BARSALINI, Glauco. a Permanência Do Sagrado Na Sociedade Secularizada

May 13, 2018 | Author: BIAGIOPECORELLI | Category: Émile Durkheim, Sacrifice, Sociology, Sigmund Freud, Greek Mythology


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A permanência do sagrado na sociedadesecularizada1 The permanence of the sacred in the secular society Glauco BARSALINI2 Re sumo Em Totem e tabu, Sigmund Freud resgata o termo sagrado dentre os romanos, associando-o ao significado do termo tabu, para os polinésios, os quais atribuíam a tabu a conotação de “santo, consagrado”, por um lado, e de “inquietante, perigoso, proibido e impuro”, por outro. O antropólogo René Girard desenvolve, especialmente a partir de estórias da mitologia, instigante tese a respeito do sacrifício e do que ele denomina crise sacrificial no mundo moderno. O centro de suas discussões é a figura do bode expiatório. Finalmente, Giorgio Agamben identifica a atualidade do debate sobre o sagrado no mundo secularizado contemporâneo, tendo em vista a figura do homo sacer, aquele que está fora do amparo da lei. Pretende-se, nesse artigo, explorar a possível ligação entre os conceitos de tabu, de bode expiatório e de homo sacer. Quer-se, com tal investigação, contribuir para as discussões atuais a respeito da presença do elemento religioso sobre o político e o jurídico na contemporaneidade. Palavras-chave: Bode expiatório. Homo sacer. Tabu. Totem. Abstra ct In his book Totem and Taboo, Sigmund Freud revives the term ‘sacred’ from the Romans, which meant taboo. For the Polynesians the term ‘taboo’ means “saint and consecrated” or, “disturbing, dangerous, forbidden, and impure”. The anthropologist René Girard developed an interesting thesis about sacrifice that he calls the sacrificial crisis of modern times, which was primarily based on mythological stories. The center of his argument is represented in the idea of the scapegoat. Finally, Giorgio Agamben furthers his argument on the consecrated by exploring the concept of homo sacer, the man without the protection of law. This article addresses the relations between the concepts of taboo, scapegoat, and homo sacer. The aim of the article is to contribute to the present debates about the religious, the politics and the juridical element in contemporaneity. Keywords: Scapegoat. Homo sacer. Taboo. Totem. 1 Este artigo é fruto de pesquisa empreendida junto ao Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e é inspirado no Curso “Formas de Representação do Fenômeno Religioso” (ministrado em 2014) e, também, na Reunião Científica promovida pelo Grupo de Pesquisa Ética, Política e Religião, intitulada “Política, Messianismo e Religião”. Anotamos, ainda, que fragmento deste artigo constituiu-se como base para comunicação junto ao I Congresso Lusófono de Ciência das Religiões (de 9 a 13 de maio de 2015) na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e que contou com o Auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 2014/25554-1). 2 Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Rod. Dom Pedro I, km 136, Pq. das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil. E-mail: <[email protected]>. Recebido em 31/3/2015 e aprovado para publicação em 11/6/2015. Reflexão, Campinas, 40(1):21-39, jan./jun., 2015 o mito é o território do sagrado e pelo sagrado as sociedades se auto-regulam. o interdito. Freud desenvolveu inovadora e polêmica teoria que. partindo da sexualidade humana. 40(1):21-39. Tal relação é religiosa. Nesse caminho. que é garantida justamente pelo segundo. o tabu e o bode expiatório. especialmente na tragédia. É sobre o que discorreremos neste artigo. Em tal condição. o homo sacer. posteriormente. nunca protagonistas mas sempre vítimas. o desejarem. em que todos devem ser iguais e em que o rito deve passar pelo princípio da razão. e se tornam. Conforme Girard (2004). Freud dedicou-se ao estudo da ligação entre o totem e o tabu. mais precisamente. o objeto a mitigar a vingança mimeticamente reproduzida entre as diversas famílias. Há uma ligação entre o totem e o tabu. Assim. por sua vez. também. de seu oposto.22 G. observando o alto teor de violência que se apresenta em todos eles. Inspirado em profundas discussões sobre o mito e o poder. Com base na etnografia e na dramaturgia. reféns dos mecanismos políticos e jurídicos a eles externos. Girard (2004) desenvolve instigante tese a respeito do sacrifício. Reflexão. o totem. BARSALINI I n t ro du çã o Atento ao funcionamento mental do neurótico. incidindo diretamente sobre as definições objetivas de família e das relações intra e extra familiares entre os sujeitos daquelas sociedades. Agamben (2004). e a crise sacrificial e o homo sacer. as quais se constituem como elementos estruturantes de toda a vida social (como. É o que se vive na modernidade. que remontam da antiguidade românica. aquele que significa a proibição. afastando-se da religião e da mitologia. Passam a seres.. transformado em um sub-humano. consequentemente. em princípio. O desaparecimento das diferenças e. o psicanalista propugnava pelo império da ciência e da civilização. totalmente passivos. 2015 . ao profano. Cria-se um sistema sacrificial em que aquele a ser sacrificado (ou bode expiatório) é o catalisador dos conflitos sociais ou. e concluiu pela enorme importância de ambos no universo de representações dos membros das sociedades primitivas (conforme nominava a antropologia de sua época). objeto que confere identidade a grupo social específico. implica em uma crise sacrificial. Fortemente influenciado pelo darwinismo social. locus da razão. defende que atualmente vivemos em um estado de exceção permanente. interditado à reivindicação. os diferentes clãs e as distintas tribos. seja qual for de nós. aquele que pode ser eliminado sem que o seu assassinato implique em pena a quem o matou. se equilibram. Campinas. propunha paralelos entre os mecanismos mentais próprios à neurose e os mecanismos sociais vinculados ao comportamento sexual e às definições de parentesco de sociedades tribais. os seres humanos ficam impossibilitados de assumir postura ativa. Ao perscrutar sobre o sagrado. inclusive dos direitos humanos. Afirma que essa é a condição que pode envolver muitos dos seres humanos espalhados pelo mundo pois. em absoluto. o que não podem capturar mas pelo que podem ser capturados quando assim os poderosos equipamentos políticos e jurídicos – em regra internacionais –. esteio do “homem saudável”. de qualquer direito civil. em trabalho referencial da metodologia estruturalista). pois remete à ideia de sagrado e. em favor próprio. em momento casual. pode ser lançado em uma zona de indeterminação. jan. o antropólogo Claude Lévi-Strauss demonstrará. é envolvido pelo tabu./jun. circunstância na qual reintroduz-se o anátema do mundo antigo. o antropólogo francês explora os mitos de diferentes tradições. A relação entre ambos ocorre em uma dialética em que o primeiro somente subsiste pela negação a seu acesso. do bode expiatório. Os membros do clã. a fim de que ele não transmitisse o reinado ao primogênito Esaú. na espécie animal. enganando Isaac. Girard transcreverá: Escolhiam-se sempre. Para o psicanalista.]. água). inofensivo ou perigoso. dado a inexistência delas. por um lado. Reflexão. e explica o totem da seguinte forma: Via de regra é um animal. do ardil planejado por Raquel e executado por seu filho Jacó. Campinas. Freud não precisa em seu texto. e mais raramente uma planta ou força da natureza (chuva.. 2015 . os quais protegem o grupo social. os mais próximos do homem por seu instinto ou por seus hábitos[. de que tal relação (do homem com o totem) se sobrepõe ao fato de ele (homem) pertencer a uma tribo ou ao parentesco de sangue. (e) a transmissibilidade do totem. Freud remete ao totemismo como um sistema que vem em lugar das instituições sociais religiosas. por linha materna ou paterna. apenas depois sendo substituída pela segunda. À definição trazida por Freud cabe destacar: (a) a associação do totem a animais (e raramente a vegetais ou a forças da natureza). conhece e poupa seus filhos. de não matar (destruir) seu totem e abster-se de sua carne (ou dele usufruir de outro modo).. Ele não se acha ligado a um solo ou lugar. comestível. mas a todos da espécie. sagrada e portadora de punição automática. em que os membros do clã representam ou imitam. 40(1):21-39. jan. Examinemos os pontos levantados: a) Associação do totem a animais e. nas quais se promovem rituais miméticos. a afirmação de que a variação totêmica é importante para a manutenção da paz. se assim posso me exprimir (GIRARD. ela se sobrepõe ao fato de pertencer a uma tribo. tal sujeito desempenha a mais basilar e radical estrutura de vida social sobre a qual se erguem todas as diversas experiências sociais que a humanidade construiu ao longo de sua história. ainda. Girard recompõe a cena bíblica. (g) a constatação de que os membros de diferentes totens vivem pacificamente entre si ou. e ao parentesco sanguíneo. tab u . seus membros moram separados uns dos outros e convivem pacificamente com os seguidores de outros totens (FREUD. temido./jun. René Girard chama a atenção para a associação entre os seres humanos e os animais. O totem é. em primeiro lugar. por outro lado [Frazer]. 4 Remetendo a Joseph de Maistre (Eclaircissenment sur lês sacrifices).. os movimentos e as características de seu totem.8). Escolhiam-se. raramente. a relação com o totem é o fundamento de todas as obrigações sociais e. e. os mais inocentes. p. ao dia a dia da comunidade. o ancestral comum do clã. mas não aos momentos especiais das festas iniciáticas). aos membros do grupo. A primeira forma é provavelmente a original em toda parte. e. em danças cerimoniosas. 1998. acham-se na obrigação. que lhe envia oráculos. de matar e comer a carne de qualquer um dos animais da espécie de seu totem (isso se aplica. especialmente no que concerne ao mecanismo de substituição próprio ao rito sacrificial4. mas também seu espírito protetor e auxiliar. enfim. mesmo quando é perigoso para os outros. aqui. A relação com o totem é o fundamento de todas as obrigações sociais para um australiano. 2013.23 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA To tem . De quando em quando são celebradas festas. que explicitam a identificação dos membros do grupo em relação ao seu totem. os mais dóceis. O totem é transmitido hereditariamente.13). mas a seu irmão Jacó: 3 Freud interpretou o australiano como o exemplar mais rudimentar do gênero humano. (c) a proibição. por sua vez. O caráter do totem não é inerente a um só animal ou ser individual. (b) a ligação do totem aos ancestrais. entre os animais. que tem uma relação especial com todo o clã. já adiantando a análise. a vegetais ou a forças da natureza Em A violência e o sagrado. que se dá por linha materna ou paterna. em outras palavras e. os mais preciosos por sua utilidade. p. (d) a realização de festas. para o australiano “primitivo”3. (f) a ideia de que. as vítimas mais humanas. c r is e sac rifical e homo sac e r Baseado em Totemismo e Exogamia de Frazer (1910) e em O segredo do totem de Lang (1905). que sem tardar Jacó oferece a seu pai. Matando o animal. Ele evita os contatos diretos. Reflexão. O texto não relata diretamente o estranho ardil que define a substituição sacrificial. que é lisa e não peluda como a de seu irmão mais velho. Raquel. Próximo ao pai. justamente o que não dispõe deste artifício contra a violência. Isaac é cego. p. E. é redizer em uma outra linguagem. O animal (bem mais que o vegetal) é sucedâneo do ser humano. conforme ele. então. o sacrifício não pode tornar explícito o deslocamento no qual se baseia. A substituição sacrificial pressupõe um certo desconhecimento. 1998. Isaac. afirmará: Desviando-se de forma durável para a vítima sacrificial. Esaú: pede que. Os cabritos servem para enganar o pai de duas maneiras diferentes. quer abençoar seu filho mais velho. Na associação entre o ser humano e o animal. 40(1):21-39. de outro. por causa da pele de suas mãos e de seu pescoço. o que explica porque raramente o totem é um vegetal ou uma força da natureza. que poderiam desencadear a violência (GIRARD. um outro homem. Raquel tem a feliz ideia de cobrir sua pele com a dos cabritos. como totem. previne sua mãe. Mesmo assim. ao passo que Abel não o mata. Girard chama a atenção para um terceiro fato. Talvez seja este. um animal. realizando. que Caim mata seu irmão. Campinas. Jacó tem medo de ser reconhecido. O texto bíblico oferece uma única precisão sobre os dois irmãos. Enquanto permanece vivo. entre outros. não haveria mais substituição alguma e o sacrifício perderia sua eficácia. a violência perde de vista o objeto inicialmente visado. É o que se dá no caso emblemático entre Caim e Abel. 1998. É preciso fazer correr o sangue do animal. Esta diferença entre o culto sacrificial e o culto não-sacrificial é na verdade inseparável do julgamento de Deus em favor de Abel. Jacó evita tornar-se homicida de seu próprio irmão. mas um segundo permanece semi-oculto sob o primeiro. Ele o confunde com uma outra substituição. Do contrário. o significado da história de Caim e Abel. sacrificado. Esaú e. algo para devorar. Mas ele também não pode esquecer completamente nem o objeto inicial. Ela escolhe dois cabritos do rebanho e com eles prepara um prato suculento.16).24 G. o sacrifício animal. Isto significa que talvez o próprio texto possua uma significação sacrificial. É provável que este texto contenha o mito fundador do sistema sacrificial (GIRARD. nem o deslizamento realizado deste objeto para a vítima realmente imolada. Nesse sentido. ele cace e traga-lhe um “prato suculento”. ocorrem dois fatos notórios: de um lado. Para ser abençoado e não amaldiçoado. para que se evite o assassinato de um igual. p.16). p. Pretende revelar um fenômeno de substituição./jun. mas tampouco silencia a seu respeito. atrás da pele do animal. literalmente.. no caso entre Jacó e o cabrito. o cabrito é sacrificado para ser ofertado àquele que detém o poder (Isaac) e. E o filho dissimula- se. Um dos irmãos mata o outro. o caçula. mas de forma indireta e fugidia. é a ele que a benção é dada. ocultado pelo segundo: a substituição de um irmão por outro. um semelhante ao ser humano (espécie distinta do reino animal). Jacó. Pensando que vai morrer. o animal substitui o filho caçula do rei. Abel é um pastor e sacrifica os primogênitos de seu rebanho. fazendo-se passar por Esaú. aqueles que possuem. 2015 .15) destaca: Só é possível ludibriar a violência fornecendo-lhe uma válvula de escape. Caim cultiva a terra e oferece a Deus os frutos de sua colheita. ou seja. estão menos suscetíveis a cometer o assassinato contra um ser humano. a do divino. ao mesmo tempo. dupla função: a de evitar um assassinato humano e a de evitar a condenação do assassino. antes da bênção. O velho apalpa as mãos e o pescoço de Jacó. um irmão de sangue. o que não ocorre com as oferendas de Caim. Dizer que Deus acolhe favoravelmente os sacrifícios de Abel. evita ser condenado por seu pai. aqui. BARSALINI Isaac está velho. O animal é sempre interposto entre o pai e o filho. para desviar do filho a violência que o ameaça. Girard (1998. jan. o filho faz-se preceder pelo animal que acabara de imolar e a ele o oferece como refeição. A cena que acabamos de descrever responde perfeitamente a esta dupla exigência. tendo escutado tudo. permitindo-nos vislumbrá-lo. especialmente de um “mais igual ainda”. sem reconhecer seu filho caçula. o qual está submetido a processos classificatórios: a criança e o casto.124). como a peste. A impureza humana deve ser purificada. Purifica-se o impuro ofertando um seu sucedâneo aos deuses (ou aos inimigos)5. de um lado.. consagrado’. Não era mesmo necessário ter sido homem virtuoso. ‘inquietante. santos. Animais ou seres humanos. neles desempenhava com freqüência o seu papel. realizando o sacrifício em seu benefício. xamãs. 2015 . de matar e comer a carne de qualquer um dos animais da espécie de seu totem e d) realização de festas. Cícero diz-nos: “Os nossos antepassados quiseram que os homens que deixassem de viver fossem contados entre os deuses”. um outro que se honrava era sempre um deus tutelar que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos. Campinas. 5 É costume entre os chukchi (nômades nativos da Sibéria) sacrificar-se um terceiro quando algum dos seus mata pessoa de outra tribo. Reflexão. mas o estão purificando . então. 2013. sacerdotes.. Dirigiam-lhe súplicas. Thomas7. Para protegê-los. como os ancestrais do clã. médicos etc. associados aos seres humanos. p. Dedicavam-lhes quanta veneração o homem pode dedicar à divindade que ama ou teme. Embora morto. jan. e nunca podiam deixar de ser cultuados. os ancestrais são tomados como protetores do grupo social. entre os mortos não havia distinção de pessoas. No grego clássico a palavra significa “ao mesmo tempo o veneno e seu antídoto. por outro. reproduzir o esquema sacrificial. dependendo dos casos. proibido. ou seja. impuro’” (FREUD. ao desenvolver sua teoria sobre a proibição do incesto e a decorrente lei da exogamia próprias à mente primitiva (à qual. Interdição é sinônimo de tabu (termo polinésio). Quando se encontrava algum túmulo parava-se e dizia-se: “Tu. 40(1):21-39.assim como a toda a comunidade chukchi e. perigoso. p. Esta espécie de apoteose não era apanágio dos grandes homens.17) anota: Os mortos eram considerados criaturas sagradas. Para o seu pensamento cada morto era um deus. se associa a mente do neurótico vivente no mundo moderno). sabia ser forte e ativo. sacer) se divide em duas direções opostas: “por um lado quer dizer ‘santo. na contemporaneidade. que pode ser um animal ou um outro ser humano. portanto. bem- aventurados. 1998. continuava a tomar parte nos negócios humanos. e finalmente qualquer substância capaz de exercer uma ação muito favorável ou muito desfavorável. das circunstâncias.. o psicanalista concluirá que tabu (entre os romanos. a vítima expiatória. Em termos girardianos. não semeie a destruição de todos contra todos. mágicos. Sobre isso discorreremos adiante. p. ou os geneticamente deformados e os pharmakós6. O impuro deve ser purificado. que és um deus sob a terra. chamavam-nos bons. do homo sacer. pedindo- lhe seu auxílio e os seus favores. p. 6 O pharmakós é a figura grega do anátema. Com isso.39). Coulanges (1975. cuja manipulação os homens comuns devem deixar àqueles que gozam de conhecimentos excepcionais e não muito naturais. agindo no sentido de evitar-se a reprodução do assassinato pela provável vingança que o grupo atingido tenderia a realizar (GIRARD. 1998. o mal e o remédio. sejam eles virtuosos ou não. No universo greco-romano.” (GIRARD. os chukchi não estão penalizando o assassino.] Se o morto cujo culto se descurara tornava-se uma criatura malfazeja. Apoiado em Northcote W. Os antigos davam-lhes os epítetos mais venerandos que encontravam no seu vocabulário.25 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA b) Ligação do totem aos ancestrais. c) Proibição. [. à recriação. de outro. tanto era deus o mau como o homem de bem. o pharmakon é a droga mágica ou farmacêutica ambígua. somente o mau continuaria na sua segunda existência com todas as suas más inclinações já reveladas durante a sua primeira vida. seja-me propício”. para ele. Uma análise atual do bode expiatório conduzirá ao entendimento sobre a perseguição às minorias e. a fim de que a sociedade não seja castigada pelos deuses com a epidemia. ao mesmo tempo. para que não contamine e.12)./jun. das doses empregadas. os antepassados eram os próprios homens. aos membros do grupo. os quais protegem o grupo social Muitos povos consideram os animais. em que por rituais miméticos explicitam a identificação dos membros do grupo em relação ao seu totem Freud leva em consideração a evidência etnográfica da interdição da carne do totem. é o que garante a harmonia social e a proteção de toda a comunidade contra os males da natureza. orar pelo ancestral e cultuá-lo por meio do rito. 7 No verbete Taboo (Encyclopaedia Britannica). os homens estavam impedidos de comê-lo a não ser no momento da festividade religiosa. Lembrando do termo hebraico Kinship. BARSALINI A morte e a ingestão do animal totêmico. ou à morte9. todavia. em princípio. no sacrifício./jun. Comer e beber juntos. como se disse. implicam na desgraça daquele que o fez. Freud (2013. Todos os membros do clã deviam comer do animal sacrificial: “o animal do sacrifício era tratado como um membro do clã. Se um homem partilhava a refeição com seu deus. alvos da mais severa punição: o abandono à própria sorte. seu parentesco sanguíneo com o animal e o deus (FREUD. Então é natural que ela não se baseie apenas no fato de que a pessoa é parte da substância de sua mãe. coletivamente. por isso. toda a culpa implicada nesse ato. 8 A respeito do sujeito impuro como fonte de contaminação. e aquele visto como estrangeiro não era convidado a partilhar uma refeição. na sua origem. que eram oferecidos em sacrifício aos deuses para os quais eram sagrados. vale conhecer a obra de René Girard. pode obter e reforçar a kinship. o fazendo. e sacrifícios extraordinários de animais que eram proibidos por serem impuros. também. os homens não podiam comer com membros do clã de suas mulheres ou com suas mulheres e filhos. Nas festas iniciáticas. e relata como nas civilizações mais antigas os homens ofereciam animais e vegetais aos deuses. A refeição sacrificial era. ofereceram-se animais e. por isso. 2015 . Robertson Smith o termo refeição totêmica. Era este. 40(1):21-39. O sacrifício do animal totêmico. elemento central na identificação de todos como componentes de uma mesma fraternidade. e que os crentes enfatizavam de algum modo. tornarem-se impuros e fontes de contaminação8 e. o seu deus e o animal do sacrifício eram do mesmo sangue.141). consagrado. a dos animais domésticos. especialmente a discussão que realiza em relação ao problema da peste e sua ligação com o ser impuro. Historicamente. capaz de contaminar a todos com a cólera e a sede de vingança (vide A violência e o sagrado). Nas festas iniciáticas.26 G.141). primeiro. Reflexão. p. a comunidade que sacrifica. p. que originariamente eram também comidos. 9 Conforme Robertoson Smith. Uma investigação mais detida mostra que esses animais impuros eram animais sagrados. todos se nutriam do animal doméstico assumindo. isso expressava a convicção de que eram da mesma matéria. apenas enquanto a matéria ingerida durasse em seus corpos. Kinship significa. conferia laços de união entre os homens mas. sob pena de.141). 2013. vegetais (estes como oferendas dos primeiros frutos e como tributo aos deuses do solo e da terra). membros de um único clã” (p. Todavia. participar da substância comum. depois. mas de que também a alimentação que a pessoa ingere mais tarde. portanto. correspondente ao mito. o objeto por excelência de oferenda aos deuses. desvinculadas de qualquer ritual sagrado. Para que os laços fossem permanentes era preciso que as pessoas comessem sempre juntas. Por ter realizado tais atos. 2013. Remetendo a Robertson Smith. a pessoa se torna impura e. O alimento que unia os membros do grupo era o mesmo que podia separá-los entre si. Como os homens se casavam com mulheres de outros clãs e a herança se dava pela linha materna. que identifica o animal do sacrifício com o animal totêmico (tese a que Freud faz coro).. em um contexto ritualístico sagrado. da mesma comida e da mesma bebida. Freud toma de W. toda a comunidade assume o fardo do erro pelo sacrifício daquilo que é santo. a expressão com que se reconhece o parentesco de clã é: “Tu és meu osso e minha carne”. que originalmente eles eram identificados com os deuses mesmos. um banquete entre parentes do mesmo clã – estrangeiros eram proibidos de comer junto aos membros de outro clã. p. um perigo para toda a comunidade. jan. Campinas. da qual nasceu e com cujo leite foi alimentada. e com a qual renova seu corpo.140) dirá: Em hebraico. “a morte de uma vítima era uma daquelas ações proibidas para o indivíduo e justificadas apenas quando todo o clã assumia a responsabilidade” (In: FREUD. livra da culpa exclusiva aqueles que o fazem. o psicanalista escreve: Havia duas espécies de sacrifícios na antiguidade tardia. o animal sagrado. Era puro. ou sacer.71). 2013. o cosmos. teria sido um importante elemento da religião totêmica” (FREUD. o homo sacer. O homem. p. e que a religião é o espaço por excelência de tal sacrifício – conforme Robertson Smith –. É sobre o que discorreremos mais à frente. 2013.27 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA Nesse sentido. Por estar em uma zona de indistinção (nem sob a guarda do direito civil. a quem vale dedicar-se atenção. Tomando por exemplo o Naurôz (ano novo persa). O homo sacer contemporâneo corresponde ao sobrevivente. sempre como sucedâneo da vingança de uns contra os outros.141). Agamben (2004) o definirá como aquele que pode ser sacrificado sem qualquer prejuízo legal a quem o faz. por outro. e daquilo que se aprende. santo. Ambos. então. sobre quem se aplica a biopolítica quando o biopoder assim o deseja. que suscita um encontro com o pensamento de Girard (1998): a afirmação de que as religiões fundantes – totêmicas e. também. simbolicamente. crucial. da “suprema manifestação divina. se regenerava pelo regresso ao tempo original (o que se dava pela festa religiosa). tal violência se reproduz. concluiu que “a matança e devoração periódica do totem. impuro. Segundo Girard. De volta à análise pontual a respeito do totem. Eis aí a dubiedade do termo sacer. ‘forte’ e sagrado” (ELIADE. Em sentido diferente de Freud. Reflexão. a saber: os homens. jan. da periódica “matança e devoração do totem” (FREUD. a ordem. sem distinção. vai Mircea Eliade. Não seria difícil inferir-se daí o que simbolicamente representa. nem sob a total ausência da possibilidade de atuação do direito). então. consagrado ou. se re-estabelecesse. 2015 ../jun. 2013. diríamos. contemporâneo da cosmogonia (do início do universo). o qual será fonte de reflexões por Giorgio Agamben. p. 40(1):21-39. Para os persas. necessariamente. o totem era. era necessário abolir tal duração do tempo profano (desse tempo destrutivo). o caos. novamente. Eliade atenta para a necessidade de renovação daquilo que o tempo profano (o qual tem começo e tem fim) desgastou. por isso. especialmente pela destacada contribuição que traz para o tema da festa iniciática. p. fonte de sérios riscos para o equilíbrio social. para que. e se vincula a um tempo profundamente religioso. superabundância e criatividade” (ELIADE.143). de A violência e o sagrado. mas a anulação dos erros cometidos no ciclo temporal que se passou. 10 Vide o capítulo intitulado “Freud e o complexo de Édipo”. Freud remete à Smith que. Eliade está muito mais distante de Freud do que de Girard. imitarem-se os trejeitos e sons próprios ao totem no momento do rito: trata-se de um exercício coletivo de reprodução daquilo com que se identifica. Neste momento o homem voltava a ser. culturalmente. o homo sacer hodierno habita um território indefinido. 11 Cabe anotar que no que concerne à importância atribuída à religião como fenômeno social necessário.72). em épocas anteriores à adoração de divindades antropomórficas. banhado num tempo ‘puro’. ao longo da história. Tal abolição do tempo decorrido (profano) se realizava pelas saturnais (festas orgiásticas). enfim. o sacrifício. sagrado. e em resgate à obscura figura da antiguidade romana. não pertencem à órbita convencional do mundo secularizado. em todas as distintas sociedades humanas. senão na esfera da exceção. inquietante. O impedimento pela realização do sacrifício dado pela imposição do princípio de razão próprio à secularização da sociedade gerou. 2013. De acordo com o historiador das religiões. Por essas festas se estabelecia. a festa religiosa proporciona não propriamente a purificação do homem religioso. proibido. a sociedade. por mimese10. Eis um ponto realmente importante. desprotegido. perigoso. são profundamente vinculadas à violência. a tese de que as comunidades. conforme o psicanalista. tabu. o gesto exemplar da força. reestabelecendo-se “o momento mítico em que o mundo viera à existência. Em referência à expressão. p. em que se extinguiam os fogos e regressavam as almas dos mortos. e de Girard11. conforme Girard (1998) uma crise sacrificial. pela recriação mítica. produziram e produzem. espaço e tempo aos quais o homo sacer é lançado. míticas –. Campinas. nas segundas.120) chama a atenção para o caráter místico da relação da mulher com a terra: [. agora. Na mulher estaria a evidência da fecundação.28 G. p.] o dar à luz é uma variante. 2015 . da monogamia que a aprisiona à autoridade e aos bens do homem. jan. conforme Eliade. mas.73). Em leitura diacrônica. da identidade mesma dos membros do grupo. destaca as interpretações que o psiquiatra William Halse Rivers fez sobre os moradores das ilhas Banks. em desacordo com todas elas. expressão do próprio mito originário e. símbolo de regressão ao estado amorfo anterior. A sacralidade da mulher depende da santidade da Terra.. Todas as experiências religiosas relacionadas com a fecundidade e o nascimento têm uma estrutura cósmica. propor a teoria psicanalítica sobre as origens do referido fenômeno. e como o modelo sexual poliândrico cederá espaço ao monogâmico. da fertilidade telúrica. Em várias religiões. se vincula integralmente ao seu totem. fator determinante da estruturação de sociedades matrilineares. BARSALINI ele nascia novamente. a mulher do clã originário continua proibida. p. poderíamos dizer. referenciado em Lewis Henry Morgan. da propriedade privada e do Estado de Engels (1984) em que. se consolidará na forma de reorganização social. que deu origem às análises deste item. enquanto nas sociedades patriarcais ele se transfere pela linha paterna. Longe da psicologia em sentido estrito. 40(1):21-39. posteriormente. sobre a qual autores como Sigmund Freud e Friedrich Engels construíram suas teses. Essa formulação se contextualiza na certeza da auto-suficiência feminina em gerar a vida. o que não tornaria difícil a sua associação mágica com a terra. a etnologia clássica. 12 Retomando a definição de Freud. tal como no momento de seu nascimento” (ELIADE. é transformada em pólo passivo da relação sexual. da Mãe universal. 2013. sociológicas e psicológicas para. peça do esquema poligâmico masculino ou. por não associarem a participação masculina à fecundação humana. por isso. nas primeiras. o evento do início (ou do re-início). este assentado na exploração do homem sobre o homem e no estabelecimento da propriedade privada. 2013. p. na linha do tempo. embora nunca goze do status de ser a genuína fonte geradora da vida humana. 2013. naquela comunidade o totemismo seria “uma criação do espírito feminino” com “raízes nos caprichos da mulher grávida” (FREUD./jun. Eliade (2013. e) a transmissibilidade do totem se dá por linha materna ou paterna Ao perscrutar sobre a gênese do totemismo. e o homem fica obrigado.. De toda forma.121). Freud passeia (em Totem e Tabu) pelas teorias nominalistas. finalmente. mas debruçado sobre a mitologia – universo profundamente relevante para o tipo de discussão que propomos aqui –. Reflexão. consoante Freud. ao passo que. A fecundidade feminina tem um modelo cósmico: o da Terra Mater. por linha materna e paterna. a casar-se com mulheres de outros clãs. em escala humana. Nesse sentido. ocorre a interdição da mulher da comunidade. a qual. substituída pelo homem12. a festa religiosa é o mais importante dos acontecimentos.9). “recomeçava sua existência com a reserva de forças vitais intacta. demonstrou que nas sociedades matriarcais o totem se transmite pela linha materna. sempre. Campinas. o pensador procura demonstrar como a mulher será. sobre a transmissão hereditária do totem. não nos parece impróprio lembrar de A origem da família. o recomeço da existência humana pela festa iniciática.. a renovação que se estabelece após o caos das festas orgiásticas – momento de total confusão social. Rivers concluiu que. Isso porque. temos: “a primeira forma é provavelmente a original em toda parte. a ser pela sequente renovação –. apenas depois sendo substituída pela segunda” (FREUD. Dentre as teorias psicológicas. p. 2008. o símbolo visível da religião social de tais povos que. com caráter coercitivo. jan. e também. ao contrário.116) dos povos australianos. pois. opostamente. p. Esta fórmula já revela uma das idéias fundamentais de Durkheim: é legítimo. Freud remete ao As formas elementares da vida religiosa e anota que. Ao contrário. nada mais é do que esse mesmo adaptado às necessidades do indivíduo (DURKHEIM. em suas palavras: Mas o que é mais demonstrativo ainda. Assim. “o totem é o representante visível da religião social” (FREUD. qualquer fenômeno individual que não tenha relação intrínseca com o fenômeno coletivo ou que não tenha se originado de anterior fenômeno coletivo. Em comentário ao sociólogo. longe de ter dado origem ao totemismo de clã. compreendem o exemplar mais próximo da organização social originária de toda a humanidade. O totemismo revela a essência da religião. 40(1):21-39.321) afirma: Seu objetivo é elaborar uma teoria geral da religião. Aron emenda: “é certamente o mais importante e profundo. p. o fundamento mais precioso de todas as relações sociais. o mais original. 1987.. conforme a teoria evolucionista.229). com base na análise das instituições religiosas mais simples e mais primitivas. o subtotem supõe o totem assim como a espécie supõe o gênero. aquele que revela mais claramente a inspiração do autor” (ARON. Aron (1987. Campinas. as formas padronizadas de pensamento e de conduta. Não há. resultado da interdição do incesto. supõe este último. nas próprias sociedades onde predomina.. exterior aos indivíduos e genérico (ou coletivo). no totem. fundamentar uma teoria das religiões superiores no estudo das formas religiosas primitivas. Ora. p.116). nos aparece não como o princípio ativo da religião pública. em Durkheim. antes de ser originário do totemismo coletivo é. o sociólogo vai até as últimas consequências de sua defesa. Reflexão. afirmando que o totemismo individual. a expressão da forma mais elementar da vida religiosa. encarnando “a comunidade. Totens devem se cruzar com outros totens. a primeira forma de religião individual que se encontra na história. como simples aspecto dessa última.. 2015 . a meu ver. f) a relação com o totem é o fundamento de todas as obrigações sociais Ao abordar as teorias sociológicas a respeito da origem do totemismo. mas a cada clã é designado certo número de espécies determinadas fora das quais não se pode escolher. a saber. A respeito da importância do trabalho do positivista francês sobre a religião. Foi nos quadros do totemismo coletivo que ele se originou e é aí que ele se move: é parte integrante dele.321). vedado. Elas são concebidas como mantendo relações de estreita dependência com aquela que serve de totem a todo o clã. Eis o mais importante regramento de todas as sociedades. de alguma maneira. é que o totemismo individual. longe de ser o germe do culto coletivo. Existem casos em que até é possível perceber essas relações: o totem individual representa uma parte ou um aspecto particular do totem coletivo [. sejam elas no âmbito interno de cada clã. se preferirem os leitores. mas. Contrário à defesa de antropólogos como Hill-Tout. O totem é aqui visto como o “fundamento de todas as obrigações sociais” das sociedades etnológicas ou. A inspiração de Durkheim é a busca pelo entendimento do fenômeno social na chave do que concebeu como fato social. e possível. que é o verdadeiro objeto de adoração” (p. Com efeito. 2013. Todas as conclusões extraídas por Durkheim do estudo do totemismo pressupõem que se possa apreender a essência de um fenômeno social observando suas formas mais elementares. O culto que o indivíduo organiza para si mesmo e. Ela tem. os noviços não têm o direito de tomar por totem pessoal um animal qualquer. p. Boas e Frazer. sejam elas no âmbito externo. decorrência deste ou. referente às relações entre clãs.]. O casamento interno fica.29 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA O que importa aqui é compreender-se o esquema da exogamia. no seu íntimo./jun. conforme Durkheim. aqueles que lhe pertencem são sua propriedade exclusiva: os membros de um clã estrangeiro não podem usurpá-las. Freud opõe a sua teoria psicanalítica. ao menos naqueles que lhes são centrais. sempre. Por serem considerados. apostando. onipresente.30 G. tomados pela culpa do parricídio. os gêmeos se constituem como uma ameaça. senão em todos os seus aspectos. contra eles. Parafraseando o antropólogo norte-americano Clyde Kluckhohn. Ele associa o ciclo de impulsos e interrupções de tais impulsos – no geral acompanhado pelo mecanismo da sublimação – próprio aos neuróticos. reedições microscópicas de crenças coletivas. Freud coloca em questão se isso de fato ocorreu historicamente. aqui. Afirma: “em muitas sociedades primitivas. pois eles “evocam e parecem anunciar o perigo maior de qualquer sociedade primitiva. fundamentalmente. e conscientes do risco iminente da concorrência visceral que tendem a nutrir. moral e jurídico das sociedades etnográficas ao da mente do neurótico contemporâneo. o totem é o lugar privilegiado das representações sociais como. doenças que provocam a esterilidade das mulheres e dos animais” (GIRARD.77). intituladas “primitivas”. Campinas. Girard escreve que “não há conflito mais frequente nos mitos que o conflito fraterno” (GIRARD.. embora Durkheim remeta a um contexto etnográfico quando opõe totemismo coletivo a totemismo individual. pois isso implicaria no contágio impuro. também. entre si. fruto da inveja e da cobiça desses filhos).82). onipotente e. que há entre os irmãos (ainda que eles não sejam gêmeos) 13 E. das interdições e. A indistinção totêmica interna seria responsável por uma catástrofe coletiva ou por aquilo que ele denomina crise sacrificial. os primeiros homens mataram. somente no final de seu texto que. o psicanalista se concentra no problema das representações e das proibições. 1998. vítima da violência de seus filhos homens (esta. qualquer violência. a violência indiferenciada” (GIRARD. se estabelece a proibição do incesto – ou do casamento com as mulheres pertencentes ao mesmo totem –. da diferenciação entre os sujeitos. À sociologia de Durkheim. então. Comparando o funcionamento religioso. p. Para Freud (2013). Reflexão. Com base na mitologia. ao sistema de controle social típico das sociedades. O ponto de partida da organização destas sociedades é o antepassado masculino voluptuoso e opressor e. p. tal como “o guerreiro ávido de carnificinas.78). pela posse das mulheres do clã que. e na etnografia. o culpado de incesto ou a mulher que menstrua” (GIRARD. aparentemente à revelia das grandes religiões são. BARSALINI Nessa perspectiva. p. mas nunca cometer-se. por isso. diferentemente do neurótico. em várias sociedades etnográficas. impuros. p. então. 1998. 1998. punitivo. 2015 . à sua época./jun. jan. Podem dar causa a “epidemias. 1998. ao mesmo tempo. g) a constatação de que os membros de diferentes totens vivem pacificamente entre si René Girard advoga que a diversidade totêmica entre os diferentes clãs é justamente o que garante o equilíbrio social interno. abandonar-se os gêmeos à própria sorte. Por isso.78). significaria “penetrar nesse círculo vicioso da vingança interminável. É por tê-lo executado13 que os filhos. o antropólogo remete ao problema da indiferenciação entre os irmãos. é comum. 1998. as comunidades tribais também o possuem. os gêmeos inspiram um temor extraordinário”. pensamos que não seria despropositado utilizar a tese para refletir-se a respeito da influência do primeiro sobre o segundo no contexto do mundo secularizado: se bem observadas. 40(1):21-39. p. O francês ressalta. de fato. Tal como o neurótico guarda em seu imaginário um pai super-poderoso. tais sociedades antecedem a sociedade moderna e. e a necessária e consequente exogamia. com forte presença nos mundos moderno e contemporâneo. cair na armadilha que a violência maléfica preparou para a comunidade provocando o nascimento dos gêmeos” (GIRARD. longe da comunidade. o seu ancestral masculino. agora viventes em uma sociedade de irmãos. por essas sociedades. as crenças individualizadas.79). violência e ritual se misturam.217). Se bem compreendemos. mais ela favorece a mimese violenta. Hercules. e é por isto que avança sem a menor desconfiança para os objetos de seu modelo. o desejo infantil de cometer o incesto e o parricídio. Apenas o adulto pode interpretar os movimentos da criança como um desejo de usurpação. das práticas de seus antepassados. O perigo do contágio da violência pela indiferença entre os sujeitos se vincula à mimese. mas de forma vetada. que deveria ter protegido a sua família contra Lico. É também a ideia de Freud. Em remissão à mitologia. 1998. o primeiro não do modelo. cabendo. que o primeiro obstáculo suscitado pelo double bind mimético pode deixar sobre ela uma impressão indelével. 1998. Contrapondo-se a Freud. na crise sacrificial. na primeira vez. não se distinguem mais entre si. aludindo à mitologia. jan. que chegam a sugerir uma presença constante da crise sacrificial. corre o risco de aparecer como uma excomunhão maior./jun. Hércules acaba matando sua família e. Lico. o primeiro acesso barrado. Ele próprio é a violência (GIRARD.. da qual não deve ser separado. ou entre sobrinhos e tios etc. Reflexão. por um único mecanismo simbólico. não de seus parentes. e replica a violência com a violência. designada incessantemente. Então. de direitos e deveres comuns”. constatando facilmente que este se dirige diretamente para o trono e para a mãe. multiplicando os efeitos de espelho entre os adversários” (GIRARD. aqui. acaba confundindo o sacrifício purificador com o assassinato. No mito. como uma expulsão para as trevas exteriores. à imitação.65) de tal modo que. a ideia do modelo. o que dita a violência humana mas. 1998). pelos descendentes. p. o animal a ser sacrificado (ou bode expiatório) com seus próprios filhos: eis a crise sacrificial. Campinas. Isso porque o faz em absoluto estado de confusão. a sentença: “quanto mais a rivalidade trágica é prolongada. e que deveria ter realizado o sacrifício purificador. 2015 . e porque ela não tem nenhuma experiência da violência.. ele os interpreta no seio de um sistema cultural que ainda não é o da criança. pois é dentre aqueles que “há o maior número de atributos. Girard afirma que não é o recalque. e ela não é menos falsa que no caso de Laio. mas de um sucedâneo. sim. não há mais diferenças entre o sangue derramado no sacrifício e o sangue derramado criminosamente (GIRARD.31 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA menos diferença do que entre primos. esses bons apóstolos. Quem deveria ter defenestrado a família de Hércules era Lico e não o próprio Hércules. 40(1):21-39. própria ao ambiente dos adultos. aí estão para informá-lo (GIRARD. este não se diferenciou daquele. 1998. é esta a ideia que o oráculo insufla em Laio muito tempo antes que Édipo seja capaz de desejar o que quer que seja.83). Girard lembra que a impossibilidade de diferenciação mútua faz aumentar o ódio de um herói dramático em relação ao outro. mas os adultos. ou melhor. o que o faz é o desejo mimético. O desejo do parricídio e do incesto não pode ser uma ideia da criança. mesmo se muito leve e rodeado de todo tipo de precauções. Girard propõe que.. É justamente porque. no interior do próprio texto. O pai imagina o prolongamento virtual dos movimentos mal esboçados do filho. do que a violência maléfica. nos “trabalhos” que efetivou. conclui que: Os irmãos inimigos proliferam de tal forma em certos mitos gregos e nas tragédias que os adaptam. O tema fraterno não é menos “contagioso” como tema.. O filho aprende a desejar aquilo que o pai deseja. E. Vale a transcrição: O adulto está pronto para prever a violência. acabando por assumir o papel de seu inimigo. Lico. a partir de significações culturais das quais esta não tem a menor ideia [.]. A primeira porta fechada. p. É. Hércules não consegue se purificar do mal que carrega consigo pela violência que cometeu anteriormente. diferentemente. p. realiza o projeto terrível de seu rival. A violência não é característica do universo da criança. é evidentemente a ideia do adulto. O filho é sempre o último a saber que está a caminho do parricídio e do incesto. com isso. Então. a criança é incapaz de responder à violência com violência. ao matar os seus familiares. sed qui occidit parricidi non damnatur. seja entre os sujeitos. A leitura que Agamben faz do homo sacer. consoante Girard.32 G. BARSALINI Então. ao mesmo tempo. ele deve ter status de pessoa. Devemos especificar a relação entre sacrare e sansire. Está. ou. de modo a se garantir que os membros de diferentes totens possam viver pacificamente entre si. O problema da indiferenciação. Lemos uma definição instrutiva e explícita em Festo: homo sacer is est quem populus iudicauit ab maleficium. indiscernível. mas está dentro. não o conduz. como todo termo vazio. entre os totens. Agamben afirma que ele passou. Ele diz: “Na vida dos conceitos. explicita: [. não é estranho às formulações bastante contemporâneas do jusfilósofo Giorgio Agamben. que pode ser evitada apenas pela diferenciação entre os sujeitos./jun.] sacer. não perde a sua atualidade e. Agamben (2004) resgata o homo sacer. digno de veneração e despertando horror. E. é também em latim que se descobre o caráter ambíguo do “sagrado”: consagrado aos deuses e carregado de uma mácula indelével. por sua vez.. tal como ocorreu com os outros conceitos (a exemplo de mana e tabu). ainda. 2015 . como o da exclusão humana no mundo contemporâneo. Campinas. 1995. em uma zona indeterminada. 40(1):21-39. Um homo sacer é para os homens aquilo que o animal sacer é para os deuses: nenhum dos dois tem nada em comum com o mundo humano (BENVENISTE. Benveniste (1995) escreve: O termo latino sacer encerra a representação para nós mais precisa e específica do “sagrado”. 1995. p. Indiferenciação.88). não por isso será um homicida. Se alguém o mata. propriamente. ou melhor. portanto. para que possa suscitar ambos os sentimentos. Está fora. conceituado pelo jusfilósofo italiano. há um momento em que eles perdem a sua inteligibilidade imediata e. É em latim que melhor se manifesta a divisão entre o profano e o sagrado. É que sancio não significa “tornar sacer”. 2004. se dá na medida em que aquele é percebido como “algo” que está dentro e que está fora.189). o que os leva a “assumir significados opostos”. à ideia de bendito e maldito em um só sujeito pois. em seguida.189). Assim. gerou o verbo sacrare. confusão e imitação constituem-se como o tripé da catastrófica crise sacrificial. obscura figura da antiguidade romana. que pretende dar conta do problema contemporâneo da exclusão humana.. seja entre o ritual e a violência. augusto e maldito. embora não escape da ambivalência em um certo sentido14. Explorando a semântica do termo sacer. do universo jurídico... à 14 A ambivalência do homo sacer contemporâneo.] (BENVENISTE. Reflexão. Esse duplo valor é próprio de sacer [. p. o grande inimigo da paz é a indiferenciação. A p er m anê nc ia d o sagrado na s o cie dade s e cu l a r i z ad a Para discutir o problema do poder.. Em O vocabulário das instituições indo-européias. que se apresenta na centralidade do pensamento do antropólogo francês. intermediária à civilização e à barbárie. entre os clãs. É o que procuraremos demonstrar no item que se segue. na medida em que pode ser capturado pelos direitos humanos. neque faz este um immolari. jan. podem carregar-se de sentidos contraditórios” (AGAMBEN. porque não tem qualquer direito de cidadão. p. por “um processo irrevogável de dessemantização”. de modo especial. O dito sacer carrega uma verdadeira mácula que o coloca fora da sociedade dos homens: deve-se fugir a seu contato. seja ela atinente ao universo religioso. vida desqualificada. os muito ricos. Sob a interpretação do pensador italiano. seja ela própria ao universo secular. confere materialidade ao bode expiatório. as minorias étnicas. se tornam. Não possui mais o status de ser humano e se encontra em uma zona indeterminada. e não biós. vulneráveis ao assassinato coletivo. por isso. p. dentre outros “estranhos” são. assassina de coletividades. Serviam-se de dois termos. calcada sobre a noção etnológica de tabu. A “vítima expiatória” está circunscrita. a multidão. a pessoa aleatória que se enquadra nos limites da vítima sacrificial deve ser perseguida pela multidão16. Girard escreve: “Por perseguições coletivas entendo as violências cometidas diretamente por 15 Agamben (2004. Mais do que resolver a especificidade do homo sacer. O que delineia a vítima sacrificial é o estereótipo: a ela se associa a maldade. no Filebo. entre religioso e jurídico. os deficientes físicos ou deficientes mentais. exatamente. a subversão à ordem e à paz. Estes se constituem como objetos de perseguição. significativamente. p.9) esclarece: “Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. por se diferenciarem em relação à multidão. no plano real. vulneráveis à fúria criminosa da multidão. talvez. semântica e morfologicamente distintos.19). Aquela corresponde a um ser humano e. Dentro dessa estrutura. em uma pretensa ambiguidade originária do sagrado. que está destituído de tudo. que está fora da jurisdição humana. Por essas razões. ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé. que não possui nada. por exemplo. em momentos de crise generalizada. pode dificilmente ser explicado de modo satisfatório enquanto se permanece no interior do ius divinum e do ius humanum. os miseráveis. a categoria homo sacer. Por essa razão. que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo.. na esfera do tabu e do totem. jan. 2015 . muito menos totem. propriamente. a peste. àquilo que. mas uma vida qualificada.81) diz: Tudo faz pensar que nos encontramos aqui diante de um conceito-limite do ordenamento social romano. a magia. por se encontrar em uma “zona que precede a distinção entre sacro e profano./jun. um modo particular de vida”. Assim. situada “no cruzamento entre uma matabilidade (sic) e uma insacrificabilidade. agora. homens ou deuses) e biós. vítima sacrificial (vide a obra O bode expiatório). sempre. p. que não se encontra em nenhum dos cosmos definidos: nem no dos homens. Tal homo sacer é o ex-indivíduo. na Ethica nicomacheaa. quando preenchida por qualquer pessoa histórica. Agamben (2004. eles jamais poderiam ter empregado o termo zoé (que. é visceral. menciona três gêneros de vida e Aristóteles. que tem seu lugar em uma zona que precede a distinção entre sacro e profano. e sempre justifica a sua vingança na ideia de purificação. que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais. o homo sacer não pode corresponder. A categoria vítima sacrificial. Girard nomeia bode expiatório ou. permitir-nos lançar uma luz sobre seus limites recíprocos. tentaremos em vez disso interpretar a sacratio como uma figura autônoma e nos perguntaremos se ela não nos permitiria por acaso lançar luz sobre uma estrutura política originária. à deficiência física. como tal. distingue a vida contemplativa do filósofo (bíos theoreticós) da vida de prazer (bíos apolausticós) e da vida política (bíos politicós).33 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA categoria “vítima expiatória”. e não vida qualificada15 –. outra coisa qualquer. que. 2004. a saber. fora tanto do direito humano quanto daquele divino” (AGAMBEN. 2004.81). portanto. da qual se diferencia. Reflexão. São os extremos que se encaixam nos padrões mitológicos do bode expiatório. em grego carece de plural) pelo simples fato de que para ambos não estava em questão de modo algum a simples vida natural. tal como Agamben concebe. os príncipes e as autoridades. Explicando-se melhor sobre o uso que faz do termo (homo sacer). mas que pode. formulada por René Girard. Ao falar de “perseguições coletivas ou com ressonâncias coletivas” (GIRARD. nem no dos deuses. entre religioso e jurídico”. se associa a deficiência de caráter. o risco da contaminação. justamente por se diferenciarem tão radicalmente da multidão. Campinas. Quando Platão. também. no plano mitológico. pode contaminar a todos ou ser objeto de expiação coletiva. referencial arquetípico. Trata-se de alguém ou de alguma coisa – zoé. Da mesma forma. 16 Conforme Girard (1998). não corresponde. o homo sacer não é tabu e. como se tem feito muito frequentemente. 40(1):21-39. p. Nem a vida nem a morte.]” (AGAMBEN. Homo sacer. ela o é porque tem a predisposição a cometer algum tipo de crime. entre nobreza e vileza. elucida bem o que tentamos traduzir. aquele que deve expiar os males do mundo. dentre eles o “mais precioso de todos”: a vida. fazer viver e deixar morrer é a marca do biopoder. está no terreno religioso.31). aleatoriamente escolhidos pela multidão. que define o caráter mais específico da biopolítica do XX: já não fazer morrer. 2015 . 2004. pois não corresponde. tornam-se apenas vida nua. Era um cadáver ambulante.89). propriamente. da lavra do pensador italiano. como já se escreveu. o muçulmano17 da testemunha. Girard (2004) classifica como um dos tipos de estereótipos relatados pelas testemunhas das violências direta ou indiretamente coletivas. portanto.. é um conceito que se aplica a seres humanos. vida desqualificada. por ela. a qualquer pessoa: é zoé “simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina” (AGAMBEN. dentro da ordem.159) escreve: “Em meus dois últimos livros. BARSALINI multidões assassinas.. aqueles que as “categorias vitimárias” parecem predispostas a cometer (p. p. mas fazer sobreviver. a vida vegetal mantida em funcionamento mediante as técnicas 17 “O assim chamado Muselmann. vida que não vive. Não é o que ocorre com o homo sacer. são subsumidos ao homo sacer e não necessariamente em razão de qualquer estereótipo. também real. 40(1):21-39. Somente pessoas podem cometer crimes. Reflexão. por serem identificados. Quando isso acontece. Ambos. assim. de seres humanos dotados de amplos direitos inalienáveis. imprescritíveis e invioláveis. homo sacer. que se exerce. “no cruzamento entre uma matabilidade (sic) e uma insacrificabilidade. Fazer morrer e deixar viver resume a marca do velho poder soberano.. portanto. que não pode cometer crime de qualquer natureza. estes. os crimes “indiferenciadores” (p. também de carne e osso. p. jná não dispunha de um âmbito de conhecimento capaz de lhe permitir discernimento entre bem e mal. nem fazer viver. o não-humano do humano. ou ao estado de exceção. eles são destituídos da condição de pessoas. Tal categoria se aplica ao universo mitológico e. Seres humanos reais. a primeira expressão tinha. entre espiritualidade e não espiritualidade. O trecho que se segue. um feixe de funções físicas já em agonia [. por não estar circunscrito no campo jurídico. Trata-se. elaboradas pelas diferentes sociedades humanas existentes sobre o nosso planeta. como conceito. legais em suas formas. significa. Campinas. à esfera do direito – religioso ou moral –. o homo sacer se liga à exceção. por sua vez. p. Todavia. mas geralmente encorajadas por uma opinião pública superexcitada”.33). religiosas ou morais.49). Procurando tornar mais clara a questão: bode expiatório. Vítima sacrificial é uma classificação que corresponde a homens de carne e osso. Por perseguições com ressonâncias coletivas entendo as violências do tipo caça às bruxas. eu quis prevenir as confusões. como direito de matar. 2008. substituindo sempre vítima expiatória por bode expiatório quando se tratasse do princípio estruturante. não. na linguagem do Lager. por estar fora das regras. transformando a estatização do biológico e do cuidado com a vida no próprio objetivo primário. no homem. acima: – como vimos –. Se a vítima sacrificial é o alvo da vingança da multidão. como era denominado. para René Girard. mas que sobrevive. mas a produção de uma sobrevivência modulável e virtualmente infinita constitui a tarefa decisiva do biopoder em nosso tempo. bode expiatório e vítima sacrificial se ligam ao conjunto de regras. Pertencem. o prisioneiro que havia abandonado qualquer esperança e que havia sido abandonado pelos companheiros. por se encontrar em uma zona indeterminada. A respeito da distinção entre “vítima sacrificial” e “bode expiatório” Girard (2004. fora tanto do direito humano quanto daquele divino”. delineadores dos contornos do que se entende por vítima sacrificial. de separar cada vez a vida orgânica da vida animal. jan. como sujeitos dotados de características próprias a certos estereótipos.34 G./jun. entre as duas fórmulas insinua-se uma terceira. como o massacre dos judeus durante a peste negra. sobretudo. estão. a meu ver. À luz das considerações precedentes. na perspectiva de Giorgio Agamben. define a diferença entre o biopoder moderno e o poder soberano do velho Estado territorial mediante o cruzamento de duas fórmulas simétricas. a vantagem de sugerir a presença provável de vítimas reais por trás de toda representação persecutória”. aqui. p. que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal (agindo como ditadura comissária) quanto por uma organizção revolucionária (agindo como ditadura soberana). pois. tabu. de um lado. poder este que deve ser de qualquer modo encarnado pelo Presidente. representada pelo sociólogo Benjamim. Campinas. representada pelo também jurista Carl Schimtt./jun. entre a zoé e a bíos. adquirem. por traz da capa da democracia se esconde a ditadura. indiferenciada entre a regra e a não regra é. e que. a revolucionária. Schmitt (2006) proclama o mistério da lei. No caso extremo. de modo que não há qualquer tipo de “elemento místico” nela. enfim. Ao analisar o poder soberano na modernidade quanto no mundo atual. a possibilidade de ruptura contra a lei burguesa. fenda na qual cresce o poder do soberano. também. Contrariamente. esse “isto” que está em uma zona indeterminada. desde a formação dos Estados Constitucionais.. O estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei (que deveria. disposições e medidas. decorre a exclusão de seres humanos. representada pelo jurista Hans Kelsen. A tese é de que o Estado moderno e.35 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA de reanimação da vida consciente. Benjamim. Reflexão. causa dos “inúmeros exemplos da confusão entre atos do poder executivo e atos do poder legislativo” (AGAMBEN. Para ele. o italiano escreve: Ele (o estado de exceção) define um “estado da lei” em que. a “força de lei” flutua como um elemento indeterminado. a Agamben (2005. os quais se inscrevem no contexto do “isolamento da ‘força de lei’18 em relação à lei” (p. atos que não têm valor de lei adquirem sua “força”. dado que na própria lei se encontra a sua negação. Opõem-se.61). Tal força de lei. mas não se aplica (não tem “força”) e em que. bode expiatório. até alcançar um ponto-limite que. Esclarecendo melhor. 2015 . no mundo contemporâneo. p. vítima sacrificial e homo sacer. Agamben (2005) percebe a fragilidade do positivismo e. p. a norma está em vigor. cremos ter deixado claro que totem e tabu são termos que caminham juntos. o povo. de outro lado. na revolução. se tornou permanente). o contemporâneo. necessariamente. com o risco iminente do estado de exceção. resulta da “violência pura”. possível relação entre os conceitos de totem. conforme Agamben. em que potência e ato estão separados de modo radical. 2005. 2005. ser escrita: força de lei. Entende que o intuito positivista da construção da normalidade pela regra sucumbiu à exceção e que disso. De maneira resumida. quando não com próprio estado de exceção (que. sempre com base no princípio de razão. Não há tabu sem totem. se erguem sobre a violência: o ocidente amarga. mergulhando no universo “místico” da política. o problema que Agamben coloca é o da soberania. sua “força”. a – podemos assim chamar –.60) define “força de lei” como “uma separação entre a vis obligandi ou a aplicabilidade da norma e sua 18 essência formal. ou melhor. pois o totem inspira. é essencialmente móvel e se desloca segundo o progresso das tecnologias científicas e políticas. conservadora.61). por sua vez. O jusfilósofo defende que. Kelsen (1998) argumenta que a lei (fruto da vontade do povo) é criada a partir da própria lei. entretanto. mais de perto. que não são formalmente leis. Apesar das inúmeras chaves de análise que todas essas categorias possibilitam dada a complexidade antropológica. uma fictio por meio da qual o direito busca se atribuir sua própria anomia. não há lacuna na lei. 2008. três grandes tradições: a positivista. O que produz esse sobrevivente. A ambição suprema do biopoder consiste em produzir em um corpo humano a separação absoluta entre o ser vivo e o ser que fala. e. contemporaneamente. Como se pode pensar tal elemento “místico” e de que modo ele age no estado de exceção é o problema que se deve tentar esclarecer (AGAMBEN. é certamente algo como um elemento místico. ainda. filosófica e teológica de cada uma delas. na própria lei está a possibilidade de sua negação. A revolução. vê na classe trabalhadora a força soberana e.155). 40(1):21-39. o não-homem e o homem: a sobrevivência (AGAMBEN. jan. compreende o quão pertinente ele é na compreensão da realidade política de nossa história recente. a exceção. É momento de estabelecer-se. p. assim como as fronteiras da geopolítica. subsumidos à categoria homo sacer. portanto.60). para o sociólogo. um tipo de violência justa porque messiânica. pela qual decretos. . O fracasso do projeto de igualdade inscrito no positivismo jurídico revela a fragilidade do estado de direito ou.”. a indeterminação em que o homo sacer é lançado na atualidade. aqui. o da secularização e. diferentemente do totem. Ocorre com todas as diferenças o mesmo que com o sacrifício. É preciso dispensar sem reservas todas as representações do ato político originário como um contrato ou uma convenção. cujo direito (ou moral) se ergue sobre a distinção totêmica. BARSALINI interdição.] como na tragédia grega e na religião primitiva. [. Vítima sacrificial é correlata ao bode expiatório e. jan. passam quase que necessariamente a ser consideradas como causa das rivalidades. como se disse. propriamente. dá causa à crise sacrificial. para si. portanto. Para Girard. o império da exceção. alvo do tabu. não é a diferença. em outras palavras. não inspira o tabu? A resposta. Mas nem sempre elas desempenharam este papel. tendendo instintivamente a considerar as diferenças. como obstáculos à harmonia entre os homens. Agamben propõe: [. diríamos.] Quando as diferenças perdem sua legitimidade. a saber. então. bem como os grupos sociais. ainda. portanto. em certo aspecto. de Hobbes a Rousseau [.] O relacionamento jurídico-político originário é o bando […] que mantém unidos justamente a vida nua e o poder soberano. causa de uma figura de tão difícil compreensão que. ligada ao sagrado surge em um contexto convencionalmente tomado por oposição ao religioso./jun.69) escreve: O mundo moderno aspira à igualdade entre os homens. contrariamente aos demais.36 G. Nas sociedades secularizadas. apesar de ser ligada ao sagrado. p. às quais fornecem um pretexto... A vingança que em sociedades etnográficas é privada. Não seria impertinente perguntar-se: por que. para saber que as teses economicistas não dão conta de explicar toda a extensão do problema (embora tragam luzes a grande parte dele).. o monopólio da vingança. Figura alienígena. Em uma sociedade etnográfica. pois.. corresponde. o sistema judiciário se interpõe à vingança dos indivíduos ou dos grupos. o judiciário substitui os indivíduos.] reler desde o princípio todo o mito de fundação da cidade moderna. intercedendo contra a violência de maneira não menos violenta ou. a ele se aplica o tabu. nas sociedades secularizadas. moral e religião se ligam de modo profundo entre si. 1998). todavia. À indiferenciação que. assumindo. que assinalaria de modo pontual e Reflexão. em regra ainda muito mais violenta do que aquela que porventura tenha dado origem a qualquer processo ou sentença. que.. para Girard. 2015 .. em sociedades secularizadas é pública (GIRARD. Visualizamos uma relação entre o problema da indiferenciação pensado por Girard e o da indeterminação divisado por Agamben. para nós. que acaba por engrossar a torrente de violência quando não mais consegue detê-la. e moral e direito se confundem. 40(1):21-39. e não na regra. mantêm- se as gritantes desigualdades entre os homens na história moderna e contemporânea? Já vimos o bastante. Campinas. [. mas sim a sua perda que causa a confusão violenta. Trata-se de sociedades morais. é o homo sacer que. apesar do princípio da isonomia.. Bode expiatório corresponde ao totem e. a pergunta: o que teria conduzido a essa exceção. está no termo indiferenciação.. nela o tabu também opera. do bode expiatório e da vítima sacrificial não é. na recente história da humanidade. mesmo que elas não tenham nada a ver com o status econômico ou social dos indivíduos. apesar da “aura” de imparcialidade e isenção. Eis o ponto.. é forjado na exceção. São sociedades dotadas de um regramento extremamente rigoroso que tem por fim evitar a vingança pessoal ou entre clãs.. Surge. Girard (1998. banido e proscrito. significa afirmar que o direito moderno (o que se aplica ao direito contemporâneo) é essencialmente vingativo. está excluído da esfera de proteção do ordenamento jurídico da comunidade de origem. um campo indeterminado. 40(1):21-39. o problema do bando soberano.. e dos direitos e garantias nela consolidados. há crise sacrificial. Giacoia Júnior (2014) explora. não nos parece estranho estabelecer-se relação teórica entre o problema da crise sacrificial e o problema do homo sacer. e. Campinas. que significa o poder de governo. Como conceito. se confunde com a indistinção. 2015 . p. de impor e executar penas. jan. o homo sacer. também. tal como o banimento. Aliás. tornou-a constitutivamente incapaz de pensar verdadeiramente. aponta. desaplicando-se àquele que. O banido seria uma espécie de ancestral do homo sacer. que designa a condição daquele que. uma política não estatal (GIACOIA JÚNIOR. Benjamin defende que ambos são violentos. o exposto às forças da natureza e à violência arbitrária dos homens. por sua vez. Como ex capere. “capturar fora”). resulta de certa ideologia da igualdade de tipo positivista. portanto. O bando remete à exclusão.] É de se notar a homologia estrutural entre bando (Bann) e exceção (exceptio. paradoxo sobre o qual se constrói a parte essencial da argumentação de Agamben.. p. impossibilitado de gozar do privilégio da paz assegurada por esse ordenamento. do pária cuja morte não caracteriza homicídio. Este mal entendido do mitologema hobbesiano em termos de contrato em vez de bando condenou a democracia à impotência toda vez que se tratava de enfrentar o problema do poder soberano e. Dizer que o soberano moderno surge do bando. Crise sacrificial implica em violência não localizada. É o pilar da força que exclui e. ex capere.37 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA definido a passagem da natureza ao Estado. Pensamos não ser equivocada a proposição que fazemos aqui: a aparição do homo sacer na contemporaneidade tem forte relação com a crise sacrificial. o direito de estatuir comandos e proibições. Esta ocorre pela indistinção. também o direito de banir. eis que é lançado em uma zona de indistinção. a soberania. o objeto da exclusão. e a natureza apresenta-se desde sempre como nómos e estado de exceção. Portanto. é justamente para essa ideia que o texto “Crítica da violência – crítica do poder”. Ao distinguir poder fundante (soberania) de poder fundado (direito). Se. e não do contrato social (como faz Agamben)./jun. essa figura do direito romano arcaico que nomeia o programa filosófico e político de Agamben. central para a nossa discussão. de fato. do direito divino. Tanto a exceptio quanto o bando exibem análoga estrutura. 2014. surge. mas que. Trata-se da figura do excluído. Reflexão. a exceção significa capturar fora. ao invés. Onde não há bode expiatório. é também desde sempre não estabilidade e pseudo natureza. então o soberano é aquele a quem a lei se aplica. Aquele. na qual o liame estatal. também. e nem vítima sacrificial. coaduna com o estado de exceção. ao mesmo tempo. que se localiza fora do direito humano como. ao qual o ordenamento que o penaliza se impõe sob a forma da denegação de seus efeitos e da prerrogativa de sua invocação. o Friedlos é o sem paz. Giacoia Júnior (2014. em hipótese alguma. tendo a forma do bando.271) dirá: Bando é a tradução portuguesa do termo alemão Bann. com qualquer projeto de tipo democrático. o que não combina. pode decretar a suspensão total ou parcial da constituição. uma bem mais complexa zona de indiscernibilidade entre nomos e physis.270). mantém íntima relação com o instituto da Friedlosigkeit do antigo direito germânico e a correspondente figura do Friedlos. Existe aqui. por força de uma prerrogativa constitucional. No lugar em que esta aparece. contrariamente. o que define a soberania é a prerrogativa (normativa) de decidir sobre a suspensão do ordenamento jurídico-estatal. Nesse sentido. sendo que a violência do segundo tem o fito de garantir a violência do primeiro. Sobre essa passagem. ao mesmo tempo.. aquele sobre o qual se ergue o poder soberano do Estado. [. na modernidade. de Benjamin (1986). aqui. a qual é inerente ao mundo secularizado. exclusão includente. transcrever trecho de nossa lavra que acreditamos poder auxiliar nas respostas a tais questões: Pensamos que se deva levar a sério o esforço de Agamben./jun. A g ra d e cim ent os A Reunião Científica e o Curso Formas de Representação do Fenômeno Religioso contaram com a honrosa contribuição do Professor e amigo Oswaldo Giacoia Junior. nessa sociedade não há espaço para a efetiva paz. sem poesia –. p. um espaço de liberdade. com todas as forças. concordamos. que muito nos tem ensinado e a quem somos profundamente gratos. no que emerge a figura da vítima sacrificial. grande parte da humanidade vive. 2015 . do estado de exceção permanente –.38 G. afastando-os da esfera da coerção e da violência. Então. A ele dedicamos este trabalho. desprovidas de alma. para nós. não se pode pensar uma nova política sem que se promova uma consistente reflexão a respeito da consciência – uma reflexão que resgate o significado filosófico de humano. é que se poderá. em que o direito e o poder soberano não se constituam mais como referência central das relações humanas. 40(1):21-39. tanto na crítica que faz à política contemporânea – em que se evidencia o estabelecimento. Campinas. verdadeiramente. um espaço no qual a justiça não se confunda com direito e o direito abandone-se a si mesmo. no que os mecanismos de regulação social estão afiançados. Somente por meio de uma nova forma de se conceber a política.254). o conceito de consciência. no centro dos debates sobre a política. enfim. ao reintroduzir. não se pode pensar uma nova política sem que se promova uma consistente reflexão a respeito do tempo –. hoje. sem vida. Reflexão. 2013. a teoria de Agamben se demonstra realmente vigorosa. e. Pois. sob um modelo social secularizado. aqui. tornando-se nada mais do que uma simples manifestação antropológica do poder dos indivíduos e da coletividade global (BARSALINI. deixando para trás a função de aparato garantidor do poder do soberano. Por outro lado. sociedades etnográficas controlam a fúria de seus indivíduos por meio de mecanismos auto-regulatórios de tipo moral e religioso. não se pode pensar uma nova política sem que se promova uma consistente reflexão a respeito da linguagem – ao lançar o direito e o fazer político no terreno da pura linguagem. a recuperar-se o conceito messiânico de tempo. realizar-se um novo espaço. BARSALINI C o n s i deraç õ es Finais Como tivemos a oportunidade de discutir. como na saída negativa que emerge de sua obra – a sugerir um conceito de política que passe longe do tradicional espaço habitado pelo poder soberano. podemos nos perguntar: como criar-se uma sociedade inclusiva sem que sejamos acometidos pelo problema da indiferenciação? Como seria possível evitar-se a exceção? Permitimo-nos. Nesse sentido. jan. em que a ciência e a razão estão colocadas em um plano hegemônico. Se René Girard e Giorgio Agamben estiverem certos.. em que os meios substituam os fins – estes. sempre precursores de soluções opacas. R. R. São Paulo: Boitempo. 2004. São Paulo: Companhia das Letras. Belo Horizonte: Del Rey. As etapas do pensamento sociológico. 40(1):21-39. H. Teologia política. SCHMITT. São Paulo: Boitempo. 2.direito. 3./jun. 1984. É. n. 2014. O sagrado e o profano: a essência das religiões. W. BARSALINI.pos.ed. 1998. 2004. C. DURKHEIM. W. 2013.ufmg. G. documentos de barbárie: escritos escolhidos. Direito e política na obra de Giorgio Agamben: soberania e estado de exceção permanente. 2008. O que resta de Auschwitz. GIRARD. Belo Horizonte: UFMG. Acesso em: 1 jul. 2014. G. 1987. São Paulo: Paz e Terra. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I.ed. 2006. BENVENISTE. 1998. Campinas. 2.39 O SAGRADO NA SOCIEDADE SECULARIZADA Re f er ê n c ias AGAMBEN. É. 1975. 2005. São Paulo: Martins Fontes. Reflexão. R. GIACOIA JÚNIOR. 2013. Campinas: Unicamp. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. AGAMBEN. 2008.ed. São Paulo: Cultrix.ed. Documentos de cultura. A violência e o sagrado. F. AGAMBEN. Totem e tabu. G. da propriedade privada e do Estado. O vocabulário das instituições indo-européias: poder.ed. 2013. KELSEN. 2015 . São Paulo: Paulus. O bode expiatório.108.php/rbep/issue/ current/showToc>. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Disponível em: <http://www. São Paulo: Hemus. São Paulo: Martins Fontes. F. direito. ELIADE. S. In: Bolle. Estado de exceção.243-291. São Paulo: Martins Fontes. Violência e racionalidade jurídica. Teoria pura do direito. ENGELS. GIRARD. 1986. 1995. A origem da família. ARON. 9. FREUD. Crítica da violência: crítica do poder. A cidade antiga.. v. BENJAMIN. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. São Paulo: Paulus. 4. jan. O. COULANGES. G.br/rbep/index. religião. M. p. As formas elementares de vida religiosa.2. USP.
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