o que estava realmente sendo analisado era: o que 218 isto (cada fragmento) quer dizer e/ou quer esconder e como faz isso ―A significação tampouco pode ser confundida com o valor do signo embora, como reconhece Saussure, seja difícil saber como este se distingue daquele [...] o valor de um signo pode ser determinado por aquilo que está à volta do signo, em seu entorno‖ (NETTO, 2003, p.23). Seminário que durou dois anos graças à dedicação de estudantes, amigos e ouvintes que participaram deste seminário que ―se foi escrevendo enquanto me ouviam‖ (BARTHES, 1992, prefácio). É considerado por alguns como o livro que separa, e/ou evolui, Barthes de Estruturalista para Pós-estruturalista, mas discordamos por completo: Barthes sendo ―multitemporal‖ não pode e não possui, a nosso ver, um livro que seja considerado ―divisor de águas‖, pois se examinarmos de perto cada um com o propósito de classificar, separar dizendo ―Este aqui é estruturalista, este aqui não é estruturalista‖ cairemos na mesma armadilha que existe na gramática descritiva com relação ao gerúndio: em ―Fumar é prejudicial à saúde‖ o verbo fumar pode ser sujeito, pois está na forma nominal, forma de nome (o fumo, o cigarro); em ―Homem amado e mulher amada‖ temos o particípio fazendo o papel de adjetivo: concorda com gênero e número, mas e o gerúndio? O que é o gerúndio? Em ―A água fervendo é para o café‖ temos o gerúndio explicando porque a água está fervendo e/ou restringindo de qual água estamos falando, funções de adjetivo, mas ao mesmo tempo que obedece a uma regra gramatical – ao mesmo tempo desobedece, pois não se fala ―A água fervend(a) é para o café‖. Em Mitologias (1957) Barthes faz sim análises semiológicas, mas sobre mitos, mais especificamente o cotidiano francês. Ora, mas isso é cultura! ―(como em Mitologias, onde a leitura do signo é feita sempre sobre o fundo político)‖ (NETTO, 2003, p. 49). E se existe uma única palavra que pode 219 diferenciar o Estruturalismo do Pós-estruturalismo é a palavra ―cultura‖; esta só será vista e trabalhada no Pós-estruturalismo, então o que tal preocupação faz em pleno ―olho do furacão‖ (década de 50) estruturalista? Por isso acreditamos que até se pode achar uma tendência em tal ou tal obra, mas uma totalidade (?), talvez só em Elementos de Semiologia (1965): aula sobre semiologia, estruturalismo puro. 9) O império dos signos (1970 / 2007) é um diário com alguma tendência tradicional: relatar as impressões de uma viagem, no caso de uma viagem ao Japão, mas ao mesmo tempo um laboratório para diários mais criativos, irônicos, como Roland Barthes por Roland Barthes (1975), Incidentes (1987), e textos mais desafiantes como O prazer do texto (1973). A princípio (de início) Barthes parece se encantar com a comida japonesa, mas em princípio (em tese) o que realmente lhe chamou a atenção foi a possível colaboração da maneira de fazer/tratar a comida com o fazer/tratar o Texto, palavra que será escrita com letra maiúscula no próximo livro. 10) Sade, Fourier, Loyola (1971 / 2005) é onde encontramos não só os três autores que mais admirava: Donatien-Alphonso Sade (1740-1813), Charles Fourier (1772-1837) e Inácio de Loyola (1491-1556), mas também o desejo de fazer um livro cujo nome seria conhecido no futuro como O prazer do texto (1973). Graças aos mestres conheceu: ―Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual [...]. O Texto é um objeto de prazer. O gozo do Texto muitas vezes é apenas estilístico: há felicidades de expressão, e elas não faltam nem em Sade nem em Fourieu.‖ (BARTHES, 2005, p. XIV) e graças a eles aprendeu também: ―Por vezes, entretanto, o prazer do Texto se realiza de maneira mais profunda [...]: quando o texto ―literário‖ (o livro) transmigra para 220 dentro de nossa vida, quando outra escritura (a escritura do Ouro) chega a escrever fragmentos de nossa própria cotidianidade, enfim, quando se produz uma coexistência”. (Idem, p. XIV e XV, grifo nosso). 11) O prazer do texto (1973 / 2002) é a busca do entender o texto através de uma leitura dos desejos, funções e possibilidades que este oferece. Mais um livro difícil de classificar quanto a ser ou não estruturalista: ao mesmo tempo que faz uma análise semiológica, por exemplo O esteriótipo: ―é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação‖ (BARTHES, 2002, p. 52), faz uma análise cultural, pois traz o conceito sociológico (cultural) para a discussão literária, por exemplo A ideologia: ―Pois a ideologia é o quê? É precisamente a ideia enquanto ela domina: a ideologia só pode ser dominante. Tanto é justo falar de ‗ideologia da classe dominante‘ porque existe efetivamente uma classe dominada, quanto é inconsequente falar de ‗ideologia dominante‘, porque não há ideologia dominada: do lado dos ‗dominados‘ não há nada, nenhuma ideologia, senão preci samente – e é o último grau da alienação – a ideologia que eles são obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de empréstimo à classe que os domina.‖ (Idem, p. 41). Separa o texto em: prazer e fruição, privilegiando o primeiro, algo que aprendeu com os seus ―professores‖ do livro anterior (Sade, Fourier e Loyola), em detrimento do segundo, marcado pelo signo da perda (falta de prazer pela falta de desafios), que coloca em crise a relação leitor – linguagem; assunto que retomaria, mas só sendo publicado postumamente em O rumor da Língua (1984): A morte do autor (2004, p. 57-64). 221 12) ROLAND BARTHES por Roland Barthes (1975 / 1977) um livro que tenta mostrar um homem por seus fragmentos de pensamento, fragmentos (capítulos) que se desprende de um todo (autor), e do alto de cada um tem-se a visão do todo sem ele, e de si para si: a visão deste sem a intervenção do todo, das outras partes. Sujeito que sabe não ser possível se encontrar sem antes se perder. Análises quase semiológicas para analisar o quê? Sem termos precisão em um corpus, como sermos precisos à análise? Semiologia pura, onde? Reflexão sobre a cultura pura, onde se é pessoal? O que ele achou ser impossível, na teoria, em O grau zero (1953), pois a Literatura tem o poder de se apoderar do estilo: ―Cada escritor que nasce abre em si o processo da literatura; mas se a condena, concede-lhe sempre um prazo, que a Literatura vai usar para reconquistá-lo‖ (BARTHES, 1974, p. 166-167). Barthes, a nosso ver, conseguiu na prática aqui (RB por RB); através de um diário que não é bem um diário, tenta ―beirar‖ a Literatura, mas mesmo não conseguindo, pois como vai dizer mais tarde em O rumor da língua (1984): ser possível – sim – fazer uma publicação de cunho literário ―Não, a justificativa de um Diário íntimo (como obra) não pode ser senão literária, no sentido absoluto, mesmo que nostálgico, da palavra.‖ (BARTHES, 2004, p. 447), é seu melhor trabalho quanto à ―trapaça salutar‖ (BARTHES, 2002, p. 16) que pregou em Aula (1978-9). 13) Fragmentos de um discurso amoroso (1977 / 2000), se um título pode ser considerado como o menor resumo possível sobre uma obra ou simplesmente sua apresentação, neste título temos ambos: resumo e apresentação. Obra feita de fragmentos retirados de outras obras: um inteiro feito totalmente de fragmentos diversos, e assim como no personagem Frankenstein é perfeitamente possível ver que sua composição é variada, mas 222 não é aleatória; Victor quis um homem com partes de outros homens e Barthes quis fazer um discurso amoroso com part es de outros discursos amorosos; neste livro vemos o que Oscar Niemeyer respondeu a uma repórter, na inauguração de Brasília, quando ela perguntou por que as parábolas dos pilares (pilastras) eram tão parecidas de um prédio para outro, ―Por que não acentuou a diferença entre elas ou simplesmente as fez diferente?‖ e ele disse ―Você me pergunta isso porque não é arquiteta, um arquiteto sabe o que é Unidade‖ 14 . Niemeyer escolheu o Cruzeiro do Sul como modelo/matriz para compor as pilastras, só variando o grau de curvatura para baixo ou para cima, mais para a esquerda ou mais para a direita. Barthes variou quanto aos capítulos do livro, mas com certeza, mesmo sem ser arquiteto e saber o que era Unidade, fez uma Unidade com o discurso amoroso. 14) Aula (pronunciada dia 7 de janeiro de 1977 e publicada em 1978 / 2002) livro que inaugura a Cátedra de Semiologia do Colégio de França, nesta Aula Barthes questiona os motivos de tal instituição contratar seus serviços (primeira linha), pois se declara ―sujeito incerto‖ (p. 7) como alguém que só produziu ―tão-somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise‖ (p. 7), como um pesquisador de semiologia que é ―tão propenso a deslocar sua definição‖ (p. 7) pode ser outra coisa que não ―sujeito impuro‖ (p. 8)? Mas se por um lado ―a honra pode ser imerecida, a alegria nunca o é‖ (p. 8) e ao saber que faria parte do lugar-comum de seus mestres, se alegra. E também se alegra por lhe ser permitido fazer um discurso de um lugar que está ―fora do 14 Entrevista apresentada pelo programa da TVE, ―Recorte Cultural‖: Oscar Niemeyer recebe Michel Melamed em seu apartamento-escritório no Rio de Janeiro. Durante o bate-papo, o arquiteto fala de seus projetos - como a construção de Brasília -, e de sua relação com a política, já que é um comunista convicto. Uma parte da entrevista (a partir do segundo minuto, fragmentada, pois é a proposta do programa Re[corte] Cultural e infelizmente sem a parte que queríamos mostrar) está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=auWtmAbzbt0&feature=related, Recorte 5C, acessado em 06 jul. 2010. 223 poder‖ (p. 9), mas esta última alegria não é inocente: como alguém que já havia escrito sobre o grau zero (1953) e sobre ideologia (O prazer do texto, 1973) poderia acreditar ser possível escrever algo tão inocente quanto um discurso que não estivesse impregnado por algum desejo de convencer o outro ―o poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder‖ (p. 10), mas sua luta não é contra o poder, mas contras ―os” poderes (p. 12), artigo no plural que só é compreendido quando recordamos a ressalva que Barthes faz a Saussure ―a Semiologia é que é uma parte da Linguística; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso‖ (BARTHES, 1993, p. 13), um discurso que não pode ser destruído ―ele vai imediatamente reviver, regerminar no novo estado de coisas‖ (p. 12); sua causa é a linguagem e seu efeito (sua manifestação) é a língua. Por seu uso rotineiro esquece-se que ela nos obriga a usar seu código, código padronizado/convencionado ―esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva‖ (p. 12), isso a torna ―fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer‖ (p. 14) mas nem tudo está perdido, por meio de uma ―trapaça salutar‖ (p. 16) pode-se ouvir a língua fora de seu poder ―eu a chamo, quanto a mim: literatura.‖ (p. 16); algo que só pode ser alcançado por treino/prática ―Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensaio, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever‖ (p. 16 e 17). Afirma que ―todas as ciências estão no mundo literário‖ (p. 18), mas as ciências são grosseiras e a vida é sutil ―e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa‖ (p. 19) e revela como ela faz isso, revelando/separando sua força em três: 1) ―Na ordem do saber, para 224 que as coisas se tornem o que são, o que foram, é necessário esse ingrediente, o sal das palavras‖ (p. 21), 2) a sua representação ―Que o real não seja representável – mas somente demonstrável‖ (p. 22), 3) e finalmente ―Pode-se dizer que a terceira força da literatura, sua força propriamente dita, consiste em jogar com os signos em vez de destruí-los‖ (p. 28). E agora sim ―Eis-nos diante da semiologia‖ (p. 29). Presta tributo a Saussure, que sem seu Língua/Fala não haveria começo (p. 31), que graças à semiologia ―podia reduzir o discurso‖ (p. 31) e logo depois, ao narrar às possibilidades que isso gera, descreve praticamente e contiguamente as possibilidades existentes em um Hai -kai: ―Não são somente os fonemas, as palavras e as articulações sintáticas que estão submetidas a um regime de liberdade condicional, já que não podemos combiná-los de qualquer jeito; é todo o lençol do discurso que é fixado por uma rede de regras‖ (p. 31), e tal palavra não aparece em seu discurso inaugural, mas em suas obras e no comentário final de Leyla Perrone-Moisés aparecerá triunfante, pois se existe uma prova material de que existe uma maneira de driblar o discurso do poder, é ele: ―O haicai consegue a façanha de dizer a pura constatação, sem nenhuma vibração de arrogância, de sentido, de ideologia.‖ (p. 86). E o livro termina com o revelar de impressões menores (clima), aparentemente sem importância, mas que justamente, por serem assim, mostram/provam que aprendeu a fazer um discurso usando a língua com toda sua organização, regras e convenções sem ser julgadora e/ou dominadora. E para terminar nossa impressão: só consideramos de muita malícia terem terminado o texto (e o livro) com um Hai -kai assumido se já tinham feito um, na última frase, não-assumido: 225 Estátua de Montaigne Continua sorrindo, este ano sob uma Maquiagem punk. (p. 89, montagem em três linhas nossa). 15) A câmara clara (1980 / 1984), último livro publicado em vida 15 , depois deste todos os outros seriam póstumos. É antes um livro de colaboração ―O que Marey e Muybridge fizeram, como operator; quero fazer como spectator: decompondo, amplio e, se podemos dizê-lo: ralento, para ter tempo de enfim saber‖ (BARTHES, 1984, p. 148), ou poderíamos dizer inquietação ―eu gostaria de saber o que, nessa foto, me dá o estalo‖ (p. 36). Suas impressões foram escritas do ponto de vista de quem não é fotógrafo ―não sou fotógrafo, sequer amador‖ (p. 20), criou nomes para, separadamente, analisar melhor esta visão que é na verdade múltipla: o Spectador que ―somos todos nós‖ (p. 20) seria fotografado pelo Operator que é ―fotógrafo‖ (p. 20) que produziria um studium que o ato simples de ―Posso apenas varrê-la com o olhar‖ (p. 156), e que quando melhor observado poderia nos ―ferir‖, dar uma ―pontada‖: ―em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada [...] A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei de punctum‖ (p. 46), e como o punctum por vezes pode ser proposital ―Certos detalhes poderiam me ‗ferir‘. Se não o fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente pelo fotógrafo‖ (p. 75), ficou a pergunta: será que o punctum tem a capacidade de ―ferir‖ o próprio fotógrafo? E foi tentando descobrir esta resposta no livro que nos veio o insight: ―Assim o detalhe que me interessa não é, ou pelo menos não é rigorosamente, intencional, e 15 La Chambre claire: Notes sur la photographie, Editeur: Gallimard, Publication: 21/2/1980 (quinta-feira). Barthes foi atropelado 4 dias depois: 25/2/1980 (segunda-feira) e faleceu duas semanas depois da publicação, em 6/3/1980 (na outra quinta-feira, em 1980 o mês de fevereiro teve 29 dias). 226 provavelmente não é preciso que o seja; ele se encontra no campo da coisa fotografada como um suplemento [...]; ele não atesta obrigatoriamente a arte do fotógrafo; ele diz apenas ou que o fotógrafo se encontrava lá, ou [...] que ele não podia fotografar o objeto parcial ao mesmo tempo que o objeto total‖ (p. 76), por tanto o ―detalhe, o ―suplemento‖, em resumo: o punctum não é privilégio apenas de quem manobra a máquina ―a semiologia da Fotografia está, portanto, limitada aos desempenhos admiráveis de alguns retratistas‖ (p. 62), mas tal ―punctum (o que me punge)‖ (p. 68) está lá, e sempre esteve, mesmo para o fotógrafo ―suplemento: é o que acrescento à foto e que todavia já está nela‖ (p. 85). E com base em tal inquietação resolvemos dar, também, nossa colaboração com: Primoris Visum (Primeira Vista) uma símile com o Studium barthesiano cuja a diferença reside no fato de no primeiro varremos o cenário com o olhar e no segundo a foto, Attentus Visum (Vista Atenta) e a Animus Simulandi (Intenção de Simular) são propostas de divisão do Punctum barthesiano, mas sendo ambas intencionais e na medida do primeiro ser de ação natural, ou seja aproveitando o que está circunscrito ao redor do Spectrum (fotografado) e o segundo montado, fabricado. Ao analisarmos este livro, defendemos também a tese de que a fotografia é algo que pendula do funcional ao artístico ―que a Fotografia é uma arte pouco segura‖ (p. 32), que por seu caráter polivalente ―A Fotografia é inclassificável porque não há qualquer razão para marcar tal ou tal de suas ocorrências‖ (p. 16), daí a razão de Barthes, e nós, concordarmos que a única comparação possível, sem que haja controvérsias, é compará-la ao Hai-kai ―Pois a notação de um haiku também é indesenvolvível‖ (p. 78). Palavra tão inquietante e quase sempre próxima de ―fragmento‖. 16) O óbvio e o obtuso (1982 / 1984): título escolhido não por Barthes, mas por seu amigo e editor François Wahl ―temos , pois, que assumir a responsabilidade, tal 227 como a do título‖ (BARTHES, 1984, p. 9) tomando como base um dos estudos de Barthes sobre Eisenstein, incluído nesta obra. É uma coletânea de ensaios críticos dispersos (vinte e um textos anteriormente publicados em revistas e catálogos e mais dois ainda inéditos 16 ), constituindo na prática um novo volume de ―ensaios críticos‖. Diferente de A câmara clara pelo seu aprofundamento, agora vai além e adentra no que poderíamos chamar de estética do visível (1. A escrita do visível); continua com os estudos sobre fotografia, mas agora inclui o cinema, o teatro e a pintura. A música também será trabalhada (2. O corpo da música), ainda que só no final no livro. Barthes parte de um questionamento sobre o conteúdo da mensagem fotográfica e discorre com originalidade sobre o que ela apresenta em termos de conotação e denotação e chega aos conceitos de óbvio e obtuso, a partir da análise de fotogramas de filmes de Serguei Eisenstein (1898- 1958), como já dissemos: ―O terceiro sentido, notas de pesquisa sobre alguns fotogramas de S. M. Eisenstein‖ (p. 43 – 59). Nesta obra a palavra metamorfose terá um papel, quem sabe até mais importante, que a palavra fragmento ―[...] a campainhas de flores, a pequena ervilha na vagem; estes objetos diferentes têm formas em comum: são parcelas de matéria, cortadas, iguais e agrupadas – arrumadas – numa mesma linha‖ (p. 119). Da letra do livro de Massini ―metamorfose figurativa‖ (p. 89), passando pelo penteado que junto com o corpo forma uma letra metamorfoseada (Erté, p. 93 - 111), chegamos ao capítulo que serviu de capa para o livro publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira 17 : Vertumnus, Retrato de Rudolph II, um dos trabalhos de Arcimbaldo, que segundo Barthes tal artista transforma a pintura numa verdadeira língua ―A 16 Os dois inéditos são: A música, a voz, a língua (Roma, 20 de Maio de 1977) e De olhos nos olhos (Inéditos, Escrito em 1977, para uma obra coletiva em preparação – Le Regar). 17 Na maioria das vezes é a própria foto de Barthes: Edições 70 no Brasil e Editions du Seuil na França, ou uma figura disforme. 228 cabeça é composta por unidades lexicográficas que vêm de um dicionário, mas este dicionário é de imagens‖ (p. 118): nela tudo significa, tudo é metáfora: ―Reino triunfante da metáfora: tudo é metáfora em Arcimboldo. Nunca nada é denotado‖ (p. 119). Na Segunda parte (2. O Corpo da Música), Barthes comenta a diferença entre ―ouvir‖ e ―escutar‖ e seu comentário sobre o intermezzo de Schumann em RB por RB (p. 102) é resgatado e ampliado; conclui que assim como a leitura do texto moderno precisa ser operada, atraída para uma práxis desconhecida (uma espécie de perder para ganhar), a música opera bem como metáfora: ―Talvez uma coisa não valha senão pela sua força metafórica; t alvez seja esta o valor da música: o de ser uma boa metáfora‖ (p. 230). 17) O rumor da língua (1984 / 2004) nele encontramos mais estudos sobre: a linguagem, a escrita e os signos por ela utilizados. Com ele, nos acostumamos a ouvir o rumor da linguagem em suas sutilezas. Dividido em sete temas, consideramos como os mais importantes ―A morte do autor‖ e ―Deliberações‖: o primeiro afirma que a ideia de autor é uma criação moderna, e a sua morte seria o necessário desligamento dele com a obra, esta perda da ―voz original‖ nos libertaria da verdade dele e nos permitiria ter a nossa, a função de se publicar um texto não é tomar posse do real, mas poder nos dar matéria (imaginativa) e/ou mostrar o caminho para criar um outro real, sendo assim o real dele não seria mais que um ―exercício simbólico‖ para nos ensinar/incentivar a usar o gabarito mental de que defendemos; o segundo mostra a opinião de Barthes sobre o assunto Diário, é neste ensaio onde encontramos que – sim ―a justificação de um Diário intimo (como obra) não pode ser senão ―literária‖ (p. 447) seguido dos quatro motivos: poético, histórico, utópico e amoroso; logo após isso dito, Barthes se revela ao escrever 229 fragmentos de sua escolha, de seu diário: um Barthes que nunca vimos ―Ora, por instinto, deixo-me cair excessivamente, as duas pernas no ar, na postura mais ridícula que é possível. E compreendo então que é esse ridículo que me salva (de um mal maior): acompanhei minha queda, e ofereci -me assim em espetáculo, tornei-me ridículo; mas por isso mesmo, atenuei-lhe o efeito‖ (p. 455). 18) A aventura semiológica (1975 / 2001) é um livro feito para debater. Recolhe corpus específicos para provocar, em estudiosos do assunto (semiologia), um debate, não uma verdade do tipo: quem está certo ou quem está errado, mas antes uma oportunidade de usar a teoria em algo que poderia enriquecer, não só mais ainda a semiologia, mas a Literatura como um todo: ―Para retomar a classe das Funções, nem todas as unidades têm a mesma ‗importância‘; algumas constituem verdadeiros gonzos da narrativa (ou de um fragmento da narrativa) [...]: o espaço que separa ‗o telefone tocou‘ de ‗Bond atendeu‘ pode estar saturado por uma multidão de pequenos incidentes ou pequenas descrições: ‗Bond dirigiu-se para a mesa, pegou um receptor, colocou o cigarro no cinzeiro’, etc.‖ (p. 119). 19) Incidentes (1987 / 1987) é um livro que usou filosofia e estética típicas da prática do Hai-kai para ser produzido. Não que haja Hai -kais no livro, há controvérsias a esse respeito, o que Barthes realmente fez foi travestir seu trabalho (diário sim, mas não comum) com algumas características que encontramos no Hai-kai como a exatidão do momento, o pequeno gesto que não é percebido pelas outras pessoas, economia na descrição, o pitoresco ao lado do sério, e outros. Tudo isso recobre seu trabalho como uma roupa recobre uma pessoa; como já dissemos no início da tese: há palavras, em Barthes, que 230 merecem especial atenção, poderíamos agora acrescentar ―travesti‖ à lista, palavra que apareceu sorrateiramente em algumas de suas obras: ―Os travestis são caçadores de verdade: o que lhes causa maior horror é precisamente o fato de se disfarçarem‖ (BARTHES, 1974, p.108) e ―O travesti oriental não copia a Mulher, ele a significa‖ (BARTHES, 2007, p. 69). Talvez tenha sido essa a intenção de Barthes: através de um deslocamento, sem precisar criar um personagem, ou ainda como Gide: criar um personagem que criou um personagem, e sem precisar usar de falso testemunho ou produzir eufemismos (como isso é verdade), para atender ao pedido de seu amigo e editor François Wahl (F. W.), falou sim de homossexualidade, mas pela fragmentação, escolha do que dizer, e economia – conseguiu ser: desinibido sem ser vulgar (a arte não precisa pedir desculpas) ―Três jovens Chleus, na falésia, exigem uma lição de francês...‖ (p. 47), inocente sem ser burro ―<<Senhor, lembra-te, nunca deves dar boleia a um Marroquino que não conheça>>, diz-me este Marroquino a quem dou boleia e que não conheço‖ (p. 45), fotógrafo sem ter câmera (estética fotográfica) ―Dois adolescentes nus atravessaram lentamente o <<oued>>, com a roupa numa trouxa à cabeça‖ (p. 50) e quem sabe até um haicaísta acidental, pois melhor Hai-kai que existe: aquele que não se faz, apenas deixa vir, e ao narrar os possíveis pensamentos de ―Um miúdo, sentado num muro, à beira da estrada para onde não olha – sentado como que eternamente, sentado para estar sentado, sem tergiversar: << Sentado tranquilamente, sem fazer nada. Chega a primavera e a erva cresce por si. >>‖ Nasce este que poderia ser considerado como seu primeiro Hai -kai, apesar de só ter duas linhas, mas que na verdade não o é, trata-se de um poema 231 Zen anônimo que Barthes colheu para fazer das palavras de alguém, as suas. E mais uma vez só nos resta a inquietação de saber: ele escreveu ou não Hai-kais neste livro? Pergunta que nunca terá resposta justamente por ter muitas possibilidades de resposta: como a fotografia é ―inclassificável porque não há qualquer razão para marcar tal ou tal de suas ocorrências‖ (BARTHES, 1984, p. 16) e como o Haiku ―...também é indesenvolvível‖ (Idem, p. 78), já está revelado a roupagem com que travestiu sua obra: diário vestido de estética fotográfica com estilo econômico japonês para narrar aventuras em Marrocos. 20) A preparação do romance, vol. I (curso de 1978 – 1979 / 2005 ) é nele onde encontraremos um curso completo sobre Hai -kai. Como este livro nos chegou às mãos muito tardiamente, e, por não possuir nada que já não tivéssemos dito, achamos por bem não alongar mais a data de defesa só por causa de alguns acréscimos oportunos, como em: ―..., lugar geométrico de pensamentos, problemas e gostos = ‗simulacro‘‖ (p. 48) para corroborar o gabarito mental de que falamos; em ―a quebra branca do fim do verso atrai, repousa, distrai‖ (p. 54) para o fragmento que consideramos provocador em O império dos signos ―como poderia ele instruir, exprimir, distrair?‖ (p. 111); com ―e ocasionalmente, fazer pensar no haicai, não seria um poema, por mais curto que fosse, seria por vezes um único verso – que pode soar como um haicai‖ (p. 56) reforçaríamos o exemplo que demos quando sugerimos o exemplo explicativo ―Eu vi um anjo no mármore e esculpi até o libertar‖ escrito em uma única linha e separável mentalmente pelos falantes da língua; também encontramos ―subsiste um desejo de haicai, uma fantasia linguageira de haicai. Mesmo sem métrica, apenas fatiando a notação, brincamos de haicai‖ (p. 67) que vai ao encontro do que defendemos sobre a obra Incidentes estar travestida, 232 e, se ainda for preciso mais também encontramos ―Sentimos que, aqui, somos retidos à beira do efeito [...]. Considero que o haicai é uma espécie de Incidente‖ (p. 140 e 141); há nossa palavra estudada grafada com letra maiúscula ―Resta relembrar o quanto essa preocupação é moderna, responde a uma preocupação atual: os Fragmentos‖ (p. 68) para mostrar que não foi só em RB por RB (p. 112) que tal palavra aparece grafada dessa forma, e mais uma vez não acompanhada da palavra Hai-kai, mas dentro de um curso específico de Hai-kai; sobre o ponto de vista nostálgico de Barthes ―qualquer um que tenha perdido um ente querido se lembra terrivelmente da estação; a luz as flores, os odores, a concordância ou o contraste do luto com a estação: quanto se pode sofrer ao sol!‖ (p. 84) em A câmara clara ―O nome do noema da Fotografia será então: ‗Isso-foi‘, [...] ela sugere que ele já está morto‖ (p. 115 – 118); a palavra ―sutileza‖ que sempre dissemos ser de vital importância para a tese ―A Nuance = uma aprendizagem da sutileza‖ (p. 94) e que sempre encontramos no contexto barthesiano. E como podemos constatar pelo que foi observado: muitos fragmentos úteis, mas nada que merecesse uma revisão completa de nosso trabalho. Ficamos felizes ao descobrir que Barthes tinha feito um curso sim, mas como já explicamos nesta tese, o nome de nosso trabalho não é O Hai-kai barthesiano e sim O fragmento barthesiano. E por tal palavra estar sempre próxima e de forma cúmplice entendemos que já foi bem trabalhada. Resumindo: ou se estuda tal palavra dispersada, verdadeiro êxodo japonês em plena bibliografia barthesiana, como um franco-atirador que procura somente patentes altas (Hai-kai) para vitimar, ou se adquire tal livro para quando se ler os outros, e se deparar com tal palavra (Hai -kai), a entender melhor do que aqueles que não leram o curso de Barthes e só a estão vendo fragmentada em 233 sua bibliografia. Vantagem que não tivemos, mas que aproveitamos agora no final. Por tanto, até é possível ―classificar‖ algumas obras de Barthes como estruturalistas e pós-estruturalistas tomando como base as incidências (tendências) que encontramos em seu interior, o que não podemos fazer é colocar Barthes em uma tabela cronológica da literatura, como a que encontramos nos livros de segundo grau: do Trovadorismo ao Pós-modernismo, e traçar uma linha em uma determinada obra, por exemplo: (S/Z) e numa determinada data, por exemplo: A Revolução Estudantil de 1968 considerada por muitos como a data que marca o início de um neo-estruturalismo (início do Pós). Pois se assim o fizermos como explicar certas inquietações que assolavam Barthes e sobre as quais escreveu em clara contrassintonia com os demais. Para nós, inquietações fora de épocas, fuga de modismos e criar a partir de (...) são provas de que Barthes é sim filósofo, mas de qual filosofia? Isso não tem a menor importância, pois procurar uma locução adjetiva para Barthes (... da Semiologia, ... da Literatura, ... da estética visual etc.) seria o mesmo que tentar classificá-lo, rotulá-lo, quem sabe (?) domá-lo. Barthes não é o tipo de filósofo que usa locução adjetiva, ele é a locução adjetiva: Fragmento barthesiano. 234 6.2- “... procura uma nova linguagem dentro da dúbia poesia.‖ Quando nos veio à mente o subtítulo de nossa tese (grifado acima), ficamos um pouco apreensivos, por duas razões, primeira: não queríamos trabalhar com a palavra ―linguagem‖ como se ela fosse mera símile de pensamento, pois sabemos que ela é anterior ao pensamento; nós é que demos o nome de ―linguagem‖ a tudo aquilo que não é gratuito e se revela funcionalmente em eficiência e fracasso, não importa, mas se revela. Uma montanha cresce em altura por deslocamento de placas tectônicas e nesta nova altura aparecem plantas adequadas a tal altura, e, depois, mais uma vez a terra mexe e a altura da montanha já não é a mesma, nova vegetação adequada aparece, mas a anterior fossilizada mostra ao homem que aquela montanha já teve outras alturas; uma árvore que cresce para cima e se expande não o faz para que o homem chame o seu movimento de ―arbóreo‖, assim como um grande felino não coloca sua caça entre um troco e um galho para o homem chamar tal movimento de ―enganchar‖. A ―linguagem‖, como nós a entendemos, é similar a descrição que Heidegger faz em sua obra A caminho da linguagem. Nós também a consideramos tripartida; não mostraremos isso com o poema que ele escolheu (Uma tarde de inverno de Georg Trakl), mas para juntar o pensamento dele ao nosso usaremos uma gravura: Puddle por M. C. Escher (1952) 235 Começaremos pelo nome: Puddle (do francês poça), mas não o mero nome, trabalharemos este como: ―Nomear não é distribuir títulos, não é atribuir palavras. Nomear é evocar para a palavra. Nomear evoca. Nomear aproxima o que se evoca.‖ (HEIDEGGER: 2003, p.15). Quando olhamos o quadro e lemos seu título, percebemos claramente que seu nome é pertinente, mas até que ponto? Por que fazer uma gravura de algo tão simples, e sujo? Tal razão ocorre porque ―Evocar é sempre provocar e invocar, provocar a vigência e invocar a ausência‖ (Idem: 2003, p. 16). Num segundo momento, percebemos que Escher ―joga‖ com três elementos: água (ao centro), terra (base) e céu (refletido). Mas não é só isso, como sabemos que estamos numa floresta? Graças às árvores. Mas onde estão as árvores? Se olharmos bem, percebemos que elas não estão ―presentes‖, é pelo reflexo, pela água, que as vemos, e não só: seus topos e o céu, elementos que para vermos temos que virar nossa cabeça para cima, se torna visível porque viramos a cabeça para baixo. E as ―inversões‖ não param por aí, as pessoas (pegadas), os carros (pneus diferentes) e as bicicletas (também no chão) só são ―vistas‖ por suas marcas; ausências acusando presenças ―Mundo e coisa não substituem um ao lado do outro coisas justapostas. Eles se interpenetram. Assim os dois dimensionam um meio. Nesse meio, estão unidos‖ (Idem: 2003, p. 19). E no terceiro momento temos o porquê de tudo isso: ―linguagem‖ é a pergunta, ou perguntas, que não podem ter respostas, pois é no mistério do próprio perguntar, no limite do perguntar, no confrontar-se no que não tem nome, do que não precisa ter nome para existir, uma presença ausente e uma ausência que é presença, união possível graças à ―linguagem‖ como algo mais que o pensar, visto que existe e se manifesta independente do homem. As obras de arte, poemas, nos lembram disso. 236 Para os mortais, falar é evocar pelo nome, é chamar para vir. Na fala dos mortais, o dito do poema é puro chamado. Poesia é propriamente apenas um modo (melos) mais elevado da linguagem cotidiana. Ao contrário. É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não mais ressoa. (HEIDEGGER: 2003, p. 24) Segunda Razão: Barthes não era do tipo que pesquisava poemas (Hai -kai: única exceção) e/ou escrevia, mas quando pesquisamos melhor sobre a palavra ―poesia‖ nos demos conta de que ela era, proporcionalmente, muito mais utilizada para se referir a poemas: arte de compor ou escrever versos, a que outros trabalhos; na verdade das seis incidências que aparecem no dicionário Houaiss somente as duas últimas se referem a ela como ―poder criativo‖ e ―o que desperta emoção‖ (Op. Cit., 2009 p. 1514). São nestes dois últimos a que nos referimos: um estado de sentimento, mais especificamente quando uma obra nos remete a um estado sublime de sentimento. Ora, então escolhemos bem, pois o que Barthes estudou foi exatamente isso só que em áreas diversas, procurou e achou em citações, fotografias, diários, e até mesmo na música. E resolvido tal incômodo prosseguimos com nossa pesquisa, e ao adentrarmos mais ainda na questão do fragmento, outro desconforto surgiu: Barthes nunca se preocupou com o fragmento em si, grande prova disso são três páginas (ps. 101, 102 e 103) de RB por RB (1977) falando especificamente dele (fragmento) e mesmo assim fica claro que não é ele (presença) o que importa, mas o que acontece quando ele acontece. Uma espécie de causa e efeito em plena conspiração pelo formato corolário: o perceber de seus fragmentos (efeito) criados propositalmente por fragmentos (causa), para produzir nos outros inquietações que os incentivariam a perceber fragmentos futuros (efeito), e quem sabe, por contaminação serem os próximos a fazer o mesmo (causa). O fragmento seria a inquietação primeira que produziria um movimento cíclico: 237 efeitos (descobertas) produziriam admiração, espanto, todos contagiantes e que por serem assim, tornam o efeito de antes em causa do depois, um ciclo que se autoalimentaria, mas com o comprometimento de nunca parar de produzir o espanto, a admiração, sob pena, de aí sim, cessar/morrer. Mas tal descoberta também nos trouxe alívio, pois desde o início já achávamos a proposta de só estudar ele, o fragmento: maiúsculo e minúsculo (paradigma) acrescido do seu relacionamento com as palavras vizinhas (sintagma) uma proposta interessante, mas ao mesmo tempo pobre. Para resolver tal impasse resolvemos manter a primeira e ampliar a segunda. Nosso alívio: desde o início foi assim, mantivemos e ampliamos. Mostraremos agora alguns exemplos de seu alto grau de contaminação, não uma contaminação barthesiana em si, mas exemplos semelhantes aos que inquietaram Barthes, que os encontrou não só na História e na Literatura, mas também nos jornais, revistas, propaganda, cinema, teatro, pintura e em outras mídias, do visual à musical. Como já demos alguns exemplos com pintura, com fotografia e até mesmo com a união de ambos (Crystal Falls do pintor Thomas Moran e o fotógrafo William H. Jackson); para dar prosseguimento a esta ―simbiose‖ última, escolhemos a letra de Monte castelo (1989) da banda brasileira Legião Urbana, adaptada de fragmentos da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios ―Capítulo 13‖ e mesclada a fragmentos do ―Soneto 11‖ de Luís Vaz de Camões; para mostrar como o gabarito mental de que falamos é mais comum do que muita gente pensa, todos falando a mesma coisa por caminhos ligeiramente diferentes e ainda assim o mesmo. Para facilitar a comparação, usamos Itálico para o Soneto e sublinhado para Coríntios: 238 Monte Castelo 18 (letra de música) Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja Ou se envaidece... O amor é o fogo Que arde sem se ver É ferida que dói E não se sente É um contentamento Descontente É dor que desatina sem doer... Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... É um não querer Mais que bem querer É solitário andar Por entre a gente É um não contentar-se De contente É cuidar que se ganha Em se perder... É um estar-se preso Por vontade É servir a quem vence O vencedor É um ter com quem nos mata A lealdade Tão contrário a si É o mesmo amor... Estou acordado E todos dormem, todos dormem Todos dormem Agora vejo em parte Mas então veremos face a face É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade... Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... 18 Legião Urbana (2010). Soneto V 19 (texto poético) Amor é um fogo Que arde sem se ver, É ferida que dói E não se sente, É um contentamento Descontente, É dor que desatina sem doer. É um não querer Mais que bem querer, É um andar solitário Entre a gente, É nunca contentar-se De contente, É um cuidar que ganha Em se perder. É querer estar preso Por vontade, É servir, a quem vence, O vencedor, É ter com quem nos mata Lealdade. Mas como causar pode seu favor, Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si É o mesmo Amor? 19 Luiz de Camões (2010) 1 Coríntios 13 20 (texto bíblico) 1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. 2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. 3 E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. 4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. 5 Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; 6 Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; 7 Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. 8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; 9 Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; 10 Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. 11 Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. 12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. 13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor. 20 Carta de São Paulo aos Coríntios (2010). 239 Esta montagem aqui descrita na verdade é um ―jogo‖, que encontramos em Aula (JEU, JOUER – JOGO) e que nasce graças ao ―estalo‘ (BARTHES, 1984, p.36), que é o momento exato em que percebemos o punctum, lembrando que os propositais surtem pouco efeito: ―Certos detalhes poderiam me ‗ferir‘. Se não o fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente‖ (Idem, p. 75.) e no entanto, no caso descrito por nós, encontramos um punctum proposital, já que as fontes são bem conhecidas, mas como ainda não tinham sido esgotadas: eis o estalo do artista. E por acreditar ser ainda possível continuar a variação iniciada por Camões, num vai e vem, costurou uma terceira variante por soma das duas primeiras. A questão agora não é o fato de ser visível e ou conhecida as fontes, mas o desafio de continuar construindo usando as peças das obras originais. Peças que limitam a atuação gabarito mental, sendo esse mesmo o desafio: quantas variações são possíveis dentro desta proposta. Não temos tal resposta, mas sabemos do seguinte: ainda não esgotou. Monte Castelo (nossa montagem) Ainda que eu falasse igual a São Paulo aos Coríntios. E falasse Camões nos Lusíadas Sem professor eu nada diria. É só nos livros, é só nos livros. Que se conhece o que é verdade. O livro é bom, não ensina o mal. Quando queimados, o mal se envaidece. O Adamastor é mostro que se mostra sem se ver. É ferido que dá dó e não se recente. É um fingidor pessoano e um contente. Pois a dor desatina e não a sente. Ainda que eu falasse igual a São Paulo aos Coríntios. E falasse Camões nos Lusíadas Sem professor eu nada faria. Elias não viu o Senhor, no trovão. Elias não viu o Senhor, na tempestade. Elias não viu o Senhor, no tufão. A brisa trouxe Deus na carruagem. É um estar-se Kafka por vontade. É servir a quem paga, um perdedor. É acreditar que vai virar - de verdade. Ainda que tudo aponte: oposto de vencedor. Já estou sonhando e todos dormem, todos dormem, dormem sem sonhos. Agora vejo empate, onde diziam ―Vai perder!‖ na mina face. É o professor, é o Adamastor. Que nos leva no barco: Verdade, No oceano chamado: Pergunta. Ainda que eu falasse igual a São Paulo aos Coríntios. E falasse Camões nos Lusíadas, Sem professor eu nada seriaaah! 240 O objetivo não é apenas montar, como somente parece, mas dentro deste montar é possível ver que tal proposta: continuar produzindo por soma das obras originais (1º Epístola, 2º Soneto, 3°Letra), não deixa a nova variante sem o seu compromisso de fazer pensar, pois não estamos falando aqui apenas de ―jogar‖ com as palavras mas fazê-las fazer pensar. Realmente é redundante esta última afirmação: escrita com o verbo ―fazer‖ duas vezes, mas se olharmos novamente, se ignorarmos quase a cacofonia que a repetição provoca, repararemos que a tarefa de ―fazer‖ está dividida em duas partes: alguém a faz, para depois ela obrigar a fazer. A contaminação que gera ―plena conspiração pelo formato corolário‖ de que falamos (fim da primeira página do capítulo 9.2) acontecendo bem aqui nesta tese. Sem esse comprometimento, essa criatividade, essa sutileza, que faz do gabarito mental não só o espaço de um encaixe possível, mas de um encaixe pertinente/perfeito, o fragmento consegue se manter vivo e desafiante: o ciclo autossustentado. Muitos foram os autores que usaram o gabarito mental para criar a partir de (...), só sobre a Antologia da Rã, Hai-kai de Bashô (2010), há mais de cinquenta poemas (dentro e fora do formato Hai-kai) escritos e catalogados pelo grupo Kakinet.com. Tal gabarito também é insistentemente/intensamente usado por tradutores já que as palavras não têm só tradução, mas também valor (países diferentes, culturas diferentes), e há aqueles que conseguem ir além da mera adaptação e criar realmente uma outra obra; como acréscimo disto: Leyla Perrone-Moises anotou em Aula ―a maneira como cada artista se serve dos recursos técnicos do instrumento‖ (BARTHES, 2002, p. 84). 241 E como exemplo, Paulo Leminski e nossa colaboração: YAMABÚKI YÁ HÁ NI HANÁ NI HÁ NI HANÁ NI HÁ NI Tan Taigi (1709–1771) A montanha sopra Folha em flor em flora em Flor em folha em (tradução: Leminski) (Com efeito, em japonês, flor diz-se ―haná‖ e nariz ―hana‖. O que cheira e o cheirado estão em relação trocadilhesca. LEMINSKI, 1983, p. 35) ... NEN NEN NI KÍKU NI OMOWÁN OMOWARÊN Masaoka Shiki (1867- 1902) todo ano pensando nos crisântemos sendo pensados pelos mesmos Ou, melhor, a partir dessa tradução literal NEM VEM QUE NÃO TEM EU PENSO CRISÂNTEMO CRISÂNTEMO EM MIM TAMBÉM (LEMINSKI, 1983, p. 35) UME NO HANÁ AKAI WA AKAI WÁ AKAI HANÁ Hirose Izen (?-1711) Cereja em flor Vermelha vermelha vermelha Vermelha flor (tradução: Leminski) (Nem precisa lembrar a pedra de Drummond, tantas vezes repetidas, no meio do caminho. LEMINSKI, 1983, p. 37) ... TOMBO TÔBU TOMBO NO EU MÔ TOMBO TÔBU SORÁ Idem em Horyu-ji (Templo budista) Voam libélulas Também sobre as libélulas Um céu onde voam libélulas (tradução: Leminski, 1983, p. 38) (o haikai é construído sobre o trocadilho entre libélula ―tombo‖ e voar tôbu, algo como varejam varejeiras,... (LEMINSKI, 1983, p. 38) Ou, melhor, a partir dessa explicação LINDABÉLULA VOA RASANTE SOBRE ÁGUA LAVELOZDEIRA André Lopes (1971) E por que autores (e tradutores) gostam de fazer isso? Melhor resposta que: ―Assim é como um poeta homenageia um outro poeta, produzindo poesia e nunca a reproduzindo simplesmente‖ (VERÇOSA, 1996, p. 19) ainda não encontramos. 242 As poesias experimentalistas e inquietantes dos anos trinta, quarenta e cinquenta estão cheias de exemplos sobre o gabarito mental em pleno funcionamento, e poderíamos prosseguir por estas décadas fantásticas com o gauche de Drummond e as experiências concretistas dos irmãos Campos, Décio Pignatari, Pedro Xisto, Arnaldo Antunes, se não fosse por uma ressalva feita por Barthes sobre Apolinaire “cujo material é quase um material de haicai”: A anêmona e a ancólia Cresceram no jardim Onde dorme a melancolia 1 Talvez uma enunciação? Mas ela não é “franca”. (BARTHES, 2004, p. 136) Este comentário do último livro analisado por nós (A preparação do romance vol. I), nos fez perceber que assim como o que aconteceu com o fragmento, o gabarito mental que estudamos não é ele – em si – importante. O que Barthes realmente quer, está procurando, não é beleza e tampouco variação criativa, o que ele realmente procura é o seu querido Grau zero: Sentimos que, aqui, somos retirados à beira do efeito; é precisamente o que Blanchot (Entretien) chama de Neutro: “Lembremo-nos de que o neutro seria dado numa posição de quase-ausência, de efeito de não-efeito”; estamos aqui no quase: pela escritura, algo opera, mas não é um efeito.(BARTHES, 2004, p. 140) O fragmento é um dos métodos, o Hai-kai um dos usos do método (fragmento) e o gabarito mental o lugar “geográfico” onde tudo é montado para depois virar um texto de escritura branda (Barthes chamará de branca), fora de toda ideologia. Hai-kai como uma fuga sem ser fuga, uma fuga sutil um “não estou aqui... finjam que não estou aqui”, tudo isso para criar uma “escritura branca, liberta de qualquer servidão a uma ordem fixada da linguagem” 1 “L’anémone et l’ancolie / Ont poussé dans jardim / Où DORT mélancolie.” Apolinaire, “Clotilde, Alcools, Paris, Gallimard, 1929, col. “Poésie”, 1977, p. 47. Apud Barthes, 2004, p. 136. 243 (BARTHES, 1974, p. 160). A poesia permite essa fuga, esse driblar a língua pelo uso da linguagem. O fragmento divide a palavra, a letra, permite um deslocamento de sentido por sua separação, afastamento; o Hai -kai é o estilo já existente, já praticado, que não causa estranheza, permite o deslocamento, é a justificativa/permissão para “cortar”, fragmentar; o gabarito mental é a tigela, o espaço onde se vai misturar, montar, casa do binômio: tentativa-e-erro, buscando a fuga do sentido, por uma permissão literária: Literatura. Barthes quer fugir, mas não pode, não consegue, mas não desiste; não é uma pirraça de criança é a inquietação de Heidegger: ir aonde nem mesmo Saussure foi para entender a língua. Por isso só o que realmente importa é a fuga dos sentidos, mas não a forçada, como ele mesmo já disse em A câmara clara: o punctum que está lá de propósito não interessa. Talvez por isso não tenha se interessado por poesia concreta: o tempo todo não era o fragmento, não era o gabarito mental, era apenas a busca de algo “neutro” fora de qualquer ideologia, poder. Escrever pelo prazer de escrever sim, mas sempre tentando algo novo, descompromissado, algo mais livre ainda, para nos contagiar de forma acessível, para se autoalimentar pelo espanto que uma liberdade fornece e não mera criatividade; na verdade, ou melhor: na prática, muita criatividade pode até assust ar. Melhor, então, ficar com sua inquietação, o que tentou ensinar no Colégio de França: fora do poder, “Sem dúvida ensinar, falar simplesmente, fora de toda sanção institucional” (BARTHES, 2002, p. 10). Como o melhor Hai-kai que existe é o que não se faz, apenas se deixa que venha, Barthes em A preparação do romance vol. I desenvolveu um curso sobre esta forma de fazer poema que é das mais simples, tanto por sua quantidade (três linhas), quanto por sua facilidade (sem rimas e sem título). Tudo o que ele 244 buscava se encontrava, se justificava no Hai -kai. Tudo o que não era espontâneo tinha lá sua utilidade, mas não era o que buscava, o que queria divulgar, o que queria propagar: a prática de que falava em Aula para libertar aquele que escreve, ou aquele que irá escrever. E agora que temos um novo e verdadeiro fio condutor e não apenas seus métodos, lugares de montagem e estilos; ficou o que realmente importa: a espontaneidade. Por isso as fotos que lhe interessavam eram as naturais, as que não tinham “pose”. Sua mãe, por mais que claramente tenha recebido ordens “Um pouco para frente, para que a gente possa te ver” (BARTHES, 1984, p. 102), por ser ainda criança obedeceu sem que tal obediência tenha comprometido sua espontaneidade. Por isso esta “Foto do Jardim de Inverno” (p. 110) ele não quis mostrar “Ela existe apenas para mim” (Op. cit. 1984, p. 110). Imaginem, alguém que obedeceu a um sistema de poder e ainda assim conseguiu dele fugir, por sua inocência: obedecer sem deixar de ser quem realmente é “quando muito interessaria ao studium de vocês: época, roupas, fotogenia; mas nela, para vocês, não há nenhuma ferida.” (Idem, p. 110). O que ele aprendeu com os japoneses, foi possível ver na foto de sua mãe criança: a espontaneidade criando história. Barthes acredita que conseguirá expandir o significante preconizado por Saussure e o “pensar o que ainda não foi pensado” de Heidegger pelo acidental (“Incidente”), incidente que só o espontâneo pode oferecer. Nas Escrituras Curtas faltou falar de algo que prometemos falar no fim do capítulo introdutório: a literatura alternativa de Alcoólicos Anônimos e da Igreja Messiânica. Mas por que falar disso agora? Porque estas duas literaturas pesquisadas utilizam sim a literatura de fragmentos, textos cortados, montados, 245 somente o suficiente “Quando se colocam fragmentos em sequência, nenhuma organização é possível? Sim [...]: cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas: a obra é feita somente de páginas avulsas” (BARTHES, 1977, p. 102); mais ainda agora que descobrimos o verdadeiro fio condutor de Barthes: a espontaneidade. E mais uma vez lembramos que estamos falando de inquietações geradoras de pesquisas outras, e não somente das de Barthes. E se para ele escritura curta e espontaneidade são importantes, nada mais justo que mostrar como o que ele estudou tem reflexos até os dias de hoje. Barthes não estudou sobre o que vamos falar agora (Salas de Ajuda A.A. e Igreja Messiânica), mas estudou sua fórmula, estudou o fragmento e dentro deste valorizou não somente a forma mas sua razão de existir, razão espontânea. Os objetos de pesquisa que estamos estudando agora só funcionam com o livre arbítrio (espontaneidade?). Mesmo diante de necessidades: seja por parte de adicção, ou por perturbações de outra ordem, ambas fogem do poder pela sugestão, nada é proibido, mesmo para quem sofre de dependência, tudo é sugerido, palavra que carrega consigo uma trapaça salutar. E sendo assim como não colocá-las aqui? Encontramos na Igreja Messiânica e Salas de Ajuda do A.A. (Alcoólicos Anônimos: origem de todas as outras) textos propositalmente reduzidos, feitos para serem lidos em momentos difíceis, de abstinência, desespero ou abandono; a igreja que apontamos é rica e diversificada em tal tipo de escrit a: Reminiscências, Gotas de luz e outros. Nos Alcoólicos Anônimos temos diversas cartilhas que se propagaram por outras salas, mas com suas devidas adaptações feitas: enquanto no Só por Hoje (para adictos) lemos “Evite a 246 primeira dose”, na edição para a família do adicto lemos “Evite a primeira briga”. Uma clara contaminação produzida por sua eficiência, trocando-se o necessário, e somente o necessário, se obtém o resultado pretendido: gabarito mental que substituiu fragmentos pertinentes por outros mais pertinentes, ao ponto de aceitar uma espécie de “inversão” para o que funciona em um dos lados (adicto), também funcione no lado oposto (família). E ainda dentro desta literatura econômica, e quem sabe até peculiar, mas sem dúvida eficiente e propagadora; encontramos também a parte ativa, a parte em que a pessoa “... tira então o caderninho de apontamentos, não para anotar um „pensamento‟, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso” (BARTHES, 1977, p. 102). Em tal igreja e tal sala de ajuda (AA. por ser a que originou todas as outras, só nos referiremos a ela) temos o chamado “Inventário da Fé” e “Viver o programa” sendo este último dividido em três partes (Pensamentos, Fé em alguém e Programa): Questionário da Messiânica, uso interno: 1. Como está o tamanho do meu Gá 2 e do meu apego? Consegui eliminá-lo? 2. Será que estou conseguindo pensar sempre de forma “positiva”? 3. O meu sónen 3 grande ou pequeno? Será que não preciso fazê-lo ficar maior? (Formulário de uso interno, única página, sem autor e sem data). Questionário do A.A., uso interno: Primeiras perguntas da primeira parte (Pensamentos): 1. Estou sóbrio (limpo) hoje? 2. De que maneira agi diferente? 3. A minha doença dominou minha vida hoje? Primeiras perguntas da segunda parte (Fé em alguém): 1. Falei com meu padrinho (madrinha) hoje? 2. Fui a uma reunião? 3. Partilhei minha experiência, força e esperança? 2 Uma símile do Ego freudiano; 3 Uma símile da “Lei da Atração” explicada no documentário: O Segredo (2006) do diretor Drew Heriot. 247 Primeiras perguntas da terceira parte (Programa) 1. Dei hoje algo de mim sem esperar nada em troca? 2. Senti medo? 3. Senti alegria ou dor intensa? (Dobrável de uso interno, sem autor e sem data). Sentimos uma enorme indecisão quanto a utilizar ou não fragmentos oriundos de fontes sem páginas (folha única), datação e nome de autor. Mas por outro lado não são tão difíceis assim de se obter, qualquer pessoa que queira fazer uso deste material em sua vida pode consegui -los sem muito esforço: na messiânica precisará fazer, no mínimo, curso de frequentadores (gratuito), para saber o que significa os termos usados em itálico (Gá, Sónen, e outros); para ter acesso ao dobrável, basta procurar a sala de ajuda mais próxima de sua residência pelo telefone da Central de Atendimento 4 . Também existem exemplos de diário em ambas as instituições exemplificadas e escolhidas aqui por nós. Na Messiânica existem as Reminiscências sobre Meishu-Sama (1882 – 1935), líder espiritual e fundador de tal igreja, são cinco volumes contando partes da vida de Mokiti-Okada 5 como quem lê um diário, só que diferente de Barthes, este “diário” não foi escrito por ele, na verdade é uma colet ânea de lembranças das pessoas de convívio direto com ele, e igual a Barthes, Mokiti -Okada compartilhava o gosto por fotografias: “Meishu-Sama comprou uma câmera de fácil manuseio, que, a princípio, seria para nós brincarmos. Na verdade, mais do que as crianças, foi ele quem ficou mais empolgado e acabou tirando muitas fotografias” (Fundação Mokiti Okada Vol. 1, 2004, p. 98). 4 Alcoólicos Anônimos 2253-4813 ou 2253-9283. Fonte: Listas-telefônicas, telefones úteis e de emergência. Importante: sempre que se entra em uma Sala de Ajuda deve-se se apresentar ao “secretário da sala” e dizer o motivo de sua visita, nunca tente passar despercebido, pois todos se conhecem e são atentos às visitas. 5 Meishu-Sama é seu título religioso, que traduzido para o português significa: Senhor da Luz. 248 Nos Alcoólicos Anônimos temos a biografia em filme de Bill W. (My Name Is Bill W) 6 e a biografia do Dr. Robert no livro Dr. Bob e os bons veteranos 7 , mas este filme e livro não são os mais vistos e lidos, na verdade nem recomendados são; para quem chega o programa é bem simples: “Doze Passos” para atender o individual e “Doze Tradições” para atender o coletivo. Se quem entrar fizer só o primeiro passo “Admitimos que éramos impotentes perante o álcool/ adicção, que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas” e respeitar a primeira tradição “Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar” (não faça na sala o que você não quer assist ir: brigar, xingar, falar alto) já será o suficiente. É o fragmento vencendo a doença pela sutileza. Lá, ensina-se que o programa é de apenas vinte e quatro horas, o que significa que quem acordou mais cedo está lutando contra a doença há mais tempo. Ostentar que tem muitos anos de sobriedade é coisa de quem não entendeu isso. Passada esta fase difícil (abstinência), aos poucos o “fragmento se desliza para o diário”, as experiências são trocadas como quem lê as melhores partes de um diário, ou as piores, há de tudo numa sala de ajuda. Mas o que isso tem a ver diretamente com Roland Barthes e a poesia? Diretamente com Roland Barthes há muito pouco, pois como já dissemos nunca escreveu nada sobre religião e autoajuda: Meishu Sama com Luz do Oriente e Reminiscências que se assemelham a Roland Barthes por Roland Barthes e incidentes. Considerados como exemplo de filosofia prática para a vida; Os Doze Passos e as Doze Tradições do A. A. Literatura fulcral da grande maioria dos grupos de autoajuda para o tratament o de dependências químicas ou compulsões, sendo também usado pelo Al-Anon (de forma adaptada) cujo único propósito é ajudar os familiares e amigos de adictos, ou seja, também é usado por quem não sofre de adicção; 6 My Name Is Bill W., dirigido por Daniel Petrie, 1989. 7 Direitos autorais de Alcoholics Anonymous World Services, Inc.; publicado com permissão © Alcóolicos Anônimos. A primeira edição data de 1967 e a primeira edição brasileira foi em 1988. 249 E com “poesia” menos ainda, já que estamos falando de algo que se desloca da beleza para o funcional, mas como o faz salvando vidas, acreditamos que fugimos sim, um pouco do assunto, mas não por ficarmos aquém, por ficarmos além. Realmente Barthes não era psicólogo nem analista, mas também não er a jornalista nem publicitário e, no entanto, escreveu sobre a simbiose existente entre palavra e imagem (“Ancoragem” e “Etapa”) em O óbvio e o obtuso (BARTHES, 1984, p.32-33): quando entre palavra e imagem há uma relação complementar, que se resolve na tot alidade da mensagem, como nos diálogos das histórias em quadrinhos, o verbal cumpre sua função de ETAPA. Quando as palavras explicam o que se passa nas imagens, como nas legendas das fotos jornalísticas, o verbal cumpre a função de ANCORAGEM. Um estudo sobre linguagem, não é verdade? Sim, mas o que estamos fazendo também é um estudo sobre linguagem (diferente de língua), mas em outras áreas e descobrindo semelhanças com a “fórmula” estudada por Barthes. Este sempre admirou e pesquisou o Hai-kai e com um carinho todo especial a Bashô: O império dos signos (2007, ps. 56, 94 e 95), Fragmentos de um discurso amoroso (BARTHES, 2000, p. 140) e o campeão de exemplos A preparação do romance vol I: 2005, ps.: 8 (5) p. 73 / (29) p.123 / (30) p. 130 / (32 e 33) p. 133 / (38 e 39) p. 137 / (40) p. 138 / (41) p. 139 / (42) p. 140 / (43) p. 148 / (52) p. 162 / (54) p. 163 / (55) p. 164 / (63) p. 173 / (66) p. 177. E se ele conhecia Matsuo Bashô (1644-1694), também conhecia seu Diário de viagem “Oku no hosomichi, gênero muito antigo e popular na literatura japonesa.” 8 No livro há a seguinte observação: No fascículo distribuído por Roland Barthes, cada haicai está numerado. Repetimos essa numeração ao lado de cada poema, entre parênteses. Essa numeração permite, por vezes, a Barthes, mencionar apenas o número do haicai que ele está comentando. (BARTHES, 2005, p. 62) 250 (VERÇOSA, 1996, p. 50). E se por um lado não escreveu sobre tal diário, por certo concordava que assim como Gide, o diário em si não importava, importante foi a vida que teve “(é a vida de Gide que é uma „obra‟, não o seu Diário)” (BARTHES, 2004, p.459). Mas por que as pessoas escrevem diários? O estudioso da literatura japonesa, Donald Keene diz que "para os historiadores significa resgatar do esquecimento os insignificantes dias" 9 . Barthes diz algo parecido quando, dentro de mais um insignificante dia, relembra melhor o que não está escrito, mas que por intermédio do escrito vem à tona toda uma maga de lembranças que não foram escritas: “mas, coisa curiosa, ao relê-lo, aquilo que melhor revivia era o que não estava escrito” (BARTHES, 2004, p. 457). E vai dizer também em um fragmento que quando um diário era escrito “sem repugnância, chamavam-no um diaire :diarrhée e glaire (diarreia e ranho)” (BARTHES, 1977, p.103). Mas como julgar? Quem terá mais “ranho” o diário de um alcoólatra que escreve como está vencendo a doença ou o diário de um médico que estuda “de fora” a doença que atormentou os que a conhecem “por dentro”? Nas salas de ajuda há toda uma troca de experiências feita de forma oral. Mas também há literaturas que reproduzem certas experiências, como se algumas páginas de diário se tornassem públicas para ajudar aqueles que estão passando por dificuldades, literatura funcional sim, mas também espontânea, fragmentada e muito interessante, verdadeiras novelas da vida real. Nas experiências lidas e ouvidas percebe-se que, grosso modo, a salvação é uma “escada” de três degraus, onde se recomenda o movimento de cima para baixo: primeiro o espiritual (Poder Superior), segundo o emocional (onde entra a 9 Tai Suzuki, professor da Universidade de Tokyo. Fonte: São Paulo Shimbun 07/02/2002. Disponível em: http://www.fjsp.org.br/aquarela/ling_35a.htm. Acessado em 22/07/2010. 251 simbiose da “sala” com a troca de experiências com a “sala” do psicoterapeuta) e terceiro o físico (onde entra o profissional da medicina com seu conhecimento “químico” para aplacar/acalmar a fissura) 10 . Então tal “ranho” e “diarreia” só existiriam quando quiserem classificar em “bom” ou “mal” determinado texto (ou fragmento de texto), ou usar na hora errada 11 . Preocupação tipicamente barthesianas: Mundo onde o Sintagma é negado: nenhuma ligação possível – emergência do imediato absoluto: o haicai = desejo imediato (sem mediação), portanto, a função legal da Classificação (= sempre uma lei) é perturbada – Resta lembrar o quanto essa perturbação é moderna, responde a uma preocupação atual: os Fragmentos, claro, mas também as artes do aleatório (perigo: que o aleatório não se torne seu próprio signo). (BARTHES, 2005, p. 68). Talvez por isso os cofundadores de Alcoólicos (Bill W. e Dr. Bob) nunca requereram para si qualquer tipo de honraria. Eles não queriam se tornar um “signo” que, em si, seria inútil, nada deveria ser mai s sagrado que o simples desejo de parar a doença (adicção): não ir à primeira doze, só por hoje (programa eterno de 24Hs). 10 Os Doze Passos intercalam num vaivém, que estudamos, todos estes três degraus: o espiritual (2º Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade, 3º Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos, 6° Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter, 7° Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições, 11° Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar), emocional (1° Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas, 8° uni o emocional ao físico: Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados, 10° Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós admitíamos prontamente) e o físico (sem medicação, só ação: 9° Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo signifique prejudicá-las ou a outrem, 12° Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades). O 5° passo é uma simbiose entre espiritual, emocional e físico: Admitimos perante Deus (espiritual), perante nós mesmos (emocional) e perante outro ser humano (físico), a natureza exata de nossas falhas. 11 A ordem (sentido) sugerida é: de cima para baixo, ou seja, do espiritual para o físico passando pelo emocional, mas dependendo do grau de sofrimento se faz necessário uma intervenção de urgência no plano físico (medicação) seguida de emocional (internação psiquiátrica) e só depois que se passar a urgência, o espiritual: agradecer a Deus. E como podemos observar o caminho inverso é o caminho mais dramático. 252 Esperamos ter mostrado por estas linhas de pesquisa que tanto a Escritura Curta quanto o Diário ainda estão vivos e evoluindo. Proposta de se autoalimentar ainda existente, prova que ainda surpreendem. O que descobrimos nesta tese sobre o Fragmento Barthesiano foi que há outras palavras que merecem realmente especial atenção além da nossa: Fragmento - método; Gabarito Mental - lugar onde ocorre; Sutileza - estilo que a literatura absorve; Espontaneidade - sem ela, Barthes acredita que o texto perde; Hai-kai - prova física de que pode existir tudo isso junto. Palavras novas, à nossa lista, descobrimos mas as pesquisamos pouco, pois o que nos interessava no momento era a primeira. E por isso acreditamos que ainda há muito o quê estudar dentro destas novas, e esperamos que elas criem inquietações nos corações dos futuros pesquisadores, assim como a “fragmento” inquietou a nós. E para concluir, à maneira barthesiana, um fragmento de história: reza a lenda que Galileu Galilei (1564-1642) após sua sentença (que não o condenou à morte, mas censurou todos os seus livros) ao sair do tribunal, que o obrigou a desmentir tudo em que acreditava, viu seus discípulos à porta e ao perceber que estavam chorando disse a célebre frase: " Eppur si muove!" Frammento Barthesiano Hai-kai si muove. 12 12 “Contudo (ela) se move / Fragmento barthesiano / Hai-kai se move”, traduzido do italiano. 253 7. Referência bibliográfica BARTHES, Roland. A preparação do romance Vol. I; texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Léger; tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 2005. BARTHES, Roland. Aula, 10ª Edição, Tradução e posfácio de Leyla Perrone- Moisés, São Paulo: Cultrix, 2002. BARTHES, Roland. Câmara clara: Nota sobre a fotografia. Trad. de Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BARTHES, Roland. 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O Neutro. Martins Fontes (2003) ISBN: 8533619189 __________. Como Viver Junto. Martins Fontes (2003) ISBN: 8533619197 __________. Mitologias. Difel (2003) ISBN: 857432048x __________. Roland Barthes por Roland Barthes. Estação Liberdade (2003) ISBN: 8574480754 __________. O Rumor da Língua. Martins Fontes (2004) ISBN: 8533619863 __________. Grão da Voz. Martins Fontes (2004) ISBN: 8533619936 __________. Incidente. Martins Fontes (2004) ISBN: 8533620454 __________. O Grau Zero da Escrita. Martins Fontes (2004) ISBN: 8533619618 __________. Inéditos. IV volumes. Martins Fontes (2004) - (2005) ISBN: 8533620195 261 __________. A Preparação do Romance II Volumes – Martins Fontes (2005) ISBN: 8533622007 __________. Sade, Fourier, Loiola. Martins Fontes (2005) ISBN: 8533620780 __________. Escritos Sobre o Teatro. Martins Fontes (2007) ISBN: 8533623518 __________. Império dos Signos. Martins Fontes (2007) ISBN: 8560156410 __________. Aventura Semiológica. Martins Fontes (2008) ISBN: 8533614306 __________. Sobre Racine. Martins Fontes (2008) ISBN: 857827038x __________. Crítica e Verdade. Perspectiva (2009) ISBN: 8527302012 __________. Sistema da Moda. Martins Fontes (2009) ISBN: 857827055x 262 8 BIBLIOGRAFIA DE ROLAND BARTHES (em ordem cronológica) E FRAGMENTOS CONTENDO “FRAGMENTO” 264 vezes em 20 livros de Roland Barthes Incluindo suas derivações: fragmenta, fragmentar, fragmentação, fragmentado, fragmentário, fragmentariamente, fragment (Fr) Le Deré zéro de l‟écriture, 1 Paris, Éd. Du seuil, ―Pierres vives‖, 1953 Essais critiques, 1 Paris, Éd. Du seuil, ―Tel Quel‖, 1964 Nouveaux essais critique, 1 Em livro de bolso com Le Deré zéro de l‟écriture Paris, Éd. Du seuil, ―Points‖, 1972 OBRA NÚMERO 1 UTILIZADA NA TESE NOVOS ENSAIOS CRÍTICOS Seguidos de O GRAU ZERO DA ESCRITURA Éditions du Seuil, 1953 e 1972 No Brasil EDITORA CULTRIX MCMLXXIV (1974). 1 A primeira obra respeita a ordem cronológica, mas as duas seguintes não, por motivo de fusão em uma única. Estas serão repetidas para efeito de localização na ordem cronológica proposta. 263 LA ROCHEFOUCULD: REFLEXÕES OU SENTENÇAS E MÁXIMAS” Essas duas leituras são contraditórias, pois na coletânea de máximas, o discurso fracionado permanece um discurso fechado; materialmente, por certo, é preciso optar pela leitura por máximas ou pela leitura de enfiada e o efeito será oposto, retumbante num caso, sufocante no outro; mas o futuro mesmo do descontínuo e da desordem da obra é a máxima transformada, de certa forma, em arquétipo de todas as máximas; existe uma estrutura ao mesmo tempo única e variada; em outras palavras, parece acertado colocar em lugar da crítica de desenvolvimento, da composição, da evolução, eu chegaria quase a dizer do contínuo, uma crítica da unidade sentencial, de seu traçado, numa palavra: de sua forma; é sempre à máxima, e não às máximas, quer se deve voltar. (p. 9) [...] As reflexões são fragmentos de discurso, textos desprovidos de estrutura e de espetáculo; através delas, uma linguagem fluida, contínua, isto é, exatamente o oposto desta ordem verbal, bastante arcaica, é que rege o traçado da máxima. (p. 10) Já a máxima vai além: agrada-lhe repetir um termo, sobretudo quando esta repetição pode marcar uma antítese: ―Chora-se para evitar a vergonha de não chorar‖; esta repetição pode ser fragmentária, permitindo que se repita uma parte da palavra sem repetir a palavra em si mesma: ―O interesse fala todas as línguas e desempenha todos os papéis, até mesmo o do desinteressado‖; voltando à explicação dos lingüistas, diremos que a oposição do sentido é ainda mais flagrante por vir sustentada por um acidente verbal perfeitamente limitado: a oposição entre interesse e desinteressado vem apenas de um prefixo. O conceito está sem dúvida em jogo; mas este jogo está a serviço de uma técnica muito antiga, a do sentido; de modo que escrever bem consiste em saber jogar com as palavras, o que leva fatalmente para mais perto do traçado oposicional que rege fundamentalmente o nascimento de uma significação. (p. 18) AS PRANCHAS DA “ENCICLOPÉDIA” [...] Formalmente (o que é muito perceptível nas pranchas) a propriedade depende essencialmente de um certo fracionamento das coisas: apropriar-se é fragmentar o mundo, é dividi-lo em objetos, sujeitos ao homem na proporção mesma de seu descontínuo; pois não se pode separar sem terminar designando e classificando, e daí nasce a propriedade. (p. 30) 264 [...] A Enciclopédia procede incessantemente a uma ímpia fragmentação do mundo: entretanto, o que chega a encontrar ao término de todo este quebrar não é o estado fundamental das causas puras; as mais das vezes, a imagem a obrigar a recompor um objeto que é na verdade um contra-senso; uma vez dissolvida a primeira natureza, surge uma outra, tão constituída quanto a primeira. Numa palavra: a fratura do mundo é impossível: basta um olhar – o nosso – para que o mundo se torne eternamente pleno ( 1 ). 1. ―Image, raison et déraison‖, em: L‟univers de l‟Encyclopédie, 130 pranchas da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, Libraires associes, 1964. (p. 41) CHATEAUBRIAND: “VIE DE RANCE” Nada mais sou, a não ser o tempo. Vie de Rancé. Parece ser esta a experiência inicial da Vie de Rancé: uma paixão infeliz, não a de envelhecer, e sim a de ser velho, inteiramente transferido para o lado do tempo puro, para esta região do profundo silêncio (escrever não é falar), de onde o verdadeiro eu aparece distante, anterior (Chateaubriand avalia a sua dor de ser pelo fato de poder agora citar-se). Compreende-se que, com um ponto de partida como este, Chateaubriand tenha sido compelido a imiscuir -se constantemente na vida do Reformador, de quem, entretanto, ele só pretendera ser um piedoso biógrafo. Estes entrelaçamentos são banais: como é possível narrar alguém sem se projetar nesse alguém? Mas justamente: a intervenção de Chateaubriand não é, a bem dizer, de modo algum projetiva (ou pelo menos seu projeto é muito particular); existem por certo algumas semelhanças entre Rancé e Chateanbriand; sem falar numa "estatura" comum, o afastamento mundano de Rancé (sua conversão) sobrepõe-se à separação do mundo imposta (miticamente) a Chateaubriand pela velhice: ambos possuem um após-vida; o de Rancé, porém, é voluntariamente mudo, nele a recordação (de sua juventude brilhante, letrada, amorosa) só pode falar justamente pela voz de Chateaubriand que deve recordar pelos dois; daí vêm os entrelaçamentos, que não são de sentimentos (Chateaubriand, na verdade, sente pouca simpatia por Rancé) mas sim de recordações. A imisção de Chateaubriand na vida de Rancé, portanto, não é de modo algum difusa, sublime ou imaginativa, "romântica" numa palavra (Chateaubriand não deforma, por exemplo, Rancé para nele se encaixar), sendo pelo contrário fracionária e abrupta. Chateaubriand não se projeta, ele superimprime-se, mas como o discurso é aparentemente linear, sendo-lhe 265 "difícil toda operação de simultaneidade, o autor só pode forçar sua entrada, fragmentariamente, numa vida que não é a sua; a Vie de Rance não é uma obra bem vazada: é uma obra partida (agrada-nos esta "queda" incessante); de maneira contínua, porém sempre breve, o fio do Reformador é interrompido em benefício de alguma súbita recordação do narrador: Rancé chega a Comminges depois de um tremor de terra: foi assim que Chateaubriand chegou a Granada; Rancé traduz Doroteu: Chateaubriand contemplou entre Jafa e Gaza o deserto onde viveu o santo; Bossuet e Rancé passeavam pela Trapa depois das Vésperas. "Ousei profanar com os passos que me ajudaram a sonhar René, o molhe onde Bossuet e Rancé conversavam sobre coisas divinas"; para afogar em suor os seus pensamentos, São Jerônimo transportava sacos de areia às margens do Mar Morto. "Percorri eu próprio aquelas estepes, vergado ao peso do meu espír ito". Existe neste esmiuçamento fracionado, que é justamente o oposto de uma assimilação, e por conseguinte de uma "criação", de acordo com o sentido corrente, algo de não aplacado, como uma estranha ressaca: o eu é inesquecível: sem jamais absorvê-lo, Rancé deixa periodicamente transparecer Chateaubriand: nenhum outro autor jamais se anulou tão pouco;_ há algo de duro nesta Vie, toda feita de estilhaços, de fragmentos combinados mas não fundidos; Chateaubriand não se sobrepõe a Rancé: ele o interrompe, prefigurando desta maneira a literatura do fragmento, na qual as consciências inexoravelmente separadas (do autor e do personagem) já não adotam hipocritamente uma mesma voz compósita. Com Chateaubriand, o autor enceta a sua solidão: o autor não é o personagem: institui-se uma distância que Chateaubriand assume sem a ela resignar-se; daí todos aqueles retornos que conferem à Vie de Rancé uma vertigem peculiar. (p.45-46) A CABEÇA CORTADA A Vie de Rancé, com efeito, é composta de maneira irregular; por certo, as quatro partes principais seguem, de um modo geral, a cronologia: juventude mundana de Rancé, sua conversão, sua existência na Trapa, sua morte; se descermos porém ao nível dessas unidades misteriosas do discurso, ainda mal definidas pela estilística e que são intermediárias entre a palavra e o capítulo (por vezes uma frase, por vezes um parágrafo), teremos um permanente fracionamento do sentido, como se Chateaubriand não conseguisse nunca eximir-se - de voltar-se subitamente para "outra coisa" (será então o autor um desatento?); esta desordem se torna sensível na apresentação dos retratos (muito numerosos na Vie de Rancé); nunca se sabe em que momento Chateaubriand vai falar de alguém; a digressão é imprevisível, sua conexão com o fio da narrativa sempre tênue e repentina; assim, ofereceu-se a Chateaubriand diversas vezes a 266 oportunidade de falar sobre o cardeal de Retz por ocasião da juventude desafiadora de Rancé; no entanto, o retrato de Retz só aparece muito depois da Fronda, no momento de uma viagem de Rancé a Roma. A propósito daquele século XVII que ele tanto admirava, refere-se Chateaubriand àqueles "tempos em que nada tinha sido ainda classificado", sugerindo assim o barroco profundo do classicismo. A Vie de Rancé participa também de um certo barroco (tomada aqui esta expressão sem rigorismo histórico) na medida em que o autor concorda em combinar sem estruturar de acordo com os cânones clássicos; há em Chateaubriand uma exaltação da ruptura e da ramificação. Embora este fenômeno não seja pro riam ente estilístico, já que lhe é possível exceder os limites e uma simples frase, podemos atribuir-lhe um modelo retórico: o anacoluto, que é ao mesmo tempo quebra da construção e o surgimento de um novo sentido. Como se sabe, no discurso ordinário, o relacionamento das palavras está sujeito a uma certa probabilidade. Esta probabilidade corrente é rarefeita por Chateaubriand; que probabilidade pode haver de aparecer a palavra alga na vida de Marcelle de Castellane? No entanto, Chateaubriand lança-nos de repente, a propósito da morte dessa jovem senhora: "As moças da Bretanha deixam-se afogar nas praias, depois de se atarem às algas de um rochedo". O jovem Rancé é um prodígio em grego: que relação terá isto com a palavra luva? Contudo, em duas palavras, estabelece-se a relação (o jesuíta Caussin põe à prova o menino escondendo o seu texto com as luvas). Por intermédio este desvio ilustrado, o que irrompe no discurso é sempre uma substância surpreendente ( alga, luva). A palavra literária (visto ser dela que se trat a) aparece assim como um destroço imenso e suntuoso, como um resquício fragmentário de uma Atlântida onde as palavras, saturadas de cor, de sabor e de forma de qualidades em suma e não de idéias, brilhariam como estilhaços de um mundo direto, impensado, que nenhuma lógica viria embaçar, ou encher de tédio: no fundo, o sonho do escritor é ver as palavras pendente como belos frutos da árvore indiferente da narrativa; poder-se-ia dar-lhe como símbolo o anacoluto surpreendente que leva Chateaubriand a falar em laranjeiras a propósito do cardeal de Retz ("ele viu em Saragoça um padre a caminhar sozinho por ter sepultado o seu paroquiano empestado. Em Valença, as laranjeiras compunham as paliçadas dos caminhos, Retz respirava o ar que respirara Vannozia"). Uma mesma frase dirige vários mundos (Retz e Espanha) sem se dar ao trabalho de interligáIos. Graças com efeito a esses anacolutos preeminentes, o discurso se estabelece em profundidade: a língua humana parece recordar, invocar, receber uma outra língua (a dos deuses, como se diz no Crátilo). O anacoluto constitui por si só, com efeito, uma ordem, uma ratio, um princípio; o de Chateaubriand talvez 267 inaugure uma nova lógica, muito moderna, operada apenas pela extrema rapidez do verbo, sem a qual o sonho não teria podido investir nossa literatura. Esta parataxe desvairada, este silêncio das articulações acarreta, evidentemente, conseqüências muito sérias para a economia geral do sentido: o anacoluto obriga a procurar o sentido, fazendo-o "estremecer" sem o deter; o sentido vagueia de Retz para as laranjeiras de Valença, sem chegar a fixar -se; uma nova rutura, um novo impulso leva-nos para Majorca onde Retz "ouviu mulheres piedosas junto à grade do convento: estavam cantando"; qual a relação? Em literatura, tudo é assim dado a entender, no entanto, tal como em nossa própria vida no final não há nada que entender. (p. 47-48) PIERRE LOTI: “AZIYADÉ” [...] Contudo, de outra região da literatura, ergue-se alguém para nos dizer que é sempre preciso reverter o desengano do nome próprio e transformar este retorno em trajeto de uma aprendizagem: o narrador proustiano, partindo da glória fonética dos Guermantes, encontra no universo da duquesa algo muito diverso daquilo que o esplendor alaranjado do Nome dava a entender, e foi ao inverter a decepção de seu narrador que Proust chegou a escrever a sua obra. Talvez possamos aprender a desiludir o nome de Aziyadé de maneiraproveitosa, e depois de deslizar do nome precioso para a imagem triste de um romance fora de moda, remontar em direção à idéia de um texto: fragmento da linguagem infinita que nada relata mas pelo qual perpassa ―algo de inédito e de tenebroso‖. (p. 100) O GRAU ZERO DA ESCRITURA O QUE É A ESCRITURA? [...] Por isso, o estilo é sempre um segredo; mas a vertente sil enciosa de sua referência não provém da natureza móvel e constantemente condicional da linguagem; seu segredo é uma lembrança encerrada no corpo do escritor; a virtude alusiva do estilo não é um fenômeno de velocidade, como na fala, onde o que não se diz permanece, mesmo assim, um ínterim, mas um fenômeno de densidade, pois aquilo que se mantém erguido e profundo sob o estilo, congregado dura ou ternamente nas suas figurar, são os fragmentos de uma realidade completamente estranha à linguagem. (P. 123) 268 ESCRITURAS POLÍTICAS Como se vê, trata-se de uma verdadeira tautologia, processo constante na escritura estalinista. Esta, com efeito, não visa a fundamentar uma explicação marxista dos fatos ou uma racionalidade revolucionária dos atos, mas a dar o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura imediata das condenações: o conteúdo objetivo da palavra ―desviacionista‖ é de ordem penal. Se dois desviacionistas se reúnem, tornam-se ―fraccionistas‖, o que não corresponde a um delito objetivamente diferente, mas a uma agravação da penalidade. Pode-se distinguir uma escritura propriamente marxista (a de Marx e Lenine) e uma escritura do estalinismo triunfante (a das democracias populares); existe também certamente , uma escritura trotskista e uma escritura tática, que é, por exemplo, a do consumismo francês (substituição de ―classe operária‖ por ―povo‖, e depois por ―gente honeta‖, ambigüidade voluntária dos termos ―democracia‖, ―liberdade‖, ―paz‖, etc.). (p. 130) A ESCRITURA E O SILÊNCIO [...] Essa arte tem a estrutura mesma do suicídio: nela, o silêncio é um tempo poético homogêneo, que aperta a palavra entre duas camadas e a faz explodir não como fragmento de um criptograma, mas sim como uma luz, um vazio, uma assassínio, uma liberdade. (sabe-se o quanto tal hipótese de um Mallarmé assassino da linguagem deve a Maurice Blanchot.) essa linguagem mallarmeana é Orfeu que só pode salvar o que ama renunciando a ele, mas que assim mesmo olha um pouco para trás; é a Literatura às portas da Terra prometida, ou seja, às portas de um mundo sem Literatura, mas do qual caberia aos escritores dar testemunho. (p. 160) 269 Michelet par lui-même Paris : Éd. du Seuil, 1954 ―Écrivains de toujours‖, 1954 OBRA NÚMERO 2 UTILIZADA NA TESE MICHELET Miochelet / Roland Barthes.: tradução Paulo Neves, São Paulo: Companhia das Letras, 1991 ―[...] Nesse exército de reis , de príncipes, havia entre outros soberanos, o duque de Weirmar, e junto com ele, seu amigo, o príncipe do pensamento alemão, o célebre Goethe. Ele tinha vindo ver a guerra, e pelo caminho, no fundo de um furgão, escrevia os primeiros fragmentos do Fausto, que publicou ao retornar. (p. 161). O DIÁRIO Alguns fragmentos do Journal de Michelet foram publicados por Gabriel Monod em duas obras que dedicou a Michelet; mas o Journal intime, em sua integralidade, legado ao Institut pela viúva de Michelet, não pôde ser liberado antes de 1950. Essa publicação começou em 1959, nas edições Gallimard, aos cuidados de Paul Viallaneix: Écrts de jeunesse (Diário de 1820-3, Memorial, Diário das idéis); Journal, t. I(1828-48); e Journal,t. II (1849-60). (p. 196). 270 Mythologies, Paris, Éd. Du seuil, ―Pierres vives‖, 1957 OBRA NÚMERO 3 UTILIZADA NA TESE MITOLOGIAS Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO 1972 O MITO COMO SISTEMA SEMIOLÓGICO Efetivamente, como estudo de uma fala, a mitologia é apenas um fragmento dessa vasta ciência dos signos que Saussure postulou há cerca de quarenta anos sob o nome de semiologia. A semiologia ainda não se constituiu. No entanto, desde o próprio Saussure, e por vezes independente do seu trabalho, todo um setor da pesquisa contemporânea retoma incessantemente o problema da significação: a psicanálise, o estruturalismo, a psicologia eidética, certas novas tentativas de crítica que Bachelard inaugurou, pretendem estudar o fato apenas na medida em que ele significa. Ora, postular uma significação, é recorrer à semiologia. Não quero dizer com isto que a semiologia cubra integralmente todas as pesquisas; elas t êm conteúdos diferentes. Mas têm um estatuto comum, são todas elas ciências dos valores; não se contentam em circunscrever o fato: definem-se e exploram-se como um valor da equilavência. (p. 133) A SIGNIFICAÇÃO Falta examinar um último elemento da signi ficação: a sua motivação. Sabe-se que, na língua, o signo é arbitrário: nada obriga ―naturalmente‖ a imagem acústica árvore a significar o conceito árvore: o signo, neste caso, é imotivado. No entanto, este arbitrário tem limites, que derivam das relações associativas da palavra: a língua pode produzir um fragmento do signo por analogia com outros signos (por exemplo diz-se aimable e não amable, por analogia com aime). Quanto á significação mítica, não é nunca completamente 271 arbitrária, é sempre em parte motivada, contém fatalmente uma parte de analogia. Para que a exemplaridade latina coincida com a denominação do leão, uma analogia é necessária: a concordância do atributo: para que a imperialidade francesa se apodere do negro que faz a saudação militar do negro e a saudação militar do soldado francês. A motivação é necessária à própria duplicidade do mito; o mito joga com a analogia do sentido e da forma: não existe mito sem forma motivada 7 ( 7 ) Do ponto de vista ético, o que é incômodo no mito é precisamente o fato da sua forma ser motivada. Pois, se existe uma ―saúde‖ da linguagem, é o arbitrário do signo que a fundamenta. O que é repulsivo, no mito, é o recorrer a uma falsa natureza, é o luxo das formas significativas – como esses objetos que decoram a sua utilidade com uma aparência natural. Esse desejo de oferecer à significação o peso, a caução de toda a natureza, provoca uma espécie de náusea; o mito é demasiado rico, e o que ele tem a mais é, precisamente, a sua motivação. Esta náusea é a mesma que sinto perante as artes que não decidem escolher entre a physis e a anti-physis, utilizando a primeira como ideal, e a segunda como economia. Eticamente, é uma baixeza jogar simultaneamente nos dois campos. (p. 147) A motivação é fatal. No entanto, não deixa de ser muito fragmentária. Para começar não é ―natural‖: é a história que fornece à forma as suas analogias. Por outro lado, a analogia entre o sentido e o conceito é sempre apenas parcial: a forma renuncia a muitos análogos, conservando apenas alguns: conserva o telhado inclinado, as vigas aparentes do chalé basco, abandona a escada, a granja, a pátina etc. devemos mesmo ir mais longe: uma imagem total excluiria o mito, ou pelo menos, obriga-lo-ia a considerá-la apenas na sua totalidade: este último caso é o da má pintura, toda ela baseada no mito do ―cheio‖ e do ―acabado‖ (é o caso inverso, mas simétrico do mito do obsurdo, onde a forma mitifica uma ―ausência‖; no caso da pintura mitifica um excesso de presença). Mas em geral, o mito prefere trabalhar com imagens pobres, incompletas, onde o sentido está já diminuído, disponível para uma significação: caricaturas, pastiches, símbolos etc. (p. 148) A BURGUESIA COMO SOCIEDADE ANÔNIMA Este fenômeno de subtração da denominação é importante e é preciso examiná-lo um pouco mais detalhadamente. Politicamente, a hemorragia do nome burguês produz-se através da idéia de nação. Foi uma idéia progressiva, 272 em tempos, que serviu para excluir aristocracia: hoje, burguesia diluiu-se na nação, mesmo que, para isso, sej a necessário rejeitar os elementos que ela considera alógenos (os comunistas). Este sincretismo dirigido permite que a burguesia recolha a caução numérica dos seus aliados temporários: todas as classes intermediárias, logo ―informes‖. Um uso prolongado não conseguiu despolitizar profundamente a palavra ―nação‖; o substrato político permanece, bem próximo, prestes a manifestar-se subitamente: existem, na Câmara, partidos ―nacionais‖, e o sincretismo nominal ostenta assim o que pretendia esconder: uma disparidade essencial. Assim, o vocabulário político da burguesia já que existe um universal: nela, a política é já uma representação, um fragmento de ideologia. (p. 159) Existem, sem dúvida, certas revoltas contra a ideologia burguesa. Constituem aquilo a que se chama, de um modo geral, a vanguarda. Mas tais revoltas são socialmente limitadas, permanecem recuperáveis. Para começar, porque provêm de um fragmento da própria burguesia, de um grupo minoritário de artistas e de intelectuais, sem outro público que a própria classe que contestam, e que dependem, ainda, do dinheiro dessa mesma classe para se poderem exprimir. E, demais, estas revoltas inspiram-se sempre numa distinção muito nítida entre o burguês ético e o burguês político: o que a vanguarda contesta é o burguesismo da arte e da moral; é, como nos belos tempos do romantismo, o merceeiro, o filistino; mas contestação política, nenhuma 18 . (18) Vale a pena assinalar que os adversários éticos (ou estéticos) da burguesia se mantêm, na maioria, indiferentes, senão mesmo ligados às suas determinações políticas. Inversamente os adversários políticos da burguesia omitem a condenação profunda das suas representações: chegam mesmo, freqüentemente, a colaborar nelas. Esta ruptura entre os ataques é proveitosa para a burguesia, permite-lhe confundir o seu nome. Ora, a burguesia só deveria ser compreendida como síntese das suas determinações e das suas representações. (p. 160). 273 Sur Racine, Paris, Éd. Du seuil, ―Pierres vives‖, 1963 OBRA NÚMERO 4 UTILIZADA NA TESE SOBRE RACINE Sobre Racine / Roland Barthes: tradução Ivone Castilho Benedetti: revisão da tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes 2008 [...] Esta é a terceira função do espaço exterior: manter o ato numa espécie de quarentena, em que só pode penetrar uma população neutra, encarregada de fazer a triagem dos acontecimentos, de extrair de cada um deles a essência trágica e de só trazer à cena fragmentos de exterior purificados sob o nome de notícias, enobrecidos sob o nome de relatos (batalha, suicídios, retornos, assassinatos, festins, prodígios). (p. 8-9). [...] A relação de autoridade, ao contrário, é constante e explícita; não afeta apenas um mesmo par ao longo de uma tragédia; pode revelar -se fragmentariamente aqui e ali; é encontrada em formas variadas, ampliadas, às vezes quebradas, mas nem sempre reconhecíveis: por exemplo, em Bajazet, a relação de autoridade se desdobra: Amurat tem todo o poder sobre Roxana, que tem todo o poder sobre Bajazet. (p. 31). [...] Agrada-lhe porque apresenta um sentido descontínuo, bem de acordo com aquela vontade de antologia de que acabo de falar; e incomoda-o porque esse sentido fragmentário, antológico, é por ela recitado, ou seja, sustentado por uma respiração artificial. (p. 172). Essa arte pontilhista baseia-se numa ilusão geral: não só o ator acredita que seu papel é correlacionar uma psicologia e uma lingüística, em conformidade com o preceito inextirpável de que as palavras traduzem o 274 pensamento, como também imagina essa psicologia e essa lingüística fragmentada por natureza, composta de elementos descontínuos que se correspondem de uma ordem à outra de se corresponder entre si: para ele, cada palavra se torna uma tarefa (e que trabalho ele tem), quer a todo custo manifestar uma analogia entre substância musical e o conceito psicológico. (p. 173). Essa fragmentação das significações tem o objetivo de mastigar, de algum modo, o trabalho intelectual do ouvinte: o ator se acredita encarregado de pensar por ele. (p. 173). Esse sucesso decorre de duas desmistificações: Cuny não fragmenta o sentido, não canta o alexandrino; sua dicção é definida por um estar-ali puro e simples da fala. (p. 179). [...] Fora dos sistemas, mil abordagens de um saber e de uma engenhosidade admiráveis, mas, ao que parece, como derradeiro pudor, sempre fragmentárias, pois o historiador da literatura encerra o assunto assim que se aproxima da história verdadeira: de um continente ao outro, trocam-se alguns sinais, ressaltam-se algumas conivências. (p. 186-187). [...] Em A terra bebe o sangue de Erecteu haverá um colorido mitológico, um rasgo preciosista ou um fragmento de fantasia propriamente raciniana? (p. 202) 275 Élements de sémiologie, Em livro de bolso com Le Deré zéro de l‟écriture, Paris, Gonthier, 1965 OBRA NÚMERO 5 UTILIZADA NA TESE ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA 10ª EDIÇÃO Tradução de: Izidoro Blikstein EDITORA CULTRIX, São Paulo, 1993 INTRODUÇÃO Assim, apesar de trabalhar, de início, com substâncias não-lingüísticas, o semiólogo é levado a encontrar, mais cedo ou mais tarde, a linguagem (a ―verdadeira‖) em seu caminho, não só a título de modelo mas também a título de componentes, de mediação ou de significado. Essa linguagem, entretanto, não é exatamente a dos lingüistas: é uma segunda linguagem, cujas unidades não são mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso: estes remetem a objetos ou episódios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela. (p. 12) II.2 O Significado [...] Voltamos assim justamente a uma definição puramente funcional: o significado é um dos dois relata do signo; a única diferença que o opõe ao significante é que este é um mediador. No essencial, a situação não poderia ser diferente em semiologia, em que objetos, imagens, gestos etc., tanto quanto sejam significantes, remetem a algo que só é dizível por meio deles, salvo esta circunstancia segundo a qual os signos da língua podem encarregar -se do significado semiológico; diremos, por exemplo, que tal suéter significa os longos passeios de outono nos bosques; neste caso, o significado não é somente mediatizado por seu significante indumentário ( o suéter), mas também por um fragmento de palavra ( o que é uma grande vantagem para manejá-lo); poderíamos dar o nome de isologia ao fenômeno pelo qual a língua ―cola‖, de 276 modo indiscernível e indissociável, seus significantes e significados, de maneira a reservarmos o caso dos sistemas não-isólogos (sistemas fatalmente complexos), em que o significado pode simplesmente ser justaposta a seu significante. (p. 46-47) III.2.3. [...] A prova de comutação consiste em introduzir artificialmente uma mudança no plano de expressão (significante) e em observar se essa mudança acarreta uma modificação correlativa do conteúdo (significados); trata-se, em suma, de criar uma homologia arbitrária, isto é, um duplo paradigma, num ponto do texto ―sem fim‖ para verificar se a substituição recíproca de dois significantes leva ipso facto à substituição recíproca de dois significados; se a comutação dos dois significantes produzir uma comutação dos significados, estaremos certos de possuir, no fragmento de sintagma submetido á prova, uma unidade sintagmática: o primeiro signo foi recortado. (p. 69-70) III.2.4. A prova de comutação, em princípio 69 , unidades significativas, isto é, fragmentos de sintagma dotados de um sentido necessário; são ainda, por ora, unidades sintagmáticas, já que não as classificamos ainda: mas é certo que já são também unidades sistemáticas, pois cada uma delas faz parte de um paradigma virtual: Sintagma a b c etc. a’ b’ c’ a‖ b‖ c‖ Sistema (69) Em princípio, pois é preciso reservar o caso das unidades distintivas da segunda articulação; cf. infra, mesmo parágrafo. (p.71) 277 [...] Não é possível, enfim, que encontremos sistemas de certo modo ―erráticos‖, nos quais espaços inertes de matéria suportassem aqui e acolá não somente descontínuos mas ainda separados: os sinais do código de transito ―em ato‖ são separados por longos espaços insignificantes (fragmentos de estradas ou ruas); poderíamos falar então de sintagmas (provisoriamente) mortos 73 . (73) É talvez o caso geral dos signos de conotação (infra, cap. IV). (p. 73) III.3.7. [...] Outra importante direção a ser explorada: a rima; a rima forma uma esfera associativa no nível do som, isto é, dos significantes: há paradigmas de rimas; em relação a esses paradigmas, o discurso rimado é evidentemente constituído por um fragmento de sistema estendido em sintagma; a rima coincidiria, em suma, com uma transgressão da lei de distancia do sintagma-sistema (lei de Trnka); ela corresponderia a uma tensão voluntária entre o afim e o dessemelhante, a uma espécie de escândalo estrutural. (p. 90-91) IV DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO IV.2 [...] A conotação, por ser ela própria um sistema, compreende significantes, significados e o processo que une uns aos outros (significação), e é o inventário destes três elementos que se deveria primeiro empreender para cada sistema. Os significantes de conotação, que chamaremos conotadores, são constituídos por signos (significantes e significados reunidos) do sistema denotado; naturalmente, vários signos denotados podem reunir -se para formar um só conotador – se for provido de um só significado de conotação; ou melhor, as unidades do sistema conotação não têm forçosamente o mesmo tamanho que as unidades do sistema denotado; grandes fragmentos de discurso denotado podem constituir uma única unidade do sistema conotado (é o caso, por exemplo, do tom de um texto, feito de múltiplas palavras, mas que remete, todavia, a um 278 só significado). Seja qual for o modo pelo qual a conotação ―vista‖ a mensagem denotada, ela não a esgota: sempre sobra ―denotado‖ (sem o quê o discurso não seria possível) e os conotadores afinal são sempre signos descontínuos, ―erráticos‖, naturalizados pela mensagem denotada que os veicula. Quanto ao significado de conotação, tem um caráter ao mesmo tempo geral, global e difuso: é, se se quiser, um fragmento de ideologia: o conjunto das mensagens em português remete por exemplo, ao significado ―Português‖; uma obra pode remeter ao significado ―Literatura‖; estes significados comunicam-se estreitamente com a cultura, o saber, a História; é por eles que, por assim dizer, o mundo penetra o sistema; a ideologia seria, em suma (no sentido hjelmsleviano) dos significados de conotação, enquanto a retórica seria a forma dos conotadores. (p. 96-97). 279 Critique et vérité, Paris, Éd. Du seuil, ―Tel Quel‖, 1966 OBRA NÚMERO 6 UTILIZADA NA TESE CRÍTICA E VERDADE Equipe de realização: Leyla Perrone-Moises, tradução; Geraldo Gerson de Souza, revisão; Moysés Baumstein, capa e trabalhos técnicos. EDITORA PERSPECTIVA 1982 PREFÁCIO [...] O tempo, talvez: reunir textos antigos num livro novo é querer interrogar o tempo, pedir-lhe que dê sua resposta aos fragmentos que vêm do passado;mas o tempo é duplo, tempo da escritura e tempo da memória, e essa duplicidade chama por sua vez um sentido seguinte: o próprio tempo é uma forma.(p. 16) [...] ; a ironia, que é a forma que o autor dá a seu próprio distanciamento; o fragmento, ou se se preferir, a reticências, que permite reter o sentido para melhor deixá-lo escapar em direções abertas. (p. 23) [...] Ora, é geralmente a essa dupla necessidade que corresponde a fundação de um código: o escritor não tenta nunca mais do que transformar seu Eu em fragmento de código. É preciso aqui, uma vez mais, entrar na técnica do sentido, e a lingüística, uma vez mais, nos ajudará. (p. 23) A ATIVIDADE ESTRUTURALISTA A atividade estruturalista comporta duas operações típicas: desmontagem e arranjo. Desmontar o primeiro objeto, o que é dado à atividade de simulacro, é encontrar nele fragmentos móveis cuja situação diferencial gera certo sentido; o fragmento não tem sentido em si, mas é, entretanto, tal que a menor variação 280 trazida a sua configuração produz uma mudança do conjunto: um quadrado de Mondrian, uma série de Pousseur, um versículo do Móbile de Butor, o ―mitema‖ em Levi-strauss, o fonema para os fonólogos, o ―tema‖ em tal, crítico literário, todas essas unidades (quaisquer que sejam sua estrutura íntima e sua extensão, bem diferentes segundo o caso) só têm existência significativa por suas fronteiras: as que separam das outras unidades atuais do discurso (mas este é um problema de arranjo), e também as que as distinguem de outras unidades virtuais, com as quais elas formam uma certa classe (que os lingüistas chamam de paradigma);[...] (. 52-53) ESTRUTURA DA NOTÍCIA 1 (1) Em francês, Structure du fait divers.A expressão fait divers não tem correspondente em português. Designa a ―rubrica sob a qual os jornais publicam os acidentes, os pequenos escândalos etc.‖ (Petit Larousse). ( N. da T.) [...]; em suma, o assassinato escapa à notícia comum cada vez que ele é exógeno, vindo de um mundo já conhecido; pode-se dizer então que ele não tem estrutura própria, suficiente, pois ele nunca é mais do que o termo manifesto de uma estrutura implícita que a ele preexiste: não há informação política sem duração, pois a política é uma categoria transtemporal; o mesmo acontece, aliás, com todas as notícias vindas de um horizonte nomeado, de um tempo anterior: elas nunca podem construir um fait divers 2 ; literariamente são fragmentos de romances 3 , na medida em que todo romance é ele próprio um longo saber do qual o acontecimento que se produz nunca é mais que uma simples variante. (2) Os fatos que pertencem ao que se poderia chamar de ―gestos‖ de estrelas ou de personalidades nunca são faits divers, porque implicam, precisamente, uma estrutura de episódios. (3) Em certos sentidos, é justo dizer que a política é um romance, isto é, uma narrativa que dura, contanto que se personalizem os atores.(p. 58) LITERATURA LITERAL [...] Se nos lembrarmos de que o desígnio profundo de Robbe-Grillet é prestar conta de toda a extensão objetiva, como se a mão do romancista seguisse estreitamente seu olhar numa apreensão exaustiva das linhas e das superfícies, compreenderemos que a volta de certos objetos, de certos fragmentos do espaço, privilegiados por sua própria repetição, constitui por si mesma uma falha, o que 281 se poderia chamar de um primeiro ponto de apodrecimento no sistema óptico do romancista, fundado essencialmente sobre a contigüidade, a extensão e o alongamento. (p. 96) UMA CONCLUSÃO SOBRE ROBBE-GRILLET? Entretanto essas formas vazias atraem irresistivelmente um conteúdo, e vêem-se pouco a pouco, na crítica, na própria obra do autor, tentações de sentimentos, voltas arquétipas, fragmentos de símbolos, em suma, tudo o que pertence ao reino do adjetivo, insinuar-se no soberbo estar-ali das coisas. (p. 108) LITERATURA E DESCONTÍNUO [...] A paráfrase é pois a operação razoável de um crítico que exige do livro, antes de tudo, que ele seja contínuo: ―acaricia-se‖ o livro, assim como se pede ao livro que ―acaricie‖ com sua fala contínua a vida, a alma, o mal etc. Isto explica que o livro descontínuo não é tolerado a não ser em empregos bem reservados: ou como recolha de fragmentos (Heráclito, Pascal), o caráter inacabado da obra (mas trata-se no fundo de obras inacabadas?) corroborando em suma a contrário a excelência do contínuo, fora do qual há por vezes esboço, mas nunca perfeição; ou como coletânea de aforismos, pois o aforismo é um pequeno contínuo pleno, a afirmação teatral de que o vazio é horrível. (p. 114-115) A ordem fragmentária de Móbile tem um outro alcance. Destruindo no discurso a noção de ―parte‖, ele remete a uma mobilidade infinitamente sensível de elementos fechados. Quais são esses elementos? Eles não têm forma em si; não são idéias ou imagens, ou sensações ou sensações, ou mesmo notações, pois não saem de um projeto de restituição do vivido; trata-se aqui de uma enumeração de objetos sinaléticos, ali de um recorte de imprensa, mais adiante de um parágrafo de livro, de uma citação de folheto, além, afinal, menos do que tudo isso, o nome de um sorvete, a cor de um automóvel ou de uma camisa, ou mesmo um simples nome próprio. Dir-se-ia que o escritor procede a ―tomadas‖, a levantamentos variados, sem nenhuma atenção para com sua origem material. Entretanto essas tomadas sem forma estável, por mais anárquicas que pareçam no nível do detalhe (já que, sem transcendência retórica, elas não passam 282 precisamente de detalhes), reencontram paradoxalmente uma unidade de objeto no nível mais largo que existe, o mais intelectual, poderíamos dizer, que é o da história. (p. 118-119) [...] Móbile não faz mais, em suma, do que retomar essa instituição americana para os americanos e representá-la; o livro tem como subtítulo: estudo para uma representação dos Estados Unidos, e tem realmente uma finalidade plástica: visa a igualar um grade quadro histórico (mais exatamente: trans-histórico), no qual os objetos, em sua própria descontinuidade, são ao mesmo tempo fragmentos do tempo e primeiros pensamentos. (p. 120) [...] O contínuo de Móbile repete, mas combina diferentemente o que repete. Disso decorre que o primeiro nunca volta ao que expôs, enquanto o segundo volta, lembra: o novo sempre acompanhado do antigo; é, se se quiser, um contínuo fugado, no qual os fragmentos identificáveis entram sempre de novo na corrida. (p. 122) [...] Michel Butor concebeu seus romances como uma única e mesma pesquisa estrutural cujo princípio poderia ser o seguinte: é experimentando entre eles fragmentos de acontecimentos que o sentido nasce, é transformado incansavelmente esses acontecimentos em funções que a estrutura se edifica: como o bricoleur, o escritor (poeta, romancista ou cronista) só vê o sentido das unidades inertes que tem diante de si relacionando-as: a obra tem pois aquele caráter ao mesmo tempo lúdico e sério que marca toda grande questão: é um quebra-cabeças magistral, o quebra-cabeças do melhorpossível. (p. 123-124) DE UM LADO E DE OUTRO [...] IMAGINA-SE QUE Lucien Febvre teria gostado deste livro audacioso, já que ele devolve à história um fragmento de ―natureza‖ e transforma em fato de civilização o que até então considerávamos como um fato médico: a loucura. (p. 140) LITERATURA E SIGNIFICAÇÃO 1 (1) Respostas a um questionário elaborado pela revista Tel Quel, em 1963. 283 [...] Uma pergunta vaga (do gênero daquelas que uma filosofia do ―absurdo‖ podia fazer ao mundo) tem muito menos força (agita menos) do que uma pergunta cuja resposta está bem próxima mas no entanto parada (como a de Brecht): em literatura, que é uma ordem da conotação, não há pergunta pura: uma pergunta nunca é mais do que sua própria resposta esparsa, dispersa em fragmentos entre os quais o sentido se difunde e foge ao mesmo tempo. (p. 168) 284 Système de la mode, Paris, Éd. Du seuil, 1967 OBRA NÚMERO 7 UTILIZADA NA TESE SISTEMA DA MODA; Tradução Lineide do Lago Salvador Mosca; Revisão e supervisão Isaac Nicolau Salum. Ed. Nacional: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1979 1.7 O “corpus” Uma vez escolhida a estrutura oral, sob e que corpus se deve trabalhar? Até aqui só se falou dos jornais de Moda; de um lado, é porque as descrições saídas da literatura propriamente dita, embora muito importantes em muitos dos grandes escritores (Balzac, Michelet, Proust), são fragmentárias demais, de época histórica variável, para que se possa ater a elas, e, de outro lado, as descrições fornecidas pelo catálogo de grandes lojas podem ser facilmente assimiladas às descrições da Moda. (p. 10) 1. 12. Função de ênfase [...] O vestuário descrito é um vestuário fragmentário. (p. 14) [...] Aplica-se ao vestuário, a ordem da língua separada o essencial do acessório, mas é uma ordem severa: envia o acessório ao nada do inominado. (p. 15) 1. 13. Finalidade da descrição [...] A imagem suscita uma fascinação, a palavra, uma apropriação; a imagem é plena, é um sistema saturado; a palavra é fragmentária, é um sistema disponível. Resumidas, a segunda serve para desapontar a primeira. (p. 17) 285 2. ARELAÇÃO DE SENTIDO 2.1. A prova da comutação [...] Assim, por aproximações sucessivas, pode-se, por um lado, esperar apanhar os menores fragmentos de substancia responsáveis por uma mudança de leitura ou uso, e, conseqüentemente, definir esses fragmentos como unidades estruturais, e, por outro lado, observando o que varia conjuntamente, estar em condições de estabelecer um inventário geral das variações concomitantes, e, conseqüentemente, de determinar, no conjunto da estrutura dada, um certo número de classes comutativas. (p.19) 3.13. Caso dos conjuntos A [...] Se, por exemplo, o jornal fragmenta o significante, se ele apresenta um significado mundano no meio dos seus significantes vestimentários, deve-se-á restabelecer a separação dos domínios ao ler; um chapéu jovem deixa ver a testa, reduzir-se-á, sem risco de alterar o sentido vestimentário: chapéu deixando ver a testa = jovem. (p. 52) 3. 14. Caso dos conjuntos B [...] Mas, assim como na língua significantes distintos podem remeter ao mesmo significado (sinônimos), no vestuário escrito do tipo B é lícito prever que a massa significante se fragmente em unidades de significação que o jornal não atualiza ao mesmo tempo (a não ser dispensando-as de uma página à outra), e que constituem, por conseguinte, unidades distintas. (p. 53) I. BUSCA DA UNIDADE SIGNIFICANTE 5.1. Inventário e classificação Vimos que se estava no direito de tratar como significante do código vestimentário todo enunciado que o jornal consagra ao vestuário, contanto que ele seja compreendido numa só unidade de significação. Do simples tailleur à calça cinturada por um lenço e encurtada até acima do joelho, a colheita promete 286 ser imensa e aparentemente anárquica; talvez só se colherá uma palavra (a Moda está no azul), talvez um conjunto muito complicado de notações (uma calça cinturada, etc,). Ora, nesses enunciados de comprimento e de sintaxe variados, é preciso descobrir uma forma constante; do contrário, não se saberá nunca como o sentido vestimentário é produzido. E essa ordem deve satisfazer a duas exigências metódicas: deve-se, primeiramente., poder dividir o enunciado do significante em espaços tão reduzidos quanto possível, como se todo enunciado de Moda fosse uma cadeia na qual importa localizar os elos; deve-se, em seguida, comparar entre si esses fragmentos, de espaço (sem mais se preocupar com o enunciado de que eles fazem parte), de maneira a determinar segundo que oposições eles produzem sentidos diferentes. Para falar no vocabulário da Linguística, é necessário fixar, num primeiro momento, quais são as unidades sintagmáticas (ou espaciais) do vestuário escrito e, num segundo momento, quais são as oposições sistemáticas (ou virtuais). A tarefa é, portanto, dupla: de inventário e de classificação 1 . 1. É pelo menos a ordem lógica da pesquisa. Mas K. Togeby, Structure immanente, p. 8, já observou que, praticamente, é necessário muitas vezes referir-se ao sistema para estabelecer o sintagma. É o que, em parte, seremos obrigados a fazer. (p. 57) IV. RELAÇÕES DOS ELEMENTOS DA MATRIZ 5.9. Sintagma e sistema Já ficou indicado que o objeto e o suporte são sempre objetos materiais (vestido, traje, gola, jabá, etc.), ao passo que a variante é um valor imaterial. Essa disparidade corresponde a uma diferença estrutural: o objeto e o suporte são fragmentos de espaço vestimentário,são porções naturais, por assim dizer, de sintagmas; a variante, ao contrário, é uma reserva de virtudes, das quais somente um termo é atualizado no nível do suporte que ela afeta. (p. 64-65) 4. 10. Solidariedade dos elementos da matriz Ao contrário, de ponto de vista da língua, é entre o suporte e a variante que a ligação é mais estreita, exprimindo-se, mais freqüentemente, pelo que A, Martinet chama sintagma autônomo. É mais fácil, com efeito, amputar 287 terminologicamente a matriz de seu objeto do que de sua variante: em um chapéu de abas erguidas, o fragmento abas erguidas tem um sentido (lingüístico) suficiente, ao passo que o fragmento um chapéu de abas... apresenta um sentido suspenso, e, como, além disso, c manejo operatório do suporte e da variante é muito freqüente, chamar-se-á traço essa parte da matriz que se compõe do suporte e da variante. (p. 66) 9. 24. Variante de fixação (XIX) O número de termos plenos que entram em oposição significante é necessariamente livre, uma vez que se pode sempre inventar ou retomar um processo de fixação que não foi ainda notado. Essa variante é, pois, uma das menos estruturadas que existem (não pode reduzir-se a uma alternativa, mesmo complexa) e vê-se muito bem porquê: é que, na realidade, ela atinge à variação de espécie; o amarrado esta muito próximo do nó. A própria língua participa dessa ambigüidade, já que ela emprega um único termo para designar o ato de ligar e o objeto que serve de agente para esse ato (a palavra attache, "ligação", "ligadura"). Trata-se bem, entretanto, de uma verdadeira variante, na medida em que, precisamente, não se pode confundir um ato com um objeto. A asserção de espécie, como já se viu, opõe fragmentos de matéria (nó, botão, laços). A variante de fixação opõe modos imateriais, estados desprendidos de seu suporte: é a diferença que há entre passadeira e com passadeira; além disso, como gênero-suporte, a ligação pode muito bem não ter função alguma de fixação; um nó, botões podem ser postiços. Um vestido com botões não é forçosamente um vestido abotoado. (p. 135) 10. VARIANTES DE POSIÇÃO I. VARIANTES DE POSIÇÃO 10.1 Variantes de posição horizontal (XXI), vertical (XXII), transversal (XXIII) e de orientação (XXIV) [...] Convém conservardes sempre o valor adverbial: de lado, e mesmo dos lados, na frente (e, eventualmente, nas costas) são localizações imateriais que não se devem confundir com os gêneros correspondentes. Estes é que são fragmentos de matéria vestimentária (lado, frente, costa). Podem-se agrupar, no seguinte quadro, as quatro variantes de posição: 288 XXI. Posição horizontal XXIIÏ. Posição transversal mediano à meia altura justo em comprimento ao longo em altura ------------ XXIV. Orientação horizontal vertical oblíquo XXIT. Posição vertical no alto alto (adv) pousado embaixo baixo (adv) afundado na frente frente pela frente detrás atrás por trás de lado dos lados no lado circular ao redor em guirlanda 1 2 NEUTRO COMPLEXO à direita reto à esquerda esquerda (mediano) no meio em largura dos dois lados (p. 170) 2. Estrutura do significado 13. AS ESTRUTURAS SEMÂNTICAS 13.4. Unidades usuais e unidades originais Entretanto, as unidades móveis (isto é, repetidas) não esgotam a totalidade dos enunciados do significado; certos enunciados ou certos fragmentos de enunciados são constituídos por notações únicas, pelo menos na escala do corpus; são, por assim dizer, hapax. legomena*; esses hapax são, também eles, unidades semânticas, pois estão ligados a um significante global e participam do sentido. Ter-se-ão, pois, duas espécies de unidades semânticas, umas móveis e repetidas (chamá-las-emos unidades usuais), outras constituídas por enunciados ou resíduos de enunciados que não dão margem à repetição (chamá-las-emos unidades originais'). * Expressão grega usada na crítica textual ou na exegética para designar um fato lingüístico. — Palavra ou expressão que ocorre uma só vez no autor ou na documentação da língua. Significa "dito ou escrito" uma única vez. Seu uso no plural hapax legomena só se dá quando se caracteriza o fenômeno. (N. T.) (P. 184) 289 13.8. A relação AUT Admitidas essas unidades, podemos contudo tentar constituí-las em listas de oposições pertinentes. Valer-nos-emos, uma vez mais, dos paradigmas que o próprio jornal fornece, cada vez que ele enuncia o que já foi chamado, a respeito do significante (pois trata-se, evidentemente, dos mesmos exemplos), de uma dupla variação concomitante. Em flanela listrada ou. "twill" de bolas para a manhã ou para a noite, fica atestado, pela própria variação do significante, que entre "noite" e "manhã" há uma oposição pertinente e que esses dois termos fazem parte do mesmo paradigma semântico; constituem, por assim dizer, um fragmento de sistema estendido sobre o plano sintagmático. Neste plano, a relação que os une é a da disjunção exclusiva: a essa relação particularíssima, pois que reúne sintagmaticamente os termos de um mesmo sistema, chamaremos relação AUT 13 . 13. Por oposição à relação VEL (cf. cap. seguinte); somos obrigados a recorrer a vocábulos latinos, pois em francês OU é, ao mesmo tempo, inclusivo e exclusivo. 14.8. Por que a neutralização? Do sintagma ao sistema, os significados de Moda parecem, assim, o objeto de um passe mágico, cujo truque se deve ver agora. Em toda estrutura significante, o sistema é uma reserva ordenada de signos e implica, por isso mesmo, a mobilização de um certo tempo: o sistema é uma memória. Passar do sintagma ao sistema é destinar fragmentos de substância a uma permanência, a uma duração; inversamente, passar do sistema ao sintagma é, se assim podemos dizer, atualizar uma lembrança. (p. 198) 15. O SIGNO VESTIMENTÁRIO I. DEFINIÇÃO 15.1 Caráter sintático do signo vestimentário O signo é a união do significante e do significado. Essa união, como é clássico em Lingüística, deve ser examinada do ponto de vista de sua arbitrariedade e de sua motivação, isto é, de seu duplo fundamento, social e natural. Mas, antes de mais nada, importa lembrar que a unidade do signo vestimentário (isto é, do signo do código vestimentário, despojado de seu aparato retórico) é definida pela singularidade da relação significante, não pela 290 singularidade do significante ou pela do significado 1 . Em outros termos, o signo vestimentário, embora reduzido à unidade, pode compreender vários fragmentos, de significantes (combinações de matrizes e elementos da própria matriz) e vários fragmentos de significados (combinações de unidades semânticas). Importa, "pois, não procurar fazer corresponder esta parcela do significante àquela do significado. Pode-se, certamente, presumir que em cardigã de gola aberta = esporte é a abertura (da gola) que tem alguma afinidade com o esporte 2 . 1. Cf,, supra, 4, V. 2. Isto é formalmente provado pela dupla variação concomitante: cardigã de gola aberta ou fechada = esporte ou social. 20.6. Real utópico e utopia real [...] Observar-se-á aqui, entretanto, uma reviravolta i: é na medida em que a retórica de Moda fabula que ela reencontra um certo real do mundo contra seu sistema terminológico, o qual, por sua vez, fica improvável. Produz-se aqui uma curiosa inça entre o real e o imaginário, o possível e o utópico. As unidades semânticas (fim de semana, noite, compra) são ainda no nível terminológico fragmentos do mundo real, mas esses fragmentos são já transitórios e ilusórios, pois o mundo não dá nenhuma sanção mundana à relação de este suéter e do fim de semana: ele não o realiza no seio de um sistema real. Assim, no seu nível literal, o real da Moda é puramente assertivo (é o que se compreende por improvável). (p. 267) IV. O DUPLO SISTEMA DA MODA 20.11. Ambiguidade ética da Moda [...] Para se abrir ao mundo, importa alienar-se; para compreendê-lo, importa dele se aiastar. Uma antinomia profunda separa o modelo das condutas produtoras e o das condutas reflexivas, os sistemas de ações e os sistemas de sentidos. Pela divergência de seus conjuntos A e B, a Moda vive essa dupla postulação: ora ela enche seu significado com fragmentos mundo e o transforma em sonho de usos, de funções, de razões, ora ela o esvazia e se reduz à ordem de uma estrutura desembaraçada de toda substância ideológica. Sistema "naturalista" (nos conjuntos A) ou sistema "lógico" (nos conjuntos B), a Moda viaja assim de um sonho a outro, conforme o jornal multiplica ou, ao contrário, 291 decepciona os significados mundanos. Parece que a imprensa de forte público popular pratica uma Moda naturalizada, rica em. funções-signos, e que é a imprensa mais "aristocrática" que pratica, de preferência, a Moda pura. (p. 273) 292 S/Z, Paris, Éd. Du seuil, ―Tel Quel‖, 1970 OBRA NÚMERO 8 UTILIZADA NA TESE S/Z Tradução Léa Novaes, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992 VI. Passo a passo [...] O comentário de um único texto não é uma atividade contingente, posta sob o álibi tranquilizador do "concreto": o texto único vale por todos os textos da literatura, não porque os representa (os abstrai e os i guala), mas porque a própria literatura é sempre um único texto: o texto único não é acesso (indutivo) a um Modelo, entrada de uma rede de mil entradas; penetrar por esta entrada é visar, ao longe, não uma estrutura legal de normas e desvios, uma Lei narrativa ou poética, mas uma perspectiva (de fragmentos, de vozes vindas de outros textos, de outros códigos), cujo ponto de fuga é sempre transladado, misteriosa me n te aberto: cada texto (único) é a própria teoria (e o simples exemplo) dessa fuga, dessa diferença que, sem conformar, volta indefinidamente. (p. 45-46) VII. O texto estrelado Vamos pois estrelar o texto, separando, como faria um pequeno sismo, os blocos de significação cuja leitura capta apenas a superfície lisa, imperceptivelmente soldada pelo fluxo das frases, o discurso fluente da narração, a grande naturalidade da linguagem corrente. O significante de apoio será recortado em uma seqüência de curtos fragmentos contíguos, que aqui chamaremos lexias, já que são unidades de leitura. Esse corte — é necessário dizê-lo — será inteiramente arbitrário; não implicará nenhuma responsabilida¬de metodológica, pois incidirá sobre o significante, enquanto a análise posposta incide unicamente sobre o significado. (p. 47) 293 XII. A tessitura das vozes Os cinco códigos formam uma espécie de rede, de tópico através do qual passa todo o texto (ou melhor; faz-se texto ao passar). Portanto, se não buscamos estruturar cada código nem os cinco códigos entre si, nós o fazemos intencíonalmente, para assumir a multivalência do texto, sua parcial. Na verdade, trata-se, não de manifestar uma estrutura, mas, tanto quanto possível, produzir uma estruturação. As lacunas e as imprecisões da análise serão como que assinalam a fuga do texto; pois, se o texto é submetido a uma forma, esta forma não é unitária, arquitetada, acabada: é o trecho, o fragmento, a rede cortada ou apagada, são todos os movimentos, todas as inflexões de um imenso fading, responsável, simultaneamente, pelo encavalgamento e pelas perdas das mensagens. (p. 53-54) XIII. Citar [...] Esta citação fugidia, esta maneira sub-reptícia descontínua de tematizar, esta alternância do fluxo e fragmento, definem perfeitamente a maneira da conotação; os semas parecem flutuar livremente, formar uma galáxia d3 minúsculas informações onde não se pode ler nenhuma ordem priveligiada: a técnica narrativa é impressionista: divide o significante em partículas de matéria verbal cuja cone faz o sentido: joga com a distribuição de um descontínuo (e assim constrói o "caráter" de um personagem); quanto a distância sintagmática de duas informações convergentes, mais hábil é a narrativa; a habilidade consiste em jogar' um certo grau de impressão: é necessário que o leve, como que fácil de esquecer, mas que, ao aparecer adiante, sob outra forma, constitua já uma lembrança; o legível é um efeito baseado em operações de solidariedade (o legível "cola"); mas, quanto mais aérea é esta solidariedade, mais o inteligível parece inteligente. (p. 56) XV. A partitura O que canta, o que se desenrola, o que se move at ravés de acidentes, arabescos e pausas dirigidas, ao longo de um devenir inteligível (como a melodia freqüentemente confiada às madeiras), é a seqüência de enigmas, sua solução em si sua resolução retardada: o desenvolvimento de um enigma é o mesmo desenvolvimento de uma fuga: um e outro temi tema, submetido a uma exposição, um divertimento (através das pausas, ambigüidades e engodos que permitem ao discurso prolongar seu mistério), uma strètte (parte compacta em que os fragmentos de resposta se precipitam) e uma conclusão. Enfim, o que sustenta, o que encadeia regularmente, que harmoniza o conjunto, como fazem 294 as cordas, são as seqüência proairéticas, a marcha dos comportamentos, a cadência dos gestos conhecidos. (p. 62) XVIII. Posteridade do eunuco (23) A beleza, afortuna, o espírito, os encantos dessas duas crianças vinham-lhes unicamente de sua mãe. • De onde vem a fortuna dos Lanty? Este enigma 2 tem sua resposta: da condessa, da mulher. Há, pois, segundo o código hermenêutico, decifração (pelo menos parcial) fragmento de resposta. No entanto, a verdade está imersa em uma enumeração que o paradoxo domina, dissimula, r etém e, afinal, não libera: há, pois, também, opondo-se à decifração, dissimulação, engodo, obstáculo (ou pausa). Chamamos a esse misto de verdade e de mentira, essa decifração ineficaz, essa resposta obscura um equívoco (HKR. Enigma 2: equívoco). •• (SÍM. Réplica dos corpos) (o corpo dos filhos copia o corpo da mãe). (p. 70) 295 L‟Empire dês signes, Genève, Skira, ―Sentiers de la création‖, 1970 OBRA NÚMERO 9 UTILIZADA NA TESE O IMPÉRIO DOS SIGNOS TRADUÇÃO Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes 2007 A ÁGUA E O FLOCO [...] O arroz cozido (cuja identidade absolutamente especial é atestada por um nome particular, que não é arroz cru) só pode ser definido por uma contradição da matéria; ele é, ao mesmo tempo, coesivo e destacável; sua destinação substâncial é o fragmento, o leve conglomerado; é o único elemento de ponderação da comida japonesa (antinômica à comida chinesa); é aquilo que cai, por oposição àquilo que flutua; ele dispõe, no quadro, uma brancura compacta, granulosa (ao contrário da do pão) e, no entanto, friável: aquilo que chega à mesa apertado, colocado, desfaz-se ao golpe dos palitos sem contudo se espalhar, como se a divisão se operasse para produzir ainda uma coesão irredutível; é essa defecção comedida (incompleta) que, para além (ou aquém) da comida, é dada a consumir. (p. 21) PALITOS [...] Primeiramente o palito – sua forma o diz suficiente – tem uma função dêitica: ele mostra a comida, designa o fragmento, faz existir pelo próprio gesto da escolha, que é o índex; mas assim fazendo, em vez de a ingestão seguir uma espécie de seqüência maquinal, pela qual nos limitaríamos a engolir pouco a pouco as partes de um mesmo prato, os palitos, designando o que escolheram (e portanto escolhendo na hora isto e não aquilo), introduzem no uso da alimentação não uma ordem mas uma fantasia e como que uma preguiça: em todo caso, uma operação inteligente e não mais mecânica. Outra função dos palitos, a de pinçar o fragmento de comida (e não mais de espetar, como fazem 296 nossos garfos); pinçar * é aliás uma palavra demasiadamente forte, agressiva (beliscar é o que fazem as meninas sonsas, pinçar é o que fazem os cirurgiões, as costureiras, os temperamentos suscetíveis); (p. 25-26) A COMIDA DESCENTRADA [...]; à medida que pegamos, com a ponta de nossos palitos alguns fragmentos desse guisado recém-cozido, outros alimentos crus vêm substituí-los. (p. 30) [...] ; tudo ali é o ornamento de outro ornamento: primeiro porque sobre a mesa, sobre a bandeja, a comida nunca é mais do que uma coleção de fragmentos, dos quais nenhum é privilegiado por uma ordem de ingestão: comer não é respeitar um cardápio (um itinerário de pratos), mas colher, com um toque ligeiro dos palitos, ora uma cor, ora outra, ao sabor de uma espécie de inspiração que aparece, em sua lentidão, como o acompanhamento desligado, indireto, da conversa (que pode ser, ela mesma, muito silenciosa)... (p. 32-33) O INTERSTÍCIO [...] A enguia (ou o fragmento de legume, de crustáceo), cristalizado na fritura, como o ramo de Salzburgo, reduz-se a um pequeno bloco de vazio, a uma coleção de buracos; o alimento chega, assim, ao sonho de um paradoxo porque esse vazio é fabricado para que nos alimentos dele (às vezes, o alimento é construído em bola, como uma bolha de ar). A tempura é liberada do sentido que ligamos tradicionalmente á fritura, e que é o peso. A farinha reencontra nela sua essência de flor espalhada, diluída tão levemente que forma um leite, e não uma pasta; tomado pelo óleo, esse leite dourado é tão frágil que recobre imperfeitamente o fragmento de comida, deixa aparecer um rosa de camarão, um verde de pimentão, um marrom de berinjela, retirando assim, da fritura, aquilo de que é feito nosso bolinho, e que é a ganga, o invólucro, a compacidade. (p. 34-35) [...] O que importa é que o alimento seja constituído de pedaços, de fragmentos (estado fundamental da cozinha japonesa, na qual a cobertura – de molho, de creme, de crosta – é desconhecida), não apenas pela preparação, mas também e sobretudo por sua imersão numa substância fluida como água, coesiva como gordura, de onde sai um pedaço acabado, separado, nomeado e contudo 297 crivado; mas o cerne é tão leva que se torna abstrato: o alimento não tem mais por invólucro senão o tempo (aliás muito tênue) que o solidificou. (p. 36) AS TRÊS ESCRITAS Espetáculo total mas dividido, o Bunraku exclui, é claro, a improvisação: voltar à espontaneidade seria voltar aos estereótipos que constituem nossa ―profundidade‖ Como Brecht havia visto, aqui reina a criação, a pitada de escrita, o fragmento de código, pois nenhum dos promotores de representação pode atribuir à sua própria pessoa aquilo que ele nunca escreve sozinho. (p. 71) ANIMADA/INANIMADO Pode ser que a marionete japonesa conserve algo dessa origem fantasmática; mas a arte do Bunraku imprime-lhe um sentido diverso; o bunraku não visa a ―animar‖ um objeto inanimado, de modo a tornar vivo um pedaço do corpo, uma lasca de homem, conservando sua vocação de ―parte‖; não é a simulação sensível do corpo que ele busca, é, Poe assim dizer, sua abstração sensível. (p. 78) O INCIDENTE O número, a dispersão dos haicais, por um lado, e a brevidade, o fechamento de cada um deles, por outro lado, parecem dividir, classificar o mundo até o infinito, constituir um espaço de poucos fragmentos, uma poeira de acontecimentos que nada, por uma espécie de abandono da significação, pode ou deve coagular, construir, dirigir, terminar. (p. 103) O GABINETE DOS SIGNOS Em qualquer lugar desse país, produz-se uma organização especial do espaço; viajando (na rua, de trem ao longo dos subúrbios, da montanhas), percebo aí a conjunção de um longínquo e de uma fragmentação, a justaposição de campos (no sentido rural e visual) ao mesmo tempo descontínuos e abertos (parcelas de plantações de chá, pinhei ros, flores malvas, uma composição de 298 tetos negros, um quadriculado de ruelas, um arranjo assimétrico de casas baixas): nenhum fechamento (exceto muito baixo), e no entanto nunca sou sitiado pelo horizonte (e seu relento do sonho): nenhuma vontade de inflar os pulmões, de estufar o peito para garantir meu eu, para me constituir em centro assimilador do infinito: levado á evidencia de um limite vazio, fico ilimitado sem idéia de grandeza, sem referência metafísica. (p. 145-146) 299 Sade, Fourier, Loyola, Paris, Éd. Du seuil, ―Tel Quel‖, 1971 OBRA NÚMERO 10 UTILIZADA NA TESE SADE, FOURIER, LOIOLA Tradução de Máro Laranjeira; Revisão de tradução Andréa Stahel M. da Silva São Paulo: Martins Fontes, (Coleção Roland Barthes) 2005 Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexão, de análise, de comparação, de reflexo etc.). O Texto é um objeto de prazer. O gozo do Texto muitas vezes é apenas estilístico: há felicidades de expressão, e elas não faltam nem em Sade nem em Fourier. Por vezes, entretanto, o prazer do Texto se realiza de maneira mais profunda (e é então que se pode realmente dizer que há Texto): quando o texto "literário" (o Livro) transmigra para dentro de nossa vida, quando outra escritura (a escritura do Outro) chega a escrever fragmentos da nossa própria cotidianidade, enfim, quando se produz uma co-existência. O indício do prazer do Texto é então podermos viver com Fourier, com Sade. Viver com um autor não significa necessariamente cumprir em nossa vida o programa traçado nos livros desse autor (essa conjunção não seria, no entanto, insignificant e, pois que constitui o argumento de Dom Quixote; é verdade que Dom Quixote é ainda uma criatura de livro); não se trata de operar o que foi representado, não se trata de tornar-se sádico ou orgíaco com Sade, falansteriano com Fourier, orante com Loyola; trata-se de fazer passar para nossa cotidianidade fragmentos de inteligível ("fórmulas") provindos do texto admirado (admirado justamente porque se difunde bem); trata-se de falar esse texto, não de o agir, deixando-lhe a distância de uma citação, a força de irrupção de uma palavra bem cunhada, de uma verdade de linguagem; nossa própria vida cotidiana passa a ser então um teatro que tem por cenário o nosso próprio habitat social; viver com Sade é, em dados momentos, falar sadiano; viver com Fourier é falar fourierista (viver com Loyola? - Por que não? Mais uma vez, não se trata de transportar para o nosso interior conteúdos, convicções, uma fé, uma Causa, nem sequer imagens; 300 trata-se de receber do texto uma espécie de ordem fantasística: saborear com Loyola a volúpia de organizar um retiro, de forrar-lhe o tempo interior, distribuir os seus momentos de linguagem; a seriedade das representações inacianas mal conseguem abafar o gozo da escritura). (p. XIV – XV) [...] Na verdade, não há hoje nenhum lugar de linguagem exterior à ideologia burguesa: nossa linguagem vem dela, a ela retorna, nela fica fechada. A única resposta possível não é nem o enfrentamento nem a destruição, mas somente o roubo: fragmentar o texto antigo da cultura, da ciência, da literatura e disseminar-lhe os traços segundo fórmulas irreconhecíveis, da mesma maneira que se disfarça uma mercadoria roubada. (p. XVII) [...] Não é, pois, nem a feiúra nem a beleza, mas a própria instância do discurso, dividida em retratos-figuras e retratos-signos, que determina a divisão da humanidade sadiana 9 . Essa repartição não coincide com a divisão social, embora esta não seja ignorada por Sade. 9. Mesma oposição no que concerne aos nomes próprios. Os libertinos e seus auxiliares têm nomes "realistas", cuja "verdade" não poderia ser recusada por Balzac, Zola etc. As vítimas têm nomes de teatro. (p. 13) É pois, em última análise, a escritura de Sade que suporta todo Sade. Sua tarefa, de que ela triunfa com brilho constante, é contaminar reciprocamente a erótica e a retórica, a palavra e o crime, introduzir de repente nas convenções da linguagem social as subversões da cena erótica, ao mesmo tempo que o "preço" dessa cena é extraído do tesouro da língua. Isto se vê em relação ao que tradicionalmente se chama de estilo. Sabe-se que, em Justine, o código de amor é metafórico: aí se fala das mirtas de Citera e das rosas de Sodoma. Emjuliette, ao contrário, a nomenclatura erótica é nua. O interesse dessa passagem não é evidentemente a crueza, a obscenidade da linguagem, mas a efetivação de uma outra retórica. Sade pratica correntemente aquilo a que se poderia chamar violência metonímica: justapõe num mesmo sintagma fragmentos heterogéneos, pertencentes a esferas de linguagem geralmente separadas pelo tabu sociomoral. Assim se juntam a Igreja, o estilo rebuscado e a pornografia: "Sim, sim, monsenhor", diz Lacroix ao velho arcebispo de Lyon, o homem do chocolat e reconfortante, "e Vossa Eminência bem vê que, expondo-lhe apenas parte que deseja, ofereço à sua libertina homenagem o mais belo eu virgem que se possa abraçar." 21 21. Inúmeros exemplos desse procedimento: aí paixões papai s, as nádegas ministeriais, trabalhar com força o eu pontifical, sodomizar a professora etc. 301 (procedimento retomado por Klossovski: a calcinha da inspetora). A regra de correlação dos tempos pode juntar-se ao procedimento, ainda que o efeito só seja cômico para nós: "Quisera eu que beijásseis o eu do meu Lubin," Seria preciso lembrar que, se parecemos responsabilizar Sade por efeitos que historicamente não previu, é porque para nós Sade não é o nome de um Indivíduo, mas de um "autor", ou melhor, de um "narrador" mítico, depositário, através do tempo, de todos os sentidos que acolhe em teu discurso. Para se assegurar disso, basta um simples lance de olhos sobre a estrutura geral dos Exercícios. Essa estrutura foi estranhamente discutida: não se compreendia como as quatro Semanas de Inácio podiam coincidir (pois que deviam, pensava-se) com as três vias (purgativa, iluminati va, unitiva) da teologia clássica. Como 3 podem igualar 4? Saía-se do embaraço fracionando a segunda via em duas partes, correspondendo às duas semanas medianas. O fulcro desse debate taxinômico não é de modo algum formal. (p. 44) [...] O que deve ser transportado através da rede variada de distingue é uma matéria única: a imagem. A imagem é exatamente uma unidade de imitação: divide-se a matéria imitável (que é principalmente a vida de Cristo) em fragmentos tais que possam caber num quadro e ocupá-lo inteiramente; os corpos incandescentes do inferno, os gritos dos condenados, o gosto amargo das lágrimas, as personagens da Natividade, as da Ceia, a saudação do anjo Gabriel à Virgem etc., outras tantas unidades de imagem (ou "pontos"). Essa unidade não é imediatamente factual; por si só não constitui forçosamente uma cena completa, mobilizando, como no teatro, vários sentidos ao mesmo tempo: a imagem (a imitação) pôde ser puramente visual, ou puramente auditiva, ou puramente tátil etc. (p. 54) [...] A repetição inaciana não é mecânica, tem uma função de fecho ou, mais exatamente, de uma passagem em ziguezague: os fragmentos repetidos são como as paredes — ou entalhes — de um redente. (p. 62) [...] Os Exercícios são o livro da pergunta, não da resposta. Para se ter alguma idéia das formas que pode assumir a marca impressa por Deus na balança, é necessário recorrer ao Diário espiritual encontrar-se-á nele o esboço do código divino, cujos elementos Inácio anota por meio de todo um repertório de signos gráficos, que aliás não foi possível decifrar completamente (iniciais, pontos, o sinal // etc.). Essas manifestações divinas, como se pode esperar de um campo em que domina a fantasia, estabelecem-se principalmente no nível do 302 corpo, desse corpo despedaçado, cuja fragmentação é exatamente a via da fantasia. (p. 80) [...] A invenção fourierista é um fato de escritura, um desdobramento do significante. Essas palavras devem ser compreendidas no sentido moderno: Fourier repudia o escritor, quer dizer, o gestor titulado do bem-escrever, da literatura, aquele que avaliza a união decorativa, e portanto a separação fundamental, entre o fundo e a forma; ao afirmar-se inventor ("Não sou escritor, mas inventor"), ele se transporta ao limite do sentido, o que hoje chamamos Texto. Talvez, segundo Fourier, precisássemos doravante chamar inventor (e não escritor ou filósofo) àquele que traz à luz novas fórmulas e investe assim, a golpes de fragmentos, imensamente e no pormenor o espaço do significante. 9p. 99) Isso não deixa de lembrar o modo de leitura da Idade Média, baseado na descontinuidade legal da obra: não só o texto antigo (objeto da leitura medieval) era quebrado e seus fragmentos eram em seguida diversamente combináveis, mas também era normal apresentar sobre um tema dois discursos independentes e concorrentes, colocados despudoradamente numa relação de redundância: ars minor (reduzida) e ars major (desenvolvida) de Donato, modi minores e modí majores dos Modistas; é a oposição fourierista entre a observação-redução e a dissertação. (p. 101) [...] Quanto à violência, segue um código desgastado por milênios de história humana: e revirar a violência é ainda falar o mesmo código. O princípio de delicadeza postulado por Sade pode, só ele, constituir, quando tiverem mudado os fundamentos da História, uma língua absolutamente nova, a mutação inaudita, chamada a subverter (não inverter, mas antes fragmentar, pluralizar, pulverizar) o sentido mesmo do gozo. (p. 206) 303 Le plaisir du Texte, Paris, Éd. Du seuil, ―Tel Quel‖, 1973 OBRA NÚMERO 11 UTILIZADA NA TESE O PRAZER DO TEXTO 3ª EDIÇÃO Tradução: J. Guinsburg, Revisão: Alice Kyoko Miyashiro EDITORA PERSPECTIVA, 2002 Daí dois regimes de leitura: uma vai direto ás articulações da anedota, considerada a extensão do texto, ignora os jogos de linguagem (se eu leio Júlio Verne, avanço depressa: perco algo do discurso, e no entanto minha leitura não é fascinada por nenhuma perda verbal – no sentido que esta palavra pode ter em espeleologia); a outra leitura não deixa passar nada; ela pesa, cola-se ao texto, lê, se se pode assim dizer, com aplicação e arrebatamento, apreende em cada ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens – e não a anedota: não é a extensão (lógica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significação; como no jogo da ―mão quente‖, a excitação, provém, não de uma pressa processiva, mas de uma espécie de charivari vertical (a verticalidade da linguagem e de sua destruição); é no momento em que cada mão (diferente) salta por cima da outra (e não uma depois da outra), que o buraco se produz e arrasta o sujeito do jogo – o sujeito do texto. Ora, paradoxalmente (a tal ponto a opinião crê que basta ir depressa para não nos aborrecermos), esta segunda leitura, aplicada (no sentido próprio), é a que convém ao texto moderno, ao texto-limite. Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cairá das mãos; leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada; pois o que ocorre á linguagem não ocorre ao discurso: o que ―acorre‖ * , o que ―se vai‖, a fenda das duas margens, o interstício da fruição, produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na seqüência dos enunciados: não devorar, não engolir, mas pastar, aparar com minúcia, 304 redescobrir, para ler esses autores de hoje, o lazer das antigas leituras: sermos leitores aristocráticos. (p. 19) * No original arrive. (N. do T.). [...] Mas se creio, ao contrário, que o prazer e a fruição são forças paralelas, que elas não se podem encontrar e que entre elas há mais do que um combate: uma incomunicação, então me cumpre na verdade pensar que a história, nossa história, não é pacífica, nem mesmo pode ser inteligente, que o texto de fruição surge sempre aí à maneira de um escândalo ( de uma claudicação), que ele é sempre o traço de um corte de uma afirmação (e não de um florescimento) e que o sujeito dessa história (esse sujeito histórico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar-se levando em conjunto o gosto pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca é mais do que uma ―contradição viva‖; um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, através do texto, da consciência de seu ego e de sua queda. (p. 28). ―[...] Cada povo tem acima de si um tal céu de conceitos matematicamente repartidos, e , sob a exigência da verdade, entende doravante que todo deus conceitual não seja buscado em outra parte a não ser em sua esfera‖ (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados peça formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estender-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, tornar-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro. (p. 36) Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura – ou dos leitores de prazer; não seria sociológica, pois o prazer não é um atributo nem do produto nem da produção; só poderia se psicanalítica, empenhando a relação da neurose leitora na forma alucinada do texto. O fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentação das citações, das fórmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metali nguagens (essa classe reunia todos os logófilos, lingüistas, semióticos, filólogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). O paranóico consumista ou produziria textos retorcidos, histórias desenvolvidas como raciocínios, construções colocadas como jogos, coerções secretas. Quanto ao histérico 9tão contrário ao obsessional), seria 305 aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na comédia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que já não é o sujeito de nenhum olhar crítico e se joga através do texto (o que é muito diferente do se projetar nele). (p. 74) 306 ROLAND BARTHES, par lui même Éditions du Seuil, 1975 OBRA NÚMERO 12 UTILIZADA NA TESE ROLAND BARTHES por Roland Barthes, Tradução de Leyla Perrone-Moisés EDITORA CULTRIX MCMLXXVII (1977) No quadro negro O Sr. B., professor do terceiro Ano do liceu Louis-le-Grand, era um velhinho socialista e nacionalista. No começo do ano, ele recenseava solenemente, no quadro negro, os parentes dos alunos que tinham ―tombado no campo de honra‖; os primos abundavam, mas fui o único a poder anunciar um pai; fiquei constrangido, como por distinção excessiva. Entretanto, apagado o quadro, nada restava daquele luto proclamado – a não ser, na vida real, que é sempre silenciosa, a figura de um lar sem ancoragem social: nenhum pai para matar, nenhuma família para odiar, nenhum meio para reprovar: grande frustração edipiana! (Esse mesmo Sr. B., no sábado à tarde de distração, pedia a um aluno que lhe sugerisse um assunto qualquer para reflexão, e por mais extravagante que este fosse, ele nunca renunciava a convertê-lo num pequeno ditado, que improvisava passeando pela sala de aula, atestando assim sua mestria e sua facilidade de redação.) Afinidade carnavalesca do fragmento e do ditado: o ditado voltará aqui algumas vezes, como figura obrigatória da escritura social, farrapo da redação escolar. (p. 51) O gesto do arúspice Em S/Z (p. 20), a lexia (o fragmento de leitura) é comparada àquele trecho de céu recortado pelo bastão do arúspi ce. Essa imagem lhe agradou: devia ser lindo, outrora, aquele bastão apontado para o céu, isto é, para o inapontável; e, além disso, esse gesto é louco: traçar solenemente um limite do qual não sobra imediatamente nada, a não ser a remanência intelectual de um 307 recorte, consagrar-se à reparação totalmente ritual e totalmente arbitrária de um sentido. (p. 54) O pleno do cinema Resistência ao cinema: o próprio significante é nele sempre, por natureza, liso, qualquer que seja a retórica dos planos; é, sem remissão, um continuum de imagens: a película (bem denominada: é uma pele sem brecha) segue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatutária do fragmento, do hai-kai. Certos constrangimentos de representação (análogos às rubricas obrigatórias da língua) obrigam a receber tudo: de um homem que caminha sobre a neve, antes mesmo de ele significar, tudo me é dado; na escritura, pelo contrário, não sou obrigado a ver como são as unhas do herói – mas, se lhe der vontade, o Texto me diz, e com que força, as unhas demasiadamente compridas de Hölderlin. (Mal acabo de escrever isto e já me parece confissão imaginária; eu devia tê-lo enunciado como uma fala sonhadora, que procurasse saber por que resisto ou desejo; infelizmente, estou condenado à asserção: falta, em f rancês (e talvez em qualquer língua), um modo gramatical que dissesse levemente (nosso condicional é pesado demais), não a dúvida intelectual, mas o valor que procura converter-se em teoria.) (p. 61-62) Os amigos Por vezes, na velha literatura, encontra-se essa expressão aparentemente estúpida: a religião da amizade (fidelidade, heroísmo, ausência de sexualidade). Mas já que, da religião, subsiste apenas o fascínio do rito, ele gostava de conservar os pequenos ritos da amizade: festejar com um amigo a libertação de uma tarefa, o afastamento de uma preocupação: a celebração acentua o acontecimento, acrescenta-lhe um suplemento inútil, um gozo perverso. Assim, por magia, este fragmento foi escrito por último, depois de todos os outros, como uma espécie de dedicatória (3 de setembro de 1974). (p. 72) O gosto pela divisão Gosto pela divisão: as parcelas, as miniaturas, os contornos, as precisões brilhantes (tal é o efeito produzido pelo haschsich, segundo Baudelaire), a vista dos campos, as janelas, o hai-kai, o traço, a escritura, o fragmento, a fotografia, o palco à italiana, em suma, o que se quer, todo o articulado do semanticista ou todo o material do fetichista. Esse gosto é decretado progressista: a arte das 308 classes ascendentes procede por emolduramento: (Brecht, Diderot, Eisenstein). (p. 77) De viés Poe um lado, o que ele diz dos grandes objetos do saber (o cinema, a linguagem, a sociedade) nunca é memorável: a dissertação (o artigo sobre alguma coisa) é como um imenso dejeto. A pertinência, miúda (quando ela existe), vem apenas nas margens, nas incisas, nos parêntese, de viés: é a voz off do sujeito. Por outro lado, ele nunca explicita (nunca define) certas noções que parecem ser para ele as mais necessárias, e que ele usa sempre (sempre substantivos sob uma palavra). A Doxa é constantemente alegada, mas não é definida: nenhum fragmento sobre a Doxa. O Texto é sempre apresentado metaforicamente: é o campo do arúspice, um assento, um cubo facetado, um excipiente, um picadinho japonês, uma confusão de cenários, uma trança, uma renda valenciana, um oued marroquino, um vídeo de televisão em pane, uma massa folheada, uma cebola, etc> E quando ele faz uma dissertação ―sobre‖ o Texto (para uma enciclopédia), sem a renegar (nunca renegar nada: em nome de que presente?) trata-se de uma tarefa de saber e não de escritura. (p. 81) O círculo dos fragmentos Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê? Seu primeiro texto ou quase (1942) é feito de fragmentos; essa escolha justificava-se então à maneira de Gide ―porque a inocência é preferível à ordem que deforma‖. Desde então, de fato, ele não cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de L‟Empire des signes, artigos e prefácios dos Essais critiques, lexias de S/Z, parágrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du Texte. Ele já via a luta livre como uma seqüência de fragmentos, uma soma de espetáculos, pois ―na luta livre o que é inteligível é cada momento, e não a duração‖ (My, 14); ele olhava com espanto e predileção esse artifício esportivo, submetido em sua própria estrutura ao assíndeto e ao anacoluto, figuras da interrupção e do curto-circuito. 309 Não somente o fragmento é cortado de seus vizinhos, mas ainda no interior de cada fragmento reina a parataxe. Isto se vê bem quando se faz o índice desses pedacinhos; para cada um, a reunião dos referentes é heteróclita; é como um jogo de rimas prévias: ―Tomem-se as palavras fragmento, círculo, Gide, luta livre, assíndeto, pintura, dissertação, Zen, intermezzo; imagine-se um discurso que as possa ligar.‖ Pois bem, será simplesmente este fragmento. O índice de um texto não é somente um instrumento de referencia; ele próprio é um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que há de delirante (de interrompido) na razão das frases. Não tendo praticado, me pintura, mais do que borrões tachistas, decidi começar uma aprendizagem regular e paciente do desenho; tento copiar uma composição persa do século XVII (Senhor caçando‖); irresistivelmente, ao invés de procurar representar as proporções, a organização, a estrutura, copio e encadeio ingenuamente pormenor por pormenor; de onde certas ―chegadas‖ inesperadas: a perna do cavaleiro acaba encarapitada lá no alto do peito do cavalo, etc. Em suma, procedo por adição, não por esboço; tenho o gosto prévio (primeiro) do pormenor, do fragmento, do rush, e a inabilidade para o levar a uma ―composição‖: não sei reproduzir ―as massas‖. Gostando de encontrar, de escrever começos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por que ele escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos começos, tantos prazeres (mas ele não gosta dos fins: o risco de cl ausula retórica é grande demais: receio de não saber resistir à última palavra, à última réplica). O zen pertence ao budismo torin, método da abertura abrupta, separada, rompida (o kien é, pelo contrário, o método de aceso gradual). O fragmento 9como o hai-kai) é torin; ele implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira então o caderninho de apontamentos, não para anotar um ―pensamento‖, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um ―verso‖. Como? Quando se colocam fragmentos em seqüência, nenhuma organização é possível? Sim: o fragmento é como a idéia musical de um ciclo (Bonne Chanson, Dichterliebe): cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas: a obra é feita somente de páginas avulsas. O homem que melhor compreendeu e praticou a estéti ca do fragmento 310 (antes de Webern) foi talvez Schumann; ele chamava o fragmento de intermezzo; ele multiplicou em suas obras os intermezzi; tudo o que produzia era finalmente intercalado: mas entre que e quê? Que quer dizer uma pura seqüência de interrupções? O fragmento é seu ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como da Máxima), mas de música: ao ―desenvolvimento‖, opor-se-ia o ―tom‖, algo de articulado e de cantado, uma dicção: ali deveria reinar o timbre. Peças breves de Webern: nenhuma cadencia: que soberania ele põe em não ir longe! O fragmento como ilusão Tenho a ilusão de acreditar que, ao quebrar meu discurso, cesso de discorrer imaginariamente sobre mim mesmo, atenuo o risco de transcendência; mas como o fragmento (o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico, e como a retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar -me, não faço mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário. Do fragmento ao diário Sob o álibi da dissertação destruída, chaga-se á prática regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o ―diário‖. Assim sendo, o objetivo disso tudo não é se dar o direito de escrever um ―diário‖/ Não tenho fundamentos para considerar tudo o que escrevi como um esforço clandestino e obstinado para fazer reaparecer um dia, livremente, o tema do ―diário‖ de Gide? No horizonte terminal, talvez esteja simplesmente o texto inicial (seu primeiro texto teve por objeto o Diário de Gide). O ―diário‖ (autobiográfico) está entretanto, hoje em dia, desacreditado. Cruzamentos: no século XVI, quando se começava a escrevê-lo sem repugnância, chamavam-no de diaire: diarrhée e glaire (diarréia e ranho). Produção de meus fragmentos. Contemplação de meus fragmentos (correção, polimento, etc). Contemplação de meus dejetos (narcisismo). (p. 101-103) 311 A frase A frase é denuncia como objeto ideológico e produzida como gozo (é uma essência reduzida do Fragmento). Pode-se, então, ou acusar o sujeito de contração, ou induzir dessa contradição um espanto, quiçá uma volta crítica: e se houvesse, a título de perversão segunda, um gozo da ideologia? (p. 112) O imaginário O esforço vital deste livro visa a encenação de um imaginário. ―Encenar‖ quer dizer: escalonar suportes, dispersar papeis, estabelecer níveis e, no fim de contas: fazer da ribalta uma barra incerta. Importa pois que o imaginário seja tratado segundo seus graus (o imaginário é uma questão de graus), e existem, ao longo desses fragmentos, vários graus de imaginário. A dificuldade, entretanto, reside no fato de não se poder numerar esses graus, como os graus de uma bebida alcoólica ou de uma tortura. Antigos eruditos acrescentavam por vezes, sabiamente, após uma proposição, o corretivo ―incertum‖. Se o imaginário constituísse um trecho bem delimitado, cujo embarco fosse sempre seguro, bastaria anunciar cada vez esse trecho por algum operador metalingüístico, para se eximir de o haver escrito. Foi o que se pôde fazer aqui para alguns fragmentos (aspas, parêntese, ditado, cena, redente, etc.): o sujeito, desdobrado (ou imaginando-se tal), consegue por vezes assinar seu imaginário. Mas esta não é uma prática segura; primeiramente, porque há um imaginário da lucidez e porque, separando os níveis do que digo, o que faço não é, apesar de tudo, mais do que remeter a imagem para mais longe, produzir uma segunda careta; em seguida, e sobretudo, porque, freqüentemente, o imaginário vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre um pretérito perfeito, um pronome, uma lembrança, em suma, tudo o que pode ser reunido sob a própria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu. O sonho seria pois: nem um texto de variedade, nem um texto de lucidez, mas um texto de aspas incertas, de parênteses flutuantes (nunca fechar parênteses é exatamente: derivar). Isso depende também do leitor, que produz o escalonamento das leituras. (Em seu grau, o Imaginário se experimenta assim: tudo o que tenho vontade de escrever a meu respeito e que finalmente acho embaraçoso escrever. Ou ainda: o que só pode ser escrito com a complacência do leitor. Ora, cada leitor tem sua complacência; assim, por pouco que se possa classificar essas complacências, torna-se possível classificar os próprios fragmentos: cada um recebe sua marca de imaginário daquele mesmo horizonte onde ele se acredita 312 amado, impune, subtraído ao embaraço de ser lido por um sujeito sem complacência, ou simplesmente: que olhasse.) (p. 113-114) A pessoa dividida? Para a metafísica clássica, não havia nenhum inconveniente em ―dividir‖ a pessoa (Racine: ―Trago dois homens em mim‖); muito pelo contrário, provida de dois termos opostos, a pessoa funcionava como um bom paradigma (alto/baixo, carne/espírito, céu/terra); as partes em luta se reconciliavam na fundação de um sentido: o sentido do homem. Eis por que, quando falamos hoje de um sujeito dividido, não é de modo algum para reconhecer suas contradições simples, suas duplas postulações, etc.; é uma difração que se visa, uma fragmentação em cujo jogo não resta mais nem núcleo princi pal, nem estrutura de sentido: não sou contraditório, sou disperso. (p. 153) Fases Observações: 1. o intertexto não é, forçosamente, um campo de influências; é antes uma música de fi guras, de metáforas, de pensamentos-palavras; é o significante como sereia; 2. moralidade deve ser entendida como o exato contrário da moral (é o pensamento do corpo em estado Intertexto Gênero Obras (Gide) (desejo de escrever) Sartre Lê degré zéro Marx mitologia social Escritos obre o teatro Brecht Mythologies Saussure semiologia Eléments de sémiologie Système de la mode Sollers S/Z Julia Kristeva textualidade Sade, Fourier,Loyola Derrida Lacan L‟Empire des signes (Nietzsche) moralidade Lê plaisir du Texte R.B. par lui-même 313 de linguagem); 3. primeiramente intervenções (mitológicas), depois ficções (semiológicas), em seguida estilhaços, fragmentos, frases; 4. entre os períodos, evidentemente, há encavalamentos, voltas, afinidades, sobrevivências; são em geral os artigos (de revista) que assumem esse papel conjuntivo; 5. cada fase é reativa: o autor reage quer ao discurso que o cerca, quer a seu próprio discurso, se um e outro começa a tomar demasiada consistência; 6. assim como um prego empurra o outro, segundo se diz, uma perversão expulsa uma neurose: à obsessão política e moral, sucede um pequeno delírio científico, desfeito por sua vez pelo gozo perverso (com um fundo de fetichismo); 7. o recorte de um tempo, de uma obra, em fase de evolução – embora se trate de uma operação imaginária – permite entrar no jogo da comunicação intelectual: a gente se torna inteligível. (p. 156) O alfabeto Tentação do alfabeto: adotar a sequencia das letras para encadear fragmentos é entregar-se ao que faz a glória da linguagem (e que provoca o desespero de Saussure): uma ordem imotivada (fora de qualquer imitação), que não é arbitrária (já que toda gente a conhece, a reconhece e se entende a seu respeito). O alfabeto é eufórico: terminadas a angustia do ―plano‖, a ênfase do ―desenvolvimento‖, as lógicas retorcidas, terminadas as dissertações! Uma idéia por fragmento, um fragmento por idéia, e para a sequencia desses átomos, nada mais do que a ordem milenária e louca das letras francesas (que são elas próprias objetos insensatos – privados de sentido). Ele não define uma palavra, ele nomeia um fragmento; ele faz exatamente o inverso do dicionário: a palavra sai do enunciado, ao invés de o enunciado derivar da palavra. Do glossário, apenas retenho o princípio mais formal: a ordem de suas unidades. Essa ordem, entretanto, pode ser maliciosa: ela produz, por vezes, efeitos de sentido; e se esses efeitos não forem desejados, é preciso romper a ordem alfabética em proveito de uma regra superior: a da ruptura (da heterologia): impedir que um sentido ―pegue‖. (p. 157-158) A ordem de que não me lembro mais Ele se lembra mais ou menos da ordem em que escreveu estes fragmentos; mas de onde vinha essa ordem? Segundo que classificação, que seqüência? Ele não se lembra mais. A ordem alfabética apaga tudo, recalca toda origem. Talvez, em certos trechos, determinados fragmentos pareçam seguir-se por afinidade; mas o importante é que essas pequenas redes não sejam 314 emendadas, que elas não deslizem para uma única e grande rede que seria a estrutura do livro, seu sentido. É para deter, desviar, dividir essa inclinação do discurso para um destino do sujeito, que em determinados momentos, o alfabeto nos chama à ordem (da desordem0 e nos diz: Crte! Retome a história de outra maneira (mas também. Por vezes, pela mesma razão, é preciso romper o alfabeto). (p. 158) “Que quer dizer isto?” Paixão constante (e ilusória) de apor a qualquer fato, mesmo o menor deles, não a pergunta da criança: por quê? Mas a pergunta do antigo grego, a questão do sentido, como se todas as coisas estremecessem de sentidos: que quer dizer isto? É preciso, a qualquer preço, transformar o fato em idéia, em descrição, em interpretação, em suma, encontrar para ele um outro nome que não o seu. Essa mania não faz acepção de futilidade: por exemplo, se constato - e apresso-me a constatá-lo – que, estando no campo, gosto de urinar no jardim e não em outra parte, quero imediatamente saber o que isso significa. Essa fúria de tornar significantes os fatos mais simples marca socialmente o sujeito, como um vício: não se deve desengatar a cadeia dos nomes, não se deve desencadear a linguagem: o excesso de nominação é sempre ridicularizado (M. Jourdain, Bouvard e Pécuchet). (Aqui mesmo, exceto nas Anamnses, cujo preço é exatamente este, não se suporta nada que deixe de significar; não se ousa deixar o fato num estado de in-significância; é o movimento da fábula que tira de qualquer fragmento real uma lição, um sentido. Um livro inverso poderia ser concebido: que contasse mil ―incidentes‖, proibindo-se de jamais arrancar-lhes uma linha sequer de sentido; seria precisamente um livro de hai-kais.) (p. 161) O recesso Em tudo isto existem riscos de recesso: o sujeito fala de si (risco de psicologismo, risco de enfatuação), ele enuncia por fragmentos (risco de aforismo, risco de arrogância). (p. 162) A siba e sua tinta Escrevo isto dia após dia; e vai pegando, vai pegando: a siba produz sua tinta: amarro meu imaginário (para me defender e me oferecer, ao mesmo tempo). 315 Como saberei que o livro está acabado? Em suma, como sempre, trata-se de elaborar uma língua. Ora, em toda língua os signos voltam, e, à força de voltar, acabaram por saturar o léxico – a obra. Tendo debilitado a matéria desses fragmentos durante meses, o que me acontece, desd então, vem encaixar -se espontaneamente (sem forçar) sob as enunciaçãoe que já foram feitas: a estrutura se tece pouco a pouco, e, ao fazê-lo, ela galvaniza cada vez mais: constrói-se assim, sem nenhum plano de minha parte, um repertótio finito e pertétuo, como o da língua. Em dado momento, nenhuma transformação é possível, a não ser a que aconteceu ao navio Argo: eu poderia guardar o livro durante muito tempo, mudando pouco a pouco cada fragmento. (p. 174) O texto sintomático Como devo fazer para que cada um destes fragmentos nunca seja mais do que um sintoma? – É fácil: deixe-se ir, regrida.(p. 182) Mais tarde Ele tem essa mania de dar ―introduções‖, ―esboços‖, ―elementos‖, remetendo para mais tarde o ―verdadeiro‖ livro. Essa mania tem um nome retórico: é a prolepse (bem estudada por Genette). Eis aqui alguns desse livros anunciados: uma História da escritur a (DZ, 22), uma História da retórica (1970, II), uma História da etimologia (1973), uma nova estilística (S/Z, 107), uma Estética do Prazer textual (PlT, 104), uma nova ciência lingüística (PlT, 104), uma Lingüística do valor (ST, 61), um inventário dos discursos de amor (S/Z, 182), uma ficção fundada sobre a idéia de um Robinson urbano (1971, I), uma suma sobre a pequena burguesia (1972, II), um livro sobre a França, intitulado – à maneira de Michelet – Nossa França (1971, II), etc. Esses anúncios, que visam, no mais das vezes, um livro-suma, desmesurado, paródico do grande monumento de saber, só podem ser simples ato de discurso (são exatamente prolepses); eles pertencem à categoria do dilatório. Mas o dilatório, de negação do real (do realizável), não é entretanto menos vivo: esses projetos vivem, nunca são abandonados; suspensos, eles podem retomar vida a qualquer instante; ou pelo menos, como o rastro persistente de uma obsessão, eles se realizam, parcialmente, indiretamente, como gestos, através dos temas, dos fragmentos, dos artigos: a História da Escritura (postulada em 1953) engendra, vinte anos mais tarde, a idéia de um seminário sobre uma história do discurso francês; a Lingüística do Valor orienta, 316 de longe, este livro aqui. A montanha dá à luz um ratinho? É preciso revirar positivamente esse provérbio desdenhoso: a montanha não é demais para fazer um ratinho. (p. 183-184) Pontos de referencia: Fragmento: 101, 102, 158 I lustrações * 109 Roland Barthes, manuscrito de um fragmento. Sumário Fragmentos: 49 100 – O círculo dos fragmentos: 101 – O fragmento como ilusão: 103 – Do fragmento ao diário: 103 – [...] 317 FRAGMENTS D'UN DISCOURS AMOUREUX, A Lover's Discourse: Fragments 1977 OBRA NÚMERO 13 UTILIZADA NA TESE FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO Tradução HORTÊNCIA DOS SANTOS 15ª Edição LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S. A. 2000 WINNICOTT, Fragmento de uma análise (comentado por J. - L.B.). Nota de rodapé, (p. 112) NIETZSCHE: todo esse fragmento, evidentemente, segundo Nietzsche-Deleuze, principalmente 60,75. Nota de rodapé, (p. 158) BALZAC: ―Ela era experiente e sabia que o caráter amoroso é assinalado de alguma forma nas pequenas coisas. Uma mulher instruída pode ler seu futuro num simples gesto, assim como Cuvier sabia dizer ao ver o fragmento de uma pata: isso pertence a um animal de tal dimensão‖ etc. (Os segredos da Princesa de Cadignan). Nota de rodapé, (p. 262) Rusbrock Pequeno grupo dos ―Mortos de Fome‖, dos Suicidas de amor (quantas vezes um mesmo enamorado não se suicida?), aos quais nenhuma grande linguagem (a não ser, fragmentariamente, a do Romance Passado) emprestou sua voz. Suicídio - IDÉIAS DE SUICÍDIO, (p.271) Tabula gratulatória THEODOR REIK, Fragment d‟une grand confession (Denoël). (p. 296) Este fragmento é encontrado na pág. 83 como nome de REIK; provérbio citado por Reik, 184. E citamos: ―O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, é sempre embaixo da lâmpada.‖ 318 LEÇON INAUGURALE AU COLLÈGE DE FRANCE, Éditions du Seuil, 1977-8 OBRA NÚMERO 14 UTILIZADA NA TESE AULA 10ª Edição AULA INAUGURAL DA CADEIA DE SEMIOLOGIA LITERÁRIA DO COLÉGIO DE FRANÇA Pronunciada dia 7 de janeiro de 1977 Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés EDITORA CULTRIX São Paulo 2002 [...] O que eu gostaria de renovar, cada um dos anos em que me será dado aqui ensinar, é a maneira de apresentar a aula ou o seminário, em suma, de ―manter‖ um discurso sem impor: este será a aposta metódica, a questio, o ponto a ser debatido. Pois o que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto. Já que este ensino tem por objeto, como tentei sugerir, o discurso preso à fatalidade de seu poder, o método não pode realmente ter por objeto senão os meios próprios para baldar, desprender, ou pelo menos aligeirar esse poder. E eu me persuado cada vez mais, quer ao escrever, quer ao ensinar, que a operação fundamental desse método de desprendimento é, ao escrever, a fragmentação, e ao expor, a digressão ou, para dizê-lo por uma palavra preciosamente ambígua: a excursão. Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz. (p. 43-44) LIÇÃO DE CASA Leyla Perrone-Moisés 319 Falei de ironia. A ironia é uma forma clássica de distanciamento (ele próprio o disse, mais de uma vez); ela supõe uma hierarquia, um olhar lançado de cima. Daí a pergunta: a ironia não é uma forma discursiva de poder? Por outras palavras: o discurso de um mestre da linguagem pode ser, alguma vez, desprotegido e inocente, como o do apaixonado de que ele fala nos Fragmentos de um discurso Amoroso? Como se jogam os afetos e as defesas numa Aula Inaugural? (p. 57) A sintaxe barthesiana não coloca problemas particulares para o tradutor português ou brasileiro, contanto que este utilize corretamente os recursos de precisão e de elegância oferecidos por nossa língua. Para o crítico, essa não-resistência da sintaxe se presta à reflexão: a sintaxe clássica é, para Barthes, um meio ou uma camuflagem. Mas é preciso que o tradutor esteja atento à pontuação, que marca a distribuição da frase; porque Barthes tira seus efeitos de enunciação do modo como fragmenta a frase e joga com seus fragmentos. Em Barthes, é a pontuação que sacode a tirania da frase. (p. 68) Qualquer fragmento de O Prazer do Texto ou de Roland Barthes por Roland Barthes (a Aula é um pouco diferente, devido ao jogo retórico a que já aludi) poderia servir de exemplo: virgulas, pontos-e-virgulas, dois-pontos, pontos de interrogação se sucedem, evitando ou adiando o ponto final; travessões e parênteses marcam numerosos encaixes; e, como as aspas não são suficientes para indicar as diferentes razões ou maneiras de isolar certas palavras, estas são freqüentemente grifadas. Só falta o ―ponto de ironia‖, que um certo Alcanter de Brahm inventou, sem grande êxito, no século passado. (p. 69) 320 LA CHAMBRE CLAIRE, Cahiers du Cineme/Gallimard/Seuil 1980 OBRA NÚMERO 15 UTILIZADA NA TESE A CÂMARA CLARA Nota sobre a fotografia Tradução de Júlio Castañon Guimarães EDITORA NOVA FRONTEIRA, 1984 A palavra fragmento não foi encontrada neste livro! 321 L'OBVIE ET L'OBTUS The Responsibility of Forms, Éditions du Seuil, 1982 OBRA NÚMERO 16 UTILIZADA NA TESE O ÓBVIO E O OBTUSO, Tradução de Isabel Pascoal, Lisboa: Edições 70, Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES COLEÇÃO SIGNOS 42 1984 Nota do editor francês E por último, não esqueçamos: R. B., que dedicava a máxima atenção ao mais infinito pormenor que se ligasse à atividades do escritor, foi sempre quem redigiu o essencial do <<é favor inserir>> dos seus livros, assim como quis ser o autor do Roland Barthes dos Écrivains de toujours: isto basta para dizer até que ponto o editor, ao intervir agora, se sente inoportuno ao assumir a inteira responsabilidade do discurso 1 1 Num caso, a regra barthesiana de não confundir o escrito com o oral foi transgredida: na conferencia sobre Charles Panzéra proferida em Roma em 1977; e isso porque dispúnhamos de um texto inteiramente redigido que nos pareceu ser importante, não só porque completa os escritos sobre a música mas também pelo seu alcance biográfico. No campo da pintura, todos os ensaios escritos por R. B. – e todos escritos relativamente tarde – podem ter sido reunidos agora devido ao acordo muito facilmente obtido entre os diferentes editores, se não tivéssemos de considerar à parte, embora o lamentemos, o caso de um escritor a Steinberg, encomendado há vários anos e redigido na última fase de Barthes – a dos fragmentos. A publicação original deste livro, apesar do texto de R. B. Estar pronto desde 1977, só agora se tornou viável. (p. 10) 322 A mensagem fotográfica Os processos de conotação 6. Sintaxe Já falamos aqui de uma leitura de objectos-signos no interior de uma mesma fotografia; naturalmente, várias fotografias podem constituir -se em seqüência (é o caso corrente nas revistas ilustradas); o significante de conotação já não se encontra então ao nível de nenhum fragmento da seqüência, mas no nível (supra-segmental, diriam os lingüistas) do encadeamento. Vejamos quatro instantâneos de uma caçada presidencial em Rambouillet; em cada tiro o ilustre caçador (Vicente Auriol) aponta a espingarda para uma direção imprevista, com grande perigo para os guardas que fogem ou se lançam por terra: a seqüência (e só a seqüência) dá a ler um cômico, que surge, segundo um processo bem conhecido, da repetição e da variação das atitudes. A propósito disto, é preciso notar que a fotografia solitária muito raramente (isto é, muito dificilmente) é cômica, contrariamente ao desenho; o cômico tem necessidade de movimento, isto é, de repetição, (o que é fácil no cinema), ou de tipificação (o que é possível no desenho), estando estas duas <<conotações>> interdi tadas à fotografia. (p. 20) Retórica da imagem A mensagem lingüística A ancoragem é a função mais freqüente da mensagem lingüística; encontramo-la vulgarmente na fotografia de imprensa e na publicidade. A função de etapa é mais rara (pelo menos no que diz respeito à imagem fixa); encontramo-la sobretudo nos desenhos humorísticos e nas bandas desenhadas. Aqui, a palavra (a maior parte das vezes um fragmento de diálogo) e a imagem estão numa relação complementar; as palavras são então fragmentos de um sintagma mais geral, tal como as imagens, e a unidade da mensagem faz-se a um nível superior: o da história, da anedota, da diegese (o que confirma bem que a diegese deve ser tratada como um sistema autônomo 2 ). Rara na imagem fixa, esta palavra-etapa torna-se muito importante no cinema, onde o diálogo não tem uma função simples de elucidação, mas onde ela faz verdadeiramente avançar a 323 ação ao colocar na seqüência das mensagens, sentidos que não se encontram na imagem. (p. 33) 2 Cf. Claude Bremond, <<lê message narratif>>, in Communications, 4, 1964. O terceiro sentido O sentido obtuso [...] Toda a gente julgo, pode convir que a etnografia proletária de S. M. E., fragmentada ao longo das exéquias de Vakoulintchouk, tem constantemente algo de enamorado (utilizando esta palavra aqui sem especificação de idade ou de sexo): material, cordial e viril, <<simpático>> sem nenhum recurso aos estereótipos, o povo eisensteiniano é essencialmente amável: saboreamos, amamos os dois círculos de boné da imagem X. entramos em cumplicidade, em inteligência com eles. (p. 50) O fotograma O fotograma dá-nos o dentro do fragmento: seria preciso retomar aqui, deslocando-as, as formulações do próprio S. M. E., quando ele enuncia as novas possibilidades da montagem audiovisual (n.° 218): <<... o centro de gravidade fundamental... transfere-se pra dentro do fragmento, nos elementos incluídos na própria imagem. E o centro de gravidade já não é o elemento <<entre os planos>> - o choque, mas o elemento <<no plano>> - a acentuação no interior do fragmento>>... sem dúvida, não há nenhuma montagem audiovisual no fotograma; mas a fórmula de S. M. E. é geral, na medida em que ela estabelece um direito à disjunção sintagmática das imagens, e pede uma leitura vertical (ainda um termo de S. M. E.) da articulação. Além disso, o fotograma não é uma amostra (noção que suporia uma espécie de natureza estilística, homogênea, dos elementos do filme), mas uma citação (sabemos quando este conceito ganha atualmente importância na teoria do texto): é, ao mesmo tempo, paródico e disseminador; não é uma pitada retirada quimicamente da substância do filme, mas antes o rasto de uma distribuição superior dos traços de que o filme vivido, passado, animado, não seria em suma, senão um texto, entre outros. O fot ograma é então fragmento de um segundo texto cujo ser não excede nunca o fragmento; filme e fotograma encontram-se numa relação de palimpsesto, sem que se possa dizer que um é o acima do outro ou que um é extraído do outro. Enfim, o 324 fotograma levanta a restrição do tempo fílmico; esta restrição é forte, é ainda obstáculo daquilo a que se poderia chamar o nascimento adulto do filme (nascido tecnicamente, por vezes mesmo esteticamente, o filme tem ainda de nascer teoricamente). (p. 58) O teatro grego As obras [...] A diferença (capital), era que o ditirambo se representava sem atores (mesmo se havia solos), e sobretudo sem máscaras e sem trajos. O coro era numeroso: cinqüenta executantes, crianças (de menos de dezoito anos) ou homens. Era um coro cíclico, quer dizer que as danças do coro se faziam na orquestra à volta da tímele,e não de frente, em face do público, como na tragédia. A música utilizava sobretudo modos orientais, era de significação tumultuosa (por oposição ao péan apolíneo); esta música tornou-se cada vez mais importante do que o texto aproxima também o ditirambo da nossa ópera. Não nos resta nenhum destes ditirambos, salvo alguns fragmentos mutilados de Píndaro. Ignorância quase igual do drama satírico, tanto mais incomodava quanto ele seguia obrigatoriamente toda a trilogia trágica. Deste gênero, só temos os <<Limiers>> de Sófocles, o Ciclope de Euríspedes e alguns fragmentos de Ésquilo que acabaram de ser encontrados. (p. 63) R. T. Saussure é conhecido pelo seu Curso de Lingüística Geral 1 , donde saiu uma boa parte da lingüística moderna. Contudo, começamos a adivinhar, através de certas publicações fragmentarias, que o grande desígnio do sábio de Genebra não era de modo nenhum fundar uma lingüística nova (diz-se que ele considerava pouco o seu Curso), mas desenvolver e impor aos outros sábios (bastante cépticos) uma descoberta que ele tinha feito e que lhe obcecou a vida (muito mais do que a lingüística estrutural): a saber, que existe, entrançado no verso das poesias antigas (védica, grega, latina) um nome (de deus, de herói) aí colocado pelo poeta de uma maneira um pouco esotérica – e, contudo, regular, entendendo-se este nome por seleção sucessiva de algumas letras privilegiadas. (p. 102) 325 Arcimboldo ou Retórico e Mágico Lembremo-nos, uma vez mais, da estrutura da linguagem humana: é articulada duas vezes: a seqüência do discurso pode ser segmentada em palavras, e as palavras podem ser segmentadas por sua vez em sons (ou em letras). Há contudo uma grande diferença entre duas articulações: a primeira produz unidades cada uma já com um sentido (são as palavras); a segunda produz unidades insignificantes (são os fonemas: um fonema, em si, não significa nada). Esta estrutura, sabemo-lo, não vale para as artes visuais; é bem possível decompor o <<discurso>> do quadro em formas (linha e pontos), mas estas formas não significam nada antes de serem reunidas; a pintura não reconhece senão uma articulação. Por isso, podemos compreender sem dificuldade o paradoxo estrutural das composições arcimboldescas. (p. 116-117) Entendemos por isto que entre os dois termos da transposição subsiste um traço, uma <<ponte>>, uma certa analogia: os dentes assemelham-se <<espontaneamente>>, ou <<vulgarmente>> (visto que outros que não Arcimboldo teriam podido dizê-lo) a campainhas de flores, a pequenas ervilhas na vagem; estes objetos diferentes têm formas em comum: são parcelas de matéria, cortadas iguais e agrupadas – arrumadas – numa mesma linha; o nariz assemelha-se a uma espiga, pela sua forma oblonga e arqueada; a boca, carnuda, assemelha-se a um figo entreaberto, cujo interior esbranquiçado ilumina a abertura vermelha da polpa. (p. 119) Cy Twombly ou nom multa sed multon Escrita Alguém aproximou TW de Mallarmé. Mas o que serviu para a aproximação, a saber uma espécie de esteticismo superior que os uniria aos dois, não existe nem num nem noutro. Confrontar-se com a linguagem, como o fez Mallarmé, implica uma mira muito mais séria – muito mais perigosa – do que a estética. Mallarmé quis desmontar a frase, veículo secular, para a França, da ideologia. De passagem, por arrastamento, TW desmonta a escrita. Desmontar 326 não quer forçosamente dizer tornar irreconhecível; nos textos de Mallarmé, a língua francesa é reconhecida, funciona aos pedaços, lá isso é verdade. Nos grafismos de TW a escrita é, também, reconhecida; ela aparece, apresenta-se como escrita. Contudo, as letras formadas já não fazem parte de nenhum código gráfico, como os grandes sintagmas de Mallarmé já não fazem parte de nenhum código retórico – nem mesmo do da destruição. (p. 140) 327 LE BRUISSEMENT DE LA LANGUE, The Rustle of Language, Seuil, Paris, 1984 OBRA NÚMERO 17 UTILIZADA NA TESE O RUMOR DA LÍNGUA Prefácio Leyla Perrone-Moisés; Tradução Mario Laranjeira; revisão de tradução Andréa Stahel M. da Silva. – 2ª ed. – São Paulo; Martins Fontes, 2004 Nota do editor francês Entre esses dois tipos de textualidade, os Ensaios críticos. Quase tudo trata, nesta última coletânea que estamos a apresentar, da linguagem e da escritura literária ou, melhor dizendo, do prazer que devemos ao texto. Reconhecer-se-á facilmente, ao correr das páginas, o deslocamento dos conceitos e dos procedimentos de escritura que, ao longo de quinze anos, conduz ao termo texto, e talvez o ultrapasse, por sua vez, pelo acesso ao método do fragmento e a um lugar de enunciação sempre mais assumida, no projeto de ligar a escritura ao corpo; fica claro que, para R.B., o devir ia no sentido de uma proximidade de si cada vez maior. (p.XXII) Proust deu à escritura moderna a sua epopéia: mediante uma inversão radical, em lugar de colocar a sua vida no seu romance, como t ão freqüentemente se diz, ele fez da sua própria vida uma obra de que o livro foi como o modelo, de maneira que nos ficasse bem evidente que não é Charlus quem imita Montesquieu, mas que Montesquieu, na sua realidade anedótica, histórica, não é mais que um fragmento secundário, derivado, de Charlus. (p. 60) 328 A MITOLOGIA HOJE Assim se mostrava, assim pelo menos se me mostrava, o mito hoje. Mudou alguma coisa? Não foi a sociedade francesa, pelo menos nesse nível, pois a história mítica tem uma amplidão que não é a da história política; também não foram os mitos, tampouco a análise; continua havendo, abundante, o mítico em nossa sociedade: igualmente anônimo, esquivo, fragmentado, loquaz, exposto de uma só vez a uma crítica ideológica e a uma desmontagem semiológica. Não, o que mudou nesses quinze anos foi a ciência da leitura, sob cujo olhar o mito, como um animal, há muito tempo capturado e observado, torna-se, entretanto, um outro objeto. (p. 77) JOVENS PESQUISADORE [...] Ao publicar fragmentos de primeiras pesquisas, esperamos combater esse recalque; gostaríamos, assim, de libertar não apenas o autor do artigo, mas o seu leitor, pois o leitor (principalmente o leitor de revista) também é levado pela divisão das linguagens especializadas. (p. 101) [...] Os trabalhos (quiséramos poder dizer: os testemunhos) que aqui estão reunidos correspondem a esse momento em que a teoria deve se fragmentar ao sabor de pesquisas particulares. (p. 103) A PAZ CULTURAL [...] O resultado é que essa secessão não separa apenas os homens entre si, mas cada homem, cada indivíduo está lacerado em si mesmo; em mim, a cada dia, acumulam-se, sem se comunicar, várias linguagens isoladas: estou fracionado, cindido, pulverizado (o que, alhures, seria considerado a própria definição da "loucura"). E, ainda que eu conseguisse falar a mesma linguagem o dia todo, quantas linguagens diferentes sou obrigado a receber! (p. 111) O ESTILO E SUA MENSAGEM O sistema estilístico, que é um sistema como outros, entre outros, tem uma função de naturalização, ou de familiarização, ou de domesticação: as unidades dos códigos de conteúdo são, de fato, submetidas a uma 329 descontinuidade grosseira (as ações são separadas, as notações caracteriais e simbólicas são disseminadas, a marcha da verdade é fragmentada, retardada); a linguagem, sob as espécies elementares da frase, do período, do parágrafo, superpõe a essa descontinuidade semântica, que se fundamenta na escala do discurso, a aparência de uma continuidade; porque, embora a linguagem seja ela própria descontínua, a sua estrutura é tão antiga na experiência de cada homem que ele a vive como verdadeira natureza: não se fala do "fluxo da palavra"? Que há de mais familiar, de mais evidente, de mais natural, do que uma frase lida?. O estilo "forra" as articulações semânticas do conteúdo; por via metonímica, ele naturaliza a história contada, inocenta-a. (P. 152) [...] Não é tudo. A escrita literária não deve ser situada apenas em relação às suas vizinhas mais próximas, mas também aos seus modelos. Entendo por modelos não fontes, no sentido filológico do termo (notemos de passagem que o problema das fontes tem sido colocado quase exclusivamente no plano do conteúdo), mas patterns sintagmáticos, fragmentos típicos de frases, fórmulas, se quiserem, cuja origem é inidentificável, mas que fazem parte de uma memória coletiva da literatura. Escrever é, então, deixar vir a si esses modelos e transformá-los (no sentido que essa palavra tomou em lingüística). (p. 156) O DISCURSO DA HISTÓRIA [...] A segunda classe de unidades é constituída pêlos fragmentos do discurso de natureza arrazoadora, silogística, ou, mais exatamente, entimemática, pois que se trata quase sempre de silogismos imperfeitos, aproximativos 9 . 9. Eis o esquema silogístico de uma passagem de Michelet (Histoire du Moyen Age, t. III, liv. VI, cap. II): 1) Para desviar o povo da revolta, é preciso ocupá-lo. 2) Ora, o melhor meio é lançar-lhe um homem. 3) Portanto, os príncipes escolheram o velho Aubriot, etc. A ESCRITA DO ACONTECIMENTO [...] Vale dizer, por um Aldo, que a escritura (no sentido que se lhe dá aqui, que nada tem a ver com o belo estilo ou mesmo com o estilo literário) não é de modo algum um fato burguês (o que essa classe elaborou é antes palavra impressa), e, por outro lado, que o acontecimento atual não pode f ornecer mais do que alguns fragmentos marginais de escritura, que vimos não serem 330 necessariamente impressos; ter-se-ão por suspeitas qualquer evicção da escritura, qualquer primazia sistemática da palavra, porque, qualquer que seja o álibi revolucionário, urna e outra tendem a conservar o antigo sistema simbólico e recusam ligar a sua revolução à da sociedade. (p. 197-198) A ESTRANGEIRA Embora recente, a semiologia já tem história. Derivada de uma formulação olímpica de Saussure ("Pode-se conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social"), ela não cessa de colocar -se à prova, de fracionar-se, de dessituar-se, de entrar nesse grande carnaval das linguagens descrito por Julia Kristeva. O seu papel histórico hoje é ser a intrusa, a terceira, aquela que perturba esses bons casais exemplares, sempre a nós impingidos, que são, ao que parece, a História e a Revolução, o Estruturalismo e a Reação, o determinismo e a ciência, o progressismo e a crítica dos conteúdos. Dessa "perturbação de convivência", pois que convivências há, o trabalho de Julia Kristeva é hoje a orquestração final: ativa-lhe a força e dá-lhe a teoria. (p. 214) A RASURA [...] E porque basicamente toda crispação de frio do habitat cayroliano é a do esquecimento; em Cayrol, nada de ruínas nobres, restos de pé, fragmentos sólidos e bem plantados de antigos edifícios suntuosos; nem mesmo - ou poucas - mansões arruinadas, desfeitas; tudo está, pelo contrário, no lugar, mas com um toque de esquecimento aberto que dá arrepios (não é esse um dos temas de Muriel?); nada está estragado nesse mundo cayroliano, os objetos funcionam, mas tudo está deserdado, como aquele quarto de Corps étrangers, que o narrador um dia descobre em sua própria casa, por baixo do papel colado na parede, e onde objetos do passado (talvez até um cadáver?) estão ali imóveis, encantados sem encantamento, vibrando ao vento ―agudo‖ da chaminé. (p. 235-236) [...]Esse esquecimento em que as personagens se debatem sem terem muita consciência disso, esse esquecimento não é uma censura; o universo cayroliano não está carregado com uma culpa escondida, nunca nomeada; diante desse mundo, nada há para decifrar; o que nele falta não são fragmentos de tempo culpado, mas tão-somente fragmentos de puro tempo, o que para o 331 romancista é necessário não dizer para separar um pouco o homem da sua própria vida e da vida dos outros, para t orná-lo ao mesmo tempo mais familiar e mais despegado. (p. 238) MODERNIDADE DE MICHELET Então, que fazer? Nada. Que cada um se arranje com o texto de Michelet segundo o seu bel-prazer. Visivelmente, não estamos ainda maduros para uma leitura discriminatória, que aceitasse fragmentar, distribuir, pluralizar, despegar, dissociar o texto de um autor conforme a lei do Prazer. Ainda somos teólogos, não dialéticos. Preferimos jogar a criança com a água da banheira a nos sujar. Ainda não estamos bastante ―educados‖ para ler Michelet. (p. 268) BRECHT E O DISCURSO: CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DA DISCURSIVIDADE O encadeamento A crítica do continuum (aqui aplicada ao discurso) é constante em Brecht. Uma de suas primeiras peças, Na selva das cidades, parece ainda enigmática a muitos comentaristas porque dois parceiros se entregam a um jogo incompreensível, não no nível de cada uma das suas peripécias, mas no nível do conjunto, isto é, segundo uma leitura contínua; o teatro de Brecht é, desde então, uma seqüência (não uma conseqüência) de fragmentos cortados, privados daquilo que em música se chama de efeito Zeigarnik (tal efeito provém de a resolução final de uma seqüência musical lhe conferir retroativamente o sentido). O descontínuo do discurso impede o sentido fi nal de "retomar-se": a produção crítica não espera; quer-se instantânea e repetida: é a própria definição do teatro épico segundo Brecht. O épico é aquilo que corta (repica) o véu, desagrega a pez da mistificação (ver o prefácio de Mahagonny). A máxima O elogio do fragmento (da cena que vem "por si mesma") não é o da máxima. A máxima não é um fragmento; primeiro, porque a máxima é, em geral, o ponto de partida de um raciocínio 'implícito, o princípio de um contínuo que se desenvolve sub-repticiamente num intertexto de sabedoria que habita o leitor; em seguida, porque o fragmento brechtiano nunca é generalizante, não 332 "conciso", não "condensa"; ele pode ser bastante frouxo, dist endido, nutrido de contingências, de especificações, de dados dialéticos; já a máxima é um enunciado de que se subtrai a História: resta o blefe da "Natureza". (p. 275) Leituras II F.B. 1 1. Estilhaços de linguagem Os textos de RB. bem podem ser os sinais precursores de uma grande obra ligada, o autor não obriga em nada o seu leitor, e o que cada um desses textos nos diz é a sua realização. O que é realizado, aqui, é a escritura. De todas as matérias da obra, só a escritura, com efeito, pode dividir-se sem deixar de ser total: um fragmento de escritura é sempre uma essência de escritura. Eis por que, quer se queira quer não, todo fragmento é acabado, a partir do momento em que é escrito; eis também por que não se pode comparar uma obra partida a uma obra seguida; eis, enfim, por que ninguém consegue negar a grandeza das obras fragmentárias: não grandeza da ruína ou da promessa, mas grandeza do silêncio que acompanha todo acabamento (só a erudição, que é o contrário da leitura, pode ver nos Pensamentos, de Pascal, uma obra inacabada). Porque são escritos, os textos de RB. não são nem esboços, nem anotações, nem materiais, nem exercícios; não levam a pensar nem na caderneta nem no diário: são estilhaços de linguagem. 1 . Inédito, esse texto foi escrito à margem de fragmentos de um jovem escritor que parece não ter prosseguido nesta via, na da literatura em seguida, e nada publicou. Texto, pois, escrito à margem e em intenção daquele cujo procedimento invoca como testemunho. A isso ele deve o tom e a destreza claramente lúdicos. Isso não o impede – pelo contrário — de constituir um sistema de proposições agudas sobre um novo tipo de romanesco — não dissemos: de romance - em que não se pode deixar de reconhecer in núcleo, desde 1964, certas características da prática última — as derradeiras e mais novas realizações — de Barthes escritor. (N. do E. Fr.) (p. 282-283) AS SAÍDAS DO TEXTO Eis um texto de Bataille: Lê gros orteil 1 (O dedão do pé). 333 Esse texto, não vou explicá-lo. Vou apenas enunciar alguns fragmentos que serão como saídas do texto. Esses fragmentos estarão em estado de ruptura mais ou menos acentuada uns com relação aos outros: não tentarei ligar, organizar essas saídas; e para estar mais seguro de frustrar qualquer ligação (qualquer planejamento do comentário), para evitar toda retórica do "desenvolvimento", do assunto desenvolvido, dei um nome a cada um desses fragmentos e dispus esses nomes (esses fragmentos) em ordem alfabética* - que é, como se sabe, ao mesmo tempo uma ordem e uma desordem, uma ordem privada de sentido, o grau zero da ordem. Será uma espécie de dicionário (BataÜíe coloca um no fim de Documents} que tomará de viés o texto tutor. 1. Georges Bataille, Documents, Paris, Mercure de France, 1968, pp. 75-82. (Retomado no t. l das Qeuvm completes. Paris, Gallímard, 1970.) * Traduzidos para ò português, esses "fragmentos" não mantêm a ordem alfabética. (N- do T.) (p. 300) ―DURANTE MUITO TEMPO FUI DORMIR CEDO‖ [...] A indecisão de Proust é profunda, na medida em que Proust não é um noviço (em 1909, tem trinta e oito anos); já escreveu, e o que escreveu (principalmente em nível de certos fragmentos) pertence muitas vezes a uma forma mista, incerta, hesitante, ao mesmo tempo romanesca e intelectual; por exemplo, para expor as suas idéias sobre Sainte-Beuve (domínio do Ensaio, da Metáfora), Proust escreve um diálogo fictício entre a mãe e ele (domínio da Narrativa, da Metonímia). Não só essa indecisão é profunda, mas talvez seja também querida: Proust admirou e gostou de escritores que verificou terem praticado, também eles, cerra indecisão de gêneros: Nerval e Baudelaire. (P. 351) [...] O interesse é, no entanto, capital: está em abrir as comportas do Tempo: abalada a cronologia, fragmentos, intelectuais ou narrativos, vão formar uma seqüência que se subtrai à lei ancestral da Narrativa ou do Raciocínio, e essa seqüência produzirá, sem forçar, a terceira forma, nem Ensaio, nem Romance. (P. 353) A fala pacífica Esse despojamento não pode dar-se sem resistências. A primeira é de ordem cultural: a recusa da violência passa por uma mentira humanista, a cortesia (modo menor dessa recusa) por um valor de classe, e a receptividade 334 por uma mistificação aparentada ao diálogo liberal. A segunda resistência é de ordem imaginária: muitos desejam uma fala conflituosa por desrecalque, tendo a retirada do confronto, dizem, alguma coisa de frustrante. A terceira resistência é de ordem política: a polêmica é uma arma essencial da luta; todo espaço de fala deve ser fracionado para que se manifestem as suas contradições, deve ser submetido a uma vigilância. (p. 410) Moralidade Decidamos falar de erotismo em todo lugar onde o desejo tiver um objeto. Aqui, os objetos são múltiplos, móveis, ou, ainda melhor, passantes, tomados num movimento de aparecimento/desaparecimento: são fragmentos de saber, sonhos de método, pedaços de frases; é a inflexão de uma voz, o jeito de uma roupa, em resumo, tudo aquilo que constituí o enfeite de uma comunidade. Isso difunde, circula. Tão próximo, talvez, do simples perfume da droga, esse leve eretismo descongela, desprende o saber, alivia-o de seu peso de enunciados; dele faz precisamente unia enunciação e funciona como a garantia textual do trabalho. (p. 216) AO SAIR DO CINEMA Eis como eu me torno uma imagem (uma batata frita) sob a ofensiva de um sistema de linguagem totalmente menor: o parisianismo dândi e "impertinente" com relação aos Fragmentos de um discurso amoroso: "Delicioso ensaísta, favorito dos adolescentes inteligentes, colecionador de vanguardas, Roland Barthes desfia lembranças que não o são, no tom da mais brilhante conversação de salão, mas com um pouco de pedantismo estreito a respeito do 'arrebatamento'. Aí se encontrarão Nietzsche, Freud, Flaubert e os outros." 2 Nada a fazer, tenho de passar pela Imagem; a imagem é uma espécie de serviço militar social: não posso ficar isento; não posso ser reformado, desertar, etc. Vejo o homem doente de Imagens, doente de sua Imagem. Conhecer a própria Imagem torna-se uma busca apaixonada, esfalfante (nunca se consegue), análoga à teimosia de alguém que quer saber se tem razão de ter ciúmes ("Miséria da minha vida", diz Golaud a interrogar em vão Melisanda moribunda). 1. L’Égoïste, nº 2, maio de 1977. 335 DELIBERAÇÃO Por mais que releia esses dois fragmentos, nada me diz que sejam publicáveis; nada me diz tampouco que não o sejam. Ei s-me aqui em face de um problema que me ultrapassa: o da "publicabilidade"; não: "É bom, é ruim?" (forma que todo autor dá à pergunta), mas: "É publicável ou não?" Não é apenas uma questão de editor. A dúvida é deslocada, desliza da qualidade do texto para a sua imagem. (p. 458) 336 L'AVENTURE SÉMIOLOGIQUE, The Semiotic Challenge, 1985 OBRA NÚMERO 18 UTILIZADA NA TESE A AVENTURA SEMIOLÓGICA, Tradução Mário Laranjeira Martins Fontes, 2001 A.5.2. A declamatio, a ekphrasis No plano sintagmático, um exercício é preponderante: a declamatio (melete); é uma improvisação regulamentada sobre um tema; por exemplo: Xenofonte recusa sobreviver a Sócrates, os cretenses afirmam que possuem o túmulo de Zeus, o homem apaixonado por uma estátua, etc.; a improvisação relega para um segundo plano a ordem das partes (dispositio); o discurso, por não ter finalidade persuasiva mas puramente ostentatória, desestrutura-se, atomiza-se em uma seqüência frouxa de trechos brilhantes, justapostos segundo um modelo rapsódico. O principal desses trechos (gozava de uma altíssima cotação era a descriptio ou ekphrasis. A ekphrasis é um fragmento antológico, transferível de um discurso para outro: é um descrição regulamentada de lugares, de personagens (origem dos topoi da Idade Média). Assim aparece uma nova unidade sintagmática, o trecho: menos extenso do que as partes tradicionais do discurso, maior do que o período; essa unidade (paisagem, retrato) deixa o discurso oratória (jurídico, político) e se integra facilmente na narração, no contínuo romanesco: uma vez mais, a retórica "avança" sobre a literatura. (p. 24) B.IA. Provas fora-da-technè Que ação tem o orador sobre as provas atechnoi? Não pode conduzi-Ias (induzir ou deduzir); pode apenas, porque elas são "inertes" em si, arranjá-las, valorizá-las por uma disposição metódica. Quais são elas? São fragmentos e real que entram diretamente na dispositio, mediante um simples fazer-valer, não por uma transformação; ou ainda: são elementos do "dossiê" que se podem 337 inventar (deduzir) e que são fornecidos pela própria causa, pelo cliente (estamos por enquanto no puro judicial). Essas pisteis atechnoi são classificadas da seguinte forma; há: 1. os praejudicia, sentenças anteriores, a jurisprudência (o problema está em destruí-los sem atacá-los de frente); 2. os rumores, o testemunho público, o consensus de toda uma cidade; 3. as confissões sob tortura (tormenta, quaesita): nenhum sentimento moral, mas um sentimento social com relação à tortura: a Antiguidade reconhecia o direito de torturar os escravos, não os homens livres; 4. as peças (tabulae): contratos, acordos, transações entre particulares, até às relações forçadas (roubo, assassínio, assalto, afronta); 5. o juramento (jusjurandum): é o elemento de todo um jogo combinatório, de uma tática, de uma linguagem: pode-se aceitar jurar ou recusar, aceita-se ou recusa-se o juramento do outro, etc.; 6. os testemunhos (testimonia): são essencialmente - pelo menos para Aristóteles- testemunhos nobres, oriundos quer de poetas antigos (Sólon citando Homero para apoiar as pretensões de Atenas sobre Salamina), quer de provérbios, quer de contemporâneos notáveis; são pois preferencialmente "citações". (p. 53) B.l.5. Sentido das atechnoi As provas "extrínsecas" são próprias ao judiciário (os rumores e os testimonia podem servir ao deliberativo e à epidíctica); mas pode-se imaginar que elas servem no particular, para julgar uma ação, saber se se deve louvar, etc. É o que fez Lamy. Daí essas provas extrínsecas poderem alimentar representações fictícias (romance, teatro); é preciso no entanto cuidar que não são índices, que fazem parte, estes, de um arrazoado; são simplesmente os elementos de um dossiê que vem do exterior, de um real já institucionalizado; em literatura, essas provas serviriam para compor romances-dossiês (encontraram-se alguns), que renunciariam a qualquer escrita amarrada, a qualquer representação seguida e dariam apenas fragmentos o real já constituídos em linguagem pela sociedade. É bem o sentido das atechnoi: são elementos constituídos da linguagem social, que entram diretamente no discurso, sem serem transformados por nenhuma operação técnica do orador, do autor. B.l.6. Provas dentro-da-technè A esses fragmentos da linguagem social dados diretamente, no estado bruto (ressalvada a valorização de um arranjo), opõem-se os arrazoados que dependem, estes sim, inteiramente do poder do orador (pisteis entechnoi). 338 Entechnos quer dizer aqui: que pertence a uma prática do orador, pois o material é transformado em força persuasiva por uma operação lógica. Essa operação, rigorosamente, é dupla: indução e dedução. As pisteis entechnoi se dividem então em dois tipos: 1. o exemplum (indução); 2. o entimema (dedução);trata-se, evidentemente, de uma indução e de uma dedução não científicas, mas simplesmente "públicas" (para o público). Essas duas vias são impositivas: todos os oradores, para produzir a persuasão, demonstram mediante exemplos ou mediante entimemas; não há outros meios afora esses (Aristóteles). Entretanto uma espécie de diferença quase estética, uma diferença de estilo, introduziu-se entre o exemplo e o entimema: o exemplum produz uma persuasão mais suave, mais bem aceita pelo vulgo; é uma força luminosa, incentivando o prazer que é inerente a toda comparação; o entimema, mais poderoso, mais vigoroso, produz uma força violenta, perturbadora, beneficia-se da energia do silogismo; opera um verdadeiro rapto, é a prova, com toda a força da sua pureza, de sua essência. (p.54-55) B.I.II. Metamorfoses do entimema Eis algumas variedades de silogismos retóricos: 1. o prossilogismo, encadeamento de silogismos em que a conclusão de um passa a ser a premissa do seguinte; 2. o sorite (soros, o monte), acumulação de premissas ou seqüência de silogismos truncados; 3. o epiquirema (conforme foi comentado na Antiguidade), ou silogismo desenvolvido, em que cada premissa vem acompanhada de sua prova; a estrutura epiquiremática pode estender -se a todo um discurso em cinco partes: proposição, razão da maior, assumpção ou menor, prova da menor, complexão ou conclusão: A. .. pois ... Ora, B. .. pois ... Logo C 23 ; 4. o entimema aparente, ou arrazoado baseado numa espécie de passe de mágica, um jogo de palavras; 5. a máxima (gnomè, sententia): forma muito elíptica, monódica, é um fragmento de entimema cujo restante fica virtual: "Nunca se deve dar aos filhos um excesso de saber (pois eles colheriam a inveja de seus concidadãos) 24‖ . Evolução significativa, a sententia emigra da inventio (do arrazoado, da retórica sintagmática) para a elocutio, para o estilo (figuras de ampliação e de redução); na Idade Média, ela desabrocha, contribuindo para formar um tesouro de citações sobre todos os temas de sabedoria: frases, versos gnômicos decorados, colecionados, classificados por ordem alfabética. 23. Um epiquirema expandido: todo o Pro Milone de Cícero: l. é permitido matar aqueles que nos armam ciladas; 2. provas tiradas da lei natural, do direito dos povos, de exempla; 3. ora, Clodius armou ciladas para Milon; 4. 339 provas tiradas dos fatos; 5. Logo, era permitido a Milon matar Clodius. (p.59-60) B.1.20. A Tópica: uma grade O segundo sentido é o de uma grade de formas, de um percurso quase cibernético ao qual é submetida a matéria que se quer transformar em discurso persuasivo. Deve-se imaginar as coisas assim: dá-se um tema (quaestio) ao orador; para encontrar argumentos, o orador "desloca" o tema ao longo de uma grade de formas vazias: do contato do tema com cada casa (cada "lugar") da grade (da Tópica) surge uma idéia possível, uma premissa de entimema. Na Antiguidade, existiu uma versão pedagógica desse procedimento: a chrie (chreia), ou exercício "útil", era uma prova de virtuosismo, imposta aos alunos, que consistia em fazer passar um tema por uma série de lugares: quis? quid? ubi? quibus auxiliis? cur? quomodo? quando? Inspirando-se em tópicas antigas, Lamy, no século XVII, propõe a grade seguinte: o gênero, a diferença, a definição, a enumeração das partes, a etimologia, os conexos (campo associativo do radical), a comparação, a repugnância, os efeitos, as causas, et c. Suponhamos que tenhamos de fazer um discurso sobre a literatura: a gente "seca" (motivo não falta), mas, felizmente, dispomos de tópica de Lamy: podemos então, pelo menos, fazer-nos perguntas e tentar responder a elas: a que "gênero" vinculamos a literatura? arte? discurso? produção cultural? Se é uma "arte", qual é a diferença em relação às outras artes? Quantas partes atribuir -lhe e quais? Que nos inspira a etimologia da palavra? Qual sua relação com os vizinhos morfológicos (literário, literal, letras, letrado, etc.)? Com que a literatura está numa relação de repugnância? o Dinheiro? a Verdade?, etc. 27 A conjunção da grade com a quaestio é semelhante à do tema com os predicados, do sujeito com os atributos: a "tópica atributiva" conhece o apogeu nas tabelas dos Lullistas (ars brevis): os atributos gerais são espécies de lugares. - Vê-se o alcance da grade tópica: as metáforas que dizem respeito ao lugar (topos) são bastante indicativas para nós: os argumentos escondem-se, estão encolhidos em regiões, profundezas, bases de onde é preciso chamá-los, despertá-los: a Tópica dá à luz o latente; é uma forma que articula conteúdos e produz assim fragmentos de sentido, unidades inteligíveis. 27 . Essas grades tópicas são estúpidas; não têm nenhuma relação com a "vida", a"verdade"; teve-se razão de bani-Ias do ensino moderno etc.: certamente: mas ainda seria preciso que os "temas" de trabalhos (de lições de casa, de dissertação) sigam esse belo movimento. No momento em que estou 340 escrevendo isto, ouço que um dos "t emas" do último baccalauréat (no sistema escolar francês, exame a que podem submeter-se os alunos que terminam o curso secundário; título que se obtém com a aprovação nesse exame [N. do T.]) era algo como: Ainda é necessário respeitar os idosos? Para esse tema estúpido, tópica indispensável. (p. 69) B.2.5. o exórdio O exórdio compreende canonicamente dois momentos. 1. A captatio benevolentiae, ou iniciativa de sedução com relação aos ouvintes, de quem se trata de conciliar imediatamente as boas graças mediante uma prova de cumplicidade. A capta tio foi um dos elementos mais estáveis do sistema retórico (floresce ainda na Idade Média e até em nossos dias); segue um modelo muito elaborado, codificado segundo a classificação das causas: a via de sedução varia conforme a relação entre a causa e a doxa, a opinião corrente, normal: a. se a causa se identificar com a doxa, se se tratar de uma causa "normal", de bom tom, não será útil submeter o juiz a nenhuma sedução, a nenhuma pressão; é o gênero endoxon, honestum; b. se a causa for de algum modo neutra com relação à doxa, será necessária uma ação positiva para quebrar a inércia do juiz, despertar a sua curiosidade, fazê-lo ficar atento (attentum); é o gênero adoxon, humile; c. se a causa for ambígua, se, por exemplo, duas doxai entram em conflito, será necessário obter o favor do juiz, torná-lo benevolum, fazer com que se incline para um lado; é o gênero amphidoxon, dubium; d. se a causa for emaranhada, obscura, será preciso levar o juiz a segui -lo como guia, como iluminador, torná-lo docilem, receptivo, maleável; é o gênero dysparakoloutheton, obscurum; e. finalmente, se a causa for extraordinária, suscitar o espanto situando-se muito longe da doxa (por exemplo, sustentar uma• causa contra um pai, um ancião, uma criança, um cego, ir contra a human touch*),já não será suficiente uma ação difusa junto ao juiz (uma conotação), far-se-á necessário um verdadeiro remédio, mas que esse remédio seja entretanto indireto, pois não se deve enfrentar, chocar abertamente o juiz: é a insinuatio, fragmento autônomo (e não mais o simples tom) que se coloca depois do início: por exemplo, fingir estar impressionado pelo adversário. Tais são os modos da captatio benevolentiae. 2. A partitio, segundo momento do exórdio, anuncia as divisões que serão adotadas, o plano que será seguido (pode-se multiplicar as partitiones, colocar uma no início, outra no fim de cada parte); a vantagem, diz Quintiliano, é que nunca se acha longo aquilo de que se anuncia o termo. (p. 84) * Em inglês no texto. (N. do T.) 341 B.2.10. A confirmatio A codificação fortíssima da Dispositio (cuja marca profunda permanece na pedagogia do ―plano‖) bem atesta que o humanismo, em sua forma de pensar a linguagem, preocupou-se fortemente com o problema das unidades sintagmáticas. A Dispositio é um recorte entre outros. Eis alguns desses recortes, partindo das unidades maiores: 1. O discurso em sua totalidade pode formar uma unidade, se for contraposto a outros discursos; é o caso das classificações por gêneros e por estilos; é também o caso das figuras temáticas, quarto tipo de figuras, depois dos tropos, das figuras de palavras e das figuras de pensamento: a figura temática abrange toda a oratio: Dionísio de Halicarnasso distingue três delas: a. a direta (dizer o que se quer dizer); b. a oblíqua (discurso desviado: Bossuet advertindo os reis, sob coloração de religião); c. a contrária (antífrase, ironia); 2. ª,s artes da Dispositio (já as conhecemos); 3. o trecho, fragmento, a ekphrasis ou descriptio (também as conhecemos); 4. na Idade Média, o articulus é uma unidade de desenvolvimento: numa obra de conjunto, coletânea de Disputationes ou Summa, dá-se um resumo da questão disputada (introduzido por utrum); 5. o período é uma frase estruturada segundo um modelo orgânico (com começo e fim); tem pelo menos dois membros (elevação e descenso, tasis e apotasis) e no máximo quatro. Abaixo (e na verdade a partir do período), começa a frase (oração), objeto da compositio, operação técnica que faz parte da Elocutio. (p. 87-88) 2. Classes de unidades Essas duas grandes classes de unidades, Funções e Índices, já deveriam permitir certa classificação das narrativas. Algumas narrativas são fortemente funcionais (tais como os contos populares) e, no extremo oposto, algumas outras são fortemente indiciais (tais como os romances "psicológicos"); entre esses dois pólos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do gênero. Mas não é só isso: no interior de cada uma dessas duas grandes classes, pode-se de imediato determinar duas subclasses de unidades narrativas. Para retomar a classe das Funções, nem todas as suas unidades têm a mesma "importância"; algumas constituem verdadeiros gonzos da narrativa (ou de um fragmento da narrativa); outras não fazem mais que "preencher" o espaço narrativo que separa as funções-gonzos: chamemos as primeiras de funções cardinais (ou núcleos) e as segundas, em vista de sua natureza completiva, de catálises. Para que uma função seja cardinal, basta que a ação a que ela se refere 342 abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa conseqüente para a conti nuação da história, enfim, que inaugure ou conclua uma incerteza; se, num fragmento da narrativa, o telefone toca, é igualmente possível se atenda ou que não se atenda, o que não deixará de levar a história por duas vias diferentes. Em contrapartida, entre duas funções cardinais, é sempre possível dispor noções subsidiárias, que se aglomeram em torno de um núcleo ou de outro, sem modificar -lhes a natureza alternativa: o espaço que separa "o telefone tocou" de "Bond atendeu" pode estar saturado por uma multidão de pequenos incidentes ou pequenas descrições: "Bond dirigiu-se para a mesa, pegou um receptor, colocou o cigarro no cinzeiro", etc. Essas catálises permanecem funcionais na medida em que entram em correlação com o núcleo, mas sua funcionalidade é atenuada, unilateral, parasita: é que se trata no caso de uma funcionalidade puramente cronológica (descreve-se o que separa dois momentos da história), ao passo que, no laço que une duas funções cardinais, investe-se uma funcionalidade dupla, ao mesmo tempo cronológica e lógica: as catálises não passam de unidades consecutivas, as funções cardinais são ao mesmo tempo consecutivas e conseqüentes. (p. 118-119) SEMÂNTICA DO OBJETO Outro caso de relação simples - continuamos na relação simbólica entre o objeto e um significado -, é o caso de todas as relações destacadas: entendo com isso que um objeto captado em sua totalidade, ou, se se tratar de publicidade, dado em sua totalidade, só significa, entretanto, por um de seus atributos. Tenho muitos exemplos: uma laranja, embora representada inteira, só significará a qualidade do suculento e que mata a sede: é o suculento que é significado pela representação do objeto, não é todo o objeto: exi ste pois um deslocamento do signo. Quando se representa uma cerveja, não é essencialmente a cerveja que constitui a mensagem, é o fato de ela estar gelada: há também neste caso deslocamento. É o que se poderia chamar de deslocamento não mais metafórico, mas por metonímia, isto é, por deslizamento de sentido. Esses tipos de significações metonímicas são extremamente freqüentes no mundo dos objetos; é um mecanismo importantíssimo por certo, pois o elemento significante é então ao mesmo tempo perceptível- recebemo-lo de modo perfeitamente claro - e, no entanto, de algum modo mergulhado naturalizado naquilo que se poderia chamar de o ser-aí do objeto. Chega-se assim a uma espécie de definição paradoxal do objeto: uma laranja é, nesse modo enfático da publicidade, o suculento mais a 343 laranja; a laranja está sempre presente como objeto natural para sustentar uma de suas qualidades que se torna o seu signo. Depois da relação puramente simbólica, há que se examinar todas as significações que estão ligadas a coleções de objetos, à pluralidades organizadas de objetos; são os casos em que o sentido não nasce de um objeto, mas de um agrupamento inteligível de objetos: o sentido fica de algum modo estendido. É preciso tomar cuidado, aqui, para não comparar o objeto com a palavra em lingüística, e a coleção de objetos com a frase; seria uma comparação inexata, porque o objeto isolado já é uma frase; é uma questão que está agora bem elucidada pelos lingüistas: a questão das palavras-frases; quando você vê, no cinema, um revólver, o revólver não é o equivalente da palavra com relação a um conjunto mais amplo; o revólver é por si uma frase, uma frase muito simples evidentemente, cujo equivalente lingüístico seria: eis aqui um revólver. Noutras palavras, o objeto nunca está - no mundo em que vivemos - no estado de elemento de uma nomenclatura. As coleções significantes de objetos são numerosas, principalmente na publicidade. Mostrei o homem que está lendo à noite: existem nessa imagem quatro ou cinco objetos significantes, que concorrem para fazer passar um sentido global único, o de distensão, de repouso: há o abajur, há o conforto do suéter de lã grossa, há a poltrona de couro, há o jornal; jornal não é livro, não é tão sério, é distração: tudo isso quer dizer que se pode tomar tranqüilamente um café, à noite, sem se enervar. Esses agrupamentos de objetos são sintagmas, quer dizer, fragmentos estendidos de signos. A sintaxe dos objetos é, evidentemente, uma sintaxe extremamente elementar. Quando se colocam objetos juntos, não se l hes pode atribuir coordenações tão complicadas quanto na linguagem humana. Na realidade, os objetos - sejam os objetos de figuras, ou objetos reais de um ambiente, ou de uma rua - só estão ligados por uma única forma de conexão, que é a parataxe, isto é, a justaposição pura e simples de elementos. Essa espécie de parataxe dos objetos é extremamente freqüente na vida: é o regime a que estão submetidos, por exemplo, todos os móveis de um ambiente. O mobiliário de um ambiente concorre para um sentido final (para um "estilo") unicamente por justaposição de elementos. Veja-se um exemplo: trata-se de uma propaganda para uma marca de chá; é preciso significar não a Inglaterra, pois as coisas são mais sutis, mas a anglicidade ou a britanicidade, se assim posso dizer, isto é, uma espécie de identidade enfática do inglês: tem-se pois, neste caso, mediante um sintagma minuciosamente composto, a persiana das casas coloniais, a roupa do homem, o bigode, o gosto típico dos ingleses pela marinha e pelo hipismo, que está ali , naqueles navios-bibelôs, naqueles cavalos de bronze e, finalmente, lemos espontaneamente nessa imagem, unicamente pela justaposição de certo número 344 de objetos, um significado extremamente forte, que é justamente essa anglicidade de que eu falava. (p. 214-215) SEMIOLOGIA E URBANISMO A segunda observação é que o simbolismo deve ser definido essencialmente como o mundo dos significantes, das correlações e principalmente das correlações que nunca e pode fechar numa significação plena, numa significação última. Doravante, do ponto de vista da técnica descritiva, a distribuição dos elementos, isto é, dos significantes, esgota de certo modo a descoberta semântica. Isso é verdade para a semântica chomskiana de Katz e de Fodor, e até mesmo para as análises de Lévi-Strauss que se fundamentam na clarificação de uma relação que já não é analógica, mas homológica (é uma demonstração feita em seu livro sobre o totemismo, que é raramente citado). Assim, descobre-se que, quando se quiser fazer a semiologia da cidade, será preciso provavelmente levar mais adiante, e com maior minúcia, a divisão significante. Para isso, faço apelo a minha experiência de amador. Sabemos que, em certas cidades, existem espaços que oferecem uma especialização acurada de funções: é o caso, por exemplo, do suk oriental onde uma rua fica reservada somente para os curtidores de couro e outra para os ourives; em Tóquio, certas partes de um mesmo bairro são muito homogêneas sob o ponto de vista funcional: praticamente, encontram-se ali unicamente bares e lanchonetes, ou lugares de diversão. Pois bem, será preciso ir além desse primeiro aspecto e não limitar a descrição semântica da cidade a essa unidade; será necessário tentar dissociar microestruturas da mesma maneira que se pode; isolar pequenos fragmentos de frase num longo período; é pois necessário adquirir o hábito de fazer uma análise bem minuciosa, que conduzirá a essas microestruturas e, inversamente, será preciso habituar-se a uma análise mais ampla, que chegará realmente às macroestruturas. Todos sabemos que Tóquio é uma cidade polinucleada; possui vários núcleos em torno de cinco a seis centros; há que se aprender a diferenciar semanticamente esses centros, que por sinal estão marcados por estações ferroviárias. Noutros termos, mesmo nesse setor, o melhor modelo para o estudo semântico da cidade será fornecido, acredito eu, pelo menos no início, pela frase do discurso. E reencontraremos aqui a velha intuição de Victor Hugo: a cidade é uma escrita; quem se desloca na cidade, isto é, o usuário da cidade (o que todos nós somos), é uma espécie de leitor que, se suas obrigações e os seus deslocamentos, recolhe fragmentos o enunciado para atualizá-los em segredo. Quando deslocamos numa cidade, 345 estamos todos na situação do leitor dos 100.000 millions de poémes de Queneau, em que se pode achar um poema diferente mudando um único verso; à nossa revelia, somos um pouco esse leitor de vanguarda quando estamos numa cidade. (p. 227-228) A ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA A respeito de Atos 10-11 4. Disposições operacionais Prefiro esta expressão àquela, mais intimidante, de mélodo, pois não estou seguro de que possuamos um método; mas há certo número de disposições operacionais na pesquisa, de que é necessário falar. Parece-me (esta é uma posição pessoal que pode mudar) que, se se trabalhar sobre um só texto (anteriormente ao trabalho comparativo de que falei e que é a própria finalidade da Análise estrutural clássica), dever-se-á prever três operações. 1. Recorte do texto, isto é, do significante material. Esse recorte pode ser, a meu ver, inteiramente arbitrário; em certo estágio da pesquisa, não há nenhum inconveniente nessa arbitrariedade. É uma espécie de quadriculado do texto, que dá fragmentos do enunciado sobre os quais se vai trabalhar. Ora, precisamente, para o Evangelho, e mesmo para toda a Bíblia, esse trabalho está feito, pois que a Bíblia está recortada em versículos(para o Alcorão, em suratas). O versículo é uma excelente unidade de trabalho do sentido; visto que se trata de decantar os sentidos, as correlações, a peneira do versículo é de excelente medida. Aliás, muito me interessaria saber de onde vem o recorte em versículos, se está ligado à natureza citacional da Palavra, quais são as ligações exatas, as ligações estruturais, entre a natureza citacional da palavra bíblica e o versículo. Para outros textos, propus chamar de "lexias", de unidades de leitura, esses fragmentos de enunciados sobre os quais se trabalha. Um versículo, para nós, é uma lexia. 2. Inventário dos códigos que são citados no texto: inventário, coleta, localização, ou, como acabei de dizer, decantação. Lexia após lexia, versículo após versículo, tenta-se inventariar os sentidos na acepção que já disse, as correlações ou as partidas de códigos presentes nesse fragmento de enunciado. Vou voltar a isso pois que vou fazer este trabalho sobre alguns versículos.(p. 264-265) 346 2. O código das ações As seqüências de ações, constituídas segundo uma estrutura lógico-temporal, apresentam-se ao fio da narrativa segundo uma ordem complicada: dois termos de uma mesma seqüência podem estar separados pela aparição de termos pertencentes a outras seqüências; esse entrelaçamento de seqüências forma a trança da narrativa (não esqueçamos que etimologicamente texto quer dizer tecido). Aqui, o entrelaçamento é relativamente simples: existe certo simplismo da narrativa e esse simplismo se deve à justaposição pura e simples das seqüências (não são intrincadas). Ademais, um termo de uma seqüência pode representar por si só uma subseqüência (o que os cibemeticistas chamam de "brique" [tijolo]); a seqüência do anjo compreende quatro termos: entrar / ser visto / comunicar / sair; um desses quatro termos, a comunicação, constitui uma ordem (um comando) que se subdivide, ela própria, em termos secundários (interpelar / pedir / razão da escolha / conteúdo da interpelação / execução); existe de algum modo procuração de uma seqüência de ações para um termo encarregado de representá-la numa outra seqüência de ações: saudar / responder; este fragmento de seqüência representa certo sentido ("eu também sou um homem"). (p. 275-276) ANÁLISE TEXTUAL DE UM CONTO DE EDGAR POE Para proceder à análise textual de uma narrativa, vamos seguir certo número de disposições operacionais (falemos de regras elementares de manipulação, de preferência a princípios metodológicos: a palavra seria por demais ambiciosa e principalmente ideologicamente discutível, na medida em que o "método" postula demasiadas vezes um resultado positivista). Reduziremos essas disposições a quatro medidas expostas sumariamente, preferindo deixar a teoria correr na análise do próprio texto. Diremos, por enquanto, apenas que é necessário para começar o mais depressa possível a análise do conto que escolhemos. 1. Vamos recortar o texto que proponho para o nosso estudo em segmentos contíguos e em geral bem curtos (uma frase, uma porção de frase, no máximo grupo de três ou quatro frases); numeraremos esses fragmentos partir de 1 (para cerca de dez páginas, há 150 segmentos) . Esses segmentos são unidades de leitura, razão por que propus chamá-las de lexias 13 . Uma 1exia é evidentemente um significante textual; mas como o nosso objetivo não é aqui observar significantes (o nosso trabalho não é estilístico), mas sentidos, o recorte não precisa ser fundamentado teoricamente (estando no discurso, e não 347 na língua, não devemos esperar que haja uma homologia fácil de perceber entre o significante e o significado; não sabemos como um corresponde ao outro e, por conseguinte, não devemos aceitar cortar o significante sem ser guiado pelo recorte subjacente do significado). Em suma, o parcelamento do texto narrativo em lexias é puramente empírico, ditado por uma preocupação de comodidade: a lexia é um produto arbitrário, é simplesmente um segmento no interior do qual se observa a repartição dos sentidos; é o que os cirurgiões chamariam de campo operatório: a lexia útil é aquela em que não passa senão um, dois ou três sentidos (superpostos no volume do trecho do texto). (p. 305 e 306) 3. Nossa análise será progressiva: percorreremos passo a passo o comprimento do texto, pelo menos postulativamente, pois, por razões de espaço, não poderemos dar aqui senão dois fragmentos de análise. Isso quer dizer que não visaremos a estacar as grandes massas (retóricas) do texto; não construiremos um plano do texto e não procuraremos a sua temática; numa palavra, não faremos uma explicação do texto, a menos que se dê à palavra "explicação" o seu sentido etimológico, na medida em que desdobraremos o texto, o folheado do texto. Deixaremos para a nossa análise o andamento mesmo da leitura; simplesmente, essa leitura será, de algum modo, filmada em câmara lenta. Essa maneira de proceder é teoricamente importante: ela significa que não visamos a reconstituir a estrutura do texto, mas a acompanhar a sua estruturação, e que consideramos a estruturação da leitura mais importante do que a da composição (noção retórica e clássica). (P. 305-307) ANALISE ACIONAL DAS LEXIAS 18 A 102 Entre todas as conotações que encontramos, ou pelo menos localizamos, neste início do conto de Poe, algumas puderam ser definidas como termos progressivos de seqüências se ações narrativas; voltaremos, para terminar, aos diferentes códigos que foram mostrados pela análise, dentre os quais, precisamente, o código acional. Na espera desse esclarecimento teórico, podemos isolar essas seqüências de ações e usá-las para dar conta, às menores expensas (conservando entretanto para a nossa proposta um alcance estrutural) da continuação da história. De fato, isso se compreenderá, não é possível analisar minuciosamente (menos ainda exaustivamente: a análise textual nunca é e nunca quer ser exaustiva) todo o conto de Poe: seria longo demais; pretendemos entretanto retomar a análise textual de algumas lexias do ponto 348 culminante da obra (lexias 103-110). Para juntar o fragmento que já analisamos ao que vamos analisar, no plano da inteligibilidade, bastará que indiquemos as principais seqüências acionais que iniciam e se desenvolvem (mas não terminam forçosamente) entre a lexia 18 e a 102. Infelizmente não podemos, por falta de espaço, dar o texto de Poe que separa os nossos dois fragmentos, nem tampouco a numeração das lexias intermediárias; damos apenas as seqüências acionais (sem sequer, aliás, poder revelar-lhes os pormenores termo a termo), em detrimento de outros códigos, mais numerosos e por certo mais interessantes, essencialmente porque essas seqüências constituem, por definição, o arcabouço anedótico da história (farei uma ligeira exceção para o código cronológico, indicando, por uma notação inicial ou final, o momento da narrativa em que se situa o início de cada seqüência). 1. Programa: a seqüência começou e se desenvolveu amplamente no fragmento alisado. Os problemas levantados pela experiência projetada são conhecidos. A seqüência prossegue e se encerra pela escolha do sujeito (do paciente) necessária à experiência: será o sr. Valdemar (o programa é colocado nove meses antes do momento da narração). (p. 321-322) CONCLUSÕES METODOLÓGICAS As observações que servirão de conclusão a estes fragmentos de análise não serão forçosamente "teóricas"; a teoria é abstrata, especulativa: a própria análise, embora tendo como objeto um texto contingente, já era teórica, no sentido de que observava (esse era o seu objetivo) uma linguagem em vias de se fazer. Vale dizer - ou lembrar - que não procedemos a uma explicação do texto: simplesmente tentamos surpreender a narrativa à medida que se constituía (o que implica ao mesmo tempo estrutura e movimento, sistema e infinito). Nossa estruturação não vai além daquela que a leitura realiza espontaneamente. Não se trata então, para concluir, de entregar a "estrutura" do conto de Poe, ainda menos a de toda e qualquer narrativa, mas somente de voltar, de maneira mais livre, menos presa ao desenrolar-se progressivo do texto, aos principais códigos que localizamos. (p. 333) Tais são os códigos que perpassaram os fragmentos que analisamos. É de propósito que não os estruturamos mais, que não tentamos distribuir os termos, no interior de cada código, segundo um esquema lógico ou semiológico; é que, para nós, os códigos são apenas pontos de partida de já-lido, indícios de intertextualidade: o caráter desfiado dos códigos não é o que contradiz a 349 estrutura (como, acredita-se, a vida, a imaginação, a intuição, a desordem contradizem o sistema, a racionalidade), mas ao contrário (é a afirmação fundamental da análise textual) é parte integrante da estruturação. É esse "desfiamento" do texto que distingue a estrutura – objeto da análise estrutural propriamente dita – da estruturação – objeto da análise textual que se tentou praticar aqui. (p. 337-338) 350 INCIDENTS Paris: Éditions Du Seuil, 1987. OBRA NÚMERO 19 UTILIZADA NA TESE INCIDENTES, tradução de Tereza Coelho e Alexandre Melo Quetzal Editores Lisboa 1987 Nota do Editor O que legitima a aproximação dos textos apresentados é o esforço feito pela escrita para captar o imediato. Não são por- tanto nem a pesquisa teórica nem o questionamento crítico («O que é que isto quer dizer») que aqui são postos em acção. Não é que Roland Barthes, sabemo-lo bem, alguma vez tenha acreditado na possibilidade de uma inocência metodológica, teórica ou ideológica. Mas aqui, por um momento, mudando de método, convida o leitor a «identificar-se» - para retomar os termos de Longtemps je me suis couché de bonne heure 1 com o autor (ele próprio); e, mais exactamente, com o seu «desejo de escrever».«Ponho-me com efeito na posição daquele que faz qual - quer coisa, e já não na daquele que fala sobre qualquer coisa: não estudo um produto, endosso uma produção; anulo o discurso sobre o discurso; o mundo já não vem a mim sob a forma de um objecto, mas sob a de uma escrita, quer dizer, de uma prática: passo a um outro tipo de saber (o do Amador) ... 2. » Dois textos inéditos necessitam de algumas palavras de apresentação. Incidentes é a notação, a recolha, de coisas vistas e ouvidas em Marrocos, no essencial em Tanger e Rabat, e depois no Sul, em 1968 e 1969. O texto estava pronto para imprimir e Roland Barthes pensava publicá-lo na Tel Quel. Trata-se de uma espécie de jogo, cujo objecto não é de modo algum Marrocos em si, mas o «romanesco» - uma categoria cara a Roland Barthes 1 - tal como um certo tipo de vida em Marrocos permitia pôr-lhes à prova a definição. Não se encontrará, portanto, aqui (é um mal-entendido que convém desde já afastar) nada de interpretativo: nada do que poderia ter sido a reflexão de Roland Barthes sobre Marrocos, o seu povo, a sua cultura ou os seus problemas sociais. Mas sim a passagem à escrita de encontros - de incidentes - que poderiam ter constituído o tecido de um romance, subtraindo praticamente todos os tipos ou personalidades 351 constituídos: restos de romance sem suportes pessoais; descontado igualmente qualquer entrosamento contínuo da narração, que lhe imporia inevitavelmente uma «mensagem»: o «romanesco», por essência, é fragmento Observação válida também como guia para a leitura, que Roland Barthes aqui desejava descontínua, móvel como o prazer do momento. Vemo-lo bem quando Roland Barthes por Roland Barthes faz, por duas vezes, alusão a este texto. Sob o título «Projectos de livros»: «Incidentes (mini -textos, bilhetes, haikus, anotações, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha) 2»; e sob o título «Que é que isto quer dizer?»: «Um livro inverso pode ser concebido: que contaria mil incidentes, proibindo-se de alguma vez deles extrair uma linha de sentido; seria muito exactamente um livro de haikus 3». Constatamos que aqui, de facto, o género é constantemente especificado por uma atenção particular à surpresa, à ruptura de coerência, à incongruência. Está aí o incidente: o que cai obliquamente sobre os códigos. Soirées de Paris foi escrito durante cerca de vinte dias, entre 24 de Agosto e 17 de Setembro de 1979 imediatamente depois de ter sido entregue à Tel Quel o texto - Delibération - em que Roland Barthes se interrogava a respeito da sua incerteza quanto à prática de «manter um Diário». O manuscrito está titulado, paginado e comporta mesmo, como veremos, indicações para uma última revisão: o que assinala que estava destinado à publicação - um dia mais tarde 4 Não se trata exactamente de um Diário, mas sim - como o título indica - da descrição do que, no quotidiano de Roland Barthes, constituía de facto uma espécie de secção à parte: a noite, sempre passada fora de casa, com extensões no fim-de-semana. Estas páginas não devem, porém, deixar de ser lidas à luz de Delibération: «A justificação de um Diário íntimo (como obra) não pode ser senão literária, o sentido absoluto, mesmo que nostálgico, da palavra. 5 »E Roland Barthes adianta quatro «motivos»; poético: «oferecer um texto colorido por uma individualidade de escrita, por um «estilo» (dir-se-ia outrora), por um idiolecto próprio do autor; histórico: «dispersar em poeira, dia a dia, os vestígios de uma época, com todas as dimensões misturadas»; utópico: «constituir o autor em objecto de desejo: de um escritor que me interessa, posso gostar de conhecer a intimidade, a tradução quotidiana do seu tempo, dos seus gostos, dos seus humores, dos seus escrúpulos»; amoroso: constituir, enquanto idólatra da Frase, «oficina... não de „belas‟ frases, mas de frases certas; apurar incessantemente a justeza da enunciação ... segundo um arreamento... que se assemelha muito à paixão». Dever-se-ia, depois disto, fingir ignorar o que já por de mais sabemos - alta de generosidade, em todos os sentidos da palavra, com alguns se hão-de apoderar do que aqui se diz, designada- te, em termos de dúvida quanto às formas da modernidade em termos de desespero no desejo? 352 Roland Barthes não era que recuam diante do risco de uma enunciação desde que correspondente escrita lhe parecesse fundada, desde que lhe parecesse fundada enquanto escrita: é nisto que estas páginas também eticamente exemplares. F. W. (Editions du Seuil) 1 R. Barthes, O Rumor da Língua, p. 249 (da ed. port.). 2 Roland Barthes por Roland Barthes ...••.•... 3 ibid. 4 Que se trata aqui de um exercício ou de um primeiro fragmento, é atestado por uma nota que se segue ao texto: 'interrompidas aqui (22 Set. 79) as Vãs Soirées. 1) Para não perder tempo e liquidar o mais depressa possível a preparação dos Cursos. 2) Para verificar as minhas notas - e a partir de agora escrever tudo em fichas'. 5 O Rumor da Língua, p. 304. (p. 7-9) 353 LA PRÉPARATION DU ROMAN I, Paris: Éditions Du Seuil, curso, 2003 OBRA NÚMERO 20 UTILIZADA NA TESE A PREPARAÇÃO DO ROMANCE Vol. I: da vida à obra Roland Barthes; texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Léger; tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo Martins Fontes, 2005 O princípio organizador de cada volume é a aula, pois esse é o verdadeiro ritmo da leitura: ritmo que Barthes imprimia a posteriori em seu manuscrito, assinalando, pela data e a hora, o lugar em que ele se deteve naquele dia, e de onde ele deveria re-tomar na semana seguinte. Contrariamente aos cursos precedentes, em que os fragmentos ou "traços" organizavam as sessões, este é constituído por um discurso unificado que se desenrola continuamente: entretanto, esse discurso é pontuado por subtítulos, pausas e paradas que arejam e esclarecem a fala. (p. IX – X) [...] No fim do mês de novembro, Roland Barthes propôs uma variante desta, na New York University. Na semana seguinte à sessão de abertura de 2 de dezembro de 1978, aparece a primeira "Chroníque" de Roland Barthes no Nouvel Observateur, esses pequenos textos, publicados de 18 de dezembro de 1978 a 26 de março de 1979, acompanharão todo o primeiro curso e, como a revista é publicada aos sábados, alguns ouvintes ainda se lembram que muitos deles iam ao Collège de France com a última edição da "Chronique" debaixo do braço. Esses textos não são apenas as pequenas mitologias em nova maneira, tão esperadas pelo público, mas são antes de tudo, para Barthes, uma "experiência de escritura", a "busca de uma forma", ―pedaços de ensaios para um romance‖, como ele dirá na crónica de 26 de março de 1979, que marca o fim dessa experiência jornalística. Em janeiro de 1979, ele escreve "Ça prend" [Isso pega] para o Magazine littêraire, texto consagrado à escritura de Proust, que retoma e antecipa algumas passagens essenciais do curso. (p. XVII) - Por outro lado, como passar da anotação, da Nota, ao Romance, do descontínuo ao fluxo (ao estendido)? Problema para mim psico-estrutural, já que isso quer dizer passar do fragmento ao não-fragmento, isto é, mudar minha relação com 354 a escritura, isto é, com a enunciação, e ainda com o sujeito que sou: sujeito fragmentado (= certa relação com a castração) ou sujeito efusivo (outra relação)? Ou ainda o combate da forma breve com a forma longa. (p. 38) b) A passagem do Fragmento ao Romance (ao texto longo): aqui usarei (pelo menos pretendo) Proust, e, mais precisamente, interrogarei o episódio biográfico no decorrer do qual Proust pôde enfim (depois de agitações, hesitações, indecisões) lançar o grande rio de Em busca do tempo perdido. Aliás, a vida de Proust me parece cada vez mais "interessante", isto é, merecedora de ser interrogada do ponto de vista, da escritura: será preciso, cada vez mais, conceber uma espécie de "ciência" (por assim dizer) da vida de Proust (história do filme com A. T. 6 ). 6. Alusão ao projeto de filme sobre Marcel Proust, que ele pretendia escrever em colaboração com o diretor André Téchiné. (p. 39-40) O HAICAI "MEU" HAICAI 1 Meu problema: passar da Anotação (do Presente) ao Romance, de uma forma breve, fragmentada (as "notas") a uma forma longa, contínua —> portanto a decisão de me ocupar um pouco com o haicai, para ocupar-me em seguida com o romance, é menos paradoxal do que parece. Haicai = forma exemplar da Anotação do Presente = ato mínimo de enunciação, forma iiltrabreye, átomo de frase que anota (marca, cinge, glorifica: dota de uma fama 2 ) um elemento tênye de vida ―real‖, presente, concomitante. I. Para os primeiros desenvolvimentos da reflexão de Roland Barthes sobre o haicai e o zen, ver L'Empire dês signes (OC3, pp. 403 e 407). 2. Em latim no texto, significa, como em português, ―renome, reputação‖. (N. da T.) (p. 47-48) Coyaud a rejeita, ele se engana, pois nenhuma outra pode substituí-la: o haicai é o Inclassificável, radicalmente -4 isto é, o livro que pode ser aberto ao acaso, em qualquer sentido, sem que uma parcela de significado seja perdida. Mundo onde o Sintagma é negado: nenhuma ligação possível —> emergência do imediato absoluto: o haicai = desejo imediato (sem mediação), portanto, a função legal da Classificação (= sempre uma lei) é perturbada —> Resta lembrar o quanto essa perturbação é moderna, responde a uma preocupação atual: os Fragmentos, claro, mas também todas as artes do aleatório (perigo: que o aleatório não se torne seu próprio signo). (p. 68) 355 Não quero acrescentar nada, a não ser isto: qualquer um que tenha perdido um ente querido se lembra terrivelmente da estação; a luz, as f lores, os odores, a concordância ou o contraste do luto com a estação: quanto se pode sofrer ao sol! Não esquecer isso, diante dos prospectos de turismo! 2) E eis que alguns dias (da semana) têm também sua cor (a cor ao dia: material para haicai): eu havia anotado, no campo (domingo, 17 de julho de 1977): "Dir-se-ia que a manhã de domingo reforça o bom tempo." 11 11. Roland Barthes faz aqui referência ao "Journal d'Urt" ["Diário de Urt"], do qual ele publicará alguns fragmentos em Délibération (OC5, pp. 668-81). ["Deliberação", in O rumor da língua, op. cã., p. 445.] (p. 84) O haícai é assentimento àquilo que é. Seria necessário distinguir aqui (talvez! "sutileza"? Não, "realidade": ver citação de Proust 11 ) entre assentimento e aprovação, adesão, consentimento (cf. peça de Vinaver, Aujourd'hui ou lês Coréens [Hoje ou os coreanos] 12 , isto é, via da realidade (haicai) ≠ via da verdade (discurso, ideologia) —> Haicai = a arte (uma arte) de "desnatar" a realidade de sua vibração ideológica, isto é, de seu comentário, mesmo virtual. Talvez os mais belos haicais = aqueles que conservam um rastro, uma fragrância dessa luta contra o sentido. Por exemplo, este: (42) As flores caem Ele fecha a grande porta do templo E vai embora (Bashô) 11. Em caita citada no início desta mesma aula: "Você pensa que se trata de sutilezas. Oh! não, eu lhe garanto, mas de realidades, pelo contrário." 12. Aujovrd'hui ou lês Coréens, de Michel Vinaver (1956) conta a história de um soldado francês ferido durante uma patrulha na Coreia do Norte e que, recolhido por campo-neses coreanos, fica com eles. Entusiasmado com a escrita de Vinaver, Roland Bardies redigiu vários textos sobre essa peça, quando ela foi encenada por Roger Planchon, e principalmente na revista Théâtre populaire: "Aujaurd'hui coloca um problema ideológico novo: o de um assentimento ao mundo, postulado fora dos álibis e mistificações humanistas" (abri l de 1956); ver Roíand Barthes ―Notes sur Aujourd'but‖ e "Aujour-d'huiou lês Coréens" (OC1, pp. 646-9 e 666-7). 356 CONCLUSÃO PASSAGENS Voltar agora, pouco a pouco, à nossa tarefa inicial: como passar de uma Anotação fragmentada do presente (cuja forma exemplar seria o haicai) para um projeto romanesco? Isto é: o quê, do haicai, pode passar à nossa reflexão ocidental, à nossa prática de escrita? —> Vou indicar algumas dessas passagens. (p. 184) 1) Um levantamento das formas breves. Na literatura: máximas, epigramas, pequenos poemas, fragmentos, notas de diário íntimo - e talvez sobre¬tudo na música: Variações, Bagatelles (Beethoven, no fim de sua vida, peças recusadas pêlos editores), Intermezzi, Novelettes, Fantasiestücke (Schumann, principalmente, 1849, opus 73, clarineta/piano e depois violoncelo/piano), tudo isso tem relação com a captura da individuação (como o haicai). - Mas, evidentemente, o músico da Forma breve = Webern: suas peças ultrabreves + sua dedicatória a Berg: ―Non multa, sed multum‖ sua arte radical do silêncio, do tampão de silêncio (= o Ma, o intervalo): "Um romance inteiro num simples suspiro", e um crítico, Metzger, falou da "tosse irreprimível de que é ataca¬do o público cada vez que ele ouve um silêncio na obra de Webern" 9 . 9. Anton von Webern (1883-1945) foi, com seu condiscípulo Alban Berg (IS85-1935), aluno de Arnold Schonberg desde 1904. Figura emblemática da modernidade, Webern radicalizou as propostas da Escola de Viena por um profundo trabalho de depuração da estrutura musical. A brevidade (a mais longa de suas obras, Cantate opus 31, dura 11 minutos), o alongamento dos intervalos, a utilização do silêncio como material musical, são as principais características de sua estética. "Non multa, sed multum [pouco em quantidade, muito em qualidade], como eu gostaria que isso pudesse ser aplicado ao que aqui lhe ofereço", diz a dedicatória de Cinco peças opus 10, oferecida em 1913 a Alban Berg. Sob essa mesma divisa, Roland Banhes associou Webern à pintura de Cy Twombly. Ver "Cy Towmbly ou Non multa, sed multum", texto para o catálogo das obras de Twombly, Milão, 1979 (OC5, PP. 703-20). A referencia ao critico musical alemão Heiz-Klaus Metzger foi tirada de John Cage, Pour lês oiseaux, op. cit. (p. 199-200) 357 d) O que aconteceu com essas Epifanias? Existe uma coletânea, ed. A. O. Silverman, Universidade de Buffalo, 1956; mas não se sabe se essa coletânea foi arranjada pelo próprio Joyce - pois o pensamento explícito de Joyce sobre essas Epifanias: em 1904, ele renuncia a utilizar esses fragmentos como tal, e decide incluí-los num romance, Stephen Hero; trata-se de "arranjar esses espasmos isolados de psicólogo < espasmo: a palavra faz tilt: Haicai, Satori, Incidente > numa cadeia organizada de momentos'', "em que a alma nasce"... "e, em vez de ser o autor de obras curtas, ele < ele Joyce, falando com Davin > devia vertê-las, sem nada perder das mesmas, em obras de longo fôlego" 23 . Aqui: formulação exata do problema colocado ao longo deste curso - e do seguinte. 23. Citado por Richard Ellmann, ibiã., p. 158. (p. 209) Essa experiência joyciana das Epifanias me im-porta muito, ela é perfeitamente adequada à minha busca pessoal de uma forma análoga, que chamo de Incidente, forma experimentada aos bocados em O prazer ao texto, em Roland Banhes for Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, num texto inédito (Au Maroc) e nas crônicas da revista Nouvel Observateur 24 , quer dizer que eu giro em torno disso por intermitências, mas com insistência — e, portanto, que experimento suas dificuldades e seus atrativos. Afinidade com o haicai - mesmo se, evidentemente, não é a mesma "filosofia", ou melhor, a mesma "religião" (aqui pagã, lá teológica) —> É evidente que eu só me ocupei tão longamente com o haicai por causa da relação com o Incidente (aparecer, cair sobre). Mesma problemática do sentido no haicai, na Epifania e no Incidente, tal como eu o projetava: acontecimento imediatamente significante (c£ Nietzsche, Vontade de potência: ―Não há estado de fato 'em si', é preciso, ao contrário, introduzir primeiro um sentido antes que possa haver estado de fato‖ 25 ) e, ao mesmo tempo, nenhuma pretensão a um sentido geral, sistemático, doutrinal —> razão, sem dúvida, da recusa do discurso, do recolhimento na "dobra" (incidente), do fragmento descontínuo — cf. o que o biógrafo de Joyce, Ellmann, diz das Epifanias, e de sua homogeneidade com relação ao romance moderno: técnica "arrogante e humilde, ao mesmo tempo: ela tem pretensões de importância, mesmo não pretendendo nada" 26 . 24. Para o conjunto desses textos redigidos entre 1973 e 1979, ver OC4 e 5. 358 25. Ver Vie et vérité, antologia de textos de Nietzsche, op. cit., p. 81; a citação foi extraída de La Volante de puissance, trad. fr. por Geneviève Bianquis, Paris, Gallimard, c. I, 1947, p. 100. 26. Ver Ellmann, op. cit., p. 108. (p. 210-211) 359 TEXTOS DE BARTHES LINGÜÍSTICA E LITERATURA Coleção signos 9 Edições 70 (École Pratique dês Hautes Études) Título original: Linguistique et Littérature (Revista Langages, n° 12) 1968 A palavra fragmento não foi encontrada! ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA Pesquisas semiológicas I ntrodução à Análise Estrutural Da Narrativa Título do original francês: L’Analyse Structural du Récit Communications Editions du Sevil n° 8/1966 Editôra Vozes Ltda Petrópolis, RJ Brasil 1971 Estas duas grandes classes de unidades, Funções e Índices, deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas. Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e em oposição certos outras são fortemente indiciais (assim os romances "psicológicos"); entre estes dois pólos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do gênero. Mas não é tudo: no interior de cada uma destas grandes classes,é imediatamente possível determinar duas subclasses de unidades narrativas. Para retomar a classe das Funções, suas unidades não têm todas a mesma 360 "importância"; algumas constituem verdadeiras articulações da narrativa (ou de um fragmento da narrativa); outras não fazem mais do que "preencher" o espaço narrativo que separa as funções-ar-ticulações: chamemos as primeiras de funções cardinais (ou núcleos) e as segundas, em consideração à sua natureza completiva, catálises. Para que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa conseqüente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza; se, em um fragmento da narrativa, o telefone toca, é igualmente possível que seja respondido ou que não o seja, o que não impedirá de levar a história para dois caminhos diferentes. Em oposição entre duas funções cardinais, é sempre possível dispor de notações subsidiárias, que Se aglomeram em torno de um núcleo, ou de outro sem modificar-lhe a natureza alternativa: o espaço que separa "o telefone tocou" e "Bond atendeu" pode ser saturado por uma multidão de incidentes pequenos e de descrições pequenas: "Bond se dirigiu à sua mesa, levantou um receptor, posou seu cigarro", etc. Estas catálises permanecem funcionais, na medida em que entram em correlação com um núcleo, mas sua funcionalidade é atenuada, unilateral, parasita: trata-se aqui de uma funcionalidade puramente cronológica (descreve-se o que separa dois momentos da história), enquanto que no liame que une duas funções cardinais, se investe uma funcionalidade dupla, ao mesmo tempo consecutivas e conseqüentes. -Tudo deixa pensar, com efeito, que a mola da atividade é a própria confusão da consecução e da conseqüência, <;> que vem depois sendo lido na narrativa como causado por; a narrativa seria, neste caso, uma aplicação sistemática do erro lógico denunciado pela escolástíca sob a fórmula post hoc, ergo propter hoc, que bem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativa não é em suma mais que a "língua" (Zangue); e êste "esmagamento" da lógica e da temporalidade é a armadura das funções cardinais que o realiza. Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação enunciada), é, se pode ser dito, o risco: as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa; entre estes pontos da alternativa, entre estes "dispatchers", as catálises dispõem de zonas de segurança, de repousos, de luxos; estes "luxos" não são entretanto inúteis: do ponto de vista' da história, é necessário repeti -lo, a catálise pode ter uma funcionalidade fraca mas não absolutamente nula: seria ela puramente redundante (em relação ti seu núcleo), não participaria menos da economia. da mensagem; mas não é o caso: uma notação, na aparência expletiva, tem sempre uma função discursiva: ela acelera, retarda, avança o discurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorienta 29 : o notado aparecendo sempre como o notável, a catálise desperta sem cessar a tensão semântica do discurso, diz 361 ininterruptamente: houve, vai haver si gnificação; a função constante da catálise é pois, em todo estado de causa, uma função fática (para retomar a palavra de Jakobson): mantém o contato entre o narrador e o narratário (narrataire). Digamos que não se pode suprimir um núcleo sem alterar a hist ória, mas que não se pode suprimir uma catálise sem alterar o discurso. Quanto à segunda grande classe de unidades narrativas (os Índices), classe integrativa, as unidades que aí se encontram têm em comum .o fato de não poderem ser saturadas (completadas) a não ser ao nível dos personagens ou da narração; elas fazem portanto parte de uma relação paramétrica 30 , cujo segundo termo, implícito, é contínuo, extensivo a um episódio, um personagem ou uma obra inteira; pode-se entretanto distinguir aí índices propriamente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia, e informações, que servem para identificar, para situar no tempo e no espaço. Dizer que Bond está de guarda em um escritório cuja janela aberta deixa ver a Lua entre grossas nuvens que passam, é indexar uma noite de verão tempestuosa, e esta dedução mesma forma um índice atmosferial que remete ao clima pesado, angustiante de uma ação que não se conhece ainda. Os índices têm pois sempre significados implícitos; os informantes, ao contrário, não o têm, pelo menos ao nível da história: são dados puros imediatamente significantes. Os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera; os informantes trazem um conhecimento todo feito; sua funcionalidade, como a das catálises, é pois fraca, mas não é nula: qualquer que seja sua "palidez" em relação ao resto da história, o informante (por exemplo a idade precisa de uma personagem) serve para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizar a ficção no real: é um operador realista, e neste título, possui uma funcionalidade incontestável, não ao nível da história, mas ao nível do discurso. 31 29. VALÉRY falava de "signos dilatórios". O romance policial faz grande uso destas unidades "desorientadoras". 30. N. RUWET chama elemento paramétrico um elemento que é constante durante tôda a duração de uma peça de música (por exemplo o tempo de um allegro de Bach, o caráter monódico de um solo). 31. Aqui mesmo, G. GENETTE distingue dois tipos de descrições: ornamental e significativa. A descrição significativa deve evidentemente ser relacionada com o nível da história e a descrição ornamental com o nível do discurso, O que explica que ela tenha constituído durante muito, tempo um "fragmento" retórico perfeitamente codificado: a doscriptio ou ekphrasis, exercício muito valorizado pela neoretórica. (p. 30-33) 362 É necessário pois vir a tratar do "realismo" da narrativa. Recebendo um telefonema no escritório onde está de guarda, Bond "sonha", diz-nos o autor: "As comunicações com Hong-Kong são sempre tão ruins e tão difíceis de obter." Ora, nem o "sonho" de Bond nem a má qualidade da comunicação telefônica são a verdadeira informação; esta contingência parece talvez "viva", mas a informação verdadeira, a que germinará mais tarde, é a localização do telefonema, a saber Hong-Kong, Assim, em toda narrativa, a imitação permanece contingente; 74 a função da narrativa não é de "representar", é de constituir um espetáculo que permanece ainda para nós muito enigmático, mas que não saberia ser de ordem mimética; a "realidade" de uma seqüência não está na continuação "natural" das ações que a compõem, mas na lógica que se aí expõe, que aí se arrisca e que aí se satisfaz; poder-se-ia dizer de uma outra maneira que a origem de uma seqüência não é a observação da realidade, mas a necessidade de variar e de ultrapassar a primeira forma que se ofereceu ao homem, a saber a repetição; uma seqüência é essencialmente um todo no seio do qual nada se repete; a lógica tem aqui um valor emancipador e toda a narrativa com ela; é possível que os homens reinjetem sem cessar na narrativa o que conheceram, o que viveram; ao menos isto está em uma forma que, ela, triunfou da repetição e instituiu o modelo de um vir a ser. A narrativa não faz ver, não imita; a paixão que nos pode inflamar à leitura de um romance não é a de uma "visão" (de fato, não "vemos" nada), é a da significação, isto é, de uma ordem superior da relação, que possui, ela também, suas emoções, suas esperanças, suas ameaças, seus triunfos: "o que se passa" na narrativa não é do ponto de vista referencial (real), ao pé da letra: nada; 75 "o que acontece" é a linguagem tão-somente, a aventura da linguagem, cuja vinda não deixa nunca de ser festejada. Embora pouco se saiba: sobre a origem da narrativa e sobre a da linguagem, pode-se razoavelmente adiantar que a narrativa é contemporânea do monólogo, criação, parece, posterior à do diálogo; em todo caso, sem querer forçar a hipótese filogenética, pode ser significativo que isto ocorra no mesmo momento (em torno dos três anos) em que o filho do homem "inventa" ao mesmo tempo. a frase, a narrativa e o Édipo. ROLAND BARTHES Ecole Pratique des Hdutes Etudes, Paris. (p. 57-59) 73. La double assassinat de la rue Morgue, trad. BAUDELAIRE. 74. G. GENETIE tem razão em reduzir a mimesis aos fragmentos de diálogo narrados (cf , infra); ainda o diálogo apresenta sempre uma função inteliglvel e não mimética. 363 75. MALLARMÉ (Crayonné au théâtre, Plêiade,. pág. 296): " ... Uma obra dramática mostra a sucessão dos exteriores do ato sem que em nenhum momento guarde realidade e sem que se passe afinal de contas nada". LITERATURA E SEMIOLOGIA Pesquisas semilógicas Editora Vozes Ltda Petrópolis O Efeito de Real 1972 A palavra fragmento não foi encontrada! A CONTROVERSIA ESTRUTURALISTA As Linguagens da Crítica E as Ciências do Homem Tradução de Carlos Alberto Vogt e Clarice Sabóia Madureira (Professores-Assistentes do Departamento de Lingüística da Universidade Estadual de Campinas) ESCREVER: VERBO INTRANSITIVO? DISCUSSÃO BARTHES-TODOROV EDITORA CULTRIX São Paulo 1976 Muitas enunciações em romances escritas em ele (terceira pessoa) são, ainda assim, discursos da pessoa, sempre que o conteúdo da elocução depende de seu sujeito. Se lemos num romance que "o tilintar do gelo no copo parecia ter dado a Bond uma súbita inspiração", certamente o sujeito do enunciado não pode ser o próprio Bond - não porque a sentença está escrita na terceira pessoa, pois Bond poderia muito bem se expressar através de um ele, mas devido ao verbo parecer, que se torna marco da ausência de pessoa. Entretanto, apesar da diversidade e às vezes mesmo artificiosidade dos sinais narrativos da pessoa, não há senão uma única e grande oposição no discurso: a da pessoa e a da 364 não-pessoa; toda narrativa ou fragmento de narrativa tem que cair em um ou outro desses extremos. Como podemos determinar essa divisão? "Re-escrevendo" o discurso. Se pudermos trocar o ele por eu sem fazer qualquer outra alteração na enunciação, então o discurso é, na verdade, pessoal. Na sentença citada, esta transformação é impossível; não podemos dizer que "o tilintar do gelo parecia ter-me dado uma súbita inspiração". A sentença é impessoal. Partindo daí, podemos ter uma idéia de como se faz o discurso do romance tradicional; por um lado, ele alterna o pessoal e o impessoal muito rapidamente, às vezes numa mesma sentença, de modo a produzir, se pudermos dizer assim, uma consciência proprietária, que mantém o controle daquilo que diz sem dele participar; e, por outro lado, neste tipo de romance - ou melhor, de acordo com nossa perspectiva, nesse tipo de discurso, quando o narrador é explicitamente um eu (o que acontece muitas vezes), confundem-se o sujeito do discurso e o sujeito da ação relatada, como se - e esta é uma crença generalizada - aquele que hoje 'fala fosse o mesmo que agia ontem. E como se houvesse uma continuidade entre o referente e a enunciação através da pessoa; como se o narrador fosse apenas um dócil servidor do referente. (p. 153-154) Ensaios MASCULINO da FEMININO semiótica NEUTRO narrativa Masculino, feminino, neutro* * Título original: ―Masculin, féminin, neutre‖ Editora Globo Porto Alegre 1976 Não se pode conceber a decifração (múltipla) que funda a novela de Balzac como uma operação unilateral: o texto não é de modo algum cifrado pelo autor, depois decifrado pelo leitor. Os signos que se oferecem para decifração são ao mesmo tempo os signos da cifração: o l eitor cifra e decifra ao mesmo tempo: aprecia a notação como cifra obscura e como cifra clara. Esta ambigüidade é auxiliada pelo fato de que, em Sarrasine, o leitor não é jamais diretamente o decifrador: a novela comporta suas decifrações internas. Há duas nela: uma tem por cenário o prólogo, por objeto o ancião enigmático, por sujeito 365 (conduzido pela fala do narrador) Mme de Rochefide; a outra tem por cenário a anedota contada, por objeto a Zambinella, por sujeito o escultor Sarrasine. A unidade das duas decifrações se realiza somente ao nível de seu objeto: substâncialmente porque nos dois casos é um corpo que é decifrado como entidade civil, porque se trata da mesma pessoa, estruturalmente porque as duas cifras, antes separadas, convergem no epílogo, onde seus objetos coincidem ("Mas este ou esta Zambinella? - Não seria, Madame, senão o tio-avô de Marianina?") Ainda este objeto comum não se oferece da mesma maneira à leitura: no caso do ancião, o problema proposto ao decifrador é de reunir uma identidade fragmentada, de suscitar um nome unitário que ainda não existe; pois, no ancião estranho, nem a pessoa nem o corpo podem ser nomeados. Zambinella, ao contrário, é provida de uma identidade clara, reunida, nomeada (é uma cantora); ao inverso do primeiro, o problema aqui é abalar esta identidade, desmascarar um corpo, substituir um nome (o castrado) por outro (a mulher), uma substância (o nada), por outra (a feminilidade plena, perfeita). (p. 7) A arte, que é também o assunto de Sarrasine (esta novela comport a várias entradas), produz aí duas alegorias: a do quadro de Adônis (no prólogo), a da estátua (na história). Formalmente, a arte consiste numa operação de reunião; em face de sua arte, o mundo real de Sarrasine é dividido, participa de uma culpabilidade maior, a que é ligada ao compósito; o próprio Sarrasine é compósito, "ora agitado, ora passivo" (é isso que o romantismo, pelo menos o de Balzac e de Michelet, chama de "bizarro"); em Filippo, o sobrinho-neto do castrado, a despeito de sua grande beleza, descobre-se a mistura _de elementos contrários (o grâcil, o delicado da silhueta e as sobrancelhas vigorosas, a paixão mâscula): sua mãe e sua irmã, uma vistosa, a outra doce, devem ser duas para realizar uma imagem da mulher total; e antes de, conhecer Zambinella, quando Sarrasine procurava um modelo para suas esculturas, ele só encontrava detalhes perfeitos em corpos diversos: aqui, as curvas de uma perna perfeita, ali os contornos do seio, o colo de uma menina, as mãos desta mulher, os joelhos lisos dessa criança. Diante desta dispersão, a arte é o poder que realiza ajunção inconcebível (como diz Maquiavel ao fazer o retrato de Lourenço de Médici): a arte só pode reunir o corpo fragmentado pelo fantasma (e neste sentido, a arte, é um contrafantasma). 4 A Zambinella é para Sarrasine um objeto de arte - o objeto mesmo da arte - porque seu corpo reúne perfeições que certamente existem aqui e ali no real, mas divorciadas; sua feminilidade tende à sua perfeição, mas sua perfeição tende à sua unidade. O que Zambinella imprime em 366 Sarrasine, a primeira vez que ele a vê, é a verdade da unidade: o artista dividido, emperrado (como nos informa sua biografia), se encontra de súbito - palavra surpreendente - azeitado. 5 4 Sobre o corpo fragmentado em Sarrasine, ver o excelente estudo de Jean Reboul, Sarrasine ou la castration personnifiée, Cuhiers pour l'Analyse, 7:91-96. mar.- abr, 1967. 5 Ao contrário da pintura, e ainda mais da escultura (não é com certeza gratuitamente que Snrrasine é um escultor), a escrita não pode nunca reunir o corpo: está condenada ao detalhe sucessivo: a linguagem pode dar apenas a dimensão da beleza, não a beleza. (p. 12) SEMIÓTICA NARRATIVA E TEXTUAL EDITORA CULTRIX São Paulo Editora da Universidade de São Paulo ANÁLISE TEXTUAL DE UM CONTO DE EDGAR POE 1977 Já foi feito em L'AVENTURE SÉMIOLOGIQUE, The Semiotic Challenge, 1985 OBRA NÚMERO 18 UTILIZADA NA TESE A AVENTURA SEMIOLÓGICA, Tradução de Maria de Stª. Cruz Lisboa : Edições 70, 1987
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