Astrid Cabral

March 25, 2018 | Author: pauluxka | Category: Sea, Sky, Sharks, River, Love


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Description

O Fogo Juntos urdimos a noite mais seu manto de trevas quando as paredes recuam discretas em horizontes de além-camae num espaço de altiplano rolamos nossos corpos bravios de animais sem coleira e juntos acendemos o dia em cachoeiras de luz com as centelhas que nós seres primitivos forjamos com a pedra lascada dos sexos vivos. SORVETERIA Dia de verão qualquer no labirinto dos shoppings os homens tomam sorvete. Alguns engolem vorazes receosos de que o mormaço lhes arrebate a porção. Outros, lentos, não acertam com o creme fugaz o ritmo da fome. Morrem na fonte. Poucos os que se deleitam fruindo o açúcar e a neve sem dúvidas sobre a dádiva. Existe quem torça a cara às iguarias servidas imaginando outras raras. E quem enfeite o bocado de caldas extras, perfume de licores, nozes finas. Todos um dia qualquer terão suas taças vazias lábios imóveis, mãos frias. Quando o corpo do fundo do poço boiou. Dessa vez não escapou ao naufrágio. . Mas rolava um tempo de amor cortês e gestos de bravura. Até a mãe sorriu pensando como é dramática essa filha e reviu-a sob um pé de acácias desmaiada fingindo-se de morta. Era a alma que morria embarcando no esquife do filho rumo ao barro. Dedos gesto de adeus anunciam o abandono da matéria efêmera. Sorte que aos gritos de socorro um anjo voou de entre as ramas arrebatando-a ao umbigo do rio. Tento alçar-me da cama no encalço do convite mas a carne me amarra. triste. Dos campos do sono a mesma mão me chama cintilante de estrelas. Da segunda vez a muralha do mar desmoronou-se mortalha sobre o vulto de sereia. E enquanto o corpo dura fico entre a dor da perda e o desejo do encontro. Da terceira e última vez no peito sacudido por soluços os olhos desataram cachoeiras. MORTE POR ÁGUA Da primeira vez ninguém se deu conta do perigo.MÃOS No deserto da insônia a mão. Sem demora dois cavalheiros surgiram da areia e cavalgando o dorso das ondas venceram o monstro marinho em vassalagem à jovem dama. era cadáver ambulante a alma decepada ao fio da dor. me acena nua de anéis e luvas. Só que o rebanho pasta imóvel. Mas o Urubamba célere. incontido foge do cárcere da cordilheira a vasta muralha dos paredões a pique. Pés d'água e rendas pelo ombro ventre prenhe de trutas e murmúrio de mar na garganta o caudal vai ultrapassando as pedras rompendo o verde paralítico das margens atrás do escancarado céu em frente lá onde abraçado ao regaço do Amazonas soma-se ao oceano arregaçando auroras sustentando navios gigantes que são ilhas à deriva sem a placidez das pedras tentando à toa amarrar a correnteza do efêmero. Só que as pedras são filhotes das montanhas paridos em antigo parto sísmico.URUBAMBA Línguas d'água barbas e bigodes de espuma o rio lambe as pedras qual bicho as recém-nascidas crias. As pedras presas por raízes de peso são pausas brancas e têm pacto com as paquidermes montanhas hieráticas em molduras sagradas. De longe até parecem um rebanho cujas formas agudas se perderam na lima de milênios. Lhamas? Vicunhas? Alpacas? Algumas menores até lembram ovos fósseis de extraviado pré-histórico lagarto ou ignoto sáurio. . Marítima mamífera a espraiar a cútis de elanca Enquanto as gordas vastas ancas nadam dançam se lançam pelos pastos salgados de algas e sargaços. Será menina a baleia albina? Será adulta a náufraga lua animal? Ou centenária a submarina cetácea nau? Senhora dona do aquático sítio supondo-se solitária soberana desfila tranqüila na líquida passarela e revela coreografia de estrela e solfeja cantiga de amor arquiantiga e corteja sem saber-se a prima-dona de um mega espetáculo sem pressentir a intimidade exposta à ribalta de mil olhos pelo globo em volta...BALEIA ALBINA Pelo úmido azul a baleia albina baila e assombra a sala em penumbra barbatanas rêmiges a massagear volumosa massa d’água o trêmulo transparente corpo marinho.... Como o mar tão vasto cabe entre sofás? como nos toca o mar se a pele não nos molha? À noite os gatos são pardos À noite somos jonas e pinóquios acomodados na barriga da sala essa estranha baleia cujas paredes entranhas .. Dissolvidos em poltronas em frente à tela acesa acordados dormiam despidos de si mesmos. Queriam fotos nos álbuns e carrosséis de slides. Nem poentes nem montes nem sorrisos nem olhares confiavam à memória. Somos então outra casta de peixes pescados nas malhas de eletrônica rede.o oceano invade e lambe até tarde. . não riscavam a faísca do diálogo nem o fogo generoso do convívio. Preferiam o amor da novela... Alérgicos a horizontes não chegavam à janela. lábios de pedra. À noite. Só miravam a paisagem por entre câmaras e lentes cumprindo programas de turísticas viagens. THE HOLLOW MEN A Lélia Coelho Frota Não queriam a vida. não viam o rastro do dia nos rostos em torno e. cegos. Bastava-lhes a imagem. Enfim o sossego não mais sonegado. Passivos. a terra os elabora contra a tíbia resistência de tíbias. Cílios cintilantes estrelas nos olhos ele me acena com plumas e me abraça com asas. NO COLO DO ANJO Empoleirado na torre do meu sonho um anjo resplandece. propõem legendas de ternura vãs hipóteses de esperança em outro mundo além-campas. Mas nossos mortos não estão lá. Crescem capins pelas covas mas não mais seus cabelos. Assombram dentro de nós: múmias na química de nossa breve memória. Juntos vagamos . Cantam pássaros nas copas e mudas estão as gargantas. conhecer a casa que nos aguarda. as lápides estáticas falam do tempo sem urgências. Não sabemos se restam no recesso das urnas os restorelíquias dos corpos redimidos de lidas entre antigas estrelas e cruzes. Em berços de terra e treva os corpos despojados fruem a contínua noite iluminada por estrelas de paz e sóis de silêncio sob as sebes de impassíveis arbustos vestidos de verdescuro luto. Legiões de formigas e miúdas vidas assumem o processo do reverso ao útero telúrico. perônios e crânios. Minerais.CEMITÉRIO DE MANAUS "Laborum meta" promete o portão em caligrafia de ferro. Vamos atrás de nossos mortos acender velas que também choram. Só os homens têm pálpebras.entre rastros de astros a cavalgar nuvens por planícies etéreas até que me sinto serena. Mas eis que então fala: Não sejas cega. O olhar de Deus tudo abarca. JOGO DE CASA Sob telhas centelhas fagulhas borralho olhos d'água água na talha Sob telhas galhos alhos coalhos molhos repolhos toalhas Sob telhas agulhas retalhos malhas fitilhos ilhoses Sob telhas rodilhas presilhas palmilhas sapatilhas Sob telhas mulheres abelhas colheres talheres Sob telhas parelhas filhos filhas espelhos ilhas Sob telhas armadilhas navalhas batalhas partilhas mortalhas . menina. É como se mudo dissera não temas véus ou névoas qualquer neblina passa. polainas. ranço de mofo e mijo. mascotes e balizas. sobras de chuva pelas sarjetas. Manaus de banhos e agrestes piqueniques em picadas e igarapés. Avenida e Eden. Manaus de patrióticas paradas. platônicas tranças de bem-querer mal-querer. vidros de perfume. Manaus que acorda com bondes dlém-dlém por ruas de pedra. flutuantes que são favelas em baixo-relevo no painel dos rios. mambos-jambos. Manaus de eloqüentes. udenistas e demais alas dissidentes.Elegia Derramada Manaus de matinês que sabem a flertes e chicletes. pondo euforia ou melancolia nos enredos de amor tão cerimoniosos. ruído de serras a esfarelar lenha pras bandas do Caxangá. Noturnas madrugadas de sinos. babas de moça e biscoitos. arcaicos rituais. resmungo de lanchas pelas barrancas a luzir lamparinas. Bailes e blocos nos sábados gordos e magros dos clubes. plataformas que se propõem domar o caos e consertar o mundo. pendões. andiroba e pau-rosa. Bandas alvoroçando praças na filigrana dos coretos. Manaus de portas lojas de turcos. Chaplin. peças de rendas sujas. pessepistas. Bodas com banquetes. Verdureiros a vender verdura com o orvalho da véspera amoladores que negociam o fio das facas e dão de quebra fagulhas e o fino falsete de metálico mineral gemido. marchas. loquazes comícios de loucos rivais políticos: pessedistas. passeios em férreas pontes e improvisadas hesitantes pinguelas. galos e lerdas estrelas. valsas. setes de setembro ajaezados de chapéus. astros a brilhar nas telas dos cines Politeama. Gordo e Magro. Manaus cheirando a borracha. Guarany. bogaris. bangue-bangues. sambas e frenéticos frevos. bate-bate de lavadeiras limpando as nódoas da vida nas propícias cacimbas e rasas correntezas do Quarenta. Bares. luvas. pães-de-milho e erva-doce que chegam pontuais às portas em vespertinas visitas de tabuleiros e cestas de vime. requinte e luxo de mármores e cristais que invadem as escadarias e esquadrias de solarengas casas num outrora de acácias e buganvílias. joalherias e farmácias belle-époque. cais de diligentes incansáveis guindastes abastecendo a cidade . pardas praias em que aportam catraias de relutantes peixes. cordões e corsos carnavalescos em carros de capota aberta. petebistas. alto-falantes e rádios bradando inflamadas falas por saias e becos: avalanches oratórias. potes de brilhantina quinquilharias. brilhosas fazendas no chão de vitrines entupidas. batizados e aniversários de fartas mesas transbordando bolos: mães-bentas. No púlpito da Matriz o padre possesso vocifera contra comunistas e protestantes e joga as chamas do inferno para apagar os irreverentes bocejos nos bancos da igreja. alturas de lua morosa. quilhas vacinadas contra a vertigem dos ventos? Ou estariam desde sempre fundeadas nas invisíveis correntes d’água dos séculos? Dobravam os sinos abafando os frenéticos pianos a planger nos salões dos sobrados mas o que sempre se ouvia. Tardes tarjadas de jururus urubus debruando beiras de casario. arrastando de roldão os corações. Ensaiando Partidas Cadeiras de balanço mastigavam os soalhos ensaiando partidas. manteiga da Holanda. Manaus de altas mangueiras a compor portais de arcos de ruas. céus que papagaios de papel e tela singram em aladas batalhas sobre telhados encarunchados e postes floridos de trepadeiras. âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas. . Manaus de negras águas onde naufrago. de que mapa? Ventiladores giravam as corolas metálicas no chão invertido dos tetos criando brisas que não se aventuravam pelas ruas polidas de sol nem ousavam soprar a fuga de velas. de que mundo. era o gargarejar do rio a vocação de foz e mar drenando fragmentos de terra. embalando fundas ânsias contra bojos de navios trancados a âncoras. a estraçalhar vidraças. pouco importa se baixo e rouco. impacto de frutas sob fúria de chuvas. Caolhos os rádios acendiam as mágicas pupilas de gato e vozes espetrais sem apoio de bocas e rostos chegavam. Que estranha calmaria as conjurara.de esnobes fomes de batata inglesa. rubros redondos queijos do Reino. Na praça São Sebastião galeras de bronze destinavam-se a longínquos continentes mas imóveis não singravam ondas de lusas pedras deixavam-se estar molhadas tão só de chuvas proas frustradas de horizontes e azuis. galhadas em que papagaios decorebas cantam peremptas cantigas e desafiam as manhas de macacas de sutiã e calcinha ganhando o tão difícil dia-a-dia para saltimbancos malandros cafetões. vigias fedendo a gringa maresia. que desmoronam tetos de nuvens e fazem ganir cães vira-latas. vinhos da França. soezes comensais do lixo que fermenta às soleiras sob o sol. Manaus de águas passadas. abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria. linhos da Irlanda e mais mil cargas de sonhos e fugas estocadas nos anchos bojos de vapores tisnados de Europa. A água do rio é mansa mas também se zanga . Tem água cor de café tem água cor de cajá tem água cor de garapa tem água que nem guaraná. Pressa de corredeira sobressalto de cachoeira traição de redemoinho. A água doce do rio não tem baleia nem tubarão tem jacaré.Água Doce A água do rio é doce. Mas também transborda e inunda também é vasta. A água doce na pororoca enfrenta e afronta o mar. Filha de olho d'água e de chuva neta de neve e de nuvem a água doce é pura mas também se mistura. Antes fosse. carece de onda. também mata. Afoga quem não sabe nadar.. Busca Minha infância é hoje aquele peixe de prata que me escorregou da mão como se fosse sabão. piranha puraquê e não sei mais o quê. . Enrola quem não sabe remar. também é funda também arrasta. Tem banzeiro. Carece de sal. A água do rio carece da vândala violência do mar. A água doce não é tão doce. candirú. enchente correnteza e repiquete. A água do rio é mansa sem a ameaça constante das vagas sem a baba de espumas brabas. A água do rio é doce mas também sabe lutar. A água do rio é mansa corre em leito estreito. Amor como açudes sangrando ou caudais e tempestades despencando dilúvios. nem de lama. sua muda canção Subo nos galhos da goiabeira atrás do falaz papagaio — Me segura. sangue e esperma em arquivos que jazem sob a terra lacrados chaves já perdidas no ontem. E não me falem de ruínas nem de cinzas.Mergulho no antigo rio atrás do peixe vadio — Quem viu? Quem viu? Minha infância é hoje aquele papagaio fujão No ar. Amor como relâmpago e sóis inaugurando auroras ou ateando faíscas e incêndios nas trevas da minha noite. lançados fomos. . dizendo melhor. Modo de Amar Amor com tremor de terra abalando montanhas e minérios nas entranhas da minha carne. Os vivos farejamos crus mistérios e giramos perguntas parafusos que mal roçam a cútis dos arcanos: o olhar terá nascido no jurássico? o tom de tez e voz será adâmico? de quem decorre esta imprevista herança de sermos o que. jogo de sexo e espelhos por onde assim perplexos nos lançamos ou. me segura senão eu caio. bem longe embaladas em ovos. Herança Bênçãos e maldições vem de. amor. bem ou mal nós somos? Família. Queixamo-nos de carestia se de amor-próprio ainda nos sobra algum trocado. em prestações nem sempre suaves. quanto de entrada supúnhamos de todo não poder: o alto preço dos sustos. mas que fazer quando só amor é o lucro que buscamos? Lírico e Lúbrico Lírico e lúbrico o amor brota lírios e trinca a polpa de frutos. a tristeza do saldo zero. E nos provamos raízes investigando a terra em seu segredo de barro. Por ele pagamos. Além. os juros extorsivos do medo de perdê-lo. De luz cintila o encontro em que nos provamos a fundo curvas de carne e matos de pêlo. Mesmo assim depenamos bolsos e bolsas de moedas raras. avulso o tempo rola expulso do céu que no chão conquistamos. E encarcerados somos entre próximos cristais de estrelas e rios. a conta escorchante das noites em claro.Carestia Amor custa bem caro. . E nos sentimos pássaros em que plumas de nuvens sobre o dorso pousassem. Boiúna Na preamar do meu sonho bóia essa baita boiúna a negra pele inconsútil rente ao veludo da treva. Boca sede de gozo e poder pombos lhe pousam entre os dentes ávidos pêssegos se imolam cindindo-lhe os lábios. Boca sítio de martírio se a contragosto de fome se fecha ou em pânico se cala atrás de uma mordaça. a qualquer hora derrama o fel da peçonha e zás se arremessa às bordas da cama onde vaga navego e me afunda nas profundas de um inferno feito d’água. Boca Boca livre trânsito de vocábulos e aves fruições e frutos. . Medonha. Jeito de inócua jibóia a boiúna se arrasta dócil no espaço azul do meu sono mas o ímpeto do bote fermenta-lhe o corpo enorme e a qualquer piscar de hora o porte de pura cauda sacode o caudal do rio e a centelha de seus olhos logo incendeia-me o leito. Foi sangria desatada e a porta do pronto-socorro também encontrei fechada. O nada não é perdição mas estado de graça. centelha que faz o incêndio e a cinza.pasto de milhões de olhos que lhe compram os pedaços ao preço vil do mercado. Desde que o mundo é mundo a sina: o amor. Dei com o nariz na porta do teu coração. Depois foi pendurado nas paredes da cidade --. .Desastres de Amor Mulher bule de louça deixa-se pegar pela alça e verte suor e sangue em quantia exata. Eu disse a meu coração: Sossega pois tudo passa. Esquartejamento Vendeu o branco sorriso à fábrica de dentifrício a cabeleira basta a xampu Número Um o busto farto à marca de sutiãs de náilon as axilas depiladas a desodorantes espreis ancas e partes pudendas a firmas de absorventes e as belas pernas a casas de meias transparentes. Inclui a morte servida sem o menor escrúpulo. Inclui o tédio guarnecido de exóticos temperos. Inclui mil hipocrisias devidamente empanadas e servidas à francesa bem antes da sobremesa de frutas esquartejadas. Inclui entre as iguarias amizades congeladas sonhos em banho-maria deleites de amor requentado em rançosos azeites. Inclui o medo camuflado em camadas de batatas. Inclui sangrentos nacos cobertos de molhos pardos que sabem a desgosto. . Ódios com pó de pimenta e as trêmulas gelatinas de dúvidas coloridas.Cardápio Nosso cardápio diário inclui carnes assadas e angústias bem pasadas. os cabelos pingando sabor de sal na boca. salta. jogo dentro de um copo d’água e ele logo se afunda. de outra cor e de outro cheiro. pernas. quando o tio decide voltar. sempre luminoso dentro de mim. Esse dia nunca anoiteceu. deixa a patinha na lagoa dela enquanto houver sol. se estilhaça em gotas que espirram das bordas molhando o mosaico do chão. Horas há em que ele se sacode e vira pratos. dentes contra dentes. menina. fico choramingando. esses pseudos peixes. Vai ficando tão esmaecido que distingo comprida linha entre a areia clara e o mar verdeazul. bem lá em baixo. que não posso tocar. Tenho o rosto mais úmido que focinho de cachorro e língua de gato. Tudo é ainda um azul geral. escorrendo por meus ombros e braços. mesmo que eu fique imóvel. Bato no corpo da água fresca. param de deixar rastro e mergulham na água rasa. que. Ouço dizerem. mas tio. grudando-se a mim na lã molhada do maillot. regressando à bacia e deixando-me entrever o corpo imerso. ora devagarzinho. por isso me demoro tentando pegá-los e. São bem mais estreitas e calmas. enregelando-me a pele. No entanto me fascina saber que deslizo nas costas do monstro colossal de quem não vejo cabeça nem cauda. pés. que o vento não sopre em mim arrepiando-me toda. Sinto-me em casa que nem eles. ou se recompõem rapidinho. Já na praia o azul noturno começa a empalidecer. Chamam-me e me finjo de surda. infinita. Quero permanecer com o mar até o pescoço. não vou me queimar nem um tantinho. brincando de nadar. lá estão peixinhos passeando. ora de supetão.Águas represadas Terei eu três anos? Pouco importa. adiante. As pessoas me seguram e dizem. se alguém me vigia. Vem que aqui é bem manso. Passa tempo até que amanheço sobre novas águas. a areia umedecida cochichando no atrito de moldar-me os pés. Criança pequenina não pode tomar sol forte. nem engatinhar sabe e só passeia de colo em colo. O sol não se apagou. Vou caminhando. Serei tão pequena assim? Me lembro da irmãzinha que ficou no berço. tanto que até se encosta no céu. e com . mas o mar é bem maior. É quando me sinto inaugurando o mundo dentro de enorme bacia de alumínio cheiinha d’água. indo bem lá em cima. Corpo que se fende. seu lugar não é aqui. penetrável. Nenhum me diz vai embora. só que não chega a me molhar. o sol não está forte. cuidado cuidado senão você cai. saltita. Estou ao sol e o sol se multiplica e se esfacela em reflexos que dançam e ondulam sob minhas mãos. tudo oscilando. imenso caldo de anil. barriga. Na rua as janelas fechadas parecem dormir junto com as pálpebras dos moradores. mal se adivinhando o desenho do mundo. O tio me toma pela mão e me leva à praia. fria. apenas olhar à distância pelo redondo da vigia ou do convés. repetidas vezes. às vezes com escamas de ouro e prata. o vaivém me tocando. Depois é aquela sensação gostosa do abraço molhado me envolvendo suave. Penso no mar tão amiguinho que ficou lá atrás na beira da praia e estranho aquela superfície proibida. Em vão tento agarrá-los. Estou num navio do tamanho de um quarteirão. Mas vem o dia em que vejo riachos se desatando dos olhos de minha mãe. Arregalo os olhos no fundo d’água. lá dentro até parece uma cidade. tem muito tubarão rondando o navio. Sou levada pra bem longe em conseqüência desse pranto. Quero sentir o balanço da onda. Ainda é madrugada quando deixamos a casa. Tiro o anel de chapa do dedo. só o lombo. Que milagre será esse do navio tão pesado não afundar. É como se ele fosse um simples balanço de jardim. juro. Descubro que o vento é quem franze a pele do mar. de um amarelo pálido. fazendo-me bater o queixo. entorna copos nas mesas. talheres. atenta que estou ao chapinhar da água sob as palmadinhas que improviso transbordante de euforia. nada de cetáceos. Coleciono fotos. rã. vem ver o encontro das águas. Iguaçu. rio que no Amazonas não passaria de anônimo igarapé. cabelos pedindo pente. Gostamos quando folhas secas. faz de conta ser arraia. Vamos mergulhar. Menina. A do quarador pode ficar lá mesmo. pois vai correndo apressado no meio do verde. Os capachos abandonam as soleiras. encharcando a saia de seus quintais. além das missas. inventar metamorfoses fantásticas: eu sou tartaruga. aterrizou. fazer guerras aquáticas. e nos dispomos a recolher a roupa secando nos varais. Se trovões perturbam o silêncio das tardes. sem ameaça de naufrágio ou medo de tubarão. afogar e ressuscitar. Vem chuva. acompanhando o volume das águas. peixes. vendo chegar e partir canoas. Mais que a volúpia do contato com o líquido denso. e agradecemos a bênção descendo sobre as cabeças. tipo. véus de névoa e bruma. os cães. Da aventura sobram algumas fotos. pastoreando com o olhar aquele rebanho que. Niagara. rola a alegria dos banhos nos rústicos balneários. Ficamos assuntando as nuvens. quem sabe de um cavalo. batelões. tu. Ivan é boto. o sonho do próximo domingo no mesmo local. Manão. bubuiar. maciçamente mineral. cativa-nos o sossego da segurança absoluta. a não ser que a chuva aconteça. Corremos a apanhar as mangas derrubadas por fortes pancadas. É como se as cachoeiras cantantes me chamassem lá de dentro dos matos e florestas: Itiquira. arrastando invisíveis móveis pelo soalho dos céus. pode se dispersar tangido pela ventania ou se transformar num imenso chuveiro. Após tantas correntes e corredeiras. a tina entre quatro paredes. membros cansados. catraias. moluscos. a saliva generosa da natureza me cuspindo. vejam não estou inventando façanha. Esta. nossos cabelos misturados aos cabelos da chuva. Lacy. Aos domingos. não é nenhuma mentira. nas amuradas do porto. és curimatã. a qualquer momento. cai chuva. despencado. Vamos ao parque maior resgatar o passado anfíbio. Sentimos os dedos da chuva na própria cara. Temos a impressão de farejar estrelinhas cadentes. a casa semi-inundada mais parece um dos muitos barracos flutuantes que surgem à margem dos igarapés. de esfregar a cabeça num pedaço de céu que. de um lado café-com-leite. misturado ao suave torpor fruto do dia intenso. ali debaixo de coroas de respingos. Só nós duas. o que humilha todos os artigos hospitalares homônimos. Fico ruminando os versos de Pessoa: o mito é o nada que é tudo. Turista afobada. tucunaré. Manaus é moça debruçada no espelho do Rio Negro. Corremos para que as gotas batendo nas pálpebras gerem fagulhas de luz nos olhos. únicos seres orgânicos a flutuar solitárias. tomados de pânico. sai das águas doces para as salgadas: estou com a irmã às margens do Mar Morto. a condenação ao banho de cuia. o rápido êxtase aos pés do belo. mais adiante. gritamos cantando. Viajo atraída por remotos caudais. os dedos da chuva vão esfregar. cor de café. no regaço de um . enquanto afronto o perigo em barcos mínimos e atrevidos. Aqui está uma: eu molhando os pés no Jordão. as pontas das toalhas arrastando nas poças. se põem a latir e o alvoroço se apossa de nossos corações. algas. Auxi. Sobre o mar estéril.o correr dos dias vão se misturando. ensopando blusas e camisas. triviais e domésticas. tantos passeios ao cais flutuante. Desejo outras cachoeiras que não a caseira Tarumã de fins de semana. O rio fica malhado como o couro de um boi gigante. Cláudio. ouvidos entupidos. deixando de herança fina lama sobre os mosaicos da copa. sem ficar assim paradão feito boi sonolento. ano após ano. e. Então começa minha vida no meio dos rios. e vamos enchendo alguidar e paneiros. não resisto ao fascínio das viagens. improvisando piscinas selvagens nos subúrbios. os pés das mesas e cadeiras vão sumindo. jacaré. que avança por ela com os longos braços dos igarapés. Aí nos deitamos em régio colchão d’água. sem o menor esforço. Durante a semana. maninha. primeiro com outras verdes cor de chuchu. estratégia para documentar momentos de prazer. Ao cair da noite somos arrancados daquele paraíso. experimento o clímax da surpresa. Nossa alegria só míngua quando os adultos dão cobro à enchente desentupindo os bueiros e a água vai se recolhendo na boca dos ralos. de outro café puro. gaiolas e navios de grande calado. gravetos e terra vão tapando os ralos de escoamento. com outras escuras. Levito em plena rua. nos açudes. nos olhinhos d’água. a inquietação. atravesso árduos invernos de gelo em Chicago. Prodígio da natureza a me enfeitiçar. o sussurro dos jorros ao cabo de meses a fio de total inércia. Era tão bom encostar os pulsos no gelo a fim de esfriar o sangue que vasculharia o corpo inteiro. Só equivalente a. Recordo a chegada da primavera. . renegando o incômodo peso nos ombros.mar tão morto que é até mesmo incapaz de matar. embrulhada em peles e lãs. Lá vou eu pela rua. quando maravilha! os flocos de neve principiam a tombar de mansinho feito borboletas brancas sarabandeando. Tenho 30 anos e pela primeira vez na vida o destino me apresenta à neve. também água. lá nos confins da cidade. E agradeço diariamente a serena alegria do corpo limpo e da sede saciada. outra Dama do Unicórnio. rolando nas vastas bacias de caudalosas correntes e afluentes mil. mais imperceptível. ou a se desmanchar no mormaço das ruas. Lavo minha alma em todas essas águas livres e me comprazo com os miúdos fios d’água que brotam das torneiras e me dão banho e enchem meu copo. sobretudo no Atlântico que lambe o litoral leste com imponência oceânica. me sentindo o próprio cabide sob a escravidão do casco. arremedo de algodão nos galhos da árvore carregada de presentes e prendas. o brilho de espelho. o céu desabando pétalas e o maná bíblico descendo em silêncio. o toque da água não líquida bem mais sutil. para mim armadura medieval. dispor de contornos. perder a transparência. A idéia de que a água possa se condensar. transporto-me ao inverno de 67 em Paris. o ímpeto das águas não mais paralíticas. Serviam para refrescar aluás. A suprema delicadeza com que me envolve o corpo não deixa rastro. levá-la à boca misturada com mel e limão em prazerosos piqueniques na montanha. Só o aquecimento artificial permite que a água circule nos canos. sinto com minhas mão o que desde menina é mito de Natal. marmóreas. me dá a certeza de quão artificial e transitória é a carga engendrada no maquinismo da fábrica de cerveja. tal e qual gordos bifes d’água à milanesa. O episódio acontece junto ao Musée Cluny. os rústicos cubos de gelo comprados a tostões nas tavernas de Manaus. E o deleite é tamanho que esqueço a carapaça das roupas. Ver o gelo urinando das carroças. Delícia. Não é por acaso que neve rima com leve. gingibirras e demais bebericos de festas. se amontoar. nas bicas e. dentro do peito tropical. nos pequenos algibes e cacimbas. a finura do gesto fazendo jus à palavra. desenhar sua forma. Enfim. a lâmina mineral. Ao rememorar doces convivências com a água. A suavidade é tal que suplanta a da chuva. lamber picolés de guaraná e groselha. Penso neste país de águas tropicais sempre soltas. se derrete de emoção igual a sorvete. Décadas depois. me seduz dramaticamente. Confesso: o coração. vejo com meus olhos. Volta-me o prazer de pastorear os lingotes de gelo empanados na serragem. ungida pelo milenar manto do inverno. solene. caladas. Sinto-me muito especial. a sensação de alívio ao contemplar a fonte de Buckingham esguichando no ar floração de altos jatos. sol a pino. xingando o bafo de geladeira e o cárcere das botas. Eu. referência onipresente nos relatos da remota Europa. num gesto litúrgico de batismo.
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