TEORIA DODISCURSO Fundamentos Semióticos USP - UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor. Adolpho José Melfi Vice-Reitor: Prof. Dr. hélio Nogueira da Cruz FFLCH - FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS Presidente Prof., Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia) Membros Profa. Dra, Lourdes Sola (Ciências Sociais) Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia) Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan (Geografia) Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História) Profa. Dra. Beth Brait detras) Vendas Livrarias Humanitas-Discurso Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 — Cid. Universitária 05508-900 — São Paulo — SP — Brasil Tel.: 3091-3728/ 3091-3796 Humanitas – distribuição Rua do Lago, 717 05508-900 — São Paulo — SP – Brasil Telefax: 3091-4589 e-mail:
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[email protected] Telefax: 309 1-4593 Editor Responsável Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenação Editorial Mª. Helena G. Rodrigues — MTb n. 28.840 Composição Diarte Composição e Arte Gráfica Emendas Selma Mª. Consoli Jacintho — MTb n. 28.839 Capa Diana Oliveira dos Santos Revisão de emendas Simone D’Alevedo [página 4] SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................... 1 Teoria do discurso ......................................................................... 1 Plano do livro ................................................................................ 6 I — NARRATIVIDADE: À PROCURA DE VALORES ................... 7 Considerações iniciais ................................................................... 7 Estruturas sintático-semânticas subjacentes .................................. 8 A gramática de casos de Fillmore ....................................... 8 Análise estrutural da narrativa ............................................ 10 A gramática sêmio-narrativa ........................................................ 12 Uma proposta semiótica ...................................................... 13 Análise interna .......................................................... 14 Análise imanente ...................................................... 14 Percurso gerativo ...................................................... 15 Gramática fundamental ................................................................. 20 Sintaxe fundamental ............................................................ 20 Semântica fundamental ....................................................... 24 Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas ....................................................... 27 Gramática narrativa ....................................................................... 28 Sintaxe narrativa .................................................................. 28 Enunciado elementar ................................................. 29 Sintagma elementar: programa narrativo .................................................................... 31 Percurso narrativo ..................................................... 35 Esquema narrativo canônico ..................................... 41 Estratégia narrativa ................................................... 43 Intencionalidade narrativa ........................................ 44 Semântica narrativa ............................................................ 45 Modalização e modalidades ..................................... 49 Paixões e apaixonados ............................................. 60 Notas ...................................................................................................... 70 II — DISCURSO: A ASSUNÇÃO DE VALORES ............................. 72 Considerações iniciais .................................................................. 72 Sintaxe discursiva ......................................................................... 73 Projeções da enunciação ..................................................... 73 Desembreagem e embreagem actancial e teorias do foco narrativo ........................................ 74 Temporalização e espacialização ............................. 88 Relações entre enunciador e enunciatário .......................... 92 Contrato de veridicção e verdade discursiva ................................................................. 92 Argumentação .......................................................... 95 Semântica discursiva .................................................................... 113 Elementos de semântica estrutural ..................................... 113 Tematização e figurativização ............................................ 115 Isotopia ............................................................................... 124 Coerência textual ................................................................ 131 Notas ............................................................................................ 132 III — ENUNCIAÇÃO: A MANIPULAÇÃO DE VALORES ............................................................................. 135 Considerações iniciais .................................................................. 135 Estruturas narrativas e discursivas da enunciação ............................................................................... 136 Tema de comunicação ........................................................ 137 Tema de produção .............................................................. 139 Intertextual idade .......................................................................... 142 Discurso e classes sociais ............................................................. 146 Discurso e ideologia ..................................................................... 148 Texto e problemas de expressão ................................................... 152 Notas ............................................................................................ 155 BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 157 ÍNDICE ANALÍTICO ............................................................................ 165 À Mariana que descobre a escrita. À Flávia que aprende a falar. INTRODUÇÃO Este livro retoma, com algumas adaptações, a primeira parte da tese de livre-docência A festa do discurso. Teoria do discurso e análise de redações de vestibulandos, apresentada e defendida na Universidade de São Paulo, em 1985. Propôs-se, no trabalho, costurar e dar forma a um texto que apresentasse uma visão de conjunto da teoria semiótica de análise do discurso e que servisse a pós-graduandos de lingüística e a todos os que pelo discurso se interessam. Em segundo lugar, tencionou-se contribuir para o desenvolvimento da teoria, de cujo projeto temos participado de vários modos. Finalmente, deu-se destaque ao objetivo de conciliar as análises externa e interna do texto, em um mesmo quadro teórico. TEORIA DO DISCURSO Situemos, como primeiro passo, os objetivos e interesses deste trabalho, no contexto das atuais preocupações lingüísticas. A lingüística, a partir de Saussure e, sobretudo, com a teoria distribucional, toma a língua como seu objeto, quase sempre sem ultrapassar a dimensão da frase. Alguns lingüistas estabeleceram claramente esse limite, outros não o determinaram com igual clareza, outros ainda reconheceram a necessidade de se ir além da frase, mas não o puderam ou souberam fazer. O interesse pelo texto como um todo, principalmente com o desenvolvimento dos estudos de semântica, e a aceitação do fato de o texto não ser, como já se sabe há muito, a sim- [página 1] ples soma de frases, tornou necessária uma lingüística do texto ou do discurso. As tão discutidas dicotomias saussurianas, de reconhecida importância para situar a lingüística entre as ciências humanas, para estabelecer seu objeto, limitaram, por outro lado — por má interpretação do mestre, dizem alguns, por necessidade do momento histórico em que se transformavam os estudos da linguagem, afirmam outros, ou por razões ideológicas, consideradas as condições de produção do texto de Saussure, acreditam terceiros —, o campo de possível interesse do lingüista, preocupado em ser objetivo em suas abordagens. Língua e fala, lingüístico e extralingüístico fizeram da lingüística a ciência da língua — “social, essencial, tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade” (SAUSSURE, 1969, p. 21) —, relegando ao extralingüístico a fala — “acessória e mais ou menos acidental, ato individual de vontade e inteligência” (p. 22) — e suas relações com a “etimologia”, com a “história política”, com “instituições de toda espécie, a Igreja, a escola, etc.” (p. 29). A lingüística do discurso pode ser, assim, considerada como uma tentativa de ruptura de duas barreiras: a que impede a passagem da frase ao discurso e a que separa a língua da fala, ou melhor, dos fatores sócio- históricos que a envolvem. Harris (1969), por exemplo, sem fugir dos pressupostos epistemológicos da teoria distribucional, tenta derrubar a primeira barreira, propondo um processo de estruturação global do texto pela integração das frases em unidades maiores. Já outros lingüistas do texto, como Pêcheux, Verón, Slakta, Ducrot, estão mais interessados em vencer a segunda fronteira e retomar ao extralingüístico elementos situacionais indispensáveis à construção do sentido do texto lingüístico. Estabelecidas, em grandes linhas, a necessidade e as pretensões de uma lingüística do discurso, reconhece-se que, nesse projeto, não é fácil delimitar o que é da alçada da lingüística. Constata-se, facilmente, quando se examina o discurso, sua localização na encruzilhada entre preocupações da lingüística e das demais ciências humanas (MAINGUENEAU, 1976, p. 19). Ao deixar a proteção das limitações de uma lingüística pura e lançar- se no caos do extralingüístico, sente-se a lingüística um tanto atordoada, pois ora se vê fortemente solicitada por aqueles que exigem que ela lhes ensine a ler textos como meio de acesso ao homem, ora é confrontada com ofertas diversas, do historiador, do psicólogo, do sociólogo, que sugerem a sua leitura do discurso. [página 2] A primeira preocupação é a de estabelecer um denominador comum às varias definições do termo discurso, bastante polissêmico, segundo Maingueneau (1976, p. 7), e muito usado em textos sobre a linguagem. O ponto de interseção pode ser encontrado na remissão que diferentes teóricos da linguagem fazem à enunciação ou às condições de produção do discurso. E preciso distinguir, com a clareza possível, as variadas colocações a respeito das relações mantidas pelo discurso com seu quadro enunciativo ou com as condições de sua produção. Mesmo assim, pretende- se tomá-las, enunciação e condições de produção, reunidas, como elemento comum, caracterizador do discurso nas várias abordagens. Para Benveniste (1966, p. 253-66) é no discurso que a língua, sistema social, é assumida por uma instância individual, sem, porém, se dispersar em infinitas falas particulares. O autor caracteriza o discurso pelas relações que se estabelecem entre indicadores de pessoa, tempo, espaço do enunciado e a instância de sua enunciação. Ducrot (1980) distingue o texto, abstrato, do discurso, realizado, cabendo à enunciação transformar o texto em discurso e por ele se responsabilizar. Para a análise automática do discurso, de Pêcheux, as formações discursivas são componentes de formações ideológicas, por sua vez relacionadas a condições de produção específicas (PECHEUX & FUCHS, 1975, p. 11), que englobam o mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto do discurso e as características múltiplas de uma situação concreta. Guespin (1971) considera que um olhar lançado a um texto do ponto de vista de sua estruturação em língua faz dele um enunciado e que o estudo das suas condições de produção o torna um discurso. Segundo Greimas, enunciação é a instância de mediação que produz o discurso, ou seja, que realiza a passagem das estruturas semióticas narrativas às estruturas discursivas (GREIMAS & COURTÉS, s.d.). Outros autores poderiam ser aqui arrolados, mas, das citações transcritas, se extraem já três pontos decisivos para a concepção de discurso e sua análise: a relação do discurso com a enunciação e com as condições de produção e de recepção; o discurso como lugar, ao mesmo tempo, do social e do individual; a articulação entre narrativa e discurso, isto é, o discurso constituído sobre estruturas narrativas que o sustentam. As estruturas narrativas, entendidas como suporte sintático-semântico das estruturas discursivas, de qualquer tipo de discurso, serão examinadas no capítulo 1. [página 3] Antes de se focalizar a questão central da enunciação, algumas observações devem ser feitas sobre o caráter individual e social do discurso. Há dois modos distintos de encarar o problema. Lingüistas como Benveniste, Ducrot ou Greimas acatam as dicotomias social vs. individual, lingüístico vs. retórico, competência vs. performance, que, mesmo não recobrindo a oposição língua vs. fala, podem ser a ela referidas. Para Benveniste, por exemplo, coexistem no discurso o sistema da língua e as marcas da opção individual de sua realização que, muito apropriadamente, denominou subjetividade na língua. A segunda forma de abordar a questão está bem colocada por Robin, que não aceita a liberdade discursiva individual do sujeito “sem inconsciente, sem pertencer a uma classe, sem ideologia, que fala, que se fala” (1977, p. 41). Afirma a autora que “esta liberdade atribuída ao domínio da fala inscrevia-se numa Filosofia do sujeito neutro, transparente a si próprio (uma Filosofia de antes da descoberta freudiana), e naquela de um sujeito sem determinações sócio-ideológicas (uma Filosofia de antes de Marx)” (p. 25). Cabe retomar, nessa perspectiva, o problema da co-presença do social e do individual no discurso, afirmando que, nele, coexistem a invariável sistêmica social e as variáveis, também sociais, de realização, forjadas pelas determinações sócio-ideológicas. Se a significação nasce da variação, como propuseram Barthes (1964 e 1966) e Greimas (1966), é da relação entre a invariante do sistema e a variação social que surge o sentido do discurso. A articulação do discurso com a formação social não é, por conseguinte, fortuita e ocasional ou secundária e acessória. Poucos são os teóricos do discurso que deixam de reconhecer a estreita vinculação existente entre discurso e enunciação. Harris é um deles, pois, com método puramente formal, prescinde do conteúdo na análise do discurso. Os estudiosos, que, de alguma forma, atentam para o sentido, se vêem obrigados a recuperar elementos da enunciação, sem o que deixarão de lado muitos aspectos da significação do discurso ou estarão até mesmo impossibilitados de construí-la. Não se pretende invalidar análises realizadas de fatias do sentido, pois se reconhecem as dificuldades de apreendê-lo todo. E preciso, porém, concordar com Ducrot, quando afirma que cabe à análise lingüística, atualmente, fornecer pistas, dar instruções, ser uma fonte de hipóteses pala os analistas do discurso (1980, p. 12). [página 4] A mudança de objete dos estudos lingüísticos, graças ao problema da enunciação, ocorre pouco a pouco na reflexão lingüística que, genericamente, se pode denominar semântica da enunciação. Rotulam-se assim orientações diversas como a teoria semântica intencional de Ducrot, os projetos da pragmática conversacional de Grice e da teoria dos atos de linguagem de Austin e Searle, as propostas para uma teoria da argumentação e os esforços da semiótica de Greimas na construção de uma sintaxe e de uma semântica da enunciação. Essas reflexões, mais lingüísticas em sentido restrito, consideram apenas a enunciação pressuposta no discurso, seu objeto-resultante. Distinguem-se, portanto, de orientações que tentam recuperar para a análise do discurso não apenas os elementos da instância enunciativa implícita, mas também as variáveis sócio-históricas ou condições de produção, que engendram, com as lingüísticas, o sentido do discurso. Reconhecendo a pertinência da dimensão histórica para a análise do discurso, mas também as muitas dificuldades encontradas na determinação das relações entre formações sócio-ideológicas e formações discursivas, propõe-se, neste trabalho, a hipótese, conciliatória entre os dois grupos, de que essas relações podem e devem ser estabelecidas pela mediação lingüística da enunciação. Tenta-se, assim, definir enunciação pelo duplo papel de mediação ao converter as estruturas narrativas em estruturas discursivas e ao relacionar o texto com as condições sócio-históricas de sua produção e de sua recepção. O objetivo é integrar, por meio da enunciação, uma abordagem interna do texto, indispensável para que se reconheçam os mecanismos e regras de engendramento do discurso, com a análise externa do contexto sócio-histórico, em que o texto se insere e de que, em última instância, cobra sentido. Para tanto, parte-se da teoria semiótica desenvolvida pelo grupo de investigações sêmio-lingüísticas, sob a direção de Greimas, por razões que, embora aqui resumidas, serão lembradas e mais bem sentidas no decorrer do trabalho. Em síntese, são três os motivos da escolha: a teoria sêmio-lingüística de análise do discurso está suficientemente avançada para oferecer princípios, métodos e técnicas adequados de análise interna do discurso, apreendido em níveis diferentes de geração e de abstração, que serão examinados nos capítulos 1 e 2; ela constitui, no momento atual, um dos poucos e mais completos modelos de abordagem das estruturas narrativas; embora a semiótica não tenha tratado ainda, satisfatoriamente, [página 5] das relações entre discurso e contexto, acredita-se que, sem contradições teóricas, o projeto avance nessa direção, já que a enunciação, mediadora entre formações sociais e discursivas, encontrou, há muito, espaço na proposta semiótica. Tenciona-se, dessa forma, promover a conciliação complementar das análises interna e externa do texto, no quadro epistemo-metodológico da semiótica, recorrendo sempre que possível e necessário a outras propostas e estudos que, sem incoerências teóricas ou contradições, ajudem a construir o sentido do discurso, tal qual foi aqui entendido. Não se pode esquecer o caráter fronteiriço do discurso, entre as ciências humanas, mas tampouco se pode desconhecer o princípio de que não se somam técnicas ignorando as teorias que implicam. PLANO DO LIVRO O livro divide-se em três capítulos: o primeiro, para estudo das estruturas narrativas, o segundo, das organizações discursivas, e o terceiro, da enunciação e das relações intertextuais. No primeiro capítulo serão examinados os princípios fundamentais da teoria semiótica e a sintaxe e a semântica narrativas, com ênfase no caráter modal da sintaxe e na definição passional da semântica. O segundo capítulo será dedicado à sintaxe e à semântica do discurso. A sintaxe tratará das relações que se estabelecem entre a instância da enunciação e o discurso enunciado e para sua elaboração serão retomadas as teorias do foco narrativo e os estudos de semântica da enunciação sobre questões de argumentação, pressuposição e atos de linguagem. No exame da semântica serão abordados os aspectos de tematização e figurativização do discurso. Tenciona-se verificar quais os procedimentos discursivos que se empregam para criar ilusões de enunciação e de realidade e, a partir daí, efeitos de verdade do discurso. Caberá ao terceiro capítulo a tarefa de rever a enunciação como articuladora entre formações discursivas e sociais e de efetuar a integração das análises interna e externa, conciliação apontada como a finalidade principal deste trabalho. A inserção contextual será considerada a partir das relações de intertextualidade e serão distinguidos os contextos situacional, interno e externo. [página 6] I — NARRATIVIDADE: À PROCURA DE VALORES CONSIDERAÇÕES INICIAIS Duas razões levaram-nos a tratar a narratividade, de maneira sistemática, neste trabalho. A primeira delas foi a concepção de discurso assumida e apresentada na Introdução: o discurso caracteriza-se por estruturas sintático-semânticas narrativas que o sustentam e organizam. Em segundo lugar, ainda que não pretendêssemos atribuir papel privilegiado à organização narrativa na teoria do discurso, seríamos obrigados a reconhecer que os modelos de descrição e explicação da narrativa são marcos fundamentais na história da análise do discurso. Procurou-se ressaltar inicialmente, neste capítulo, a necessidade de dar atenção às estruturas sintático-semânticas narrativas, tanto na análise lingüística da frase quanto no exame de discursos, e apresentar, de forma sucinta, algumas propostas precursoras. Em seguida, tratou-se de firmar posição em certos pontos da semiótica narrativa, considerados imprescindíveis para a explicação da narratividade. Optou-se por não apresentar exaustivamente a teoria greimasiana de análise narrativa, a respeito de que há muitos textos publicados, e restringiu-se a exposição a uma apreciação de conjunto da teoria. [página 7] ESTRUTURAS SINTÁTICO-SEMÂNTICAS SUBJACENTES A gramática de casos de Fillmore1 Examinaram-se, para o nível da frase, as elaborações da gramática de casos de Fillmore (1968). Não interessa retomar a proposta de Fillmore em sua totalidade, mas fazer ver que é forçoso reconhecer, o que nem sempre aceitam as teorias lingüísticas, a existência de estruturas profundas mais distanciadas da estrutura de superfície, em que se definem papéis sintático-semânticos. Em nossa tese de doutoramento (1976), apresentamos e discutimos a gramática de casos, tentando pôr em evidência sobretudo as diferenças básicas encontradas entre o modelo de Fillmore e o de Chomsky, já que Fillmore se declarava então, explicitamente, um seguidor da teoria gerativa. A principal divergência entre eles consiste no fato de Chomsky desenvolver uma gramática de “sujeito-predicado”, enquanto Fillmore exclui do componente de base as noções funcionais de sujeito e de objeto direto e propõe colocar em seu lugar as relações casuais, concebidas como relações sintáticas, semanticamente relevantes, que envolvem os nomes e as estruturas que os contêm. O autor reconhece, dessa forma, um suporte sintático-semântico subjacente à organização da frase, num modelo gerador de frases. As relações casuais, ou casos, formam um conjunto de conceitos universais, provavelmente inatos e correspondentes a certos julgamentos que os homens fazem sobre os acontecimentos: Quem fez isso? Com o quê? A quem isso aconteceu? Em que lugar? Na análise de uma frase, como “João joga bola”, importa determinar, no componente de base, que João manifesta o caso agentivo e bola o objetivo e, só após transformações e já em nível intermediário entre estrutura profunda e de superfície, definir suas funções de sujeito e de objeto direto. Essas observações têm a finalidade de mostrar que, ao lado das semânticas lógicas, das semânticas formais, preocupadas com os valores de verdade e de falsidade das proposições, a lingüística pratica, no quadro da semântica gerativa, uma semântica de caráter antropológico, para muitos mais ingênua, capaz de explicar os recortes semânticos culturais. A análise semântica da frase, assim concebida, aproxima-se da dos mitos, da dos contos populares e da dos textos em geral, bastando pensar nas propostas de Lévi-Strauss, de Propp ou dos formalistas russos. [página 8] Em 1977, em resposta a uma serie de criticas e de sugestões feitas à gramática de casos, Fillmore publica ‘The case for case reopened’, onde firma dois pontos fundamentais da teoria, já implícitos em seus textos anteriores. Um deles é a concepção do sentido relativizado em cenas ou, como preferimos, em um espetáculo. O reconhecimento da dimensão espetacular da sintaxe (ou da sintaxe-semântica), que ocorre também em Tesnière (1959), vem corroborar as convergências acima apontadas e constitui a maior atração de sua teoria, para este trabalho. Os papéis sintático-semânticos casuais, que simulam o espetáculo do homem no mundo, constituem, já no nível da frase, organizações “narrativas” e fazem a ponte entre as estruturas oracionais e as textuais, ou narrativas propriamente ditas. Apreendida a organização sintático-semântica profunda, o autor desenvolve jogos de perspectivas e pontos de vista sobre a cena, que permitem caracterizar recortes culturais e sócio-históricos da língua e de seu uso. As objeções que podem ser feitas à gramática de casos não se aplicam ao nível geral de interesses e objetivos em que aqui nos colocamos. Uma única observação é cabível: como a gramática de casos procura explicar, no nível da oração, o espetáculo do homem agindo no mundo, não deve esquecer que tal espetáculo é visto, através da língua, no texto, ou seja, uma teoria que examina os papéis sintático-semânticos oracionais precisa pressupor uma teoria do texto, no interior da qual encontre seu lugar. O segundo esclarecimento do texto de 1977 é o de que a gramática de casos, apesar do nome, não é um modelo de gramática e sim uma proposta de descrição e explicação sintático-semântica de um nível da geração da oração, tornando-se necessário examinar a gramática em que tal instância se insere. A intenção do autor é localizá-la na gramática gerativa. Halliday (1974, 1976) e Slakta (l971a, 1971b e 1974) discordam, de certa forma, de Fillmore quanto à gramática em que são reconhecidos os papéis sintático-semânticos. Halliday parte da hipótese de que o funcionamento social da língua está refletido na estrutura lingüística e determina três funções, das quais derivam as estruturas constitutivas da oração: função ideacional (vs. estrutura da transitividade), função interpessoal (vs. estrutura do modo) e função textual (vs. estrutura temática e, indiretamente, estrutura da informação). A primeira das funções compara-se facilmente com o nível sintático-semântico dos casos, pois expressa o sentido cognitivo, a experiência que o falante tem do mundo, através do sistema da transitividade. As demais funções acrescentam à [página 9] proposta de Fillmore variáveis da instância da enunciação função interpessoal, manifestada pelas distinções de modo, de topicalização — e da organização textual — função textual, marcada sobretudo pela entoação. Slakta interessa-se pela gramática de casos porque tal teoria pensa, ao mesmo tempo, sintaxe e semântica, e julga que, embora Fillmore não o reconheça, o discurso e seu verdadeiro campo de aplicação. O único reparo que faz a gramática de casos deve-se ao fato de ela não levar em conta o social, ou melhor, as relações do texto com os elementos sócio- históricos de produção e de recepção, ainda que preencha as condições mínimas necessárias seu caráter sintático-semântico — para atingir tais objetivos mais amplos. Prevê a análise do discurso em três níveis: o nível teórico-abstrato, que explicita regras especificamente lingüísticas por meio da gramática de casos, o nível das realizações concretas e o nível retórico, que dizem respeito, ambos, a competência ideológica e para cuja explicação recorre a teoria das ideologias de Althusser. Tanto Slakta quanto Halliday consideram a gramática de casos como uma das etapas da análise do discurso ou da frase — instância de explicação sintático-semântica a que devem ser somados níveis que examinem, de outro ponto de vista e com novos elementos, as relações entre discurso e enunciação, entre texto e contexto. Deixam de ter sentido as objeções que, a respeito de contexto, se podem fazer a gramática de casos, desde que a concebamos como uma etapa no interior de proposta mais ampla, a de Halliday ou a de Slakta, entre outras. Não cremos, e nesse ponto discordamos de Slakta, que a gramática de casos, como foi proposta, explicitamente o nível da oração, seja o modelo mais adequado, atualmente, para explicar o suporte sintático- semântico narrativo do texto. Há, para o texto, modelos mais desenvolvidos de análise narrativa, que prescindem de todo um trabalho de adaptação de propostas localizadas, como a de Fillmore, e que serão examinados nos próximos itens. Análise estrutural da narrativa Para a análise da narrativa propriamente dita, diferentes caminhos podem ser seguidos. Escolher se o da gramática narrativa estrutural, principal fonte da semiótica narratológica.2 A gramática narrativa, além de herdar da lingüística, mais especificamente da semântica, Schnaiderman chama consciência semiótica ou estrutural, dois veios de ori- [página 10] gem bem marcados: os estudos dos formalistas russos, sobretudo sobre o folclore, e os trabalhos de Propp, de um lado, e as abordagens das mitologias, essencialmente na perspectiva de Lévi-Strauss, do outro. Os textos precursores dos formalistas russos trouxeram para a análise narrativa a preocupação, em primeiro lugar, com a análise imanente do texto, ao mostrarem a necessidade de compreender as estruturas objetivas da obra, interrogada em si mesma. Seria, no entanto, no mínimo um engano não reconhecer que os formalistas, além de terem aos poucos alargado suas perspectivas, não chegaram nunca a eliminar os falos sociais da compreensão lingüística. Propp, folclorista e etnólogo, não pertenceu ao grupo dos formalistas, mas seus trabalhos têm muito em comum com os estudos dos elementos dessa escola. A morfologia do conto de Propp é, sem sombra de dúvida, uma das obras sobre as quais repousa a análise estrutural da narrativa, representada, nos Estados Unidos, pelos estudos do folclore e, na França, pelos trabalhos de Bremond, Todorov, Barthes e Greimas. Ao conceber invariantes narrativas, como as funções e as esferas de ação, distinguindo, por exemplo, o doador do objeto mágico do pássaro que oferece uma pena ao herói, do peixe que lhe dá uma escama ou do velho que lhe cede um bastão que bate, Propp revelou as regularidades subjacentes à variedade dos contos maravilhosos russos. Os métodos e técnicas propostos foram, posteriormente, estendidos a outros tipos de textos3: os da “grande literatura”, os não-figurativos, como os discursos políticos e científicos, os não-verbais. Se Propp apreendeu unidades sintagmáticas constantes sob a diversidade do texto, coube à antropologia, de visão estrutural, desenvolver as pesquisas taxionômicas, como por exemplo a descrição das terminologias do parentesco. A elaboração metodológica das etnotaxionomias e as análises paradigmáticas, de Lévi-Strauss sobretudo, procuraram explicar as regularidades estruturais subjacentes e são comparáveis ao modelo lógico-conceptual constituído por Greimas para a representação das estruturas profundas. Aos esforços precursores dos formalistas russos e dos antropólogos seguem-se, principalmente na França, trabalhos que marcaram época nos estudos da narratividade, como a ‘Introdução à análise estrutural da narrativa’, de Barthes. Este, a partir de Benveniste (1974), reconhece níveis de descrição lingüística e mostra que a distribuição, ou relação de mesmo nível, não basta para a construção do sentido do texto, sendo necessário considerar também as relações que inte- [página 11] gram níveis hierarquicamente diferentes. Distingue assim, pela primeira vez, funções distribucionais, que foram desenvolvidas por Bremond (1966, 1973), ao deduzir regras dos possíveis narrativos, e funções integrativas, como os indícios e os informantes. Essa distinção teve larga aceitação entre os estudiosos da narrativa, O texto instigante de Barthes, de 1966, levantou muitos problemas, em sua maioria já resolvidos, ao menos provisoriamente, pelas pesquisas que a ele se seguiram. A unidade sintagmática da função, por exemplo, foi reformulada em termos de enunciado narrativo, caracterizado pela relação entre actantes, o que permitiu a construção de uma sintaxe narrativa. Entre os trabalhos sobre a narratividade, não podem ser ignoradas as contribuições de Bremond, ainda bastante presas à etnoliteratura, de Todorov, no campo dos estudos literários, e dos semioticistas da Escola de Tartu4. A vinculação entre os formalistas e os atuais semioticistas russos é motivo de controvérsias. Enquanto alguns estabelecem uma relação de continuidade direta entre formalistas (período de 1914 a 1930) e semioticistas (a partir de 1960), para outros, como Lévi-Strauss, a ruptura é completa. Schnaiderman não acredita em nenhuma das colocações extremistas e mostra “marcos essenciais no desenvolvimento de uma consciência semiótica” na URSS — um dos quais seria o formalismo —, responsáveis pelo aparecimento da semiótica de Tartu (SCHNAIDERMAN, 1979, p. 26). São principalmente os textos de semiótica da literatura que fazem a ponte entre os formalistas, poetas em sua maioria, e os semioticistas, lingüistas e cibernéticos. A apresentação que se acabou de fazer teve por objetivo, em primeiro lugar, ressaltar a necessidade de explicar a estrutura sintático- semântica subjacente ao texto, seja no quadro da frase, seja na instância do discurso. Em segundo lugar, pretendeu-se, ao tratar da gramática narrativa estrutural, expor alguns elementos — a ênfase formalista na análise interna e imanente do texto; as unidades sintagmáticas constantes ou invariantes narrativas de Propp; as regularidades paradigmáticas subjacentes da antropologia estrutural; as relações distribucionais e integrativas e a questão dos níveis de descrição textual — cuja contribuição foi inegável para a elaboração de uma teoria semiótica da narratividade. A GRAMÁTICA SÊMIO-NARRATIVA A opção feita neste trabalho pela abordagem sêmio-lingüística5 do discurso deve-se, essencialmente, conforme foi [página 12] apresentado na Introdução, à concepção de discurso que, a partir de vários autores, discutimos e fizemos nossa: tal enfoque descreve e explica satisfatoriamente o componente narrativo do discurso; é, sem dúvida alguma, a proposta mais desenvolvida, atualmente, de análise interna e imanente do texto; acredita-se, finalmente, que tal modelo permita, pela mediação da enunciação, articular o discurso com suas condições de produção. Ao conceber um sistema de regras capaz de explicar, com os mesmos princípios epistemo-metodológicos, tanto as estruturas narrativas quanto as discursivas, a semiótica deu já os primeiros passos para a construção de um modelo que, sem abandonar a análise do texto, examine também sua inserção no contexto. Pretende-se, portanto, fazer o projeto avançar nessa direção, sem contradições teóricas, pois a enunciação, que se tomará como elemento mediador entre formações discursivas e sociais, tem já lugar na proposta semiótica. Uma proposta semiótica A semiótica, como a vê Greimas, tenta determinar as condições em que um objeto se torna objeto significante para o homem. Herdeira de Saussure e de Hjelmslev, não toma a linguagem como sistema de signos e sim como sistema de significações, ou melhor, de relações, pois a significação decorre da relação. Falar da significação é falar do sentido negativo decorrente do postulado saussuriano da “diferença”. Uma grandeza semiótica qualquer é, por conseguinte, uma rede de relações e nunca um termo isolado. A teoria semiótica caracteriza-se por: a) construir métodos e técnicas adequadas de análise interna, procurando chegar ao sujeito por meio do texto; b) propor uma análise imanente, ao reconhecer o objeto textual como uma máscara, sob a qual é preciso procurar as leis que regem o discurso; c) considerar o trabalho de construção do sentido, da imanência à aparência, como um percurso gerativo, que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, em que cada nível de profundidade é passível de descrições autônomas; d) entender o percurso gerativo como um percurso do conteúdo, independente da manifestação, lingüística ou não, e anterior a ela. [página 13] Análise interna O enfoque semiótico procura organizar o texto como uma totalidade de sentido e determinar o modo de produção desse sentido, isto é, como o texto diz o que diz (GROUPE D’ENTREVERNES, 1979, p. 7). Para atingir tais objetivos, a semiótica tem-se esforçado por elaborar procedimentos operatórios e por construir modelos adequados à análise interna. A crença na necessidade de análise interna, ou seja, de descrição e explicação dos mecanismos e regras que engendram o texto, constitui uma das razões da escolha teórica feita. Como foi bem salientado na Introdução, não se acredita, porém, que termine aí a construção do sentido do discurso. Pretende-se, assim, cobrar da semiótica a explicação dos mecanismos de produção do sentido, produção que não se fecha no texto, mas vai do texto à cultura, ao mesmo tempo que dela depende. Análise imanente Hoje, na lingüística, da frase ou do discurso, poucos são os enfoques que não distinguem a imanência da aparência, ou estruturas profundas de estruturas de superfície, ou ainda macroestruturas de estruturas textuais, O texto, objeto da enunciação, é uma ilusão — referencial e enunciativa — e, para ser explicado, precisa ser desbastado dos efeitos de sentido aparentes. Sob a aparência, busca-se a imanência do discurso; sob a máscara, as leis que o produzem. Depois de cumpridos os procedimentos de abstração, é necessário efetuar o percurso inverso e reconstruir, a partir de estruturas imanentes, as estruturas aparentes da manifestação. Imanência e aparência são níveis diferentes de abstração e dependem, portanto, da perspectiva adotada, o que dificulta ou mesmo impede a tarefa de precisar o que são instância profunda e instância de superfície. Construções metalingüísticas, estrutura profunda e estrutura de superfície designam os pontos de partida e de chegada de uma cadeia de transformações (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 352), tendo assim caráter puramente operatório. A título de exemplo, podem-se comparar as concepções de estrutura profunda em Fillmore e em Chomsky: a estrutura profunda em Fillmore, com seus papéis sintático-semânticos ou casos, é “mais profunda” que a estrutura profunda em Chomsky, ou melhor, está mais distante da manifestação. São as estruturas intermediárias, em Fillmore, resultantes de transformações ao menos de subjetivação e objetivação, que podem ser comparadas, por se encon- [página 14] trarem no mesmo nível de descrição, com a estrutura profunda em Chomsky. Em semiótica, as estruturas profundas são as estruturas mais simples que geram as estruturas mais complexas. A maior complexidade deve ser entendida também como uma “complementação” ou um “enriquecimento” do sentido, já que novas articulações são introduzidas em cada etapa do percurso e a significação nada mais é que articulação. Considera-se, portanto, o trabalho de construção do sentido, da imanência à aparência, como um percurso gerativo. Percurso gerativo O discurso é encarado pela semiótica como uma superposição de níveis de profundidade diferente, que se articulam segundo um percurso “que vai do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 206). A noção de percurso gerativo é fundamental para a teoria semiótica. Prevê-se a apreensão do texto em diferentes instâncias de abstração e, em decorrência, determinam-se etapas entre a imanência e a aparência e elaboram-se descrições autônomas de cada um dos patamares de profundidade estabelecidos no percurso gerativo. As razões que levaram à escolha de certas etapas e não de outras, igualmente possíveis, resultam da concepção de discurso e de construção de sentido assumidas e serão percebidas, mais claramente, na explicação de cada patamar. O nível propriamente semiótico, imanente, compreende o percurso gerativo todo e distingue-se do nível lingüístico (ou pictórico, gestual, etc.) aparente, que se situa fora do percurso gerativo e em que se reconhecem as estruturas textuais. O nível semiótico comporta três etapas julgadas necessárias para a clareza da explicação do percurso: a das estruturas fundamentais, instância mais profunda, em que são determinadas as estruturas elementares do discurso, a das estruturas narrativas, nível sintático-semântico intermediário, e a das estruturas discursivas, mais próximas da manifestação textual. São lugares diferentes de articulação do sentido, que pedem a construção, no interior da gramática semiótica, de três gramáticas — fundamental, narrativa e discursiva —, cada qual com dois componentes, ou seja, uma sintaxe e uma semântica. A sintaxe e a semântica complementam-se na gramática semiótica. A sintaxe semiótica deve ser considerada uma sintaxe conceptual, em que as relações, ainda que reconhecidamente abstratas, são significantes, e a semântica, uma semân- [página 15] tica gerativa — ‘concebida sob a forma de investimentos sucessivos, dos mais abstratos aos mais concretos e figurativos” —, sintagmática, e não apenas taxionômica, e geral (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 431 e 396). No nível das estruturas fundamentais, uma sintaxe explica as primeiras articulações da substância semântica e das operações sobre elas efetuadas e uma semântica surge como um inventário de categorias sêmicas com representação sintagmática assegurada pela sintaxe; na instância das estruturas narrativas, uma sintaxe regulamenta o fazer — simulacro do fazer do homem no mundo e das suas relações com os outros homens — e uma semântica atribui estatuto de valor aos objetos do fazer; na etapa mais superficial das estruturas discursivas, uma sintaxe organiza as relações entre enunciação e discurso e uma semântica estabelece percursos temáticos e reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa. Passa-se, assim, do lógico-conceptual ao narrativo graças à ação do homem, sujeito do fazer, e do narrativo ao discursivo pela intervenção do sujeito da enunciação. Texto da imagem: Gramática semiótica Sintaxe Semântica Gramática fundamental Sintaxe fundamental Semântica fundamental (lógico-conceptual) Gramática narrativa Sintaxe narrativa Semântica narrativa (antropomórfica) Gramática discursiva Sintaxe discursiva Semântica discursiva (da enunciação) Tomando-se o texto de João Cabral de Melo Neto ‘O vento no canavial’, em análise de rápidas pinceladas, pode-se entender melhor a noção de percurso gerativo. O vento no canavial Não se vê no canavial É como um grande lençol nenhuma planta com nome, sem dobras e sem bainha; nenhuma planta maria, penugem de moça ao sol, planta com nome de homem. roupa lavada estendida. É anônimo o canavial, Contudo há no canavial sem feições, como a campina; oculta fisionomia: é como um mar sem navios, como em pulso de relógio papel em branco de escrita. há possível melodia. [página 16] ou como de um avião É solta sua simetria: a paisagem se organiza, como a das ondas na areia ou há finos desenhos nas ou as ondas da multidão pedras da praça vazia. lutando na praça cheia. Se venta no canavial Então, é da praça cheia estendido sob o sol que o canavial é a imagem: seu tecido inanimado vêem-se as mesmas correntes faz-se sensível lençol, que se fazem e desfazem, se muda em bandeira viva, voragens que se desatam, de cor verde sobre verde, redemoinhos iguais, com estrelas verdes que estrelas iguais àquelas no verde nascem, se perdem. que o povo na praça faz. Não lembra o canavial (MELO NETO, 1975, p. 148-9) então, as praças vazias: não tem, como têm as pedras, disciplina de milícias. Os conceitos empregados, nesse rápido exercício, estarão mais bem desenvolvidos no corpo do trabalho. Não serão distinguidos, com nitidez, os fatos sintáticos dos semânticos. No nível das estruturas fundamentais, primeira etapa na geração do sentido, as categorias semânticas /anônimo vs. com nome/, /em branco vs. Escrito/, /sem feições vs. com cara/, podem-se reduzir à relação fundamental /não marcado vs. Marcado/ ou /continuo vs. descontínuo/. Lembrando a lição da semântica de que o sentido nasce da descontinuidade, da ruptura, da percepção da diferença, tem-se a oposição entre a significação da marca, do nome, da feição, do traço e a ausência de significação do anonimato, da diluição, da continuidade ou, em última instância, entre o sentido da vida (“sensível lençol”, “bandeira viva”, “no verde nascem”) e o sem-sentido da morte (“tecido inanimado”)6. Acrescente-se a relação de /estaticidade vs. dinamicidade/ ou /conservação—manutenção vs. mudança—transformação/ ou /ordem vs. desordem/ e, muito provavelmente, estarão arroladas as categorias semânticas sobre as quais se constrói o poema. Ainda no patamar das estruturas fundamentais, cabe explicação das operações sintáticas que põem em movimento as [página 17] relações acima estabelecidas. As operações lógicas de negação e de asserção determinam os seguintes percursos: 1 2 3 continuidade descontinuidade ruptura morte (sem-sentido) não-morte vida (sentido) estaticidade (conservação) não-estaticidade dinamicidade cujas etapas (1, 2 e 3) podem ser reconhecidas no texto: 1: anônimo; sem feições; mar sem navios; papel em branco de escrita; lençol sem dobras e sem bainha; tecido inanimado; 2: oculta fisionomia; possível melodia; a paisagem se organiza; finos desenhos nas pedras da praça vazia; sensível lençol; estrelas verdes que no verde nascem; não lembra as praças vazias; não tem disciplina de milícias; 3: ondas da multidão; praça cheia; mesmas correntes que se fazem e desfazem; voragens que se desatam; redemoinhos que o povo na praça faz. O texto trata, portanto, do surgimento da vida, do movimento, da transformação, da ruptura ou do aparecimento da tensão entre estados de distensão e de relaxamento. No segundo patamar do percurso gerativo, o das estruturas narrativas, é preciso reconhecer sujeitos humanos que realizam as mudanças descritas como operações lógicas, no nível fundamental. No poema, há um sujeito que transforma estados, ou seja, que altera a relação de outros sujeitos com os objetos-valor. Nesse caso específico, transforma- se a competência do sujeito para a ação: o sujeito sem nome, feições ou marcas, que nada quer, sabe ou pode fazer, torna-se um sujeito determinado ou “qualificado”, que aspira às mudanças (faz “estrelas”), é capaz de operá- las e, finalmente, age (“correntes que se fazem e desfazem”; “que o povo na praça faz”). O sujeito responsável pela alteração das qualidades do sujeito da ação é denominado, na teoria semiótica, destinador. Destinador é aquele que determina a competência e os valores do sujeito que age, aquele que, em suma, estabelece as regras do jogo. No texto em exame, o destinador aparece sob a figura do vento que muda o canavial, que lhe dá voz e vez, O canavial, graças ao vento, coloca-se como sujeito operador das mudanças de estado e como sujeito “apaixonado”, que espera, que confia e desconfia, que se desilude e se aflige, que não se conforma e se revolta. A terceira e última etapa do percurso gerativo, a mais próxima da manifestação, é a das estruturas discursivas. Exa- [página 18] mina-se o texto como resultado da enunciação, como discurso, enfim. Retomam-se as estruturas narrativas na perspectiva da instância de enunciação que as assume. Instala-se, no poema, um observador, sujeito cognitivo delegado do sujeito da enunciação, que “filtra”, que conduz o discurso. Nada mais justo, portanto, que nesse texto a dimensão do saber esteja figurativizada pela visão (“não se vê no canavial”; “oculta fisionomia”; “o canavial é a imagem”; etc.) e que seja claro o jogo de veridicção entre o ser e o parecer: o canavial mente, pois parece, mas não é estático e sem feições, e esconde segredos, pois, embora não pareça, tem “fisionomia”. O observador, ao assumir diferentes posições e perspectivas, ao fazer variar o ponto de vista, conhece ou reconhece as voragens ocultas, os redemoinhos escondidos, a melodia possível. Sendo o observador (e não o narrador) o condutor do discurso, aparecem fortes recursos de aspectualização, que garantem a passagem das transformações narrativas a processos com começo, meio e fim. A descontinuidade aspectual rompe a duratividade do “papel em branco”, da “campina” ou do “grande lençol” e o aspecto incoativo da mudança dá início a uma nova duratividade. Também no nível do discurso, a semiótica examina os temas e as figuras que os recobrem. As relações e operações elementares do nível fundamental, já retomadas como transformações, valores e paixões narrativas, apresentam-se, no nível discursivo, como percursos temáticos e figurativos. Em ‘O vento no canavial’, várias linhas temático-figurativas podem ser estabelecidas. Uma primeira leitura é, sem dúvida, a do vento que mexe com o canavial. Outras são possíveis e não se pensa em esgotá- las aqui: a) leitura sócio-política das transformações sociais, com a presença de elemento desencadeador das mudanças operadas pelo povo “lutando na praça” (não se pode esquecer do papel transformador da praça, muito bem reconhecido pelos antropólogos); b) leitura sócio-econômica do anonimato e do conformismo do homem do Nordeste, submetido às injunções da política econômica e à natureza e com ela confundido, mas que, se soprar o “vento forte”, pode mudar-se em “bandeira viva”; c) leitura existencial e cíclica da vida, da fecundação e do nas cimento. A apreensão vertical dessas linhas temáticas (e figurativas) cria metáforas: o povo, o Nordeste, o homem confundem-se com o canavial; o líder, o herói, o fecundador misturam-se com o vento; os movimentos da cana balançada pelo vento [página 19] equivalem, na leitura vertical, ao nascimento ou às lutas na praça cheia. Percorridas, rapidamente, as etapas de geração do sentido propostas pela semiótica, resta, ainda, a possibilidade de considerar o texto nas suas relações com o significante — lingüístico, visual, etc. —, já fora do percurso gerativo. Cabe lembrar que, a partir de Hjelmslev, a semiótica condiciona a construção de uma metalinguagem descritiva à separação dos planos da expressão e do conteúdo, sem que isso signifique deixar de reconhecer a implicação mútua que os define. Entende-se o percurso gerativo, portanto, como um percurso do conteúdo, independente de sua manifestação e anterior a ela. A manifestação tem implicações diversas, como a linearidade e a organização no espaço, a escolha lexical, as marcas estilísticas, de que a semiótica não se ocupa. No caso da manifestação verbal, o nível textual desdobra-se, por sua vez, em instância das estruturas de superfície e instância das estruturas profundas, estudadas pela lingüística. GRAMÁTICA FUNDAMENTAL A sintaxe e a semântica fundamentais constituem o nível profundo da gramática sêmio-narrativa, a instância ab quo do percurso de geração do sentido de um discurso (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 432-3). Sintaxe fundamental A sintaxe fundamental articula-se nos subcomponentes taxionômico ou morfológico e operacional ou sintático. Em decorrência do caráter relacional da sintaxe semiótica, os termos do subcomponente taxionômico são interseções ou redes de relações e as operações do subcomponente sintático, stricto sensu, “atos que estabelecem relações” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 433). O subcomponente taxionômico ou morfológico descreve e explica o modo de existência da significação como um microssistema relacional não orientado, ou melhor, como estrutura elementar. Com a noção de estrutura elementar, procurou-se dotar a semiótica de uma definição de estrutura capai de incluir relações que “constituem o essencial da herança Sobre a qual repousa o cálculo lingüístico desde 1827” (GREI- [página 20] MAS, 1981a, p 44). Organização estrutural mínima, a estrutura elementar define- se, em primeiro lugar, corno a relação que se estabelece entre dois termos- objetos — um só termo não significa —, devendo a relação manifestar sua dupla natureza de conjunção e de disjunção. Tal estrutura necessita, porém, ser precisada e interpretada por um modelo lógico que traduza bem suas relações em oposições de contradição, contrariedade e complementaridade, e que a torne operatória, no plano metodológico. O quadrado semiótico foi concebido como a representação lógica, “tão simples quanto possível” (RICOEUR, 1980, p. 6), da estrutura elementar7. S 1 S 2 S2 S1 relação de contrariedade relação de contradição relação de complementaridade Os termos da categoria elementar s1 e s2, mantêm entre si relação de oposição por contraste, no interior de um mesmo eixo semântico, e podem, cada um deles, projetar, por uma operação de negação, um novo termo, seu contraditório (s 1 e s 2). Só é possível pensar em estrutura elementar quando s1 e s2 forem termos polares de uma mesma categoria semântica. Retoma-se, como ilustração, o texto ‘O vento no canavial’, já utilizado no item sobre o percurso gerativo, para melhor situar os conceitos da gramática fundamental. Investindo o quadrado semiótico com as categorias semânticas do poema citado, tem-se: Texto da imagem: S1 S2 continuidade ruptura morte vida estaticidade dinamicidade S 2 S 1 não-ruptura descontinuidade não-vida não-morte não-dinamicidade não-estaticidade [página 21] Percebe-se facilmente que /continuidade vs. ruptura/, /morte vs. vida/, /estaticidade vs. dinamicidade/ são termos de uma mesma categoria semântica: temporal, existencial e de movimento, respectivamente. Além das relações categoriais (s1 vs. s2 e s 2 vs. s 1 são contrários; s1 vs. s 1 e s2 vs. s 2 são contraditórios; s 1 vs. s1 e s 2 vs. s1 são complementares), o modelo acima define seis dimensões: dois eixos: s1 + s2 e s 1 + s 2 dois esquemas: s1 + s 1 e s2 + s 2 duas dêixis: s1+ s 2 e s2 + s 1 Os termos categoriais (s1, s2, s 1, e s 2) resultam de urna primeira geração de termos, graças às operações de negação e asserção. O quadrado semiótico permite ainda uma segunda geração, em que são obtidos os metatermos contraditórios e contrários, e uma terceira geração que produz os termos complexo e neutro. Os metatermos contraditórios são dois esquemas (s1 + s 1 e s2 + s 2) que contraem relação de contradição (por exemplo, imanência e manifestação, no quadrado das modalidades veridictórias)8 e os metatermos contrários, duas dêixis (s1 + s 2 e s2 + s 1) que mantêm entre si relação de contrariedade (como a mentira e o segredo, no mesmo quadrado das modalidades veridictórias). Os termos complexo e neutro caracterizam-se, respectivamente, pela reunião dos termos do eixo dos contrários (S (sexualidade) = s1 (macho) + s2 (fêmea)) e dos termos do eixo dos subcontrários (S (assexualidade) = s 1 (não-macho) + s 2 (não- fêmea)). Com esse modelo, traduz-se estaticamente a organização relacional do conteúdo, a taxionomia do subcomponente morfológico. Enquanto o subcomponente morfológico ocupa-se do modo de existência da significação, cabe ao subcomponente operatório ou sintático descrever e explicar o seu modo de funcionamento. A dinamização do modelo taxionômico da estrutura elementar — as relações são tratadas como operações orientadas — permite passar ao ponto de vista sintático. A orientação rias relações é a primeira condição da narratividade e pressupõe já um sujeito produtor do sentido. Reúnem-se aí — relações da estrutura elementar da significação e seqüência ordenada de operações sintáticas — as condições mínimas de ou discurso (GREIMAS, 1981a, p. 42-6). O quadrado semiótico, por meio da reformulação das ralações em operações, responde também pela representação dinâmica da estrutura elementar. [página 22] * asserção asserção ** ** * (texto da imagem: * asserção; ** negação) As operações são de dois tipos: a negação e a asserção. A operação de negação, efetuada sobre s1 ou sobre s2, considerados como termos primitivos, produz seus contraditórios, respectivamente s 1 e s 2; a operação de asserção aplica-se aos termos s 1 e s 2 e faz aparecer os termos primitivos afirmativos, s1 e s2. As operações realizadas no quadrado semiótico negam um conteúdo e afirmam outro, engendrando a significação e tornando-a, como vimos, passível de narrativização. No poema de Cabral que se está usando como exemplo, a dinamização das relações fundamentais em percursos orientados resulta no esquema abaixo: s1 s2 continuidade ruptura morte ** vida estaticidade * dinamicidade asserção s 1 descontinuidade não-morte não-estaticidade (texto da imagem: * asserção; ** negação) Nega-se a /continuidade/, a /morte/ e a /estaticidade/ e afirma-se a /ruptura/, a /vida/, a /dinamicidade/. Duas tarefas, entre outras, foram confiadas ao modelo quaternário que acabamos de definir: a primeira é a de modelo constitucional, ponto de partida do percurso de geração de todo discurso, lingüístico ou não; a segunda, que de certa forma incluiria a primeira, é a de representar as relações semânticas em sua dimensão paradigmática e propiciar-lhes a sintagmatização pelas operações orientadas, em qualquer etapa de descrição. O quadrado semiótico pertence ao nível metalingüístico da semiótica. Ressalte-se, ainda, qualquer que seja a tarefa cumprida, a eficácia heurística do quadrado, enquanto modelo de previsibilidade. [página 23] Resumiu-se, em grandes linhas, a sintaxe fundamental. Foram apresentados apenas os elementos de consenso entre os estudiosos da semiótica. No item sobre a semântica fundamental, serão analisadas algumas reformulações possíveis, sobretudo a partir do trabalho de Zilberberg (1981). Semântica fundamental A semântica fundamental define-se por seu caráter abstrato e constitui, com a sintaxe fundamental, o ponto inicial da geração do discurso. Todo semantismo articula-se em categorias semânticas que, representadas pelo quadrado semiótico, se tornam operatórias e adquirem estatuto lógico-semântico (GREIMAS, 1979b, p. 9). Em princípio, uma única categoria é suficiente para produzir um microuniverso semântico, mas prevêem-se também, em sua geração, categorias hierarquizadas. Esse inventário ou taxionomia de categorias semânticas é sintagmatizado pelas operações sintáticas descritas. As categorias semânticas podem ser axiologizadas na instância das estruturas fundamentais pela projeção, sobre o quadrado que as articula, da categoria tímica /euforia/ X /disforia/. “Trata-se de uma categoria ‘primitiva’, dita também proprioceptiva, com a qual se procura formular, muito sumariamente, o modo como todo ser vivo, inscrito em um contexto, ‘se sente’ e reage a seu meio, considerado o ser vivo como ‘um sistema de atrações e repulsões’.” (GREIMAS, l979b, p. 9). Eufórica é a relação de conformidade do ser vivo com o meio ambiente, e disfórica, sua não-conformidade. Os termos da categoria semântica assim investidos são ditos valores axiológicos, e não apenas valores descritivos, e surgem, em relação à semântica narrativa, como valores virtuais, ou seja, não relacionados ainda a um sujeito. A atualização só ocorre na instância superior da semântica narrativa, quando tais valores são assumidos por um sujeito. Em ‘O vento no canavial’, as categorias semânticas geradoras do poema são axiologizadas: a /continuidade/, a /morte/ e a /estaticidade/ são disfóricas e opõem-se à euforia da /ruptura/, da /vida/, da /dinamicidade/. Passa-se, portanto, da disforia à euforia, em texto euforizante. [página 24] Texto da imagem: s1 s2 continuidade ruptura disforia morte vida euforia estaticidade dinamicidade s 1 descontinuidade não-morte não-disforia não-estaticidade A aplicação do tímico sobre o descritivo e os valores axiológicos resultantes, além de constituírem sistemas de valores virtuais a serem explorados pelo sujeito da enunciação, têm especial interesse para explicarem-se, na instância narrativa, as articulações modo-passionais que regem as relações entre os sujeitos e os objetos. A categoria tímica /euforia/ vs. /disforia/, para Greimas (1979b), está por detrás, ou melhor, de acordo com a metáfora do percurso gerativo, por baixo das organizações modais que definem as paixões. Zilberberg (1981) sugere mudanças nas relações entre o tímico e o passional e alterações no próprio percurso gerativo “clássico”, de forma geral mantido neste trabalho. Não se discutirão aqui o interesse e o alcance de todas as sugestões de Zilberberg, mas serão retomados alguns pontos de sua proposta que se acredita poderem contribuir para melhor explicar o modo de produção do sentido. O ponto de partida das inovações de Zilberberg é a categoria /tensão/ vs. /relaxamento/, apresentada como oposição-matriz, correspondente à oposição /elevado/ vs. /reduzido/ do modelo fonológico acústico, e que instalaria a descontinuidade na unidade contínua do sema. “Em outras palavras, se o sema é mantido, para satisfazer o princípio da continuidade, como compacto ou contínuo, é preciso, para satisfazer agora o princípio da descontinuidade, instalar nessa continuidade uma ‘descontinuidade sistêmica’. Esta última manterá o sema como unidade, mas, ao mesmo tempo, o esvaziará, o escavará, roerá sua substância para conservar-lhe apenas a forma ou, melhor ainda e segundo a bela expressão de Valéry, ‘a figura da forma’.” (ZILBERBERG, 1981, p. 6). Cada sema tem, nessa perspectiva, dupla definição, em relaxamento e em tensão, ou seja, o sema varia entre um estado tenso e outro relaxado. Os percursos de tensão e de relaxamento são denominados modalidades tensivas. [página 25] Texto da imagem: tensão (t) relaxamento (r) intensão (r ) distensão (t ) Zilberberg ilustra bastante bem sua proposta: o operador ou, por exemplo, engloba tanto o ou tenso das oposições quanto o ou relaxado das analogias; em La Rochefoucauld, a distinção entre avareza e economia é uma variação de intensidade e não de qualidade, ao contrário do que ocorre com avareza e prodigalidade, ambos termos tensos que se separam por “qualidade semântica”; os universos semânticos também se determinam pela tensividade: o de Baudelaire, tenso, o de Verlaine, relaxado (ZILBERBERG, 1981, p. 22-3). Se as modalidades tensivas subjazem a toda unidade de sentido, podem ser consideradas como termos de uma categoria que modaliza as categorias semânticas, no nível das estruturas fundamentais, papel que Greimas atribui à categoria tímica. Neste trabalho, pretende-se empregar a categoria da tensividade, articulada em tensão e relaxamento, mesmo sem acompanhar as demais contribuições de Zilberberg à semiótica. A categoria da tensividade poderá levar a melhor caracterizar a categoria tímica /euforia/ vs. /disforia/, responsável, como foi visto, pela axiologização das categorias semânticas fundamentais. A categoria tímica será redefinida como categoria fá rica. A troca de nomes, de timia para foria, explicita o caráter articulador da categoria, a ser entendida, a partir daí, não só pela oposição tímica de /bem, benéfico (eu-)/ vs. /mal, maléfico (dis-)/, mas também pela relação de /tenso/ vs. /relaxado/. A euforia define-se, assim, como uma tensão decrescente e um relaxamento crescente; a disforia, como aumento de tensão e diminuição de relaxamento. A tensividade, para Zilberberg, é uma propriedade do ser vivo ou, mais exatamente, do encontro do ser vivo com o não-vivo, concepção que lhe permite homologar a forja ao princípio do prazer de Freud, à pulsão. Retoma-se, uma vez mais e indiretamente, a categoria tímica, tal qual a propôs Greimas, como a categoria que articula as reações do ser vivo a seu contexto. Pode-se concluir que a tensividade, ou melhor, a variação e a conservação tensiva organizam os conteúdos no nível das estruturas fundamentais e correspondem à metacategoria semântica, tímica ou fórica, que determina o descritivo e o torna valor axiológico. Metacategoria definidora das catego- [página 26] rias semânticas ou relação sintática responsável pela organização, conservação ou redução das diferenças semânticas, como prefere Zilberberg, a tensividade tem, inegavelmente, um papel a cumprir na instância fundamental do percurso de geração do sentido, além de iluminar um pouco as obscuras regras de passagem de um nível semiótico a outro. Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas Caracterizada a gramática Fundamental, Cumpre tratar da conversão das estruturas profundas em estruturas narrativas, etapa imediatamente superior no percurso gerativo. O problema colocado pela passagem de um nível a outro, quaisquer que sejam eles, não encontrou ainda real solução. O reconhecimento dos procedimentos de conversão e o estabelecimento de suas regras estão apenas começando. Sabe-se, no momento, que a conversão9 diz respeito à manutenção e não à ruptura, introduzindo a continuidade na descontinuidade das etapas. A equivalência ao modelo inicial deve ser mantida, ao mesmo tempo que a estrutura se torna mais complexa e o sentido mais “rico”. Quanto à passagem específica do nível fundamental ao narrativo, é possível reconhecer certos elementos. As operações da sintaxe fundamental convertem-se, na sintaxe narrativa e graças ao sujeito do fazer, em enunciados do fazer que regem enunciados de estado. Pode-se dizer que a conversão das operações lógicas em transformações narrativas é uma antropomorfização, em que a sintaxe narrativa, de caráter antropomórfico, substitui as operações lógicas da sintaxe fundamental por sujeitos do fazer e define sujeitos de estado pela junção com objetos-valor, formulando, portanto, sintaticamente, a relação básica do homem com o mundo. Há semioticistas, como Zilberberg, que, em lugar de definirem a narrativa pela antropomorfização das operações lógicas fundamentais, preferem determiná-la pela intencionalidade. Entende-se a intencionalidade como a tensividade fundamental com um começo e um fim. Em outras palavras, a intencionalidade narrativa decorre da aspectualização10 da variação e da conservação tensiva das estruturas fundamentais. Pela conversão semântica, os valores virtuais, isto é, ainda não assumidos por uru sujeito na instância fundamental, são selecionados e atualizados na instância narrativa. A atualização realiza-se em duas etapas: inscrição dos valores em objetos, que se tornam objetos-valor, e junção dos objetos-valor com os sujeitos. Os valores axiológicos virtuais conver- [página 27] tem-se, dessa forma, em valores ideológicos, entendidos como valores assumidos por um sujeito, a partir de seleção no interior dos sistemas axiológicos. GRAMÁTICA NARRATIVA A gramática narrativa descreve e explica o modo de existência e de funcionamento das estruturas narrativas ou superficiais que constituem a etapa imediatamente superior, no percurso de geração do sentido, à das estruturas fundamentais. Sintaxe narrativa Retomando a concepção espetacular da sintaxe, entende-se a sintaxe narrativa como o simulacro do fazer do homem que transforma o mundo. Desvendar a organização narrativa consiste, portanto, em descrever e explicar as relações e funções do espetáculo, assim como em determinar seus participantes. Para tanto, a análise narrativa procura utilizar o quadro geral e rigoroso da teoria semiótica, buscando mostrar e analisar a especificidade de cada texto e não, como acreditam alguns criar uma camisa-de-força, uma fôrma, em que devam obrigatoriamente entrar os mais diversos discursos. A proposição de modelos de enunciados narrativos, de programas, de percursos e mesmo de um esquema narrativo canônico, que serão vistos em seguida, só tem sentido se tais modelos forem entendidos como instrumentos de análise e de previsão, que facilitam a decomposição do discurso e a explicação coerente das transformações e dos estados e que possibilitam a comparação, por exemplo, de narrativas diferentes. Enquanto instrumentos de previsão, permitem reconhecer, por catálise — explicitação dos pressupostos —, elementos narrativos implícitos. Parte-se de duas concepções complementares de narratividade: narratividade como transformação de estados, de situações, operada pelo fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores investidos objetos; narratividade como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor. Em outros termos, as estruturas narrativas simulam a história da busca de valores, da procura de sentido. [página 28] Enunciado elementar O enunciado elementar da sintaxe narrativa será definido pela relação-função entre pelo menos dois actantes. Função está sendo tomada no sentido lógico-matemático de relação entre duas variáveis. Com base nessa concepção de sintaxe relacional, deve-se rever a noção de actante de Tesnière, pois, para a semiótica, actante é o termo-resultante da relação- função ou, em outras palavras, a relação-função é constitutiva dos actantes, seus funtivos. A relação que caracteriza o enunciado elementar é a de transitividade — relação que comporta um investimento semântico mínimo —, e os actantes, definidos por tal relação, são o actante sujeito e o actante objeto. A relação transitiva entre sujeito e objeto dá-lhes existência. Investimentos semânticos complementares à relação de transitividade permitem estabelecer distinção entre duas diferentes funções, a junção e a transformação, e entre duas formas canônicas de enunciados elementares. A fábula ‘A Galinha dos ovos de ouro’, de Millôr Fernandes, será utilizada para ilustrar os diferentes tipos de enunciados e outros conceitos da gramática narrativa. A Galinha dos ovos de ouro Era uma vez um homem que tinha uma Galinha. Subitamente, em dia inesperado, a Galinha pôs um ovo de ouro. Ouro! Outro dia, outro ovo. Outro ovo de ouro! O homem mal podia dormir. Esperava todas as manhãs pelo ovo de ouro — clara, gema, gala, tudo de ouro! — que o tirava da miséria aos poucos, e aos poucos o ia guindando ao milionarismo. O fato, que antigamente poderia passar despercebido, na data de hoje atraía verdadeiras multidões.: E não só multidões. Rádios, jornais, televisão, tudo entrevistava o homem, pedindo-lhe impressões, querendo saber detalhes de como acontecera o espantoso acontecimento. E a Galinha, também, ia dando aqui e ali seus shows diante dos jornais, câmaras, microfones. Certa vez até, num esforço de reportagem, conseguiu pôr um ovo diante da câmara da TV Tupi. Porém o tempo passou e muito antes que o homem conseguisse ficar rico, a Galinha deixou de botar ovos de ouro. Desesperado, o homem foi ocultando o fato, até que, certo dia, não se contendo mais, abriu a galinha para apanhar os ovos que ela tivesse lá dentro. Para sua decepção não havia mais nenhum. [página 29] Então o homem — espírito bem moderno — resolveu explorar o nome que lhe ficara do acontecimento e abriu um enorme restaurante, com o sugestivo nome de Aos Ovos de Ouro. E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a Galinha propriamente dita. MORAL: CRIA GALINHAS E DEITA-TE NO NINHO. (FERNANDES, 1975, p. 99) As duas formas canônicas de enunciados elementares, definidas pelas funções de junção e de transformação, são: enunciado de estado.... F junção (S,O) Ex.: “Era uma vez um homem que tinha uma Galinha” enunciado de fazer.... F transformação (S,O) Ex.: “Subitamente, em dia inesperado, a Galinha pôs um ovo de ouro”. A junção é a relação que determina o “estado” do sujeito em relação a um objeto qualquer. Articula-se em conjunção e disjunção: enunciado de estado conjuntivo....S ⋂ O Ex.: O homem tinha a Galinha dos ovos de ouro. enunciado de estado disjuntivo....S ⋃ O Ex.: O homem não tinha mais a Galinha dos ovos de ouro. Os enunciados de fazer operam a passagem de uni estado a outro, ou seja, de um estado conjuntivo a um estado disjuntivo e vice-versa. O objeto da transformação e, portanto, um enunciado de estado. Na fábula, ao matar a galinha (enunciado de fazer) o sujeito do fazer “homem” muda seu estado de conjunção com o objeto “galinha e ovos de ouro” em estado de disjunção. Retomando a definição de actantes, pode-se dizer que o sujeito não existe nem semântica nem semioticamente se não for determinado pela relação transitiva com um objeto. Se a relação que os liga for de disjunção, serão chamados de sujeitos (e objetos) atualizados, se de conjunção,serão ditos realizados. Anteriormente à junção, os sujeitos serão virtuais. A natureza da função constitutiva do enunciado permite, ainda, distinguir sujeitos e objetos do estado, de sujeitos e objetos [página 30] do lazer. O objeto, enquanto objeto sintático, caracteriza-se como uma posição actancial que pode receber investimentos de projetos do sujeito (objeto do fazer) e de suas determinações (objeto do estado) (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 313). Tais investimentos fazem do objeto um objeto- valor. No texto-exemplo, o sujeito (homem) define-se pela relação transitiva com o objeto (ovos de ouro, dinheiro), que, investido pelos projetos e pelas determinações do sujeito (em busca de dinheiro, fama e prestígio), torna-se um objeto-valor. O sujeito apresenta-se ora como sujeito virtual (antes de a galinha botar ovos de ouro, não mantém relação juntiva com o objeto), ora como sujeito realizado (quando “sua” galinha põe ovos de ouro, o sujeito passa a estar em conjunção com o objeto), ora como sujeito atualizado (quando a galinha deixa de botar ovos de ouro e é morta, o sujeito se relaciona por disjunção com o objeto). Conclui-se, a partir da apresentação das duas formas de enunciados elementares, que a sintaxe narrativa não é uma sintaxe de sujeito- predicado, como as da gramática gerativa ou da sintaxe distribucional, mas uma sintaxe semelhante à de Tesnière ou Fillmore, em que o núcleo é o “verbo”, que define a relação entre actantes. Os dois tipos de enunciados marcam no discurso a diferença entre estado e transformação, cujo reconhecimento e distinção constituem o primeiro trabalho da análise narrativa. A narratividade deve ser entendida como a sucessão de estados e de transformações, responsável, nessa instância, pela produção do sentido. Em ‘A Galinha dos ovos de ouro’, seguem-se estados de disjunção e de conjunção do sujeito com o objeto-valor (ovos de ouro, dinheiro), sendo as mudanças ocasionadas por transformações (enunciados de fazer): a galinha começa a botar ovos de ouro; a galinha deixa de pôr ovos de ouro e é morta; o homem abre um restaurante que lhe dá muito dinheiro. Sintagma elementar: programa narrativo O sintagma elementar da sintaxe narrativa é denominado programa narrativo. O programa narrativo constitui-se de um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Ao integrar os estados e as transformações, o programa narrativo, e não o enunciado, deve ser considerado a unidade operatória elementar da sintaxe narrativa. [página 31] No programa narrativo abaixo representado, o enunciado de estado é o enunciado resultante da transformação, a partir do qual se pode reconstituir o estado inicial. F = função → = transformação S1 = sujeito do fazer PN = F[S1 → (S2 ⋂ OV)] S2 = sujeito do estado F[S1 → (S2 ⋃ OV)] ⋂ = conjunção ⋃ = disjunção Ov = objeto-valor Pelo fato de transformar estados, o sujeito do fazer altera a junção do sujeito do estado com os valores e, portanto, o afeta. São programas narrativos, por exemplo: PN1 = F (botar ovos de ouro) [S1 (galinha) — (S2 (homem) ⋂ Ov (ovos de ouro-dinheiro, prestígio))] PN2 = F (deixar de botar) [S1 (galinha) — (S2 (homem) ⋃ Ov (ovos de ouro-dinheiro, prestígio))] PN3 = F (abrir a galinha) [S1 (homem) (S2 (homem) ⋃ Ov (ovos de ouro-dinheiro, prestígio))] PN4 = F (abrir um restaurante) [S1 (homem) - (S, (homem) ⋂ Ov (restaurante-dinheiro, prestígio))] Todo enunciado que rege outro enunciado é um enunciado modal, e o regido, um enunciado descritivo. No programa narrativo, o enunciado de fazer é um enunciado modal, que “modaliza” o enunciado de estado descritivo. E preciso, porém, lembrar que, como se verá adiante, os enunciados de estado também podem ser enunciados modais. Há vários tipos de programas narrativos, segundo: a) a natureza da junção — conjunção ou disjunção —, que determina programas de aquisição ou de privação de objetos- valor (Os PN1 e PN4, em que o sujeito (homem) obtém os objetos que valem dinheiro e prestigio, são programas de aquisição de objeto-valor, e os PN2 e PN3, em que o sujeito perde tais valores, programas de privação.); b) o valor investido no objeto — modal ou descritivo —, que define, no primeiro caso, programas de transformação de competência e de alteração de estados passionais, e no segundo, programas de performance, desde que cumpridas também as condições do item d (Os programas acima são programas de performance11. Os valores (dinheiro, prestígio, fama) investidos nos objetos são descritivos. Em ‘O [página 32] vento no canavial’ tem-se um bom exemplo de programa de competência: o sujeito do fazer (vento) dota o sujeito de estado (canavial) do valor-modal do poder-fazer (PN = F (“ventar”) [S1 (vento) → (S2 (canavial) ⋂ Ov (poder-fazer))].); c) a complexidade do programa narrativo — simples ou complexo — e a relação entre os programas que o constituem (Os programas são, em geral, complexos, constituídos por mais de um programa, hierarquizados: um programa narrativo de base, que exige a realização prévia de outros programas, pressupostos, denominados programas narrativos de uso e cujo número depende da maior ou menor complexidade da tarefa a ser executada. O programa de uso pode ser realizado pelo mesmo sujeito que cumpre o programa principal ou por um sujeito do fazer delegado. Na fábula, o programa de base é o de aquisição dos valores de dinheiro e prestígio, apresentando-se os demais programas como programas de uso que levam à realização do programa de base. E o caso, por exemplo, das entrevistas com rádios, jornais e televisão.); d) a relação entre os sujeitos, actantes narrativos, e os atores discursivos12: os dois sujeitos, do estado e do fazer, podem ser assumidos por um único ator ou por dois atores diferentes. (Nos PN1 e PN2 acima, o sujeito do fazer S1 é realizado pelo ator “galinha”, enquanto o sujeito do estado S2 é manifestado pelo ator “homem”. Nos PN3 e PN4, os dois sujeitos, do fazer (S1) e do estado (S2), são assumidos por um mesmo ator “homem”.) Combinados os critérios a e d, ocorrem programas de aquisição transitiva ou por doação (opera-se a conjunção e o sujeito do fazer é diferente do sujeito de estado), de aquisição reflexiva ou por apropriação (opera-se a conjunção e o sujeito do fazer é igual ao sujeito de estado); de privação transitiva ou por espoliação (opera-se a disjunção e o sujeito do fazer é diferente do sujeito de estado); de privação reflexiva ou por renuncia (opera-se a disjunção e o sujeito do fazer é igual ao sujeito de estado). O PN1 é um programa de doação, o PN2, de espoliação, o PN3, de renuncia, o PN4, de apropriação. Todo programa narrativo projeta um programa correlato, ou seja, o Programa de doação corresponde, em outra perspectiva, ao programa de renúncia, da mesma forma que o programa de apropriação é concomitante ao programa de espoliação. O desdobramento e a correlação de programas levam a ler a transformação de estados como transferência de objetos-valor e como comunicação de objetos entre dois sujeitos que, por meio deles, se relacionam. [página 33] A galinha, ao botar e doar os ovos de ouro, está a eles renunciando; ao parar de pôr ovos, espolia o homem e apropria- se dos ovos. Estabelece- se a comunicação do objeto “ovos de ouro” entre os sujeitos “galinha” e “homem”. PN1 = F (botar ovos de ouro) [S1 (galinha) → (S2 (homem) ⋂ Ov (ovos de ouro))] DOAÇÃO PN1 correlato = F (botar ovos de ouro) [S1 (galinha) → (S2 (galinha) ⋃ Ov (ovos de ouro))] RENÚNCIA PN2 = F (deixar de pôr ovos de ouro) [S1 (galinha) → (S2 (homem) ⋃ Ov (ovos de ouro))] ESPOLIAÇÃO PN2 correlato = F (deixar de pôr ovos de ouro) [S1 (galinha) → (S2 (galinha) ⋂ Ov (ovos de ouro))] APROPRIAÇÃO Acreditando na apropriação pela galinha, o homem abriu-a “para apanhar os ovos que ela tivesse lá dentro”. Com base nos critérios levantados, definem-se dois tipos fundamentais de programas narrativos, a competência e a performance. A performance, em sentido lato, confunde-se com a própria definição de programa. Em sentido restrito, constitui um tipo de programa narrativo, o programa de aquisição (ou de produção) de valores descritivos em que o sujeito do fazer e o sujeito do estado estão sincretizados em um único ator (aquisição por apropriação correlata à privação por espoliação). Opõe-se à competência, definida como programa de aquisição de valores modais em que o sujeito do fazer e o sujeito do estado são realizados por atores diferentes (aquisição por doação). Assim, em F[S1a → (S2a ⋂ Ovd)] Ex.: F(abrir restaurante) [S1a (homem) → (S2a (homem) ⋂ Ovd (dinheiro))] tem-se a representação da performance: S1 = S2 (o índice a marca o sincretismo actorial dos sujeitos) e o valor é descritivo. Em F[S1a → (S2b ⋂ Ovm)] Ex.: F(botar ovos) [S1a (galinha) → (S2b (homem) ⋂ Ovm (poder-fazer))] transcreve-se a competência: S1 ≠ S2 (os índices a e b representam a diferença actorial) e o valor é modal. Trata-se, na performance, da representação sintático-semântica do ato, ou seja, do fazer-ser, e, na competência, da doação de valores modais [página 34] ao sujeito do estado, tornando-o apto para agir ou para “viver paixões”. A competência, entendida como as condições necessárias à realização da performance, é sempre um programa de uso em relação ao programa da performance. Caracteriza-se como uma organização hierárquica de modalidades ou de valores modais: o querer-fazer e/ou o dever-fazer regem o poder-fazer e/ou o saber-fazer. O problema das modalidades será examinado em item à parte. Quanto à performance, dissemos acima, de passagem, que há performances de aquisição de valores, quando os objetos, em que os valores desejados estão investidos, já existem e circulam entre sujeitos, e performances de construção de objetos ainda inexistentes, para serem lugares de investimento dos valores visados. O primeiro tipo de performance pode ser exemplificado, nos contos infantis, com a história de Joãozinho e o pé de feijão; em que a Galinha-dos-ovos-de-ouro circula entre o Gigante e Joãozinho; o segundo, com a história da Galinha Ruiva que, a partir do valor gustativo desejado, planta o trigo, mói, amassa, faz e assa o pão, constrói enfim o objeto em que o valor irá se inscrever. Se, no primeiro caso, há conflito entre dois sujeitos de fazer, em luta pelo objeto- valor, representado pela figura da Galinha-dos-ovos-de-ouro, no segundo, opõem-se um sujeito que faz — a Galinha Ruiva — e outro que não faz — os amiguinhos da Galinha Ruiva. No texto de Millôr que está sendo utilizado como exemplo, as performances do sujeito “homem” são performances de aquisição de objetos-valor já existentes e em circulação entre sujeitos: os ovos de ouro, entre a galinha e o homem; o dinheiro, entre homens. Descrever e explicar a organização dos programas narrativos, nos moldes propostos, constitui o segundo passo da análise narrativa. Percurso narrativo “Um percurso narrativo é uma seqüência hipotáxica de programas narrativos (abreviados em PN), simples ou complexos, isto é, um encadeamento lógico em que cada PN é pressuposto por um outro PN” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 300). Os actantes sintáticos — sujeito do estado, sujeito do fazer, objeto — , que participam da formulação do enunciado elementar e do programa narrativo, são redefinidos, no interior dos percursos narrativos, como papéis actanciais. Os papéis actanciais dependem da posição que os actantes sintáticos, ou o programa de que fazem parte, ocupam no percur- [página 35] so — existem, então, sujeitos competentes, sujeitos realizadores — e da natureza dos objetos-valor, com os quais estão em junção — distinguem-se, assim, sujeitos do querer, sujeitos do saber. Os papéis actanciais variam segundo o progresso narrativo. Na última etapa da hierarquia das unidades sintáticas, o conjunto dos papéis actanciais de um percurso define o chamado actante funcional ou actante, simplesmente. O actante funcional não se caracteriza de uma vez por todas, mas tem apenas a determinação mínima dada pelo percurso, cujos papéis engloba. Unidades sintáticas Actantes Actante funcional (sujeito, objeto, Esquema narrativo destinador, destinatário) Papel actancial (Ex.: sujeito Percurso narrativo competente, sujeito do querer) Programa narrativo (e Actante sintático (sujeito do estado, enunciado elementar) sujeito do fazer-objeto) Unidade do esquema narrativo, o actante funcional esta sendo chamado aqui para denominar os percursos que assume, facilitando-lhes a referência. Há três percursos distintos: o do sujeito, o do destinador- manipulador e o do destinado julgador. O percurso do sujeito é constituído pelo encadeamento lógico do programa da competência, pressuposto, e do programa da performance, pressuponente, ou seja, o sujeito adquire competência modal e semântica, torna-se sujeito competente para um dado fazer ou performance e executa- o, passando a sujeito realizador. Os diversos tipos de competência e de performance, assim como o encadeamento dos dois programas, caracterizam diferentes percursos do sujeito, cuja explicação pode ser considerada o terceiro passo da análise narrativa. Em ‘A Galinha dos ovos de ouro’ o Sujeito (funcional) “homem” torna-se sujeito competente (quer, sabe e pode lazer), qualificado para a performance de adquirir dinheiro e prestígio, e executa tal fazer, transformando o estado de sujeito sem dinheiro em estado de sujeito com dinheiro. Assume, portanto, diferentes papéis actanciais: sujeito do querer, sujeito do poder, sujeito do saber, sujeito competente, sujeito realizador. Os outros dois percursos, percurso do destinador-manipulador ou percurso da manipulação e percurso do destinador-julgador ou percurso da sanção, enquadram o percurso do sujeito. O destinador-manipulador é a fonte dos valores, ou [página 36] melhor é quem determina os valores que serão visados pelo sujeito ou o valor dos valores — competência semântica do sujeito — e quem dota o sujeito dos valores modais necessários ao fazer — competência modal do sujeito. Manipulação e competência são correlativos, ou seja, são pontos de vista diferentes sobre o programa de aquisição por doação. Na manipulação, adota-se a perspectiva do sujeito do fazer; na competência, a do sujeito do estado que “recebe” os valores modais. O percurso do destinador-manipulador é, pela definição acima, formado por um programa, em geral complexo, de doação de competência semântica e modal ao destinatário, que será sujeito do fazer. Na fábula- exemplo, o destinador-manipulador ocorre sob a forma da sociedade, que leva o sujeito a querer-fazer (adquirir dinheiro e prestígio), através da galinha, que, com os ovos de ouro, lhe dá o poder-fazer, e por meio da “modernidade”, que lhe lega o saber-fazer (explorar o nome e abrir um restaurante). A dotação de competência semântica ou manipulação cognitiva tem todas as características do programa de competência e deve ser entendida como um contrato fiduciário, em que o destinador, graças a um fazer persuasivo, busca a adesão do destinatário. Pretende fazer com que o destinatário, ao exercer o fazer interpretativo que lhe cabe, creia ser verdadeiro o objeto apresentado, o discurso do outro e o próprio destinador. Há estreita vinculação entre a confiança e a crença, o que permite falar em contrato fiduciário. A confiança entre os homens fundamenta a confiança nas palavras deles sobre as coisas e o mundo e, finalmente, a confiança ou a crença nas coisas e no mundo. A atribuição de competência modal ao sujeito, para levá-lo a fazer, constitui a manipulação propriamente dita e pressupõe o contrato fiduciário acima referido. Tal manipulação consiste na doação de valores modais, cuja organização determina a competência do sujeito. A manipulação do destinador distingue-se, pelos critérios vistos, da ação do sujeito: o sujeito, pela performance, altera estados, faz ser, e simula a ação do homem sobre as coisas do mundo; o manipulador transforma o sujeito, ao modificar suas determinações semânticas e modais, ou seja, faz-fazer, e representa a ação do homem sobre o homem. A manipulação tem a estrutura contratual da comunicação. O destinador-manipulador transforma a competência modal do destinatário ao colocá-lo, durante a comunicação, em posição de falta de liberdade ou de não poder não aceitar o contrato proposto. O destinatário é levado a efetuar uma es- [página 37] colha forçada. O destinador emprega, para tanto, a persuasão, articulada no fazer persuasivo que exerce e no fazer interpretativo, por conta do destinatário, O fazer persuasivo define-se como um fazer-crer e, secundariamente, como um fazer-saber, e o fazer interpretativo, como o crer, ou melhor, como um ato epistêmico que leva a crer. Em resumo, o percurso do destinador-manipulador pode ser desmembrado em três etapas: o contrato fiduciário, em que é estabelecido um mínimo de confiança; o espaço cognitivo da persuasão e da interpretação; a aceitação ou recusa do contrato. Percurso do destinador-manipulador Manipulação propriamente dita: Aceitação ou re- Contrato fiduciário proposição do contrato, persuasão cusa do contrato e interpretação Uma tipologia da manipulação foi esboçada na semiótica13. Há quatro grandes tipos de figuras da manipulação, a provocação, a sedução, a tentação e a intimidação, segundo dois critérios de classificação: o da competência do manipulador para o fazer persuasivo e o da alteração modal operada na competência do sujeito manipulado. No primeiro caso, o destinador-manipulador persuade pelo saber, provocando e seduzindo, ou pelo poder, tentando e intimidando. Na provocação e na sedução, o destinador diz ao destinatário, de forma clara ou implícita, o que sabe de sua competência, colocando-o em posição de escolha forçada. Na provocação, deve escolher entre aceitar a imagem desfavorável que dele foi apresentada ou fazer o que o manipulador pretende; na sedução, precisa recusar a representação lisonjeira que dele foi feita ou deixar-se manipular. O julgamento da competência é, portanto, positivo, na sedução, e, negativo, na provocação. Na tentação e na intimidação, o manipulador mostra poder e propõe ao manipulado, para que ele faça o esperado, objetos de valor cultural, respectivamente positivo (dinheiro, presentes, vantagens) e negativo (ameaças). O segundo critério aplica-se à transformação da competência modal do sujeito manipulado, que passa a querer ou a dever- fazer. O querer-fazer caracteriza a sedução e a tentação, o dever-fazer, a provocação e a intimidação. Os diferentes tipos de manipulação manifestam-se, em geral, combinados e confundidos em estruturas de manipulação complexas, que se explicam pela organização e encadeamento dos programas no percurso do destinador-manipulador. [página 38] Acrescente-se, agora, que a manipulação só será bem sucedida se o sistema de valores que esta por deitas dela for compartilhado pelo manipulado. Volta-se à questão do contrato fiduciário. O bom funcionamento da manipulação pressupõe uma certa cumplicidade entre manipulador e manipulado. Assim, se o destinatário provocado não se importar de ser chamado de covarde, ele não será levado, no saloon, ao duelo; se o homem-motorista não fizer questão de confirmar sua imagem de força e competência frente à mulher, ele não se deixará seduzir pela “fragilidade” da jovem que está com o pneu do carro furado; se o guarda rodoviário não se interessar por dinheiro ou se prevalecerem nele outros valores, além do econômico, não será ele levado pela tentação do suborno. Escapar da manipulação, além de significar a recusa em participar do jogo, constitui, também, a proposição de outro sistema de valores14. O terceiro percurso narrativo proposto é o do destinador-julgador ou percurso da sanção15. O percurso do destinador-julgador, da mesma forma que a manipulação, consiste no encadeamento lógico de programas narrativos, em geral complexos, de dois tipos: o primeiro, responsável pela sanção cognitiva, que leva ao reconhecimento do “herói” e ao desmascaramento do “vilão”; o segundo, encarregado da sanção pragmática, que culmina na retribuição, sob a forma de recompensa ou punição. A sanção pragmática pressupõe a cognitiva e caracterizam-se, ambas, como programas de doação de valores, modais e descritivos, que modificam o ser do sujeito. No texto de Millôr, o percurso da sanção, não muito desenvolvido, aparece tanto como sanção cognitiva, no reconhecimento do “espírito moderno” do sujeito e na moral “Cria galinhas e deita-te no ninho”, quanto como sanção pragmática: “E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a Galinha propriamente dita”. A sanção a última fase do algoritmo narrativo e apresenta-se como um fim necessário, tanto pelo desenvolvimento dos programas narrativos do percurso do sujeito, percurso que lhe cabe encerrar, quanto pelas correlações que se estabelecem entre manipulação e sanção. A sanção faz eco à manipulação e ambas delimitam o percurso do sujeito, encaixando-o entre dois momentos do sistema do destinador. Instala-se, com a sanção, um outro ponto de vista na narrativa, o da relação de interpretação entre o sujeito e o destinador-julgador. [página 39] A operação cognitiva de sanção é uma interpretação que se cumpre em duas etapas, a de reconhecimento e a de integração do sujeito e de seu percurso no sistema de valores do destinador. Para isso é necessária, em primeiro lugar, a “objetivação” do percurso narrativo realizado pelo sujeito (PANIER, 1982), sua apreensão como objeto do saber a ser interpretado. Recategorizado como objeto, o percurso do sujeito as transformações e os estados resultantes — torna-se suporte de valores descritivos e modais, passível de interpretação. O sujeito, caracterizado essencialmente pelo fazer e pelos valores com os quais se relaciona, precisa ser retomado e lido pelo destinador- julgador, para adquirir sentido. No reconhecimento, as modalidades veridictórias e epistêmicas sobredeterminam o ser do sujeito. O destinador interpreta os estados resultantes do fazer do sujeito, definindo-os como verdadeiros (que parecem e são), falsos (que não parecem e não são), mentirosos (que parecem e não são) ou secretos (que não parecem e são). No conto popular, em geral, o reconhecimento do herói dá-se pela transformação do secreto em verdadeiro, ao mesmo tempo que o desmascaramento do vilão ocorre pela passagem do mentiroso ao falso. Veridictoriamente modalizado, o sujeito é, em seguida, determinado pelas modalidades epistêmicas da certeza ou da dúvida: afirmado ou recusado, admitido ou posto em dúvida. Na sanção, o destinador, além de reconhecer o sujeito, integra o percurso narrativo por ele realizado no sistema de valores de que, como destinador, é guardião. Ou seja, o destinador julga a conduta do sujeito e os estados obtidos pelas operações, por sua conformidade ou não com o sistema de valores que representa e, também, em relação aos valores implicitados ou explicitados no contrato inicial com o destinador- manipulador. Cabe-lhe verificar se o sujeito cumpriu o compromisso assumido quando da sua instauração como sujeito da performance. Conclui-se que toda interpretação, e sanção, se faz em nome de uma ideologia, da qual depende, em suma, o sentido do percurso narrativo realizado. O sujeito, reconhecido e considerado cumpridor do contrato que assumiu, é julgado positivamente e recebe uma retribuição, última etapa da sanção, sob a forma de recompensa. A retribuição faz parte da estrutura contratual inicial e restabelece o equilíbrio narrativo. Pode-se exemplificar, uma vez mais, com a literatura infantil: a Gata Borralheira, após ser reconhecida como a verdadeira princesa, de quem o príncipe se enamora, casa-se com ele; Joãozinho, cumprido o com- [página 40] trato implícito de coragem e esperteza, recebe a retribuição sob a forma da galinha-dos-ovos- de-ouro, O inverso também ocorre e a não-obediência ao contrato conduz à punição, após julgamento negativo. A Galinha Ruiva propõe acordo ao rato, ao pato e ao porco, para que a ajudem a fazer o pão. Como eles não assumem o compromisso, são reconhecidos preguiçosos pela galinha, que os pune, comendo o pão sozinha. Uma última possibilidade é a de o sujeito ser sancionado por um destinador-julgador que encarne valores contrários ou contraditórios aos do destinador-manipulador. Nesse caso, o sujeito que cumpriu o contrato será julgado negativamente e vice-versa. Em geral, é o que ocorre na punição do anti-sujeito. A sanção realiza, portanto, duas operações, a cognitiva, de interpretação reconhecimento do sujeito e integração de seu percurso no sistema de valores de ambos os destinadores —, e a pragmática, de retribuição. Esquema narrativo canônico A hierarquia sintática da narrativa vai do programa ao esquema, passando pelo percurso. O esquema narrativo, enquanto modelo canônico, deve ser tomado como referência, a partir do qual são calculados os desvios, as expansões e as variações narrativas, e estabelecidas as comparações entre narrativas diferentes. Só pode ser entendido no topo da estrutura sintática hierárquica que se está examinando, ao definir-se como modelo hipotético de uma organização geral da narratividade que procura mostrar as formas pelas quais o sujeito concebe sua vida, enquanto projeto, realização e destino (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 298). O esquema narrativo canônico compreende os três percursos descritos, o percurso da manipulação ou do destinador-manipulador, o da ação ou do sujeito e o da sanção ou do destinador-julgador. Os percursos da manipulação e da sanção situam-se na dimensão cognitiva e enquadram o da ação, localizado tanto na dimensão pragmática (encadeamento de atos somático-gestuais), quanto na cognitiva (sucessão de atos de linguagem). Visualiza-se o esquema narrativo na representação abaixo: Percurso do Percurso do Percurso do sujeito destinador-manipulador destinador-julgador Dor — Dário S—O Dor — Dário [página 41] Os actantes funcionais ou actantes, simplesmente, caracterizam-se, no nível do esquema, pelos papéis actanciais que englobam e definem-se por duas categorias, a da transitividade, articulada em sujeito e objeto, e a da comunicação ou factitividade, desmembrada em destinador e destinatário. O esquema narrativo, ao estabelecer a regularidade sintagmática da organização narrativa, retoma as contribuições de Propp. Podem-se aproximar os três percursos, constitutivos do esquema, das provas proppianas — qualificante, principal e glorificante. Muitas mudanças ocorreram a partir do trabalho precursor de Propp, graças, sobretudo, ao reconhecimento dos dispositivos modais da narrativa que permitem reinterpretar a sintaxe narrativa em termos de sintaxe modal. Que se pense na semiótica da manipulação e da sanção e na determinação da competência e da existência modais do sujeito. No entanto, a semiótica conserva ainda, na sua definição de esquema narrativo, o ponto de vista de Propp ao atribuir às regularidades narrativas o estatuto ideológico de um projeto de vida. Retomando as duas definições propostas de narratividade, pode-se agora perceber que a primeira, a de sucessão de estados e de transformações, adotou a perspectiva do sujeito e de seu fazer, e a segunda, a da sucessão de estabelecimentos e de rupturas de obrigações contratuais, escolheu o ponto de vista das relações entre destinador e destinatário- sujeito. A leitura da estrutura contratual da narrativa mostra o estabelecimento de um acordo entre o destinador-manipulador e o destinatário-sujeito, em geral após a ruptura da ordem estabelecida, ou seja, depois da transgressão de contratos sociais implícitos ou explícitos; o cumprimento, pelo sujeito, cio compromisso assumido; a atribuição de recompensa ao sujeito fiel a suas obrigações, pelo destinador-julgador, que executa, assim, sua parte no contrato. Se a estrutura contratual parece dominar o conjunto do esquema narrativo, é preciso não esquecer que a organização contratual da intersubjetividade articula-se em dois pólos opostos, o das estruturas polêmicas ou conflituais e o das estruturas contratuais, em sentido restrito. “O reconhecimento, na semiótica, desse tipo de estruturas, permite-nos articular e formular, com maior precisão, a problemática mais geral — peculiar ao conjunto das ciências sociais — no interior da qual se opõem duas concepções quase inconciliáveis da sociabilidade: a vida social, enquanto luta (de classes) e competição, e a sociedade fundada na troca e na coesão social.” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 341.) [página 42] O reconhecimento da estrutura polêmica na narratividade — no conto da Branca de Neve, por exemplo, há, ao mesmo tempo, a história da Branca de Neve e a da madrasta; na fábula da Galinha dos ovos de ouro, a do homem e a da galinha — obriga-nos a desdobrar, em todas as etapas hierarquizadas, a organização sintática da narrativa. O programa narrativo de aquisição reflexiva por apropriação, que caracteriza a performance, é concomitante ao programa narrativo de privação transitiva por desapropriação, da mesma forma que a doação ocorre simultaneamente à renúncia. Os objetos-valor circulam em um espaço fechado e a aquisição de um objeto por um sujeito corresponde à sua privação para outro sujeito. Aquisição e privação opõem-se paradigmaticamente e pressupõem-se reciprocamente. No nível do percurso narrativo, a dupla implicação que liga os programas de aquisição e privação tem, como conseqüência, o desdobramento dos percursos: percurso do sujeito e percurso do anti- sujeito, percurso do destinador-manipulador e percurso do antidestinador- manipulador, percurso do destinador-julgador e percurso do antidestinador- julgador. Os percursos narrativos do sujeito e do anti-sujeito caracterizam- se pela oposição e pelo fato de os dois sujeitos estarem interessados no mesmo objeto-valor. O antidestinador manipula e sanciona o anti-sujeito e opõe-se ao destinador do sujeito, pois ambos representam sistemas de valores contrários ou contraditórios. As muitas relações e combinações devidas à estrutura polêmica da narrativa tornam a organização sintática bastante complexa e possibilitam um sem-número de variações. Estratégia narrativa O esquema narrativo, assim como as demais instâncias hierárquicas da sintaxe narrativa, oferece muitas oportunidades de variações e combinações que dão caráter único e específico às narrativas-ocorrências. Cabe à estratégia narrativa, última instância da organização narrativa, elaborar os esquemas narrativos, determinando: a articulação dos percursos narrativos; a forma do desdobramento polêmico; as tarefas do sujeito e do anti-sujeito na busca de valores; a composição dos programas complexos, com os sujeitos delegados; o emprego recursivo de programas e de percursos — um percurso de manipulação pode ser encontrado, por exemplo, no interior do percurso do sujeito, e não só no do destinador- manipulador —; o tipo de aquisição de valores, por apropriação ou por construção de objetos; a forma de sociabilidade, por troca ou por luta; as passagens entre as dimensões pragmá- [página 43] tica e cognitiva. Os esquemas resultantes da estratégia narrativa constituem a instancia sêmio- narrativa a partir da qual os discursos são gerados. O sentido narrativo depende das opções feitas, que remetem, em ultima instância, ao sujeito da enunciação. A estratégia narrativa não se confunde com as estratégias discursivas e textuais, diretamente relacionadas ao sujeito da enunciação, mas constitui o patamar narrativo mais próximo — a meio caminho, quem sabe — do discurso. Intencionalidade narrativa Antes de se abordar a semântica narrativa, cabem algumas observações sobre a intencionalidade, já repetidas vezes proposta, no âmbito da semiótica, como traço definidor da narratividade. Intencionalidade diferencia-se de intenção. Uma narrativa determinada pela intenção restringiria sua produção e desenvolvimento a atos voluntários e conscientes. Não seria possível, nesse caso, ler a intencionalidade narrativa como a procura do prazer e da estabilidade do Nirvana freudiano, pois são buscas inconscientes, nem considerar as determinações sócio-históricas, que negam a liberdade e o caráter voluntário do discurso. A intencionalidade, distinta da intenção, não se identifica, para Greimas, nem com a motivação, nem com a finalidade, mas as engloba. Dessa forma, é possível conceber as transformações narrativas como uma tensão entre dois modos de existência, a virtualidade e a realização, como uma relação orientada, transitiva, entre sujeito e objeto. A definição acima e o papel central da intencionalidade aparecem em texto fundamental da semiótica, de 1968 (GREIMAS, 1970). Nesse artigo, distinguem-se duas interpretações do termo sens em francês, que correspondem, muito de perto, às acepções de sentido, em português. Com efeito, o Novo Dicionário Aurélio define sentido tanto como significação, significado (a relação entre expressão e conteúdo), quanto como orientação, direção, rumo (a intencionalidade, ou seja, “uma relação que se estabelece entre o trajeto a percorrer e seu ponto de chegada” — (GREIMAS, 1970, p. 63). A segunda acepção de sentido permite conceber o desenrolar narrativo como um sintagma programado entre a posição incoativa e a posição terminativa do sujeito. Esse sintagma define-se como um projeto cultural. Zilberberg (1981), conforme exposto, concebe o nível fundamental do percurso gerativo do sentido a partir da noção de tensividade, articulada em /tensão/ vs. /relaxamento/. A variação tensiva e sua conservação organizam sintaticamente as [página 44] categorias semânticas discretas. As mesmas operações tensivas, convertidas, respondem, no nível das estruturas narrativas, pela intencionalidade. Entende-se intencionalidade como a tensividade aspectualizada, com um começo e um fim. Sintaxe Sintaxe fundamental narrativa conservação aspectualização intencionalidade tensiva recursiva variação aspectualização intencionalidade tensiva diretiva Barthes define narrativas conservadoras pela intencionalidade recorrente e narrativas reformadoras ou revolucionárias pela intencionalidade diretiva. A conservação e a variação tensiva, aspectualizadas e tornadas intencionalidade, determinam tipos diversos de narrativa e delimitam melhor o entendimento semiótico de conservação e progresso narrativos. A noção de intencionalidade esteve sempre, na semiótica, ligada à de narratividade, muito embora um tanto camuflada pela ênfase dada ao caráter antropomórfico das organizações narrativas. Não se trata de negar agora que a narratividade é função do sujeito, mas sim de concebê-la num nível de abstração maior, o que permite uma generalização crescente e facilita a tarefa de análise narrativa da música ou da gestualidade, por exemplo. Semântica narrativa A semântica narrativa é, no percurso gerativo, a instância de atualização dos valores. Os termos do nível fundamental, resultantes da articulação de categorias semânticas e, pela projeção da categoria tímico- fórica, axiologizados como valores virtuais, são, na instância narrativa, selecionados e convertidos em valores atuais (ou valores, simplesmente), mediante inscrição em um ou mais objetos em junção com sujeitos. Há, portanto, dois momentos essenciais na passagem da semântica fundamental à semântica narrativa: a seleção dos valores, articulados nos quadrados semióticos, e a relação com os sujeitos. A escolha de valores corresponde a uma primeira decisão do sujeito da enunciação, quanto ao discurso que será produzido. A atualização dos valores ocorre, como visto, no enunciado de estado, em que o valor é investido no objeto e relacionado, por disjunção ou conjunção, com o su- [página 45] jeito. Só assim, inscrito na estrutura sintática, o valor se torna 1eghel e faz do objeto um objeto-valor. Conforme foi examinado em itens anteriores, as primeiras articulações do sentido em categorias semânticas, ainda no nível das estruturas fundamentais, podem tornar-se valores axiológicos virtuais desde que sobre elas se projete a categoria articulada em /euforia/ vs. /disforia/ ou em /tensão/ vs. /relaxamento/. Passa-se da taxionomia à axiologia. As conversões do nível profundo ao nível narrativo, desmembradas, graças aos dois elementos definidores do valor axiológico, representam-se como no esquema abaixo: categoria + categoria = valor axiológico Semântica semântica tímico/fórica virtual (axiologia) fundamental (taxionomia) traços semânticos traços modais, valor ideológico Semântica inscritos nos objetos, no que “modificam” (ideologia) ou valor narrativa interior de enunciados as relações entre assumido por um de estado sujeito e objeto sujeito O primeiro aspecto da conversão é a inscrição de elementos semânticos no objeto. Se a relação do sujeito com o objeto lhe dá existência semiótica, o investimento de traços semânticos no objeto em junção com o sujeito, atribui-lhe existência semântica. Depende da categoria semântica convertida a subdivisão dos valores narrativos em valores descritivos e valores modais (o saber, o poder, etc.). Os valores descritivos, por sua vez, classificam-se em valores objetivos (consumíveis e armazenáveis) e em valores subjetivos (prazeres, estados de alma). Em ‘O vento no canavial’16, conforme foi analisado, encontram-se as categorias semânticas fundamentais continuidade vs. ruptura morte vs. vida estaticidade vs. dinamicidade Esses traços semânticos inscrevem-se, na instância das estruturas narrativas, nos objetos relacionados com os sujeitos: Antes da transformação: S (canavial/povo) ⋂ Ov (continuidade’, morte, estaticidade) S (canavial/povo) ⋃ Ov (ruptura, vida, dinamicidade) [página 46] Depois (la transformação: S (canavial/povo) ⋂ Ov (ruptura, vida, dinamicidade) S (canavial/povo) ⋃ Ov (continuidade, morte, estaticidade) Os valores acima são valores descritivos. A transformação é operada pelo sujeito do fazer(canavial/povo), que se tornou competente para tal fazer graças ao destinador(vento). PN de competência: F (“ventar”) [S1 (vento) → (S2 (canavial/povo) ⋂ Ov (poder-fazer)] PN de performace: F (“balançar/lutar”) S (canavial/povo) → (S2 (canavial/povo) ⋂ Ov (ruptura, vida, dinamicidade))] Em “Epílogo”, poema de Bandeira (1961, p. 42), há, na estrutura fundamental, as categorias semânticas vida vs. morte e mocidade vs. velhice: Epílogo Eu quis um dia, como Schumann, compor Um carnaval todo subjetivo: Um carnaval em que o só motivo Fosse o meu próprio ser interior... Quando o acabei — a diferença que havia! O de Schumann é um poema cheio de amor, E de frescura, e de mocidade... E o meu tinha a morta morta-cor Da senilidade e da amargura... — O meu Carnaval sem nenhuma alegria!... As categorias fundamentais vida vs. morte e mocidade vs. velhice ocorrem como traços semânticos descritivos nos objetos dos enunciados narrativos S1 (Schumann) ⋂ Ov (vida, mocidade) S2 (Eu) ⋂ Ov (morte, velhice). O segundo quadro do esquema mostra a conversão da categoria tímico-fórica em categoria modal. Enquanto a categoria tímico-fórica corresponde, no nível das estruturas fundamentais, às relações de tensão e de relaxamento cio ser vivo com seu contexto, as categorias modais ou modalidades determinam, na instância narrativa, as relações que ligam o sujeito ao objeto-valor. Em outras palavras, as categorias mo- [página 47] dais modificam as relações do sujeito com os valores. A conversão da categoria tímico-fórica em categorias modais diferenciadas e interdefinidas resulta de novas articulações significantes responsáveis pelo enriquecimento semântico das etapas do percurso gerativo do sentido. A categoria tímico-fórica determina, na instância fundamental, as categorias semânticas dos dois textos em exame. No poema de João Cabral tem-se (DISFORIA-TENSÃO) (morte, continuidade, estaticidade) vs. (EUFORIA-RELAXAMENTO) (vida, ruptura, dinamicidade) no de Bandeira, (DISFORIA-TENSÃO) (morte, velhice) vs. (EUFORIA-RELAXAMENTO) (vida, mocidade) No nível narrativo, a categoria tímico-fórica converte-se em categoria modal, modificadora da relação do sujeito com o objeto-valor. Dessa forma, em ‘O vento no canavial’, obtêm-se as categorias modais do querer-ser e do poder-ser (exemplo 1) e do poder-fazer (exemplo 2), entre outras: 1 — [S (canavial) ⋂ O querer, poder] [S (canavial) ⋂ O vida, ruptura] 2 — [S (canavial) ⋂ O poder] [F (balançar, lutar) (S1 (canavial) → (S2 (canavial) ⋂ O vida, ruptura)] No primeiro exemplo, o sujeito de estado (canavial/povo) quer e pode estar em relação de conjunção com os valores /vida, ruptura, dinamicidade/, investidos no objeto. Esse é, no poema, o estado resultante de transformação da existência modal do sujeito, operada pelo destinador (vento). O vento muda a relação do sujeito (canavial/povo) com o objeto- valor, que passa de indesejável e impossível a desejável e possível, tal como indica o exemplo acima. No segundo exemplo, representa-se a competência do sujeito (canavial/povo) para transformar (pelo movimento e pela luta) sua relação com a vida, a ruptura e a dinamicidade, conforme as aspirações expressas no primeiro exemplo. O destinador (vento) é o responsável também pela modificação da competência do sujeito, a quem atribui o poder-fazer. No poema ‘Epílogo’, a relação do sujeito (Eu) com o objeto-valor (vida, mocidade) é desejável e impossível e a do sujeito (Schumann), com os mesmos valores, desejável e possível: [página 48] 3 — [S1 (Eu) ⋂ querer, não-poder] [S1 (Eu) ⋂ O (vida, mocidade)] [S2 (Schumann) ⋂ querer, poder] [S2 (Schumann) ⋂ O (vida, mocidade)] Daí a amargura e a falta de alegria de S1 e o amor de S2, entendendo-se a amargura como o efeito passional de /querer-ser/, não-crer-ser/ e /saber- não-poder-ser/ e definindo-se o amor pela organização das modalidades do /querer-ser/, /crer-ser/, /saber-poder-ser/ e /querer-fazer-bem/ ao destinador que tornou possível a conjunção. Como a modalização diz respeito às relações constitutivas dos enunciados, e os enunciados são de dois tipos, determinam-se duas classes de modalidades, as existenciais ou modalidades do ser e as intencionais ou modalidades do fazer (GREIMAS, 1979). A modalização do fazer é responsável pela competência modal do sujeito do fazer, qualificando-o para o fazer. A modalização do ser dá existência modal ao sujeito do estado, modificando o estatuto dos objetos que estão em relação com o sujeito e definindo estados passionais. Os exemplos 1 e 3, acima, são casos de modalização do ser, ou seja, de mudanças na existência modal do sujeito, que caracterizam estados passionais. No poema ‘Epílogo’, mostraram-se as paixões de amargura, alegria, tristeza e amor. O exemplo 2, por sua vez, ilustra a modalização do fazer, quando se altera a competência modal do sujeito. No último quadro do esquema das conversões, valores axiológicos virtuais convertem-se em valores ideológicos. Os valores ideológicos são valores atualizados e assumidos por um sujeito, com o qual mantêm uma relação modal qualquer. Os traços descritivos /vida, ruptura e dinamicidade/, investidos no objeto, desejados pelo sujeito e, para ele, possíveis, são valores ideológicos, no poema de João Cabral, da mesma forma que os traços /vida e mocidade/, desejados pelo sujeito e, para ele, impossíveis, no texto de Bandeira. Modalização e modalidades A lógica foi o primeiro campo de reflexão sobre as modalidades e, sem dúvida, seus estudos estão por detrás dos resultados das investigações que aqui se apresentam. Mesmo assim, não se pretende retomar as relações, influências e convergências entre lógica e semiótica ou lingüística, a não ser para estabelecer, em certos momentos, algumas diferenças de perspectiva17. A semiótica utiliza também aquisições da lingüística para o tratamento das modalidades. Os trabalhos precursores de Bally, Brunot, Benveniste e Jakobson e os mais recentes de Pottier e de toda a chamada pragmática lin- [página 49] güística - teoria dos atos de linguagem, pragmática converciacional, semântica da enunciação de Ducrot — atestam a grande produção lingüística sobre modalidades e modalização. Para Darrault (1976, p. 6), a semiótica obteve, na lingüística, a formulação sintática das modalidades e, na lógica, sua determinação taxionômica18. Na perspectiva da semiótica, as modalidades resultam da conversão da categoria tímico-fórica fundamental, operação já examinada no item anterior, e alteram, na instância narrativa, as relações do sujeito com os valores. A modalização, por sua vez, deve ser entendida como a determinação sintática de enunciados: um enunciado, que será denominado modal, modifica um enunciado dito descritivo. O enunciado modal pode ser tanto um enunciado de estado quanto um enunciado de fazer, e modalizar enunciados de estado ou de fazer, indiferentemente. A natureza do enunciado modalizado é um primeiro critério de classificação das modalidades, distinguidas, assim, em modalidades de fazer e de ser. texto da imagem: Enunciado Enunciado Enunciado modal descritivo modal MODALIDADES DE enunciado de estado enunciado ser-fazer FAZER de fazer enunciado de fazer fazer-fazer MODALIDADES DE enunciado de estado ser-ser SER enunciado de enunciado de fazer estado fazer-ser As modalidades do fazer são de dois tipos: fazer-fizer e ser-fazer. No primeiro caso, tem-se a modalidade factitiva, definida como uma estrutura modal constituída por dois enun- [página 50] ciados do fazer, com sujeitos diferentes, isto e, não há sincretismo actorial entre os sujeitos do fazer. Essa definição e insuficiente, pois, como se viu na descrição dos percursos narrativos, cada um desses fazeres representa, no fazer-fazer, todo um percurso e não um enunciado apenas. O fazer modalizador é, na verdade, o percurso do destinador-manipulador, e o fazer modalizado, o percurso do sujeito, organizações sintáticas bem mais complexas que a do enunciado. O modalizador realiza, portanto, seu percurso, visando ao estabelecimento do percurso do sujeito que, como é sabido, se decompõe em competência e performance. Para fazer-fazer, o modalizador precisa, em primeiro lugar, alterar a competência do sujeito e, só assim, criando a predisposição para o fazer, estabelece, indiretamente, o percurso do sujeito e modaliza a performance. A relação entre o primeiro fazer (o do manipulador) e o segundo (a performance do sujeito) é sempre indireta, mediatizada pela transformação da competência modal do sujeito. Pode-se dizer que, no fundo, o manipulador faz-ser, isto é, com sua ação, de natureza cognitiva, transforma o estado modal do sujeito do estado, transferindo-lhe, por doação, valores modais que o levam a fazer. Em ‘O vento no canavial’, o destinador (vento) faz o destinatário-sujeito (canavial/povo) fazer. O destinador, na verdade, atribui ao destinatário-sujeito os valores modais do querer e do poder-fazer, que o tornam competente para realizar o fazer- transformador: passar do estado de morte, continuidade e estaticidade ao de vida, ruptura e dinamicidade. O segundo tipo de modalidade do fazer, o ser-fazer, caracteriza a competência do sujeito. E preciso distinguir a constituição da competência, que depende da comunicação de valores modais pelo destinador ao destinatário-sujeito, da organização modal da competência, entendida como o “ser do fazer”, isto é, enunciados de estado que modalizam o fazer. A semiótica trabalha essencialmente com quatro modalidades, inventário estabelecido a partir da experiência de análise de discursos e das descrições de algumas línguas européias19: o querer, o dever, o poder e o saber. Tais valores modais determinam tanto o ser (enunciados de estado), quanto o fazer (enunciados de fazer) e interdefinem-se e classificam-se segundo diferentes critérios. Greimas (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 283; GREIMAS, 1976b, p. 100) organiza-as pelo modo de existência que as modalizações atribuem ao sujeito e pelos sincretismos actoriais dos sujeitos dos enunciados modal e descritivo, no quadro a seguir, que se aplica tanto à modalização do fazer quanto à do ser. [página 51] MODALIDADES virtualizantes atualizantes realizantes exotáxicas dever poder fazer endotáxicas querer saber ser Pode-se ilustrar o quadro com duas histórias de galinha, de que se reproduzem pequenos trechos: Mas eu, galinha, fêmea da espécie, posso estar satisfeita? Não posso. Todo dia pôr ovos, todo semestre chocar ovos, criar pintos, isso é vida? Mas agora a coisa vai mudar. Pode estar certo de que vou levar uma vida de galo, livre e feliz. Há já seis meses que não choco e há uma semana que não ponho ovo. A patroa se quiser que arranje outra para esses ofícios. Comigo, não, violão! (FERNANDES, 1975, p. 23) Todo ovo Mas fiquei que eu choco bloqueada me toco e agora de novo de noite Todo ovo só sonho é a cara gemada é a clara A escassa produção do vovô alarma o patrão. (BUARQUE, s.d.) Na fábula de Millôr, o sujeito galinha deve botar ovos. Trata-se de modalidade exotáxica, em que o sujeito modalizador, que impõe o dever, é a patroa, e o sujeito modalizado, a galinha, e de modalidade virtualizante, que dá à galinha o estatuto de sujeito. O sujeito galinha deve,, sabe e pode botar (saber inato, da natureza das galinhas, e poder recebido da patroa, que lhe assegura, com casa e comida, as condições para pôr ovos), mas não-quer botar. O querer é modalidade virtualizante, como o dever, e modalidade endotáxica: o sujeito modalizador e o modalizado estão sincretizados no mesmo ator “galinha”, O sujeito não age, portanto, por existir conflito entre as modalidades virtualizantes do querer e do dever- fazer. Na canção de Chico Buarque, o sujeito galinha também deve botar (imposição do patrão) e, ao contrário da galinha da fábula, quer botar, mas não-pode mais botar: o bloqueio psicológico da rotina ou a velhice modalizam-na para não-poder botar. Nesse caso, a galinha é sujeito virtual para o fazer de pôr ovos, mas não está atualizada, pois lhe falta o poder- fazer. Há incompatibilidade entre as modalidades virtualizantes do querer e do dever-fazer e a modalidade atualizante do não-poder-fazer, o que impede a ação do suspeito. [página 52] As modalidades virtualizantes instauram o sujeito e as atualizantes o qualificam para ação posterior. O sujeito definido pelo dever ou pelo querer-fazer é chamado sujeito virtual; se na organização modal de sua competência incluem-se também o saber e/ou o poder-fazer, tem-se um sujeito atualizado ou competente, qualificado para fazer. Só o fazer o torna sujeito realizado. Uma modalidade é chamada exotáxica ou extrínseca quando, na estrutura modal de que faz parte, o sujeito modalizador for diferente do sujeito modalizado, e endotáxica ou intrínseca quando os dois sujeitos estiverem sincretizados no mesmo ator. Decorrem daí os efeitos de sentido de “subjetividade” ou de “individualidade”, das modalidades endotáxicas, e de “objetividade” ou “sociabilidade”, das exotáxicas. O dever-fazer é, assim, um querer do destinador, e o querer-fazer, um dever autodestinado. As modalidades virtualizantes do querer-fazer e do dever-fazer dão ao sujeito as condições mínimas para o fazer e, projetadas no quadrado semiótico (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 117), apresentam-se como: texto da imagem: querer-fazer querer-não-fazer (vontade ou (abulia) volição) não-querer-não-fazer não-querer-fazer (vontade passiva) (má vontade ou nolição) dever-fazer dever-não-fazer (prescrição) (interdição) não-dever-não-fazer não-dever-fazer (permissividade) (facultatividade) Cada termo modal, articulado no quadrado, pode ser tratado como uma estrutura modal, definida sintaticamente pela relação entre enunciados, e como um valor modal, inscrito nos objetos e circulando entre sujeitos. As denominações, bastante precárias e arbitrárias, cumprem o papel de condensar os dois predicados em um valor modal e de facilitar seu emprego nas línguas naturais. Uma das diferenças entre as abordagens lógica e semiótica das modalidades reside no fato de que a semiótica define sintaticamente as denominações da lógica. As modalidades atualizantes do poder-fazer e do saber-fazer estruturam-se de forma taxionômica no quadrado semiótico como: texto da imagem: poder-fazer poder-não-fazer (liberdade) (independência) não-poder-não-fazer não-poder-fazer (obediência) (impotência) saber-fazer saber-não-fazer (competência) (habilidade) não-saber-não-fazer não-saber-fazer (inabilidade) (incompetência) [página 53] Teve-se dificuldade em denominar o saber-fazer, entendido como a competência cognitiva para organizar os programas narrativos, para buscar os valores desejados. Utilizou-se a denominação de competência, no seu sentido usual no português a competência em Chomsky, por exemplo —, como competência cognitiva e não no emprego semiótico de organização modal, de que o saber-fazer é apenas uma das modalidades. Há muitas afinidades entre as estruturas modais do poder-fazer e do dever-fazer, em geral não distinguidas na lógica. Relacionam-se elas, do ponto de vista semiótico, por implicação, pois a modalidade atualizante do poder pressupõe a modalidade virtualizante do dever. A obediência (não- poder-não-fazer), por exemplo, implica a prescrição (dever-fazer). Retomando, ainda nos domínios das modalizações do fazer, o ser- fazer e a organização modal sintagmática da competência do sujeito operador, vê-se que uma primeira composição é a da combinação de modalidades virtualizantes e atualizantes que, respectivamente, instauram e qualificam o sujeito. Esse esboço de organização, porém, não basta; é preciso ainda confrontar as várias modalidades e determinar suas compatibilidades e incompatibilidades. Extraíram-se do artigo de Greimas (1976b, p. 102-6), sobre as modalidades, alguns exemplos, apenas para melhor localizar a questão. O dever-fazer e o querer-fazer são compatíveis e constituem a obediência ativa (exemplo da galinha de Chico Buarque), enquanto o dever-fazer e o não-querer-fazer não se harmonizam e caracterizam a resistência passiva (exemplo da galinha de Millôr). Da mesma forma, há compatibilidade entre o dever-fazer e o saber-fazer e incompatibilidade entre o dever-fazer e o não-saber-fazer. As combinações compatíveis ou incompatíveis estabelecem-se entre duas ou mais modalidades e determinam tipos diferentes de narrativa, como nas histórias das galinhas. Um último ponto a ser lembrado, na modalização do fazer, é o fato de que o destinador de valores modais da competência do sujeito pode ser realizado por um único ator ou por vários deles. Os contos maravilhosos analisados por Propp têm um ator para o destinador das modalidades virtualizantes, em geral o rei, que atribui o querer ou o dever-fazer ao herói, manipulando-o por tentação ou intimidação, e outro para o destinador das modalidades virtualizantes, o doador do objeto mágico, que supre o sujeito do poder e/ou do saber-fazer, persuadindo-o por sedução ou provocação. [página 54] A integração da modalização do fazer na sintaxe narrativa, mais especificamente no percurso do destinador-manipulador, levou a se substituírem as casas vazias ou neutras da emissão e da recepção, na teoria da comunicação, por sujeitos dotados de “competência modal variável” (GREIMAS, 1983, p. 115). Abre-se caminho para o tratamento das relações intersubjetivas, contratuais ou polêmicas. A confrontação polêmico-contratual, uma das estruturas de base da organização do esquema narrativo, pode ser explicada de forma mais satisfatória, graças às organizações modais da competência. Observe-se ainda que a modalização do fazer, tal como foi considerada, incide especialmente sobre o sujeito do fazer. Passando à modalização do ser, importa saber que ela tem sido investigada de forma mais sistemática nos últimos anos e que seus resultados representam um avanço considerável da semiótica em uma direção que parecia não ser a sua, há até bem pouco tempo, qual seja a da abordagem das paixões. O risco do “psicologismo”, de se retomarem estudos de caracteres e de temperamentos, afastou sempre a lingüística e a semiótica desse ângulo da análise do discurso. O amadurecimento e a segurança, atualmente alcançados, permitiram à semiótica enveredar pelos meandros das paixões, sem medo de perder um espaço duramente alcançado ou de voltar caminho. A modalização do ser, ou do enunciado de estado, resulta da regência tanto por um enunciado do fazer — fazer-ser — quanto por um enunciado de estado — ser-ser. Se o fazer-ser, caracterizador da performance do sujeito, ocorre obrigatoriamente no percurso do sujeito, o ser-ser determina a sanção, no percurso do destinador-julgador. O ser que modaliza o ser é chamado modalidade veridictória e articula-se, como categoria modal, em /ser/ vs. /parecer/. verdade ser parecer o çã s ta ife an m ima segredo * nên cia mentira ** não-parecer não ser falsidade (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 488) (texto da imagem: *manifestação; **imanência) [página 55] Da modalização do enunciado de estado por um outro enunciado de estado resultam a verdade ou a falsidade das relações juntivas que ligam sujeito e objeto. As modalidades veridictórias aplicam-se à função-junção e determinam-lhe a vaidade. Substitui-se, dessa forma, o problema da verdade pelo da veridicção ou do dizer verdadeiro: um estado é considerado verdadeiro quando um outro sujeito, que não o modalizado, o diz verdadeiro. Para modalizar veridictoriamente o enunciado de estado parte-se da manifestação — parecer ou não-parecer — e infere-se a imanência — ser ou não-ser, O destinador-julgador, ao dizer verdadeiro ou falso ou mentiroso, realiza um fazer interpretativo. Um exemplo claro de fazer interpretativo encontra-se em ‘O vento no canavial’, O observador, instalado no poema, diz ser verdadeiro ou não o estado do canavial: “Não se vê no canavial/ nenhuma planta com nome, (...) Contudo há no canavial/ oculta fisionomia: (...)“. O observador determina veridictoriamente o enunciado de estado do canavial. Começa pela manifestação — o canavial parece estático, contínuo, morto — e chega à imanência — o canavial não é estático, contínuo, morto. Ou, o canavial não-parece dinâmico, descontínuo e vivo, mas o é (“oculta fisionomia”). O observador, corno destinador-julgador, interpreta o estado de estaticidade e morte do canavial como mentiroso (parece mas não é) e, a partir daí, como falso (não parece e não é), e seu estado de ruptura e vida como secreto (não parece e é) e, em seguida, como verdadeiro (parece e é). Este é o momento de retomar e explicar melhor o fazer interpretativo, a que se tem referido com freqüência neste trabalho. Conforme foi visto anteriormente, em situação de comunicação manipuladora, o destinatário é colocado em posição de falta de liberdade, ou seja, em posição de não-poder-não-aceitar o contrato proposto. Nesse caso, o destinador realiza um fazer persuasivo que tem sua resposta no fazer interpretativo do destinatário. O fazer persuasivo procura fazer-crer por meio do fazer-parecer-verdadeiro. Não se trata de produzir, de criar verdades, mas sim efeitos de verdade. O sujeito do fazer persuasivo quer levar seu destinatário a crer que o estado que apresenta parece e é verdadeiro (ou falso, etc.). Realiza, portanto, uma performance cognitiva. O fazer interpretativo é, também, um fazer cognitivo e consiste em modalizar um enunciado pelo parecer e pelo ser e em estabelecer a correlação entre os dois planos da manifestação e da imanência. Os enunciados já modalizados veridic- [página 56] toriamente — denominados verdadeiros, falsos, mentirosos ou secretos — são sobredeterminados pelas modalidades epistêmicas do crer, ou seja, sofrem julgamento epistêmico. As modalidades epistêmicas organizam-se em categoria modal representada no quadrado semiótico como: crer-ser crer-não-ser (certeza) (impossibilidade/exclusão) não-crer-não-ser não-crer-ser (probabilidade) (incerteza) O enunciado de estado interpretado é chamado, por conseguinte, certamente verdadeiro (crer-ser e parecer), provavelmente verdadeiro (não- crer-não-ser e não-crer-não-parecer), certamente falso (crer-não-ser e não- parecer), e assim por diante. A fábula de Millôr, “A galinha reivindicativa”, pode ilustrar o fazer interpretativo e a sobredeterminação epistêmica: A galinha reivindicativa ou The he’s liberation Em certo dia de data incerta, um galo velho e uma galinha nova encontraram-se no fundo de um quintal e, entre uma bicada e outra, trocaram impressões sobre como o mundo estava mudado. O galo, porém, fez questão de frisar que sempre vivera bem, tivera muitas galinhas em sua vida sentimental e agora, velho e cansado, esperava calmamente o fim de seus dias. — Ainda bem que você está satisfeito — disse a galinha. — E tem razão de estar, pois é galo. Mas eu, galinha, fêmea da espécie, posso estar satisfeita? Não posso. Todo dia pôr ovos, todo semestre chocar ovos, criar pintos, isso é vida? Mas agora a coisa vai mudar. Pode estar certo de que vou levar uma vida de galo, livre e feliz. Há já seis meses que não choco e há uma semana que não ponho ovo. A patroa se quiser que arranje outra para esses ofícios. Comigo, não, violão! O velho galo ia ponderar filosoficamente que galo é galo e galinha é galinha e que cada ser tem sua função específica na vida, quando a cozinheira, sorrateiramente, passou a mão no pescoço da doidivanas e saiu com ela esperneando, dizendo bem alto: “A patroa tem razão: galinha que não choca nem põe ovo só serve mesmo é pra panela”. MORAL: UM TRABALHO POR JORNADA MANTÉM A FACA AFASTADA. (FERNANDES, 1975, p. 23) [página 57] Na fábula, o sujeito galinha é manipulado pela patroa e por sua condição de “fêmea” para pôr ovos e chocá-los: ela deve botar (intimidação pressuposta no texto). A manipulação, porém, não é bem sucedida, pois a galinha crê que a obrigação e a punição, caso não bote, parecem, mas não são verdadeiras, ou seja, ela interpreta como mentiroso o estado apresentado pela patroa e pelo galo e crê na sua interpretação. A patroa, além do fazer persuasivo, realiza também, por sua vez, um fazer interpretativo. Ela julga o estado resultante da ação ou da falta de ação da galinha: “galinha que não choca nem põe ovos só serve mesmo é pra panela”. Comparando a atitude da galinha com aquilo que já conhece, a patroa interpreta a galinha como verdadeiramente improdutiva (parece e é) e nisso passa a acreditar. Como decorrência, o sujeito não cumpridor do contrato de “domesticidade da galinha” é sancionado negativamente: reconhecido como “má galinha” e punido com a panela. O julgamento ou ato epistêmico é uma transformação de um estado de crença em outro. Para haver transformação, o sujeito que interpreta e julga realiza uma operação de reconhecimento da verdade, que consiste em comparar e identificar o que lhe é apresentado pelo sujeito do fazer persuasivo com o que ele já sabe ou com aquilo em que crê. Trata-se de verificar a adequação do novo e desconhecido ao velho e já sabido, ou melhor, a um fragmento do universo cognitivo de quem julga. Tendo sido a adequação reconhecida ou rejeitada, o sujeito aceita ou recusa o que lhe é proposto. A verdade e a falsidade constituem efeitos de sentido do julgamento epistêmico: o crer precede o saber e pertencem, ambos, a “um único e mesmo universo cognitivo” (GREIMAS, 1983, p. 133). Interpretar, para o sujeito, é, por excelência, confrontar a proposta recebida com seu universo do saber e do crer, com os sistemas de valores que atribuem sentido aos fazeres e aos estados. Distinguir a adesão “fiduciária”, que envolve sobretudo o crer, da adesão “lógica”, que recorre ao saber, é separar tipos de racionalidade, que, no ato de interpretar, se misturam e se confundem na certeza ou na dúvida da verdade, na verdade ou na falsidade da certeza. Afirma-se, com isso, o caráter ideológico da interpretação, no seu “reconhecimento da verdade”. Se a modalização veridictória e a sobremodalização epistêmica explicam o ser do ser e julgam a verdade ou a falsidade das relações juntivas estabelecidas entre sujeitos e objetos, as modalidades do dever, querer, poder e saber regem também enunciados de estado. Enquanto a veridicção diz respeito à [página 58] relação de junção caracterizadora do enunciado, as modalidades do dever, querer, poder e saber incidem sobre o objeto-valor ou, mais especificamente, sobre o valor que nele se encontra investido20. Além disso, enquanto a modalização veridictória assegura a existência veridictória dos sujeitos, ditos verdadeiros, falsos, mentirosos ou secretos, a modalização do ser, pelo dever, querer, poder e saber, constitui a existência modal dos sujeitos, ao determinar a existência modal dos objetos. Competência modal e existência modal são complementares na definição do sujeito, respectivamente, do fazer e do estado. A modalização do ser é responsável, portanto, pela existência modal do sujeito do estado. Na fábula da galinha reivindicativa, a galinha define-se, do ponto de vista da competência modal, como sujeito que deve, sabe, pode, mas não quer botar ovos (dever, saber, poder e não-querer-fazer) e, quanto à existência modal, em relação ao objeto-valor “liberdade”, como sujeito que quer, mas não pode, nem sabe ser (querer-ser, não-poder-ser e não-saber-ser). No primeiro caso a galinha é sujeito do fazer, no segundo sujeito do estado. As quatro categorias modais que modificam os enunciados de estado estão abaixo representadas no quadrado semiótico (GREIMAS, 1979, p. 15): texto da imagem: querer-ser querer-não-ser (desejável) (prejudicial ou nocivo) não-querer-não-ser não-querer-ser (não prejudicial) (indesejável) dever-se dever-não-ser (indispensável) (irrealizável) não-dever-não-ser não-dever-ser (realizável) (fortuito, ocasional) poder-ser poder-não-ser (possível) (prescindível ou evitável) não-poder-não-ser não-poder-ser (imprescindível, (impossível) inevitável) saber-ser saber-não-ser (verdadeiro) (ilusório) não-saber-não-ser não-saber-ser (?) (?) As denominações, a que se aplicam as observações e restrições feitas às modalidades do fazer, foram escolhidas para caracterizar os objetos: um objeto-valor será, assim, desejável, indispensável, possível, verdadeiro, quando seu valor for determinado pelo querer, dever, poder e saber-ser. [página 59] Essas estruturas modais modificam quaisquer valores, descritivos e modais, pois são dispositivos permanentes e independentes de investimento semântico, além do mínimo semântico já determinado na conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas. Greimas (1979) reescreve o valor corno uma estrutura modal, formada por uma grandeza sêmica (traços semânticos resultantes da conversão de categorias semânticas fundamentais) e por uma organização de modalidades21 (procedentes da categoria tímico-fórica). No item Semântica narrativa, examinou-se a conversão da categoria tímico-fórica em categorias modais, mostrou-se que as categorias modais determinam, no nível narrativo, os traços semânticos descritivos e exemplificaram-se a conversão e a modalização em ‘O vento no canavial’ e em ‘Epílogo’. Um novo exemplo pode ser obtido na fábula de Millôr, ‘A Galinha dos ovos de ouro’. Antes de a galinha começar a pôr ovos de ouro, o sujeito homem tem sua existência modal definida pelo querer-ser e pelo nâo-poder-ser, que modificam os valores descritivos dinheiro e prestígio. O valor, assim caracterizado — estrutura modal que determina a grandeza sêmica —‘ inscreve-se em objetos que se tornam desejáveis e impossíveis. A existência modal do sujeito é passível de alteração, a qualquer momento, por meio de transformações operadas por um sujeito do fazer. Na fábula de Millôr, a galinha é o sujeito do fazer que altera a existência modal do sujeito de estado homem, quando começa a botar ovos de ouro. O objeto-valor passa de desejável e impossível a desejável e possível. A existência modal, da mesma forma que a competência modal, resulta, portanto, de um fazer, executado por um sujeito transformador. Atentando-se para os efeitos de sentido dos dispositivos modais da existência, é possível reconhecê-los como “amor”, “medo” ou “ambição”, já nos domínios da paixão, assunto do próximo item. Paixões e apaixonados22 A semiótica, no exame das estruturas narrativas, partiu da ação, relação de produção e de transformação do sujeito com o objeto, e chegou à manipulação, relação intersubjetiva de comunicação entre o destinador e o destinatário. Quando considerou que a comunicação não se reduzia ao fazer informativo do destinador e ao fazer receptivo do destinatário, mas incluía também, e sobretudo, o fazer persuasivo do destinador e o fazer interpretativo do destinatário, enveredou a semiótica pelo caminho da modalização, já antes pressentida na [página 60] definição da competência do sujeito operador. Natural, portanto, que as modalidades que se aplicam ao fazer e os enunciados modais que regem enunciados do fazer tenham sido os primeiros a serem examinados. Nada mais previsível que o passo seguinte tenha sido a abordagem da modalização do ser, que resultou na semiótica das paixões. As paixões, neste trabalho, devem, por conseguinte, ser entendidas como efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito do estado. Dois caminhos apresentam-se para a colocação do problema: o primeiro estabelece a relação entre a organização modal narrativo- discursiva e as categorias semânticas da estrutura fundamental que estão por detrás das paixões, ou seja, preocupa-se com a relação vertical e de conversão entre dois níveis do percurso gerativo, para explicitar, de uma certa forma, a “origem” gerativa das paixões; o segundo tenta determinar, horizontalmente, as relações sintagmáticas modais que caracterizam as paixões, a partir de configurações discursivas, e, também, suas relações paradigmáticas, que constituem “sistemas de paixões”. As relações verticais foram abordadas em vários momentos deste capítulo, no exame das conversões das estruturas fundamentais em narrativas, mais especificamente na conversão da categoria tímico-fórica em categoria modal, e na descrição das organizações modais que caracterizam a existência do sujeito do estado. Julgando que a questão da “origem” gerativa das modalidades e, indiretamente, das paixões, se não foi resolvida, foi ao menos discutida, com as possibilidades teóricas do momento, passa-se à descrição das organizações sintagmáticas e sintáticas passionais e às tentativas de denominação de tais estruturas e de estabelecimento das relações paradigmáticas do sistema das paixões. Para abordar as configurações passionais, a semiótica levantou, inicialmente, os estudos existentes, sobretudo na lógica e na psicanálise, e constatou terem todos preocupações taxionômicas. Tomou, assim, o caminho inverso e procurou, em primeiro lugar, o processo. Na prática, tentou-se dar às paixões-lexemas e a suas expressões discursivas definições sintáticas. Parte-se, portanto, neste trabalho, de análises de paixões lexicalizadas — da cólera (GREIMAS, l98lb), do desespero (FONTANILLE, 1980), da indiferença (MARSCIANI, 1984). A descrição das paixões se faz, quase exclusivamente, em termos de sintaxe modal, ou seja, de relações modais e de suas combinações sintagmáticas. Assim, em ‘Epílogo’, de Ban- [página 61] deira, a organização sintagmática de /querer-ser, não-crer-ser e saber-não-poder- ser/ é uma estrutura patêmica ou passional, de caráter modal, que produz o efeito de sentido ‘afetivo’ ou “passional” de amargura. Da mesma forma, no poema, a combinação das modalidades de /querer-ser, crer-ser, saber- poder-ser e querer-fazer (bem)/ causa o efeito passional de amor. Para explicar as paixões, é preciso, portanto, recorrer às relações actanciais, aos programas e percursos narrativos. Só assim se podem determinar o sujeito que quer ser, o objeto de seu desejo, o sujeito em que outro sujeito crê, o destinador a quem o sujeito passional quer fazer bem. Como se sabe, as relações entre actantes são de dois tipos, relações transitivas, que ligam o sujeito ao objeto, e comunicativas, que ocorrem entre o destinador e o destinatário. O sujeito do estado é o lugar privilegiado da confluência das duas relações: enquanto sujeito, está em conjunção ou em disjunção com o objeto-valor, enquanto destinatário, papel assumido pelo fato de a junção resultar de um fazer comunicativo, relaciona-se com o destinador. O sujeito do estado, por conseguinte, mantém laços afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com o objeto, a que está relacionado por conjunção ou por disjunção. O estudo das paixões reabilita, no seio da semiótica, o sujeito do estado, posto de lado durante bom tempo. Há três formas de definição da existência do sujeito: existência semiótica, determinada pela relação sintática entre sujeito e objeto (definição topológica de narrativa como lugar de circulação de valores); existência semântica, caracterizada pela relação do sujeito com o valor (narrativa como sintaxe de comunicação entre sujeitos); existência modal, em que o sujeito se define pela modalização do seu ser e assume papéis patêmicos (narrativa como sintaxe modal). Os “estados de alma” estão relacionados à existência modal do sujeito, ou seja, o sujeito segue um percurso, entendido como uma sucessão de estados passionais, tensos- disfóricos ou relaxados-eufóricos. Distinguem-se, em primeiro lugar, paixões simples ou paixões de objetos, resultantes de um arranjo modal da relação sujeito-objeto, de paixões complexas, em que várias organizações de modalidades constituem, na instância do discurso, uma configuração patêmica e desenvolvem percursos. A regra é a complexidade narrativa e percursos passionais complexos. As paixões simples decorrem da modalização pelo /querer-ser/. [página 62] /não-querer- /querer ser/ /querer-não-ser/ /não-querer-ser/ não-ser/ desejo avareza desprendimento repulsa anseio mesquinhez generosidade medo ambição usura liberalidade aversão cupidez sovinice prodigalidade desinteresse avidez curiosidade Percebem-se, pelas definições analisadas do Novo Dicionário Aurélio, mais dois critérios de diferenciação das paixões de objeto: a maior ou menor intensidade do querer — desejo ardente, sôfrego, veemente, excessivo, violento, irreprimível — e os tipos de valores desejados — pragmático descritivo na cobiça, na cupidez e na avareza, descritivo e modal na ambição, não marcado na inveja ou no anseio, cognitivo na curiosidade. Outros elementos de classificação das paixões simples, mais propriamente narrativos, podem ser lembrados: explicitação do desdobramento polêmico — na inveja, o /querer-ser/ implica querer que o outro não seja, isto é, os valores desejados estão em conjunção com outro sujeito —, intenções de conservar o estado de conjunção, como na avareza, ou de transformar a disjunção em conjunção, como na ambição. Muitas vezes, no português, as oposições encontradas entre as paixões anulam-se e certos termos empregam-se, indiferentemente, em uma ou outra situação passional: a esganação é sinônimo tanto de avareza quanto de avidez. As paixões complexas têm um estado inicial que Greimas (1981b) denomina espera. A espera pode ser simples e fiduciária. Na espera simples o sujeito deseja estar em conjunção ou em disjunção com um objeto-valor, sem, no entanto, nada fazer para isso. Trata-se de uma paixão de “ser acionado”, distinta das paixões “de ação”, como a avareza, por exemplo (GREIMAS, 1981b, p. 11). Na espera, o sujeito do estado deseja que a conjunção se realize, mas não quer ser o sujeito do fazer responsável pela transformação. Pode-se representar a espera pelo programa narrativo abaixo: S1 querer [S2 → (S1 ⋂ Ov)] S1: sujeito do estado (que sofre a paixão) S2: sujeito do fazer [página 63] Na espera fiduciária, o sujeito do estado mantém com o sujeito do fazer urna relação fundamentada na confiança. O sujeito do estado pensa poder contar com o sujeito do fazer para realizar suas esperanças ou direitos, ou seja, atribui ao sujeito do fazer um /dever-fazer/. Não se trata, na maior parte das vezes, de contrato verdadeiro e sim de contrato de confiança, um pseudocontrato ou contrato imaginário. Dessa forma, o sujeito do fazer não se sente obrigado a fazer, já que sua modalização deôntica não passa de produto da imaginação do sujeito do estado. No ensaio citado, Greimas, com muita felicidade, denominou o fazer cognitivo contratual cio sujeito de estado construção de simulacros. Os simulacros são objetos imaginários, que não têm fundamento intersubjetivo, mas, mesmo assim, determinam as relações intersubjetivas. O sujeito do estado estabelece urna relação fiduciária — de confiança, de /crer/ — com o simulacro que constrói. A espera fiduciária acrescenta ao programa da espera simples o programa narrativo abaixo representado: S1 crer [S2 dever → (S1 ⋂ Ov)] A contrapartida da espera são a satisfação e a confiança ou a insatisfação e a decepção, que decorrem da conjunção ou da disjunção do sujeito com o objeto-valor desejado e da conservação ou da perda da confiança investida no contrato simulado. Reservam-se os nomes satisfação e insatisfação para os efeitos de sentido de bem-estar ou de mal- estar, resultantes da relação com o objeto-valor, e empregam-se confiança e decepção para os casos de manutenção ou de ruptura das relações fiduciárias entre sujeitos. A espera é um estado tenso-disfórico de disjunção; a satisfação e a confiança, estados relaxados e eufóricos de conjunção; a insatisfação e a decepção, estados intensos e não-eufóricos de não-conjunção. E possível prever também estados de espera relaxada. A esperança é um dos efeitos de sentido da espera relaxada; a insegurança, que gera a aflição, decorre da espera tensa. aflição e insegurança esperança e segurança satisfação e confiança (espera tensa) (espera paciente) disjunção e tensão não-disjunção e tensão conjunção e relaxamento querer-ser querer-ser querer-ser crer-não-ser não-crer-não-ser ser crer-ser saber-poder-não-ser saber-não-poder-não-ser saber-poder-ser [página 64] satisfação e confiança insatisfação e decepção aflição e insegurança da falta (espera relaxada) conjunção e relaxamento não-conjunção e intensão disjunção e tenção querer-ser querer-ser querer-ser crer-não-ser não-crer-não-ser não-ser crer-ser saber-poder-não-ser saber-não-poder-não-ser saber-poder-ser A insatisfação e a decepção podem ser determinadas aspectualmente pela duração e prolongar-se em novos efeitos passionais: a mágoa que perdura ou a resignação, por exemplo. Outra possibilidade é a da insatisfação e da decepção conduzirem ao sentimento de falta, definido pelo /querer-ser/ em conflito com o /saber-não-ser/ e com o /crer-não-ser/ e característico da crise de confiança. Os efeitos passionais da insatisfação e da decepção são interrompidos e seguidos pela falta que dá lugar a um programa de liquidação da falta. A insatisfação e a decepção assumem o papel de termos intermediários entre o estado relaxado de crença no contrato imaginado e a situação tensa final de falta. Há dois tipos de falta, conforme resulte da insatisfação ou da decepção (que pressupõe a insatisfação), quais sejam, a falta de objeto- valor e a falta fiduciária ou falta de confiança. A liquidação da falta toma, portanto, duas direções, na tentativa de suprir a falta de objeto ou de resolver a crise de confiança, e produz, nesses percursos, novos efeitos passionais. Passa-se, agora, a denominar e explicar as configurações passionais previstas a partir do estado inicial da espera: a) a insatisfação e/ou a decepção que não conduzem, de forma obrigatória, à liquidação da falta e que se prolongam ou não, durativamente, definem três grupos de paixões, exemplificadas respectivamente por amargura ou mágoa, decepção ou desilusão e frustração ou tristeza; b) a satisfação e/ou a confiança determinam duas classes de efeitos passionais, lexicalizados como esperança ou crença e alegria ou felicidade; c) a insatisfação e a decepção que geram um programa narrativo de liquidação da falta caracterizam, por exemplo, paixões de cólera ou rancor. O grupo a engloba paixões, lexicalizadas, que não se resolvem na falta a ser liquidada, mas se prolongam temporalmente. Seus três subtipos correspondem: um, aos efeitos passionais da insatisfação e da decepção — amargura, azedume, acrimônia, desagrado, amargor, desprazer; outro, aos da decepção apenas — desilusão, decepção, ressentimento, desen- [página 65] gano, desapontamento; e o último, aos da insatisfação sozinha — frustração, tristeza. O grupo b contém os efeitos passionais de satisfação e confiança. A subdivisão no grupo b faz-se entre as paixões de confiança — crença, esperança — e da satisfação — alegria, felicidade. Não se descobriram, no português, paixões decorrentes, simultaneamente, da satisfação e da confiança. Trata-se de problema de lexicalização, pois, do ponto de vista da estrutura das paixões, nada impede o surgimento de paixões em que se combinem a confiança e a satisfação. As paixões do grupo a são intensivas e podem ser chamadas paixões de ausência (ZILBERBERG, 1981, p. 25-6), diferentes das paixões tensas de falta do grupo c. A falta resolve-se de duas formas diferentes: pela reparação, graças a um sujeito do fazer instaurado, em geral em sincretismo com o sujeito que sofre a falta e a quem cabe realizar um programa para liquidá-la, ou pela resignação e conformação. O programa reparador liquida ora a falta de objeto — efetuam-se novas tentativas de conjunção — ora a falta de confiança. A falta de confiança faz-se acompanhar de malevolência, assim como a confiança é seguida de benevolência (GREIMAS, 1981b, p. 18). A malevolência e a benevolência interpretam, para Greimas, a hostilidade e a atração de paixões definidas pelo /querer-fazer/, bem ou mal, a alguém. O /querer-fazer/ é a modalização que dá início à competência do sujeito reparador da falta. A instauração desse sujeito é um dos três caminhos para o relaxamento da situação tensa de falta fiduciária. Os outros dois são voltar a acreditar — /crer-não-ser → não-crer-não-ser → crer-ser/ — ou prolongar a aflição na “paixão” distensa da resignação. O /querer-fazer/, que instala o sujeito, define-se pela intencionalidade, ou seja, dirige-se para outro sujeito, considerado responsável pela falta. O sujeito que desperta a hostilidade do sujeito do estado pode, segundo Greimas, no ensaio citado, ser entendido como destinador ou como anti-sujeito. “— o sujeito que provocou o ‘sentimento de malevolência’ pode ser o actante Destinador: o querer-fazer do sujeito se integrará então no PN de revolta, comportando a rejeição do Destinador e a busca de uma nova axiologia. — o sujeito que inspirou a malevolência pode ser o actante Anti-sujeito: o querer-fazer servirá, então, de ponto de partida ao PN de vingança” (GREIMAS, 1981b, p. 19). [página 66] As relações entre sujeito e anti-sujeito e entre destinador destinatário-sujeito são as duas posições de conflito possíveis na organização narrativa. Nesse contexto, entende-se a vingança como o programa de liquidação da falta causada, na perspectiva do sujeito, pelo anti-sujeito. O sujeito e o anti-sujeito, como é sabido, confrontam-se na narrativa, pois estão em busca dos mesmos valores. Na vingança, o sujeito “ofendido” assume o papel de destinador-julgador e sanciona negativamente o anti- sujeito que não cumpriu o esperado ou que exerceu um fazer contrário e prejudicial aos seus projetos. Já na revolta, programa de reparação da falta provocada pelo destinador, o sujeito do estado exerce um fazer prejudicial ao destinador que faltou à palavra dada, mesmo que se trate de compromisso imaginário. O sujeito coloca-se corno destinatário que cumpriu sua parte no contrato e que espera do destinador a sanção positiva que lhe e devida, sob a forma de reconhecimento e de recompensa. Quando o destinador não o sanciona ou, além do mais, o julga negativamente, o sujeito se decepciona, se torna inseguro e aflito e se revolta23. O desejo de vingança ou de revolta, causado pela violência da ofensa, representa-se, na estrutura modal, pelo /poder-fazer/ (GREIMAS, 1981b, p. 21). O sujeito do estado torna-se, portanto, sujeito competente para o fazer, isto é, instaurado pelo /querer-fazer/ e atualizado pelo /poder- fazer/. O querer fazer mal a alguém tem, assim, a possibilidade (poder- fazer) de transformar-se em vingança ou revolta. O /poder-fazer/ e a forma de o sujeito ofendido auto-afirmar-se, graças à possibilidade de destruição do ofensor. Os termos que exprimem as paixões de malquerença organizam-se em dois grupos distintos: as de malquerença propriamente dita, isto é, paixões definidas pelo /querer-fazer/, e as que marcam o sentimento de honra ofendida, instalando também o /poder-fazer/. A hostilidade, por exemplo, caracteriza-se pelo /querer-fazer/, já o ódio, além do /querer- fazer/, conta, em sua definição, com o /poder-fazer/ do desejo de vingança ou de revolta. Assim como a insatisfação e a decepção levam à malquerença da hostilidade e da agressividade, a satisfação e a confiança conduzem à benquerença da afeição. A benevolência, interpretada como /querer-fazer/ bem ao outro, tem também a possibilidade teórica de ser definida pelo /poder-fazer/, que torna o sujeito competente para o fazer da recompensa. No [página 67] entanto, ao menos pelas definições de dicionário, não há paixões “benevolentes” do poder-fazer/. Enquanto o ódio é entendido como paixão que impele a causar ou desejar mal a alguém e a ira como desejo de vingança, o amor caracteriza-se como sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem ou de alguma coisa. Entende-se por isso que, embora seja “ponto de honra” recompensar alguém que corresponde às expectativas, essa questão não tem a mesma força, entre as relações intersubjetivas, que a punição do ofensor. Os arranjos sintagmáticos que definem as paixões podem ser apreendidos como organizações paradigmáticas. Retornam-se, no esquema adiante, as relações básicas de uma taxionomia das paixões, tal qual foram aqui examinadas. Diferenciam-se, num primeiro momento, paixões simples de paixões complexas. As paixões simples definem-se pela relação do sujeito com o objeto e, ao contrário das complexas, não pressupõem um percurso modal e passional anterior. a) paixão simples vs. paixões complexas [querer-ser] [querer-ser + ...] ex.: avareza, ambição. ex.: cólera, ressen- timento, vingança, alívio O segundo critério é o tipo de sujeito, que distingue paixões de ação de paixões de ser acionado. Nas primeiras, o sujeito faz alguma coisa para estar em conjunção com o objeto-valor desejado; nas demais, espera que outro aja em seu lugar, a partir de um contrato. b) paixões de ação vs. Paixões de ser acionado S1 querer [S1 → (S1 ⋂ Ov)] S1 querer [S2 → (S1 ⋂ Ov)] ex.: avareza, vingança ex.: espera, decepção O terceiro elemento de classificação, que não foi, praticamente, examinado neste trabalho, é a oposição entre as modalidades virtualizantes do querer e do dever-ser. Descreveram-se, em princípio, apenas as paixões de querer-ser. c) paixões de [querer-ser] vs. Paixões de [dever-ser] ex.: cólera, avareza ex.: amor, ódio (na tipologia de Parret, 1982) Os demais critérios classificatórios aplicam-se apenas às paixões complexas e definem as etapas do percurso do sujeito como estados passionais. Organizam-se de forma hierárquica, embora haja muitas vezes superposição de critérios, caracterizando a recursividade dos percursos. [página 68] PAIXÕES COMPLEXAS Paixões de falta Outras paixões lato sensu complexas Paixões Paixões de Paixões de liquidação de Paixões fiduciárias de falta falta (fiduciária) objeto sirictu sensu ex.: alegria, satisfação, tristeza Paixões Paixões Paixões de confiança fiduciárias de objeto ex.: confiança Paixões ex.: insegurança ex.: aflição decepção de benque- ansiedade desilusão rença ex.: amor Paixões paixões De virtualiza- de reali- ção e de atuali- zação zação ex.: revolta, vingança Paixões Paixões de /querer-fazer/ /poder-fazer/ ex.: antipatia ex.: cólera, rancor A classificação de paixões proposta obedeceu a critérios apenas de organização modal que, conforme foi visto, define estados passionais. A paixão do rancor, por exemplo, determina vários estados passionais do sujeito: estado de espera e de confiança, estado de decepção, estado de falta ou de insegurança e aflição, estado de malevolência e estado de rancor. O rancor permite ainda a passagem ao fazer reparador, mas pode também ser sopitado ou reprimido. O percurso é marcado por variações tensivas: a espera é relaxada, a decepção intensa, a falta tensa, em seguida há a distensão da constituição da competência e o relaxamento final do fazer. No estágio atual das pesquisas sobre as paixões, chegou-se já a alguns fatos imprescindíveis para se fazer a revisão da sintaxe narrativa como uma sintaxe modal e garantir à semântica seu caráter passional. [página 69] NOTAS 1. Outras gramáticas de casos foram desenvolvidas, como a teoria localística de Anderson (1971), sem que se alterem, entretanto, os princípios básicos aqui discutidos. 2. Outra possibilidade seria a gramática ou lingüística textual, sobretudo a ala que conta com pesquisadores como Janos S. Petöfi, Jens Ihwe e Teun A. van Dijk e que sustenta a tese de que a coerência do texto não se define apenas no nível superficial das concatenações frásicas e da organização argumentativa, mas também no nível macroestrutural ou narrativo subjacente. 3. Não se trata de generalização apressada, comumente entendida como a utilização inconseqüente de princípios e métodos, desenvolvidos com vistas a análise de um objeto, a outros, para os quais são inadequados. A extensão da analise narrativa a outros domínios só se fez graças a investigações serias no campo da manipulação, da modalização e das estruturas passionais, que atribuíram, enfim, á sintaxe narrativa caráter de sintaxe modal. 4. Tivemos acesso à semiótica da Escola de Tartu (onde, na verdade, trabalha Lotman), graças a três coletâneas de textos traduzidos para o português, o italiano e o francês. A primeira foi organizada por Schnaiderman e reúne dezenove textos variados de semiótica da cultura, da literatura, do cinema e do teatro. A publicação italiana, sob a responsabilidade de Faccani e Eco, contém textos de semiótica da literatura, das artes figurativas e da cultura, alem de trabalhos sobre outros sistemas de significação, como a cartomancia, a etiqueta, a musica, a gestualidade e o código de trânsito. Finalmente, para a edição francesa, os textos — de semiótica geral, da cultura, das artes — foram escolhidos e apresentados por Lotman e Uspenski. 5. Para a apresentação da teoria sêmio-lingüística recorreu-se a textos de semioticistas diversos e, com mais freqüência, ao Dicionário de semiótica de Greimas e Courtés. 6. No dizer de outro poeta, “Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres” (BANDEIRA, 1961, p. 184). 7. Sobre o quadrado semiótico e suas relações com o quadrado lógico de Apuleio ou com o hexágono de Blanché, assim como sua filiação ao enfoque lingüístico de Brøndal, a teoria do mito de Lévi-Strauss ou as oposições binárias fonológicas de Jakobson, vejam-se Nef (1976) e Landowski (1981 b). 8. O quadrado das modalidades veridictórias pode ser encontrado neste mesmo capítulo, no item Modalização e modalidades 9. Hjelmslev emprega o termo conversão para as transformações não- diacrônicas. 10. Sobre aspectualização, veja-se o item Temporalização e espacialização, no capítulo 2. 11. Mais bem analisado, o PN1 revela-se um programa de competência: o sujeito do fazer “galinha” transforma a competência do sujeito “homem” ao lhe atribuir, por meio dos ovos de ouro, o poder-fazer, isto é, o poder adquirir dinheiro e prestigio. O mesmo acontece com o PN2. 12. Para actante e ator, veja-se o item Tematização e figurativização, no capítulo 2. [página 70] 13. Para unia primeira tipologia das figuras de manipulação ver, principalmente, o verbete sobre manipulação no Dicionário de semiótica (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 269-71) e nosso artigo publicado em Le Bulletin n. 1 (BARROS, 1977). 14. Para Greimas, trata-se, mais especificamente, de outro código de honra (1983, p. 219). 15. Para abordar a sanção, além de utilizar OS textos de semiótica já citados, recorreu-se a um ensaio de Greimas sobre o saber e o crer (1983, p. 1 15-33) e a um trabalho de Panier (1982, p. 12-24), em que o autor procura situar a sanção nu conjunto ria teoria sêmio- narrativa. 16. Para ilustrar os conceitos da semântica narrativa serão usados o texto de Cabral ‘O vento no canavial’, a que já se recorreu em outros momentos, e o poema Epílogo’, de Bandeira. 17. Ver, sobre o assunto, os trabalhos de Coquet e Parret e a revista Langages 43, que reuniu lógicos, lingüistas e semioticistas em torno da questão das modalidades. 18. Para esta breve exposição a respeito de modalização e modalidades, empregaram-se, sobretudo, o número já citado de Langages, inteiramente dedicado ao assunto, o ensaio de Greimas (1979) sobre a modalização do ser, o trabalho de Zilberberg (1981) a respeito das modalidades tensivas e os textos de Parret (1976, 1982) dedicados às modalidades e às paixões. 19. Zilberberg (1981, J).33) critica, com razão, o fato de a semiótica trabalhar com um inventário de modalidades e não propriamente com uma paradigmática das modalidades. 20. Há três tipos diferentes de modalização, quanto ao local de incidência no enunciado: modalização do enunciado, que recai sobre o predicado, como nas modalizações veridictórias e epistêmicas; modalização do sujeito do fazer, no caso do querer, dever, poder e saber-fazer; modalização do objeto, que repercute no sujeito do estado e se representa pelo querer, dever, poder e saber-ser. 21. As modalizações do ser combinam-se, como as do fazer, e obedecem também a critérios de compatibilidade e incompatibilidade. 22. Este item foi bastante reduzido na passagem da tese ao livro. Remetam-se, portanto, à tese os que se interessarem pela explicação detalhada das relações sintagmáticas modais que caracterizam as diferentes paixões. 23. Fontanille (1980) afirma que a revolta decorre do desespero e que o sujeito desesperado rejeita o destinador, mas não os valores que o destinador representa. O desespero e a revolta surgem do conflito entre a perda de confiança no outro e em si mesmo e a confiança, reiterada, em “alguma coisa de transcendente”. Exemplifica com a análise cio texto de Aragon, em que os soldados de Luís XVIII, abandonados pelo rei na fronteira da Bélgica, mantêm sua adesão aos valores monárquicos, embora não mais aceitem os representantes, de fato e de direito, da monarquia. [página 71] II — DISCURSO: A ASSUNÇÃO DE VALORES CONSIDERAÇÕES INICIAIS Neste capítulo abordam-se os vários aspectos da sintaxe e da semântica discursivas, em nível imediatamente superior ao das estruturas narrativas examinadas. Atribuiu-se especial importância às estruturas discursivas por serem consideradas o lugar, por excelência, de desvelamento da enunciação e de manifestação dos valores sobre os quais está assentado o texto. A análise discursiva opera sobre os mesmos elementos que a análise narrativa, mas retoma aspectos que foram deixados de lado: as projeções da enunciação no enunciado, os recursos de persuasão utilizados pelo enunciador para manipular o enunciatário, a cobertura figurativa dos conteúdos narrativos abstratos. A mediação entre estruturas narrativas e estruturas discursivas é tarefa da enunciação: os esquemas narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação, que os converte em discurso e nele deixa “marcas”. Dessa forma, o exame da sintaxe e da semântica do discurso permite reconstruir e recuperar a instância da enunciação, sempre pressuposta. A semiótica, como se espera ter mostrado no capítulo anterior, desenvolveu bastante bem a sintaxe e a semântica narrativa, muito comumente rotuladas, sozinhas, de teoria semiótica. Os exercícios de análise da instância narrativa multiplicam-se e a recategorização da sintaxe narrativa, como uma sintaxe modal, e da semântica, como organização passional, rende cada vez mais frutos. As estruturas discursivas, porém, [página 72] foram pouco ou mal tratadas pela semiótica, que a elas, no entanto, tem dedicado seus mais recentes esforços. Há, assim, algumas direções indicadas, alguns caminhos iniciados, alguns percursos inacabados, que é preciso seguir, percorrer e completar. Explica-se, dessa forma, a exposição menos segura, e quem sabe até mais criativa, que se fará da instância discursiva, e também o fato de procurar em outras propostas teóricas ou em práticas experimentadas subsídios para explicar as organizações sintáticas e semânticas do discurso. Para a elaboração da sintaxe, pensou-se nas diferentes colocações da semântica da enunciação — da argumentação, da pressuposição, dos atos de fala —‘ na teoria do texto literário, principalmente quando aprecia questões de foco narrativo, na estilística e na retórica, pelo tratamento dado às formas da composição ou do discurso e pela preocupação com os procedimentos de argumentação e persuasão. Para a semântica, pretende-se examinar, ou, ao menos, lembrar e sugerir, a estilística, a retórica e a poética, além das teorias semânticas desenvolvidas pela lingüística. SINTAXE DISCURSIVA Serão analisados dois aspectos da sintaxe discursiva: o das projeções da instância da enunciação no discurso-enunciado e o das relações, sobretudo argumentativas, entre enunciador e enunciatário. A separação dos dois tipos de mecanismos sintáticos não pode ser entendida como ausência de ligação entre eles, pois, na verdade, confundem-se muitas vezes e as diferentes projeções da enunciação explicam-se, em última instância, como procedimentos utilizados pelo enunciador para levar o enunciatário a crer e a fazer. Projeções da enunciação Serão examinados, em primeiro lugar, os procedimentos de sintaxe discursiva desenvolvidos pela semiótica e, em seguida, alguns elementos dos estudos literários do foco narrativo. A intenção é determinar as relações entre enunciação e discurso, distinguir as diversas formas de projeção da enunciação — actancial, temporal e espacial — e os mecanismos de delegação do saber, e relacionar o discurso, a partir daí, com as condições de sua produção. [página 73] Desembreagem e embreagem actancial e teorias do foco narrativo A enumeração produz o discurso e, ao mesmo tempo, instaura o sujeito da enunciação. O lugar da enunciação (eu/aqui/agora), segundo Greimas e Courtés (s.d., p. 147), é semióticamente vazio e semanticamente cheio, como um depósito de sentido. A projeção, para fora dessa instância, dos actantes do discurso-enunciado e de suas coordenadas espácio- temporais instaura o discurso e constitui o sujeito da enunciação pelo que ele não é. A operação e os procedimentos pelos quais a enunciação realiza a projeção mencionada denominam-se desembreagem. Com a desembreagem criam-se, ao mesmo tempo, o sujeito, o tempo e o espaço da enunciação e a representação actancial/actorial, espacial e temporal do enunciado. A enunciação explora, na desembreagem, as categorias da pessoa, do espaço e do tempo. A desembreagem actancial é, assim, a projeção de um não-eu do enunciado, distinto do eu da enunciação. Observe- se que o sujeito da enunciação, instaurado por tais procedimentos, está sempre implícito e pressuposto, nunca manifestado, no discurso-enunciado. Deve-se evitar confundir a enunciação pressuposta com a enunciação-enunciada24, seu simulacro e um tipo de enunciado. A categoria da pessoa, explorada na desembreagem actancial, articula-se, segundo Benveniste (1966), em /pessoa (eu-tu)/ vs. /não-pessoa (ele)/. Obtêm-se, assim, enunciados que resultam da projeção do eu/tu e enunciados decorrentes da projeção do ele. O eu e o ele projetados são actantes e atores do enunciado, distintos dos da enunciação. Fala-se, para os enunciados com eu, em desembreagem enunciativa, para os enunciados com ele, em desembreagem enunciativa e, dessas diferentes desembreagens, surgem, respectivamente, a enunciação-enunciada e o enunciado propriamente dito, os dois grandes tipos de unidades discursivas. As duas histórias de galinhas, que se tem usado como exemplo, empregam recursos diferentes de desembreagem. Em certo dia de data incerta, um galo velho e uma galinha nova encontraram-se no fundo de um quintal... (FERNANDES, 1975). Todo ovo que eu choco me toco de novo (BUARQUE, s.d.) [página 74] Na fábula de Millôr, tem-se um enunciado, resultante de desembreagem enunciva, o poema de Chico Buarque é uma enunciação- enunciada, que decorre de desembreagem enunciativa. Na enunciação-enunciada, o sujeito que diz eu denomina-se narrador, e o tu, por ele instalado, narratário, simulacros discursivos do enunciador e do enunciatário implícitos. Os discursos em primeira pessoa servem de exemplo de enunciação-enunciada e são, em geral, considerados “subjetivos”. Já o enunciado propriamente dito caracteriza os discursos em terceira pessoa, julgados “objetivos”. A subjetividade e a objetividade entendem-se, no sentido que lhes atribui Benveniste, como efeitos criados pelas diferentes relações que os tipos de enunciado mantêm com a enunciação. O enunciado propriamente dito liga-se metonimicamente à enunciação, em relação de parte a todo. A enunciação-enunciada, além dos laços metonímicos, estabelece também ligação metafórica que se funda na similaridade, na equivalência que o simulacro mantém com a enunciação pressuposta. Além disso, são ainda possíveis desembreagens de segundo e de terceiro graus, que instalam os interlocutores do diálogo. O esquema abaixo representa as várias relações: IMPLÍCITOS (ENUNCIAÇÃO PRESSUPOSTA) DESEMB. DE 1º GRAU-ATORES EXPLÍCITAMENTE INSTALADOS DESEMB. DE 2º GRAU ENUNCIADOR NARRADOR INTERLUTOR OBJ ETO INTERLOCUTÁRIO NARRATÁRIO ENUNCIATÁRIO [página 75] A crônica ‘Glória’ de Drummond (ANDRADE, 1 97, p. 324) ilustra bem as desembreagens internas. Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. [...] Ai eles me viram chorando, ficaram com pena de mim, um barbudo que passava disse assim pro bigodão: Paga a ela, Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel passado em três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O senhor me desculpe, mas eu não sei escrever, a cabeça não dá. Então nada feito outra vez, o bigodão respondeu. [...] Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esses 50 mangos? E daí? respondi pra ele [...] A mãe é a narradora que instala “o senhor” como narratário e que cede a palavra a vários sujeitos, desembreados em segundo grau como interlocutores (barbudo vs. bigodão; mãe, no passado vs. bigodão; cara que escutava vs. mãe). Os diferentes tipos de desembreagem e as subdelegações de voz definem unidades discursivas e produzem efeitos de sentido diferenciados. Os efeitos de sentido, ao menos na nossa cultura, são de dois tipos: efeitos de referente ou de realidade e efeitos de enunciação, com os quais se obtêm efeitos de verdade. A verdade ou a falsidade de um discurso ligam-se à comprovação referencial ou à proximidade e autoridade da enunciação. O efeito de realidade é produzido, em grande medida, pelas desembreagens internas (segundo, terceiro graus) que criam a ilusão de situação “real” do diálogo. Verifique-se o exemplo acima e, principalmente, as reportagens, que empregam a referencialização obtida através de procedimentos de desembreagem interna como recurso na criação de efeitos de verdade e como meio de passar a responsabilidade do que é dito àquele que se cita em discurso direto. No texto ‘Militares — Linha Secreta Mistério na morte dos três Sargentos’ (Veja, 14 jan. 87, p. 32), o procedimento é utilizado com sucesso. Fazem-se referências à falta de esclarecimentos sobre a causa das mortes e dá-se a palavra a familiares dos sargentos: [...]“A partir dessa premissa, é evidente que estão mentindo”, afirma Hilário Moretto, tio do sargento Ronaldo.[...] “Tudo é inexplicável”, diz Neuza Muller de Souza, 24 anos, de Passo Fundo, a 290 quilômetros de Porto Alegre, viúva do sargento Luiz Élvio. “Podem até dizer que acidentes com militares são fatos normais”, afirma Hilário Moretto. “O que não se concebe é a divulgação de tantas informações desconexas” [...] A atribuição de voz à família dos sargentos dá “realidade” e, portanto, “verdade” às manifestações de estranheza em [página 76] relação às mortes. Além disso, e o tio de um dos sargentos ou a mulher de outro que, diretamente, recriminam e criticam o Comando Militar. Trata-se, nesse caso, de efeito de enunciação, ou melhor, de distanciamento da enunciação. Os efeitos de enunciação são, em geral, criados pela escolha da desembreagem enunciva ou enunciativa e por um procedimento oposto à desembreagem, denominado embreagem. A embreagem apresenta-se como uma operação de retorno de formas já desembreadas à enunciação e cria a ilusão de identificação com a instância da enunciação. A enunciação finge recuperar as formas que projetou fora de si. Nega-se o enunciado e procura- se produzir o efeito de suspensão da oposição entre os atores, o espaço e o tempo do enunciado e os da enunciação. Um bom exemplo é o da mãe que diz à filha “a mamãe amarra o sapato para você”, empregando os recursos de desembreagem enunciativa (eu/você) e de embreagem enunciva (a mamãe). Incluem-se como efeitos de realidade, de enunciação e de verdade também as ilusões contrárias: pode-se pretender obter efeitos de mentira ou de falsidade, de irrealidade ou de ficção, de distanciamento da enunciação. Os exemplos são muitos: as histórias contadas com a indicação de “histórias de pescador”, as fábulas que se dizem sempre fábulas, as historias infantis que começam com “Era uma vez...”. Todas elas produzem efeitos de mentira, de irrealidade ou de ficção. Para se negar a enunciação e se obter a ilusão de objetividade, coloca-se o sujeito do enunciado como um simples locutor2, distanciado do sujeito da enunciação. O discurso da imprensa, que cita e recria discursos diretos que não foram ditos, procura conseguir esse efeito. Outro exemplo é o da montagem da peça de Kálidása, Xacuntalá reconhecida26, como uma “leitura dramática demonstrada” e assim explicada no programa: “O texto nas mãos dos atores não quer dizer apenas segurança na interpretação. Ao se propor a fazer uma ‘leitura dramática demonstrada’, o grupo pretende deixar visível que esta construindo no palco um simulacro de uma realidade distante no tempo e no espaço e da qual está sendo apenas o ‘porta- voz’”. Conclui-se que, na análise de discursos, se devem reconhecer os procedimentos utilizados para a obtenção de efeitos de sentido, que variam de cultura para cultura, de grupo para grupo, de ideologia para ideologia. [página 77] Para melhor sistematização das relações instauradas entre enunciação e enunciado, criadoras dos efeitos de sentido mencionados, pensamos em recorrer a trabalhos sobre foco narrativo. As razões que nos levaram a procurar tais textos, cru geral considerados de interesse e responsabilidade da Teoria Literária, prendem-se ao fato de reconhecermos que, durante muito tempo, enquanto a lingüística não ia além da frase, a crítica e a teoria literária preocupavam-se com o texto como um todo e com o sentido do discurso. São, portanto, anos de pesquisa e de trabalho, cujos resultados podem, em grande parte, ser estendidos a outros domínios, além do literário, e contribuir para a teoria do discurso. Estamos cada Vez mais convencidos de que muitos dos fatos julgados específicos do objeto literário encontram-se também em outros tipos de discursos figurativos e até mesmo nos não-figurativos. O abandono em que se encontravam os estudos das diferentes manifestações discursivas, em oposição ao sempre grande desenvolvimento da teoria e análise literárias, permitiu certas conclusões um tanto apressadas. Neste trabalho, examinaram-se alguns textos básicos para o estudo do ponto de vista27, de que se retomaram apenas as questões gerais. A teoria literária distingue, há muito tempo já, autor e narrador. Vejam-se, a esse respeito, por exemplo, os trabalhos de Kayser (1970) e de Booth (1970), que acabam mesmo por concluir não haver diferença fundamental entre o romance em primeira e em terceira pessoa, já que ambos comportam um narrador, como máscara do autor. Um primeiro equívoco se desfez assim, o da confusão entre narrador e autor, acentuado principalmente quando se tratava de discurso em primeira pessoa. Ao reconhecer que as visões narrativas são diferentes máscaras ou projeções do autor, a teoria do foco narrativo pôs fim ao conflito instaurado entre os que atribuíam à teoria um caráter normativo, preconizando o “melhor foco narrativo”, o mais apropriado ao romance, e menosprezando os demais. Na esteira de James (1948), que, com seus prefácios escritos no fim do século XIX, marcou o início da teoria do foco narrativo tal como hoje é concebida, Lubbock (1976) sobretudo e, em parte, Friedman (1967) e Mendilow (1972) consideram a terceira pessoa dramatizada como a visão narrativa mais eficaz para o romance e não admitem a intervenção do autor, que destrói a “ilusão de realidade”. O romance ideal seria aquele em que o narrador quase não se mostrasse, dando a impressão de que a historia se conta a si mesma, de que o narrador não está lá. Se James é contra a narrativa em primeira [página 78] pessoa, contra as interferências, comentários e avaliações do autor e, também, contra a variação de ponto de vista, Forster (1969, p. 21) aceita que o romancista mude seu ponto de vista, desde que obtenha o resultado esperado, mas não admite certas interferências do autor: “Pode o escritor fazer confidências ao leitor sobre suas personagens? Melhor não fazê-lo. E perigoso e, em geral, leva a uma queda de temperatura, a um afrouxamento emocional e intelectual e, pior ainda, a um certo tom de jocosidade”. A essas considerações normativas opõem-se as de Kayser, que trata de mostrar, em sua segunda grande contribuição ao tópico do foco narrativo, que o romance em primeira pessoa não é uma forma menos poética que as outras e que não se pode estabelecer, de antemão, o que é mais ou menos poético e sim o que é mais adequado aos efeitos de sentido buscados. As variações de pessoa, já que representam apenas formas diferentes de o autor se colocar no texto, são, segundo ele, questão de estilo. Kayser antecipa as colocações lingüísticas e semióticas sobre a ilusão de enunciação e sobre a questão da “neutralidade” do sujeito da enunciação em relação ao discurso. Hoje, sobretudo com as mudanças sofridas pelo romance, não passa pela cabeça de ninguém a possibilidade de valorizar uma perspectiva narrativa em detrimento de outra. Sendo porém a valorização uma questão “externa”, isto é, de cultura, de época, de espaço, de História, acaba-se sempre por atribuir maior importância a certas “técnicas” de organização das visões que a outras. E inevitável fazê-lo, mas é preciso, então, tomar consciência da relatividade cultural e histórica dos juízos de valor. A concepção normativa, a que se referiu, está presa a um segundo equívoco, qual seja a confusão entre o autor, ser ficcional, e o autor “de carne e osso”. Foi Booth, entre os teóricos do ponto de vista, quem trouxe algum esclarecimento à questão, ao determinar que o autor de que o texto fala, ou aquele que se mascara no narrador e se projeta em primeira ou em terceira pessoa, não é o ser de carne e osso, ontologicamente definido, mas um autor-implícito, caracterizado e criado a partir do texto, pela escrita, O autor-implícito, diz Booth, é sempre diferente do homem real e cria, ao mesmo tempo que sua obra, uma versão superior de si mesmo (1970, p. 6). A noção de autor-implícito é precursora da de sujeito da enunciação, pressuposto pelo discurso-enunciado. [página 79] O estabelecimento das duas distinções, entre autor e narrador e entre autor e autor-implícito, permite que se deixe de lado o autor e que se pensem as visões narrativas a partir das relações estabelecidas entre o autor-implícito (instância e sujeito da enunciação) e o narrador (sujeito do enunciado). O mérito e o alcance da proposta de Booth anulam-se, caso o autor-implícito seja considerado, como fazem alguns, apenas uma etapa intermediária entre o autor e o narrador e não a instância produtora do discurso. Na perspectiva da semiótica, a noção de narrador merece alguns reparos. Para fazê-los, porém, é preciso antecipar certos elementos de semântica discursiva28e da formalização narratológica da enunciação29 e distinguir, com clareza, os actantes dos atores e, entre os actantes, os actantes narrativos dos actantes discursivos. A noção de actante foi examinada no capítulo 1, dedicado à narrativa, O actante pertence à sintaxe e define-se pelos papéis actanciais que engloba: o actante Sujeito subsume, entre outros, os papéis de sujeito do querer, de sujeito competente, de sujeito realizador. Na instância do discurso, o actante converte-se em ator, ao receber investimento semântico, temático e/ou figurativo. O ator resulta, assim, da combinação de papéis da sintaxe narrativa com um recheio temático e/ou figurativo da semântica do discurso. O actante Sujeito, em ‘A galinha reivindicativa’ de Millôr, ocorre, no nível discursivo, como o ator galinha, com as decorrências temáticas de “ser galinha” e com as determinações figurativas da galinha em questão (nova, etc.). Da mesma forma, o actante Destinador do dever torna-se o ator patroa, e o Destinador do saber, o ator galo velho. Há diferentes modos de relacionamento entre os actantes e os atores, sendo comuns os casos de sincretismo. Os actantes são, por conseguinte, concebidos como entidades narrativas. Só é possível pensar em actantes do discurso se uma perspectiva narratológica for adotada no exame da enunciação, ou seja, se a enunciação for abordada do ponto de vista de sua organização narrativa ou espetacular. Deve-se, então, distinguir, entre os actantes, os actantes narrativos, propriamente ditos, dos actantes discursivos, que são também narrativos, mas pertencem à estrutura narrativa da enunciação. Os actantes do discurso instalam-se como projeções da enunciação e simulam os papéis actanciais assumidos pelo sujeito da enunciação (sujeito e destinador/destinatário). Na crônica ‘Glória’ de Drummond (ver p. 76), a mãe-narradora é um ator que investe, no nível do discurso, os actantes discursivos Sujeito do fazer discursivo e Destinador do saber, en- [página 80] quanto o ator mãe “no passado” realiza o actante narrativo Sujeito da performance de cobrar o cachê do filho. Bem esclarecidas as noções de actante e ator e de actante narrativo e actante discursivo, volta-se à questão do narrador. Há, do ponto de vista da semiótica, duas definições possíveis de narrador. Pode-se considerar o narrador como o resultado da projeção da instância da enunciação, fundadora do discurso, tendo o narrador manifestação explícita ou implícita no discurso-enunciado. Narrador seria, então, qualquer máscara da enunciação, e até seu desaparecimento ou seu esfacelamento seriam tomados como “tipos de narrador”. A outra possibilidade, pela qual se optou, é a de reservar o termo narrador apenas para os casos de explicitação do sujeito que assume a palavra no discurso. Pela primeira caracterização, o narrador estaria identificado com os actantes discursivos Sujeito e Destinador, papéis actanciais de nível discursivo, que marcam as relações entre enunciador e enunciado e entre enunciador e enunciatário, respectivamente. Na segunda concepção, o narrador é entendido como um ator que engloba os papéis actanciais de Sujeito e Destinador discursivos e os papéis temáticos da “narração”, também discursivos. A cobertura semântico-temática do discurso define, nessa perspectiva, o ator-narrador. Não havendo investimento temático, não há ator e não há narrador. Nesse caso, outros mecanismos sintáticos e semânticos são encontrados para marcar os actantes do discurso. Em ‘O vento no canavial’, tem-se um exemplo desses possíveis procedimentos: o fio discursivo está a cargo do observador e não do narrador. Há muitas propostas de classificação dos focos narrativos e as confusões terminológicas são bastante freqüentes. Parece provável que isso se deva à variação de critérios e de perspectivas dos vários teóricos, nem sempre explicitadas. As comparações resultam, portanto, em geral, pouco produtivas. Há um certo consenso, porém, em torno de dois pontos, além dos que já foram levantados: o foco narrativo é um recurso discursivo — diríamos sintático — ligado a um sentido determinado, mas não se pode estabelecer de uma vez por todas os efeitos de sentido resultantes da variação de ponto de vista. Delineiam-se, no entanto, certas tendências na consideração do papel discursivo do foco narrativo e dos tipos de efeitos que cria. Kayser afirma que o foco narrativo é só aparentemente uma questão de forma e que o sentido do discurso muda, segundo variem os pontos de vista. Para Booth, não se pode julgar um recurso técnico, como o ponto de vista, senão em relação às noções mais gerais de sentido e de efeito a que [página 81] tal recurso está destinado a servir. Há discrepâncias entre OS autores quanto aos efeitos que se procura obter com a escolha de determinado foco narrativo. A maior parte dos teóricos consultados, James, Lubbock e, sobretudo, Friedman, vê como objetivo primeiro do ponto de vista, e do romance no seu todo, o de produzir a ilusão completa de realidade, o maior grau possível de “realismo”. A questão da escolha do foco narrativo liga-se, dessa forma, ao tipo de ilusão de realidade que se quer criar. Explica-se assim o caráter normativo de suas considerações, anteriormente mencionadas. Já segundo Booth, a finalidade do romance não é tanto produzir uma ilusão, quanto fazer passar certos valores. A transmissão dos valores, para o autor, é um problema de retórica. Retoma ele uma concepção de retórica que estava desaparecida, sufocada pela retórica clássica das figuras de linguagem, qual seja a retórica como conjunto das técnicas e meios utilizados pelo romancista para comunicar-se com seus leitores, para controlá-los, de modo a fazê-los participar de seu sistema de valores. O problema da retórica da ficção não é o das ligações do narrador com a história que conta, nem apenas o das estruturas internas, mas, sobretudo, o da relação do “autor” com seu “leitor”. Enquanto Friedman atribui ao foco narrativo o efeito de realidade ou de referente, Booth desloca o problema para o efeito de verdade, para o contrato de veridicção estabelecido entre enunciador e enunciatário e para o jogo da manipulação entre o fazer persuasivo do enunciador e o fazer interpretativo do enunciatário. A questão das relações entre enunciador e enunciatário, apontada por Booth, foi, neste trabalho, separada, um tanto artificialmente, da abordagem dos procedimentos de projeção da enunciação e será examinada no próximo item. Resta retomar o problema relativo à ilusão de realidade, sem dúvida uma das principais razões de escolha do foco narrativo. Não se trata de acreditar, como James, Lubbock ou Friedman, que o romance deva gerar “ilusão de realidade”, mas de entender o jogo dos efeitos de sentido de realidade que o sujeito da enunciação procura obter com as opções e variações de ponto de vista, pois pode tanto querer criar o efeito de realidade quanto o de irrealidade. As ilusões engendradas pelo discurso, assim como a relação entre o procedimento sintático do foco narrativo e os efeitos criados, dependem de vários fatores, tanto de organização narrativo- discursivo-textual, quanto de variação sócio-cultural e histórica. O caráter relativo e contextual da correlação entre foco narrativo e efeitos de sentido não impede, porém, que se bus- [página 82] quem algumas indicações de percursos possíveis, traços e pistas de direções a seguir, sobretudo a partir das classificações mais conhecidas de foco narrativo. Lubbock (1976) distingue dois tipos de apresentação do texto, a cônica e a panorâmica. Na apresentação cênica o narrador restringe-se a momentos particulares, a uma determinada cena frente à qual o leitor é colocado, enquanto na panorâmica sua visão é ampla e geral. As apresentações sofrem dois diferentes tipos de tratamento, ligados à oposição entre o “narrar”e o “mostrar”: o pictórico, em que os fatos são vistos através do narrador que descreve, que “pinta” a história, e o dramático, em que o narrador desaparece e dá lugar à visão “direta” das coisas, ou seja, os fatos visíveis e audíveis contam a história. Friedman (1967) organiza os focos narrativos em oito tipos distintos, que serão apresentados na ordem que vai da onisciência total — o narrador tudo sabe e em tudo se intromete — ao apagamento do narrador. 1. Onisciência do narrador organizador: narrador o narrador tudo sabe, comenta e avalia. + 2. Onisciência do narrador neutro: onisciência o narrador tudo sabe, mas se abstém de comentários gerais (3º pessoa e estilo indireto). 3. Narrador-testemunha ou observador (em primeira pessoa): o narrador, como um observador, não participa diretamente narrador dos acontecimentos. + 4. Narrador-protagonista: não-onisciência o narrador participa dos acontecimentos, como personagem principal. 5. Onisciência multisseletiva: o narrador desaparece e a história é “filtrada” através dos não-narrador personagens (em geral, predomina o discurso indireto livre). + 6. Onisciência seletiva: onisciência não há narrador e a história é filtrada através de um personagem (predomina o discurso indireto livre). 7. Modo dramático: os atos e palavras dos protagonistas contam a história não-narrador (predomina o discurso direto). + 8. Câmera: não-onisciência uma fatia de vida é como que apanhada arbitrária e mecanicamente por uma câmera. Passou-se dos traços de /presença do narrador/ + /onisciência/, para /presença do narrador/ + mão-onisciência/ e para /ausência do narrador/ + /onisciência/, chegando-se a /ausência do narrador/ + /não-onisciência/30. [página 83] Forster (1969) agrupa os focos narrativos segundo dois critérios: caráter exterior ou interior (onisciência) do ponto de vista ou posição ocupada pelo narrador na história (personagem ou não). Pouillon (1974), que aproxima a experiência vivida do romance — do modo de compreensão da realidade surge o ponto de vista —, propõe três visões: visão com, em que o narrador vê e sabe com a personagem; visão por trás, em que o narrador é onisciente; visão de fora, em que o narrador se limita a descrever os acontecimentos. Booth (1970) prega a necessidade de uma classificação mais rica das vozes do autor e considera insuficientes as oposições entre primeira e terceira pessoa ou entre “contar” e “mostrar”. Distingue, em primeiro lugar, conforme foi visto, autor-implícito e narrador e, em seguida, organiza os narradores em: • narradores representados (explicitados) vs. não-representados (não-explicitados); • narradores representados declarados (conscientes de si mesmos, enquanto escritores) vs. não-declarados (os “refletores”, em terceira pessoa, e os narradores não- conscientes, em primeira pessoa); • narradores que são personagens centrais vs. narradores que não são personagens centrais (observadores e os que têm alguma influência sobre o curso dos acontecimentos); • narradores oniscientes vs. narradores não-oniscientes. A multiplicidade de critérios pouco explicitados dificulta o confronto das diferentes classificações dos focos narrativos e causa desentendimentos31. Espera-se que a revisão das tipologias arroladas, na perspectiva da sêmio-lingüística (outras são possíveis), contribua para a explicação dos mecanismos sintáticos do discurso. Distinguem-se três diferentes aspectos da questão do ponto de vista, que, a nosso ver, só ganharão em serem diferenciados: a delegação de “voz”, a organização do saber e a relação entre os papéis do discurso e os da narrativa. O foco narrativo é, sem dúvida, um problema de delegação de “voz”. Considera-se a delegação de voz como resultante da operação de desembreagem ou de projeção da instância da enunciação no discurso. Em termos de sintaxe, pode-se afirmar que o sujeito da enunciação, para construir seu objeto, instala um ou mais sujeitos delegados, aos quais atribui o /dever-fazer/, que os instaura como sujeitos, e o /poder-fazer/ ou poder falar por ele, que os qualifica, que os dota de “voz”. O sujeito da enunciação projeta o discurso como uma meto- [página 84] nímia da instância da enunciação (o enunciado propriamente dito, em terceira pessoa) ou como urna metáfora (a enunciação-enunciada, em primeira pessoa), obtendo com isso diferentes efeitos de sentido que tendem, respectivamente, para a ilusão de ausência de enunciação ou de distância em relação a ela (“objetividade”) e para a de anulação da distância entre enunciação e enunciado. As diferenças de pessoa, nos pontos de vista, relacionam-se, portanto, ao ato de instauração e modalização do enunciado e de seu sujeito. O fazer modalizador pode repetir-se no discurso, através de desembreagens de segundo ou terceiro graus que produzem, em geral, ilusão de realidade. Unidades do discurso, como o diálogo, devem ser redefinidas no interior desse quadro, em relação à instância da enunciação, e organizadas coerentemente. A explicação sintática das unidades do discurso faz-se ainda desejar. M. Bakhtin, preocupado com os esquemas lingüísticos de discurso citado, desenvolve trabalho sobre estilo direto, indireto e indireto livre e afirma que “um estudo fecundo das formas sintáticas só é possível no quadro da elaboração de uma teoria da enunciação. Enquanto a enunciação como um todo permanecer terra incógnita para o lingüista, está fora de questão falar de uma compreensão real, concreta, não escolástica das formas sintáticas” (1981, p. 140). O autor não disse apenas que tal concepção de sintaxe só tem sentido no bojo de uma teoria do discurso. A oposição entre o “narrar” e o “mostrar”, que fundamenta a maioria das propostas de classificação dos focos narrativos, explica-se essencialmente pela modalização do /poder-fazer/, ou seja, o sujeito da enunciação atribui ao sujeito do enunciado o /poder-conduzir/ o discurso de diferentes modos. O segundo aspecto posto em destaque na organização dos pontos de vista é a questão da delegação do saber. Entende-se o saber delegado como um /saber-ser/, pois o /saber-fazer/ não é imprescindível ao narrador, caracterizado, antes de mais nada, como sujeito que deve e pode narrar, O /saber-ser! é necessário, uma vez que a competência atribuída ao sujeito o torna sujeito de um fazer informativo ou de comunicação do saber. A delegação do saber tem sido o critério classificatório mais explorado nas distinções entre narrador onisciente e não-onisciente, entre narrador consciente de seu papel de narrador e narrador inconsciente, entre a difusão (onisciência multisseletiva) ou a concentração do saber. Articulado, como categoria, em /saber-ser/ e /saber-não-ser/, o saber define su- [página 85] jeitos (e narradores) que sabem e sujeitos ignorantes, sujeitos iludidos e sujeitos desenganados, enquanto a variação de seu objeto — saber sobre competência própria ou dos outros, saber sobre os fazeres, saber sobre as paixões — fornece outros elementos para se organizarem as perspectivas do narrador.32 Em resumo, o sujeito da enunciação instaura narradores, definindo- lhes a competência modal para o narrar — sujeitos que devem e podem assumir a palavra — e a existência modal — sujeitos que sabem ser. Grande parte das distinções de foco narrativo resultam das diferentes combinações dessas modalizações. O sujeito do discurso, competente para narrar e existente pelas relações com objetos do saber, realiza-se de modos diversos, ou seja, cumpre o fazer para o qual foi determinado e narra. As intrusões e a “neutralidade” do narrador constituem, por exemplo, formas diferentes de sua realização como sujeito. O último elemento enfatizado nas propostas sobre as visões narrativas é o das relações entre o narrador e as personagens, isto é, entre os actantes do discurso e os actantes e papéis actanciais da narrativa. Os actantes discursivos e os narrativos manifestam-se ora por meio de atores diferentes, ora através dos mesmos atores. No primeiro caso, isto é, quando os actantes discursivos e os narrativos não estão sincretizados nos mesmos atores, os actantes discursivos aparecem como sujeitos cognitivos, instalados no discurso pelo sujeito da enunciação, e assumem apenas os encargos de narrador e/ou de observador. Sobre o narrador, já se falou, nas páginas anteriores. O observador, que se prefere distinguir do narrador, é também um sujeito cognitivo, ao qual cabe o fazer-receptivo e, muitas vezes, o fazer- interpretativo no discurso. Manifesta-se claramente no discurso ou ocorre de forma implícita. Qualquer que seja o modo de manifestação, há sempre marcas do observador no discurso, sendo a principal delas a transformação do fazer do sujeito narrativo em processo, graças às categorias aspectuais. Dizer que uma ação começa, dura ou termina só é possível pelo fazer do observador. Em ‘O vento no canavial’ é o observador que conduz o discurso, como sujeito responsável pela interpretação da narrativa do vento e do canavial. Está marcado, no poema, principalmente pelas figuras visuais (“não se vê”, “oculta fisionomia”, “cor verde”, “o canavial é a imagem”, “de um avião a paisagem se organiza”), pela indeterminação actorial (“não se vê”) e pelos recursos, bastante acentuados, de aspectualização (a descontinuidade aspectual [página 86] do movimento interrompe a duratividade do “papel em branco”, da “campina” ou do “grande lençol”). No discurso dito “sem narrador”, em geral sobressai o papel do observador. Vejam-se, por exemplo, o modo dramático e a câmera de Friedman. Explicitado e, em geral, em sincretismo com o narrador (narrador-testemunha, por exemplo) ou assumindo o modo do implícito, quando a história parece contar-se sozinha, o observador realiza seu fazer receptivo e interpretativo e é o grande responsável pela discursivização da narrativa. Na diluição do ator narrador, o observador assume o fio condutor do discurso. Na segunda situação, ou seja, quando os actantes discursivos e os narrativos realizam-se por meio dos mesmos atores, não mais se distinguem, com nitidez, os papéis discursivos da “narração” dos papéis narrativos da “história narrada”. Um único ator ocupa os postos de narrador e/ou de observador e preenche os encargos de “personagens”, principais ou secundárias. Há, assim, narradores que, além de sujeitos e destina- dores do discurso, são destinadores-manipuladores, sujeitos, anti-sujeitos, destinadores-julgadores, sujeitos de programas de uso, sujeitos delegados da narrativa. No quadro a seguir apresentam-se as diferentes possibilidades de sincretismo. O sinal “=“ indica sincretismo actorial e o sinal “≠”, ausência de sincretismo. 1. narrador observador = ≠ ≠ actante narrativo actante narrativo 2. narrador observador = = actante narrativo 3. narrador observador ≠ ≠ ≠ actante narrativo actante narrativo 4. narrador observador = ≠ actante narrativo 5. narrador observador ≠ = = actante narrativo actante narrativo 6. narrador observador ≠ ≠ = actante narrativo actante narrativo [página 87] Os tipos mais comuns são o 2 e o 4, em que narrador (no sentido restrito de narrador explicitado) e observador estão sincretizados em um mesmo ator. Podem ser exemplificados com trechos de Guimarães Rosa: Tipo 2: Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga do homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso os olhos de nem ser — se viu —; e com máscara de cachorro. (Grande sertão: veredas. 7. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1970, p. 9.) Tipo 4: Do narrador a seus ouvintes: — Jó Joaquim, cliente era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. (‘Desenredo’. In: Tutaméia — Terceiras estórias. 5. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1979, p. 38.) É preciso acrescentar, às considerações expostas sobre as relações do sujeito da enunciação com o discurso-enunciado, as projeções do tempo e do espaço. Temporalização e espacialização Aplicam-se, de maneira geral, aos procedimentos de desembreagem e embreagem de tempo e de espaço, as observações já feitas sobre as projeções de actantes no discurso. A desembreagem temporal e a espacial definem-se como a projeção, para fora da instância da enunciação, do agora e do aqui do discurso, o que institui, por pressuposição, o agora e o aqui da enunciação. O sujeito da enunciação instala o tempo e o espaço do enunciado segundo dois sistemas de referência: o primeiro sistema simula metaforicamente o tempo e o espaço da enunciação e tem como ponto de remissão o aqui e o agora do enunciado; o segundo sistema retoma metonimicamente o tempo e o espaço da enunciação e parte do então e do lá do enunciado. O tempo e o espaço resultantes são ditos, respectivamente, subjetivos e objetivos. Quaisquer que sejam os sistemas de referência, o tempo e o espaço determinam-se pela categoria topológica da /concomitância vs. não-concomitância/ e a /não-concomitância/ articula-se, por sua vez, em /anterioridade vs. posterioridade/. Os trechos abaixo, extraídos do conto ‘Livro de ocorrências’, de Rubem Fonseca (1979, p. 126-31), ilustram os dois sistemas de referência: [página 88] O investigador Miro trouxe a mulher à minha presença (p. 127). Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino de dez anos (p. 129). No primeiro exemplo, remete-se ao aqui e ao agora do enunciado. A ação narrativa é localizada no tempo anterior ao agora e no espaço do aqui do narrador, no tempo passado. No segundo texto, a referência se faz ao então (“manhã quente de dezembro”) e ao lá (“rua São Clemente”). Os programas narrativos são localizados temporalmente e espacialmente, em relação a qualquer dos sistemas de referência. Há, assim, programas concomitantes, anteriores ou posteriores ao aqui ou ao lá, ao agora ou ao então. Das diversas escolhas de perspectiva temporal e espacial, em geral compatibilizadas com os pontos de vista actanciais, resultam os efeitos de sentido, já apontados, e constituem-se unidades de discurso. Em resumo, as operações de desembreagem e embreagem criam o quadro de referência para a localização espácio-temporal dos programas narrativos, a partir das duas posições temporais e espaciais “zero”. Os enunciados de estado são situados no tempo e no espaço e os do fazer interpretados como passagens de um espaço a outro, de um intervalo temporal a outro. Além dos procedimentos de localização, a temporalização e a espacialização discursiva respondem pela programação espácio-temporal. A programação espacial organiza o encadeamento linear dos espaços parciais já localizados. No texto a seguir, veja-se o encadeamento dos espaços: porta, primeiro andar, sala, corredor, banheiro. Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele esta no banheiro. Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade. O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro (FONSECA, 1979, p. 130). A programação temporal realiza a sintagmatização dos tempos e estabelece uma cronologia. O eixo das pressuposições, que representa a ordem lógica dos programas narrativos, e convertido em eixo das consecuções (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 355). A ordem temporal substitui a ordem lógica e a organização narrativa transforma-se em historia. A programação espácio-temporal do discurso é diferente da [página 89] programação textual em que o sujeito da enunciação tem, por exemplo, liberdade para reorganizar a cronologia. Em ”Conto retroativo”, de L. F. Veríssimo (1982, p. 119-21), percebem-se bem as diferenças entre a programação temporal do discurso e a programação textual. Reproduziram-se abaixo o meio e o fim do conto. Beijaram-se, finalmente, depois que ela entrou correndo no saguão do aeroporto gritando: “Mário! Mário!”. E ele, que já se preparava para embarcar, desconsolado, depois de ter tomado três cafezinhos para fazer tempo, dar tempo a ela de se decidir se embarcaria com ele ou não, na esperança de que ela chegaria no último minuto, ele virou- se e também gritou. “Sandra!”. Ele que tinha vindo para o aeroporto meio sonso no táxi, triste porque passara no apartamento para uma última olhada e ficara andando do quarto para a sala e da sala para o quarto, voltando no tempo, lembrando tudo, os momentos na cama, o cheiro dela, a risada, a marca do jeans apertado nas suas coxas lembrando que na última vez ela dissera que não ia mais com ele, que estava com passaporte, passagem mas não ia, era uma loucura, não queria se amarrar, ele era um obsessivo, um doido, e ela era muito moça e... [...] — Antes que alguém me denuncie, eu mesmo confesso: sou o pintor. Meu nome e Mário. — O meu é Sandra. — Alô. — Alô. E embarcaram juntos. A organização cronológica ou programação temporal do conto é, aproximadamente, a seguinte: Mário e Sandra se conhecem na galeria em que Mário expõe; amam-se durante dois meses; ele a convida para ir com ele para a Europa; ela aceita, mas, na véspera da partida, diz que não vai mais; antes de partir, ele passa pelo apartamento e relembra os momentos felizes; ele vai para o aeroporto; lá, toma três cafezinhos e prepara-se para embarcar; ela entra correndo no aeroporto; beijam- se; embarcam juntos. Já a programação textual organiza de outra forma o tempo e, praticamente, inverte a ordem cronológica, à exceção do último parágrafo: beijam-se no aeroporto; ela entra no saguão; ele se prepara para embarcar; ele toma três cafezinhos; ele vai para o aeroporto; ele passa no apartamento e relembra os momentos felizes; ela diz, no ultimo encontro, que não vai mais; ele a convida para ir para a Europa; eles se conhecem na exposição de Mário; eles embarcam juntos. A última frase “E embarcaram juntos” é ambí- [página 90] gua tanto pode significar que Mário e Sandra partiram para a Europa, quanto que, apos a apresentação na galeria, passaram a viver juntos. Na segunda leitura, conserva-se o caráter retroativo da programação textual. Inclui-se, no componente temporal da sintaxe discursiva, a aspectualização33. A aspectualização transforma as funções narrativas, de tipo lógico, em processo, graças ao observador colocado no discurso enunciado. Justifica-se assim a definição, em geral atribuída a aspecto, de “um ponto de vista sobre a ação”. O efeito de sentido decorrente da aspectualização liga-se apenas indiretamente à instância da enunciação. A aspectualização mantém relativa independência da enunciação, pois esta desembreia um sujeito do fazer, que faz., e um sujeito cognitivo, que observa. Observar é ler, no fazer do sujeito, os semas de duratividade, pontualidade e outros e transformar, dessa forma, a ação em processo. Embora temporal, o processo é apreendido pela sobredeterminação aspectual. As categorias aspectuais, organizadas em sistemas, caracterizam os aspectos discursivos: Duratividade vs. pontualidade descontinuidade vs. continuidade incoatividade vs. terminatividade (aspecto (aspecto (aspecto (aspecto iterativo) durativo) incoativo) terminativo) O arranjo sintagmático dos semas aspectuais, capaz de explicar um processo, toma a forma de: Incoativo → durativo → terminativo (pontual) (descontinuo (pontual) ou continuo) Conforme foi discutido no capítulo anterior, os procedimentos de aspectualização são imprescindíveis para a caracterização das configurações passionais. Antes de terminar a discussão dos problemas de tempo e de espaço, importa lembrar que, tanto um quanto o outro, além de se definirem em relação à instância da enunciação e aos actantes do discurso, podem ser relacionados com os actantes narrativos. Os trabalhos de Propp fizeram-se nessa direção. Retoma-se, a respeito disso, a sugestão de Geninasca (1979, p. 10) para o espaço: [página 91] ESPAÇO TÓPICO Espaço Espaço Espaço Espaço Espaço heterotópico paratópico utópico paratópico heterotópico PERFORMANCES Estado Estado Deslocamento 1 Performance Deslocamento 2 inicial final principal O espaço tópico é aquele em que as coisas acontecem ou espaço das transformações narrativas, em oposição ao espaço heterotópico ou espaço dos estados narrativos, em que nada ocorre. No interior do espaço tópico, distinguem-se os espaços paratópicos, entendidos como espaços de aquisição de competência e de sanção, do espaço utópico da performance principal do sujeito. Há alguns anos, a leitura do texto de A. Rosenfeld (1968), intitulado ‘Literatura e personagem’, levou-nos a reconsiderar, enquanto professora, os procedimentos de correção de textos, e a perceber, com maior clareza, o desconhecimento dos alunos (e dos mestres) sobre as estruturas discursivas. O trecho do ensaio, desencadeador desse movimento, foi a citação comentada de Alice Berend em Os noivos de Babette Bomberling: “Bem cedo ela começava a enfeitar a árvore. Amanhã era Natal” (p. 24). A ligação de “amanhã” com “era”, um erro de muitas cruzes em redação de aluno, um bonito recurso de temporalização no texto poético, fez-nos retomar, neste trabalho, os diversos aspectos das relações entre instância da enunciação e enunciado. Relações entre enunciador e enunciatário Contrato de veridicção e verdade discursiva Examinaram-se, em alguns casos mais minuciosamente — actancialização —, em outros de forma mais geral — temporalização e espacialização —, os procedimentos sintáticos que explicam as relações entre enunciação e discurso. Resta agora, para completar o desenvolvimento da sintaxe do discurso, tratar das diferentes relações entre enunciador e enunciatário. Enunciador e enunciatário são desdobramentos do Sujeito da enunciação que cumprem os papéis actanciais de destinador e de destinatário do objeto-discurso. Dessa forma, o enunciador coloca-se como destinador-manipulador, responsável pelos valores do discurso e capaz de levar o enunciatário, seu destinatário, a crer e a fazer. O fazer manipulador rea- [página 92] liza-se no e pelo discurso, como um fazer persuasivo. O enunciatário, por sua vez, manipulado cognitiva e pragmaticamente pelo enunciador, cumpre os papéis de destinatário-sujeito, ainda que o fazer pretendido pelo enunciador não se realize. O fazer interpretativo do enunciatário, que responde ao fazer persuasivo do enunciador, ocorre também no discurso-enunciado. Para conhecer o fazer persuasivo do enunciador e o interpretativo do enunciatário, precisa-se, por conseguinte, recorrer à análise do texto, em todas as instâncias propostas. E certamente no nível das estruturas discursivas, no entanto, que as relações entre enunciador e enunciatário mais se expõem e, com maior facilidade, se apreendem. Será analisada, em primeiro lugar, a relação de manipulação estabelecida entre enunciador e enunciatário, nos seus vários aspectos: os contratos propostos e assumidos, os meios empregados para a persuasão e a interpretação e os diferentes fazeres pretendidos. Grande parte do capítulo anterior foi ocupada pela explicação da manipulação. Esta prevê um primeiro contrato fiduciário, em que são decididos os valores dos objetos a serem comunicados ou trocados. No nível do discurso, o contrato fiduciário é um contrato de veridicção, que determina o estatuto veridictório do discurso. A verdade ou a falsidade do discurso dependem do tipo de discurso, da cultura e da sociedade, pois o que vale para uma entrevista política não se aplica, por exemplo, ao texto literário, e o que se coloca para um discurso religioso na China não tem o mesmo valor no Brasil. Cita-se, abaixo, Rosenfeld (1968, p. 19) sobre a relatividade da verdade e sua dependência do tipo de discurso: “Quando chamamos ‘falsos’ um romance trivial ou uma fita medíocre fazemo-lo, por exemplo, porque percebemos que neles se aplicam padrões do conto da carochinha a situações que pretendem representar a realidade cotidiana.. Os mesmos padrões que funcionam muito bem no mundo mágico- demoníaco do conto de fadas revelam-se falsos e caricatos quando aplicados à representação do universo profano da nossa sociedade atual. [...] É esta incoerência que é falsa’. Mas ninguém pensaria em chamar de falso um autêntico conto de fadas, apesar de o seu mundo imaginário corresponder muito menos à realidade empírica do que o de qualquer romance de entretenimento”. As duas conclusões possíveis são, em primeiro lugar, que o enunciador propõe um contrato, que estipula como o enun- [página 93] ciatário deve interpretar a verdade do discurso; em segundo lugar, que o reconhecimento do dizer-verdadeiro liga-se a urna serie de contratos de veridicção anteriores, próprios de uma cultura, de uma formação ideológica e da concepção, por exemplo, dentro de um sistema de valores, de discurso e de seus tipos. O contrato de veridicção determina as condições para o discurso ser considerado verdadeiro, falso, mentiroso ou secreto, ou seja, estabelece os parâmetros, a partir dos quais o enunciatário pode reconhecer as marcas da veridicção que, como um dispositivo veridictório, permeiam o discurso. A interpretação depende, assim, da aceitação do contrato fiduciário e, sem dúvida, da persuasão do enunciador, para que o enunciatário encontre as marcas de veridicção do discurso e as compare com seus conhecimentos e convicções, decorrentes de outros contratos de veridicção, e creia, isto é, assuma as posições cognitivas formuladas pelo enunciador. O discurso constrói sua própria verdade e, por essa razão, prefere-se falar em “dizer-verdadeiro” e não em verdade discursiva. Evita-se o já mencionado equívoco de caracterizar a verdade do discurso pela adequação ao referente. Cita-se, a respeito disso, Antônio Cândido, quando diz que “a verdade da personagem depende, antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance de modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior”, e que “o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo” (1968, p. 75). Forster, na mesma direção, afirma que as personagens “são reais não por serem como nós, mas porque são convincentes” (1969, p. 48). O enunciador não produz discursos verdadeiros ou falsos, mas constrói discursos que criam efeitos de sentido de verdade ou de falsidade, que parecem verdadeiros. O parecer verdadeiro é interpretado como ser verdadeiro, a partir do contrato de veridicção assumido. Dessa concepção de verdade discursiva decorre que a verdade ou a falsidade de um discurso não servem de critério para diferenciar-se o discurso da História do da ficção, o discurso político do da fábula ou do conto de fadas. Todos elaboram sua verdade e, isoladamente, a não ser que sejam mal construídos, são ditos verdadeiros ou, ao menos, que parecem verdadeiros. Só quando um discurso é inserido no contexto de outros textos, podem-se perceber os procedimentos graças aos quais o enunciador o fez parecer verdadeiro e, no confronto com discursos contrários ou contraditórios, ou melhor, [página 94] localizados em formações ideológicas contrárias ou contraditórias, chega-se a aceitá-lo ou a recusa-lo. Discutiu-se, até agora, o primeiro momento das relações entre enunciador e enunciatário, o do contrato de veridicção, e, também, a concepção de verdade discursiva dai advinda. Na operação de manipulação propriamente dita, distinguem-se dois fazeres possíveis e dois tipos de manipulador. Há o manipulador que instaura o sujeito virtual, levando-o a querer ou a dever-fazer, e o que faz o sujeito atual, pela atribuição do saber e do poder-fazer. A maior parte dos discursos pertence ao primeiro grupo, como o discurso da propaganda, o didático, o político ou o texto literário. No segundo grupo, encontram-se os discursos programadores, como a receita de cozinha e os folhetos de explicação de uso de uma máquina, em que o enunciador não se preocupa em transmitir ao enunciatário as modalidades do querer ou do dever-fazer, e contenta-se em lhe comunicar o saber ou o poder-fazer, sem dúvida por reconhecer o enunciatário como um sujeito virtual, previamente modalizado. Resta agora explicar alguns dos procedimentos do fazer- parecer verdadeiro do enunciador, os recursos utilizados para dotar o discurso das marcas de veridicção e para levar o enunciatário a reconhecê-las. É preciso, em suma, examinar o fazer persuasivo do enunciador. Argumentação O fazer persuasivo do enunciador é diferente segundo o jogo de imagens que constrói de si mesmo e do enunciatário34 — e que o leva à sedução, à tentação, à provocação ou à intimidação — e segundo também o tipo de fazer a que pretende persuadir o enunciatário — fazer pragmático, como na publicidade ou no discurso político, fazer cognitivo, como no texto científico ou literário. Trata-se de fazer consumir, fazer votar ou de fazer crer. O discurso político e o pedagógico caracterizam-se, muito provavelmente, tanto pelo fazer-fazer (votar ou assumir certos comportamentos), quanto pelo fazer-crer (reconhecer o fazer do político e do professor). Muitas das teorias da linguagem explicam estruturas e mecanismos que recobrem, parcialmente, a questão do fazer persuasivo do enunciador. Podem ser aqui agrupadas teorias diferentes, que têm porém em comum o fato de estarem procurando aumentar a fatia da linguagem que cabe, tradicional- mente, aos estudos lingüísticos, pela recuperação de uma parte do “caos” da fala e pela consideração de certas condições [página 95] de uso da língua. Definem todas elas também os fatos pragmáticos, ou seja, de interação social do homem na e pela linguagem, como fatos de língua ou de competência, isto é, como fenômenos sistemáticos e não fortuitos e ocasionais, cujos mecanismos fazem parte das regras que o falante domina para usar a língua. Não eliminam a oposição entre competência e performance, cabendo a uma teoria da performance explicar o comportamento lingüístico real, sujeito a pressões sociais, psicológicas, de memória e outras. Entre os estudiosos que reconhecem os fatos pragmáticos como fatos de língua, encontram-se dois grupos. Para alguns, como Ducrot, por exemplo, as relações pragmáticas devem ser explicadas por uma teoria semântica. O autor não concebe uma semântica que não tenha por objetivo explicar o sentido, ou seja, a significação em situação, e ressalta que certos enunciados não podem ser descritos, semanticamente, sem a indicação de seu emprego argumentativo ou sem a intervenção de alguns elementos de sua enunciação. Outros, como Grice ou Searle, consideram a pragmática um componente autônomo da gramática da competência, ao lado dos componentes sintático e semântico. Neste caso, a sintaxe é formal e a semântica trabalha com as condições de verdade ou satisfação do enunciado e responde pelas implicações lógicas, que explicam alguns dos implícitos da linguagem. Sobre esse sentido literal, isolado pela semântica, constroem-se os demais sentidos, dependentes, então, de fatores pragmáticos. Compete, assim, à pragmática tratar das implicaturas conversacionais e da força ilocucional que se associa ao conteúdo proposicional semântico. Adotou-se o ponto de vista de Ducrot, de que a gramática da língua tem dois componentes, o sintático e o semântico, em que cabem também as regras pragmáticas, pois muitas são as dificuldades encontradas na separação entre fatos semânticos e pragmáticos, sobretudo se não mais se definir a semântica pelas condições de verdade ou pelas implicações lógicas de uma semântica frásica. Quatro tipos de abordagem dos fatos de enunciação foram consultados para este trabalho: a) os textos precursores de Jakobson (sobretudo ‘Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe’ — 1963, p. 176-96) e de Benveniste (principalmente a parte sobre o homem na língua — 1966, p. 22-276), que recolocam a questão da enunciação entre as preocupações lingüísticas; b) os trabalhos de Ducrot, que desenvolve uma teoria semântica da enunciação ou semântica intencional, ao conside- [página 96] ra que os problemas da situação dos enunciados e os elementos relativos à intenção do locutor participam do objeto da semântica (Ducrot distingue, no interior da semântica, dois componentes, um componente lingüístico e um componente retórico, fazendo-se a passagem da significação lingüística ao sentido retórico por meio da enunciação. Para explicar o sentido, assim concebido, formula três leis do discurso: a da informatividade — o falante deve dizer ao ouvinte o que supõe que o ouvinte desconheça —, a da exaustividade — o locutor deve dar as informações mais fortes que tiver sobre o tema em questão — e a da lítotes — o locutor leva o ouvinte a interpretar o enunciado como dizendo mais do que sua significação literal. Com esse modelo, o autor desenvolve, sobretudo, o tratamento dos implícitos da linguagem, pressupostos e subentendidos, e das estruturas argumentativas, e mostra que a linguagem, por sua própria natureza, é um instrumento de argumentação.); c) A teoria dos atos de linguagem ou pragmática ilocucional que, a partir de Austin (1970) e desenvolvida principalmente por Searle (1972), vê a linguagem como ação, ou melhor, considera como parte do sentido lingüístico as ações que se realizam quando se diz e pelo dizer (Austin tratou inicialmente dos performativos — eu lhe prometo, eu declaro aberta a sessão — em que o dizer é já um fazer. O exame dos performativos, embora casos muito específicos de fórmulas quase estereotipadas, constitui a primeira etapa para o reconhecimento das ações lingüísticas, pondo em xeque a tese saussuriana de identificação da atividade lingüística com a iniciativa individual. As convenções sociais determinam não apenas o sentido dos enunciados, mas também o valor dos atos de enunciação. Austin desenvolveu, em seguida, uma teoria dos atos de linguagem, em que mostrou que, ao falarmos, realizamos três atos diferentes: um ato de locução — atividades de ordem fonética, gramatical e semântica, independentes da situação do discurso —, um ato de ilocução — produzido pelo falar — e um ato de perlocução — decorrente do dizer, como resultado visado. A ilocução e a perlocução identificam-se a partir das variáveis situacionais. A atividade lingüística, dessa forma, não mais se coloca como uma exceção na língua, sendo os performativos um caso particular e espetacular de ilocução. Os atos ilocucionais e perlocucionais são determinados por regras específicas do discurso, como condições requeridas de sua realização. Graças à teoria dos atos de [página 97] linguagem, os lingüistas deixaram de ver a língua como lugar apenas de representação de significados objetivos, para considerá- la também como meio convencional de agir no mundo; d) a pragmática conversacional, que elabora máximas conversacionais, como regras gerais de direção do comportamento lingüístico e de formulação das relações vigentes entre locutor e ouvinte. (Grice (1982) estabelece um princípio geral de cooperação e quatro máximas: da quantidade — faça sua contribuição tão informativa quanto requerida e possível —, da qualidade — procure dar uma contribuição que seja verdadeira ou sincera —, da relação — seja relevante — e do modo — seja claro, nítido, não ambíguo, breve, ordenado.) O aproveitamento das contribuições variadas de teorias lingüísticas que levam em conta a enunciação e as relações entre enunciador e enunciatário faz-se, neste trabalho, no quadro da sintaxe discursiva, buscando, por meio delas, descrever e explicar melhor o fazer persuasivo do enunciador e o fazer interpretativo do enunciatário. Mostra-se, apenas, como essas propostas se integram na sintaxe discursiva, tal qual a semiótica a concebeu, sem se desenvolverem as muitas possibilidades que tais teorias oferecem, pois, para tanto, seria necessário rever e discutir longamente as várias pragmáticas. Um trabalho que gostaríamos, ou gostaremos, de fazer, mas, de toda forma, um outro trabalho. A pragmática tem como objeto de estudo as relações sociais do homem na e pela linguagem, ou melhor, as relações que se estabelecem entre enunciador e enunciatário. As teorias pragmáticas mencionadas procuram explicar aspectos diversos dessa interação. Por isso mesmo, complementam-se, em lugar de se excluírem, e cada qual, sozinha, não é capaz de responder à questão colocada. Usa-se, neste trabalho, o rótulo de teoria da argumentação para aproximá-las e envolvê-las no quadro de análise semiótica da sintaxe do discurso. Uma teoria da argumentação, assim concebida, deve ocupar-se dos diversos aspectos do discurso relacionados à intenção do enunciador, aos efeitos a que este visa, ao produzir seu discurso, e à manipulação que pretende exercer sobre seu enunciatário. É preciso fazer, de antemão, um reparo ao fato de as teorias pragmáticas se preocuparem, em geral, com as marcas, numa dada língua, das estruturas argumentativas, e não com a determinação dessas estruturas. A semiótica, ao pretender, no percurso gerativo, fazer abstração da manifestação, interessa-se antes por estabelecer os recursos e mecanismos ge- [página 98] rais de argumentação, por meio dos quais o enunciador persuade o enunciatário. Partindo das propostas teóricas apresentadas, podem-se extrair três dos principais procedimentos utilizados pelo enunciador para influenciar, de alguma forma, o enunciatário: o recurso de implicitar ou de explicitar conteúdos; a prática de certos atos lingüísticos (ilocucionais), para atingir determinados fins (perlocucionais); a argumentação, em sentido restrito, já que os dois primeiros são também recursos argumentativos lato sensu. Embora os três tipos de procedimentos não se apresentem isolados e sim confundidos no fazer persuasivo do enunciador, serão examinados separadamente, por razões apenas de clareza de exposição. Ao enunciador é oferecida a possibilidade lingüística de jogar com conteúdos implícitos ou explícitos, para fazer passar os valores e deles convencer o enunciatário. Há diferentes modos de implicitar conteúdos. Ducrot (1969, 1977), em seus primeiros trabalhos sobre o assunto, distingue dois grandes grupos, o dos pressupostos e o dos subentendidos. Posteriormente, reviu essa posição, conforme será mostrado adiante. Veja-se, em primeiro lugar, e com grandes traços, a pressuposição. Existe um grande número de trabalhos a respeito, entre lingüistas e sobretudo entre filósofos da linguagem, especialmente na filosofia analítica inglesa, a que se remetem os interessados. Concebe-se a noção de pressuposição, segundo Ducrot (1977, p. 34), de duas formas distintas. De um lado, estão os que vêem os pressupostos como condições de emprego, lógico ou não. No outro, agrupam-se os que, com Ducrot, consideram os pressupostos como elementos de conteúdo, como parte integrante do sentido. Define-se, nessa acepção, pressuposição “como um ato de fala particular, do mesmo modo que a afirmação, a interrogação ou a ordem” (DUCROT, 1977, p. 77). “O que reteríamos então da filosofia analítica inglesa seria sobretudo uma concepção de conjunto, a idéia de que a língua constitui algo assim como um gênero teatral particular, que oferece ao sujeito falante um certo número de empregos institucionais estereotipados (ordenar, afirmar, prometer,... etc.), mas, em lugar de considerar os pressupostos como condições a preencher para que esses papéis possam ser representados, gostaríamos de fazer da pressuposição em si mesma um papel — talvez o mais permanente — na grande comédia da fala” (DUCROT, 1977, p. 59-60). Em “João continua gordo”, os adeptos da noção de pressuposição como condição de emprego dizem que “João era [página 99] gordo antes” é condição de verdade (emprego lógico) ou condição para que o enunciado atinja o fim pretendido, para que a afirmação “João é gordo” se realize e a informação passe. Já Ducrot julga que dois atos de linguagem foram efetuados: o de afirmar a gordura atual de João e o de pressupor sua gordura anterior, O autor utiliza, para explicar a pressuposição, a teoria dos atos de fala, desenvolvida pelos filósofos de Oxford, ao mesmo tempo que se coloca contra a concepção de pressuposição, a seu ver restritiva, por eles adotada. Descrever a pressuposição como um ato de fala equivale a introduzir o implícito entre o enunciador e o enunciatário, como “um dos tipos de relações humanas, cuja possibilidade está inscrita na língua (da mesma forma que a ordem, a promessa, ... etc.)” (DUCROT, 1977, p. 59). Enquanto ato, a pressuposição modifica a fala do interlocutor. Não se trata de influir nas crenças, desejos e interesses do enunciatário, mas de alterar seu direito de falar. A escolha dos pressupostos limita a liberdade do destinatário, porque a sua conservação é uma das leis definidoras do discurso. Se o destinatário quer prosseguir o discurso iniciado, precisa tomar os pressupostos como quadro de referência de sua própria fala. O ato de pressupor um conteúdo consiste em situá-lo como já conhecido do enunciatário e em apresentá-lo como fundo comum, no interior do qual o discurso deve prosseguir. O pressuposto, além disso, não é objeto de discussão, pois não se coloca como assunto do discurso que vem a seguir. Opõem-se, por tais critérios, conteúdos postos e conteúdos pressupostos, que, juntos, satisfazem às condições de progresso e de coerência do discurso. O conteúdo pressuposto garante-lhe a coerência, assegura-lhe a necessária redundância, enquanto o progresso discursivo se faz no nível do conteúdo posto. Resumindo as considerações feitas, vê-se que, ao pressupor um conteúdo, o enunciador determina sua aceitação como condição de manutenção do “diálogo”, atingindo, portanto, o direito de fala do enunciatário e estabelecendo os limites do que pode ou não ser dito para que o discurso continue. Se o enunciatário recusa o pressuposto, o discurso não pode prosseguir e cria-se uma situação polêmica. Está sendo colocado em dúvida, com a recusa, o direito do enunciador de organizar o seu discurso da forma que melhor lhe convém, direito esse que faz parte das regulamentações lingüísticas da interação social. Pode-se discutir, negar, não aceitar o posto, o conteúdo explicitado, nunca o pressuposto, pois isso equivale a desqualificar o enunciador e a impedir o prosseguimento do discurso. A pressuposição, no dizer de Ducrot, aprisiona o [página 100] enunciatário num universo intelectual que ele não escolheu e que, ainda assim, não pode negar ou dele duvidar, sem recusar, ao mesmo tempo, todo o discurso. O pressuposto é apresentado “como comum aos dois personagens do diálogo, como objeto de uma cumplicidade fundamental que liga entre si os participantes do ato de comunicação” (DUCROT, 1969, p. 36). Quando os jornais dizem que “os paulistanos ainda preferem Telê”, é possível não aceitar o posto e retrucar que a pesquisa foi mal feita e que os paulistanos preferem agora Mineli. Se, porém, for negado o pressuposto de que, antes das derrotas na Copa, os paulistanos queriam Telê, o discurso não poderá prosseguir, pois estarão sendo discutidos o direito do enunciador de organizar o seu próprio discurso e suas qualificações para a tarefa. A pressuposição tem, muitas vezes, emprego retórico. O enunciador pode colocar como conteúdo pressuposto, por definição constituído de crenças e conhecimentos presumidos comuns ao enunciador e ao enunciatário, certas informações que ele sabe não serem compartilhadas com o enunciatário. Evita dizê-las diretamente, para não caracterizar intrusão, indiscrição ou mesmo injúria, mas as faz passar de qualquer forma. Age assim a Mariazinha quando diz à amiga, enamorada de Pedro: “Ontem, encontrei-me com Pedro, mulher e filha, no cinema”. A informação nova, o conteúdo posto, é a de que ela se encontrou com Pedro e família, de que isso aconteceu ontem e no cinema. Um dos pressupostos, que deveria ser, assim, comum às duas é o fato de Pedro ter mulher e filha. Sabendo, de antemão, que a amiga ignorava ser o namorado casado e pai de família, Mariazinha, mesmo assim, forneceu-lhe a informação como algo já conhecido, já pressuposto. Deixou, portanto, de ser considerada “faladeira” ou de envergonhar a amiga que pôde fazer como se, realmente, soubesse do caso e não se importasse. Antes passar por “destruidora de lares” que por “idiota enganada”. Recurso de grande eficácia, o emprego retórico da pressuposição não é, porém, seu único uso persuasivo-argumentativo. Todo ato de pressupor implica presumir e, de alguma forma, impor a adesão do enunciatário. Na definição de Ducrot, o ato de pressupor mostra-se, claramente, como uma tática argumentativa. O enunciador obriga o enunciatário a admitir o conteúdo pressuposto, sem o que o discurso não prossegue, e não lhe dá o direito de discutir, de argumentar enfim, a partir de tal conteúdo. Foi dito aqui que, num primeiro momento, Ducrot opunha pressupostos a subentendidos, dois tipos de implícitos. Essa distinção liga- se a proposta, já mencionada, de reconhe- [página 101] cer dois componentes semânticos, um lingüístico e outro retórico. No componente lingüístico, o semanticista explica a frase, entidade abstrata, e assinala sua significação, independentemente de qualquer determinação contextual; no componente retórico, preocupa-se com o enunciado, entidade concreta, e com seu sentido efetivo numa dada situação. A enunciação encarrega-se de transformar a frase em enunciado. Nesse quadro teórico, os pressupostos (e todos os atos ilocucionais) ligam-se apenas à frase, no componente lingüístico, cabendo ao subentendido a função de “implícito da enunciação”, no componente retórico. A partir de l976,35 Ducrot revê a questão, ao reconhecer que há atos ilocucionais, inclusive de pressuposição, que resultam da intervenção da enunciação. A distinção entre implícito da frase e implícito da enunciação não garante, portanto, a oposição encontrada entre pressupostos e subentendidos, que precisa ser caracterizada de outra forma. O ato de pressupor ocorre tanto no componente lingüístico quanto no retórico, enquanto o subentendido só aparece ligado à enunciação e ao componente retórico. Além disso, a noção de ato de linguagem permite separá-los, pois, se a pressuposição é um ato ilocucional, o mesmo não acontece com o subentendido. O subentendido é uma opção de organização do discurso, que se oferece ao enunciador, e que leva o enunciatário a interpretar o discurso da forma que o enunciador pretende. Pode-se considerar o subentendido como efeito de sentido que surge na interpretação e que resulta do reconhecimento das razões do enunciador em dizer o que disse. Essa definição de subentendido indica que a pressuposição e demais atos ilocucionais apresentam-se no componente retórico sob a forma de subentendidos36. Procurou-se enfatizar o caráter manipulador dos implícitos, comum ao ato de pressupor e aos procedimentos que envolvem os subentendidos. Outra característica entre eles partilhada é a possibilidade de o enunciador escapar da responsabilidade do dizer. No caso da pressuposição, o enunciador pode sempre atribuir o conteúdo pressuposto ao “senso comum”, a fatos conhecidos de todos e pelos quais ninguém responde; no do subentendido, a forma implícita de dizer faz a responsabilidade recair sobre o enunciatário, podendo o enunciador afirmar, em qualquer tempo, que não foi ele quem disse, mas o outro quem assim interpretou. A grande astúcia do subentendido é fazer com que o enunciatário diga o que o enunciador pretende dizer, mas que, por razões diversas, em geral de ordem social, não deve dizer. Para determinar os subentendidos e construir o sentido do discurso, Ducrot (1977) estabelece leis do discurso, Grice [página 102] (1982), as implicaturas conversacionais37, que regulamentam a interpretação dos subentendidos e mostram o caráter social e lingüístico do seu reconhecimento. Ao responder ao autor, que nos pergunta o que achamos de seu livro, que a introdução é boa, subentendemos que o livro não nos agradou, pois deixamos de cumprir a lei da exaustividade de Ducrot, segundo a qual o locutor deve dar as informações mais fortes que tiver sobre o tema em questão, ou a máxima da quantidade de Grice: “Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação)” (1982, p. 87). O conhecimento dessa “regra de cooperação discursiva” permite ao enunciador subentender, ou seja, dizer, sem o dizer, que não achou bom o livro, pois sabe que o enunciatário, também ciente das máximas, assim irá interpretá-lo. Mais recentemente, Ducrot (1980) retomou o problema da pressuposição em outra perspectiva, ou melhor, alterando apenas alguns ângulos da questão. Mantém a definição de pressuposição como ato ilocucional, mas nega a existência de um ato de pressupor específico, passando a vê-lo como uma asserção. A diferença entre a asserção “posta” e a “pressuposta” num discurso está no fato de que, embora realizadas por um Único locutor, cada ato de afirmar deve ser atribuído a um enunciador diferente. O enunciador da asserção “posta” confunde-se com o locutor, enquanto o enunciador da asserção “pressuposta” é a comunidade lingüística, a voz do povo, em que se misturam locutor e alocutário. Em “João parou de fumar”, exemplo apresentado, a afirmação de que João atualmente não fuma cabe ao enunciador-locutor e a de que João fumava antes, à voz do povo, ao conhecimento de um grupo, ou, ao menos, ao saber comum aos dois elementos envolvidos na comunicação. A distinção de Ducrot entre os pares enunciador/enunciatário e locutor/alocutário tem várias conseqüências na sua teoria semântica e é um dos pontos mais instigantes de sua exposição. Volta-se ao problema, anteriormente examinado, das relações entre enunciação e enunciado. A multiplicidade de vozes sugerida para a definição de pressuposição faz parte de um projeto mais amplo do autor, sobre a concepção enunciativa do sentido. Ao considerar o sentido como representação da enunciação, Ducrot explica que se trata, fundamentalmente, de fazer ouvir a voz de diversos enunciadores que se dirigem a diversos enunciatários e de identificar esses papéis ilocucionais com personagens que podem ser, entre outras, as da enunciação (1980, p. 56). A enunciação projeta-se numa pluralidade de vozes que realizam diferentes atos ilocucionais. O discurso é, portanto, essencial- [página 103] mente polifônico. A polifonia faz reconsiderarem-se as relações entre enunciação e enunciado e, sobre a questão, observam-se dois fatos, no quadro teórico da análise do discurso. Em primeiro lugar, as “vozes discursivas” confirmam a concepção de Ducrot de língua como um instrumento intrinsecamente polêmico e mostram que, no discurso de um mesmo locutor, se combinam pontos de vista diferentes. A segunda observação diz respeito à comparação possível de locutor/alocutário com narrador/narratário. Foi apontado que o narrador assume a palavra em nome de um enunciador pressuposto. Esse enunciador caracteriza-se pela polifonia, ou seja, além de desembrear sujeitos discursivos diferentes, pode ainda atribuir a cada um deles várias vozes, como procedimentos de persuasão. O narrador, projetado pela enunciação, realiza, por exemplo, o ato de afirmar e assumir a responsabilidade pela asserção que faz (o posto), e o ato de afirmar sem ficar como o único responsável pelo que diz, graças ao recurso de colocar sua afirmação como um bem comum, pelo menos ao narratário e a ele (pressuposto). Pode ainda o narrador optar pelos mecanismos do subentendido e, nesse caso, três vozes estão sendo atribuídas ao discurso: a do narrador que assevera o conteúdo explícito, a do narratário que, ao interpretar, afirma o conteúdo subentendido e a do grupo social que garante o pressuposto e o caráter polêmico do discurso38. Muito embora os trabalhos conhecidos digam respeito a procedimentos lingüísticos, acredita-se que quaisquer sistemas de significação empregam procedimentos para a obtenção de mesmos efeitos de sentido. Valeria a pena conhecer tais mecanismos e compará-los aos implícitos da linguagem. O segundo grupo de procedimentos empregados para a persuasão do enunciatário é o dos atos ilocucionais, entendidos como práticas para atingir certos fins perlocucionais. A teoria dos atos de linguagem teve o mérito, incontestável, de obrigar a ver a linguagem não apenas como instrumento de dizer o mundo, mas como forma de nele agir. As conseqüências daí advindas são muitas e aparecem na nova postura da lingüística, cada vez mais voltada para os fatos pragmáticos. O ato ilocucional é definido por Ducrot “como um ato jurídico realizado pela fala ... Uma promessa só pode [.1 ser descrita como ato ilocucional na medida em que crie uma obrigação para seu autor, e que essa obrigação decorra diretamente da fala pronunciada, e não de um efeito prévio” (1977, p. 88-9). Afirma ainda que um enunciado tem valor ilocucional quando comporta a atribuição de uma certa eficiência jurídi- [página 104] ca à sua enunciação. Todo ato ilocucional apresenta-se, dessa forma, como uma qualificação do sujeito da enunciação. A determinação da ilocução permite caracterizar o sujeito da enunciação por seus atos de linguagem, cuja escolha é bastante marcada do ponto de vista sócio-cultural. O exame e a explicação dos atos ilocucionais do sujeito da enunciação e de suas condições de realização, assim como da distribuição polifônica de tais atos no discurso, são, sem dúvida, condições que a análise discursiva deve preencher. Acrescente-se ainda que o emprego dos atos ilocucionais tem por objetivo atingir certos fins e que decorre daí a inserção da teoria dos atos de linguagem no quadro da manipulação. Nesse sentido, Searle, embora não desenvolva o estudo da perlocução, define os atos perlocucionais como as conseqüências, os efeitos que os atos ilocucionais “têm sobre as ações, os pensamentos ou as crenças, etc., dos ouvintes. Se, por exemplo, sustento um argumento, posso persuadir ou convencer meu interlocutor; se lhe faço uma advertência, posso atemorizá-lo ou inquietá-lo; se lhe peço alguma coisa, posso levá-lo a fazer o que solicito; se lhe forneço uma informação, posso convencê-lo (esclarecê-lo, inspirá-lo, fazê-lo tomar consciência)” (1972, p. 62). Osakabe (1979, p. 53) destaca o papel dos atos perlocucionais na análise discursiva, sobretudo ao caracterizar o comportamento dos interlocutores no “agenciamento do discurso”, essencialmente pelos resultados da ação discursiva no ouvinte. Organiza, a partir de Searle, dois grandes grupos de atos perlocucionais, representados, o primeiro, nos discursos pragmáticos, pelos verbos persuadir e convencer, o segundo, nos não-pragmáticos, pelo verbo impressionar. Um terceiro tipo, em geral ligado aos atos de persuadir e convencer, seria o do ato de informar. Os demais atos enquadram-se na classificação apresentada. Essas considerações levam-no à proposta de “determinar os atos ilocucionários de um discurso somente após a determinação dos atos perlocucionários” (p. 56). Se as promessas, as ameaças, os juramentos qualificam o enunciador como sujeito operador dos atos de prometer, ameaçar ou jurar, constituem também recursos que emprega para persuadir, convencer ou impressionar o enunciatário. Em lugar de afirmar, como Ducrot, que os atos ilocucionais caracterizam a enunciação, prefere-se, pelas razões apontadas, considerar neste trabalho que as relações entre ilocução e perlocução definem o enunciador e o enunciatário e explicam o sentido do discurso. [página 105] O terceiro e último grupo de procedimentos de persuasão, proposto neste rápido exame das teorias pragmáticas, é o da argumentação. Duas são as saídas possíveis para definir a argumentação. Pode-se considerá-la como um ato ilocucional, entre outros, em geral ligado ao ato perlocucional de persuadir ou convencer, ou tomá-la como o ato ilocucional por excelência, realizado pelo enunciador e, dessa forma, uma espécie de sinônimo de fazer persuasivo ou fazer-crer, que tem por contraparte o fazer interpretativo do enunciatário. Neste caso, os demais atos ilocucionais, uma promessa ou uma ameaça, por exemplo, são recursos utilizados na argumentação e mantêm relação hierárquica com o ato de argumentar. Da mesma forma, os atos perlocucionais de persuadir ou convencer assumem papel especial entre as perlocuções, e os vários atos perlocucionais empregam-se como meios para se atingir a persuasão final — chorar ou informar, por exemplo, para convencer — ou como tipos de atos de persuadir. Prefere-se, neste trabalho, a segunda hipótese, ou seja, a de considerar a argumentação como o ato ilocucional do enunciador39. A generalização corre, no entanto, o risco de se tornar excessiva e vazia, se não forem feitas especificações e examinado o espectro de variação da argumentação. Remete- se sobretudo aos trabalhos de Perelman, de que se retiraram alguns poucos elementos a serem aqui comentados. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1970), no seu tratado de argumentação que tem como subtítulo A nova retórica, procuram recuperar a retórica aristotélica, abafada, segundo os autores, por três séculos de cartesianismo. Definem uma teoria da argumentação como o “estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas à sua aprovação” (1970, p. 5). Para melhor localizar a questão, distinguem a demonstração, que se liga à experiência e à dedução lógica e utiliza provas analíticas, da argumentação, que emprega provas dialéticas e diz respeito ao verossímil, ao plausível, ao provável, escapando das certezas do cálculo lógico40. Os autores do tratado, mesmo reconhecendo a oposição entre demonstração e argumentação, enfatizam, no decorrer do texto, que, desde que se leve em conta a adesão dos espíritos, isto é, que se passe do ponto de vista formal ao ponto de vista argumentativo, a demonstração se torna um procedimento de argumentação. “É assim que Werthermer mostrou, por meio de experiências interessantes, que a compreensão de certas demonstrações matemáticas difere segundo a maneira pela qual se apresenta a figura que as ilustra. As variantes não [página 106] são mais equivalentes, nesse caso, porque houve um distanciamento das condições puramente formais da demonstração, para passar-se ao exame da força persuasiva das provas” (p. 649-50). Importa esclarecer também que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1970, p. 11) mostram os meios discursivos de se obter a adesão dos espíritos, restringindo-se às técnicas utilizadas pela linguagem para persuadir ou convencer e descartando, por exemplo, as provas extratécnicas de Aristóteles. A teoria da argumentação, desenvolvida no tratado citado como uma nova retórica, gira em torno da concepção social da linguagem, “instrumento de comunicação e de ação sobre o outro” (p. 680). Os autores consideram insustentáveis o realismo e o nominalismo lingüístico, que vêem a linguagem como reflexo do real ou como criação arbitrária de um indivíduo e se esquecem de seu aspecto social. Nesse quadro, nada mais justo que conservem da retórica antiga e desenvolvam como fundamental a uma teoria da argumentação a idéia de auditório, ou melhor, de que todo discurso é dirigido a um auditório, entendido não apenas no sentido restrito de “público do orador, reunido na praça”, mas principalmente na concepção alargada de enunciatário41 de qualquer tipo de discurso, em qualquer situação. A mudança de auditório leva à alteração de certos elementos da argumentação, pois os mecanismos de argumentação dependem, em primeiro lugar, da relação entre o argumentador e seu “público”. Com a noção de auditório, Perelman e Olbrechts-Tyteca instalam também a de contrato, em concepção bastante próxima à de contrato fiduciário, já mencionado. “Quando se trata de argumentar, de influenciar por meio do discurso a intensidade de adesão de um auditório a certas teses, não é mais possível negligenciar completamente, considerando-as irrelevantes, as condições psíquicas e sociais sem as quais a argumentação não teria objetivo ou efeito. Toda argumentação visa a adesão dos espíritos, e, por isso mesmo, supõe a existência de um contrato intelectual” (p 18). São condições prévias da argumentação e caracterizam o “contato dos espíritos”: a língua comum a enunciador e enunciatário, o fato de manterem relações sociais, o desejo do enunciador de entrar em comunicação e, em resposta, a atenção e o interesse do enunciatário. Grice, no texto já citado, agrupa essas condições no seu “princípio de cooperação”. As condições da argumentação dizem respeito à competência do sujeito da enunciação, desdobrado em enunciador e enunciatário. A argumentação caracteriza-se, essencialmente, [página 107] pela assunção do discurso por uma instância enunciadora. As diferentes formas de argumentar resultam, por conseguinte, da interação entre sujeito da enunciação e discurso e entre enunciador e enunciatário, ou seja, de todos os mecanismos descritos na sintaxe discursiva. “Essa interação entre orador e discurso seria mesmo a característica da argumentação, em oposição à demonstração. No caso da dedução formal, o papel do orador é reduzido ao mínimo; ele aumenta à medida que a linguagem utilizada se afasta da univocidade, à medida que o contexto, as intenções e os fins ganham importância” (p. 426). O papel principal atribuído às relações entre enunciação e discurso e entre enunciador e enunciatário, na teoria da argumentação, leva Perelman e Olbrechts-Tyteca a rechaçarem certas posições extremadas na forma de considerar a argumentação, fundadas em oposições filosóficas, tradicionalmente aceitas. “Quanto a nós, pensamos que uma teoria da argumentação não deve nem procurar um método conforme à natureza das coisas, nem encarar o discurso como uma obra que encontre nela mesma sua estrutura. Tanto uma concepção como a outra, complementares, separam fundo e forma, esquecem que a argumentação é um todo, destinado a um auditório determinado” (p. 672). “Combatemos as oposições filosóficas, categóricas e irredutíveis, que os absolutismos de toda espécie nos apresentam: dualismos da razão e da imaginação, da ciência e da opinião, da evidência irrecusável e da vontade enganadora, da objetividade universalmente admitida e da subjetividade incomunicável, da realidade que se impõe a todos e dos valores puramente individuais” (p. 676). Justificam-se as citações por situarem bem o quadro de uma teoria da argumentação passível de ser retomada no seio de uma sintaxe discursiva. Em lugar das “oposições filosóficas” acima arroladas e bastante difundidas, Perelman e Olbrechts-Tyteca propõem a distinção de dois tipos de auditórios, o auditório particular e o auditório universal, e, portanto, de mecanismos diferentes de argumentação, de que resultam, também, efeitos de sentido diversificados, O auditório universal é “constituído pela humanidade toda ou ao menos por todos os homens adultos e normais” (p. 39); o auditório particular é formado apenas pelo interlocutor ao qual o locutor se dirige ou, em última instân- [página 108] cia, pelo próprio sujeito desdobrado em enunciador e enunciatário. A universalidade e a particularidade do auditório não são fatos experimentalmente provados, mas representações ou construções do sujeito da enunciação. Cada cultura, cada classe social, cada indivíduo tem sua própria concepção de auditório universal e particular e, a partir dela, faz variar a argumentação. A argumentação dirigida a um auditório universal procura convencer o enunciatário da evidência das razões apresentadas e de sua independência de contingências locais ou históricas. A retórica mais eficaz é aquela que emprega apenas provas lógicas (demonstração), embora não se possa esquecer que, no curso da história, variam as concepções de real, de verdadeiro, de válido e de evidência. A argumentação apresentada a um auditório particular procura persuadir o ouvinte a realizar uma ação imediata ou futura, desenrolando-se essencialmente no plano prático. A distinção de convencer e persuadir depende, portanto, do auditório representado pela enunciação e liga-se aos dois tipos de manipulação descritos, a cognitiva e a pragmática. Convencer é /fazer-crer/ e persuadir é /fazer-fazer/. Essa separação, conforme foi mostrado, não se faz com rigidez, pois /fazer-crer/ é condição da ação pretendida, posição compartilhada com os autores do tratado. “A finalidade de toda argumentação, como dissemos, é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas à sua aprovação: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar a intensidade de adesão de modo a provocar nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção), ou ao menos a criar, neles, uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno” (p. 59). Entende-se, a partir das observações feitas, que a argumentação depende de acordos entre enunciador e enunciatário, colocados como condições da eficácia do fazer argumentativo. Na nova retórica tais contratos são especificados como acordos sobre as premissas da argumentação e divididos em acordos com o auditório universal, sobre fatos, verdades e presunções, e acordos com o auditório particular, sobre valores. Concebem-se de modo relativo os fatos e as verdades, definidos pela adesão do auditório universal. A semiótica, também convencida do caráter relativo da verdade, engloba “fatos”, “verdades”, “presunções” e “valores” como valores, e distingue, por critérios sintáticos e semânticos, tipos de valores. Pretendeu-se, com essa exposição, ressaltar sobretudo as convergências entre teoria da argumentação e semiótica. [página 109] Ambas deslocam para a relação entre enunciador e enunciatário, para a interação sócio-historicamente definida, a determinação dos valores e enfatizam a relatividade discursiva do real e do verdadeiro. Para ambas, também, o estabelecimento de acordos sobre os sistemas de valores é condição para o exercício da argumentação e determina critérios de seleção e de apresentação dos dados e, ainda, as formas de manipulação. Perelman e Olbrechts-Tyteca estabelecem, exaustivamente, esquemas de argumentos, embora enfatizem o caráter arbitrário desse estudo, já que a argumentação se caracteriza pela interação constante e sobre vários planos dos elementos esquematizados. A superposição ou combinação dos argumentos leva em conta a sua força argumentativa, que, uma vez mais, depende dos auditórios e da finalidade da argumentação. Os esquemas argumentativos propostos mostram a riqueza e a variação dos procedimentos de argumentação, assim como o interesse em se reverem certas “figuras da linguagem”, a analogia ou a metáfora, por exemplo, do ponto de vista da busca da adesão. Conclui-se, também, que todas as opções feitas pela enunciação na produção do discurso são argumentativas. Por isso mesmo, gostaríamos de propor outras formas de organização dos procedimentos argumentativos, nos vários níveis do percurso gerativo, distinguindo melhor mecanismos e efeitos, assim como o alcance de cada recurso. Neste trabalho serão apenas esboçadas, em grandes linhas, algumas das possibilidades. Nessa revisão superficial, distinguem-se, em primeiro lugar, no nível discursivo, recursos propriamente sintáticos de procedimentos mais especificamente semânticos. Prefere- se reservar o termo argumentação para os meios sintáticos. A semântica discursiva, ao investir figurativamente os conteúdos, cria efeitos de realidade que ajudam a persuadir e a convencer, mas são os mecanismos sintáticos do discurso que promovem a relação entre enunciador e enunciatário. No texto de reportagem já utilizado como exemplo, sobre a morte misteriosa de três sargentos, empregam-se os dois tipos de procedimentos: “‘Tudo é inexplicável’, diz Neusa Muller de Souza, 24 anos, de Passo Fundo, a 290 quilômetros de Porto Alegre, viúva do sargento Luiz Élvio” (Veja, 14 jan. 87, p. 32). Os dados a respeito da mulher — nome próprio, idade, lugar de moradia, localização precisa da cidade e relação com o morto — produzem, pela ancoragem de ator e de espaço, a ilusão de realidade necessária para a fabricação de efeitos de [página 110] verdade. Esses recursos diferenciam- se, porém, dos procedimentos sintáticos de delegação de voz, por exemplo. É a mulher quem fala, mas para nada dizer de novo, do ponto de vista da informação. Sua fala funciona como um argumento em favor do “mistério” da morte dos sargentos, direção seguida no texto, já que a família deveria conhecer as causas da morte de um de seus membros. Em segundo lugar, opõem-se recursos discursivos a recursos narrativos. Muitos dos esquemas argumentativos apresentados no tratado explicam-se narrativamente. Basta pensar-se no argumento de autoridade, que utiliza atos e opiniões de uma pessoa ou de um grupo como prova em favor de uma tese. Seu alcance dependerá do prestígio da autoridade invocada (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1970, p. 410-1). Pode ser ilustrado com as citações dos discursos científicos — “Escrevendo entre 1973 e 74, Roland Barthes estabelece uma distinção entre ‘nouveau’ e ‘neuf’ (entre novo e recém-feito, recente) expressiva para a pós- modernidade, embora não pensasse nela” (Coelho, 1986, p. 171) — ou com as constantes remissões no discurso jornalístico —“ ‘Isso está gerando um novo tipo de criminalidade’, afirma o advogado carioca Marcelo Cerqueira” (reportagem sobre estupro, Veja, 14 jan. 87, p. 33). O argumento de autoridade, formulado em termos actanciais na sintaxe narrativa, deve ser considerado como a convocação de auxiliares do sujeito ou do anti-sujeito — adjuvantes ou oponentes — para que cumpram programas narrativos de uso: atribuam competência ao sujeito ou realizem, em seu lugar, fazeres necessários ao programa de base. Roland Barthes é o adjuvante que dota o sujeito de competência (poder e saber-fazer) para explicar o pós-moderno. O advogado, citado na reportagem como autoridade em criminalidade, realiza programa de uso, tendo em vista o programa de base do enunciador do texto, o de mostrar a necessidade de mudança na legislação. Nos discursos “argumentativos” — discursos científicos, políticos, entre outros — muito do que sempre se considerou como argumentação deve, assim, ser revisto em termos de estruturação narrativa de programas narrativos de busca ou de construção do saber ou de procura de adesão e de confiança. A organização narrativa dos discursos argumentativos é, dessa forma, reconhecida. A separação dos discursos, em argumentativos e narrativos, não pode mais ser efetuada a partir do critério de existência ou não de narratividade subjacente e desloca-se para a instância da semântica discursiva, [página 111] onde se diferenciam discursos temáticos e discursos figurativos. A analise de Greimas (1983) de um prefácio de Dumezil oferece um bom exemplo da posição semiótica frente à argumentação. A exposição sobre a argumentação apresentou problemas e caminhos mais do que propriamente soluções. Nela, colocou-se como questão fundamental a dos acordos entre enunciador e enunciatário sobre os valores. Ducrot (1973) define a argumentação como a tentativa do locutor de levar o interlocutor a transformar suas opiniões, graças a princípios que reconhece. A teoria da argumentação assenta-se sobre a idéia de reconhecimento. Retoma-se a questão da interpretação, caracterizada pela comparação do novo e desconhecido ao já sabido ou acreditado. A adequação cognitiva não se confunde com a adequação à realidade referencial. Na argumentação, cotejam-se os valores e os procedimentos sintáticos utilizados pelo enunciatário, determinados por sua inserção na sociedade e na história. A sintaxe discursiva, em resumo, explica as relações entre enunciação e enunciado — modalização virtualizante do sujeito do enunciado, delegação do saber, relações entre actantes e atores discursivos e actantes narrativos, instauração do tempo e do espaço do discurso e entre enunciador e enunciatário — implicitação de conteúdos, realização de atos de linguagem, procedimentos argumentativos — como recursos discursivos para comunicar valores e convencer e persuadir o enunciatário. Para examinar a sintaxe discursiva, recorreu-se a várias teorias pragmáticas e procurou-se retomar seus princípios e métodos na abordagem da instância discursiva. Tais teorias reconhecem os conflitos entre sujeitos, desde que inscritos na língua, ou seja, marcados na própria estrutura do enunciado. Essa concepção dos fatos pragmáticos não é suficiente para explicar satisfatoriamente a organização argumentativa do discurso, mas, colocadas no seu devido lugar, o de análise das estruturas especificamente lingüísticas no nível textual, as contribuições da pragmática mudam os objetivos dos estudos lingüísticos e, na perspectiva semiótica, completam, com o exame das estruturas textuais, a análise do texto empreendida. Além disso, e essa foi a direção que este trabalho procurou indicar, os estudos pragmáticos de superfície apontam para organizações argumentativas imanentes, no nível discursivo, e oferecem pistas para sua explicação. No dizer de Ducrot [página 112] “a lingüística ajudar (a compreender um discurso), na medida em que dá às palavras, as frases então, significações que obrigam, para se deixarem transformar em sentido, a reconstruir os debates de que o discurso e o lugar” (DUCROT, 1980, p. 56), SEMÂNTICA DISCURSIVA A semântica discursiva descreve e explica a conversão dos percursos narrativos em percursos temáticos e seu posterior revestimento figurativo. A disseminação discursiva dos temas e a figurativização são tarefas do sujeito da enunciação, que assim provê seu discurso de coerência semântica e cria efeitos de realidade, garantindo a relação entre mundo e discurso. Elementos de semântica estrutural É preciso retomar alguns elementos de semântica estrutural, apenas os julgados imprescindíveis para a explicação da tematização e da figurativização, assim como da noção de isotopia. Distinguem-se, na organização do semema42, unidade de manifestação do plano de conteúdo, dois tipos de categorias semânticas, definidas pela projeção, sobre elas, da categoria metassêmica articulada em /exteroceptividade/ vs. /interoceptividade/43. Os semas interoceptivos denominam-se classemas e os exteroceptivos, semas propriamente ditos. Dessa articulação dos semas decorrem as duas dimensões fundamentais da linguagem: a dimensão abstrata, dos classe- mas, e a figurativa, dos semas. As duas dimensões mantêm, por definição, relação de natureza diferente com o mundo natural44. A relação entre a linguagem e o mundo, entendido como realidade-significante, explica-se como uma rede de correlações entre duas semióticas, a semiótica das línguas naturais e a semiótica do mundo natural (GREIMAS, 1970, p. 52). O mundo natural é responsável, nas línguas naturais, pela dimensão figurativa, ou seja, as unidades elementares da forma da expressão do mundo natural constituem parte da forma do conteúdo das línguas naturais. As figuras sensoriais visuais, auditivas, táteis, da expressão do mundo, como as categorias /quente vs. frio/, /horizontal vs. vertical/, /doce vs. azedo/, tornam-se semas exteroceptivos nas línguas naturais. Já a dimensão abstrata da língua responde pela organização [página 113] abstrata da realidade significante. Inverte-se a direção da seta na relação entre língua e mundo. O semema reúne as duas dimensões fundamentais da linguagem. Os semas, organizados hierarquicamente, constituem o núcleo sêmico ou a figura nuclear do semema e os classemas, sua base classemática. O núcleo sêmico marca “sensorialmente” sua relação com o mundo natural e apresenta-se como a porção invariante do semema, como um mínimo sêmico permanente. O núcleo sêmico de pé contém, por exemplo, os semas /extremidade/ e /inferioridade/. Os classemas, que se combinam em bases classemáticas, cumprem duas funções. A primeira é a função classificatória; pois as categorias classemáticas formam uma rede capaz de organizar as figuras nucleares e os sememas em classes de /animados/, /humanos/ e outras. A segunda função diz respeito ao papel que o classema assume, no interior do semema, de denominador comum a toda uma classe de contextos. Os classemas são, portanto, semas contextuais e asseguram a coesão sintagmática do discurso, estabelecendo compatibilidades e incompatibilidades entre figuras sêmicas. A concordância sêmica garantida pelos classemas foi denominada isotopia classemática. Para encerrar essa rápida incursão na semântica estrutural, resta ressaltar que o semema, assim definido, depende essencialmente do contexto e não pode ser determinado de uma vez por todas. O lexema, unidade de expressão e de conteúdo que manifesta o semema, caracteriza- se por sua relação com muitos sememas, que mantêm entre si algum tipo de ligação e que determinam, quando da realização do lexema, percursos semêmicos diversos, segundo os contextos. Tem-se então a polissememia (e não a polissemia). Um lexema como língua, por exemplo, define-se por diferentes percursos semêmicos em contextos variados como “Comi língua ensopada no jantar”, “Joana fala várias línguas”, “A língua portuguesa tem sua origem na língua latina”, “Ela tem uma língua que dá medo” e assim por diante. O lexema é uma unidade de significação virtual que, em contexto, assume um ou mais sememas. Resta acrescentar que a variação semêmica no interior das unidades lexemáticas não se deve apenas aos classemas. Também os semas nucleares, excetuado o mínimo invariante nu semema, alteram-se contextualmente. A semântica discursiva recupera a oposição entre as duas dimensões da linguagem, conciliadas mas não identificadas no semema, e, também, o caráter contextual do semema e suas relações com o lexema, sob a forma de percursos. [página 114] Tematização e figurativização Examinaram-se na semântica narrativa (ver esse item) os valores assumidos por um sujeito que, graças a essa junção, se define como sujeito existente, passional, e como sujeito competente. Os valores disseminam-se, sob a forma de temas, em percursos temáticos e recebem investimento figurativo, no nível discursivo. O tratamento dos temas é garantia de manutenção semântica, na passagem do narrativo ao discursivo, cabendo à figurativização o acréscimo de sentido previsto na conversão. As estruturas discursivas são, ao mesmo tempo, mais específicas e mais complexas e “enriquecidas” que as estruturas narrativas e fundamentais. nível das estruturas + + complexo discursivas específico (+ “rico”) nível das estruturas narrativas + geral + simples nível das estruturas (noção de extenção (noção de intenção, fundamentais lógica) na lógica Temas e figuras, relacionados, repetem, no nível do discurso, a conciliação e a diferenciação das duas dimensões da linguagem, a abstrata e a figurativa, tal como se viu ocorrer no semema. Tematização é a formulação abstrata dos valores, na instância discursiva, e sua disseminação em percursos. Ê possível, a partir de um mesmo valor, obter-se mais de um percurso temático. O objeto-valor do /poder-fazer/ e do /poder-ser/ da dominação ocorre, por exemplo, no poema infantil A galinha, de Chico Buarque, sob a forma de tema sócio- econômico (relação patrão-operário), sexual (relação homem-mulher) e político (relação entre estado e subversão da ordem), entre outros (BARROS, 1985). A tematização assegura a conversão da semântica narrativa em semântica discursiva e poder-se-ia, então, pensar em discursos puramente temáticos ou não-figurativos, como os discursos científicos. O exercício da análise textual tem mostrado, porém, que não há discursos não-figurativos e sim discursos de figuração esparsa, em que assumem relevância as leituras temáticas. Os discursos literários, denominados figu- [página 115] rativos, e os científicos, considerados não-figurativos, diferenciam-se, na verdade, por graus de figurativização, a serem examinados nos procedimentos de figurativização semântica. Nos discursos temáticos, feitas as ressalvas acima, encontram-se configurações temáticas que se comparam com os morfolexemas de Greimas, ou morfemas de Martinet, ou gramemas de Pottier. Os morfolexemas têm caráter essencial- mente classemático, isto é, relacionam-se a um tipo particular de semema, constituído por combinações apenas classemáticas e pertencente só à dimensão abstrata da língua. Tais sememas formam um sistema segundo em relação aos demais, assumindo papel metalingüístico, As configurações temáticas, da mesma forma que os morfolexemas, abrigam apenas percursos narrativos e temáticos, diferentes, segundo os discursos, e diversamente interligados. Os discursos temáticos, em que se realizam um ou mais percursos temáticos de uma configuração, têm por objetivo, em lugar de “representar o mundo” ou de causar esse efeito, classificar e organizar a realidade significante, estabelecendo relações e dependências temáticas. Constituem, portanto, também eles, uma dimensão segunda, metalingüística, em relação aos discursos figurativos. Nos discursos temáticos, os actantes recebem o investimento semântico mínimo, necessário para se tornarem atores. Os elementos da sintaxe narrativa — ao menos um papel actancial — e da sintaxe discursiva — resultantes da regulamentação da distância em relação à enunciação — especificam-se por meio de um ou mais papéis temáticos. O sujeito que busca o saber na instância narrativa, que é determinado como um ele enuncivo pela sintaxe discursiva, converte-se em ator, graças ao papel temático de pesquisador. A figurativização constitui um novo investimento semântico, pela instalação de figuras do conteúdo que se acrescentam, “recobrindo-o”, ao nível abstrato dos temas. O sujeito da enunciação emprega certos procedimentos para figurativizar o discurso, para investir os temas discursivos. A narrativa da busca do saber, por exemplo, ocorre com investimento figurativo esparso, no caso do discurso científico, ou totalmente recoberta de figuras, na história da procura de um manuscrito perdido, na da revelação pela palavra divina no trecho bíblico de Moisés e os Dez Mandamentos ou na da visita à Dona Coruja que dá bons conselhos. São investimentos figurativos diferentes para a mesma busca narrativa do saber, em que o objeto-valor /saber/ aparece sob a figura do manuscrito, da voz e da presença reveladora de Deus ou da fala da coruja. A partir daí, todo o percurso do sujeito encontra-se figurativiza- [página 116] do: os processos, já aspectualizados, tornam-se ações de explorar, escrever, escutar, contar; o sujeito, já marcado como um actante do discurso, eu ou ele, representa-se pelos atores pesquisador, explorador, povo de Deus, Moisés, coelho curioso ou criança perdida; o tempo e o espaço, determinados em relação à enunciação pelos procedimentos de desembreagem, especificam-se sob a forma de figuras espaciais e temporais do tipo de nos tempos atuais, na exploração do Tibete em maio e junho de 1951, no tempo bíblico do Antigo Testamento, na floresta encantada, no tempo em que os bichos falavam ou no da fantasia do “Era uma vez... “. Os exemplos mostram níveis diferentes de especificação, alguns antropônimos, topônimos e cronônimos mais genéricos — explorador, criança, povo de Deus, floresta, tempo em que os animais falavam —, outros mais específicos — Moisés, Tibete, maio e junho de 1951. Denomina-se figuração a instalação pura e simples das figuras semióticas, ou seja, a passagem do tema à figura, e iconização, seu revestimento exaustivo com a finalidade de produzir ilusão referencial. Falar de figuras discursivas é, de qualquer forma, retomar a discussão da relação entre língua (ou discurso) e realidade. Na rápida incursão pela semântica estrutural, definiram-se as figuras nucleares pela exteroceptividade, ou seja, pela conversão de certos elementos da expressão do mundo natural em traços do conteúdo das línguas naturais. O procedimento de figurativização discursiva tem a ver com a definição, aí proposta, de figuras, pois são figuras do conteúdo, determinadas por traços “sensoriais”, que particularizam e concretizam os discursos abstratos. A relação intersemiótica — mundo e língua — não deve ser entendida como a instauração de laços analógicos entre realidade e discurso ou de confusão entre imagens do mundo e figuras discursivas. O discurso figurativizado resulta da construção do sentido efetuada pelo sujeito da enunciação, trabalho esse representado sob a forma do percurso gerativo. O discurso não é a reprodução do real, mas a criação de efeitos de realidade, pois se instala, entre mundo e discurso, a mediação da enunciação. Os trabalhos da chamada semiótica do visual, sobretudo os textos de Floch e Thürlemann, colocam bastante bem o problema, já que, mais do que outros, estão às voltas com a divisão, tradicionalmente aceita, entre pintura abstrata e pintura figurativa, ou com a iconicidade da fotografia — “cópia-do-real”. Floch (1982a) mostra que o enunciador tenta fazer o enunciatário achar semelhante ou não ao “mundo real” a pin- [página 117] tura e a fotografia que produz, isto é, procura fazer-crer no caráter icônico delas. A questão da relação entre discurso e referente desloca-se para a do contrato entre enunciador e enunciatário, de tal forma que um produza e o outro interprete os efeitos de realidade. Mostrou-se já, neste texto, que a criação de efeitos de sentido de realidade é um trabalho tanto da sintaxe discursiva (ver item Desembreagem e embreagem actancial e teorias do foco narrativo) — sobretudo na desembreagem de segundo e de terceiro graus —, quanto da semântica discursiva, por meio, principalmente, da figurativização. O enunciador utiliza as figuras do discurso para fazer-crer, ou seja, para fazer o enunciatário reconhecer “imagens do mundo” e, a partir daí, a verdade do discurso. O enunciatário, por sua vez, crê- verdadeiro (ou falso ou mentiroso ou secreto), graças ao reconhecimento de figuras do mundo natural. O fazer-crer e o crer pressupõem, conforme foi visto, um contrato fiduciário de veridicção, que regulamenta o reconhecimento das figuras. Com o acordo de reconhecimento, assume-se a relatividade cultural da distinção entre figurativo e abstrato nas artes plásticas e define-se a iconicidade como um efeito de sentido resultante do contrato de veridicção. Uma pintura será considerada figurativa e uma fotografia, icônica, quando forem interpretadas como tal, quando o enunciatário nelas reconhecer “imagens do mundo”, graças ao contrato de veridicção e a partir dos efeitos de realidade que o enunciador produziu. A mesma definição aplica-se, em sentido contrário, à abstração. No quadro da semiótica geral, os dois pontos extremos do reconhecimento, denominados figurativo e abstrato no campo das artes plásticas, aplicam-se às diferentes maneiras de figurativizar o discurso. O investimento figurativo pode ser esporádico e não recobrir totalmente os percursos temáticos, ou duradouro e espalhar-se pelo discurso todo, que se organiza em isotopias figurativas. No primeiro caso, encontram-se, entre outros, os discursos científicos e políticos, em que não se determinam leituras figurativas completas. Veja- se, por exemplo, o trecho transcrito de um prefácio de Martinet, com figurativização que não atinge as dimensões do discurso. “No entanto o ensino de Saussure só frutificou verdadeiramente uma vez enxertado noutros rebentos e os vários movimentos estruturalistas tiveram de eliminar...” (MARTINET, 1982, p. X — os grifos são nossos). Reforçam-se, nesses textos, as isotopias temáticas e sobressaem os efeitos de sentido de enunciação, em detrimento [página 118] dos de realidade, que, embora não desapareçam totalmente, ficam restritos ao âmbito da sintaxe discursiva. A verdade discursiva decorre, então, mais das ilusões enunciativas — presença ou ausência de enunciação, marcas e efeitos alcançados —‘ que das de realidade. O segundo tipo de procedimento para tornar os discursos figurativos caracteriza, entre outros, os textos literários e históricos, em que um ou mais investimentos figurativos recobrem o discurso inteiro. Esses discursos, graças aos recursos de figurativização, criam efeitos de realidade ou de irrealidade e percorrem o caminho que vai da figuração à iconização. Parecer real ou irreal são ilusões construídas e que dependem de fatores de contextualização. Os procedimentos de ancoragem histórica — actorial, temporal e espacial —, comumente utilizados para se obter efeito de realidade, produzem, em certas situações, a ilusão contrária. No filme A vida de Brian, quando se diz que no dia 5 de agosto, às três horas da tarde, Cristo pregou no deserto, o espectador ri do absurdo. Da mesma maneira, a negação no discurso de seu caráter de reprodução do real, quando tudo se fez para obter tal efeito, provoca risos nervosos da platéia, na projeção de Pra frente Brasil. A última cena do filme, após tantas de perseguição, tortura e morte, é a do estádio de futebol, logo depois da vitória do Brasil na copa de 70 — a taça erguida, as bandeiras verde-amarelas sacudidas —, sobre a qual se lê “Este é um filme de ficção”. Nos textos em que o investimento figurativo goza de certa autonomia e ocupa as dimensões do discurso, equilibram- se efeitos de sentido de realidade (ou de irrealidade) e de enunciação, na constituição da verdade discursiva. A presença (ou a ausência) e a qualificação do enunciador somam-se à ilusão de referente, de fato ocorrido e experimentado. As possibilidades de combinação dos dois recursos são muitas e caracterizam momentos e lugares históricos. A literatura, nos últimos anos, tem enfatizado, por exemplo, os efeitos de enunciação. Comparando a composição do semema e a relação entre semema e lexema com a organização semântica do discurso, podem-se explicar mais minuciosamente as configurações e os percursos figurativos e destacar o papel e a importância da figura, para as relações entre texto e contexto. No semema, há um mínimo sêmico invariante, na figura nuclear, e variação contextual tanto de traços figurativos, quanto de classemas “abstratos”, que fazem prever percursos semêmicos, contextualmente diferentes, para um mesmo le- [página 119] xema. Define-se configuração discursiva como uma espécie de “lexema do discurso”, que subsume vários percursos figurativos e temáticos, além dos narrativos, e conta com algumas figuras invariantes. Os esquemas abaixo mostram melhor a comparação efetuada. núcleo sêmico (invariante) Figura nuclear variação figurativa sema 1 Lexema sema 2 sema 3 classema 1 Base classemática classema 2 classema 3 figura comum (invariante) Núcleo figurativo variação percurso figurativo 1 Figurativa percurso figurativo 2 percurso figurativo 3 Configuração discursiva percurso temático 1 percursos percurso temático 2 Variação temáticos percurso temático 3 temático-narrativa percursos percurso narrativo 1 narrativos percurso narrativo 2 percurso narrativo 3 Courtés (1980a) serviu de inspiração para os esquemas, embora não se tenha retomado totalmente sua organização da configuração discursiva. A principal diferença está no fato de que Courtés não considera a variação figurativa, enfatizando apenas as diferentes possibilidades temáticas e narrativas de uma configuração. Tentou-se, no quadro acima, mostrar também as mudanças contextuais figurativas, ou seja, ao lado da porção permanente de figuras que permitem a identificação da configuração, procurou-se reconhecer percursos figurativos diferentes, segundo o contexto. Os motivos da etnoliteratura são bons exemplos de configuração discursiva ‘. Pode-se ilustrar a questão, muito rapidamente, com o motivo do dedo furado por objeto pontiagudo, que ocorre, por exemplo, no conto da Branca de Neve e no da [página 120] Bela Adormecida. Na Branca de Neve, a mãe da princesa, num dia de inverno, antes de ela nascer, está bordando e fura o dedo com a agulha. Formula, então, o desejo de ter urna filha branca como a neve que cai e com os lábios vermelhos como o sangue de seu dedo. Na Bela Adormecida, a princesa, ao completar quinze anos, fura o dedo num fuso e, por causa de uma maldição, dorme cem anos, só sendo acordada pelo beijo de um príncipe apaixonado. O instrumento em que a princesa se fere, a roca, que fora banido do reino, por causa da maldição, está sendo utilizado pela fada má, disfarçada de velha, e com seu barulho atrai a princesinha curiosa. A configuração discursiva em exame tem figuras que permanecem, nos dois textos, e que permitem identificá-la: o dedo furado, o objeto de ponta que serve para bordar, costurar ou tecer, a “ação entre mulheres” — mulher que fura o dedo, mulher que faz uso do instrumento de trabalho manual. Pode-se perceber, também, por outro lado, a variação na configuração, seja figurativa, temática ou narrativa. O esquema proposto mostra uma análise mais minuciosa da variação contextual no interior da configuração: Configuração discursiva do “dedo furado”: texto da imagem: • Figura de perfuração: instrumento pontiagudo, ação de perfurar, sujeito perfurador humano, objeto perfurado — parte do corpo N Figura comum Ú ou invariante C • Traços sensoriais visuais e táteis: da espacialidade (pene- L tração de espaço interior e preenchimento de espaço pe- E la trama do bordado ou do tecido), táteis (pontiagudo, O longo, duro vs. mole) F I G U R • espacialidade: espaço aberto e conta- A to com o exterior T • cor: contraste vermelho vs. branco I Percurso figurativo • temporalidade posterior: previsão do V na Branca de Neve futuro O Variação Figurativa • espacialidade: espaço fechado e es- condido Percurso figurativo som: ruído da roca na Bela Adormecida • temporalidade anterior: realização de previsão do passado [página 121] texto da imagem: criação • sacrifício materno de dar a vida na Branca • produzir o belo V de Neve A • previsão de acontecimentos R informação ruins I Percursos A temáticos Ç Ã O na Bela curiosidade e traição Adormecida (que levam à morte) T E M Á T I doação de competência e de existência modal e C na Branca semântica (Destinador vs. Destinatário-sujeito) O de neve - N A R Percursos R narrativos A T na bela privação do objeto de valor “vida” I Adormecida (Sujeito vs. Anti-sujeito) V A Há diferentes percursos figurativos, temáticos e narrativos na configuração do “dedo furado”. Muito resumidamente, pode-se dizer do ponto de vista narrativo que, na Branca de Neve, tem-se o percurso do destinador que dota o destinatário-sujeito de competência — qualidades que têm importância para o fazer futuro do sujeito — e de existência modal — instaura o sujeito. A mãe é o destinador, e Branca de Neve, o destinatário-sujeito. Já na Bela Adormecida, encontra-se o momento da falta, em que a fada má desapropria (disjunção transitiva) a princesa do objeto-valor “vida”, graças tanto a seu fazer persuasivo “sonoro”, quanto à transgressão das regras pela princesa curiosa. A fada má é o anti-sujeito que, mais tarde, enfrenta o sujeito, o príncipe. O dedo furado concretiza, nesse discurso, o tema de desapropriação da vida. Assim, enquanto na Branca de Neve, num dos temas ao menos, mostra- se o nascimento, o surgimento da vida pela doação do sangue, na Bela Adormecida manifesta- se a morte ocasionada pelo outro, o crime enfim. Finalmente, a variação figurativa ocorre, sobretudo, por meio de oposições espaciais — espaço aberto para o exterior, na Branca de Neve, e fechado, na Bela Adormecida —, temporais — previsão do futuro, na Branca de Neve, e maldição do passado, na Bela Adormecida — e de cor e de som — na Branca de Neve, contrastam e combinam-se o vermelho e o branco, e, na Bela Adormecida, opõem-se o ruído da roca e o silêncio do sono. [página 122] A rápida e incompleta análise de uma configuração pretendeu apenas mostrar como elas se organizam. Ressaltou-se que: a) na análise de um determinado discurso, encontram-se apenas os percursos, um ou mais, de uma mesma configuração, que só se deixa apreender quando se relaciona mais de um discurso (A configuração, da mesma forma que o lexema, é virtual e se realiza sob a forma de percursos figurativos.); b) a figurativização é a camada mais superficial sob a qual se acham percursos temáticos e narrativos (Cabe, na geração do sentido, estabelecer a relação entre os vários tipos de percurso.); c) percursos figurativos e percursos temáticos mantêm relações variadas. (No exemplo da Branca de Neve, propuseram-se, para o mesmo percurso figurativo de “furar o dedo com a agulha de bordar”, três percursos temáticos, dois claramente englobados como “criação”, ou seja, dar a vida e produzir o belo, e um terceiro, de informação antecipada de acontecimentos ruins. A gota de sangue é vida, é beleza, é aviso. Já na análise da Bela Adormecida, a relação entre percurso figurativo e percurso temático é de um para um. Não se examinou a perspectiva contrária, ou seja, de um mesmo tema especificar-se em figuras diversas. Comparem-se, por exemplo, as figurativizações diferentes, para o mesmo percurso temático de “tirar a vida”, na Branca de Neve e na Bela Adormecida. Na Branca de Neve, a madrasta faz a princesa dormir com a maçã envenenada — há uma nítida leitura figurativa gustativa —, na Bela Adormecida, a fada má leva a jovem ao sono ao lhe furar o dedo — há figuras, sobretudo, táteis e sonoras.) Os exemplos propostos e o reconhecimento da variação fazem desembocar na questão do papel das figuras na relação entre texto e contexto. A enunciação, como instância de produção do discurso, foi examinada através de suas projeções no enunciado e está sendo retomada como uma espécie de depósito de figuras, a partir de que o sujeito da enunciação especifica e concretiza os temas abstratos e reveste semanticamente a narrativa. O depósito forma-se no tempo e no espaço, historicamente, e o discurso figurativizado, graças a seu dis- [página 123] positivos de figuras, relacionam-se com o ‘‘extradiscursivo’’ e constitui-se ideologicamente. As figuras são, por excelência, o lugar do ideológico no discurso46. Não é ingênua, portanto, nos exemplos vistos, a escolha de figuras de mulher que borda e que se sacrifica, ligadas ao tema da maternidade, da beleza e do conhecimento intuitivo, ou a de espaços abertos e fechados, para concretizar temas de nascimento e morte. Isotopia As estruturas discursivas foram explicadas, na última etapa da geração do sentido, pelas relações do discurso com a enunciação, do ponto de vista sintático, e pela organização de temas e de figuras, na perspectiva semântica. Os temas disseminam-se pelo texto em percursos, as figuras recobrem os temas. A reiteração discursiva dos temas e a redundância das figuras, quando ocupam a dimensão total do discurso, denominam-se isotopia. O conceito de isotopia, assim como o termo, foi proposto por Greimas, na Semântica estrutural (1966). As primeiras definições de isotopia, embora bastante vagas, marcam já, com precisão, a noção de recorrência, ou seja, de que ao menos duas unidades são precisas para sua determinação. Duas limitações aparecem nas colocações iniciais: em primeiro lugar, só se examinam as isotopias classemáticas — a isotopia resulta da redundância de uma mesma categoria classemática ou da repetição de um ou de vários classemas — e, em segundo lugar, as definições encontram-se ainda muito presas às questões de coerência interfrásica ou mesmo frásica. Não muito tempo depois, Rastier (1976) retoma algumas das observações marginais na Semântica estrutural e estabelece a noção de isotopia figurativa, para explicar a coerência figurativa do discurso. Os desenvolvimentos da teoria semiótica, sobretudo quanto à distinção de níveis de análise e à concepção de percurso gerativo, permitem que o conceito de isotopia seja reinterpretado no quadro de uma teoria geral do discurso, mais precisamente, do seu componente semântico. Assim recuperada, a noção de isotopia conserva a idéia de recorrência de elementos lingüísticos, redundância que assegura a linha sintagmática do discurso e responde por sua coerência semântica. Distinguem-se dois tipos de isotopia, segundo as unidades semânticas reiteradas: isotopia temática e isotopia figurativa. A isotopia classemática, inicialmente proposta, substitui-se, [página 124] na instância do discurso, pela isotopia temática, não mais confundida com relações frásicas ou interfrásicas e capaz de mostrar a organização abstrata do discurso. A isotopia temática surge da recorrência de unidades semânticas abstratas em um mesmo percurso temático. Um discurso, por exemplo, em que se dissemina o valor /saber/, pode ter atores como pesquisador, informante, informado, ações de pesquisa ou de informação, objetos a serem pesquisados ou objetos de informação, entre outros, que desenvolvem um ou mais percursos temáticos, ligados à mesma configuração, e retomam, a cada passo, o elemento comum temático da busca do saber. Na leitura ingênua de um texto qualquer, procura- se, em geral, esse denominador comum, essa homogeneidade obtida mesmo às custas de perda de especificidade discursiva. Diz-se de um livro que ele trata de questões de liberdade; de um quadro, que pinta a velhice; de um poema, que fala do desaparecimento da vida; de uma escultura, que dá forma ao amor. Só podemos fazer essas generalizações pelo reconhecimento da isotopia temática. A isotopia figurativa caracteriza os discursos que se deixam recobrir totalmente por um ou mais percursos figurativos. A redundância de traços figurativos, a associação de figuras aparentadas atribui ao discurso uma imagem organizada e completa de realidade ou cria a ilusão total do irreal, a que já se fizeram muitas referências. Assegura-se, assim, a coerência figurativa do discurso. A coerência semântica do discurso, pelo visto, é função de isotopias temáticas e figurativas ou de uma isotopia temática, ao menos. Se a disseminação de temas e a dispersão de figuras em percursos correspondem à sintagmatização das configurações, a recorrência de traços abstratos e figurativos propicia abordagens paradigmáticas do sentido do discurso. Reconhece-se a definição de Jakobson de função poética como “projeção do princípio de equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação” (1963, p. 220). Os percursos figurativos e temáticos, que se estendem pelo discurso, não têm sintaxe própria — é a sintaxe narrativa que os sustenta — e devem, portanto, sua organização, antes de mais nada, às associações próprias do paradigma. A análise das linhas isotópicas se faz, em grande parte, com métodos e técnicas da semântica estrutural, já que se trata de determinar traços semânticos figurativos e abstratos, de organizá-los e de reconhecer seu caráter iterativo. Dessa forma, puderam-se opor, no item Tematização e figurativização, os percursos figurativos da configuração de “furar o dedo”, [página 125] na Branca de Neve e na Bela Adormecida, a partir essencial- mente de traços visuais cromáticos, sonoros, espaciais e temporais. A leitura de um texto implica não só a construção, a partir das reiterações semânticas, dos percursos e das configurações virtuais, como também a determinação das relações vigentes entre as várias isotopias. As relações entre isotopias são denominadas metafóricas ou metonímicas, conforme sejam ligadas por similaridade ou por contigüidade de conteúdos. A respeito disso, duas observações precisam ser feitas. Em primeiro lugar, as relações metafóricas e metonímicas estabelecem-se, na realidade, entre isotopias figurativas, cada qual pressupondo uma isotopia temática, com que mantém laços. A metáfora é, por exemplo, a relação de similaridade entre figuras que recobrem temas. Em segundo lugar, a reformulação da maneira de abordar as “figuras de retórica” tem várias conseqüências, a mais importante delas sendo a possibilidade de se tomarem metáfora e metonímia não mais como figuras de palavras ou de frases, mas como figuras de discurso. As figuras de palavras ou de frases podem ser, então, consideradas como conectores de isotopias. Os conectores de isotopias pertencem, na verdade, a outro nível de análise, pois são lexemas ou sintagmas da instância de manifestação textual que abrigam, mesmo realizados em um contexto, vários sememas, colocados em percursos isotópicos diferentes. Os conectores lêem-se nos dois planos isotópicos e fazem a passagem de uma isotopia a outra. São, portanto, um dos recursos práticos de determinação das isotopias discursivas, muito embora liguem também percursos figurativos parciais, que não constituem isotopias. Distinguem-se tipos de conectores de isotopias a partir das relações entre os sememas englobados pelo mesmo lexema: se têm semas comuns, fala-se em conexão segundo a polissemia; se não há traços compartilhados, diz-se que a conexão se faz por homoní- mia. Os conectores diferem dos desencadeadores de isotopias. Considera- se que um elemento desencadeia uma isotopia quando não pode ser integrado a uma dada leitura já reconhecida. Os resíduos de isotopias obrigam, assim, a propor-se um novo plano isotópico. Escolheu-se para exemplificar a conexão de isotopias o lexema discurso no poema de J. C. de Melo Neto ‘Rios sem discurso’ (1975, p. 23). [página 126] Rios sem discurso Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água se quebra em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloqüência de uma cheia lhe impondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase e frase, até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a seca ele combate. O lexema discurso conecta duas isotopias figurativas, a da água, não a parada, estancada no poço, mas a enfrasada no curso ou no discurso do rio, e a da palavra, não a guardada, muda, no dicionário, mas a em fio, no discurso. Na isotopia da água, lê-se a história dos rios do Nordeste, interrompidos pela seca e em luta contínua para se refazerem: rios, (dis)curso, corta, água, poços, estanque, estancada, com nenhuma comunica, (dis)corria, curso, reatar, fio de água, cheia, água em fios, seca. Na leitura figurativa da palavra, encontra-se o fazer discursivo, o tomar a palavra para com ela adquirir voz e constituir, com muitas dificuldades, o discurso: discurso, em situação dicionária, isolada, muda, com nenhuma comunica, sintaxe, discorria, grandiloqüência, linguagem, enfrasem, frases curtas, frase e frase, sentença, voz. Os traços figurativos asseguram, nas duas leituras, às vezes mais em uma que em outra, as oposições de: continuidade (correr, discorrer, fio) vs. descontinuidade (corta-se o discurso-rio, a água se quebra, em pedaços, água estancada, cortou-se a sintaxe); linearidade (do discurso [página 127] e do curso do rio em fio) vs. circularidade (da água em poço, da palavra dicionária) no tempo; bidimensionalidade (do fio) vs. tridimensiorialidade (do poço ou da cheia) no espaço; movimento vs. estaticidade (paralítica, estancada); som (voz, comunica, grandiloqüência) vs. silêncio (muda). Cada uma das isotopias figurativas prende-se a pelo menos uma isotopia temática: a água recobre o tema da produção da vida, num trabalho miúdo e sem parada da natureza, e a palavra investe o tema da criação operada pelo homem, no mesmo fazer cuidadoso e continuado. E sempre, na verdade, o tema da criação, pela natureza ou pelo homem, confundidos e combinados na poesia. As relações que se instauram entre a água-vida e a palavra-criação definem metáforas. No último verso do poema, encontra-se um exemplo de elemento desencadeador de isotopia, que introduz um terceiro par de isotopias temáticas e figurativas. O lexema combate desencadeia a isotopia figurativa de luta, de forças em oposição, relacionada à leitura temática sócio- econômica e política. Relê-se o discurso nesse novo plano isotópico que engloba os demais: a água estancada, o rio cortado, a palavra emudecida, o curso e o discurso interrompidos, a outra linguagem imposta, falam do autoritarismo, da opressão e da repressão e atribuem papel social ao fazer criador do homem, ao discurso, no reatamento da voz e da vez. Além dos dois recursos textuais de reconhecimento de isotopias, outros procedimentos facilitam sua apreensão e exame. Pensa-se sobretudo na intertextualidade. O conhecimento de outros textos do autor, da época, do grupo contribui para a descoberta das isotopias, ao fornecerem tais textos uma espécie de “dicionário das metáforas e das metonímias” do autor, do grupo ou do período. A oposição entre a criação do homem e a da natureza, por exemplo, caracteriza muitos dos poemas de J. C. de Meio Neto. Além de aparecer em ‘Rios sem discurso’, encontra-se em ‘Os remos do amarelo’ ou em ‘O mar e o canavial’, entre outros. Os exemplos propostos não podem ser considerados, realmente, exercícios de explicação das linhas isotópicas do poema. A análise das isotopias enfrenta ainda muitas dificuldades, que não impedem, porém, que se reconheça ser indispensável, para a construção do sentido do discurso, a explicação dos procedimentos de coerência semântica. Determinaram-se três mudos práticos de descoberta das isotopias, o conector, o desencadeador e a relação intertextual, critérios que, em geral, auxiliam bastante na tarefa. Não basta, no entanto, estabelecer-se a existência de diferentes planos isotópi- [página 128] cos é preciso explicá-los e relacioná-los uns com os outros e com os planos temáticos e narrativos. Para tanto podem-se convocar recursos dos estudos de retórica, de estilística e de poética. No que concerne à retórica, têm-se à disposição dois tipos de obras, as que são ou tratam de retórica clássica, como a reedição parcial de Fontanier (1968) ou o manual, em três volumes, de Lausberg (1966, 1967, 1968), e as que a retomam e reequacionam, como ocorre sobretudo nos trabalhos de Barthes (1970), Todorov (1967, 1977), e do Grupo µ (DUBOIS, 1974). Barthes, Todorov e principalmente o Grupo µ procuram repensar a retórica em termos estruturais, já no contexto da semântica, reavaliando e reinterpretando essa rica tradição de trabalho com a linguagem, à luz da lingüística geral. O ressurgimento da retórica, na acepção de estudo das figuras, tem muito a ver com a retomada dos estudos sincrônicos e dos problemas semânticos no quadro da lingüística. Se a oposição entre linguagem natural e figurada, fundamento da retórica, contribuiu, como quer Todorov, para sua morte, pois não se acredita mais no grau zero da escritura ou na inocência da linguagem, o campo de preocupações da retórica e as descrições que propôs de um grande número de fatos lingüísticos merecem ser recuperados. Nesse sentido, Jakobson (1963, p. 43-67) exerceu papel de importância ao utilizar as noções de metáfora e de metonímia para caracterizar diferentes tipos de discurso. Segundo o lingüista, no romantismo e no simbolismo predomina a linguagem metafórica; no realismo, a metonímica. Foi, sem dúvida, uma das primeiras tentativas de explicação de figuras de discurso, e não apenas de palavra ou de frase. A retórica, a estilística e a teoria literária podem fazer avançar a análise semiótica das relações entre percursos semânticos, sobretudo nos discursos pluriisotópicos. Há quatro possibilidades diferentes de pluriisotopia: a primeira e mais freqüente é a de se encontrarem várias isotopias figurativas que pressupõem, cada qual, uma isotopia temática e que se relacionam, entre si, de diferentes maneiras — todas se relacionam com todas, uma é mais abrangente e domina as demais, e assim por diante; a segunda possibilidade é dada por diferentes isotopias figurativas ligadas a uma mesma isotopia temática; no terceiro tipo, uma única isotopia figurativa relaciona-se a várias isotopias temáticas; finalmente, a última possibilidade é a dos discursos temáticos, em que se estabelecem relações entre diferentes isotopias temáticas. O primeiro tipo de pluriisotopia é o único que Greimas assim denomina, já que as outras possibilidades de relações [página 129] entre isotopias não caracterizam, em geral, um mesmo e único discurso. O poema Rios sem discurso’ exemplifica bem esse tipo de pluriisotopia, o mais comum no texto literário. Há aí, conforme foi visto, duas isotopias figurativas, a da água e a da palavra, relacionadas, respectivamente, aos temas da produção da vida e da criação operada pelo homem. O segundo tipo de pluriisotopia pode ser ilustrado com o conjunto de contos de Léguas da promissão, de Adonias Filho. O tema do renascimento, da passagem da morte à vida, é figurativizado de formas diversas: pelo corpo que serve de adubo, em ‘Túmulo das aves’, pela identificação do velho com o sobrinho, em ‘Imboti’, pela lembrança que faz reviver, em ‘O pai’, pelo milagre, em ‘Simoa’. A terceira possibilidade apresenta-se nos motivos etnoliterários que se manifestam, em textos diferentes, sob a forma de percursos figurativos semelhantes, correlacionados a temas diferenciados. Nas análises apresentadas da Branca de Neve e da Bela Adormecida, a configuração do “dedo furado” abriga os temas de doação de vida, de produção do belo e de privação de vida. O último caso previsto, o das relações entre isotopias temáticas, corresponde, em geral, à chamada isotopia complexa, em que uma categoria classemática (humano vs. animal, natural vs. cultural, etc.) se manifesta com seus dois termos na seqüência do sintagma. Quase nada se disse das relações entre percursos narrativos e percursos semânticos discursivos. Rastier (1971, p. 289) distingue duas espécies de ambigüidades lingüísticas: a lexical (um mesmo lexema pode recobrir vários sememas) e a sintática (uma mesma seqüência de morfemas pode recobrir várias estruturas profundas diferentes). Pode-se pensar também em dois tipos de ambigüidades semióticas: a discursiva, abordada sob a forma de pluriisotopia, e a narrativa. Para produzir o efeito da ambigüidade narrativa, organizações narrativas diferentes devem ser manifestadas por um mesmo arranjo discursivo ou textual. Ilustra-se a ambigüidade narrativa com o conto de Lígia Fagundes Telles, ‘O jardim selvagem’. Nesse conto, o marido de Daniela, muito doente, morre por causa de um tiro de revólver. Duas organizações narrativas são possíveis: a do suicídio, uma privação reflexiva ou renúncia, e a do assassinato, uma privação transitiva ou espoliação. No segundo caso, o sujeito seria Daniela, que já havia antes matado seu cachorro doente. A ambigüidade sustenta- se porque, na instância da sintaxe discursiva, os procedimentos de desembreagem impedem que se opte por uma das possibilidades. [página 130] Coerência textual No último item deste capítulo, procura-se inserir a questão da isotopia semântica no contexto mais amplo da coerência textual. Os estudiosos do texto, preocupados em determinar o que faz de um texto um texto, isto é, uma unidade específica e não uma soma de frases, têm proposto a noção, um tanto vaga, de coerência, como critério definidor. As diferentes teorias do texto e do discurso concebem também diversamente a coerência textual. Em ‘La cohérence textuelle’ (1985), destacamos quatro pontos de vista diferentes sobre o assunto: o da coesão textual, o das estruturas narrativas, o das estruturas argumentativas e o da isotopia semântica. Excetuada a coesão textual, apenas referida na apresentação da gramática textual, no capítulo anterior, os demais aspectos da organização do texto foram bastante desenvolvidos neste trabalho. A coesão textual, isto é, as diferentes concatenações frásicas lineares que, segundo Halliday e Hasan (1976), dependem de cinco categorias diferentes de procedimentos — a referência, a substituição, a elipse, a conjunção e a coesão lexical —, pertence, na perspectiva deste trabalho, ao nível mais superficial da análise do texto, o das estruturas propriamente textuais. Coloca-se fora, portanto, do percurso gerativo do sentido. Reconhece-se aqui a importância da coesão textual para a coerência do texto, mas não se aceita considerá-la como sua única ou principal garantia. A organização discursiva e a narrativa, subjacentes ao nível superficial das relações interfrásicas, têm também muito a dizer sobre a questão. Afirmou-se, enfaticamente, que não se distinguem, na perspectiva semiótica, discursos argumentativos e discursos narrativos. Todo discurso é narrativo e argumentativo, localizando-se as estruturas narrativas e as argumentativas em etapas diferentes do percurso de produção de sentido. As estruturas narrativas pertencem a nível semiótico mais profundo que as argumentativas, definidas no momento discursivo da relação entre enunciador e enunciatário. A narratividade e a argumentatividade são, ambas, fatores de coerência, situados em níveis diferentes de descrição e explicação do discurso. O fio narrativo e a finalidade discursiva da argumentação costuram o discurso e tornam o texto coerente. A coerência semântica das isotopias, sobre a qual se discorreu no item anterior, é o ultimo dos fatores de coerência apresentados. [página 131] Retomaram-se as concepções mais usuais de coerência textual para mostrai que, embora cada procedimento destacado seja condição de aparecimento do texto, sozinhos, não bastam. E preciso, portanto, uma teoria geral que englobe “com os mesmos procedimentos metodológicos e a mesma metalinguagem descritiva, os diferentes fatores de coerência, situando-os em níveis diferentes de análise e explicação e indicando as relações complementares que mantêm na construção do sentido” (BARROS, 1985, p. 277). A semiótica pode ser essa teoria geral. Nesses dois capítulos, explicaram-se e situaram-se as diferentes condições de coerência previstas: • nível das estruturas narrativas: coerência narrativa • nível das estruturas discursivas: • sintaxe discursiva: coerência argumentativa • semântica discursiva: coerência semântica das isotopias • nível das estruturas textuais: coesão interfrásica. Sem dúvida alguma, a coerência do texto está na dependência também de suas relações com o contexto sócio-histórico. Este, porém, é o assunto do próximo capítulo. NOTAS 24 “o eu que escreve sabe que não é exatamente aquele eu que aparece como sujeito gramatical do texto; em outros termos: o eu-autor sabe que o eu- narrador é apenas uma sua variante possível, uma sua possível máscara” (BOSI, 1977, p. 12). 25 Para a distinção entre enunciador e locutor, veja-se Ducrot (1980). 26 A peça foi montada pelo Grupo BHÃRATANÃTYA DARPANA e apresentada em abril de 1985, na Universidade de São Paulo, durante a Semana da Índia, promoção do Curso de Língua e Literatura Sânscritas. 27 Além dos autores citados no decorrer da exposição sobre foco narrativo, contribuíram para esta visão geral do assunto os textos de Rossum-Guyon (1970) e Leite (1985). 28 Veja-se, sobretudo, o item Tematização e figurativi- zação do discurso, neste capítulo. 29 No capitulo 3, será examinada a estrutura narrativa da enunciação. 30 Exemplos analisados dos focos narrativos propostos por Friedman podem ser encontrados em Leite (1985). [página 132] 31 ‘‘Se há disparidades no entendimento de um mesmo conceito, como se apontou a propósito da dicotomia inside-outside ou internal-external, ocorrre a mesma situação quanto às diferentes acepções conferidas a iguais termos. O que é subjetivo e onisciente para Friedman, torna-se, para Tomachevski, objetivo e onisciente” (DAL FARRA, 1978, p. 30). 32 A crônica ‘Brincadeira’ de L. F. Veríssimo (1981, p. 10) mostra um bom trabalho com a categoria do /saber-ser/. 33 Segundo Greimas & Courtés (s.d., p. 29), o procedimento de aspectualização caracteriza também a espacialização e a actancialização, mas, até o momento, só a aspectualização do tempo foi examinada, na lingüística e na semiótica. 34 Para o jogo de imagens, vejam-se o trabalho de Pêcheux (1969) e, no quadro teórico da semiótica, os de Landowski (1981a, 1983). 35 Essa revisão foi iniciada em curso ministrado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em 1976 e 1977, e aparece nas publicações de Ducrot a partir de 1977. 36 Outra conseqüência é a substituição dos critérios de negação e de interrogação, classicamente utilizados na determinação dos pressupostos, pelo de encadeamento. Os pressupostos “lingüísticos” ou da frase mantêm-se quando a frase é negada ou interrogada: em “João continua gordo”, o pressuposto de que antes João era gordo conserva-se em “João não continua gordo” ou em “João continua gordo?”. Já os pressupostos “subentendidos” ou do enunciado só se identificam pelo encadeamento. Encadeia-se sempre sobre o posto, nunca sobre o pressuposto. Assim, “João continua magro” tem, em certas situações, o pressuposto subentendido de que manter-se magro é sinal de força de vontade e João tem força de vontade. Esse pressuposto não se conserva na negação “João não continua magro”, mas pode ser identificado pelo critério de encadeamento, porque sobre ele nenhum prolongamento discursivo argumentativo (“João não tem força de vontade”, por exemplo) pode ser feito, sob pena de recusa de todo o discurso. O critério de encadeamento está bem de acordo com a definição de pressuposto, pois, conforme foi apontado, o enunciador não quer ou finge não querer que o desenvolvimento do discurso, em geral de caráter argumentativo, recaia sobre os pressupostos. 37 Veja-se Guimarães (1979) para uma aproximação das propostas de Ducrot e de Grice. 38 Exemplificam-se as três vozes do discurso com ‘Governo deixa os bancos à espera de medidas de apoio’ (Folha de S. Paulo, 15 mar. 1986), em que se tem: posto: Governo protelou as medidas de apoio aos bancos; pressuposto: Os bancos esperavam (e esperam) medidas de apoio do Governo; subentendido: O Governo não dará apoio aos bancos. Os bancos vão mal e precisam do apoio do Governo. 39 Em texto sobre a argumentação no discurso político, Osakabe (1979, p. 81) apresenta proposta semelhante. 40 Ducrot (l973) separa prova e argumento. A prova seria um tipo particular de argumento, o argumento decisivo, que torna necessária a admissão da conclusão. O argumento apenas motiva o interlocutor, para que aceite a conclusão. Segundo o autor, na vida de todos os dias, lidamos com argumentos, sem termos provas. [página 133] 41 O termo enunciatário não é de Perelman, mas a idéia sim (P. 9). 42 Para semema, núcleo sêmico, classema e demais elementos da semântica estrutural, aqui rapidamente apresentados, veja-se Greimas (1966). 43 Na psicologia, exteroceptor é o receptor ou órgão sensorial estimulado por agentes externos ao organismo, e interoceptor, o receptor ou órgão sensorial excitado por estímulos internos. 44 O mundo natural está sendo concebido como sistema de significação, como realidade significante e não como realidade-coisa. Vejam-se Greimas (1970, p. 49-91) e Blikstein (1983). 45 Courtés (1980a) tem desenvolvido pesquisas sobre os motivos, em que atribui o caráter migratório do motivo sobretudo à sua capacidade de conservar a identidade figurativa e, ao mesmo tempo, de exercer papéis narrativos e temáticos variados, segundo o contexto de emprego. 46 Para o caráter ideológico das figuras, veja-se Fiorin (1983). [página 134] III. ENUNCIAÇÃO: A MANIPULAÇÃO DE VALORES CONSIDERAÇÕES INICIAIS Neste capítulo examinaremos a questão central de nosso trabalho, a do desenvolvimento de uma teoria do discurso capaz de conciliar a análise do texto, como sistema de regras explicativas de sua organização imanente — uma abordagem interna —, com o exame da inserção contextual do texto, considerado como pretexto do contexto — uma abordagem externa. Conforme foi apontado na Introdução, nossa contribuição não reside no reconhecimento do caráter indispensável dessa conciliação, já por outros avançada47, mas em discutir o quadro epistemo-metodológico em que, no momento, é possível fazê-lo, sem resvalar para as superposições de teorias contraditórias. Apostamos na teoria semiótica, pelos motivos já sobejamente apontados de propiciar, de forma satisfatória, a análise interna e imanente do texto, de explicar com os mesmos princípios as estruturas narrativas e as discursivas e de examinar a enunciação. Procuraremos fazer avançar o projeto de explicação dos vínculos que prendem o discurso a suas condições sócio-históricas de produção e de recepção, pela análise mais acurada da enunciação. Conhecer um pouco mais a enunciação foi a forma encontrada de abordar o assunto, pois todo trabalho de construção do sentido conduz sempre à posição privilegiada e misteriosa do sujeito da enunciação. Acabou-se acreditando poder obter ali, se não as soluções, ao menos pistas que permitam avançar em bom caminho48. [página 135] ESTRUTURAS NARRATIVAS E DISCURSIVAS DA ENUNCIAÇÃO Para o exame da enunciação, toma-se, da análise narrativa e discursiva, essencialmente a concepção de esquema canônico da narratividade, organizado pelos percursos do destinador-manipulador, do destinatário-sujeito e do destinador-julgador, e as distinções apontadas entre unidades narrativas, como os actantes e os papéis actanciais, e os papéis temáticos e figurativos da instância discursiva. Com esses elementos, consideram-se o enunciador e o enunciatário papéis temáticos discursivos, sob os quais são reconhecidos papéis actanciais e actantes narrativos. Os papéis temáticos de enunciador e de enunciatário constituem, na verdade, uma espécie de neutralização de dois diferentes percursos temáticos, da mesma configuração de “enunciação”: o de produção e o de comunicação. O tema da produção é o da ação do homem sobre as coisas, transformando-as ou construindo-as; o da comunicação, o da ação do homem sobre os outros homens, “criadora das relações intersubjetivas, fundadoras da sociedade” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 67). A duplicidade de percursos temáticos permite, certamente, considerar a enunciação como a atividade humana por excelência, ao mesmo tempo produção e comunicação. Reservam-se os papéis de enunciador e enunciatário para o percurso temático de comunicação (quem comunica e quem recebe e interpreta a comunicação) e emprega-se o de sujeito da enunciação, sincretismo de enunciador e de enunciatário, no percurso de produção (quem produz). Reconhecido o caráter discursivo-temático da enunciação e sua manifestação em dois percursos temáticos distintos, deve-se, em seguida, determinar a correlação entre o nível discursivo, assim desdobrado, e as estruturas narrativas. Apresenta-se o resultado no quadro abaixo: Estrutura Narrativa Destinador- Destinatário- Destinador- Manipulador Sujeito Julgador P. temático ENUNCIA- ENUNCIA- (ENUNCIA- Estrutura Da comunicação DOR TÁRIO DOR)49 Discursiva P. temático SUJEITO Da produção DA ENUN- CIAÇÃO Conforme foi apontado no capítulo 1, o esquema narrativo canônico funciona como modelo de previsibilidade e obriga a que se tente preencher as casas vazias, na instância discursiva. [página 136] Tema de comunicação Na primeira leitura proposta, a enunciação é manifestada pelo percurso temático de comunicação, em que o enunciador se coloca como destinatário-manipulador, responsável pelos valores em jogo e capaz de levar o destinatário-sujeito, seu enunciatário, a crer e a fazer. O fazer persuasivo do enunciador realiza-se, conforme foi examinado na análise das estruturas narrativas e discursivas, no e pelo discurso. O enunciatário, por sua vez, manipulado cognitiva e pragmaticamente pelo enunciador, deve cumprir os papéis de destinatário- sujeito, ou seja, deve realizar o fazer interpretativo, em resposta ao fazer persuasivo do enunciador, e, como decorrência, crer e fazer o que dele se espera. O fazer pretendido nem sempre se realiza, mas a interpretação, operada pelo enunciatário e que o instaura como sujeito, ocorre também no discurso-enunciado. Se tanto o fazer persuasivo do enunciador quanto o interpretativo do enunciatário se realizam no e pelo discurso, conclui-se que, para conhecer e explicar tais fazeres e por meio deles apreender a instância da enunciação, precisa-se proceder à análise interna e imanente do texto. Os capítulos 1 e 2, dedicados às estruturas sêmio-narrativas e discursivas, pretenderam mostrar como efetuar essa análise e os motivos por que se deve realizá-la na forma indicada. Foram também destacados, no percurso proposto, os aspectos que mais fortemente marcaram a relação do discurso com a enunciação pressuposta50. No nível das estruturas fundamentais, salienta-se a projeção axiologizante da categoria tímico-fórica sobre as primeiras articulações de sentido. Na instância das organizações narrativas, três pontos merecem especial referência: a conversão dos valores virtuais em valores ideológicos, quando investidos nos objetos e assumidos pelo sujeito; o jogo de manipulação entre destinadores e antidestinadores, que instalam, no interior do discurso, o conflito ideológico; os percursos passionais do sujeito, que mostram suas relações com os objetos e com outros sujeitos e que o inserem numa formação social e num sistema de valores. Se as primeiras reações do ser vivo ao seu contexto, de euforia e relaxamento ou de disforia e tensão, e as relações ideológicas dos sujeitos com os objetos-valor ou com outros sujeitos podem ser consideradas marcas, e bastante nítidas, da enunciação, é, sem dúvida, no nível das estruturas discursivas que enunciador e enunciatário mais se expõem. Arrolam-se aqui esses momentos fortes do enunciador e do enunciatário, já enfatizados no capítulo anterior, quando se desenvol- [página 137] veu a análise da sintaxe e da semântica discursiva, Na sintaxe do discurso, as marcas são freqüentemente lidas como sinais da presença ou da ausência da enunciação no enunciado (efeitos de enunciação): diferentes perspectivas discursivas, regulamentação da relação entre enunciação e enunciado e exercício do fazer argumentativo. Na semântica discursiva, a máscara praticamente se revela como tal, ou seja, a enunciação e as formações ideológicas que a sustentam mostram-se na escolha dos percursos figurativos e temáticos e nas relações metafóricas e metonímicas que unem as várias isotopias. Efetuada a análise das estruturas narrativas e discursivas, está-se de posse de certas características do enunciador e do enunciatário do discurso. O enunciador determina-se como um tipo específico de manipulador, a partir, em primeiro lugar, dos valores que atualiza no discurso e que podem ser apreendidos no componente semântico, nos três níveis de descrição: valores virtuais axiológicos, valores ideológicos do sujeito, imerso em paixões, figuras do mundo e temas. Em segundo lugar, o enunciador caracteriza-se pelo exercício do fazer persuasivo, ou seja, pela forma como faz passar os valores, como faz crer, para fazer-fazer. Diferenciaram-se, já no capítulo anterior, tipos de enunciador e, conseqüentemente, de enunciatário, conforme o valor modal utilizado para determinar o enunciatário — querer-fazer, no discurso literário, dever-fazer, no religioso ou no científico, saber e poder-fazer nos discursos tecnológicos —, segundo a classe de manipulação empregada — sedução, tentação, provocação ou intimidação — ou de acordo com o fazer pretendido, pragmático ou cognitivo. Subdivisões mais afinadas podem ser obtidas com critérios sobretudo da sintaxe do discurso: enunciadores que dizem eu ou ele, que desembreiam diálogos internos, que criam diferentes ilusões de enunciação, pela distribuição diferenciada de voz e de saber, que empregam esquemas argumentativos distintos. Pretendeu-se, neste item, agrupar os fatos dispersos de enunciação, entendida como comunicação, destacando-se dois aspectos da questão. O primeiro deles é o caráter manipulador do discurso comunicado, como objeto de persuasão, entre enunciador e enunciatário. A direção das operações fundamentais, a intencionalidade narrativa e a finalidade argumentativo-discursiva falam do sentido do sentido e impedem qualquer idéia de neutralidade do discurso, reforçando, ao contrário, sua concepção direcional-ideológica. O segundo fato é o de que a leitura da enunciação como comunicação se faz a partir do discurso, em que estão inscritos o fazer emissivo e [página 138] persuasivo do enunciador e o fazer receptivo e interpretativo do enunciatário, por meio de analise sêmio-narrativa discursiva do texto. A enunciação esta sendo concebida, portanto, como instância de mediação entre estruturas sêmio-narrativas e discursivas, responsável pelas diferentes opções do discurso, dirigidas para a manipulação do enunciatário. As escolhas feitas e os efeitos de sentido obtidos decorrem da enunciação, ao mesmo tempo que a definem. Essa concepção de enunciação tem sido aceita e desenvolvida pela teoria semiótica e pelas diversas pragmáticas. Tema de produção A enunciação realiza-se também segundo o percurso temático de produção, em que o enunciador e o enunciatário, sincretizados no sujeito da enunciação, lêem-se como sujeitos produtores do discurso-objeto. O sincretismo destaca o fato de o enunciador e o enunciatário compartirem a responsabilidade da construção do sentido do discurso. Os programas narrativos de realização, conforme foi apontado no capítulo 1, são de duas espécies distintas: programas de construção de sujeitos e programas de construção de objetos. São modos diferentes de o sujeito adquirir e manipular valores, através dos objetos, que só lhe interessam como lugares de investimento de valores. Nos programas de construção de sujeitos, a aquisição do objeto-valor, que “constrói” o sujeito, semiótica e semanticamente, se faz por doação, por apropriação ou por troca. Já nos programas de construção de objetos, um objeto é produzido como suporte de valores que o sujeito operador ou algum outro sujeito deseje ou de que necessite. O objeto é fabricado, portanto, para vir a ser a cobertura de um ou mais valores com os quais o sujeito quer ou deve estar em conjunção. Tal empreendimento procura satisfazer a uma necessidade do sujeito ou proporcionar- lhe prazer. Na receita de cozinha, por exemplo, a execução correta das indicações conduz à construção de um objeto, figurativizado pelo pudim, que proporcionará ao cozinheiro ou a seus convidados um prazer estético de ordem gustativa (GREIMAS, 1983, p. 157-70) ou lhes matará a fome. O sujeito da enunciação pode ser considerado um sujeito realizador de programa de construção de objeto, ou seja, um sujeito que fabrica o objeto-discurso como lugar de investimento de valores. O objeto-discurso construído é um objeto- valor cognitivo, e não pragmático como os objetos- valor gustativos das figuras do pudim ou do bolo. O discurso, além disso, apresenta a ambigüidade fundamental de resultar do fazer [página 139] construtor do sujeito da enunciação e, ao mesmo tempo, de se colocar corno lugar desse fazer ou como o próprio fazer engendrante. A competência do sujeito da enunciação assim como sua performance refazem-se, em parte, a partir do discurso, pois o objeto fabricado traz sempre marcas de seu fabricante e de sua fabricação. Os procedimentos de sintaxe do discurso já analisados permitem reconstruir a competência e a existência modal do sujeito da enunciação. As figuras semânticas do discurso acrescentam novos elementos à caracterização do sujeito empreendida, ao deixarem entrever, quando examinadas como pontos de intersecção entre texto e contexto, os valores para que se constrói o discurso. A enunciação começa a se mostrar como estrutura de mediação entre o discurso e o contexto. Necessária e capaz de recompor a competência modal e a performance do sujeito da enunciação e de fornecer indicações sobre os valores, a análise interna do texto não é suficiente para determinar, realmente, os valores que o objeto- discurso deve suportar e veicular. Tais valores, como se sabe pelo esquema narrativo, são comunicados ao sujeito da enunciação por um destinador-manipulador. A definição dos valores parece depender, portanto, de maiores informações sobre o destinador- manipulador, de que provêm. Em outras palavras, é provável que o preenchimento das casas vazias no quadro das relações entre estruturas discursivas e narrativas contribua para esclarecer melhor a questão da enunciação produtora do discurso. Propôs-se, em outros trabalhos (1985, 1987), o papel temático do produtor para ocupar a casa discursiva do destinador-manipulador narrativo, e o do receptor-interpretante, para a do destinador-julgador: Estruturas Destinador- Destinatário- Destinador- Narrativas Manipulador Sujeito Julgador Estruturas Discursivas PRODUTOR SUJEITO DA RECEPTOR- Tema da Produção ENUNCIAÇÃO INTERPRETANTE A intenção dessa proposta é criar possibilidades de descrever, com princípios e métodos da Semiótica, as chamadas condições de produção e de recepção do texto, ou boa parte delas. O produtor é o destinador-manipulador responsável pela competência do sujeito da enunciação e origem de seus valo- [página 140] res. Deve ser entendido como destinador sócio-histórico (ou psico-socio- histórico). O sujeito da enunciação constrói o discurso enquanto delegado do destinador-produtor, o que lhe dá autonomia apenas da ordem do fazer, sendo os valores determinados de antemão pelo destinador sócio-histórico. O receptor-interpretante, papel temático do destinador-julgador, julga e sanciona o fazer do sujeito da enunciação, com base no contrato passado entre destinador-produtor e sujeito. Determinar os destinadores do sujeito da enunciação corresponde a inserir o texto no contexto de uma ou mais formações ideológicas, que lhe atribuem, no fim das contas, o sentido. O desdobramento polêmico da narrativa, em narrativa do fazer do sujeito e em narrativa do fazer do anti-sujeito, prevê, correlativamente, o aparecimento de antidestinadores, cujos valores opõem-se aos dos destinadores. Na análise da enunciação, a duplicação de percursos e de programas permite situar e esclarecer os confrontos sociais em que se assentam os discursos. A crítica desfavorável ou a boa aceitação de público decorrem das relações conflituosas entre os destina- dores, produtores e interpretantes do discurso. No ensinamento de Verón51, o texto revolucionário provoca ruptura entre condições de produção e de recepção. Na perspectiva aqui adotada, pode-se dizer que os contextos do produtor e do receptor opõem-se por contradição, e não apenas por contrariedade, como ocorre com os discursos reformadores. Há, também, o caso mais freqüente dos discursos conservadores, em que os destinadores não entram em conflito e o receptor interpreta o discurso no mesmo quadro de valores de sua produção. Os objetos são construídos com duas finalidades: suprir as carências ou responder aos anseios do receptor. Carências e anseios são determinados pelo destinador. Assim, do mesmo modo que a feijoada é preparada para atender à exigência de alimentação ou ao prazer gustativo daqueles a quem será servida, o discurso é fabricado como decorrência de necessidade /dever-ser/ do receptor ou de seu desejo /querer-ser/ de certos valores, segundo a interpretação do destinador, e com o objetivo de se constituir em lugar de inscrição, manipulação e veiculação desses valores. A necessidade, em geral interpretada como precisão e questão econômica, e o prazer estético do texto distinguem-se, mas não recobrem a oposição do social ao individual. Ambos, interesse econômico e prazer estético, dizem respeito a grupos sócio-historicamente determinados e [página 141] atendem a diferentes necessidades do homem, oriundas da sociedade o prazer estético do texto, não se deve esquecer, depende de um código cultural implícito. Quer se diga que o discurso foi engendrado apenas como veículo de prazer, na “arte pela arte”, quer se aceite o seu compromisso como meio de transformação do mundo, nos textos “engajados”, há, sempre, por detrás dele, uma ou mais formações ideológicas que apagam o caráter categórico da separação entre prazer e comprometimento social e que é preciso determinar. Foi com essa intenção que se propôs o exame do produtor e do receptor-interpretante sócio-históricos. Cabe esclarecer, porém, o modo como se concebe tal estudo. Não se trata, como alguns poderiam supor, de analisar o ser ontológico. Pretende-se refazer os caminhos narrativos do destinador-manipulador e do destinador-julgador, assim como os percursos temáticos de produtor e de receptor-interpretante, pelo recurso aos textos que formam o contexto do discurso em questão. Revê-se o problema do contexto em termos de relações intertextuais. Assim entendido, o contexto não se confunde com o “mundo das coisas”. E antes considerado como um texto maior, uma totalidade de significação, no interior do qual cada texto cobra sentido. O sentido do texto depende do sentido do texto-contexto em que se integra. Essa concepção de contexto faz supor, em última instância, uma Semiótica da cultura que estabeleça os papéis narrativo-discursivos devidos a cada texto no macrotexto da cultura. Não se tem a pretensão de reconstruir o macrotexto cultural, mas se julga imprescindível, para a análise semiótica de um texto qualquer, a determinação de suas interações contextuais. Recorta-se, dessa forma, a totalidade do texto-contexto, graças às suas relações com o texto em exame. Os critérios e os motivos empregados para proceder aos recortes e delineamentos serão discutidos no próximo item, sobre intertextualidade. INTERTEXTUALIDADE Partindo da hipótese de que a enunciação é o conceito-chave para explicação do discurso e de suas relações com as condições sócio-históricas de produção e de recepção, propôs-se examiná-la com base no aparato conceitual e metodológico da Semiótica, reconheceu-se que ao menos dois percursos temáticos se abrigam na configuração da enunciação, o de comunicação e o de produção, e relacionaram-se os papéis te- [página 142] máticos de cada percurso aos actantes e papéis narrativos subjacentes. Recorreu-se, para o exame do primeiro tema e de suas ligações com a organização narrativa, à análise interna do texto, julgada, nesse caso, satisfatória. Ressaltou-se, porém, a insuficiência da análise interna, mesmo sabendo-a necessária, para a abordagem da segunda leitura temática e apontou-se uma saída, que pareceu adequada, a da intertextualidade contextual. A enunciação assume, assim, sua dupla tarefa de mediação, entre as estruturas sêmio-narrativas e as estruturas discursivas e entre o discurso e o contexto sócio-histórico. Confirmam-se as expectativas iniciais sobre o lugar de destaque da enunciação na questão das relações entre texto e contexto e espera-se poder conciliar, por meio da explicação da instância enunciadora, as análises interna e externa do texto. Há, conforme foi apontado, dois meios de acesso à instância da enunciação: o primeiro, pela determinação do enunciador e do enunciatário, graças aos procedimentos narrativos e discursivos empregados na manipulação, e pela definição do sujeito construtor do discurso, com base no objeto- discurso produzido; o segundo, pela caracterização sócio- histórica do sujeito da enunciação, a partir de elementos externos ao texto em questão, ou seja, a partir das relações intertextuais. A análise de outros textos, que formam o contexto do discurso em exame, permite alcançar os fatores sócio-históricos constitutivos da enunciação. Destacaram-se, até o momento, as justificativas teóricas e a necessidade prática de se considerar o contexto na tarefa de construção do sentido do discurso. Não se fez referência, ainda, às muitas dificuldades de delimitação do contexto a ser examinado. Há sempre o risco de o analista se perder, inadvertidamente, no macrotexto da cultura ou na diversidade de teorias e métodos, muitas vezes contraditórios, que se dispõem a explicar a sociedade, a história, a ideologia. As resultantes de análises contextuais, ou melhor, os pontos de cruzamento de variáveis de textos distintos, foram denominados produtor e receptor-interpretante, destinadores do sujeito da enunciação, fonte e destino dos valores do discurso. O primeiro passo, portanto, para a definição de produtor e de receptor é o de delimitar o contexto. Há uma seleção a ser feita, sem a qual a análise do texto se revelaria impossível. Certamente recortes diferentes podem ser obtidos e um mesmo discurso pode ser lido em contextos diversos. E muito difícil, porém, não haver intersecção entre os recortes, pois os [página 143] textos fornecem pistas para sua inserção contextual. Além disso, da mesma forma que a frase propicia várias leituras, dependendo do texto a que pertença, mas não infinitas, também o texto pode ser inserido em contextos variados, em número, no entanto, de alguma forma limitado. A distinção adotada pela Lingüística entre contexto e situação e entre contexto lingüístico e contexto extralingüístico pode ser útil na análise do discurso. Diferenciam-se, neste trabalho, três tipos de contexto. O primeiro, mais imediato e que será chamado contexto situacional, é constituído por textos claramente metalingüísticos, em relação ao texto que contextualizam. Tomam-no, portanto, antes ou depois de sua produção, como objeto de uma metalinguagem natural ou científica. Esse tipo de contexto caracteriza a situação de enunciação espacial e temporalmente, servindo para localizar, no tempo e no espaço, o produtor e o receptor e, a partir daí, o sujeito da enunciação. Determina o que o enunciador pensa de seu discurso, do enunciatário, dos objetivos da produção, do ato de produzir, assim como as razões que levaram à fabricação do texto — realizar uma tarefa escolar, ser aprovado no vestibular, ser reconhecido pela crítica, cumprir uma obrigação acadêmica, mostrar altos objetivos patrióticos ou preocupação com o desenvolvimento da ciência e assim por diante. Pode-se exemplificar o contexto situacional com as cartas em que um dado autor fala de sua obra, com as entrevistas com escritores, com estudos sobre a visão da criança a respeito da redação na escola, com textos de crítica, de tradução, de comentários, com proposições de produção textual (“Faça uma redação sobre...”), com prefácios, introduções, conclusões e com todos os demais textos que, de alguma forma, regulamentam as condições de avaliação do discurso. Sem dúvida, muitas subclassificações devem ser efetuadas: avaliar o texto antes ou depois da produção, localizar o produtor no tempo ou espaço, tratar de produção ou de recepção e outras. O segundo tipo de contexto, que será denominado contexto interno, reconstitui o caráter idioletal do texto, ou seja, determina os elementos ideológicos e lingüísticos que caracterizam o produtor e o sujeito da enunciação. Da mesma forma que é difícil separar idioleto (normas individuais) de socioleto (normas sociais)52, também são fluidos os limites entre contexto interno e contexto externo. Pode-se ilustrar a noção de contexto interno com as relações mantidas por um conto com os demais de um mesmo livro ou no interior da obra de um único autor. [página 144] A terceira espécie de contexto, chamada contexto externo, deve, finalmente, responder pelos valores que produtor e receptor manipulam, sejam eles de classe, de grupo, de época, de cultura. A extensão desse contexto é grande e fronteiras são estabelecidas com critérios diversificados: de tempo, em “o romance da década de 70”, de espaço em “a literatura no Nordeste”, de tempo e de espaço em “a literatura brasileira no início do século”, de tema, de grupo profissional e muitos outros. Quaisquer que sejam os contextos considerados — situacional, interno e externo —, a análise do discurso fornece várias indicações deles, sobretudo na explicação da argumentação e da figurativização. Há, além disso, pistas seguras nos discursos que repetem, simulam ou atacam outros discursos. Reconhecida a variação contextual e seus papéis diferenciados na determinação do sentido do discurso, faz-se necessário encontrar um denominador comum que permita caracterizar o produtor e o receptor do ponto de vista sócio-histórico e a que venham se acrescentar as demais determinações contextuais. Acredita-se que se possa obter esse resultado pela definição da classe social ou da fração, categoria ou camada, a que pertençam o produtor e o receptor. Essa convicção baseia-se no fato de que a classe social, determinada por um sistema de relações econômicas, políticas e ideológicas, leva, finalmente, a inserir os valores resultantes da análise interna ou mesmo contextual do discurso na formação ideológica, que lhes atribui, em última instância, o estatuto de valor. Não basta afirmar que um discurso aborda o tema do romantismo ou da liberdade, é preciso saber de que romantismo e de que liberdade se trata e só a especificação sócio-histórica permite dizê-lo. A classe social é, assim concebida, um traço imprescindível e, muito provavelmente, o único obrigatório da definição de produtor e de receptor, organizando-se os demais elementos contextuais em diferentes arranjos necessários mas de composição variável e facultativa. Nas palavras de Singer (1981, p. 17), “o pressuposto teórico aqui é que as classes são os verdadeiros atores do drama que se desenrola no cenário histórico. Em outros termos, o que se encontra por detrás dos embates entre partidos e correntes de opinião, dos conflitos entre órgãos de representação, do entrechocar de ideologias é a oposição entre diferentes classes, de cuja luta resultam as grandes transformações sociais e econômicas que constituem a própria história do país”. E, por que não o dizer, constituem também o seu discurso. [página 145] Expõem-se, no próximo item, alguns elementos de uma teoria das classes sociais, poucos, mas suficientes para os objetivos deste trabalho e para esclarecimento da proposta apresentada. DISCURSO E CLASSES SOCIAIS Não se tenciona participar das discussões sobre os vários conceitos de classe social, em primeiro lugar por nos faltar competência para assumir posições no terreno do sociólogo, em segundo lugar porque, mesmo que preenchêssemos as condições exigidas, este trabalho não seria o lugar de um debate desse tipo. Pretende-se apenas recorrer aos sociólogos, cientistas políticos e economistas, em busca de subsídios para a análise do discurso, mais especificamente, para a constituição do produtor e do receptor- interpretante do sujeito da enunciação. Os autores consultados sobre a questão da classe social reportam-se todos às propostas de Marx, desenvolvendo-as, interpretando-as, e, mesmo aqueles que não as aceitam totalmente, reconhecem ser impossível realizar um estudo sobre as classes sociais sem recorrer a tal bibliografia. Para este trabalho não interessam as concepções economicistas de classe social, ou seja, aquelas que consideram as classes sociais determinadas apenas pelas relações econômicas, por ser essa definição de classe muito pobre para caracterizar o produtor e o receptor do discurso. Com Giannotti, aceita-se que “a posição de um indivíduo, no processo produtivo, determina uma condição necessária para sua inserção numa classe, embora não chegue a formular-lhe uma condição suficiente” (1983, p. 291). A definição de classe social proposta por Poulantzas, como o resultado do conjunto das estruturas econômicas, políticas e ideológicas, parece mais adequada aos propósitos da análise discursiva. “... tudo se passa como se as classes sociais fossem o efeito de um conjunto de estruturas e de suas relações, no caso concreto 1? — do nível econômico, 2? — do nível político e 3? — do nível ideológico. Uma classe social pode ser identificada quer ao nível econômico, quer ao nível político, quer ao nível ideológico, e pode pois ser localizada em relação a uma instância particular. No entanto, a definição de urna classe enquanto tal e a sua conceptualização [página 146] reporta-se ao conjunto dos níveis dos quais ela constitui o efeito” (POULANTZAS, 1971, p. 64-5). Realmente, só uma concepção de classe social em que são consideradas as relações de produção, mas também as p0- líticas e ideológicas, tem interesse para a teoria do discurso. Na prática, muitas são as decorrências dessa definição mais completa, como por exemplo não poder caracterizar as classes sociais apenas pelo critério de rendimento. Justiça seja feita, nem mesmo os “economicistas” julgam a renda suficiente para definir a inserção do indivíduo na classe, pois tal critério não determina a forma de sua participação nas relações de produção. Igualmente, não se sustentam divisões em classes, marcadamente ideológicas, efetuadas apenas pelo prestígio da ocupação, ou as interpretações “sobrepolitizantes” de classe social, em que as classes só existem, efetivamente, no nível político, graças à aquisição da consciência de classe5. Em outros termos, tampouco interessam a este trabalho as concepções apenas políticas ou ideológicas de classe. É preciso, nestas rápidas observações, lembrar ainda um aspecto da questão das classes sociais: o do número e das combinações das classes sociais numa formação social. Uma formação social caracteriza-se pela superposição de vários modos de produção, hierarquizados, ou seja, em que um dos modos de produção domina os demais. O modo de presença e as combinações das classes no interior de uma formação social são sempre diferentes e variáveis, pois as classes se dissolvem, se fundem e se tornam frações ou categorias sociais de outras classes54. Para Poulantzas (1971, p. 82), uma classe é autônoma quando constitui uma força social, isto é, quando, numa dada formação social, as relações de produção dessa classe se refletem no nível político e no ideológico. Segundo Lukács (1960, p. 99) é a consciência de classe, entendida como “o sentido, tornado consciente, da situação histórica da classe”, que a define. Singer (1981, p. 22), de modo semelhante, afirma que “o que caracteriza as classes não é apenas a posição relativa no processo de produção, mas um conjunto de interesses que define um ‘projeto de classe’, ou seja, um modelo objetivo e global de organização da vida social”. As classes, que compõem forças sociais ou que têm consciência de classe ou que são dotadas de um projeto de classe, organizam-se a partir de relações de dominação. As classes dominantes, do modo de produção dominante, determinam as [página 147] classes dominadas (classes dominadas do modo de produção dominante ou classes do modo de produção dominado), que, em geral, não desenvolvem uma organização política independente, nem formam uma ideologia própria, embora apresentem certos “efeitos” particulares e constituam, mesmo dominadas, força social. A definição de classes sociais como “efeitos da estrutura global no domínio das relações sociais” (POULANTZAS, 1971, p. 69) vem justificar a proposta deste trabalho de que, para conhecer a dimensão sócio-histórica do discurso, é preciso determinar os “efeitos” de classe. Com essa intenção, conceberam-se, nas páginas anteriores, o produtor e c receptor do sujeito da enunciação como suportes da teia de relações econômicas, políticas e ideológicas, cuja determinação permite inscrever o discurso no contexto sócio-histórico de produção e de recepção. Observe-se, uma vez mais, que a apreensão das relações sociais das estruturas que as definem faz-se por meio de textos, pelo recurso à intertextualidade. DISCURSO E IDEOLOGIA Este trabalho está sendo desenvolvido a partir da convicção de que o discurso é sempre ideológico. As considerações a respeito da condição ideológica do discurso suscitam duas questões, como pressupostos ou como decorrências delas: a da concepção de ideologia adotada e a das relações entre linguagem e ideologia. Ideologia está sendo entendida como visão de mundo. Não se ignora, porém, a outra concepção, igualmente fundamental, de ideologia, como falsa consciência, isto é, como criação de ilusão ou como ocultamento da realidade social. Este conceito de ideologia, de tradição marxista, está bastante bem apresentado em O que é ideologia, de Marilena Chauí: “A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e preservam aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e [página 148] culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação ou o Estado” (1981, p. 113-4). Essa concepção de ideologia decorre: da divisão social do trabalho, sobretudo da separação entre trabalho manual, realizado pelos que “não sabem pensar”, e trabalho intelectual; do fenômeno da alienação, segundo o qual os homens se acreditam produzidos pelas condições de existência social e não por elas responsáveis; da divisão da sociedade em classes e da luta de classes, ou seja, da dominação e da exploração de uma classe sobre as outras. No entendimento mencionado de ideologia, para que ela possa servir de instrumento de dominação de classe, isto é, para que as idéias da classe dominante se tornem idéias dominantes ou idéias de todas as classes sociais, é preciso que a dominação e a exploração e até mesmo a divisão em classes sejam ocultadas e dissimuladas; que as idéias e ilusões da classe dominante se convertam em representações coletivas, em universais abstratos; que tais idéias e explicações racionais e universais sejam difundidas por meio do que Althusser denominou aparelhos ideológicos do Estado. Althusser distingue o aparelho repressivo do Estado, que funciona, principalmente, pela violência e compreende o Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, dos aparelhos ideológicos do Estado, que se apresentam sob a forma de instituições especializadas como a religião, a escola, a família, os diferentes partidos políticos, os sindicatos, os meios de comunicação. A pluralidade dos aparelhos ideológicos não impede, segundo o autor, seu funcionamento unificado, pois, apesar das contradições, devidas a vestígios das antigas classes dominantes e a afrontamentos com as classes dominadas, eles dependem da ideologia dominante, que é a ideologia da classe dominante. “Nenhuma classe pode duravelmente deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos do Estado” (ALTHUSSER, s.d., p. 49). Todos os aparelhos ideológicos, embora o façam cada qual da maneira que lhe é própria, concorrem para um mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, de dominação e de exploração. Os aparelhos ideológicos asseguram, mais especificamente, a reprodução da qualificação da força de trabalho, ou seja, a repetição, em [página 149] essência, de um saber. Em nossa sociedade basta pensar-se no papel assumido pela escola e pela família. As ideologias não nascem nos aparelhos, surgem das classes sociais, de suas condições de existência, de suas práticas, de suas lutas, e os aparelhos constituem a forma pela qual a ideologia da classe dominante se realiza. E no seu interior que se medem e se confrontam valores. A acepção de ideologia como visão de mundo tem muitos pontos em comum com a definição que se acaba de apresentar, de ideologia como ilusão ou como inversão do real. Filia- se, no dizer de Bruni (1980, p. 13), aos trabalhos de Gramsci e corresponde, da mesma forma que a concepção anterior, a um sistema de valores que define normas e regras de condutas sociais. A ideologia, assim concebida, determina-se também em relação às classes sociais e suas práticas, pois cada visão de mundo prende-se a um dado grupo, cujos elementos compartilham os mesmos valores, pensam e agem de modo semelhante. Ao aceitar esse conceito de ideologia não se deixa tampouco de reconhecer o papel da ideologia da classe dominante e sua tarefa de ocultamento e dissimulação. A diferença mais marcante entre as duas formas de considerar a ideologia está no fato de que a ideologia como visão de mundo permite relativizar a “verdade”, ao mostrar que há vários saberes ligados às diferentes classes, e reconhecer contradições em cada forma de ver o mundo, especialmente na visão dominante, criticando- a e a ela resistindo. Não se pode esquecer, porém, que a ideologia dominante é tão abrangente que torna as demais organizações do saber fragmentárias e muitas vezes contraditórias, pois incorporam elementos da representação dominante, O grau de coerência e abrangência dos sistemas ideológicos não é, assim, o mesmo nas diferentes concepções de mundo55. Emprega-se, neste trabalho, o conceito de ideologia como visão de mundo, mas com as ressalvas de que se levam em conta o caráter desequilibrado dos diferentes sistemas de representação e as distorções e ilusões produzidas ideologicamente. O discurso, tal como foi apresentado, é uma prática social determinada por uma formação ideológica e, ao mesmo tempo, lugar de elaboração e de difusão da ideologia56. Essa definição de discurso está fundamentada na distinção entre língua e discurso, mas não se pretende fazer acreditar no caráter neutro da língua em oposição à condição ideológica afirmada do discurso. Tenciona-se, ao contrário, mostrar que no sistema da língua se imprimem, historicamente, as marcas [página 150] ideológicas do discurso. Se o discurso “reflete as mais imperceptíveis alterações da existência social” (BAKHTIN, 1981, p. 46), na língua as modificações processam-se lentamente. Sabe-se, porém, que a língua produz discursos ideologicamente opostos, pois classes sociais diferentes utilizam um mesmo sistema lingüístico. Nesse caso, deve-se reconhecer que os traços impressos na língua, a partir de seu uso discursivo, criam em seu interior choques e contradições, que fazem Bakhtin afirmar que em todo signo se confrontam índices de valor contraditório e que, em suma, “o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Termina mostrando que “é este cruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir” (1981, p. 46). A língua, caracterizada dessa forma, não é neutra e sim complexa, pois tem o poder de instalar uma dialética interna, em que se atraem e, ao mesmo tempo, se rejeitam elementos julgados inconciliáveis. Os vários percursos semêmicos de um lexema explicam-se por essa polivalência da língua. As ideologias, sobretudo a dominante, tentam colocar o signo acima da luta de classes e esconder suas contradições internas, tornando-o monovalente e “neutro”. “Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante” (BAKHTIN, 1981, p. 47). Da língua, complexa e viva, surgem os discursos, ideológicos, que escolhem um dos pólos, um dos valores. Abafam-se os percursos em conflito, perde-se a ambigüidade da múltipla posição, toma-se uma única direção. Para reconstruir a dialética desaparecida, fazem-se necessários os outros textos, do contexto, do intertexto, que recuperam a polêmica escondida, os choques sociais, o confronto, a luta. Não se põe em dúvida a capacidade dos discursos de instalarem, internamente, o diálogo intertextual, os conflitos entre as classes57. O desdobramento polêmico da narrativa, os recursos diversos de desembreagem, a organização pluriisotópica de temas e de figuras são procedimentos que estabelecem no interior do discurso a dualidade, a pluralidade que lhe [página 151] dá vida e relativiza a verdade, O caráter dialógico de um discurso, enfatizado por varias formas de proceder, separa- o de discursos ideológicos autoritários e pode ser tomado como marco divisor de tipos discursivos. Em alguns poucos casos, pode-se mesmo prescindir de outros textos-contextos, na leitura do discurso, além daqueles que no seu interior se defrontam. Não é, porém, a regra. O discurso comumente cristaliza-se e faz-se autoritário, discurso da verdade absoluta, sem contestações. A intertextualidade cumpre, então, o papel de tentar refazer a complexidade e as contradições dos conflitos sociais. Contesta-se o incontestável, opõem-se verdades. TEXTO E PROBLEMAS DE EXPRESSÃO Conforme foi proposto na Introdução, examinaram-se as várias etapas de descrição e de explicação do percurso gerativo do sentido, da instância fundamental ao discurso. Não se chegou, nem era a intenção, ao texto. O texto resulta da junção do plano do conteúdo, construído no percurso gerativo, com o plano da expressão e pode ser considerado a instância profunda lingüística, a partir da qual são geradas as estruturas lingüísticas de superfície. Há, portanto, níveis diferentes de abordagem do texto e problemas diversos como a linearização, a organização sintática das frases, a escolha lexical, a condensação e a expansão textual, a programação textual, a explicitação do programa do sujeito em detrimento do do anti-sujeito, apresentado de forma fragmentária, a coesão textual. Esses elementos situam-se em diferentes patamares de análise lingüística do texto. Tenciona-se, neste trabalho, lembrar apenas que a textualização é também tarefa do sujeito da enunciação e que, por conseguinte, a explicação de seus procedimentos contribui para a reconstrução da instância enunciadora. As marcas mais propriamente individuais de produção textual, se é que existem, encontram-se no texto e não no discurso, como se sabe. Observe-se que “a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes” (BAKHTIN, 1981). Se o texto parece marcar certas preferências e vícios “subjetivo-psicológicos”, torna-se, porém, muito complicado estabelecer o que nele é idioletal e o que é socioletal. A contextualização propicia algumas delimitações, porém ainda vagas e incertas, devido aos recortes impostos à intertextualidade. Quanto ao plano da expressão, chamado a se jungir ao do conteúdo, no texto, é bem conhecido seu papel saussuriano de [página 152] suporte do significado, de elemento que tem a possibilidade de se tornar sensível, em qualquer ordem sensorial e que, por esse motivo, expressa o conteúdo ausente (DUCROT & TODOROV, 1972, p. 132). Não se retomam aqui debates históricos sobre a arbitrariedade e a motivação do signo, na relação entre significante e significado. Pretende-se apenas rever o problema da expressão, na perspectiva da Semiótica, ou seja, mostrar o interesse em se explicarem as organizações da expressão na tarefa de construção do sentido. Pensa-se especificamente nos textos em que, além de cumprir o encargo acima apontado de expressar o conteúdo, o plano da expressão compõe também organizações secundárias da expressão. As organizações secundárias correspondem, no plano da expressão, às configurações e percursos figurativos do conteúdo, ou seja, como elas, investem e “concretizam” percursos temáticos abstratos. Extrapola-se o nome e fala-se em figuras da expressão, que se manifestam sob a forma de unidades reiteradas da expressão, em geral traços ou conjuntos de traços, que assumem relações de caráter semi-simbólico58 com o plano do conteúdo. Em outros termos, uma categoria da expressão que subsume a articulação de contrários correlaciona-se a uma categoria do conteúdo. Tomem-se como exemplo os versos de Drummond em ‘Mudança’: O que muda na mudança, se tudo em volta é uma dança no trajeto da esperança junto ao que nunca se alcança? (ANDRADE, 1984, p. 73). Há uma linha de leitura da expressão obtida pela reiteração (treze vezes) do traço de nasalidade: muda, na, mudança, em, uma, dança, no, esperança, junto, nunca, alcança. O traço de ressonância nasal opõe-se à oralidade na constituição da categoria oralidade vs. nasalidade. Essa categoria relaciona-se, no texto de Drummond, à categoria abstrata de conteúdo articulada em mudança/transformação vs. manutenção/conservação. A repetição nasal, ressonante, concretiza sonora- mente o tema abstrato da mudança, qual seja o da conservação dentro da transformação. Sem dúvida, esse percurso temático realiza-se também no discurso, investido pelas figuras visuais de conteúdo, graças aos traços espaciais de circularidade (“volta”, “dança”), em oposição aos de reta, de seguir adiante (“trajeto”). A correlação proposta entre a categoria da expressão e a do conteúdo cria o sistema semi-simbólico, em que as rela- [página 153] ções entre os dois planos não são convencionais, no sentido atribuído à relação comumente vigente entre expressão e conteúdo. Nas organizações semi- simbólicas, secundárias, cabe à expressão concretizar sensorialmente as abstrações temáticas do conteúdo, instaurando, assim, um novo saber sobre o mundo. Nega-se o já sabido, o já conhecido, e aprende-se. no poema de Drummond, por exemplo, que a ressonância nasal expressa conservação e “sentem-se”, sonoramente, os efeitos do permanecer, do ficar igual, mesmo no movimento da mudança. As figuras semânticas do discurso, conforme foi explicado, procuram. essencialmente, criar a ilusão de realidade. Pode-se dizer que também as figuras da expressão concorrem para a referencialização textual. Os efeitos de sentido de realidade resultam, portanto, de diferentes procedimentos discursivos e textuais de investimento figurativo de conteúdos abstratos. Na semântica do discurso, porém, ao contrário do que ocorre na figurativização da expressão, os efeitos de verdade decorrentes da cobertura figurativa são, em geral, efeitos apenas de reconhecimento do mundo tal qual o lê o senso comum, ou seja, descobrem-se no texto as imagens do mundo. Só por meio das relações metafóricas e metonímicas instaladas entre duas ou mais linhas isotópicas obtêm-se efeitos de novo saber sobre as coisas e, em lugar de reconhecer imagens já vistas, aprende- se a ler o mundo de outro modo. As três isotopias figurativas de ‘O mar e o canavial’, de J. C. de Meio Neto (1975, p. 9) — a do mar, a do canavial e a da criação poética (“verso”, “elocução”, “cordel”, “narrada”, etc.) — e, sobretudo, as relações entre elas, fazem conceber poesia, de forma original, como a contradição entre a veemência e a mesmice do mar e entre o desmedido e o comedido do canavial. As figuras de expressão combinam-se e confundem-se com as metáforas e as metonímias discursivas na tarefa de produzirem uma nova leitura do mundo. A organização secundária da expressão não se restringe, assim, a expressar conteúdos, primeiro encargo do plano dos significantes, não se limita tampouco a criar efeitos de realidade, como os procedimentos semânticos de figurativização, mas cumpre, antes de tudo, o papel essencial de fabricar o mundo, lido e sabido, a partir de novas perspectivas, e de mostrar uma outra verdade das coisas. As aliterações, as rimas, os anagramas não podem ser pensados apenas como recursos de expressão que reforçam ou enfatizam certos conteúdos ou que criam efeitos de literariedade, chamando a atenção para o texto e não para o refe- [página 154] rente. Consideradas sistemas semi- simbólicos, as organizações da expressão recobrem, como foi apontado, categorias de conteúdo e, a partir dessa relação, repensam ou refazem a realidade. Os sistemas semi-simbólicos, pelos motivos já mencionados, podem ser denominados poéticos e ocorrem predominantemente nos textos literários e também na pintura, no desenho, na escultura, no quadrinho, em todos os textos enfim que buscam produzir os efeitos descritos. Foram, na verdade, estudos de Semiótica do visual que fundamentaram as considerações feitas sobre os sistemas semi-simbólicos secundários da expressão59. Com base nessas observações, devem-se rever as figuras de expressão e aproximá-las das figuras de conteúdo. Ambas são figuras do texto, e não de palavras ou de frases, e assumem o papel de estabelecer um outro ponto de vista sobre o mundo. Nesse caso, pode-se falar de originalidade ou de criatividade. NOTAS 47 “Veja-se sobretudo o ensaio de Lopes (1978), em que propõe três interpretantes do discurso: do código (leitura paradigmática taxionômica), do contexto (leitura sintagmática) e ideológico (leitura intertextual). 48 Retoma-se aqui, de forma fragmentária e sem recorrer aos procedimentos lingüísticos de citação, nosso ensaio de 1983, ‘Problemas de enunciação’ (1987). 49 Em geral o esquema narrativo da enunciação interrompe-se no momento em que o destinatário, manipulado, se torna sujeito capacitado para o fazer ou sujeito que crê, não ocorrendo, nesse caso, nem o percurso completo do sujeito, nem a sanção final, que lhe julgaria o fazer. Se essa e a situação mais freqüente, nada impede, porem, o aparecimento discurso do percurso da sanção, como acontece, muitas vezes, no discurso publicitário. O destinador-julgador é, então, investido pelo mesmo ator enunciador ou por seu delegado no discurso, o narrador. Isso acontece, por exemplo, com as propagandas em que o sujeito que comprou o produto anunciado e recompensado com uma bela mulher ou com muito dinheiro. 50 Não se insistiu mais no fato de que a enunciação está sempre pressuposta no discurso, nunca nele explicitada, pois se acredita ter mostrado que essa concepção de enunciação fundamenta todo o trabalho. 51 Anotações decurso ministrado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, no ano escolar de 1976-1977. 52 Empregam-se norma, norma social e norma individual, no sentido que lhes atribui Coseriu (1979, p. 13-85). 53 Lukács, no dizer de Poulantzas, pertenceria à tendência “sobrepolitizante”, com sua leitura historicista de classe e da consciência de classe. [página 155] 54 As frações de classe, como as classes, têm força social; as categorias sociais BIBLIOGRAFIA são estabelecidas principalmente em relação ao nível político e ao ideológico como, por exemplo, a burocracia de Estado; as camadas sociais indicam efeitos secundários da combinação dos modos de produção numa for maçã social (POULANTZAS, 1971). 55 Para a questão do “saber dos dominados”, vejam-se Bruni (1980) e Fiorin (1983, p. 130-63). 56 Não se trata de estabelecer uma determinação direta do nível econômico sobre o discurso, nem cabe aqui discutir as mediações e as relações entre o econômico e o ideológico. É suficiente reconhecer que as formações ideológicas, determinadas de forma complexa e indireta pela base econômica, determinam, por sua vez, os discursos. Veja-se, a respeito, Fiorin (1983). 57 Vejam-se os trabalhos de Bakhtin sobre a condição dialógica ou carnavalesco de certos discursos, sobretudo suas análises de Dostoievski (1970) e de Rabelais (1974) 58 Para a distinção entre linguagens e sistemas simbólicos, veja-se Hjelmslev (1968) 59 Vejam-se os trabalhos de Floch (1978, 1981), Thürlemann (1982) e o nosso, de 1986. Também a dissertação de Tatit (1982), sobre a canção popular, trata da organização poética da expressão. [página 156] BIBLIOGRAFIA ALTHUSSER, Louis. (s.d.) Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa/São Paulo, Presença/Martins Fontes. ANDERSON, John M. (1971) The grammar of case. Towards a localistic theory. Cambridge, Cambridge Univ. Press. ANDRADE, Carlos Drummond de. (1979) 'Glória'. In: VÁRIOS. Para gostar de ler, v. 4 — Crônicas. São Paulo, Ática. (1984) Corpo. Rio de Janeiro, Record. AUSTIN, John L. (1970) Quand dire c'est faire. Paris, Seuil. Original inglês de 1962. BAKHTIN, Mikhail. 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ÍNDICE ANALÍTICO A Abstrato (vs. figurativo) 113-24 Ação (vs. manipulação) 37 Actancial (embreagem) 77 (desembreagem) 74-7 (papel) 35-6 Actante 29-31 destinador 36-40, 42 destinatário 36-40, 42 discursivo 80-1, 86 funcional 35-6, 42 narrativo 80-1, 86 objeto 29-31, 42 sintático 35-6 sujeito 29-31, 42 Actorial (ancoragem) 119 Actorialização 80-1 Aflição (paixão de) 64-5 Ambigüidade 130 discursiva 130 narrativa 130 Análise externa 5-6, 14, 135 interna 5-6, 14, 135 Ancoragem 119 actorial 119 espacial 119 temporal 119 Aparência (vs. imanência) 14-5, 56 Apropriação 33-4 Aquisição (programa de) 32-4 transitiva (ou doação) 33-4 reflexiva (ou apropriação) 33-4 Argumentação 98, 106-12 Argumentativo(a) (discurso) 111-2, 131 (estrutura) 106-12, 131-2 Aspecto 91 contínuo 91 descontínuo 91 durativo 91 incoativo 91 pontual 91 terminativo 91 Aspectualização 91 Ato de linguagem 97-8 ilocucional 97, 104-6 locucional 97 perlocucional 97, 104-6 performativo 97 Ator 80-1, 116-7 Atualização 27-8, 30, 43, 52-3 Auditório 107-9 particular 108-9 universal 108-9 Axiologia 45-6, 49 Axiologização 24-5, 45-6 B Base (programa de) 33 Base classemática 114 Benevolência (paixão de) 66-7 C Categoria da comunicação ou da factividade 42 da pessoa 74-5 da tensividade 25-7 da transitividade 29, 42 descritiva 25 fórica 26-7 semântica 24 tímica 24-7 Classema 113-4 Classemático(a) (base) 1 14 (isotopia) 114, 124 Coerência 131-2 semântica 124-31 textual 131-2 Coesão textual 131-2 Cognitivo(a) (dimensão) 41 (lazer ou performance) 56-8 (sanção) 39-41 Competência 34-7 modal 37 semântica 37 Complementar (termo) 21-2 Complementaridade 21-2 Complexo(a) (isotopia) 130 (termo) 22 Componente lingüístico 97, 102 retórico 97, 102 Comunicação 42, 136-9 Condições de produção 3, 140-5 de recepção 140-5 Conector de isotopia 126-8 Confiança (paixão de) 64-5 Configuração 119-23 discursiva 119-23 figurativa 119-23 passional ou patêmica 61 temática 116 Conjunção 30 Construção de objetos 35, 139 de simulacros 64 de sujeitos 35, 139 Contexto 117-9, 142-6 externo 145 interno 144 situacional 144 Continuidade 91 Contradição 21-2 Contraditório (termo) 21-2 Contrariedade 21-2 Contrário (termo) 21-2 Contrato de veridicção 93-5, 117-8 fiduciário 37 Convencer (vs. persuadir) 109 Conversacional (máxima) 98, 102-3 (pragmática) 98 Conversão 27-8, 45-9 D Decepção (paixão de) 64-5 Descontinuidade 91 Descritivo(a) (categoria) 25 (enunciado) 32, 50 (valor) 46-7 Desembreagem 74-7 actancial 74-7 enunciativa 74-5 enunciva 74-5 espacial 88-92 interna ou de 2º grau 75-6 temporal 88-92 Desencadeador de isotopia 126, 128 Destinador 36-40, 42 — julgador 39-40 — manipulador 36-9 (percurso do) 36-40 Destinatário 36-40, 42 Dever — fazer 51-3 — ser 58-9 Dimensão abstrata 113-4 cognitiva 41 figurativa 113-4 pragmática 41 Discursivo(a) (ambigüidade) 130 (configuração) 119-23 (estrutura) 15-6 (semântica) 15-6, 113-32 (semiótica) 15-6, 72-132 (sintaxe) 15-6, 73-112 Discurso 2-4, 72-3 argumentativo 111-2, 131 (figuras do) 1 29 (leis do) 97, 102-3 narrativo 111-2, 131 temático 115-6 Disforia 24-6 Disjunção 30 Doação 33-4 Duratividade 91 E Efeito de enunciação 76-7, 84-5, 118-9 referente ou realidade 76-7, 81-5, 117-9 sentido 76-7, 81-5, 117-9, 138 verdade 56, 76-7, 82, 94, 117-9 Elementar (enunciado) 29-31 (estrutura) 20-3 (sintagma) 31-5 Embreagem actancial 77 espacial 89 temporal 89 Endotáxica (modalidade) 52-3 Enunciação 3-6, 72-7, 123-4, 136-44 (efeitos de) 76-7, 118-9 — enunciada 74-5 pressuposta 74-5, 137-9 (projeções da) 73-7 (sujeito da) 136, 139-42 Enunciado descritivo 32 de estado 29-30 de fazer 29-30 elementar 29-31 modal 32 vs. frase 102 Enunciador 75, 92-5, 103, 136-9 Enunciatário 75, 92-5, 136-9 Enunciativo (desembreagem, embreagem) 74-7 Enuncivo (desembreagem, embreagem) 74-7 Espacial (ancoragem) 119 (localização) 88-9 (programação) 88-9 Espacialização 88-92 Espaço 88-92 heterotópico 92 objetivo 88 paratópico 92 subjetivo 88 tópico 92 utópico 92 Espera (paixão de) 63-4 fiduciária 63-4 relaxada 64 simples 63 tensa 64 Esperança (paixão de) 64-5 Espoliação 33-4 Esquema narrativo canônico 41-3 Estratégia narrativa 43 4 Estrutura argumentativa 106-12, Hl 2 discursiva 15-6 elementar 20-3 fundamental 15-6 narrativa 15-6 patêmica ou passional 61 textual 15-20 Estrutural (semântica) 113-4 Euforia 24-6 Existência modal 59-62 semântica 46, 62 semiótica 30, 46, 62 veridictória 59 Exotáxica (modalidade) 52-3 Expressão (figuras da) 153-5 (organização secundária da) 153-5 (plano da) 152-5 Externo(a) (análise) 5-6, 135 (contexto) 145 Exteroceptividade 113-4 F Factitividade 42, 50-1 Falsidade 55-6, 93-5 Falta 65-6 (liquidação da) 65-6 Fazer cognitivo 56-8 (enunciado de) 29-30 interpretativo 39-41, 56-9 persuasivo 38, 56 pragmático 41 (modalidade do) 49-55 Fiduciário(a) (contrato) 37 (espera) 63-4 Figura 115-24, 129 da expressão 153-5 do discurso 129 nuclear 114 Figuração 117 Figurativização 115-24 Figurativo(a) (discurso) 116-9 (dimensão) 113-5 (isotopia) 124-5 (núcleo) 120-1 (percurso) 119-23 (variação) 120-1 Foco narrativo 78-88 Foria26-7 Fórica (categoria) 26-7 Frase (vs. enunciado) 102 Função 29 conjunção 30 disjunção 30 junção 29-30 transformação 29-30 Funcional (actante) 35-6, 42 Fundamental (estrutura) 15-6 (gramática) 15-6, 20-8 (semântica) 24-7 (sintaxe) 20-4 G Gerativo (percurso) 15-20 Gramática discursiva 15-6 fundamental 15-6, 20-8 narrativa 15-6 semiótica 15-6 H Heterotópico (espaço) 92 I Iconização 117 Ideologia 49, 148-52 Ilocução 97, 104-6 Ilocucional (ato) 97, 104-6 (pragmática) 97-8 Imanência (vs. aparência) 14-5, 56 Implícito 96, 99-104 Incoatividade 92 Insatisfação (paixão de) 64-5 Insegurança (paixão de) 64-5 Intencionalidade 27, 44-5 Interlocutário 75-6 Interlocutor 75-6 Interno(a) (análise) 5-6, 14, 135 (contexto) 144 Interoceptividade 113-4 Interpretação 39-41, 56-9 Interpretativo (fazer) 39-41, 56-9 Intertextual (relação) 142 Intertextualidade 128, 142-5 intimidação 38 Isotopia 124-30 classemática 114, 124 complexa 130 (conector de) 126-8 (desencadeador de) 126-8 figurativa 124-5 pluriisotopia 129 temática 118-9, 125 J Junção 29-30 conjunção 30 disjunção 30 L Leis do discurso 97, 102-3 exaustividade 97, 103 informatividade 97 litotes 97 Lexema 114, 119 Lingüístico (componente) 97, 102 (nível) 15 Liquidação da falta 65-6 Localização espácio-temporal 88-9 Locução 97 Locucional 97 Locutor 103 M Malevolência (paixão de) 66-7 Manifestação 14-5, 56 Manipulação 36-9 intimidação 38 provocação 38 sedução 38 tentação 38 Manipulador (destinador) 36-9 Máxima conversacional 98, 102-3 da qualidade 98 da quantidade 98, 103 da relação 98 do modo 98 Mentira 55-6 Modal (categoria) 47-9 (competência) 37 (enunciado) 32, 50 (existência) 59, 62 (valor) 46-7 Modalidade 47-60 atualizante 52-3 dever 51-3, 58-9 endotáxica ou intrínseca 52-3 existencial ou do ser 49, 55-60 exotáxica ou extrínseca 52-3 factitiva ou fazer-fazer 50-1 fazer-ser 58-60 intencional ou do fazer 49-55 poder 51-4, 58-9 querer 51-3, 58-9 realizante 52-3 saber 51-3, 58-9 ser-fazer 51-5 ser-ser 55-8 tensiva 25-7 veridictória 55-8 virtualizante 52-3 Morfolexema 116 Morfológico (ou taxionômico) (sub-componente) 20-2 Motivo 120 N Narrador 75-7, 80 1, 86 8 Narratário 75-7 Narrativo(a) (ambigüidade) 1 10 (discurso) 111 2. 131 (esquema) 41-3 (estratégia) 43-4 (estrutura) 15-6 (foco) 78-88 (percurso) 35-41, 122 (programa) 31-5 (semântica) 45-69 (sintaxe) 28-45 (variação) 120-2 Neutro (termo) 22 Nuclear (figura) 114 Núcleo figurativo 120-1 sêmico 114 O Objetividade de discurso 75 de tempo e de espaço 88 Objetivo(a) (discurso) 75 (espaço) 88 (tempo) 88 (valor) 46 Objeto (actante) 29-31, 42 (construção de) 35, 139 objeto-valor 31, 45 Observador 86-8, 91 Operacional (ou sintático) (subcomponente) 20, 22 P Paixão 60-9 aflição 64-5 benevolência 66-7 complexa 62-9 confiança 64-5 decepção 64-5 de ausência 66 de benquerença 67 de falta 66 de malquerença 67 espera 63-4 esperança 64-5 insatisfação 64-5 insegurança 64-5 malevolência 66-7 revolta 66-7 resignação 65-6 satisfação 64-5 simples ou de objeto 62-3, 68 vingança 66-7 Papel actancial 35-6 temático 116 Paratópico (espaço) 92 Passional ou patêmica (configuração) 61 Percurso do destinador-manipulador 36-9 do destinador-julgador 39-40 do sujeito 36 figurativo 119-23, 125 gerativo 15-20 narrativo 35-41, 122 temático 116, 119-23, 125 Performance 34-5 Performativo (verbo) 97 Perlocução 97, 104-6 Perlocucional (ato) 97, 104-6 Persuadir (vs. convencer) 109 Persuasão 38, 56 Persuasivo (fazer) 38-56 Pessoa (categoria da) 74-5 Pluriisotopia 129-30 Poder 51-4, 58-9 Poético (sistema semi-simbólico) 155 Polifonia 103-4 Polissememia 114 Ponto de vista 78-88 Pontual (aspecto) 91 Pontualidade 91 Posto 100 Pragmática 95-9 conversacional 98 ilocucional 97-8 Pragmático(a) (dimensão) 41 (fato) 95-106 (fazer) 41 (sanção) 39-41 Pressuposição 99-104 Pressuposto 99-104 (emprego retórico) 101 Privação (programa de) 32.-4 reflexiva (ou renúncia) 33-4 transitiva (ou espoliação) 33-4 Produção 136, 139 (condições de) 140-5 Produtor 139-41, 143 Programa narrativo 31-5 de apropriação 33-4 de aquisição transitiva e reflexiva 32-4 de base 33 de competência 34-7 de construção de objeto 35, 139 de construção de sujeito 35, 139 de doação 33-4 de espoliação 33-4 de performance 34-5 de privação transitiva e reflexiva 32-4 de renúncia 33-4 de uso 33 Programação espácio-temporal 88-9 Programação textual 89-91 Provocação 38 Q Quadrado semiótico 21-3 Querer 51-3, 58-9 R Realidade (efeito de) 76-7, 81-5, 1 17-9 Realização 30, 52-3 Recepção (condições de) 140-5 Receptor-interpretante 140-3 Reconhecimento 39-41, 58, 112, 118 Referente (efeito de) 76-7, 81-5, 1 17-9 Relação transitiva 29 Relaxamento 25-6 Renúncia 33-4 Retórico (componente) 97, 102 Retribuição 39-41 Revolta (paixão de) 66-7 S Saber 51-3, 58-9 Sanção 39-41 cognitiva 39-41 pragmática 39-41 Satisfação (paixão de) 64-5 Sedução 38 Segredo 55-6 Sema 113-4 Semântica da enunciação 96-7 discursiva 113-32 estrutural 113-4 fundamental 24-7 intencional 96-7 narrativa 45-69 semiótica '5-6 Semântico(a) (categoria) 24 (coerência) 124-30, 131 (competência) 37 (existência) 46, 62 Semema 114, 119 Sêmico (núcleo) 114 Semiótica características gerais 13-4 da língua natural 113, 117 discursiva 72-132 do mundo natural 113, 117 narrativa 28-69 Semiótico(a) (existência) 30, 62 (quadrado) 21-3 * (semântica) 15-6 (sintaxe) 15-6 Semi-simbólico (sistema) 153-5 Sentido (efeito de) 76-7, 81-5, 117-9, 138 (vs. significação) 97, 102-3 Ser (modalidade do) 49, 55-60 Significação (vs. sentido) 97, 102 Simulacro (construção de) 64 Sintagma elementar 31-5 Sintático (ou operacional) (subcomponente) 20, 22 Sintaxe discursiva 73-112 fundamental 20-4 narrativa 28-45 semiótica 15-6 Situacional (contexto) 144 Subcomponente morfológico ou taxionômico 20 sintático ou operacional 20, 22 Subentendido 101-5 Subjetividade de discurso 75 de tempo e de espaço 88 na língua 4 Subjetivo (discurso) 75 (espaço) 88 (tempo) 88 (valor) 46 Sujeito (actante) 29-31, 42 competente 35-6 da enunciação 136, 139-42 do querer 35-6 do saber 35-6 (percurso do) 36 realizador 35-6 T Taxionômico (ou morfológico) (subcomponente) 20 Tema 115-6, 124-5 Temático(a) discurso 115-6 isotopia 118-9, 125 papel 116 percurso 119-23 variação 120-1 Tematização 115-6 Tempo 88-92 Temporal (ancoragem) 119 (aspectualização) 91 (localização). 88-9 (programação) 89 Temporalização 88-92 aspectualização 91 localização 88-9 programação 89 Tensão 25-6 Tensividade (categoria da) 25-7 Tensivo(a) (modalidade) 25-7 Tentação 38 Terminatividade 91 Terminativo (aspecto) 91 Termo complexo 22 complementar 21-2 contraditório 21-3 contrário 21-3 neutro 22 Textual (estrutura) 112, 152 (coerência) 131-2 (coesão) 131-2 (nível) 112 (programação) 89-91 Textualização 89-91, 152 Timia 24-7 Tímica (categoria) 24-7 Tópico (espaço) 92 Transformação 29-30 Transitividade 29-42 Transitivo(a) (aquisição) 33-4 (privação) 33-4 (relação) 29-42 U Uso (programa de) 33 Utópico (espaço) 92 V Valor 45-7 descritivo 46-7 modal 46-7 objetivo 46 subjetivo 46 Variação figurativa 120-1 narrativa 120-1 temática 120-1 Verdade 55-6, 93-5 (efeitos de) 76-7, 82, 94, 117 Verdadeiro (discurso) 94 Veridicção 93-5 (contrato de) 93-5, 117-8 falsidade 55-6, 93-5 imanência 56 manifestação 56 mentira 55-6 segredo 55-6 verdade 55-6, 93-5 Veridictória (modalidade) 55-8 Vingança (paixão de) 66-7 Virtualização 27-8, 30, 43, 52-3 Ficha técnica Divulgação LIVRARIA Humanitas-Discurso Mancha 10,3 x 18 cm Formato 14x21 cm Papel miolo: off-set 75 g/m2 capa: cartão Supremo 240 g/m2 Impressão da capa Prata e vermelho vinho Impressão e acabamento GRÁFICA FFLCH Número de páginas 174 Tiragem 2.000 Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. www.viciadosemlivros.com.br http://groups-beta.google.com/group/digitalsource