Aspectos históricos da geografia brasileira

June 10, 2018 | Author: H. Evangelista | Category: Documents


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Aspectos históricos da geografia brasileira

Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (USP) Orlando Alvez dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Robert Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)

Helio de Araujo Evangelista

Aspectos históricos da geografia brasileira

Copyright © Helio de Araujo Evangelista, 2014

Editor João Baptista Pinto Capa Rian Narcizo Mariano Diagramação Luiz Guimarães Revisão Rita Luppi CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E92a Evangelista, Helio de Araujo Aspectos históricos da geografia brasileira / Helio de Araujo Evangelista. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. 354 p. ; 15,5x23 cm. Apêndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-294-9 1. Geografia. 2. Geografia - Brasil. 3. Geografia - História. I. Título. 14-14937 CDD: 918.1 CDU: 913(81)

11/08/2014

14/08/2014

Letra Capital Editora Tels: 21. 2224-7071 | 2215-3781 www.letracapital.com.br

Para Heloisa

Sumário

Período Colonial................................................................................. 9 Sociedade e meio ambiente no tempo colonial brasileiro. A geografia dos índios!................................................................ 11 Território e oração. A geografia da Igreja Católica brasileira. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro.............. 21 Território e poder. A geografia dos fortes militares do Brasil colonial. Um olhar para o Rio de Janeiro.................. 39 Território e festa. A geografia da festa no Brasil. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro................................ 49

Período Imperial............................................................................... 65 A geografia brasileira começa onde? Seria no Colégio Pedro II?......................................................................... 67 Onde começa a geografia brasileira? Seria no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro? A geografia brasileira começa no IHGB!....................................................... 78 Duarte da Ponte Ribeiro: o diplomata-geógrafo no tempo do Império Brasileiro. Um exemplo de como a Geografia também serve para fazer a paz!.............. 88 A Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro......................... 101

Período Republicano..................................................................... 123 Congressos Brasileiros de Geografia....................................... 125 Delgado de Carvalho e a geografia brasileira......................... 158 O Serviço Geográfico do Exército........................................... 167 Onde está a geografia na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística?........................................................ 186 O XVIII Congresso Internacional da União Geográfica Internacional (UGI) – Rio de Janeiro, 1956............................. 198

Conselho Nacional de Geografia.............................................. 218 A Geografia na universidade brasileira.................................... 229 Trabalho de campo.................................................................... 248 Geografia tradicional no Brasil. Uma geografia tão mal-afamada quanto malconhecida!................................... 264 Geografia teorética, um registro............................................... 291 A Geografia Crítica no Brasil................................................... 314 Cultura e Geografia................................................................... 335

Período Colonial

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Sociedade e meio ambiente no tempo colonial brasileiro. A geografia dos índios!1 Introdução A geografia brasileira é coisa de índio. A geografia brasileira, enquanto território e enquanto relato, tem uma nítida marca indígena. Este é o pressuposto deste artigo que inicia uma série voltada para a geografia brasileira no tempo colonial. Esta é a ideia que percorre a nova linha de investigação tendo em conta os primórdios da mesma, seja enquanto uma realidade transposta em mapas, seja uma grafia que atinge a forma de relatos, relatórios, livros etc. No entanto, é uma empreitada árida, difícil, porque a base documental é precária; nossos índios carecem de acervos que acusem a sua passagem em nossas terras (ou seria na terra deles?). O índio brasileiro não deixa nada escrito; o índio brasileiro não deixa monumentos, como ainda hoje podemos verificar dos maias, astecas etc. O índio brasileiro não deixa... Nada disso o índio brasileiro deixa. Só que sua presença é muito mais impressa do que expressa. A presença indígena está na nossa carne, na nossa língua, na toponímia dos lugares, na destreza com que os portugueses chegaram a conquistar mundo, um mundo chamado Brasil. Os portugueses, com os índios, aprenderam a andar, a aproveitar o que comer, e usar plantas para se curar. Mas, de qualquer forma, há uma notória dificuldade para se analisar a geografia à luz da questão indígena. Assim, vários serão os meios que lançaremos mãos para adentrar na questão. Obviamente, para o autor destas linhas, é um percurso que assume um aspecto pioneiro, pioneiro por não ser um especialista em índio; mas é guiado pela intuição de que não é possível falar em geografia brasileira sem pesar com maior intensidade a presença indígena. No Brasil, a chamada geografia histórica, nos cursos de graduação, não alcança o reconhecimento que deveria ter, quando muito há toda uma digressão sobre Ratzel, Vidal de La Blache etc., mas não se olha para dentro do país. Afinal, quem fez a geografia brasileira, enquanto mapa e relato? Respondo: foram os índios! Naturalmente que não Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 7, n. 14, 2008, julho/dezembro de 2008. 1

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foram os únicos, mas cabe destacar sua participação que é tão desconsiderada.

Desenvolvimento Em que pese todo o ideário existente de que os índios brasileiros foram dizimados, convém ter um melhor discernimento quanto a este propalado extermínio. Arrisco-me afirmar que os índios brasileiros foram muito mais assimilados do que extintos. Ocorreu mais miscigenação do que uma lenta destruição2. Nós brasileiros somos indígenas; devemos o que somos aos índios. E a geografia também! Sobre este aspecto segue abaixo uma luminosa passagem da obra de Jaime Cortesão (1958, p. 134): Em São Paulo dera-se, com a fusão das raças, a assimilação da cultura aborígine, essencial na formação do mito da Ilha-Brasil. O índio, nas suas migrações através do território, prenunciara aquela vasta formação insular. Conhecia e praticava as rotas fluviais que insulavam o território, e os varadouros, por onde arrastavam as canoas dum rio para o outro. Ao unir-se com o português transmitia-lhe um direito elementar, mas fundamental, nesse mundo de vagas e abstratas soberanias: a herança dos caminhos e das grandes linhas que delimitavam o meio geográfico, a economia e a cultura. Ao nomadismo da cultura o português trouxe a consciência e a diretriz política. Lapidou, por assim dizer, essa enorme força de expansão, que estava em bruto. Os fatos patenteiam que ao contrário do que se tem afirmado, lusos e luso-brasileiros não escravizaram ou não escravizaram totalmente o tupi, propriamente dito. Aliaram-se a eles. Das bandeiras participavam entre 5% a 10% de brancos. Os 90% ou 95% restantes eram índios, e maiormente os tupi. Estes últimos participaram da missão desbravadora ou preadora das Bandeiras, por inclinação e Cabe menção ao número publicado pela revista História, promovida pela Biblioteca Nacional (RJ), dedicada exclusivamente à figura do bandeirante (ano 3, nº 34, julho de 2008). Embora os artigos repisem a dimensão da matança, não podemos concordar que havia um branco que matava um índio; de forma alguma, eram, a rigor, índios contra índios. Não raro os chamados bandeirantes nem falavam português, mas tupi. Não raro os assim chamados portugueses guiavam milhares de índios e só conseguiam tal proeza porque os índios assim queriam, porque estavam dispostos a guerrear. O português usava, mas também os índios usavam os portugueses para dirimir antigas diferenças entre tribos indígenas. Na bibliografia constam diferentes trabalhos que versam sobre o tema, tais como, Monteiro, Kok, Neves e Miranda. 2

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gosto próprio. As cartas dos jesuítas referem-se, com frequência, a expedições formadas exclusivamente por índios tupi, que partiam para o Guaira e voltavam a São Paulo com suas presas. Tivemos também ocasião de referir-nos atrás a um documento português em que são citados vários nomes de paulistas que usavam dos tupi como intermediários para trazer outros índios do sertão. A própria documentação espanhola prova que, muitas vezes, esses índios não eram trazidos por violência

Inicio a investigação da relação entre geografia e a questão indígena através de uma biografia, a do primeiro beato brasileiro, assim consagrado pelo então papa João Paulo II, em 22/6/1980. Tal atalho decorre de certa dificuldade em considerar material produzido na época e que tenha chegado até nossos dias. O recurso à biografia de José Anchieta (19/3/1534 a 9/6/1597) nos ajuda a inferir alguns aspectos da herança indígena.   Quem foi José de Anchieta? Nasceu em 19/3/1534 em Laguna (Canária) tendo ascendência judaica; estudou na Espanha. Ingressou na Companhia de Jesus em 1/5/1551, fundada por Ignácio de Loyola, um parente distante da família Anchieta. Chegou a trabalhar 16 horas por dia e a celebrar dez missas por dia. Passou a ter problemas de coluna e veio para o Brasil. Em 1553 saiu do Tejo (Lisboa) em direção ao Brasil onde havia o Segundo Governo Geral do Brasil, Duarte da Costa. Ensinou latim na escola fundada por Manuel da Nóbrega, escola de Piratininga. Catequizou índios e viveu com eles. Em 1563 viveu refém dos tamoios. Foi ordenado sacerdote no Brasil em 1566. Aprendeu as primeiras palavras em abanheenge, língua geral dos tupis e guaranis3. Foi superior na Capitania de São Vicente (das duas casas, a de S.Vicente e a de S. Paulo) e do Espírito Santo e províncias. Em 25/1/1554 fundou com Manuel da Nóbrega o Colégio de Piratininga. Entre 1577 e 1588 chegou a ocupar o cargo de provincial da Companhia de Jesus para a Província do Brasil. Morreu em 9/6/1597, numa aldeia. Em 1617 ocorreu o primeiro passo para a canonização; em 1736 foi declarado o caráter heróico das virtudes. Em 22/6/1980 foi beatificado (dia 9/6 passou a ser seu dia). Segundo Lavínia Cavalcanti Martini Teixeira dos Santos, que elaboSobre o tema produziu a clássica obra:Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. 3

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ra um alentado trabalho sobre a forma como José Anchieta concebia o índio brasileiro, observa que os índios que serão objeto de atenção do jesuíta, os tapuias, também tratados como tupinambás, membros da família tupi-guarani, encontravam-se em plena expansão no território brasileiro, particularmente na costa (1997, p. 32). Embora com diferenças internas, os europeus recém-chegados observaram uma homogeneidade entre os grupos indígenas na costa brasileira. Este aspecto, tendo o tupi como língua geral, destaca a importância da ação de José Anchieta por ter sido o primeiro a constituir a primeira gramática desta língua. A obra Arte da Gramática mais usada na costa do Brasilveio a ser um poderoso instrumento na compreensão do mundo que os europeus passavam a se avizinhar. Uma situação bem diferente da encontrada pelos portugueses quando no século XVII adentraram a região amazônica, que apresentou uma enorme diversidade étnica e linguística da população indígena. O padre Antonio Vieira chegou a tratar esta última região como região do rio Babel (ibidem, p. 33). O índio brasileiro, tendo sido melhor compreendido pelos jesuítas, foi grande portão de entrada aos portugueses que até então ficavam aferrados em suas feitorias centradas no litoral, afeitos à troca de produtos e comércio. O índio ensinava o português a caminhar, a escolher as plantas para alimentação e cura de doenças, a evitar tais animais etc. O índio brasileiro fez com que o português deixasse de ser português e passasse a falar tupi. Foram os índios que forneceram a chave da relação com o meio ambiente em favor dos portugueses.   O que significam os índios na formação social brasileira? Tendo em conta uma entrevista do jornalista/historiador Jorge Caldeira, autor do clássicoMauá – empresário do Império, registrado nos programas Conexão Roberto D’Ávila dos dias 22 e 29 de abril de 20074. O jornalista/historiador Jorge Caldeira observa que os europeus que chegaram ao Brasil, embora pobres, estavam voltados a uma busca de mudanças para suas vidas, que, por sua vez, foram recebidos por índios tupi-guaranis que tinham especial pendor para receber estrangeiros5. Os casamentos com pessoas de fora eram vistos de forma positiva Programa televisivo transmitido na Tv Brasil. A nação portuguesa, à época, ainda era fortemente marcada pela era medieval, na qual, onde se nascia, morria. A mobilidade social era praticamente nula. Logo, o ideário era fazer a América. 4 5

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pelos índios. Pela visão mítica dos tupis o estrangeiro traz coisas novas e positivas. Assim, além da receptividade, os europeus precisavam dos índios para se adaptar ao novo local6. Em sua recente obra já lançada, Banqueiro do Sertão, consta a vida de um padre que vira banqueiro. O padre Guilherme Pompeu de Almeida, nascido em 1656 e falecido em 1713, exemplifica o quanto no chamado sertão brasileiro havia toda uma produção industrial que nos é pouco valorizada pelos estudos de história brasileira. A riqueza do pai foi sediada em Santana do Parnaíba (SP) quando produziu uma espécie de metalurgia que gerava espingardas, cadeados, selas, facas, foices, anzóis etc. E o que tornou possível esta proeza foi uma outra quando ele conseguiu que uma população de 5.000 pessoas que estavam em Vila Rica do Espírito Santo (atualmente ficaria próximo de Corumbá, Estado de Mato Grosso) se transferisse para São Paulo, guiada por 80 portugueses, usando canoas e andado a pé. Era já uma população afeita a trato com minerais porque a sua Vila era um entroncamento entre São Paulo e Potosi, onde ficava a rica mina peruana responsável pela metade da produção da prata no planeta à época. Cabe observar que, à época, Potosi era, em 1680, a segunda maior aglomeração urbana no mundo com 160 mil habitantes, dos quais 6.000 eram portugueses (ora, à época, a cidade de São Paulo não chegava a 2.000 pessoas)7. A história do padre/banqueiro não deixa de ser interessante. O pai dele era rico e para ter o filho com educação este foi enviado para o colégio dos jesuítas em Salvador e chegou a ser aprovado para ter doutorado em Teologia (algo raro, só um ou dois o conseguiam a cada ano). Porém, ele abandonou os estudos, voltou para o Rio de Janeiro e passou a ser padre secular, tipo um funcionário que não chegava a receber salário. A mudança pode ser explicada pelo nascimento de uma filha com uma índia. À época, a questão do celibato para os sacerdotes estava em vias de consolidação, mas não era incomum padre com filhos. Inclusive, no caso em pauta, a filha, Inês de Lima, foi reconhecida anos depois e veio a receber herança. Mas o que chama a atenção do entrevistado é que o código que o banqueiro utilizou para realizar negócios foi o código indígena. Numa época em que não havia tabelião, rede jurídica, como as transações se faziam? Eram realizadas segundo um modusoperandi indígena pelo Situação diferente daquela encontrada nos Estados Unidos, segundo Jorge Caldeira. Lá os índios não tinham esta índole, assim como os migrantes europeus não dependiam tanto da população indígena para sua sobrevivência. 7 A maior aglomeração urbana à época era a de Paris. 6

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qual o circuito prioritário na realização dos negócios era de índole feminina; ou seja, privilegiava-se a ascendência e descendência da mulher na hora de escolher sócios e estabelecer relações de troca. Na própria genealogia que veio a ser escrita pelo padre/banqueiro constava nomes de homens, porém os anelos, a estrutura, era toda ela pautada nas mães que cada um tinha. Em resumo, é da herança indígena tupi-guarani que temos a boa recepção ao que vem de fora (isto não é próprio dos portugueses; estes, em Portugal, apresentam uma baixa miscigenação com o estrangeiro); há uma índole empreendedora (o que temos ainda hoje no Brasil; qualquer um é empreendedor, até manicure, ambulante etc.) e um forte caráter adaptável, ou seja, não há rigidez. Estes valores não são encontrados na educação formal; ela é incutida pela informalidade das relações. Ele (Jorge Caldeira) entende que o sistema escravocrata no Brasil trouxe sérios prejuízos para este aspecto empreendedor brasileiro; pelo contrário, a escravatura reforçou o aspecto mais tradicional na sociedade brasileira, o que gerou uma nítida ambiguidade. Há o Brasil do sertão, do sertanejo, do pioneiro; mas há o da escravidão que é a negação da vida livre, do progresso e do empreendedorismo. Na sociedade escravocrata o ócio é símbolo de distinção (trabalho é coisa de negro); na sociedade escravocrata, a luta do escravo é o de trabalhar o menos possível, porque isto significa ser menos explorado. Na sociedade escravocrata há o estigma da fatalidade no qual o escravo não tem outra esperança a não ser morrer mais cedo. Na sociedade escravocrata é fundamental a ordem; o progresso desperta medo. Sobre este aspecto é interessante o título nobiliárquico conferido a Ireneu Evangelista por D. Pedro II, a saber, barão de Mauá, ou seja, Mal há! Temos muita coisa no Brasil que não está na cultura escrita.Numa entrevista com o antropólogo Darci Ribeiro a Jorge Caldeira, Darci chamava a atenção que a cultura escrita brasileira é muito lenta na absorção deste Brasil informal, inclusive, por exemplo, a primeira grande obra literária brasileira que introduz um monólogo interior cujo sujeito é um analfabeto é o romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, que veio a lume em 1963! Até então ninguém tinha reproduzido um pobre pensando, reproduzindo suas indagações8. A Realmente, o personagem Riobaldo no romance de Guimarães Rosa é ímpar na literatura brasileira; porém, não podemos esquecer Graciliano Ramos e sua obra Vidas Secas, a cadela Baleia e seu dono perfazem uma dupla onde as distâncias entre ambos se veem anuladas pelo drama da seca. Nesta última obra há um espasmo de monólogo interior, mas que não chega à altura de nosso filósofo roseano. 8

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cultura escrita brasileira padece para acompanhar esta dinâmica comunicativa brasileira. Jorge Caldeira cita o curioso estudo que fez sobre o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, que também virou livro. Um rapaz pobre, com parcos recursos, com a ajuda de um dono de posto de gasolina confecciona um tipo de contrato sofisticado que leva em conta direito de imagem mesmo quando não tinha alcançado 18 anos. É um jogador que fala pouco, tem vocabulário limitado, mas que sobreviveu a uma rede de interesses, de contatos; assim, a questão é: qual o aparato intelectual que o sustenta numa situação como essa? Certamente não foi dada pela educação formal. Há algo nos valores que passam mesmo com poucas palavras; no comportamento geral do brasileiro. Valores estes que não estamos muito conscientes de sua existência. A cultura escrita não consegue traduzir os mecanismos que levam os brasileiros a raciocinar, pensar e agir. Infelizmente, no Brasil, não se dá valor ao que dá certo. Por exemplo, a recuperação do jogador para a Copa do Mundo de 2002 foi algo notável, chegava a fazer 800 a 900 flexões por dia para recuperar a massa muscular. Em outro estudo, também, livro, sobre a criação do samba, ele acentua que a criação do gênero samba surgiu numa época de inovação tecnológica dada pelo fonógrafo diante do qual um grupo de analfabetos se adaptou perfeitamente ao processo! Ou seja, são dois casos que exemplificam que há uma formação do brasileiro que, embora não passando pela estrutura formal de ensino, aliás extremamente precária, faz com que ocorram certas adaptações a princípios imprevisíveis.   O que nos diz Darcy Ribeiro? O programa de tv Expedições, tendo como âncora a jornalista Paula Saldanha, reprisou em 24/3/08 uma entrevista com o antropólogo Darcy Ribeiro realizada no ano de 1996, que versou sobre a sua mais recente obra, O Povo Brasileiro. No ano seguinte o senador viria a falecer, com 75 anos. O livro foi escrito em três meses, porém demorou 40 anos para a sua elaboração. Já tinha tentado escrevê-lo em 1964, mas entendeu que faltava teoria, e isto ele a construiu produzindo O Processo Civilizatório (que estuda 10 mil anos de história humana), As Américas e a Civilização (indagando porque alguns países deram certo, como Canadá, Estados Unidos e outros ainda não), Os Índios e a Civilização, Dilema da América Latina. Depois dessa produção ele entendeu que estaria apto a escrever a obra. Período Colonial 17

Segundo ele, escreveu o livro porque temia morrer! Enfrentando um câncer, literalmente fugiu da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e se recuperou do tratamento que o matava para escrever o trabalho. E conseguiu! Ele interpreta que veio ao mundo para escrever esse livro – O Povo Brasileiro. Ele entende que o Brasil foi formado por poucos europeus, embora degredados, de pouca importância para o seu país de origem, que chegaram ao Brasil e passaram a formar a nossa civilização. Uma civilização de mameluco, alguém que não é nem índio, nem europeu: é brasileiro. Aqueles desventurados iniciam uma aventura nos trópicos, uma aventura com pleno apoio dos índios. Os índios tinham aqueles europeus em baixa conta: eram cabeludos, fediam, mas tinham bugigangas, mais particularmente instrumentos. Depois de usar um machado de ferro não tinha mais sentido continuar usando um de pedra. E a maneira de realizar seus interesses, os índios usavam suas índias; os portugueses no início da colonização foram pródigos em acasalamentos. João Ramalho, por exemplo, tido por herói sertanista, não passava de um homem rústico que chegou a ter 30 mulheres. Em suma, em poucas dezenas de anos tivemos no Brasil um verdadeiro criatório de gente, gente brasileira. O Brasil poderia ser vários países. A Amazônia é um país, o Nordeste outro; São Paulo com Minas Gerais (que dispõem de um barroco mais bonito que o do europeu) um terceiro; a região Sul, com os gaúchos, um quarto país. Mas esta divisão não aconteceu. A vinda da família real ao Brasil trouxe o que havia de melhor em termos de quadros capacitados, habilidosos, curtidos por mil anos de luta contra os espanhóis em favor de sua autonomia. Dezoito mil pessoas, com nível superior ao existente no Brasil, lutaram e conseguiram a unidade brasileira. Lutaram com uma das mãos contra os movimentos emancipacionistas, mas tendo em outra mão uma anistia e uma encomenda (ou seja, vencia para então constituir um aliado). Assim, o Brasil constituiu em seu processo de formação uma diversidade étnica, cultural e ecológica. O Brasil tem tudo para ter seu esplendor; carece de uma elite mais qualificada. Esta que aí está permite ao povo se expressar em dois campos: o futebol e a música. Justamente setores que não se exige escola. A ausência de sofisticação na população brasileira, a ausência de uma formação formal, qualificada, é que impede essa imensa população ter maneiras mais diversificadas de expressão de sua capacidade. Os vários países como Coreia, Japão etc. criaram suas crianças com 18

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educação em tempo integral. No Brasil há este absurdo de escola diurna. Está errado isto. Mandar uma criança pobre fazer dever de casa? Como? Se não tem casa!? Não tem quem a apoie nos deveres escolares. Escola não integral serve para gente com posses, que à tarde vai estudar piano ou francês. Um povo que foi capaz de elaborar Iemanjá, a deusa do amor, que se justifica não para oferecer coisas, mas que proporcione que o marido não bata mais, ou que consiga um namorado melhor, o que não é capaz de elaborar se contar com educação formal mais qualificada? Darcy Ribeiro, visivelmente empolgado ao falar do povo brasileiro, acredita que dará certo e termina assim a sua entrevista para Paula Saldanha: Eu saúdo daqui, com esse livro, aqueles que virão, que continuarão fazendo o Brasil para ser essa grande civilização que nós podemos ser. Que nós havemos de ser.

Conclusão Como já observado, com este texto inicio uma análise de geografia brasileira profunda, ou seja, uma geografia que passo a encontrá-la no início da colonização brasileira. Tenho como hipótese que a geografia brasileira, o seu êmulo, é maior que seus intérpretes. Geralmente se procuram os pensadores, as escolas; no caso brasileiro o que falta é um reconhecimento de como esta geografia fatual tal qual se fez, para então ter uma interpretação do que seja geografia brasileira enquanto disciplina. Esta, não raro, é buscada na mente das pessoas, nas suas ideias, nos seus conceitos; no entanto, o que procuro é uma compreensão da disciplina à luz do processamento histórico brasileiro. Naturalmente que assim procedendo, ao fim e ao cabo estou compreendendo melhor este país, e não só uma disciplina. Um país que se expressa por uma geografia, geografia enquanto relato, carta, monografia e mapa. Deste modo, apresento o presente texto relacionando geografia e índio. Devemos muito aos índios. Muito do que somos. Temos a dimensão territorial brasileira, que vem da forma como interagiram com os índios, e como estes conformaram um grau de relacionamento e recepção aos queaqui chegaram. Naturalmente que aqui foi exposto um breve desenho do assunto,e ele está a exigir que outros geógrafos adentrem no tema. Não deixePeríodo Colonial 19

mos este assunto restrito aos historiadores, antropólogos e arqueólogos. Convém olhar a geografia brasileira com o olhar dos índios, pelos costumes dos índios, pela sua fala, enfim, há toda uma exploração a ser desenvolvida pelos geógrafos. Referências bibliográficas Anchieta S. J., Pe. Joseph de. Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Edição fac-similar. Obras completas,Monumentae Anchietana, 11º vol. Apresentação: professor doutor Carlos Drumond; aditamento: Pe. Armando Cardoso, S.J. São Paulo: Ed. Loyola, 1990. Caldeira, Jorge.Mauá, empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ______. Ronaldo: glória e drama no futebol globalizado. São Paulo: Editora 34, 2002. ______.O banqueiro do sertão. São Paulo: Ed. Mameluco, 2006. ______.A construção do samba. São Paulo: Ed. Mameluco, 2007. Chaves, Dagmar A. O bem aventurado José de Anchieta, S. J. Vida e obra. Cia. Brasileira de Artes Gráficas. Rio de Janeiro, 1996. Cortesão, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1958. Instituto de Estudios Canarios. La Laguna – Tenerife (Islas Canarias), 1997. Kok, Glória. No mato sem cachorro. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, pp. 22-4. Miranda, Reginaldo. Caldeirão de mestiços. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, p. 36. Monteiro, John. Sangue Nativo. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, pp. 16-21. Neves, Erivaldo Fagundes. Duros de matar. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, p. 35. Pereira, Paulo Roberto (org.).Anchieta. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 1991. Ribeiro, Darcy. O processo civilizatório – etapas da evolução sócio-cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. ______.As Américas e a civilização – processo de formação e causas de desenvolvimento desigual dos povos americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. ______.Os índios e a civilização – a integração das populações indígenas no Brasil Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970 a. ______.El dilema da América Latina –estructuras de poder y fuerzas insurgentes. México: Siglo XXI, 1971. Santos, Lavínia Cavalcanti Martini Teixeira. Guerreros antropófagos. La visión europea del indígena brasileño y la obra del jesuita José de Anchieta (1534-1597). La Laguna – Tenerife (Islas Canarias): Instituto de Estudios Canarios, 1997.

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Território e oração. A geografia da Igreja Católica brasileira. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro1 Introdução No filme Central do Brasil a história de seus personagens gira em torno do que seria a centralidade do Brasil. Ao fim, e ao cabo, o filme acaba destacando a grande religiosidade da população brasileira, mais especificamente a Igreja Católica2. O trabalho atual é sobre Igreja Católica, igreja e geografia. O pressuposto é de que a Igreja empreende geografia no território brasileiro. Para Marx (1991, p. 17) permaneceu ...esquecido, ou bastante desconsiderado, o fato de que, entre nós, até um século atrás, a Igreja esteve ligada ao Estado. Em conseqüência, os reflexos dessa realidade institucional não têm sido devidamente relacionados com a organização social, com a expansão ao longo de mais de quatrocentos anos e com a consolidação da nossa rede de cidades. E, no entanto, não só o Estado, em diferentes épocas, tomou a iniciativa de estabelecer novos assentamentos, como também não o fez à revelia de uma atenção devia e propugnada para com a Igreja. Também a população estabeleceu e procurou oficializar novos povoados, não só acatando instrumentos normativos eclesiásticos, como os utilizando para garantir e ampliar seu lugar ao sol.

Segundo este mesmo autor, foi através da Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 8, n. 16 , julho a dezembro de 2009 . 2 De certo modo esse filme, dirigido por Walter Moreira Salles – premiado com a Palma de Prata em Berlim, tendo a atriz Fernanda Montenegro como personagem principal –, traz uma reflexão sobre a centralidade da Igreja Católica neste país, ainda hoje. O filme começa numa estação ferroviária de grande fluxo no Rio de Janeiro, a Central do Brasil, lugar do entroncamento, e mergulha nos rincões destes sertões brasileiros na tentativa de recuperar laços familiares e afetivos perdidos, tendo como ambiência toda uma vivência religiosa dada pelas procissões, santos etc. 1

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...Igreja, de suas instâncias de base, umbilicalmente ligadas às do próprio Estado, a tal ponto que se confundiam – e, sem dúvida, hoje confundem os estudiosos – com a religiosidade da população mormente aquela mais humilde ou mais distante dos centros de cultura. A institucionalização da vida dessas tantas e tão dispersas comunidades sedava pela oficialização de sua ermida, de sua capelinha visitada por um cura, pela sua elevação um dia à matriz, elevação que significava a ascensão de toda uma região inóspita, ou de ocupação mais antiga e em expansão, ao novo status de paróquia ou freguesia...

Marx observa que não ... era somente o acesso garantido então à desejada e necessária assistência religiosa que se obtinha, mas também o reconhecimento da comunidade de fato e de direito perante a Igreja oficial, portanto perante o próprio Estado. Não era apenasoacesso ao batismo mais próximo, ao casamento mais fácil, ao amparo aos enfermos, aos sacramentos na morte, mas também a garantia do registro de nascimento, de matrimônio, de óbito, registro oficial, com todas as implicações jurídicas e sociais. Não era somente o acesso ao rito litúrgico que propiciasse no quotidiano, nos faustos e infaustos, o conforto espiritual; era também o usufruto da formalidade civil com todo o direito e a segurança que pudesse propiciar... ...Uma ermida, uma pequena capela, era e o fora por tanto tempo, uma aspiração de um pequeno arraial. A assistência desejada, a confraternização acostumada e os aspectos institucionais que apontamos, ou parte deles, eram justificativa bastante para tal aspiração. Não bastava, contudo, erguer a ermida; não bastava construir, por melhor que fosse, uma capelinha; era necessário oficializá-las. Não era suficiente dotar o povoado de um abrigo para o exercício religioso em comum; era necessário sagrá-lo. A sacralização iria tornar esse abrigo uma ermida também para a Igreja, uma capela reconhecida como tal, uma capela curada, ou seja, visitada regularmente por um padre... (ibidem, p. 18-20).

A igreja pelo olhar de Gilberto Freyre Um autor insuspeito de nutrir pela Igreja Católica profunda reverência destaca em páginas de sua obra aspectos que cabem ser lembrados. Em sua obra Casa-Grande& Senzala, (2000a, p.389, nota 159), Freyre chama a atenção quanto à complexidade do papel dos religiosos em relação aos índios. Não podendo ter uma visão simplifi22

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cada a ponto de entender que os mesmos desintegraram a cultura indígena. Ele assinala na mesma obra (2000a, p. 295, nota 85) que a dimensão religiosa favoreceria a comunicação entre diferentes partes do território brasileiro, inclusive cita o historiador Varnhagem que destaca, sobretudo, o vigor missionário da Companhia de Jesus viabilizando a circulação de notícias. Cabe sobre o tema considerarmos a passagem abaixo: ... Antes de haver no Brasil uma ‘guarda negra’, de defesa à monarquia paternalista ou maternalista dos Braganças e composta de africanos e descendentes de africanos – capoeiras, capadócios, capangas – que grandemente dificultaram a ação antimonárquica de bacharéis brancos como Silva Jardim ou a de propagandistas da República, mestiços como Saldanha Marinho e Glicério, houve caboclos e descendentes de caboclos, mestiços e cafuzos que, em grupos numerosos, se puseram ao lado das instituições mais antigas para aqui transplantadas da Europa – mesmo as mais duramente hierárquicas, como a monarquia absoluta ou a forma mais severamente patriarcal de família – e contra as inovações, mesmo as igualitárias: igualitarismo que, praticado, tenderia a beneficiá-los. É que, como raças subjugadas, se sentiam necessitados menos de liberdades abstratas que da proteção efetiva que reis e papas pareciam ser os mais aptos a lhes conceder contra senhores brancos e padres católicos desabusados no exercício, ou na perversão, do domínio econômico, político ou religioso sobre as gentes de cor. Dos reis e dos papas, na verdade, é que mais de uma vez tiveram os nativos do Brasil, e mesmo os negros vindos da África, proteção efetiva contra abusos de particulares e até de religiosos; e essa proteção é natural que tenha criado nos ameríndios e nos seus descendentes e nos negros e descendentes de negros sentimentos de classe capazes de superar os de raça: vermelhos, pretos ou pardos eram tão filhos de Deus e de Maria Santíssima como qualquer branco; vermelhos ou pardos eram tão súditos Del-rei como qualquer português. Nem a colonização portuguesa do Brasil – já o acentuamos noutras páginas – se fez sobre outra base: a do status político e não a do de cor (2000b, p. 1116).

Além da divulgação há o elemento da incorporação dos signos linguísticos sem preocupação de impor a sua língua, tal como temos na passagem abaixo:   No Brasil o padre serviu-se principalmente do curumim, para recolher de sua boca o material com que formou a língua tupi-guarani Período Colonial 23

– instrumento mais poderoso de intercomunicação entre as duas culturas: a do invasor e a da raça conquistada. Não somente de intercomunicação moral como comercial e material. Língua que seria, com toda a sua artificialidade, uma das bases mais sólidas da unidade do Brasil. Desde logo, e pela pressão do formidável imperialismo religioso do missionário jesuíta, pela sua tendência para uniformizar e estandardizar valores morais e materiais, o tupi-guarani aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos e distantes em cultura, e até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los todos do colonizador europeu. Foi a língua, essa que se formou da colaboração do curumim com o padre, das primeiras relações sociais e de comércio entre as duas raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou para o gasto ou o uso corrente a fala do povo conquistado, reservando a sua para uso restrito e oficial. Quando mais tarde o idioma português – sempre o oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular, já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol;amolecera-se num português sem rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a influência do ensino jesuítico de colaboração com os curumins (2000a, p. 362).  

Quanto ao papel das irmandades, ele também chama a atenção sobre o tema e chega a destacar: O estudo minucioso da composição social e, quando possível, étnica, das nossas irmandades, é dos que mais contribuem para o esclarecimento das condições de raça, classe e região que, tomadas em conjunto – nunca isoladas umas das outras – caracterizam a formação brasileira. Sem o exame em conjunto de condições que quase sempre se interpenetraram entre nós, como as referidas, de raça, de classe e de região, arrisca-se o estudioso da formação brasileira a generalizações falsas sobre o indivíduo ou grupo que considere representativo; pois, no Brasil, generalizações firmadas em critérios de interpretações puras, válidas para países de maior pureza ou maior nitidez hierárquica na sua composição social ou étnica, perdem a validez ou o vigor. Assim não se pode afirmar da nossa formação que tenha sido substancialmente aristocrática no sentido de uma raça, de uma classe ou de uma região única. O que a nossa formação tem tido é forma aristocrática dentro da qual vêm variando substâncias ou conteúdos de raça, de classe e de região, ora exaltando-se como nobre o branco (e dando-se aos indígenas o direito de adotarem velhos nomes portugueses de pessoa ou família), ora o caboclo (cujos nomes passaram em certa época a substituir os europeus); ora glo24

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rificando-se o senhor dos engenhos, isto é, da região da cana, ora o fidalgo do sobrado, isto é, da região ou área urbana (donde a tendência contemporizadora para o senhor rural mais rico ter tido sempre sobrado na cidade mais próxima de suas terras ...); ora fazendo-se do homem do litoral o herói da formação nacional, ora considerando-se o verdadeiro herói dessa formação o paulista, o sertanejo ou o montanhês; ora fazendo-se do açúcar o artigo-rei da economia nacional, ora transferindo-se essa majestade para o café (2000b, p. 1127).1

  Este aspecto abrangente da Igreja no Brasil é que realça uma dimensão da identidade do povo brasileiro que é a sua crença no sobrenatural: “...O povo brasileiro é por excelência o povo da crença no sobrenatural” (2000a, p. 356). Para Gilberto Freyre, a Igreja Católica só perdeu para o poder da terra. Ela chegava a ser mais poderosa que o rei, mas menos que o senhor de terras (2000a, p. 402).

A Igreja na dimensão do fomento à vivência social Como observado anteriormente, a Igreja Católica nunca se resumia à sua atividade estritamente religiosa, ela tinha uma dimensão societária muito profunda. No sentido de realçar o que aqui afirmamos, destacamos alguns trechos de uma carta do então Imperador D. Pedro II que cria a Irmandade Nossa Senhora de Duas Barras, no atual município do Estado do Rio de Janeiro, em 18542. Dom Pedro, por Graça de Deus e Unanima Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e defensor Perpetuo do Brasil. Faço saber aos que esta carta virem, que por parte dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição das Duas Barras do Rio Negro do Termo de Cantagallo da Provincia, e Bispado do Rio de Janeiro, elle foi requerida a confirmação do Compromisso da mesma Irmandade, organisado para o bom regimem d’ella; e sendo visto o seu requerimento; a approvação do Reverendo Bispo Conde Numa nota em sua obra Sobrados e Mucambos, nota 41 que se estende da página 1.155 a 1.161 é possível verificar a ação de várias irmandades, confrarias e ordens terceiras com várias atribuições e conformando o quadro societário brasileiro. 2 Procurei ser fiel à grafia da época. O documento, acompanhado por uma carta do então Imperador D. Pedro II, tivemos a oportunidade de ler no Arquivo do Estado do Rio de Janeiro (em agosto de 1996). Pelo documento, sobressai que a organização da irmandade estava norteada pelo objetivo de prover aos integrantes toda sorte de apoio, tanto de ordem material, quanto espiritual. Este documento será por nós destacado a seguir. 1

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Capellão-Mor na parte religiosa, em conformidade do parágrafo undecimo do artigo segundo da Carta de Lei de vintedous de Setembro de mil oitocentos vinte eoito; eo que respondeu o Conselheiro Procurador da Coróa, Soberamã e Fazenda Nacional. Hei por bem confirmar, como por esta Confirmo, o referido Compromisso, escripta em quinze folhas, contendo dezoito capitulos e seus paragrafos, as quais vão numeradas, e rubricadas pelo Conselheiro Josino do Nascimento Silva, official Maior da Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça, com a clausula porem de ficarem sujeitas a approvação do Governo Imperial quaesquer interpretações, ou reformas, que se accordarem sob este compromisso. E mando, que as Autoridades, áquem o conhecimento désta Carta pertencer, a cumprão, e guardem, e fação inteiramente cumprir e guardar, como nella se contem. Pagou dez mil dos direitos de chancellaria, como se via de respectivo conhecimento em fórma. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos nove de Maio de miloitocentos cincoenta sete, trigesimo – sexto da Independencia e do Império.

Pelo documento é possível notar uma série de cuidados com as viúvas, educação dos órfãos, apoio no falecimento (incluindo ajuda monetária com o enterro). Há uma dimensão festiva, ou seja, as quermesses detonavam um vivo vínculo entre as pessoas, de tal forma que as famílias estreitavam seus laços, novos casais se formavam, e batismos eram combinados. À sombra da Igreja se constituía um ethos comunitário de modo a regular os grandes momentos da vida: nascer, viver e morrer.

A Igreja na dimensão dos limites Uma dos primeiros sinais da abrangência da Igreja na geografia brasileira – aqui tratada não enquanto disciplina, mas enquanto terra – foi nos estudos sobre limites territoriais. Segue abaixo um extrato de um estudo sobre o Rio de Janeiro que foca exatamente a influência da Igreja no tema3. Ao compararmos o Alvará de 1814 que criou o município de São Pedro de Cantagalo com a Lei 1.045 de 1943 que criou Cordeiro, por exemplo, percebe-se que há uma mudança política quanto aos representantes do poder a homologar a divisão territorial, assim como uma mudança na precisão da divisão, o que acusa um avanço técnico na arte da delimitação. In:Cantagalo: a história de seus limites territoriais (1814-1943). Evangelista, Helio de Araujo et alli. Niterói: Departamento de Geografia, 1997, p. 38-43. ISBN 85900765. 3

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Na instalação do município de São Pedro de Cantagalo, por exemplo, em 7 de outubro de 1815, é configurado um termo de Declaração e Demarcação firmado pelo ouvidor e corregedor Manoel Pedro Gomes que abaixo transcrevemos4: ...o território que compreende desde o Rio Paraíba (...), onde nele faz Barra o Rio Piabanha, subindo pela sua margem Direita até a foz do Rio denominado Preto, e subindo pela margem Direita do mesmo Rio Preto até a foz do Rio Paquequer e subindo pela margem Direita deste (...) procurando a sua nascente, que promana da serra dos Órgãos, de onde, na forma do referido Alvará, correrá o termo pelo alto da serra dos Órgãos a partirem suas vertentes com os termos das Villas de Magé, Macacu, Macaé e Campos dos Goitacazes até o lugar em que a referida serra dos Órgãos e Cordilheira de morros fecham no mesmo Paraíba, o qual serve de divisa em toda a extenção dele entre o termo desta Vila e a Província de Minas Gerais, ficando compreendida dentro do termo desta Vila todo o território do alto da Serra a dentro e pertencente a esta Comarca do Rio de Janeiro, em conseqüência, também a Aldeia da Pedra, que até agora pertencia ao termo da Vila de São Salvador dos Campos (Apud Clélio Erthal, 1992, p. 106)5.

Porém, quando nos atemos ao Decreto de 1055, de 1943, que criou o município de Cordeiro, temos: Art. 5º - Fica criado o município de Cordeiro, constituído pelos territórios dos distritos de Cordeiro e Macuco, desmembrados do município de Cantagalo. Parágrafo único - A sede do novo município será Cordeiro, cuja categoria atual é elevada à de cidade. A instalação pressupõe a delimitação do município e indicação dos que ocuparão os cargos da Câmara Municipal. 5 No alvará de criação do município, em 9/3/1814, foi indicada uma delimitação, sem a precisão do que foi demarcado em 1815, a saber: “... terá por limites todo o território que se comprehende desde o Rio Parahyba, no sitio que o Ministro encarregado do levantamento da Villa lhe assignar, correndo pelo alto da Serra dos Orgãos a partir com Termos das Villas de Magé, Macacú, Macahé e Campos dos Goitacazes até fechar no mesmo Rio Parahyba, o qual lhe servirá de divisa em toda a extensão da parte da Provincia de Minas Gerais. Ficará comprehendida nestes limites a Aldeia da Pedra, que até agora pertencia ao Termo da Villa de S. Salvador dos Campos, da qual sou servido desmembral-a com todo o territorio do alto da Serra a dentro, para ficar pertencendo à Villa de S. Pedro de Cantagallo e à Comarca do Rio de Janeiro.” (In:Collecção das Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1814, p. 6-8. Coletânea de leis organizada por Nélia Leão Santos e equipe do IBGE/CDDI/DEDOC). 4

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Art. 6º - Os limites do município de Cordeiro ficam assim constituídos: Com o município de Cantagalo: Começa no ponto onde termina a divisa com o município de Duas Barras, fronteiro ao contraforte da serra, da Batalha que divide as águas dos rios Negro e Macuco; sobe o dito contraforte, ganha o alto da serra da Batalha e acompanha a sua linha de cumiada até o ponto em que verte para a fazenda das Lavrinhas; daí, em linha reta, corta as estradas de rodagem e de ferro, abaixo da Chave das Lavrinhas e vai ter à nascente principal do córrego das Lavrinhas; deste último ponto, em outra linha reta, vai alcançar a confluência do córrego São Martinho, acompanhando a Estrada de Ferro Leopoldina, desce até a segunda travessia desta estrada sobre o córrego Val de Palmas, pouco além da Parada do Andrade. Desta segunda travessia desce o dito córrego até a sua confluência no rio Macuco, descendo em seguida, por este, até a confluência do córrego do Oliveira. Com o município de São Sebastião do Alto. Começa na confluência do córrego do Oliveira no rio Macuco e sobe por aquele córrego até a sua nascente principal; daí, vai em reta, à nascente principal do córrego do Sobrado e por este desce até a sua confluência no rio Grande. Com o município de Trajano de Morais: Começa na confluência do córrego do Sobrado no rio Grande e sobe por este até um ponto no local denominado Santa Rosa, entre o ribeirão São Lourenço e o córrego do Socorro, ponto fronteiro ao divisor das águas do córrego do Socorro e de um outro córrego sem nome que passa pela fazenda de São Lourenço. Com o município de Vergel: Começa no ponto acima referido, onde termina a divisa com o município de Trajano de Morais; sobe o divisor das águas dos córregos do Socorro e de um outro córrego sem nome que passa pela fazenda São Lourenço; continua pela linha de vertente até atingir o Alto da Pena. Com o município de Duas Barras: Começa no Alto da Pena, e vai em linha reta até a confluência no rio Macuco do ribeirãoque passa por Monerá, conhecido como rio Macuquinho e, daí, em outra linha reta e à direita da pedra do Chevrand, até o ponto fronteiro ao contraforte da serra do Batalha que divide as águas dos rios Negro e Macuco. (Decretos...e Decretos-Leis... de outubro a dezembro de 1943, Rio de Janeiro, Serv. Publicidade D. O., 1943: 537-41. Coletânea de leis organizada por Nélia Leão Santos e equipe do IBGE/CDDI/DEDOC). 28

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Pelas duas ementas temos, no primeiro caso, a subscrição da decisão assinada pelo próprio príncipe regente, D. João, e ratificada pelo ouvidor. Já no caso de Cordeiro, verifica-se a presença de um aparelho de Estado regido por normas e com um apuro na delimitação das divisas; em Cordeiro, há uma instância decisória que medeia a ação do governo federal no local, ao contrário do que se verificou na criação de Cantagalo. Estes dois aspectos, o da mudança política quanto aos representantes de poder e o do apuro técnico na demarcação das divisas, ensejam a observação de que ocorreu uma remodelação na forma de gerir as delimitações municipais e na forma de demarcá-las. Se na primeira alteração territorial verificada com a criação do município de Nova Friburgo percebe-se ainda a atuação direta do representante maior do poder, na pessoa de D. João; a segunda modificação em diante, com exceção de Cordeiro (1943), verifica-se uma forte presença da Igreja, ou seja, é a partir do fomento da vida eclesial organizada em freguesia que se tem as vilas6. Por exemplo, Santa Maria Madalena, pela lei que o cria, Decreto 1.208 de 24 de outubro de 1861, foi estabelecido: Art. 1º Fica elevada à categoria de villa, com a mesma denominação, a freguezia de Santa Maria Madalena, do termo de Cantagallo; e farão também parte do novo município as freguezias de S. Sebastião do Alto e S. Francisco de Paula, desmembrada do mesmo termo. (In:Collecção das Leis do Estado do Rio de Janeiro, 1861, v. 256.02.09:16. Coletânea de leis organizada por Nélia Leão Santos e equipe do IBGE/CDDI/DEDOC).

A presença da Igreja no local fortalecia os laços sociais, principalmente através das irmandades, que tinham um papel, além de religioso, previdenciário, ou seja; as irmandades procuravam prover aos membros meios de sobrevivência diante de possíveis infortúnios7. Embora em Nova Friburgo a criação da vila tenha sido acompanhada pelo estabelecimento de uma freguesia, esta não antecedeu a ocupação dos migrantes, que na maior parte não era católica, mas vem correlato. Sobre este item cabe a consulta do Alvará de 3 de janeiro de 1810 que estabelece: “A referida villa, que ficará desmembrada da de Cantagallo, terá por termo o districto da freguezia de S. João Baptista da mesma Colonia, que alli mando crear.”(In:Collecção das Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1820, p. 1-2 . Coletânea de leis organizada por Nélia Leão Santos e equipe do IBGE/CDDI/DEDOC). 7 Quem nos chamou a atenção para este aspecto da irmandade foi o Sr. Diogo Lordello de Mello, em entrevista realizada no Instituto Brasileiro de Administração Municipal no mês de agosto de 1996. 6

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Para o município de Carmo, por exemplo, temos o Decreto nº 2.577 de 13 de outubro de 1881 que estabelece: Art. 1º Fica desmembrada do municipio de Cantagallo a freguezia de Nossa Senhora do Monte do Carmo, e elevada á categoria de villa com a denominação de villa do Carmo, pertencente á comarca de Cantagallo. Art. 2º A freguezia de Nossa Senhora da Conceição do Paquequer (Sumidouro) fica desmembrada do municipio de Nova Friburgo, e incorporada ao municipio do Carmo, que terá por limites os que estão marcados ás duas freguezias, que o ficam compondo. (In: Collecção de Leis da Província de 1881, 1882: 54-6. Coletânea de leis organizada por Nélia Leão Santos e equipe do IBGE/ CDDI/DEDOC).

O mesmo pode ser verificado para o município de Duas Barras, criado em 8 de maio de 1891 pelo Decreto nº 233 que estabelece : Art. 2º: Fica creado o - Municipio das Duas Barras -, que será constituido pelo territorio da freguezia de - Nossa Senhora da Conceição das Duas Barras -, desmembrado do município de Cantagallo, tendo por séde a povoação da - Tapera - com a denominação de ‘Villa das Duas Barras’. (In:Legislação sobre municípios, comarcas e distritos; abrangendo o período de 6 de março de 1835 a 31 de dezembro de 1925. Org. por Desidério Luiz de Oliveira Júnior. Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, 1926, p. 116, 546 p.).

No entanto, com a queda do Império, a influência da Igreja na organização político-administrativa do país sofreu um lento refluxo8. Em recente obra, Mônica de Souza N. Martins, em Entre a cruz e o capital – as corporações de ofícios no Rio de Janeiro após a chegada da Família Real 1808-1824 (Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2008), destaca vários aspectos desta relação entre as irmandades e as funções sociais, particularmente as atividades profissionais, no Rio de Janeiro. Inclusive, Gilberto Freyre, décadas antes, é pródigo em sua obra Sobrados e Mucambos em destacar aspectos desta natureza (2000b). 8 Embora, em termos religiosos, tenha representado um novo alento, já que em não poucas situações, como o Mosteiro de São Bento, à época da proclamação da República tinha poucos membros porque ficava pendente da autorização do então imperador em aceitar novos ocupantes no mesmo. O que representaria novas linhas de gasto... com a República, a separação da Igreja em relação ao Estado significou uma separação entre os proventos monetários de um em relação ao outro, assim, o dízimo, quando arrecadado pela Igreja ficava na própria igreja, ao contrário da época do padroado, quando se tinha uma tributação em nome do dízimo mas não era repassado em igual proporção à Igreja. Este aspecto foi esclarecido pelo abade do mosteiro em palestra promovida pelo Museu Nacional de Belas Artes em 1997. 30

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Em vez das freguesias, os distritos de paz (adstrito ao registro de casamento, nascimento e óbito) e de polícia (voltado para a questão da vigilância e punição), tornaram-se as verdadeiras células da estrutura burocrática territorial em substituição à estrutura territorial do padroado sob a forma de irmandades e freguesias.

A Igreja do Rio de Janeiro sob o olhar de José de Souza Azevedo Pizarro e Araujo José de Souza Azevedo Pizarro e Araujo era filho do coronel Luiz Manuel Carneiro da Cunha e de dona Maria Josepha de Souza Pizarro. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 12 de outubro de 1753. Fez os primeiros estudos na cidade natal e terminou-os na Universidade de Coimbra onde se bacharelou em cânones. De volta ao Rio, recebeu o presbiterato em 1780. Em 1801 embarcou para Portugal onde, em recompensa pelos serviços militares prestados pelo pai, recebeu do Príncipe Regente D. João, a mercê do hábito da Ordem de Christo em que professou e a conezia de Santa Igreja Patriarcal. Voltou ao Brasil com a corte portuguesa, e daqui nunca mais saiu. No Rio, exerceu as mais altas funções civis e eclesiásticas, tais como, conselheiro de D. João VI, tesoureiro e arcipreste da Real Capela, deputado da mesa de consciência e ordens, conselheiro honorário do Tribunal da Justiça, procurador geral das três ordens militares etc. etc. Depois da Independência, foi deputado à primeira Legislatura e presidiu a Assembléia por algum tempo. Velho e cansado, obteve demissão dos serviços da Capela Real, conservando porém todas as vantagens do cargo. Pôde então cuidar da impressão das suas Memórias Históricas. Em 14 de maio de 1830, quando dava um passeio no jardim da Lagoa Rodrigo de Freitas, o atual Jardim Botânico, faleceu de apoplexia, com 77 anos de idade. ... Foi em 1781 que Pizarro começou a coligir documentos e dados para escrever uma história do bispado do Rio de Janeiro. ... Levou perto de quarenta anos rebuscando todos os arquivos, todos os manuscritos que pôde. Nessa labuta constante foi encontrando muito documento importante que nada tinha que ver com a história do bispado do Rio de Janeiro propriamente dita. Não teve coragem de pô-los de parte, de selecioná-los, de maneira a só aproveitar o que interessava o trabalho que tinha em mente. O resultado foi que, em vez de escrever uma história eclesiástica do

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bispado do Rio de Janeiro, como pretendia a princípio, produziu dez tomos maçudos, repletos das informações mais heterogêneas sobre o Rio, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande, Colônia do Sacramento e outros lugares. (Trechos encontrados no prefácio escrito por Rubens Borba de Moraes para edição promovida pela Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1945, vol. 1).

No segundo volume da mesma obra, encontra-se registrado: Da fundação da Igreja Fluminense, sujeita ao Bispado da Bahia, por cujos diocesanos foi regida até o ano de 1580: das Igrejas Matrizes eretas pelos mesmos diocesanos: e dos Governadores, que nesse período existiram. Abrangendo o Bispado de S. Salvador, único no vasto continente do Brasil, toda terra descoberta, e a que em diante se descobrisse desde o Norte da Província, até o Sul dela, em conformidade da Bula da sua criação – Super specula Militantis Ecclesiae –, expedida pelo Papa Julio III e sendo, em tais circunstâncias, sujeitos à sua jurisdição os territórios desde o Pará até a Capitania de S. Vicente, ficou-lhe também pertencendo o do distrito do Rio de Janeiro, situado entre as Capitanias de Pernambuco, Pôrto Seguro e do Espírito Santo ao Norte e a última ao sul. (In: Capítulo 1, p. 8).

A Igreja na cidade do Rio de Janeiro9 Fundada a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no ano de 1565, seu território continuou sujeito à jurisdição espiritual do Bispo da Bahia, até que, pelo Breve ‘In superemminenti militantis Ecclesiae’, do Papa Gregório III, de 19 de julho de 1575, foi criada a Prelazia de São Sebastião. Desmembrada do Bispado da Bahia, o território da nova Prelazia estendia-se desde a Capitaniade PortoSeguro, até o Rio da Prata. (1986, p. 14). Em 16 de novembro de 1676, a Bula do Papa Inocêncio XI ‘Romani Pontificies pastoralis sollicitudo’, elevou a antiga Prelazia de São Sebastião à categoria de Bispado, como sufragânea da Sé Metropolitana de São Salvador da Bahia, criada na mesma data. A esta ficou também subordinado o Bispado de São Salvador de Olinda. Do Bispado do Rio de Janeiro foram posteriormente desmembradas 131 Arquidioceses, Dioceses e Prelazias. (1986, p. 15). As informações que se seguem foram retiradas do Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de São Sebastião localizada na cidade do Rio de Janeiro (RJ), edição de 1986. 9

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Pela Bula ‘Ad Universas orbis Ecclesias’ do Papa Leão XII, de 27 de abril de 1892, foi reorganizada a hierarquia eclesiástica no Brasil, que até então constava de um só Arcebispado, em São Salvador da Bahia e de onze Bispados sufragâneos. Foram criadas duas Províncias Eclesiásticas, a saber: uma no Norte, com sede em São Salvador da Bahia e a outra no Sul, sendo o Bispado do Rio de Janeiro elevado à categoria de Sé Metropolitana. (1986, p. 16)10.

A obra do Sr. Orlindo José de Carvalho11 É fruto de um trabalho exaustivo, dividido em oito capítulos, sendo o primeiro voltado para a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, e os demais para cada um dos sete Vicariatos Episcopais. É um trabalho minucioso enumerando e caracterizando todas as igrejas, capelas, oratórios e locais de culto ligados às diversas igrejas matrizes de cada vicariato.

Conclusão O território brasileiro está impregnado pela oração. O território brasileiro está impregnado por uma história lenta.

O estudo da Igreja no Brasil é o estudo da história lenta. Explico-me: é impressionante como numa cidade como o Rio de Janeiro, Desde então, estamos atualmente com o nosso sétimo arcebispo, a relação vem a ser: D. João Esberard, de 12/09/1893 a 22/01/1897; D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, de 31/08/1897 a 18/04/1930 – foi criado cardeal em 11 de dezembro de 1905; D. Sebastião Leme da Silveira Cintra, de 18/04/1943 a 18/02/1971 – foi criado cardeal em 18 de fevereiro de 1946; D. Eugenio de Araujo Sales, desde 27/03/1971 (1986, p. 16). Pelo Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de São Sebastião localizada na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Edição de 2007, consta à pág. 23 que D. Eugenio teria deixado o governo em 25/07/2001, assumindo D. Eusébio Oscar Scheid em 22/09/2001. Este, por sua vez, deixou o governo em abril de 2009 assumindo em seu lugar D. Urani Tempesta. É impressionante a expressão da história lenta nesta arquidiocese. De 1893 até 2001 quando D. Eugênio saiu do governo, em 108 anos tivemos apenas cinco pessoas à frente da Arquidiocese. Cerca de 20 anos cada governo em média. Quem mais tempo ficou foi D. Eugenio, seguido por D. Jaime; da posse deste, em 1943, e a saída do sucessor, D. Eugenio, em 2001, tivemos duas pessoas durante o governo da Arquidiocese por 58 anos! 11 Obra de um médico reformado que demorou oito anos de pesquisa (1997-2004) e mais cinco para finalização da edição. É o mais recente estudo sobre as igrejas no Rio de Janeiro. Edição própria, conta com 637 páginas de texto com diversas fotografias e mapas das paróquias cariocas. 10

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palco de tantas decisões, processos, situações, dramas, tiros, revoltas, etc., etc., etc., tenha tido uma estrutura hierárquica institucional que passasse por todo este período de forma incólume. Em nenhum momento de nossa história a Igreja assistiu a movimentos dramáticos tais como verificados recentemente em Cuba na Revolução Comunista em 195912, durante a Guerra Civil Espanhola, na própria Revolução Francesa em 1789 etc. Não foram poucos os movimentos da história humana que embora tenham tido uma origem aparentemente alheia à questão religiosa, acabasse, no seu curso, elegendo a mesma como item de primeira ordem13. Uma expressão desta história lenta está relacionada ao fato de o Rio de Janeiro só se constituir arcebispado em 1892! Até então a diocese do Rio de Janeiro era submissa ao arcebispado da Bahia, que não era mais sede do governo desde 1763. Ainda hoje, o cardeal primaz no Brasil encontra-se na Bahia. Além, em 116 anos de arcebispado no Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro só conheceu sete arcebispos. Outro aspecto, além da história lenta, é a história única, ou seja, Em 1993 estive em Cuba e tive a oportunidade de entrevistar um padre cubano; o relato é estarrecedor. A perseguição, a intimidação, as dificuldades financeiras e, ao mesmo tempo, à época, a Igreja era a única instituição não vinculada ao governo comunista com voz em Cuba! Mais detalhes da viagem veja www.feth.ggf.br/Cuba.htm. 13 De certo modo, muito do insucesso da revolução na Espanha no século XX, ou da própria Revolução Francesa do século XVIII (abrindo espaço para a ascensão de Napoleão Bonaparte) decorreu do caráter beligerante à Igreja, o que acabou afastando uma importante base popular ao movimento. No caso da Guerra Civil Espanhola, por exemplo, cerca de 7.000 eclesiásticos foram assassinados, proporcionalmente igual número ao verificado na Revolução Russa. Nas primeiras 72 horas da Guerra Civil Espanhola, entre os dias 18 e 21 de julho de 1936, na cidade de Madrid, foram saqueadas 46 igrejas. Entre os dias 19 e 20 queimaram-se 34 edifícios religiosos; ao término da Guerra, das 210 igrejas que havia na capital espanhola, estavam totalmente destruídas 45; 56 com destruição parcial, 84 com danos leves, 14 sem danos e 11 intactas. As que foram destruídas parcialmente bem como as que sofreram danos leves ou não foram danificadas, foram todas saqueadas. In: Gonzalo Redondo. História de la Iglesia en España. 1931-1939. Tomo II. La Guerra Civil (1936-1939), Madrid, 1993, pág. 20 e nota 6; cfr. Raymond Carr, La tragédia española. La Guerra Civil em perspectiva, Madrid, 1977, pp. 111 e segs. Fontes indiretas obtidas em Prada, 2004, tomo II, p. 9-20. No caso da Revolução Russa, por exemplo, cabe a lembrança que a cidade de São Petersburgo, com a revolução, passou a ser denominada Leningrado, depois Stalingrado, e dado o término da União Soviética no Natal de 1991, após 74 anos, a cidade voltou a ser chamada pelo nome original, uma homenagem ao primeiro papa da Igreja Católica. Embora a igreja russa seja ortodoxa, a mesma tem com a Igreja Católica mil anos de história em comum! Além de certas denominações de igrejas ortodoxas ainda hoje comungarem a fidelidade ao papa, o que não é o caso da igreja russa. 12

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há toda uma estrutura de poder eclesiástico concentrada numa única cidade, Rio de Janeiro, uma cidade que chegou a ter uma abrangência eclesiástica que a levava a atender à Colônia do Sacramento, no que seria localizado hoje no Uruguai, a ficar atualmente restrita a mil quilômetros quadrados14. Acompanhar a Igreja na territorialidade brasileira significa acompanhar a capilaridade da vida social. A Igreja poucas vezes se destacou em ser pioneira na história brasileira, mas, em igual proporção, nunca ficou afeita às estruturas passadas tendo em conta novas situações. Esta sobrevivência tem muito um quê para compreender este país. É um país não dos grandes eventos. O Brasil não é um país de grandes heróis, não tem em sua história situações dramáticas como se deu nos Estados Unidos onde, no auge da Guerra Civil, em 1776, morreram 100 mil pessoas em três dias de batalha! O que é o Brasil? O que é a geografia brasileira? A geografia brasileira foi forjada diante do sacrário através da ação de milhares e milhares de pessoas ao longo dos séculos, orando e fazendo, rezando e trabalhando. O Brasil é o país do miúdo, é o país dos processos densos, fortes, tensos, mas lentos, vagarosos, não há brusquidão, não há desacertos. O Brasil está na Igreja. Igreja x religiosidade Não poucas vezes procura-se criar uma distinção entre religiosidade e Igreja. A primeira seria a expressão do que há de mais autêntico na população brasileira, ou seja, seus hábitos, costumes, folclores, festas e canções, e essas expressões culturais estão nitidamente embebidas por uma dimensão sobrenatural da vida. A Igreja, por sua vez, é aquela coisa pesada, indesejada, castradora, mistificadora, reacionária, e tudo aquilo que possamos imaginar de ruim! Não parece ser adequada esta forma canhestra de tratarmos a relação entre as partes. Uma não vive sem a outra. O que há de fantástico neste país, tendo em conta o observado acima, é que há duas grandes cunhas que formam a identidade brasileira, e por tabela a própria geografia, a saber: o brasileiro tem cara de índio, e sua geografia também15, e este país indígena tem nos religiosos À época, pelo anuário de 1987, a Província da Arquidiocese, não a Arquidiocese em si, abrangia as dioceses de Nova Iguaçu, Barra do Piraí, Volta Redonda, Duque de Caxias, Valença, Itaguaí e Abadia Nullius de Nossa Senhora do Monserrate. 15 Já tivemos a oportunidade de abordar isto em www.feth.ggf.br/Indio.htm 14

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(particularmente os jesuítas), aqui se segue a segunda cunha, muito mais um aliado que adversário. Esta simbiose, jesuíta, de um lado, com tudo o que isto representa em termos de rigor espiritual, carga cultural exigida, disciplina, dedicação, competência, e, por outro lado, o índio brasileiro, um índio que culturalmente nunca saiu da chamada pedra polida, que não gerou pirâmides, ou uma astronomia, ou ainda uma escrita; este cruzamento de forças espirituais, tendo em conta o fato de ambos serem forças humanas ajuda a compreender nossa constituição enquanto nação. Uma expressão desta simbiose está na oralidade do brasileiro, brasileiro é um povo que se expressa, que interage, que intercambia, que não vê o oposto como um natural inimigo. Mas esta espontaneidade está marcada por uma competência comunicativa, há o uso do verbo, do logos, do raciocínio. Uma expressão cultural deste encontro índio e jesuíta é a música. A música brasileira é muito mais forte que nossa literatura. A música não exige alfabetização, a letra sim16.

Fontes de consulta Entrevistas utilizadas - Senhora Ceres Sant’Ana de Cordeiro, em janeiro de 1996. - Sr. Diogo Lordello de Mello, em setembro de 1996, no Instituto Brasileiro de Administração Municipal. - José Ponte Guinâncio, ex-funcionário da prefeitura e historiador do município de Santa Maria Madalena, em 11 e 12 de novembro de 1996.

Documentos primários - Carta de criação da Irmandade Nossa Senhora da Conceição das Duas Barras. - Coletânea de leis organizada por Nélia Leão Santos e equipe do IBGE/CDDI/ DEDOC.

Obras de referência - Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de São Sebastião, localizada na cidade do Rio de Janeiro (RJ), edição de 1986. - Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de São Sebastião, localizada na cidade do Rio de Janeiro (RJ), edição de 2007. Cabe aqui uma referência quando da inauguração da biblioteca central da Universidade Veiga de Almeida no Rio de Janeiro, a escritora Nélida Piñon, então presidente da Academia Brasileira de Letras, observava que a intenção de Machado de Assis e outros escritores ao criarem a entidade foi a de padronizar a língua falada no país, já que a maioria da população brasileira ainda era fortemente marcada pelo tupi-guarani. 16

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- CARVALHO, Orlindo José.Templos Católicos do Rio de Janeiro – Mural. Ed. Do autor, 2009. - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA –ENCICLOPÉDIA DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS, vol. xxii, Mun. de Cantagalo. Rio de Janeiro, pp. 233-237, 1959. - Legislação sobre municípios, comarcas e distritos; abrangendo o período de 6 de março de 1835 a 31 de dezembro de 1925. Org. por Desidério Luiz de Oliveira Júnior. Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, 1926, 546 p. - Leis do Brasil (coletânea encontrada na Biblioteca Nacional – RJ).

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Território e poder. A geografia dos fortes militares do Brasil colonial. Um olhar para o Rio de Janeiro1 Introdução Se no artigo anterior dimensionamos o papel dos índios, no presente destacamos outra faceta tão decisiva quanto a indígena na configuração da geografia brasileira no tempo colonial, a saber, o caráter militarizado do espaço. Sob a perspectiva da militarização do espaço, é curioso notar que os fortes tinham uma dupla função: de resguardar tanto a terra, quanto o mar. Os principais fortes no Brasil estão premidos por esta índole. Se os antigos castelos dos senhores feudais, verdadeiras máquinas de guerra a seu tempo, se pautavam pela preservação de áreas e rotas numa dada porção do continente, os grandes fortes no Brasil seguirão invariavelmente um perfil de defesa de rotas marítimas2. A centralidade brasileira por todo período colonial pode ser encontrada nos fortes marítimos. Não houvesse estas máquinas de guerra, o Brasil não teria o território que tem. O tamanho do país foi inicialmente conquistado no litoral, com os fortes. Mas, por que analisar fortes? Em qual perspectiva se encaixa este último trabalho em relação ao que venho produzindo até então na Revista Geo-paisagem em nome do rótulo – geografia? Como já observado em momentos anteriores da revista, após uma análise mais contemporânea da disciplina, focando fundamentalmente aspectos do século XX, voltei para uma perspectiva da geografia profunda, ou seja: onde podemos encontrar as chamadas raízes da geografia brasileira? Num primeiro momento abordamos os índios, natural esta escolha porque eles chegaram primeiro no território, mas, acima de tudo, eles estão presentes ainda hoje em nós, no nosso vocabulário, na nossa pele, enfim, na nossa maneira de ser. Há uma dimensão indígena da geografia que convém melhor explorar! Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 8, n. 15, janeiro/junho de 2009. 2 Mais tarde os fortes serão também utilizados para legitimar fronteiras continentais, particularmente a partir do século XVIII. 1

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Neste trabalho, por sua vez, analiso outra dimensão poderosíssima da geografia brasileira porque é um dos poucos países a constituir um grande território com pouca gente! Se, por exemplo, temos em conta o processo de expansão territorial dos Estados Unidos, este ocorreu marcado a ferro e fogo! No Brasil, não! Foi muito mais decisiva a competência diplomática de um Alexandre de Gusmão, barão do Rio de Branco, entre outros, do que o ato da guerra e da compra1. O Brasil foi conquistado pela lábia, pelo papo, pela caneta! O ganho territorial brasileiro foi muito mais decorrente de uma violência manipulada preventivamente do que por uma violência ostensiva, agressiva, que veio a dizimar seus oponentes tal como ocorreu nos Estados Unidos; neste, quantos índios há para contar história? E no Brasil, quantos há? Esta diferença está a merecer maior atenção entre os que elaboram uma leitura rasa da história brasileira do tipo... genocídio etc. Se aqui houve isto, o que lá então ocorreu ? Os fortes no Brasil anteciparam algo que o Brasil vem se esforçando a ser ainda em pleno século XXI, ou seja, um país senhor de seu território.

Tudo começou em Portugal Janeiro de 2005. Eram paredes antigas, hoje inúteis, quando muito atraía certo fluxo turístico, mas, no passado, quanto não serviu à mãe-pátria na defesa do norte português contra as sucessivas invasões espanholas? Refiro-me ao forte localizado em Almeida em Portugal, que tive a oportunidade de conhecer. Uma verdadeira máquina de guerra, ou melhor, uma estrela de guerra. Uma estrela se sobrepondo à outra e de cada muralha à outra criando desníveis que poderiam ser preenchidos d’água. A disposição do forte vinha no sentido de tornar os primeiros combates o quanto mais distantes do núcleo; neste, por sua vez, uma verdadeira cidade, com direito a ruas, ruelas, praças, igrejas, área de mercado. Quantas casas? Difícil dimensionar porque a área de um forte No trabalho anterior a este na Revista Geo-paisagem, na entrevista com Darcy Ribeiro, utilizada por nós,há uma menção de que a capacidade conciliadora e diplomática de Portugal, um país tão pequeno e que foi capaz de fazer tanto, está relacionada ao espírito de sobrevivência instigado pela Espanha que sempre acalentou o projeto de ter o controle de toda Península Ibérica (o que chegou a realizar parcialmente durante a União Ibérica ocorrida entre os anos 1580-1640), uma experiência deveras danosa para Portugal, mas muito útil para o agigantamento da colônia brasileira que viu suas expedições alcançarem áreas sem muita resistência de primeiro momento. 1

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é toda ela aproveitada em sua parte externa e interna, concorrendo para tanto uma série de túneis que desembocam em verdadeiros labirintos. O forte encontra-se bem preservado; aliás, melhores informações sobre o próprio podem ser obtidas na obra de Conceição (2002). O que chama, ainda, a nossa atenção na localidade é a abundância de pedra. Fosse pedra uma fonte de riqueza e o país não teria mais problema algum dada à falta de recursos. Porém, esta facilidade de acesso à pedra originou uma fantástica engenharia militar no qual o esmero nas construções podem ser explicitadas de diferentes formas, inclusive nas igrejas. Uma cidade próxima de Almeida é Guarda; nela há uma catedral toda em pedra que demorou mais de cem anos para ser concluída. Enfim, este manuseio com pedra se mostrou muito útil na posse da colônia brasileira e, de certo modo, a extensão do território brasileiro tem uma imediata relação com os fortes encontrados no litoral, assim como no interior, particularmente na região amazônica. A possessão da região amazônica como partícipe do território brasileiro decorreu de uma trama complexa de fatores para a qual colaboraram tanto a falta de interesse dos espanhóis em ocuparem uma área que, pelo Tratado de Tordesilhas, lhes era de direito, quanto o empenho de Portugal em tomar posse da região. Em parte podemos compreender esta expansão para o oeste devido à falta de um encontro imediato de metais, tal como ocorreu com os espanhóis na Cordilheira dos Andes, o que fez com que os portugueses se vissem constantemente estimulados a transgredirem os limites do Tratado de Tordesilhas em busca de metais preciosos. Expansão esta que adquiriu maior intensidade à medida que a própria economia de Portugal mostrava claros sinais de decadência2. Outro aspecto a assinalar vem a ser a ação das ordens franciscanas e dominicanas, assim como o papel dos fortes militares no desenho das fronteiras ocidentais do país (sobre este último ponto veja Mattos, 1990, pp. 71-73).

Fortes no Brasil As primeiras fortificações coloniais foram construídas não só por portugueses, mas também por espanhóis, franceses e holandeses que, de uma forma ou de outra, também tinham interesse no território. Já As sucessivas levas de portugueses em direção ao Brasil, na tentativa de obter mais sorte, forçaram as autoridades portuguesas a editarem sucessivas ordens régias para coibir o fluxo migratório. 2

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as mais modernas foram erguidas no Império e algumas outras, no período republicano. Ao todo, ao longo de dois séculos e meio, essas fortificações somaram mais de 350 unidades de diferentes formatos: fortificações, fortalezas, fortes, fortins, redutos e presídios. Muitas foram batizadas com nomes de santos, coerentes com o ideal português de colonizar e ao mesmo tempo difundir a fé católica. Para isso, o lema adotado era: “Julgada a causa justa, pedir a proteção de Deus e atuar ofensivamente, mesmo em inferioridade de meios”. A maioria das fortificações brasileiras se encontra localizada no litoral, rodeada por praias também muito visitadas. A região Nordeste é a que possui o maior número delas, sendo uma referência marcante para quem viaja em busca dessas construções seculares. Os Estados do Ceará, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul são os mais procurados quando a intenção é conhecer e desvendar a história do país através das fortificações militares do passado3.

Rio de Janeiro – uma cidade que nasceu militar4 O que se segue decorre da leitura da obra As forças armadas e o Rio de Janeiro, promovido pela Academia Brasileira de Ciências, Escola Superior de Guerra e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro(2002). Infelizmente, trabalho pouco conhecido, mas que realiza um notório apanhado da relação entre a cidade e as Forças Armadas. Mas, por que tal ênfase no Rio de Janeiro? Caro leitor, cara leitora, adoto tal procedimento para sair do lugar comum, ou seja, me vi na situação de vir a produzir um texto com aspectos que fossem sobejamente conhecidos, assim, escrever o que os outros já conhecem significa, para mim, perder tempo. Há uma fantástica fonte sobre fortes no Brasil que inclui uma página na internet, a saber, www.fortalezasmultimidia.com.br e a geração de cd:CD-ROM Fortalezas Multimídia, obra que contém informações sobre 460 fortificações no Brasil e 300 em outros países. 4 Frase retirada do texto “O exército e o Rio de Janeiro: evolução histórica”, de autoria do professor Guilherme de Andrea Frota, membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil. Texto publicado no volume As forças armadas e o Rio de Janeiro, promovido pela Academia Brasileira de Ciências, Escola Superior de Guerra e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, 2002. 3

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O encaminhamento aqui adotado vai na direção de alcançar duas “novidades” a saber, a primeira, introduzir uma perspectiva metodológica que incentive o fomento de outros estudos geográficos sobre fortes militares no Brasil. Arrisco-me a dizer que a produção de geógrafos brasileiros sobre o tema é praticamente nula; há sim, engenheiro, arquiteto, historiador, museólogo dedicados ao tema. Mas, geógrafos?... Nada! Como perspectiva metodológica aqui apresentada se cerca da noção de que Rio de Janeiro, uma cidade que nasce militar, não era algo exclusivo da mesma; a hipótese que perpassa este trabalho é de que todo espaço urbano litorâneo no Brasil foi formado sob a égide da defesa. Neste sentido, não se trata de se reconhecer praças de guerra, fortes, quartéis num dado local. De forma alguma. O que aqui se valoriza é a noção de que a estruturação urbana, o solo urbano, o tecido urbano é forjado, gravado, concebido num enquadramento de defesa. A cidade no Brasil, a cidade litorânea, antes de ser a cidade da troca, do comércio, era a cidade da arma. A estrutura urbana litorânea brasileira surge sob a égide de um espírito de defesa. A arma é algo intrínseco ao construir cidade no Brasil do litoral. A demonstração disto passa pela recuperação de uma memória de todas as cidades brasileiras litorâneas importantes. Começo pelo Rio de Janeiro porque simplesmente vivo nesta cidade. Respiro sua realidade todo dia e procuro cada vez mais conhecê-la. A segunda novidade, esta de efeito mais doméstico, inserido numa série de estudos que realizo sobre a cidade, é dada pelo fato de ser a primeira vez que abordo a mesma a partir da ótica militar, e como tem coisa!

A história do Rio de Janeiro se confunde, desde o início, com a história de sua defesa Assim começa o volume As forças armadas e o Rio de Janeiro. E, como assinalado, será o nosso mais novo fio condutor na abordagem do tema. Sobre a Marinha brasileira, não raro é tratada como a força armada carioca. De certo modo, por força da própria configuração da baía da Guanabara, uma baía que favorece em muito a defesa porque dispõe de pequena entrada de acesso paralela a uma grande disposição de área em seu interior. Mas desde cedo a questão militar no Rio de Janeiro envolveu a Período Colonial 43

dimensão marítima. A invasão de corsários, particularmente franceses, além de outros que procuravam ocupar áreas próximas como Ilha Grande, Cabo Frio etc.5, ensejaram desde cedo uma preocupação por parte da metrópole quanto ao fortalecimento desse entroncamento marítimo que se mostrou estratégico na preservação da Colônia e na viabilização de apoio a empreendimentos de portugueses na África e na própria bacia do Prata. No século XVIII, o poder que havia de fato no Rio de Janeiro tomou forma jurídica, ou seja, em 1763 o Rio de Janeiro substitui Salvador enquanto capital do vice-reino. Esta medida, afora a importância que a cidade tinha para o comércio português com a África e com a bacia do Prata ao sul, veio a sua importância ser acrescida enquanto o principal porto brasileiro pelo qual passava a produção de minerais encontrados nas chamadas “minas gerais”6. Pouco tempo depois, em menos de 50 anos, uma nova medida de impacto, ou seja, transferência da família real para o Brasil em 1808 e a abertura dos portos às nações amigas7. Estes dois fatos iriam introduzir a cidade num novo patamar, pois passava a ter um staff burocrático, capaz, que fomentou uma série de instituições que marcaram, e marcam, a vida nacional, tais como Banco do Brasil, Biblioteca Nacional, Jardim Botânico, Museu Nacional de Belas Artes etc. Nessa fase, em pleno século XIX, não temos só o forte, mas o fomento de uma elite militar; é quando então tomam corpo as academias militares. Com a vinda da família real, então D. João VI cria o real Hospital Militar, no morro do Castelo, a Fábrica de Pólvoras, a Real Academia Militar e o Quartel do Campo segundo Guilherme de Andrea Frota (op. cit, p. 33). O Clube Militar, uma associação de classe, foi criado nas dependências do Clube Naval, que então ficava, Chama a atenção, neste sentido, logo após a derrota dos franceses no século XVI, a cidade se viu transferida para o morro do Castelo, a própria toponímia induz uma característica de defesa do local. In: Guilherme de Andrea Frota (op. cit, p. 27) . 6 Ainda nesse século XVIII tivemos a presença do famoso governador Gomes Freire de Andrade que criou a Casa do Trem, que era uma espécie de “arsenal da guerra”, e atualmente vem a ser o Museu Histórico Nacional. Segundo Guilherme de Andrea Frota (op. cit, p. 31-2), essa casa resume toda a história militar do Rio de Janeiro. 7 Afonso Carlos Marques dos Santos em As forças armadas e a evolução urbana do Rio de Janeiro, observa que a vinda da família real teve um poderoso sentido geopolítico à época, a ponto de gerar um fato singular, a saber: a aclamação de um monarca europeu na América, transformando um status de colônia transformada em reino num padrão de legitimidade internacional, algo almejado por muitos países americanos (op. cit . pp. 55-59). 5

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naqueles tempos – 1867 –, na praça Tiradentes. Nesse mesma época, mais exatamente 1858, a Escola Militar (Real Academia Militar) é transferida do Largo deSão Francisco (onde ficava a Sé) para a praia Vermelha, e deste para Realengo em 1904; novamente, em 1935, é decidido por uma nova transferência, desta vez para Resende (RJ), onde fica até os dias de hoje. No sentido de aprimorar a formação de quadros militares, em 1889 foi criado o Colégio Militar para atender alunos de tenra idade; até então praticamente todos os futuros oficiais tinham sua formação proporcionada pelo Imperial Colégio Pedro II (Frota, 2002, p. 39-43). Afonso Carlos Marques dos Santos (2002), por sua vez, além de aspectos já destacados em Frota, chama a atenção para o patrimônio arquitetônico e escultórico militar inserido na cidade. Assim, ele enumera este patrimônio: (...) Registremos, no entanto, os núcleos arquitetônicos mais evidentes: em primeiro lugar, as fortificações, identificáveis na paisagem da baía de Guanabara, mas não só; depois os quartéis da cidade, com destaque para áreas como São Cristovão, especialmente a Avenida Pedro II, a Vila Militar, em Realengo e Santa Cruz. São lugares de memória a serem preservados e estudados. São áreas preciosas dentro do espaço da cidade, como, na Tijuca, o prédio do Batalhão de Polícia do Exército, onde a parte antiga pode ser preservada com finalidades culturais. Também se destacam, na paisagem, os conjuntos arquitetônicos da Marinha, no continente e nas ilhas, recentemente valorizadas pelo excelente trabalho cultural que esta Força vem realizando. De maneira mais espetacular evidencia-se na paisagem da Cidade o Quartel General, o Palácio Duque de Caxias, que é um capítulo à parte nessa história devido a sua monumentalidade e procedência, no quadro das construções do Estado Novo. O palácio é projetado pelo arquiteto Christiano Stockler das Neves e construído entre 7 de setembro de 1937 e 28 de agosto de 1941, sendo Ministro da Guerra, o General Eurico Gaspar Dutra. O Palácio foi inaugurado em 1941, mas a sua ocupação definitiva se deu em 1944 (Santos, 2000, p. 75)8. Fora os equipamentos culturais e desportivos fornecidos pelas Forças Armadas, tais como:o Complexo Cultural da Marinha, localizado na praça XV; o Forte de Copacabana, que contém o Museu do Exército; o morro da Conceição, que sediava o Serviço Geográfico do Exército e onde também ficava o antigo Palácio Episcopal; mas ainda há a Fortaleza da Conceição. Enfim, é um morro que remonta ao Rio de Janeiro do século XVIII. 8

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Segundo Carlos Lessa, o Rio de Janeiro constitui com o Distrito Naval e a Zona Aérea, sediadas na cidade, o mais complexo dispositivo militar do país. Aproximadamente, 70% da Marinha, 30% do Exército e 30% da Aeronáutica encontram-se no Rio de Janeiro. Nenhuma outra cidade brasileira supera tal concentração. Segundo Carlos Lessa, haveria uma densidade entre esta presença militar e o aparelho industrial existente no Rio de Janeiro. Uma densidade que traz uma relação com: reparação e manutenção de unidades navais, recuperação de aviões, controle de qualidade de produtos químicos, de combustíveis etc. (2002, p. 262). As Forças Armadas são grandes formadoras de mão de obra; apenas a Aeronáutica não tem no Rio de Janeiro a graduação de seus oficiais. Os cursos de engenharia no Rio de Janeiro saíram de cursos para militares. O Clube de Engenharia é subproduto do Club Militar. Os setores de ponta tecnológica têm nas Forças Armadas um ponto de apoio, como foi o setor de informática no Brasil (Ibidem, 263-4). A obrigatoriedade do serviço militar, segundo Lessa, mostrou-se um expediente que forçava o povo e as forças militares a se conhecerem. Afora isto, há a grande massa de aposentados e pensionistas de origem militar que formam no Rio de Janeiro um poderoso grupo de consumo. Assim, o gasto militar, tanto na manutenção das forças militares, quanto na subsistência das pessoas, envolve somas importantes para a economia carioca e fluminense. Lessa chega a estimar que os empregos relacionados às duas formas de gastos por parte dos militares alçam o quantitativo de 700 a 800 mil (Ibidem, p. 264-5)9. A unidade brasileira tem no Rio de Janeiro seu fundamento. O Rio evoluiu e foi o espaço de uma sucessão de obras. As obras de engenharia da República Velha mais notáveis e de maior visibilidade foram feitas na cidade do Rio de Janeiro. Para demonstrar que éramos modernos e nada tínhamos a ver com o período colonial, pusemos abaixo o Morro do Castelo. Colocamos o trenzinho elétrico para subir o Corcovado e situamos o Cristo Redentor lá em cima. Foi o primeiro trem elétrico a ser instalado na América do Sul... O ícone sobre o Corcovado exibia e sintetizava a cidade, a exemplo da Torre Eiffel, que sublinhava Paris, e a Estátua da Liberdade, que batizava Nova Iorque... Nossa inspiração era Paris. O Rio era a Paris tropical, a cidade-luz reproduzida nos trópicos. Cabe o registro de uma simpática observação do economista em tela, a saber: “Afinal o aposentado é um turista de 365 dias no ano” (Ibidem, p. 265)... bom, desde que disponha de poder aquisitivo para tanto. 9

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Paris, que era na época o paradigma de civilizações, foi a grande inspiração da urbanização do Rio. ... ...A importância, para os brasileiros, de ter uma cidade que afirmasse ao mundo que o País, além de grande, era civilizado, cristalizou o Rio como o mito moderno brasileiro. Quem deu essa certeza ao Brasil foi o Rio. Cidade aberta a todos os brasileiros, Meca dos talentos nacionais, era percebida como propriedade e necessidade de toda a elite brasileira, que concordava com a prioridade dos investimentos concentrados na cidade... (Ibidem, p. 272-3).

Conclusão Trazer para si os militares. O golpe de 1964 foi extremamente amargo a muitos, não afirmo a todos porque há quem tenha gostado. O golpe militar trouxe uma fratura no processo social que surgia e que poderia representar profundas mudanças neste país. Há, porém, quem afirme que a direção era outra, não benigna, ou seja, caminhava-se para uma ditadura, uma ditadura de esquerda. Pode ser. Particularmente, não vejo diferença: ditadura é ditadura, de esquerda ou de direita continua sendo ditadura. O processo ditatorial de 64 foi particularmente duro com a cidade do Rio de Janeiro. Exemplo típico disto foi a demolição do Palácio Monroe no centro da cidade do Rio de Janeiro. Um monumento que em qualquer outro país seria motivo de orgulho, aqui teve que dar espaço para o Metrô. Esta situação nos remonta à nossa história. Rio de Janeiro, uma cidade militar. Um belo tema de geografia cultural10. Não deixa de ser curioso como uma cidade tão marcada pela presença da força, para tanto, muito corroborou por ser a capital do país, e, no entanto, a cidade promove catarse, catarse nacional. Catarse no futebol, catarse na praia, catarse na música. Qual o segredo do Rio de Janeiro?

Fontes de consulta Referências bibliográficas BERNARDES, Lysia. “Função defensiva do Rio de Janeiro e seu sítio original”, s/d. 10

A geografia cultural brasileira precisa passar a estudar o espaço militar! Período Colonial 47

CONCEIÇÃO, Margarida Tavares. Da vila cercada à praça de guerra (formação do espaço urbano de Almeida). Lisboa: Livros Horizonte Ltda. 2002. FROTA, Guilherme de Andrea.“O exército e o Rio de Janeiro: evolução histórica”. Artigo publicado no volume As forças armadas e o Rio de Janeiro, promovido pela Academia Brasileira de Ciências, Escola Superior de Guerra e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, 2001, p. 27-44. LESSA, Carlos. As forças armadas e o Rio de Janeiro. As forças armadas e o Rio de Janeiro (promovido pela Academia Brasileira de Ciências, Escola Superior de Guerra e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) 2001, p. 261-286. MAIA, Prado. Quatro séculos de lutas na Baía do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ministério da Marinha/Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1981. MATTOS, General Carlos de Meira. Geopolítica e teoria de fronteiras. Rio de Janeiro: Ed. Bibliex, 1990. SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. (2002) “As forças armadas e a evolução urbana do Rio de Janeiro”. Texto publicado no volume As forças armadas e o Rio de Janeiro (promovido pela Academia Brasileira de Ciências, Escola Superior de Guerra e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) 2001, p. 53-80.

Seguem abaixo as páginas virtuais que chegamos a utilizar Instituições militares www.ime.eb.br – Instituto Militar de Engenharia. Acessado em 3/11/08. Instituto Militar de Engenharia - Engenharia Militar em Portugal. In:http://www. ime.eb.br/arquivos/Noticia/historicoIME.pdf artigo existente em pdf. Acessado em 10/11/08. www.cml.eb.mil.br - Comando Militar do Leste. Acessado em 3/11/08. www.dsg.eb.mil.br – Diretoria do Serviço Geográfico / Centro de Imagem e Informação do Exército. Acessado em 3/11/08. http://www.fab.mil.br/portal/capa/index.php?uf=rj&page=estados – presença da Aeronáutica no Rio de Janeiro. Consulta em 30/03/09. http://www.exercito.gov.br/ – presença do Exército no Rio de Janeiro. Consulta em 30/03/09.

Outros endereços www.fortalezas.org– Recebe apoio do IPHAN. Consulta em 5/10/2008 e 27/10/2008. www.fortesaojose.com Enciclopédia virtual Wikipedia – Engenharia Militar no Brasil. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Engenharia_militar. Acessado em 10/11/08. Universidade Federal do Rio de Janeiro / Escola Politécnica - 210 anos de bons motivos para ser uma grande Politécnica. In:www.ufrj.br em 10/11/08. www.fortalezasmultimidia.com.br Acessado em 5/10/2008 e 27/10/08. 48

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Território e festa. A geografia da festa no Brasil. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro1 Apresentação Em meu trabalho intitulado Rio de Janeiro e a música, assim escrevia: Nasci no Rio de Janeiro, mas passei minha infância na cidade de Ponta Grossa (PR), e voltei com a família aos doze anos. Na época (1969) causava-me especial surpresa a variedade de música que ouvia. Na feira, na padaria, ao passar diante das lojas, sempre havia um rádio que tocava música... (Evangelista, 2009, p. 7)2.

O Rio de Janeiro é espaço de festa. O Brasil também. Os primeiros registros de festa no Brasil já começam no primeiro documento sobre o mesmo, a saber, a Carta de Pero Vaz de Caminha. Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomar pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito... (Caminha, 2002, p. 106).

No entanto, no Brasil não faltaram dores. Muito sofrimento. Um dos últimos países a promover a abolição dos escravos. Porém, quantas obras da literatura brasileira tratam deste drama? Orignalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 9, n. 17, 2010. A primeira edição ocorreu em 2005, mas foi reimpresso em 2009 pela Sociedade Brasileira de Geografia. 1 2

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Ao percorremos as páginas da novela Oliver Twist, de Charles Dickens, ou Germinal, de Emile Zola, ou Les misérables de Victor Hugo, quanto de maestria e envolvimento tratando da miséria. É... no Brasil... a miséria só veio a ocupar maior expressão fundamentalmente com Euclides da Cunha, sua obra, Os Sertões, esta inaugura na literatura uma verdade – como este país tem miseráveis! Talvez fortes, mas miseráveis! Ora, por que começar desta forma um texto sobre festa, festa brasileira? Para desde já defender a tese que o caráter festeiro de sua população tem uma imediata relação com um povo que vai se expressar muito mais através da oralidade do que propriamente pela veia literária. O Brasil se vê na festa. Ele se revela na festa. Ele é festa. Querer entender este país sem o poder da festa é inconcebível. Sua grande data é dada pelo carnaval; a data não vem da Independência (7/9) nem da Proclamação da República (15/11). Suas relações são pautadas pela musicalidade, pelo batuque. As relações são muito mais vivas pelos encontros do que pelos escritos, pelos parágrafos. Cala mais fundo o acorde, o desafio, a cantoria. As letras... estas fiquem com os poetas, os letrados, com aqueles que vêm de longe. São capazes de falar javanês. Viva Lima Barreto! A sociabilidade pautada nas músicas ajuda muito na dor, no enfrentamento à dor. A festa é mix, ela tem um lado indígena. As festas são intrinsecamente associativas. A festa é fé, são poucas, a rigor, nenhuma das que se projetam no imaginário popular deixam de ter um aporte na dimensão do sagrado. A festa no Brasil tem cheiro de além, e ela vai para mais além! A festa no Brasil educa. Ela cria disciplina, ela cria hierarquia. Ela encanta. Ela descansa. Ela promove, instiga o sentimento de pertencimento. Não sou só, pertenço a um grupo, a uma família. Sou alguém, sou importante... sou, sou, sou... ao cantar, ao entoar. Mas, curiosamente, ninguém assina a autoria. A música, a música que todos entoam pertence a todos, talvez, em função de um lugar, ou outra liderança, há nuances, trejeitos, mas não há autor. Nos rincões brasileiros e respectivas festas não vigora o direito autoral. A festa não é para enriquecer por fora, é para enriquecer por dentro. A festa não endinheira ninguém, mas aquece!

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Origem Tendo por base um seriado intitulado História da música brasileira promovido pelo Centro de Produção Editoriais e Culturais (CEPEC)3, temos que a música no Brasil é muito pouco documentada, embora seja algo constitutivo de nossa identidade. A festa é algo próprio à identidade brasileira. A festa vem com os índios, mas adentra as igrejas. As igrejas foram absorvidas pelo estilo cantante da população aborígine. A Igreja melhor divulga os dotes vocais e o avanço dos instrumentos até atingir este fenômeno musical que foi a proliferação de órgãos em cada província, alguns de notória fama até os dias de hoje, como o de Mariana (MG), órgão do século XVIII que, após uma reforma em 1984, foi reabilitado após 50 anos inativo. E, paulatinamente, esta minha Igreja veio a suscitar escolas, ou seja, ao redor começa a tecer coletivos dedicados à música que de outra forma não se sustentariam. O teatro, por exemplo, só tomou corpo na segunda metade do século XIX no Brasil. O drama deste período colonial é a inexistência da cultura da impressão. No Brasil Colônia era proibida a existência de gráfica4. Sobre este aspecto Wilson Martins (1977, p. 83) observa que o primeiro volume impresso em Lisboa saiu em 1481, mas já haviam tipografias em suas colônias, por exemplo, Goa teve a sua primeira publicação em 1561; Macau, por sua vez, a tipografia chegou em 1590. Mas, no Brasil nenhuma tipografia foi instalada, chegando a ser destruída a construída por Antonio Isidoro da Fonseca em 1747. Em obra recentemente reeditada, Ipanema (2008) resgata o processo de implantação de tipografia em São Paulo, que só logrou sucesso depois de idas e vindas em pleno século XIX, após o período colonial. O período colonial brasileiro apresenta este drama, entre outros, enquanto colônias espanholas vizinhas chegavam a contar com universidades, aqui nem O que se segue, tem por criador e diretor artístico o maestro Ricardo Kauji, como historiador, Ricardo Maranhão, e como musicólogo, Paulo Cestaque. Produzido em 1991 teve então patrocínio da Telebrás S.A. Foi veiculado pela TV Brasil em diferentes datas de acordo com diferentes capítulos; o primeiro começou em 11/1/2008. 4 Temos... “Embora não existam realmente documentos musicais escritos para o comprovar (os sons dos negros e dos brancos e mestiços das camadas baixas foi sempre referido por cronistas e viajantes sem preocupação da notação musical), não quer dizer, porém, que (p. 103) não se tenha formado a partir do século XVII o tal substrato necessário ao aparecimento de um primeiro autor de salão bem-sucedido na criação de músicas baseadas em material coletivo”. Em Tinhorão (1998, p. 102-103), a obra de Melo Morais Filho, Festas e tradições populares do Brasil, apresenta vários aspectos do fenômeno festivo no Brasil. 3

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impresso podia ter. O que chama a atenção neste episódio é o poder de inércia do processo histórico, é o chamado “poder do atraso” de José de Souza Martins (1994). Há ainda registro de litografia em 17961, mas somente no século seguinte, após a vinda da família real, que o ramo da litografia cresceu no país. Seu desenvolvimento esteve muito relacionado à descoberta que se operou diante do Brasil, os viajantes e cientistas adensaram relatos sobre o país. A própria burocracia lusitana, aqui em nossas terras, procura se ater às características desta terra tão estranha! Cresceu a edição de jornais. Cresce a valorização das letras! Talentos vão se destacar neste período, a começar por Manuel de Araujo Porto Alegre, aluno de Debret; em São Paulo o Farol Paulistano como veículo de divulgação de notícias. Geração sucessora à de Araujo Porto Alegre, temos Francisco Paula Brito, pessoa que entre seus méritos teve o de promover a carreira literária de Machado de Assis2. Assim, são poucos os registros musicais encontrados atualmente relacionados ao período colonial. As notas musicais e respectivas anotações, os enredos musicais, ou eram manuscritos ou vinham de fora via exportação. Por este aspecto se torna mais adequado compreender porque o período foi tão marcado pela música religiosa; não havia qualquer entidade que viesse a sustentar a atividade musical. A Igreja não oferecia apenas um palco para o espetáculo musical; este também vinha acompanhado por uma estética visual. A igreja era a televisão daquele tempo! Por ela os principais aconteciam, não só notícias, discursos imprecando acontecimentos recentes, mas presença dos mais ricos que vinham para ver e serem vistos em suas vestimentas. Conviria averiguar se esta tipografia tem relação com a Academia Científica do Rio de Janeiro, criada ao tempo do então vice-rei, marquês do Lavradio, em 1772. Quem nos lembra a existência desta entidade, uma entidade voltada para a ciência, é o escritor Joaquim Manuel de Macedo em sua obra Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, de 1966, p. 74. Esta nota, de certo modo, vai contra a noção defendida por Wilson Martins de que no Brasil ocorria um processo intencional de obscurantismo. Parece-me interessante diante da história termos atenção para com as micro-histórias, tal como defendido por Carlo Ginzburg (1989), ou seja, nuances que aparentemente tem pouca monta, mas estão a indicar processos que contradizem versões interpretativas dominantes. 2 É em torno de Paula Brito que será constituída a Sociedade Petalógica, composta por Manuel de Araujo Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo e visconde do Rio Branco. Esta uma sociedade de encontros cujos temas eram diversos, mas incrementada pelo toque do humor, como é próprio do espírito carioca, a começar pelo próprio título da entidade (peta significa mentira)! 1

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A música sacra era constitutiva de todo e qualquer evento relacionado à Igreja. Igreja sem música é como se fosse religião sem oração. Assim, temos de considerar a atmosfera psicocultural reinante no qual o belo canto, a voz, os volteios melódicos estavam acima de qualquer sentido que a música poderia vir a ter. Numa população de analfabetos, o ensino vinha pela tradição oral. O enlevo das pessoas estava relacionado ao ouvido e aos acordes vocais. A música profana, por sua vez, só vem a ter certa expressão no século XVIII, por exemplo, em 1759, temos a formação da Academia Brasílica dos Rinascidos,promovida pelo desembargador José Mascarenhas de Mello que desempenhava suas funções na Bahia. Na esteira da expansão da música profana temos o lundu na segunda metade do século XVIII. Ainda, as modinhas eram declamadas em casas particulares ou nos saraus. Com a vinda da família real ao Brasil, em 1808, temos a inserção da Corte como elemento a mais para promover a música. A capela real, por exemplo, suscitava em seu redor todo um coletivo dedicado à música. Esse período mágico da história brasileira – com direito à presença de uma Habbsburgo em paragens tropicais – suscita uma nova época de nossas músicas e festas. Isto porque o Brasil suscita interesses de diferentes partes. Cresce a presença de pesquisadores e artistas: Rugendas, Debret, Thomas Ender, Von Martius, Hermann Burmeister e J. J. von Tschudi, D.P. Kidder e J.C. Fletcher, príncipe Adalberto Hohenzollern, Ida Pfeiffer, John Mawe, entre outros, vão trazer o Brasil para a população europeia. É nessa época que a musicalidade brasileira, particularmente a carioca, fica mais europeia, afastando-se de uma vertente indígena e negra. Para concluir a utilização do material proporcionado pelo seriado na TV, temos que a música foi por excelência a melhor forma de comunicação entre os europeus e os autóctones. A escrita inexistia nesta última, assim, o bailado, a sonoridade constituía um veículo indispensável na conformação de uma relação amistosa. Na obra de Wilson Martins, História da inteligência brasileira, consta que em seu primeiro volume que “... o que mais desesperava os bons padres do século XVI era a impossibilidade de realmente comparar ou equiparar a língua dos indígenas (ou seja, a sua alma) com a dos gregos: Não tem escrita, nem caracteres, nem sabem contar, nem têm dinheiro; commutatione rerum compram uns aos outros; sua língua é delicada, copiosa e elegante, tem muitas composições e sincopas Período Colonial 53

mais que os gregos, os nomes são todos indeclináveis, e os verbos têm suas conjugações e tempos. Na pronunciação são sutis, falam baixo que parece que não se entendem e tudo ouvem e penetram; em sua pronunciação não põem F, L, Z, S e RR, nem põem muta com líquida, como Bra, Craze (Martins, 1977, p. 56-57)3.

A música se expressa com gestos. A música continha oração. Boa parte dos registros musicais brasileiros do período colonial é de cantos litúrgicos. A igreja era o grande palco da socialibilidade. Nela se expressavam os melhores talentos, os letristas, os vocais, os instrumentistas. A igreja já era concebida para abrigar, propagar uma sonoridade. Desde cedo, no Brasil, a festa vem impregnada de religiosidade. O sentido do cantar vem impregnado por um sentido de além-morte. A música não é apenas um folguedo, é também uma tradução de uma inquietação que torna a pessoa apta a enfrentar o morrer! Há uma dimensão metafísica no processo musical, não se trata apenas de entretenimento, há um aspecto relacionado a sentido de existência. Mas a música de igreja é uma música contida, calculada, estudada, há partitura! Não há gesto, há dicção. Mas não podemos nos enganar: esta matriz tão jesuiticamente construída perfaz o diapasão em torno do qual o que segue em toda vida social na vida colonial. A música popular está impregnada por este parâmetro, os músicos costumam ser mulatos ou negros! Estes em sua pobreza veiculam o que aprenderam nas igrejas e para as igrejas, mas este aprendizado se volta para as cantorias realizadas nas roças4. Em outra passagem, o mesmo autor observa que a música era algo constitutivo da nação indígena aqui encontrada e que foi percebido argutamente por José de Anchieta no século XVI. Este reconhece o valor da música como instrumento de catequese. A adoção da música pelo jesuíta predispôs os índios em seu favor, pois as músicas dos índios eram usadas em autos sacros, procissões oufestas familiares. Segundo outro autor utilizado por Wilson Martins, José de Anchieta recorria também aos instrumentos indígenas, particularmente o cateretê indígena, entre as suas técnicas missionárias, dada a própria riqueza instrumental dos índios brasileiros. À página 73 de sua obra, tendo por base G. F. Pereira, enumera-se: Esta reflexão está baseada na Informação da Província do Brasil, documento interno promovido pela Companhia de Jesus, e que o estudo de Wilson Martins aqui utiliza. 4 Naturalmente que não podemos desprezar outras matrizes, além da jesuítica, como, por exemplo, a fornecida pela invasão holandesa que afetou profundamente o litoral nordestino no que diz respeito à arquitetura, ciência, letras etc. 3

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O ‘memby-chué’, que os paraenses e peruanos chamam de ‘guerna’, tinha a forma de uma flauta dupla; a ‘cangoerá’, espécie de flauta feita com ossos dos mais célebres guerreiros mortos; o ‘uatapu’, buzina cujo som tinha a virtude de atrair os peixes; a ‘inúbia’, o ‘memby-tarará’, o ‘pemy’ e o ‘mimi’, buzinas de guerras; o ‘toré’ ou ‘boré’ trombeta feita de bambu ou taquara, muito usada no Ceará; o tori dos parintintim, indígenas que vivem entre os rios Madeira e Tapajós, no Pará, era também uma buzina composta de uma cabaça com um orifício na parte inferior e na superior um tubo de cana convenientemente ajustado, com embocadura de flajolé; o ‘minoê’, dos guaiajarás do Maranhão, era ainda uma espécie de buzina feita de duas peças coladas com resina da mesma árvore. Os munducuru, a tribo mais guerreira do vale amazônico, usavam também nas festas de glorificação dos seus heróis, uma trombeta reta de madeira, cujo tubo cônico terminava numa espécie de sino muito semelhante à clarineta, e que denominavam ‘oufuá’. Entre os instrumentos de percussão, notam-se os seguintes: ‘cotecá’, ‘curugu’, de dimensões enormes, cujo som era horrível e lúgubre; o ‘maracá’ ou ‘caracaxá’, o ‘curuqui’ e o ‘wapy’ ou ‘watapy’, tambores feitos com troncos de árvores, leves e ocos.

A festa no período colonial brasileiro tem pompas e mais pompas; porém, é partir do século XVIII que se verifica uma organicidade no processo. Provavelmente a situação tenha relação com as descobertas das minas, pois ensejou toda uma leva de pessoas e correlatos talentos em direção ao Brasil5. A vida e obra de Gregório de Matos sinalizam um particular momento da cena cultural brasileira. Suas andanças pelo Recôncavo Baiano expressa em Salvador estar concentrada uma atividade cultural nada desprezível. Ao contrário de Recife e Rio de Janeiro, Salvador apresentava um entorno muito mais cultivado, ou seja, a cidade não era só porto! Havia uma economia doméstica! Havia a pesca e coleta de mariscos, plantio de tabaco e produção de aguardente, criação de gado, plantio de milho e legumes! Além de produção de telhas, tijolos, tabuados e madeiras para construção de casas e navios. Atividades diversas que envolviam operários diversos, a saber, engenheiros, marceneiros, pintores, funileiros, porteiros, guardas, boticários, calafates, ferreiros, apontadores, mestres de barcas, perfaziam o que já podíamos tratar como uma estrutura urbana que abria um diálogo entre o mundo rural e urbano. Seguem abaixo considerações que têm como ponto de apoio a obra de Tinhorão (1998). 5

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É também dessa época e lugar que se veem as primeiras notícias sobre o lundu, para o qual concorre a notória influência negra, mas com menos importância a participação de europeus no desenvolvimento do estilo. Há ainda o fado, cuja citação abaixo (trás)traz uma preciosa caracterização do estilo no romance Memórias de um sargento de milícias, de Manual Antonio de Almeida, no capítulo “Primeira noite fora de casa”: Daí a pouco começou o fado. Todos sabem o que é o fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito. O fado tem diversas formas, cada qual mais original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco e pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante algumas negaças e viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar. Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado. Outra vez um homem e uma mulher dançam juntos: ora acompanham-se a passos lentos, ora apressados, depois repelem-se, depois juntam-se: o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros, enquanto ela, fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços, recua vagarosamente; outras vezes é ela quem procura o homem, que recua por seu turno, até que enfim acompanham-se de novo. Há também a roda em que dançam muitas pessoas, interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado, às vezes mais brando e mais breve, porém sempre igual e a um só tempo (p. 59). Quando o fado começa, custa a acabar; termina sempre pela madrugada, quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras (p. 60).

Sobre o Rio de Janeiro Entrevista com Edino Krieger sobre música no Rio de Janeiro. Entrevista com Edino Krieger, então presidente da Fundação Museu Imagem e do Som, Sala Cecília Meireles e a Academia Brasileira 56

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de Música. Local: Fundação Museu Imagem e do Som; data: 2 de junho de 2004. O Sr. Edino Krieger é natural de Santa Catarina, Vale do Itajaí; chegou ao Rio de Janeiro com cerca de 15 anos, no ano de 1943; numa época que o Rio de Janeiro tinha um milhão de habitantes. A sua formação musical teve influência do seu pai que chegou a ter uma jazz band. Tem do Rio de Janeiro as gratas lembranças do carnaval de rua; da praça Mauá até a praça Paris havia uma massa de foliões; assim como da praia do Flamengo até o Largo do Machado havia uma massa só. Porém, com a televisão, esse carnaval desapareceu. A maior parte das pessoas assiste, mas não brincam carnaval. Antigamente, além dos desfiles das escolas de samba nós tínhamos os ranchos, os desfiles das sociedades, os Democráticos, além de grupos de frevos. Antigamente, o povo era plateia e ator do carnaval; mas hoje virou um desfile monumental6. No passado, o carnaval era, sobretudo música: cada ano havia uma marchinha nova produzida por Lamartine, Almirante; no Café Nice havia um point onde as pessoas se encontravam, bebiam cerveja, o que não deixava de ser um contraponto à nobreza do Café Colombo. Nesses encontros o que valia era a melodia, a própria fantasia era um ornamento; no entanto, hoje, ocupa um lugar central. O próprio samba-enredo encontra-se desfigurado: o passista, para mostrar sua evolução, depende de certa cadência do samba, porém, hoje, há um aceleramento do ritmo, e isto prejudica a evolução dos passistas. Se no passado as novidades musicais dependiam dos encontros, de associações às vezes ocasionais, que acabavam gerando criações, hoje é o oposto: a indústria já pré indica tendências, ela se antecipa, ela cria encomendas; gerando certa maneira quase que padronizada no samba -enredo; há uma mudança na letra, mas não há diferença na forma. De qualquer modo, a música gratuita vinda das rodas não desapareceu: Numa conversa informal com minha mãe, típicas conversas que se realizam na beira de uma mesa onde fica o café a esfriar, ela trouxe lembranças de seu carnaval. Quem diria, minha mãe no carnaval! Mas ela observava, enquanto moradora do Méier, que seu carnaval era eminentemente de rua e envolvia toda a família, inclusive minha avó. A brincadeira costumava utilizar os bondes, no seu caso, utilizava o bonde que ia para Piedade e voltava para o Méier. O chamado “bloco de sujo” era um contraponto às fantasias de luxo que costumavam ser apresentadas no Teatro Municipal, para grande destaque do figurinista Clóvis Bornay e a modelo Wilza Carla. Na época, o carnaval ia de domingo até terça-feira, e o pessoal preso durante o carnaval era solto só na Quarta-feira de Cinza, na saída, com várias pessoas esperando; as pessoas saiam ainda fantasiadas e passavam a dançar carnaval, com direito à polícia em seu encalço; o bloco Chave de Ouro, da localidade Boca do Mato (em Engenho de Dentro) surgiu desta forma. 6

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por exemplo, na Cobal do bairro de Botafogo, aos domingos à tarde, pessoas se reúnem para música instrumental; às vezes Altamiro Carrilho passa por lá. Helio – A pergunta básica é a seguinte: 1º) O senhor concordaria que haveria uma menor presença do Rio de Janeiro no cenário musical?; 2º) Havendo isto, como explicaria este processo? Afinal, o Rio de Janeiro já foi local de vários compositores e hoje o mesmo não ocorre. Edino – Este é um fenômeno que não se restringe ao Rio de Janeiro. Na verdade, a concentração da vida social, cultural, econômica nas grandes megalópoles não está mais acontecendo, pelo menos neste momento. Você vê, por exemplo, com relação ao futebol, há uns 30 anos atrás só havia futebol no Rio e São Paulo. Hoje, a coisa está disseminada. Na música acontece mais ou menos a mesma coisa. Por exemplo, na minha área específica, que é a da música clássica, quando comecei a organizar os festivais – 1969/70 –, só havia compositores de Rio e São Paulo, e menos da Bahia. Havia um eixo São Paulo/Rio/ Bahia. Hoje não, você tem compositores surgindo de todos os cantos do país em função do desenvolvimento do ensino da música nas universidades. Então, você veja, temos um desenvolvimento dos meios de comunicação, rádio, televisão, quer dizer o acesso à informação cultural de todos os níveis está facilitado. Então, aqueles talentos que não se conheciam naquela época, eles estão tendo agora sua chance de aparecer. Então é um fenômeno natural, é uma consequência desse desenvolvimento que hoje está, digamos assim, mais democratizado. Está mais difundido no país inteiro. Hoje, não há mais diferença, no ponto de vista cultural, no ponto de vista de acesso aos bens culturais, enfim à tecnologia, tudo isso, não há grande diferença entre uma metrópole como o Rio de Janeiro e uma cidade menor, por exemplo, da Paraíba. Existem talentos por aí afora que quando a gente conhece fica surpreso. Outro dia estive na Paraíba, numa festa de casamento, com uma recepção no Yacht Club, e havia um músico tocando e um cantor, e ao ouvir aqueles dois não colocaria neles qualquer defeito. A qualidade do trabalho que eles faziam, não falo da música (o que, aliás, não podemos falar da qualidade da música que ouvimos no Rio de Janeiro hoje), mas, digamos assim da qualidade técnica do trabalho deles, é exatamente o que você poderia ouvir de melhor no Rio de Janeiro e São Paulo em qualquer local de show. Até cheguei a comentar com meu neto: “Que voz fantástica do rapaz; que timbre de voz bonito que tem esse cantor”; uma voz privilegiada, com afinação absoluta, o que às vezes não encontramos entre aqueles que chegam a vender 58

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muitos discos. Uma cantora do local, amadora, mãe de família, ela foi convidada para dar uma canja lá; olha, era uma voz... compreendeu?... para cantora nenhuma no Brasil botar defeito. Não fica a dever nada diante das grandes personalidades musicais de nosso tempo. Lá no interior do Rio Grande do Sul podemos ver a mesma coisa, no interior de Goiás também. Então, esta facilidade de intercomunicação acabou descobrindo valores que vêm lá do interior e de repente uma gravadora ouve. Acho isto algo muito positivo, por outro lado, vejo também que a safra de grandes valores no Rio de Janeiro, mesmo em São Paulo, diminuiu muito. Acho que hoje não tem mais, digamos assim, nem grandes compositores como tivemos nos anos recentes; não vejo, assim, nenhum novo Chico Buarque, nenhum novo Tom Jobim, nenhum novo Caetano Veloso. O Caetano se lançou aqui nos festivais de canção popular; até então era um ilustre desconhecido. Também não sei se a Bahia tem um novo Caetano Veloso ou Novíssimos Baianos. Enfim, acho que isto é um fenômeno normal. Acho muito difícil, digamos assim, que um núcleo cultural produza sempre produtos de alta qualidade; é uma coisa que depende muito do talento individual. Helio – Poderíamos considerar o Rio de Janeiro num dado momento ter sido um núcleo cultural? Edino – Ah, certamente! Coisa que continua sendo. Helio – Dentro do campo da cultura, não se limitando à música, que outro gancho forte tem o Rio de Janeiro? Talvez mídia, televisão...? Edino – Não sei, a própria mídia televisiva está num processo meio... né?! Está num processo de não necessariamente valorizar coisas que de fato têm valor. Eu acho que o grande responsável para isto, este declínio... decorreu do interesse comercial. O aspecto de fazer da música um produto de mercado, o famoso mercado, que é responsável por muitas coisas boas, mas também é responsável certamente... Às vezes há uma banalização da cultura porque o que vende mais é que é o melhor. Helio – Hoje temos compositores famosos sem gravadora. Edino – Exatamente! Helio – Esse processo de mercantilização começa em 70/80 em diante. Edino – Eu acho que é de 1980 para cá. É uma coisa um pouco curiosa porque com o avanço do desenvolvimento da tecnologia você verifica que há um processo inverso no sentido da qualidade do produto que é colocado... Helio – A questão da voz, da melodia, ficam reféns do merchandising. Período Colonial 59

Edino – Exatamente, merchandising, do interesse imediato do mercado. Eu acho que é por aí. Não sou especialista nisso, em análise de mercado cultural. Não é minha praia. Mas é uma visão de alguém que de alguma forma participa mesmo indiretamente disto. Repare que na minha área específica, que é o da música clássica, este declínio é vertiginoso. A nossa música, no momento, é quase que uma espécie em extinção se você considerar que hoje, no Rio de Janeiro, praticamente não há uma mídia impressa especializada, um jornal que dê espaço, o que há 30/40 anos se dava; hoje a divulgação é muito mais eventual. Helio – Por exemplo, o que ocorre hoje na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo... é muito mais uma divulgação do que está feito do que propriamente gerar originalmente uma linha musical. Teve um tempo que havia um Radamés Gnatalli, Mignoni, e tantos outros como Guerra Peixe, como tantos outros compositores. Edino – Veja bem, hoje há muito mais gente fazendo. Por exemplo, na Academia Brasileira de Música nós estamos realizando um concurso para jovens compositores que foi divulgado somente via internet. Eu pensei, não teve grande divulgação na mídia, na televisão, na rádio, nos jornais, mas como a juventude está acostumada a ficar grudada na internet podia haver o fator surpresa, como de fato ocorreu. Hoje, se não me engano, tem 37 inscrições de obras sinfônicas. Ora, 37 é um número respeitável. É um concurso que visa estimular jovens para escrever para orquestras. Como no Brasil não é muito fácil escrever para orquestra e você ainda ouvir a composição. Há poucas orquestras e as poucas que existem não costumam dar espaço para obras de jovens. Eu considero a existência de 37 partituras um verdadeiro sucesso. Isto mostra que há um potencial de criação de música entre os jovens muito maior do que existia antigamente. Existem mais escolas; não é como há 30 anos atrás quando estas estavam concentradas no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Há escolas em Goiás, interior de São Paulo, também no Rio Grande do Sul, no Nordeste...

Conclusão Este é último trabalho que verso sobre o que considero o Brasil profundo no intuito de verificar a geografia brasileira. Explico-me: nestes dois últimos anos tratei de temas marcantes na história brasileira, a saber, índio, igreja, forte, e festa, na intenção de captar sua geograficidade, mais particularmente, entender a origem da geografia 60

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brasileira. Foi um esforço em vão, porém frutífero; em vão porque a geografia brasileira não se inicia em seu período colonial7! Frutífero porque as quatro janelas proporcionaram um passeio na história brasileira que muito nos foi útil para melhor compreender de que forma este país é. O Brasil é multiforme, diverso, plural, mix, marcado pela miscigenação! Agora, o que isto inflecte na geografia? Bom, há uma geografia enquanto factual idade, mas não é desta que me refiro; refiro-me à geografia brasileira enquanto campo temático! Desta, sua história, a rigor, se inicia no tempo do Império. Mas que geografia é esta? Seria uma geografia miscigenada? Não, no lo creo! Penso que se fez uma geografia voltada para o poder. Uma geografia da unidade nacional, uma geografia do orgulho patriótico. Mas não uma geografia expressiva do rosto brasileiro! Quando muito uma geografia voltada para os recursos, uma geografia do conhecimento estratégico, mas não uma que nos ajude a compreender este país, e quem somos! Tendo em conta a contribuição da história, na pessoa de Capistrano de Abreu entre outros, da sociologia, na pessoa de Gilberto Freyre, entre outros, da antropologia, na pessoa de Darcy Ribeiro, entre outros, a geografia está devendo um produto que encerre uma interpretação do tipo: nós brasileiros, quem somos? Mas, o que cabe aqui considerar é: como a geografia se realiza nesse período colonial? A geografia se firma nesse período como algo que não tinha letra! É a geografia dos guaianases, dos índios, é a geografia da memória, é a geografia dispersa num ou noutro troço de papel. Enfim, não há geografia, geografia enquanto um tema distinto. Isto só veio a ocorrer no século XIX com instituições como o Colégio Pedro II, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) etc. Há de convir, também, que havia a geografia do metro, geografia da geometria. A geografia da medição. Refiro-me a todo um esforço verificado no século XVIII para estabelecer limites entre a América portuguesa e a América espanhola.   Não se fez necessário continuar a linha de trabalho adotada usando para isto outros temas que marcam a história brasileira, porque significaria perder um valioso tempo, dada a nossa constatação que a geografia brasileira é coisa do século XIX. Talvez, há quem observe: ora eu já sabia! E respondo, eu não! Precisava mergulhar nesses séculos iniciais da história brasileira para aferir a origem da geografia brasileira. 7

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A geografia brasileira começa onde? Seria no Colégio Pedro II?1 Bate-papo Era uma tarde no período de férias de julho. Na Sociedade Brasileira de Geografia encontravam-se três personagens cujas idades somadas alcançariam quase trezentos anos. Num dado momento esses passaram a falar do Colégio Pedro II. Todos os três, com trajetórias de vida distintas, mas cada qual com o devido destaque em suas respectivas áreas de atuação, passaram a elogiar rasgadamente o colégio. Mauro Viegas, empresário, lembrava de ter sido aluno do internato em 1936. Já o geógrafo Pedro Geiger foi aluno e mais tarde professor. E o advogado Pedro Oliveira foi aluno nos anos de 1943-45. Pedro Oliveira lembrara que foi aluno de Hugo Segadas Vianna, assistente do professor Raja Gabaglia, então catedrático de Geografia. Mauro Viegas lembra que João Batista de Mello e Souza foi seu professor de História, sendo ele catedrático. Pedro de Oliveira, por sua vez, lembra-se do concurso do qual João Batista de Mello e Souza participou e encontrava-se na banca Raja Gabaglia. Este, após a defesa oral do candidato, desdenhou o escrito por ter poucas páginas. No que retorquiu o candidato afirmando: “Não havia no edital indicação de peso que uma tese deveria ter, mas se tivesse certamente eu saberia como fazê-la mais pesada, era só inserir tabelas, anexos etc.” Acabou sendo aprovado! Outro episódio narrado foi a defesa de tese de Pedro Calmon. Na banca, por sua vez, encontrava-se Mello e Souza. Ocorre que o tema do candidato era sobre o viajante Brian Fawcett e, por um problema tipográfico, duas páginas ficaram em branco. Na oportunidade, durante a defesa, João Batista de Mello Souza retorquiu que ao ler a tese e se deparando com as duas páginas em branco imaginou que haveria ali um código e que o caminho secreto que daria acesso às minas descoberto por Brian Fawcett estaria devidamente expresso naquelas duas páginas. Assim, de forma jocosa, ele teria passado a noite toda tentando reconhecer nas duas páginas o caminho para a fortuna. Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 9, n. 18, julho/dezembro de 2010 . 1

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Pedro Calmon, por sua vez, veio a ser reitor da UFRJ e teria sido ele que impediu a invasão da antiga Faculdade de Direito pelas forças militares. À época, ele impediu a entrada dos militares dizendo: “Aqui só entra quem passou no vestibular”. Pedro Geiger, por sua vez, assinalou que se formou nos anos 1938/39 e foi aluno de Raja Gabaglia. A rigor, havia dois Raja Gabaglia, sendo que um deles dirigia o colégio. E a Geografia que nela ocorria poderia ser dita como moderna. Em que pese não houvesse faculdade em Geografia, o ensino tinha uma direta influência francesa e era bem avançado. Ainda segundo Pedro Geiger, o Rio de Janeiro usufruía de um ensino médio, público, de excelente qualidade. A cidade dispunha do Colégio Pedro II, Colégio Militar e o Colégio Normal. E assinala, no Brasil, tanto a esquerda brasileira quanto a direita, na reflexão sobre o Brasil, destacava a materialidade, o crescimento, a proteção de setores, mas não se voltava para a questão da educação. Eram três as grandes bandeiras, a saber: defesa da burguesia nacional, o petróleo é nosso, reforma agrária. Assim, quando se deu a massificação do ensino, o governo federal não apostou na qualidade. Ainda, foi observado, que um professor catedrático no Colégio Pedro II ganhava o mesmo que um professor da Universidade do Brasil, atual UFRJ. Foi citado o caso de Hugo Pinheiro Guimarães que dava aula no Colégio Pedro II, na disciplina de Biologia, e ainda lecionava Ciências Médicas na Faculdade de Medicina da universidade. Pelo episódio relatado, certamente prosaico, mas é distintivo do quão importante foi e ainda é o Colégio Pedro II.Várias personalidades, várias trajetórias, num mesmo reconhecimento! Qual o segredo desse colégio? Porém, para efeito de enquadramento, destacarei o processo inicial da escola. Mas antes, qual o vetor analítico que temos? Após o período de busca infrutífera no chamado período colonial, quando por esta mesma revista (Revista Geo-paisagem, online) apresentamos quatro artigos, um sobre a questão indígena, questão militar, questão religiosa, e, por fim, a festa, adotamos após tudo isto um novo caminho. O que fizemos até então se mostrou infrutífero porque, em que pese as diferentes tentativas, nada foi encontrado no período citado que possa ser considerado como a base da formação da geografia brasileira. As viagens, os relatórios, as comissões de demarcação de fronteiras, agentes de governo etc., nada e ninguém constituiu algo 68

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que tivesse se perpetuado e que pudesse ser por nós considerado o fio condutor de uma elaboração intelectual que ensejou uma elaboração em torno do qual pudéssemos dar o nome de geografia e que tivesse desdobramento até os dias de hoje. Porém, tal impressão não ocorre quando adentramos na história da instituição de ensino Colégio Pedro II. Tenho a intenção de aqui testar uma intuição, a de que foi este colégio e não o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro a instituição pela qual a disciplina Geografia passou a ser objeto de reflexão. Algo a ser considerado oportunamente. Tal intuição decorre da situação de que no Brasil, durante um bom período, ainda hoje há marcas disto, as instituições eram reféns dos talentos individuais, ou seja, não se perpetuava enquanto decisão de um estado, entidade civil, ou empresa, mas dependia de pessoas para tanto animadas. Assim, o que se quer aqui argumentar que é no jogo da sala de aula, nas perguntas não suficientemente respondidas, nos mapas toscamente mal feitos, nos relatos que levava a plateia a suspender a respiração, é que se tem um desenho da construção de uma geografia brasileira. A geografia brasileira não tem relação com pesquisa, mas com falação. As pessoas falavam, discutiam, opinavam, escreviam em jornais. Então, esta geografia meio solta, meio mambembe, meio à la música popular brasileira, construída meio que no acaso, teve no Colégio Pedro II o primeiro e decisivo chamado à responsabilidade. Ou seja, há de ter mais mapas, mais livros, mais professores. Esta punção pedagógica, esta energia didática, os concursos etc., enfim, tudo aquilo que girará em torno do colégio, desde cedo, solicitará uma sistematização do discurso geográfico brasileiro. E esta dinâmica, em torno da Geografia, nunca houve antes no país!

Origem Joaquim Manuel de Macedo em sua obra Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro2assim pontuava a origem do colégio: O ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, na regência do Sr. Pedro de Araújo Lima, atual marques de Olinda, fazendo converter o seminário dos pobres órfãos de S. Joaquim em um grande colégio Obra publicada pelo autor nos anos de 1862-1863, e editada pela editora Edições de Ouro em 1966. Sendo ele também, ao tempo da primeira publicação, professor do Colégio Pedro II. Seu trabalho mais conhecido foi A moreninha. 2

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de instrução secundária, a que deu o nome de Imperial Colégio de Pedro II. (p. 261)3. A data do decreto que criou o Imperial Colégio Pedro II é, como já ficou dito, de 2 de dezembro de 1837, dia do aniversário natalício de S. M. o Imperador. A inauguração, porém, do colégio somente foi efetuada a 25 de março do ano seguinte (p. 262). Os primeiros professores nomeados foram: de história natural e ciências físicas, o Sr. Dr. Emilio Joaquim da Silva Maia; de história e geografia, o Sr. Dr. Justiniano José da Rocha; de grego e de retórica, o Sr. Dr. Joaquim Caetano da Silva; de inglês, Diogo Maze: de francês, Francisco Maria Piqueta; de filosofia, o Sr. Dr. Domingos José Gonçalves Magalhães; de latim, o Sr. Jorge Furtado de Mendonça; de desenho, o Sr. Manoel de Araujo Porto-Alegre, de música, o Sr. Januário da Silva Arvelos(p. 263). No dia 12 de março de 1838 tiveram princípio os exames preparatórios dos alunos que se apresentavam para matricular-se no novo colégio, e esses exames estenderam-se até ao dia 30 do mês seguinte. (...) O dia da inauguração do patriótico estabelecimento foi o do aniversário do juramento da constituição do império, e portanto, sob gloriosos auspícios nasceu e começou ele. (...) Na manhã do dia 25 de março de 1838, o atual Sr. Marques de Olinda, então regente do Império, e todo o ministério, que se compunha de Bernardo Pereira de Vasconcelos e dos srs. Miguel Calmon DuPin e Almeida, depois marques de Abrantes, Joaquim José Rodrigues Torres, depois visconde de Itaboraí, Antonio Peregrino Maciel Monteiro (1) e Sebastião do Rego Barros, dirigiram-se ao antigo seminário de S. Joaquim, e no meio de um numeroso concurso de cidadãos assistiram e presidiram às cerimônias de inauguração do Imperial Colégio de Pedro II.(...)A inauguração do colégio precedeu mais de um mês ao começo dos trabalhos de ensino (p. 263-4).

O homenageado, D. Pedro II Para Lilia Moritz Schwarcz, em sua obra As barbas do imperador,a figura do imperador é emblemática dos ditames que cercam a formação nação-Brasil. Logo ao início de sua obra, Lilia indaga: Afinal, como explicar a permanência, por quase sessenta anos, de A caracterização do seminário dedicado a órfãos que veio a ser substituído pelo colégio foi exaustivamente realizada pelo referido autor nas seguintes páginas de sua obra: p. 235-261. Trata-se de um seminário cuja história remonta à primeira metade do século XVIII. 3

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uma monarquia rodeada de repúblicas por todos os lados? Como entender o enraizamento de uma realeza Bragança, mas também Bourbon e Habsburgo, em um ambiente tropical, cercado de indígenas, negros e mestiços? A resposta é estranhar o que parece tão natural em nossos compêndios de história. Longe das luxuosas cortes européias, a capital da monarquia brasileira, em 1838, possuía cerca de 37 mil escravos numa população total de 97 mil habitantes, e em 1849, em uma população de 206 mil pessoas, 79 mil cativos. Além disso, 75% dos escravos eram, em média, africanos, dado que indica a importância da população de cor na cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, os grupos indígenas, tão afastados da corte e dizimados de forma bastante sistemática, eram convertidos, porém, em símbolo da monarquia. Distantes enquanto realidade, ganhavam vida na representação: nos quadros e alegorias, nas esculturas e nos títulos de nobreza (2008, p. 13).

Lilia argutamente destaca que o Brasil desde um bom tempo é marcado pela presença de reis, reis africanos, que para aqui foram enviados por força do tráfico; logo, aí reside a argúcia:“... Essa convivência entre tantos reis –imaginários ou não – permitia o surgimento de compreensões diferentes da realeza e mesmo de certa recepção positiva da monarquia” (Ibidem, p. 14-15). Havia uma interação, em que pese não democrática, mas uma interação assídua entre as partes que envolvia plurais, inclusive os santos (Ibidem, p. 16). Este Brasil múltiplo, imenso enseja espectros sem os quais é inviável compreender o país, e por tabela a própria geografia. Lilia indaga: (...) o que significa inventar uma corte em território americano, buscar todas as regras na mais fiel tradição medieval européia, mas adotar nomes e títulos indígenas? Como explicar um príncipe que se veste com o rigor majestático das grandes cortes, porém introduz uma murça de penas de papo de tucano, tal qual um cacique, e um manto com ramos de café e tabaco? O que dizer da famosa Fazenda de Santa Cruz, tirada dos jesuítas quando de sua expulsão e protegida pelos monarcas portugueses aqui residentes, que agrupava um número elevado de escravos-cantores de música sacra? De que maneira entender um imperador que sentava na frente dos estantes brasileiros das exposições universais – verdadeiras festas de exibição dos feitos tecnológicos e industriais das nações capitalistas – e exibia sua coroa ao lado de produtos indígenas e da arte popular? (Ibidem, p. 17).

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Este caráter colmatado e plural. Numa espécie de saudável balbúrdia simbólica, mas que ao fim e ao cabo cristalizou um claro eixo de poder no Brasil, no entanto, não foi mantido ao ser estabelecida a República. Durante um bom período a chamada “república brasileira” passou por graves desalinhos. Inclusive, como destaca Lilia, esta república toma vulto na história pagando um tributo a esse passado imperial, por exemplo, tanto o hino nacional quanto a bandeira têm por matriz bases monárquicas! (Ibidem, p. 18-20). D. Pedro II e seu colégio: “Eu só governo duas coisas no Brasil: a minha casa e o Colégio Pedro II” ou “Se não fosse imperador do Brasil quisera ser mestre-escola” Tais epígrafes, tiradas da obra de Lilia (2008, p. 150-1), assinalam o grau de predileção que o colégio tinha dentro de suas ocupações. O colégio era D. Pedro II. Cabe destacar que então vivíamos quando as instituições brasileiras, antes de serem arranjos decorrentes de um processo laborativo, marcado por consultas, discussões e deliberações, eram expressões, encarnações de personalidades. E o Colégio Pedro II era uma expressão da carne do imperador que lhe era mais caro, a saber, um lugar da instrução que tem um benemérito sobejamente erudito. Tal pai, tal filho. O Colégio Pedro II é a extensão do imperador na estrutura de poder naquilo que lhe era mais caro em sua trajetória enquanto monarca, alguém que promovia a clarividência. Porém, em que pese todo este endosso, a abrangência do colégio se reduzia à cidade do Rio de Janeiro. Só com os anos, numa longa história, o colégio torna-se matriz brasileira do que vem a ser educação! (Ibidem, p. 155).

Os catedráticos Ainda em meados do século XX, o nível salarial do professor universitário da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, se equiparava ao catedrático do Colégio Pedro II. Não raro, o professor lecionava na universidade e no colégio, como já observado. A ambiência científica no Brasil começa também na sala de aula. As carreiras científicas, também, começam na sala de aula. Um país tão rico em sua oralidade, tendo nítido efeito no campo musical, certamente não deixou de afetar o campo científico brasileiro. Neste sentido, o Colégio Pedro II teve um papel primoroso, por tabela, na própria Geografia. 72

Aspectos históricos da geografia brasileira

Segue abaixo uma relação dos primeiros catedráticos da área de Geografia e História obtida junto ao Núcleo de Documentação e Memória (NUDOM):   Nome

Disciplina

Período

Dr. Justiniano José da Rocha

Geografia

1838

Cônego Dr. Marcelino José de Ribeiro Silva Bueno

Geografia e História

1840

João Baptista Calógeras

Geografia e História

1847

Dr. Joaquim Manoel de Macedo

Corografia e História do Brasil

1849

Frei Camilo de Monserrat

Geografia e História

1840

João Antonio Gonçalves da Silva

História Geral e Geografia

1855

Pedro José de Abreu

Geografia (só)

1858

Dr. Francisco José Xavier

s/d

1879

João Capistrano de Abreu

Corografia e História do Brasil

1883

João Maria da Gama Berqui

Geografia e História

1891

Dr. João Coelho Gonçalo Lisboa

Geografia (só)

1891

Dr. Augusto Daniel de Araujo Lima

s/d

1894

Luiz Candido Paranhos Macedo

s/d

1911

Dr. Fernando Antonio Raja Gabaglia

s/d

1918

Dr. Honório de Souza Silvestre

s/d

1918

O próximo catedrático só ocorreria em 1950

No período de 1838 a 1950 o colégio contou com 170 catedráticos. Sendo que catedrático em Geografia, apenas, só contamos sete; menos que catedrático em francês, que chegou a ter dez! Para efeito comparativo, catedráticos com número respectivo tivemos: inglês (12), alemão (11), latim (16) e matemática (14). Enfim, a Geografia tinha uma importância, mas não se é possível dimensionar a ideia de que a Geografia conformaria o aparelho conceitual pelo qual o Estado em ascensão privilegiaria. No caso brasileiro, à época, este aparelho conceitual é mix. Nos é forçoso concordar com Genylton Rocha quando observa em sua dissertação: Nem uma evidência nos faz pensar que ao ser inserida no Brasil, quando da ‘transplantação’ do modelo curricular francês realizada nas primeiras décadas do século passado, o ensino desta disciplina tenha inicialmente tido aqui outra finalidade que não fosse a de Período Imperial 73

fornecer informações genéricas, verdadeiramente enciclopédicas, de um mundo em franco processo de expansão. Lembremos que também o nosso curso secundário tinha um nítido caráter de formação geral (1996, p. 153).

Enfim, não havia Geografia! Havia um diletantismo, certa forma rebuscada de falar do Brasil. Um certo galanteio nas descrições, como se lá tivesse estado mas que nunca passou dos umbrais da própria cidade do Rio de Janeiro. Era a geografia da perfumaria! Uma geografia muito mais dada aos salões. A certas curiosidades, ou até mesmo inconfidências, mas nada, absolutamente nada, fruto de um projeto de reconhecimento, fruto de pessoas que vieram a andar, ao menos, por este país. Até esse momento o Brasil ignorava a si e a Geografia então ensinada expressava isto. No lugar de maior excelência no que tange à formação de quadros de tenra idade, no caso, o colégio Pedro II, não temos uma geografia inocente, uma geografia pueril que simplesmente não deixou marca. Se temos, por exemplo, a produção historiográfica, destacando Varnhagem e Capistrano de Abreu a seguir, ensejamos já no século XIX uma maneira de se reconhecer o país a partir de suas respectivas penas. Mas qual o geógrafo que teria deixado igual impressão no campo geográfico?

Comissão científica do Império4 Até meados do século XIX alguns estrangeiros percorreram e descreveram o Brasil, tais como Auguste de Saint-Hilaire (1816-1822), Von Martius e Spix (1817-1820) e Langsdorff e Florence (1824-1829). Porém, em 1859 tivemos o início da primeira expedição em direção ao interior brasileiro promovida por brasileiros! Porém, dessa aventura pouco nos resta em termos de relatórios. O trabalho veio a ser finalizado em 1861, mas a divulgação dos resultados foi muito irregular por parte daquele órgão que foi o seu fomentador, a saber, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. A rigor, o que parece indicar, tendo em conta o material não divulgado da comissão, é que esta tinha um único endereço, a saber, As observações que se seguem foram encontradas na obra Comissão científica do Império, organizada por LorelaiKury (2009). 4

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satisfazer uma única pessoa, no caso, o Imperador. A ele cabia tão somente apresentar o que se tinha descoberto. A rigor, a esse tempo, o Brasil é ele! Houve partido? Houve projeto? Houve livro? Não, nada! O esforço foi para ele, foi para o imperador! Mas, o que se tirou disso? Um imperador mais sábio! Em resumo, um completo divórcio, a esse tempo, de qualquer ciência e sua articulação com a estrutura de ensino do país, particularmente, no Colégio Pedro II. De certo modo houve alguns efeitos nesse colégio, porque quem do colégio estava na comissão, ou quem do colégio frequentava o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Cabe reparar na equipe que participava da expedição, a saber: A comissão foi composta principalmente por pesquisadores do Museu Imperial e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Dividida em cinco seções, tinha como presidente e chefe da Seção de Botânica o médico e naturalista, Dr. Francisco Freire Alemão. Respondia pela Seção de Geologia e Mineralogia o Dr. Guilherme Schuch de Capanema, engenheiro, adjunto da Divisão de Geologia e Mineralogia do Museu Imperial. A Zoologia ficou sob o comando do Dr. Manuel Ferreira Lagos, do Museu Imperial e do Instituto Histórico. A Seção Astronômica e Geográfica foi confiada ao matemático Giacomo Raja Gabaglia, ente da Academia da Marinha, e, por fim, a Etnografia, sob o encargo de Antonio Gonçalves Dias, poeta e professor de história e latim do Colégio Pedro II. Para a ilustração científica e paisagística ficou encarregado o professor de desenho da Escola da Marinha e ex-aluno de Debret, José dos Reis Carvalho (Kury, 2009, p.23).

Por fim, terminamos aqui! Valha a pena, à semelhança de Joaquim Manuel de Macedo em seu Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, termos um pouso, no caso, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, seja para melhor conhecermos a circunstância da comissão acima, mas particularmente atentarmos para a origem da Geografia enquanto disciplina no Brasil.

Conclusão A esse tempo, 1838, não havia geografia brasileira porque simplesmente não havia Brasil. Período Imperial 75

Esta ideia Brasil, que nos parece tão natural, com limites, árvores e mapas, não existia ainda a esse tempo. Havia algo que não tinha bandeira, não tinha hino. Não tinha moeda própria, não tinha partido próprio, enfim, era algo sem projeto, assim, como esperar daqueles que se debruçavam de nossa realidade tivessem clarividência de que o Brasil viria a existir, e não um Brasil todo dividido tal como ocorreu com a América Espanhola! Vamos ao IHGB, que é justamente uma tentativa de ser o espelho deste país. Por ora, podemos afirmar que a Geografia de sala de aula apresentava pouca serventia. Seja para os alunos, para os professores, para o Estado, para o Exército... Tudo isto ao menos na primeira metade do século XIX! Enfim, o texto começa de um modo e termina de outro. Vale a pena continuarmos a investigação: onde começa a geografia brasileira? Se alguém ler estas linhas com um sorriso irônico, por já deter a resposta, sinceramente, faço minha a máxima do poeta florentino: “Segue il tuo corso, e lascia dir le genti!”.    

Fontes de dados Bibliografia

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Aspectos históricos da geografia brasileira

KURY, Lorelai (org.). Comissão científica do império. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estudio Editorial Ltda., 2009. LIMA, Oliveira. Formação histórica da nacionalidade brasileira. 3ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks; São Paulo: Publifolha, 2000. MACEDO, Joaquim Manuel de Macedo. Livros de corografia do Brasil. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1877, 1 e 2 vol., (obra rara), acervo Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM). ______.Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo de saquarema. A formação do estado imperial. Rio de Janeiro: Access, 1994. ROCHA, Genylton Odilon Rego da Rocha. A trajetória da disciplina geografia no currículo escolar brasileiro (1837-1942). Dissertação de mestrado orientada por Ana Maria Saul e defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996. SANTOS, Arnaldo Ferreira dos Santos. Reminiscências de um ex-aluno do colégio Pedro II, de um médico da UFRJ nascido no morro do Alemão. “Peitudo Caburé”. Rio de Janeiro: Ed. Achiamé, 2007. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Documentos Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM). Programa de ensino da escola secundáriabrasileira (1850-1951). Orgs. Anclê Vechic & Karl Michael Lorenz. Ed. Do autor. Decreto de fundação do Colégio Pedro II. Colégio Pedro II, Anuário do Colégio Pedro II. Rio de Janerio, Typ. Revista dos tribunais. 1914, 314 p., pp. 44-5.

Período Imperial 77

Onde começa a geografia brasileira? Seria no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro? A geografia brasileira começa no IHGB!1 Apresentação BINGO! Esta é a sensação quando se estuda o IHGB e mantém a intenção que vem percorrendo os textos mais recentes encontrados na Revista Geo-paisagem. Bingo porque pela primeira vez se percebe um projeto que articula produção de conhecimento, conhecimento geográfico, entre outros, com relações de interesse irmanadas por um projeto de poder. IHGB é fruto de uma expressão de poder, empresarial, intelectual, segmentos do Estado então em formação! Tendo em conta todo o resgate elaborado por Wilson Martins em História da Inteligência Brasileira, não há algo paralelo nesta história até então ao que ocorre na conformação do IHGB. Em interessante artigo de autoria de Maria das Graças da Lima, encontrado nos Anais do I Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico (eixos temáticos, 1999, vol. 1, p. 200-206), é possível acompanhar seu destaque para Aires de Casal, considerado o pai da geografia brasileira, segundo Auguste de Saint-Hilaire, por força de seu pioneiro estudo corográfico sobre o Brasil. Seria esta a origem da geografia brasileira? Tendo a discordar desta posição. A obra de Aires de Casal é um marco. Mas um marco! Fica nisto! É um fenômeno ilhado! Já a produção do IHGB apresenta um processo, o Brasil se descobre nele. Em Aires de Casal há um retrato! Enfim, ao fim e ao cabo, estamos tratando de aspectos bem distintos nesta nossa preocupação sobre a origem da geografia brasileira. Afirmar que uma obra ensejou uma geografia... o que vem após ela? No caso de Aires de Casal, a resposta é nada!2. Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 10, n. 19, janeiro/junho de 2011. Não faltaram obras sobre a chamada geografia brasileira, tais com: BURMEISTER, GARDNER, KIDDER, D.P. e J.C. Fletcher , PFEIFFER, Ida e TSCHUDI, J. J. Von. Mas a questão é: qual o efeito gerado? Não raro eram textos de difícil acesso, a começar pela própria língua que utilizavam. Enfim, é no IHGB que a corografia passa a ter 1 2

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Enfim, não se é difícil concordar com Auguste de Saint-Hilaire, a depender da referência do que se entenda por origem de alguma coisa, mas para efeito de estudo sobre o tema da geografia brasileira, parece ser mais procedente considerarmos o IHGB como base e trampolim para todo um processo que incluiria mais tarde a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (mais tarde Sociedade Brasileira de Geografia, confira em www.feth.ggf.br/socgeorio.htm), o Serviço Geográfico do Exército (confira www.feth.ggf.br/servigeox.htm), e bem mais tarde a própria criação do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (veja www.feth.ggf.br/FIBGE.htm).

No IHGB, pela primeira vez Por várias vezes já tenho ido ao IHGB. Por várias vezes recorri ao seu acervo, precioso acervo. Lá descobri artigos de tempos imemoriais sobre limites territoriais, sendo um especialmente marcante sobre limites na Província do Pará da metade do século XIX! Tenho particular honra em ver registrada minha produção sobre o Rio de Janeiro guardada em seu acervo. Em que pese ser tema pouco antigo, retratam o século XX, não tenho dúvida que após minha passagem entre as pessoas que me são caras, o IHGB continuará em sua trajetória e ficará em seu registro alguém, entre tantos, que andei refletindo sobre o Rio de Janeiro. Porém, quando resolvi para este artigo analisar o IHGB, é como se me invadisse uma sensação primeva, como se olhasse pela primeira vez aquela entidade. E como se ao olhar um espelho para reconhecer uma identidade, passava num dado momento a reparar no próprio espelho. Assim, de certo modo, descrevo abaixo a primeira vez que adentrei no IHGB, pela primeira vez por força de um novo olhar! Ao chegar no 10º andar, ao sair do elevador, deparamo-nos com 13 imagens (das quais algumas fotografias) retratando cada presidente da entidade. Assim, de 1838 (ano de sua fundação) até 1996 (último presidente, reeleito até hoje), em 158 anos, portanto, tivemos apenas 13 presidentes. Na relação, ao menos em nossa visita de outubro de 2010, não consta a fotografia do atual presidente, Arno Wehling, mas contando com este temos 14 presidentes, ou seja, uma média de 11 anos por titular. uma conotação mais doméstica. A produção fica mais popularizada. As discussões adquirem audiência pública com as sessões abertas pelo IHGB. Período Imperial 79

O presidente mais longevo foi sem dúvida o senhor embaixador José Carlos Macedo Soares, que presidiu a entidade de 4/5/1939 até 28/1/1968. Em seguida, o senhor Candido José de Araujo Viana, marques de Sapucaí (1847-1875), e o senhor Afonso Celso de Assis Figueiredo Jr., conde de Afonso Celso, de 11/2/1912 até 11/7/1938. Ou seja, apenas três pessoas ocuparam 83 anos da história da entidade; quase metade da história do IHGB até os dias de hoje veio a ser marcada por essas três pessoas. Em resumo, é uma entidade que conta com o tempo, com a persistência no tempo, para demarcar a persistência de sua identidade na história brasileira. É uma entidade sem pressa!

Primeiras leituras Com orientação do secretário local, passei a me dar conta que o relato sobre a história do IHGB envolve um embate. O seu legado depende de algumas preferências, tendências. Como se o que fosse dependesse dos sabores! Das circunstâncias! As coisas não são, se interpretam! Se encaminharmos por esta trilha, Deus nos acuda! Daqui a pouco passaremos a duvidar se o IHGB de fato existe... Por mais relativista... é conveniente moderação! Mas a principal questão é a seguinte: quando surge a geografia brasileira? Parece-me que o embrião desse processo tem no IHGB um agente fundamental! Mas como, em que termos? É o que veremos a seguir!

IHGB é assunto de intelectuais Arno Wehling, em sua reflexão sobre a entidade que preside desde 1996, observa que em 1843 o IHGB promoveu um concurso cujo tema era “Como se deve escrever a história do Brasil”, cujo vencedor foi o naturalista bávaro Karl Von Martius e respectiva monografia (2010, p. 52). Ou seja, desde a primeira hora a entidade está envolvida com a conformação de uma interpretação do Brasil, correlato a isto, ainda ocorria o papel de salvaguarda da memória nacional. Dupla função que nem sempre alcançava adequada utilização de meios (ibidem, p. 54)3. Cabe aqui chamar a atenção do trabalho aqui utilizado, De formigas, aranhas e abelhas, reflexões sobre o IHGB, de Arno Wehling, editado pelo próprio IHGB, embora resumido: é útil, e atualizado material de apoio na caracterização das diferentes fases da entidade. 3

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IHGB é assunto de empresários4 Em 1820, com mais duzentos outros subscritores, Ignácio Alvares Pinto de Almeida pede ao Governo Imperial de D. João VI que lhe permita instalar uma sociedade civil. A ideia parte de um homem de grande visão e crítica, que concebe uma instituição destinada a orientar parte da classe dirigente na afirmação de seus interesses imediatos... Em 19 de outubro de 1827 é instalada solenemente a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. O Secretário Ignácio Alvares Pinto de Almeida, em discurso, define o seu objetivo, que é precipuamente ‘cooperar para a felicidade Nacional’. Para isto está ‘convencido de que nenhum país floresce, e se felicita sem indústria; por ser ela o móvel principal da prosperidade e da riqueza, tanto pública, como particular de uma nação culta e realmente independente’. ... A primeira sessão é em 28 de fevereiro de 1828: seu Presidente é o Visconde de Alcantara e fazem parte da diretoria o Brigadeiro Francisco Cordeiro da Silva Torres, João Fernandes Lopes, Manoel José Onofre, João Francisco Madureira Pará, Conselheiro João Rodrigues Pereira D’Almeida e Ignácio Alvares Pinto de Almeida. O Visconde de Alcantara, cujo nome é João Inácio da Cunha, rege a instituição de 1827 a 1831. Com a sua retirada, o substituem outros consócios, mas, os períodos mais brilhantes são os do Marques de Abrantes (1848-1865), o do Visconde do Rio Branco (1865-1880) e o de Nicolau Joaquim Moreira (1880-1894). A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, no entanto, objetiva determinados fins e para isso se organiza como sociedade civil. Os seus diversos Estatutos demonstram a ideia e, através do tempo, a ampliação de objetivos. No primeiro Estatuto, redigido em 1824, fala-se que a composição da Sociedade será de sócios efetivos e honorários, dirigida por um Presidente, um Vice-presidente, um Secretário, um Tesoureiro e dois Adjuntos; o Presidente é de confiança pessoal do Imperador (Capítulo 1.). Efetivos são os membros da diretoria ou pessoas que sejam donas de ‘Invento novo, Modelo, Máquina ou Memória de Conhecida utilidade’; ou contribuam com valor de duzentos mil réis. Honorários são os que se ligam à Sociedade (Capítulo 2.). No Capítulo 3. especifica-se que ‘haverá uma Casa, que sirva de Depósito, e Conservatório das Máquinas, e Modelos, que se adquirem e onde as mesmas máquinas, e modelos Seguem abaixo trechos da obra O Centro Industrial do Rio de Janeiro, de Edgard Carone, 1978, p. 16, 17, 19, 20 e 23. Em que pese longo, é útil a presente passagem porque não é acessível uma história tão bem resumida como esta que se segue. 4

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estejam em ordem, e asseio, não só para a sua conservação, mas para a sua exposição ao Público, às quintas-feiras de cada semana, e em qualquer outro dia aos ‘Artistas e Fabricantes’, que se quiserem consultar a fim de que possam ser vistas comodamente, e copiadas pelas pessoas que nisso tenham interesse ...’ No capítulo 5. voltase a afirmar que ‘é de obrigação, e positivo dever desta Sociedade a aquisição, arrecadação e conservação das Máquinas, Modelos e Inventos adquiridos, e de quanto por este meio possa concorrer, para aumento e prosperidade da Indústria Nacional desse Império, devendo porém mandar vir com preferência aquelas Máquinas, ou Modelos, que forem mais necessários, e úteis à Agricultura. Fábricas, e Artes, como as bases mais sólidas e importantes da prosperidade de um País’. No capítulo 6. especificam-se as diversas seções, privadas e públicas e seu ritmo de convocação: em cada mês (Sessão econômica), de três em três meses (ordinária), extraordinária e pública (uma vez por ano). Em 1831, há a primeira modificação dos Estatutos, que clareia alguns tópicos, repete outros e afirma que a Sociedade ‘tem por fim promover, por todos os meios ao seu alcance, o melhoramento, e prosperidade da indústria no Império do Brasil’. Em 1848, a nova redação é mais ambiciosa: a Sociedade ‘tem por fim promover por todos os meios ao seu alcance o aperfeiçoamento da agricultura, das artes, dos ofícios, do comércio e da navegação do Brasil; a auxiliar a nossa nascente indústria com prêmios, certificados, publicações e exposições, segundo o uso das nações mais adiantadas na civilização”(art. 1.); nos artigos 2. e 3. mostra-se que para obter este fim é preciso colecionar máquinas e expo-las ao público, publicar periódico mensal, desenvolver biblioteca, administrar aulas sobre (p.20) doutrinas industriais, corresponder com Sociedades estrangeiras etc. medidas estas que já funcionam desde a década de 1830. Em 1857, em nova redação, os Estatutos rezam que a Sociedade ‘tem por fim promover por todos os meios ao seu alcance o melhoramento e a prosperidade dos diversos ramos da indústria do país, e auxiliar o Governo sempre que por ele for consultada sobre todas as questões concernentes aquele fim’; para atingir os seus objetivos estabelecerá uma escola prática de Agricultura, cursos teóricos, um Museu industrial, exposição geral e parcial dos produtos industriais e artísticos, um periódico etc. (Capítulo 1.). Burocraticamente, haverá sessões de Agricultura, indústria fabril, Máquinas e aparelhos, artes liberais e mecânicas, comércio e meios de transporte, geologia aplicada e químicas, comércio e meios de transporte, geologia aplicada e química industrial, melhoramentos das raças animais (Capítulo 4). Em 1869, o novo estatuto introduz outros detalhes, entre eles os que tratam das sessões, em que se 82

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acrescenta o de Zoologia, de estatítisca industrial, de colonização e estatística e o de finanças da Sociedade (Capítulo 4.). E aparece um artigo novo, rezando que ‘sua Majestade o Imperador é considerado como Presidente Perpétuo da sociedade enquanto se dignar conceder-lhe esta Graça’ (Capítulo 2., artigo 4.). (p.23) Afinal, há um último ponto a assinalar a favor da Sociedade: é por sua iniciativa que se funda o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A história é a seguinte: o 1º Secretário Marechal José da Cunha Matos e o famoso Cônego Januário da Cunha Barbosa, em 18 de agosto de 1838, fazem proposta para a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No dia seguinte a ideia é aprovada e em 21 de outubro de 1838 o IHGB é instalado. Dele fazem parte (p.24), a grosso modo, os membros da Sociedade, cuja primeira presidência cabe ao Visconde de S. Leopoldo. Por proposta do Cônego Januário, o futuro Imperador aceita o título de protetor do Instituto. Só em fevereiro de 1839 é que o IHGB acha acomodações próprias, retirando-se do prédio da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional.5

IHGB e seus fundadores José Feliciano Fernandes Pinheiro6 Da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, precursora do Instituto Histórico, o visconde de São Leopoldo, fora sócio, depois eleito vice-presidente e dizia ele: ‘Tive alguma parte nesta Instituição, como se vê do Aviso de 18 de julho de 1837, em que, sendo então ministro do Império, declarei a aprovação dos Estatutos apresentados, e a nomeação da primeira mesa, etc., etc.’. Do Instituto Histórico, foi logo eleito presidente perpétuo (p.130). (p.131) (O visconde relata o quanto os jesuítas escreveram sobre o Brasil e vem a ser um material inédito e pouco conhecido, fazendo votos para que fossem publicados, incluindo Southey como um de seus usuários para compor sua obra.) (na pág. 137 registra-se que ele estava a compor uma História Geral do Brasil, uma das grandes ambições da época, justamente para marcar diferença em relação à história portuguesa.) Grifo nosso. Seguem abaixo trechos da obra Os fundadores, de Feijó Bittencourt, 1938. Sobre José Feliciano Fernandes Pinheiro (visconde de São Leopoldo), primeiro presidente do IHGB, nasceu em 9 de maio de 1774 e faleceu de uma pneumonia em Porto Alegre (Província de São Pedro do Rio Grande do Sul) no dia 5 de julho de 1847, p. 21-139. 5 6

Período Imperial 83

Raimundo José da Cunha Matos7 Faro, a capital do Algarve, em Portugal, é uma pequena cidade de 12.000 habitantes, banhada pelo Atlântico...Nessa cidade meridional, sob o lindo céu da pátria lusitana, nasceu, a 2 de novembro de 1776, Raimundo José da Cunha Matos, que veiu (sic) a ser mais tarde marechal de campo do Exército Brasileiro, deputado às duas primeiras legislaturas do Império, pela província de Goiaz (sic), fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, secretário geral da Auxiliadora da Indústria Nacional, vogal do Conselho Supremo da Justiça Militar, sócio correspondente do Instituto Histórico de França, da Sociedade Burbônica (sic) e da Academia Real de Ciências de Lisboa: oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro, Comendador da (s/d) de São Bento de Aviz, etc. (p. 161) Em 18 de agosto de 1838, reunido o conselho administrativo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, leu o seu 1º secretário, o marechal Raimundo José da Cunha Matos, uma proposta também assinada pela figura expressiva, cônego Januário da Cunha Barbosa, com o título de Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Desmembra-se da associação já existente, outra, com denominação mais ampla, e de finalidades muito mais gerais. É o caso da filial trazer consigo um destino muito mais brilhante e percuciente. Ela seria uma expressão de nacionalidade. Ora, não puderam criar antes, porque a História do Brasil estivera depender da independência do povo, que só agora se emancipava...8.

Cônego Januário da Cunha Barbosa9 O primeiro secretário que teve o instituto Histórico foi figura eloqüente, famosa, que se destacou em quase todas as situações históricas de seu tempo (p. 171). No Seminário de São José fora discípulo do grande pregador e Seguem abaixo trechos da obra Os fundadores, de Feijó Bittencourt, 1938, sobre Raimundo José da Cunha Matos, p. 143. 8 O que chama a atenção neste trecho é a parceria entre um militar pouco afeito às sutilezas da retórica e mais voltado a proferir voz de comando, e um cônego, este sim um homem de imaginação (como se refere o texto), mas que atua em concordância com seu colega militar. Outro aspecto diz respeito ao atrelamento do IHGB ao escrito de uma história nacional, ou seja, não tratava-se de constituir uma escola de pensamento brasileiro, mas sim alcançar um produto, uma história que não se confundisse com o que já havia sido registrado sobre Portugal. Inclusive, na p. 164-5, se realiza uma retomada dos que até então tinham se ocupado com a história brasileira, segundo Cunha Matos. Este faleceu em 23 de fevereiro de 1839, portanto, sua marca no IHGB se resumiu a que este passasse a existir. 9 Seguem abaixo trechos da obra Os fundadores, de Feijó Bittencourt, 1938, sobre Cônego Januário da Cunha Barbosa, p. 171. 7

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mais tarde bispo de Angola, frei Antonio de Santa Ursula Rovalho, aulas freqüentaram as grandes figuras do púlpito daquele tempo como São Carlos, Sampaio, e Monte Alverne. Em 1808, concluídos os estudos no Seminário, toma as ordenas de subdiácono, e dois anos mais tarde, tendo ele então 23 anos de idade, é sagrado sacerdote pelo Bispo do Rio de Janeiro, d. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco. Pela grandeza que tem a Igreja, em contraposição à simplicidade da vida de outrora, no Brasil, o cerimonial da sagração tinha, aos olhos do povo, expressão extraordinária, e assistia a essas festas solenes muita gente cheia de respeito, e, ainda mais, de interesse motivado pela significação que encontrava na vida do sacerdote, por vezes de grande projeção social (p. 171). Ora, desde maio de 1846, Januário estará substituído na Câmara dos Deputados pelo futuro visconde de Uruguai, Paulino José Soares de Souza. Paulino representará a recrudescência da força dos conservadores, a volta de Vasconcelos, e a queda dos liberais, a cuja frente Aureliano se mantém até 1848, quando desiludido da política, desce da presidência da província do Rio de Janeiro. A morte de Januário, entretanto, estava próxima. Conta o seu sobrinho: ‘Enquanto o povo fluminense assistia ao primeiro baile mascarado, realizado no teatro São Januário, à praia de d. Manuel, a 22 de fevereiro de 1846, falecia de uma febre intermitente perniciosa, à rua dos Pescadores n. 80, aquele que tantos serviços prestara à sua pátria’. (...) Ao baixar o corpo à sepultura, levantou a voz o orador do Instituto Histórico, Manuel Araujo de Porto Alegre (p. 198)10.

IHGB é assunto de estado Pela obra de Max Fleiuss, intitulada O Instituto Histórico através de sua Revista, é factível anotar o volume da produção após cem anos de existência, no caso em 1938. De certa forma a revista atuava como um balão de ensaio onde se ia registrando toda a produção passível de ser registrada sobre o Brasil, e com isto criando um acervo sistemático. Este acervo mostra-se incompleto, afinal o tamanho do país estava a exigir outro tipo de instrumento que o IHGB em parte supria11. Pelo longo histórico encontrado, Januário, jornalista, deputado, veio a somar força com o grupo liberal, mentor da Sociedade Auxiliadora quanto do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Mas um grupo que à época não logrou muito sucesso comparado ao grupo conservador. 11 A criação do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (1938), diretamente vin10

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IHGB é assunto da geografia, uma avaliação A geografia brasileira existe uma antes do IHGB e bem outra com o IHGB. Antes do IHGB, geografia brasileira era coisa de estrangeiro, ou de algum frequentador de acervo mantido por mosteiros. Com o IHGB a geografia brasileira adquire uma conotação, historicizada (certamente), mas tem uma produção mais ampliada, com uma audiência mais diversificada. Enfim, começa a ocorrer uma combinação de talentos. Pessoas, funcionários, professores, acorrem para os seus corredores para escutarem relatos, aplaudir empresas, enfim, passam a respirar Brasil!12.

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Duarte da Ponte Ribeiro: o diplomata-geógrafo no tempo do Império Brasileiro. Um exemplo de como a Geografia também serve para fazer a paz!1 Um pouco de prosa Por que estudar Duarte da Ponte Ribeiro? Por que olhar para o século XIX no intuito de ver geografia brasileira? O trabalho procura compreender a história do pensamento geográfico brasileiro à luz do passado dos que a fizeram. E no caso de Duarte da Ponte Ribeiro ele fez a geografia brasileira no sentido mais literal possível, dada a sua importância da definição das fronteiras brasileiras. As dificuldades Não é fácil estudar a vida de Duarte da Ponte Ribeiro. Uma dificuldade que contrasta com a importância de sua atividade profissional. A dificuldade começa na busca de informações sobre a vida do diplomata. Embora para quem more no Rio de Janeiro disponha do acervo encontrado no Palácio do Itamaraty (RJ), a rigor, há dificuldades para acessá-lo. O próprio clássico escrito por José Antonio Soares de Souza – Um diplomata do Império – não se encontra mais na biblioteca do Rio de Janeiro, mas sim em Brasília (DF)!2. Um material interessante encontrado no Palácio do Itamaraty foi Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 2, n. 4, julho/dezembro de 2003 . 2 É possível ter uma relação de mapas deixada por Duarte da Ponte Ribeiro, mas há pouco material sobre a vida do diplomata. O que se percebe, após consultas ao acervo do Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro, é a existência de uma lenta e silenciosa transferência dos materiais do Palácio do Itamaraty do Rio de Janeiro em favor da capital federal. Além disto, há um descuido quanto ao material lá encontrado; sintomático desta situação foi a nota publicada na coluna do jornalista Ancelmo Góis, em O Globo, com data de 28/08/03 (pág. 18): “O Itamaraty investiga o sumiço de alguns mapas históricos de sua rica ‘mapoteca’, no Rio. Diplomatas não descartam a hipótese de furto. O acervo, no belo Palácio do Itamaraty, inclui milhares de mapas, cartas náuticas, atlas, plantas e desenhos” . Enfim, um acervo construído às duras penas no Rio de Janeiro vem sendo dilapidado! 1

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o Arquivo Histórico do Itamaraty, parte III, nº 34, com uma apresentação do embaixador Maurício Nabuco sobre o Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro. Na obra, o embaixador destaca um trabalho de catalogação iniciado sob a chefia do ministro Jorge d’Escragnolle Taunay, tendo por base a doação da viúva do barão da Ponte Ribeiro, verificada em 18841. O arquivo do barão é tido como uma das coleções mais ricas do arquivo, não só pela quantidade de originais dos séculos XVIII e XIX, com anexos de mapas e plantas originários de cidades, assim como pelos quadros estatísticos sobre diversos lugares. Outro material muito valioso foi encontrado na Biblioteca Nacional (RJ). Lá tomamos ciência da obra de Isa Adonias, destacada pesquisadora dessa biblioteca que durante anos pesquisou a cartografia brasileira. O volume O acervo de documentos do Barão da Ponte Ribeiro foi elaborado em 1983 pela mesma para comemorar o próximo centenário da incorporação daquele acervo aos arquivos do Ministério das Relações Exteriores. Para efeito da realização de nosso trabalho, procuramos resgatar tanto a personalidade de Duarte da Ponte Ribeiro quanto sua época, no intuito de decifrar o que seria “fazer geografia” naquele tempo!

A vida e a época de Duarte da Ponte Ribeiro Duarte da Ponte Ribeiro nasceu em Portugal no ano de 1795 e veio ao Brasil junto com a família real em 18082. Aqui obteve a formação de médico, vindo a exercer a profissão e, após o casamento em 1819, passou a morar em Niterói (RJ) e desenvolver brilhantemente a medicina, a ponto de ser nomeado cirurgião-mór da villa real da Praia Grande (Nictheroy)3. Porém, em 10/5/1826, foi convocado a fazer parte do corpo diSegundo Goycochêa (1943, p. 173-174): “... De facto, em 1884 (elle falleceu em 1878) deram entrada alli ‘106 maços com livros e manuscriptos; quatro canudos e uma caixa contendo mappas; e quatro livros onde se acha tudo classificado’. Acompanhou o acervo carta assignada pela Baroneza de Ponte Ribeiro, dirigida ao Ministro de Estado, pedindo que acolhesse benevolamente a doação que fazia...”. 2 Segundo Goycochêa (1943, p. 142), Duarte da Ponte Ribeiro, então com 12 anos, acompanhou o amigo do seu pai, Dr. Joaquim da Rocha Mazarem, que era o primeiro cirurgião do navio que transportava D. João e seus principais servidores. 3 Antes de desenvolver uma vida pacata, ele interrompia a clínica para, quando em quando, realizar serviços médicos em barcos que alcançavam diferentes partes do planeta – assim acabou conhecendo portos da Ásia, da África, da América e da Europa (Goycochêa, 1943, p. 143). 1

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plomático brasileiro tendo como primeira missão a obtenção junto ao governo espanhol do reconhecimento da nova nação independente4. No entanto, dada as pressões da família portuguesa na Espanha, Duarte não logrou o sucesso esperado5. Logo voltou ao Brasil e após um ano parado, já tendo retomado as suas atividades de médico, foi novamente convocado para servir como cônsul no Peru em 18296. Nesse Cabe observar que esta convocação não se deu repentinamente; a par da sua carreira médica, Duarte da Ponte Ribeiro desenvolvia diligentemente uma carreira na estrutura administrativa do Estado Imperial. Já em 1º de setembro de 1819 ele aceitou o cargo de Thesoureiro do Sello e no ano seguinte obteve novo emprego público, o Thesoureiro da Fazenda dos Defuntos e Ausentes pelo prazo de três anos (em 1821 o cargo se tornou vitalício); diante da Independência brasileira adotou a nacionalidade brasileira, o que deve ter facilitado sua indicação para Cônsul Geral do Império do Brasil na Espanha (Goycochêa, 1943, pp. 143-145). 5 Segundo Goycochêa esta recusa espanhola teve relação com o fato de suas ex-colônias na América não terem sido reconhecidas por outros países europeus, assim não caberia abrir um precedente; além disso, o cônsul espanhol no Brasil teve sua atuação limitada pela corte brasileira. De qualquer forma, a simples indicação de Duarte da Ponte Ribeiro indicou a sua importância para o governo brasileiro (1943, pp. 145, 149). Mas, por outro lado, a indicação para uma missão desta para quem não tinha uma tradição na área diplomática, além da pouca idade (pouco mais de 30 anos), indicou também a dificuldade na época de se encontrar quadros capazes, e de confiança (preferencialmente patrícios da boa terrinha lusitana), para tratar de assuntos da Corte alhures. Em Souza (1951, p. 6-7), é destacado que após a primeira e inglória missão, o então ministro dos negócios estrangeiros em 23/4/1828 garantiu a Duarte Ponte Ribeiro mais oito meses de salário e só enviaria passagem de volta, para ele e sua família (mulher e três filhos), caso o jovem diplomata provasse estado de pobreza! Para fugir da humilhação, Duarte da Ponte Ribeiro preferiu vender pratas da família e seu uniforme de recepção de diplomata (sic). 6 Não deixa de ser prosaica a forma como Duarte da Ponte Ribeiro chegou ao local de sua missão, a saber: com uma boa dose de acaso. Ou seja, na carreira de Duarte da Ponte Ribeiro, a acessibilidade aos locais onde desempenharia a sua missão, assim como a veiculação de suas missivas e documentos importantes para as autoridades constituídas, dependiam de circunstâncias que nada diziam respeito a certa infraestrutura de apoio, com logística disponível para que o diplomata desempenhasse sua missão. No caso da missão para o Peru, por exemplo, concorreu a providencial passagem no Rio de Janeiro de uma fragata francesa (La Seine) que levava dois cônsules del Rei Cristianíssimo Carlos X para aquela República (a do Peru); assim, a partir de gestões do então encarregado de negócios da França na Corte (Mr. Pontois) foi autorizado o embarque de Duarte da Ponte Ribeiro para o mesmo destino (Souza, 1951, pp. 22-23). Outro aspecto que chama a atenção no relato da viagem ao Peru é a presteza com que Duarte da Ponte Ribeiro desempenhou suas funções, pois, tão logo chegou ao país, no dia seguinte apresentou ao então ministro peruano sua carta credencial; é um detalhe que acusa a forte energia que o embaixador dedicou para realizar suas obrigações mesmo após uma cansativa viagem pelo mar naquele tempo (Souza, 1951, p. 24). Além disso, as embaixadas não tinham uma precisão em termos de tarefas a 4

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país, forjou fortes laços de amizade, vindo a ter seu filho mais velho a sua descendência tempos mais tarde nesse país. Além disto, cabe considerar que esse período mostrou-se fundamental, mais tarde, nas discussões sobre a demarcação das fronteiras com a Amazônia, assim como na diminuição da rejeição a um país, o Brasil, que era o único da América a adotar a monarquia como forma de governo, e ainda tinha como monarca o filho de D. João VI, cuja esposa (Dª. Carlota Joaquina) era irmã de Fernando VII da Espanha, pessoa que não se conformara com a independência das ex-colônias espanholas7. Finalizada sua primeira estadia no Peru, Duarte da Ponte Ribeiro foi enviado para o México em 1833. Lá chegou a representar o Brasil no primeiro Congresso de Nações Americanas8. De lá retornou quando foi novamente indicado para o Peru no intuito de consagrar acordos que envolviam as delimitações territoriais entre esse país e o Brasil nos anos 1836-1841 (no entanto, o acordo não foi ratificado pelo governo brasileiro). Após o malogro da última missão, Duarte da Ponte Ribeiro foi destacado, durante dois anos (1841-1842), para exercer tarefas burocráticas na Secretaria do Ministério de Relações Exteriores. Correlato ao trabalho de catalogação de informações, Duarte da serem desempenhadas pelos diplomatas, ou seja, dada a carência de informações e o fluxo muito lento de sua veiculação, os representantes diplomáticos gozavam de certa autonomia para criar uma certa agenda em termos de metas, já que não era possível à Coroa brasileira ter segurança sobre o que estava acontecendo no país que seria abordado. 7 Relações amistosas que não deixaram de conhecer dissabores. Por exemplo, recémchegado ao Peru, veio a saber com atraso de três meses que o então ministro dos Assuntos Exteriores no Brasil tinha sido afastado e que seu salário havia sido reduzido (sic), o que afetava a sua capacidade de manter os gastos relacionados à representação de seu país no Peru (Souza, 1951, p. 28). Afora isto, vieram problemas de saúde, por exemplo, na saída do Peru, em 1832, em direção ao Chile foi atacado pela cólera-morbus na cidade de Valparaiso (Ibidem, p. 33). 8 In: Cortesão (1971). Cabe assinalar que durante aproximadamente um ano Duarte da Ponte Ribeiro deixou de receber salário enquanto funcionário do corpo diplomático brasileiro, por estar desligado do serviço; só em 12/7/1833 surgiu uma nova incumbência a Duarte da Ponte Ribeiro, no México (Souza, 1951, p. 39). É um aspecto que sinaliza a instabilidade de alguém tido como funcionário do corpo diplomático brasileiro à época! Cabe aqui ressaltar a aventura de Duarte da Ponte Ribeiro para chegar ao México! Ele antes passou por Portugal no intuito de realizar diligências sobre a possibilidade da volta de D. Pedro I ao Brasil. Em 9 de fevereiro de 1834, saiu de Lisboa e partiu para a Inglaterra e de lá para o México em 23 de fevereiro, só chegou no México, em Vera Cruz, em 28 de abril daquele ano (1834), ou seja nove meses após a outorga da missão para o México (que ocorrreu em julho de 1833)! (Souza, 1951, pp. 42-46). Período Imperial 91

Ponte Ribeiro elaborava um notável acervo de mapas e documentos antigos que versavam, sobretudo, a respeito dos limites territoriais do Brasil9. Em 1842, novamente, Duarte da Ponte Ribeiro foi destacado para assumir posto em Buenos Aires como ministro residente, numa época que as relações com a Argentina mostravam-se difíceis. Nas palavras de Goycochêa (1943, p. 157), o posto não seria um seio de Abrahão (sic.); isto porque todo o Sul, de Santa Catarina para baixo, estava em armas; a República, que então existia no Rio Grande do Sul, se não era reconhecida pelos países vizinhos ao mesmo era respeitada por partidos uruguaios e argentinos. No ano seguinte, em 1843, ocorreu um incidente: o governo argentino julgava ter o Brasil assumido uma posição contrária aos interesses argentinos, pois ele desconhecia o bloqueio de Montevidéu promovido pelo governo argentino de Don Juan Manuel Rosas. Duarte da Ponte Ribeiro, por sua vez, destacou que tal atitude não poderia ser vista como afronta, mas não foi o pensamento da Coroa no Brasil, e o insigne diplomata acabou sendo exonerado do cargo no ano seguinte (1844). De volta ao Rio de Janeiro, retomou suas pesquisas sobre as fronteiras do Brasil na qualidade de chefe da 3ª Seção da Secretaria de Estado dos Negócios Exteriores. Sete anos depois, em 1851, voltou às viagens, tendo sido encarregado com missões nos países andinos – Chile, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia – e, particularmente, Venezuela para esclarecer as diferenças do Brasil com o governo argentino de Rosas10, e também tentar isolar o líder argentino que então passava por dificuldades11. Porém, na Bolívia, adoeceu devido à altitude, só podendo chegar à Chuquisaca em dezembro de 1851. Poucos meses depois, em março de 1852, foi retirado do cargo. Ainda em 1852 assinou uma convenção com o governo do Peru que repercutiu na delimitação com o Brasil, e esta convenção foi acatada no Rio de Janeiro nesse mesmo ano. No Rio de Janeiro trabalhou como conselheiro dos ministros de Estado dos Negócios Estrangeiros12 de 1853 até 1857, quando então se aposentou na Secretaria de Governo do Ministério de Relações ExteEm Goycochêa (1943, p. 156), Duarte da Ponte Ribeiro teria iniciado o trabalho de negociar com todos os países limítrofes as linhas de fronteiras que não existiam; é desta época (1843) que teve início o serviço de exploração das raias (sic.) precedida pela criação da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros em 1841. 10 Cortesão (1971). 11 Goycochêa (1943, pp. 161-162). 12 Cortesão (1971). 9

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riores. Data deste período, a partir de 3 de janeiro de 1853, que Duarte da Ponte Ribeiro passou a trabalhar de forma mais intensa sobre as suas “Memórias”, no preparo de cartas geographicas, e atuava como conselheiro nas questões sobre limites do Brasil13. Em resumo Se há algo que caracterizou a época do diplomata foi a ausência de monotonia! Não foram poucas as vezes que Duarte da Ponte Ribeiro passou por situações de riscos de vida dada às conflagrações atingindo diferentes países da América do Sul. A sucessão de golpes, e contragolpes, no Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru sinalizam que o exercício da diplomacia por esta parte da América era um dos mais periclitantes serviços. E afora os conflitos externos, tínhamos os conflitos internos a cada um desses países. Talvez, a situação mais difícil que Duarte da Ponte Ribeiro tenha passado ocorreu na Argentina quando esta, sob a ditadura de Rosas, acusava o Brasil de ter uma política intervencionista na bacia da Prata14. Nessa época, o embaixador foi levado a sair da Argentina. Afora isto, a questão internacional que sempre o ocupou desde a sua primeira missão na América do Sul foi o de reunir meios e recursos para demarcar as fronteiras brasileiras com os países limítrofes, particularmente a fronteira da região amazônica que passava, cada vez mais, a ser objeto de disputas em termos de acesso ao seu sistema fluvial. Na realização das tarefas burocráticas, Duarte da Ponte Ribeiro sistematizou uma série de observações sobre diferentes países pelos quais já tinha passado: Espanha (sobre o qual escrevera pouco, em parte devido às experiências frustrantes de sua primeira empreitada); Portugal, aonde chegara após vir da Espanha; em seguida, Inglaterra (onde retomaria um navio em direção ao Brasil)15. De outro momento, indo ao Peru de animal de carga, passando pela bacia do Prata, foi melhor conhecendo as vicissitudes que caracterizavam a região, os conflitos no Uruguai (e seus efeitos nas terras gaúchas), os conflitos entre os federalistas e os unionistas na Argentina etc. Estando pela primeira Goycochêa (1943, p. 162). A rigor, Rosas ambicionava restaurar o antigo vice-reinado da Prata, tendo o Rio Grande do Sul como província (Souza, 1951, p. 60). 15 Goucochêa (1943, p. 168), citando fonte indireta de Pandiá Calogeras, insinua que a presença de Duarte da Ponte Ribeiro serviu para averiguar as intenções do tio (D. Miguel) em relação aos direitos da sobrinha à Coroa lusitana. 13 14

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vez no Peru, que à época envolvia também a atual Bolívia, foi levado a perambular pelos Andes, pois o governo peruano, enfrentando sérias oposições internas, era itinerante, tendo sede em diferentes partes do país segundo a época do ano (Souza, 1951, p. 75). Nesse período veio a conhecer o Chile e a área de litígio que já se desenhava entre este país e a futura Bolívia. Quando de sua missão no México, apercebeu-se da influência que, simultaneamente, os Estados Unidos e forças europeias tinham sobre aquele país16. Ao de lá sair veio a utilizar o porto de Nova Iorque, pois o navio mexicano para lá ia, para então voltar para a América do Sul, não sem antes passar por Lisboa (março de 1836). Enfim, lembranças que embora já registradas em relatórios, vieram a ser melhor sistematizadas durante o exercício das tarefas burocráticas, e particularmente após a sua aposentadoria. No trabalho de Souza (1951) não são raras as descrições de situações de riscos de vida decorrentes da própria insegurança política vigente à época (guerra civil, guerra entre países), mas também às difíceis condições das viagens para os locais escolhidos pela Corte brasileira, e as precárias condições da alimentação e da estadia encontradas nesses locais. Não poucas vezes Duarte da Ponte Ribeiro encontrou-se à beira da morte! Goycochêa (1943, p. 176), tendo por referência Joaquim Manoel Macedo em trabalho proporcionado ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, como necrológio, assinalou sobre o diplomata: (...) numa oportunidade enfrentou uma viagem marítima de 155 dias dos quais 60 a meia ração de água, ao mesmo tempo em que o escorbuto matara 18 das 60 pessoas do navio; numa outra viagem foi vítima da carneirada (febre de Angola) tendo ficado 3 dias pré-agônico; ainda sem desempenhar função diplomática, em 1824, teve um ferimento com espingarda que feriu gravemente a mão esquerda tendo corrido um sério risco de vida devido a gangrena conseqüente ao acidente; em exercício de missão, em Valparaiso, foi vitimado pelo cólera. Isto sem contar as várias enfermidades contraídas por falta de adaptação à comida, clima, costumes locais, etc. Morreu idoso, com 83 anos, em 1/9/1878, quando tudo indicava Nessa viagem teve uma séria crise de saúde, com ulceração e infarto das glândulas da garganta (Souza, 1951, p. 50). Assim, foi obrigado a ficar alguns meses na Filadélfia, onde o contraste entre a temperatura elevada do México com a temperatura baixa nos Estados Unidos afetou a sua capacidade pulmonar, quase levando-o à morte (Ibidem, p. 51). Tendo saído dos Estados Unidos em março de 1836, foi para Portugal e, em 23/10/1836, já estava em Buenos Aires, prestes a enfrentar 700 léguas em direção à Bolívia ao final daquele ano (Souza, 1951, pp. 50-66). 16

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pelos problemas de saúde anteriormente sofridos que teria uma vida breve17.

A obra de Duarte Ponte Ribeiro Jaime Cortesão (1971), ao destacar a obra do barão do Rio Branco na consolidação diplomática e o reajuste das fronteiras brasileiras, não deixou de lembrar uma plêiade de precursores que viabilizaram este destacado trabalho e dos quais avulta Duarte da Ponte Ribeiro e respectivos estudos de geografia, história e cartografia que municiaram as futuras reivindicações territoriais. Tendo passado por diferentes países, particularmente entre os principais vizinhos do Brasil, Duarte da Ponte Ribeiro foi cioso em coletar informações, relatórios, mapas, cartas que aprofundassem os temas relacionados aos limites do nosso país. Ao longo da carreira elaborou dezenas de notáveis memórias, nas palavras de Cortesão (1971), que muito auxiliaram na compreensão dos problemas de fronteiras18. Além de outras tantas memórias sobre temas de sua área profissional. Segundo Goycochêa (1943, p. 177), Duarte da Ponte Ribeiro foi cônsul geral, ministro residente, ministro plenipotenciário e enviado extraordinário; foi oficial da Secretaria de Estado e chefe de uma seção especialmente criada para ele: a dos Negócios Políticos da América. Como prêmios, ele recebeu em 1829 a mercê de Cavalleiro professo da Ordem de Christo e, em 1843, a de Commendador da mesma ordem; em 1848 foi nomeado conselheiro do Estado; em 1853 recebeu a dignidade da Ordem da Rosa e o foro de Fidalgo da Casa Imperial; o título de barão foi datado de 3 de março de 1873. Ironicamente, figura tão reconhecida, veio a receber um rude golpe, poucos meses antes de sua morte: em abril de 1878, o Ministro dos Negócios Extrangeiros avisou que mandara cessar o abono da gratificação anual de 2:400$000 e convidava-o a recolher as parcelas dessa importância que houvesse já recebido; justificou-se a medida com o fato de que o Orçamento não previa essa dotação, o que foi prontamente atendido por Duarte da Ponte Ribeiro que, em poucos dias, devolveu ao Thesouro Nacional a restituição ordenada! No entanto, cabe destacar, que até essa data (15/4/1878) o diplomata continuava respondendo às consultas formuladas pelo governo. Ele não conhecia aposentadoria! (Goycochêa, 1943, p. 177). 18 As primeiras delas foram “Memória sobre as Repúblicas do Pacífico”, quando de sua estadia no Peru (1829-1831); a outra foi “Memórias que contam as minhas observações no México” (Souza, 1951, pp. 300, 50). Durante a sua estadia nos Estados Unidos, estando doente na Filadélfia, pode melhor analisar o caráter expansionista daquele país sobre Cuba e Califórnia, e chegou a afirmar: “Deus livre o Império Brasileiro de uma questão com os Estados Unidos que sirva de pretexto aos Cidadãos – Reis organizar expedições...” (Ibidem, p. 52). É uma frase que nos lembra a sua atualidade tendo em vista os recentes episódios da guerra contra o Iraque em 2003. 17

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Afora o seu legado interpretativo sobre as circunstâncias que estavam vigentes na área, o barão Ponte Ribeiro muito auxiliou na formação do acervo de dados disponíveis sobre as fronteiras do Brasil; é dele, por exemplo, o núcleo inicial da valiosa Mapoteca do Itamaraty19. Pouco antes de sua morte, em 23 de maio de 187320, ele finalizou uma “Relação das Memórias e mais Papeis Reservados” (sic), no qual consta, nas palavras de Goycochêa (1943, p. 169), não uma bibliografia, mas um catálogo de uma biblioteca: (...) Parece, antes, o producto do labor de toda uma parceria que por meio século houvesse servido no Ministerio dos Negocios Estrangeiros, do que o fructo da intelligencia de um único homem, mesmo que se reconheça nesse homem o privilegio de cerebração superior alliada á capacidade extraordinária para o esforço physico21.

Afora o que já foi citado, cabe assinalar o seu decisivo papel na cartografia brasileira. Segundo Goycochea (1943, p. 171), antes de Duarte Ponte Ribeiro não havia mapoteca; após seus esforços, esta passou a existir segundo um projeto dele, pautado num esforço individual que o acompanhou em toda sua carreira, viagens, contatos, pesquisas Goycochêa (1943, p. 174) observa que a maior parte da obra registrada por Duarte Ponte Ribeiro ocorreu após a aposentadoria deste, em 1853; até então ele tinha produzido 45 célebres memórias; com a aposentadoria, entre aquele ano e 1876, produziu 140 outras memórias e mais as encontradas na doação da viúva em 1884. 20 Cabe aqui registrar uma insuficiência do trabalho, qual seja, não foi possível ter acesso à data exata da morte do diplomata. Há diferentes versões que neste texto reproduzo. Porém, segundo recente número da revista Nossa História, novembro de 2005, ao retratar a vida e obra do barão de Rio Branco, certifica que Ponte Ribeiro faleceu em 1878. 21 E continua Goycochêa (1943, p. 169): “... Dado o caracter reservado que teem esses trabalhos, ninguém fóra do Itamaraty, lhe conhece os textos. A julgar, todavia, pelos títulos com que figuram na relação divulgada em opúsculo com 67 paginas, onde não ha uma linha de literatura e nem o menor espaço inaproveitado, são elementos da mais alta transcendência internacional, porque dizendo com as relações do Brasil com todos os povos hispanos-americanos, não apenas sobre terras em litígio, como sobre a política interna de cada qual, pré-historia, história, geographia, economia e finanças, navegação dos rios e lagoas, vias de comunicação e assumptos outros com interesse subido...”. Em seguida, há um ponto controvertido no texto, pois embora ele date a autoria do documento para maio de 1873, Goycochêa afirma que a primeira memória é referente ao estado, em 1832, das repúblicas do Pacífico, e a última data de 1876 sobre a resenha dos acontecimentos relativos às divisas entre a Guiana Brasileira (sic) e a Guiana Francesa. Enfim, é todo um material sobre a formação territorial brasileira e as circunstâncias das relações do Brasil com os países vizinhos, que sustentou os nossos pleitos em termos de fronteira. 19

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em bibliotecas estrangeiras etc. E foi ele que teve decisiva atuação na confecção do mapa do Império de 1875, três anos antes de seu falecimento22.Esse mapa representou à época o que havia de mais atualizado e avançado no reconhecimento de nossas fronteiras internacionais23. Em resumo, seguindo as palavras de Goycochêa (1943, p. 139): De tal modo, de facto, o nome de Duarte da Ponte Ribeiro está ligado á construcção da moldura que enquadra o paiz, depois da Independência, que nenhum outro se lhe avantaja, quer na pluralidade dos esforços, quer quanto á expressão do que praticou, delle podendo-se dizer que representou no Imperio o papel que teve Alexandre de Gusmão no periodo colonial e Rio Branco na éra republicana do Brasil24.

Tal afirmação decorria da constatação de que o Brasil, após a sua independência, passava pelo sério desafio de fazer reconhecer suas fronteiras não com apenas um país, mas com dez, a saber: França (Guiana), Holanda (Guiana), Inglaterra (Guiana), Venezuela, Equador (sic), Nova Granada (depois Colômbia), Peru, Bolívia, Paraguay, Argentina e Uruguay (Goycochêa, 1943, p. 140). Cada limite territorial estava a exigir um modo próprio de atuar, e toda esta empresa, a de dirimir dúvidas sobre as divisas com os países limítrofes, ocorreu, também, durante o Império no qual a farta documentação provida por Duarte da Ponte Ribeiro foi decisiva para contornar as disputas.

Conclusões Ao estudarmos a vida de Duarte da Ponte Ribeiro sobressaiu a sua personalidade. A tenacidade e o heroísmo de seus atos estão a constituir o segredo do sucesso de sua carreira enquanto diplomata do ImGoycochêa (1943, p. 175) trata do mapa do Império produzido em 1873, no entanto, alguns autores falam de 1875. 23 Este trabalho veio a ser apresentado na Exposição de Filadélfia, sob a responsabilidade do marechal Baurepaire Rohan que, em seu “Relatório Final da Comissão da Carta Geral do Império do Brasil”, entregue em 1878, destacou a importância de Duarte da Ponte Ribeiro em fornecer cartas que remontavam aos primeiros esforços de demarcação de nossas fronteiras a oeste, do século XVIII. 24 Quando passei a tratar com textos antigos em minhas pesquisas recebi a orientação de que deveria reproduzi-los já fazendo correções gramaticais. Sempre resisti a esta orientação. Procuro reproduzir os textos tal como se apresentam, acredito que se mantém uma fidelidade ao documento em que pese o sacrifício da língua portuguesa. 22

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pério brasileiro. Foi a sua forte personalidade que enfrentou os sérios obstáculos inerentes ao exercício das atividades de um diplomata na América do Sul durante o século XIX. As dificuldades não foram pequenas: baixo salário, irregularidade no contrato de seus serviços (ao menos ao início de sua carreira de diplomata), sucessivas viagens, longos afastamentos da família; porém, realizava sua missão pautado exclusivamente em seu talento pessoal. Conjugava, com raro brilho, iniciativas no campo político com aquelas voltadas à reflexão. Combinava, sucessivamente, tempo para as tertúlias e às conversações árduas etc. com um incansável movimento de reflexão a ponto de realizar memoráveis relatórios sobre os mais diversos temas, particularmente sobre os principais atores da cena política sul-americana desde 1830 até sua morte! Afora estes aspectos singulares da trajetória de Duarte da Ponte Ribeiro, o que nos chama a atenção é que a geografia residia na pessoa, ou seja, a pesquisa geográfica, a produção de relatos sobre a geografia brasileira estava pendente não de uma instituição, com pessoal organizado, regiamente pago, com secretárias etc. Absolutamente não. A reflexão sobre a geografia brasileira, tamanho de seu território, maneiras para melhor defendê-lo etc. passava, necessariamente, pela “coincidência” de se encontrar quadros que se dispunham à pesquisa e a adquirir material, não raro à custa de suas próprias expensas. Outro aspecto a considerar, em claro contraste ao nosso tempo da internet, e-mail, homepage etc., é a existência de outro tempo no período de Duarte da Ponte Ribeiro, ou seja, as viagens duravam semanas, os meios de locomoção eram os mais precários, o correio... e mesmo assim não podemos julgar, de modo algum, que a vida e o trabalho de Duarte da Ponte Ribeiro tenham sido dos mais monótonos! As guerras, as disputas políticas aconteciam, porém, num tempo muito mais moroso, gradual, ritualizado em largos passos; isto, de certo modo, ajudava na decantação da reflexão dos que se ocupavam em refletir sobre o que ocorria. Ademais, acrescentaríamos ainda as vicissitudes do cargo, seu trabalho usualmente ficava pendente de humores dos principais da Corte, que ora contava com seus esforços, ora o dispensava sem a menor cerimônia. Deste aspecto sobressaiu a tenacidade desse homem que forjou ao longo do tempo as bases que tanto facilitariam os trabalhos do barão do Rio Branco no reconhecimento jurídico de nossas fronteiras pelos países vizinhos. Quando nos deparamos com o porte de Duarte da Ponte Ribeiro nos vem à mente que a memória do Institu98

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to do Itamarati esteve, em sua origem, pautado na sua ação25! Uma memória que se mostrou fundamental na resolução dos conflitos de fronteiras com países vizinhos sem derramamento de sangue. Neste sentido, a geografia serve, também, para fazer a paz26!

Fonte de dados Bibliografia GUIMARÃES, Argeu.Diccionario Bio-Bibliographico Brasileiro de Diplomacia, Política Externa e Direito Internacional, J a Z. Rio de Janeiro, 1938, pp. 394-395 (Palácio do Itamaraty-RJ). CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, 1971, pp. 387-411. GOES, S. S. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Brasília: IPRI, 1991. GOYCOCHÊA, Castilhos. Fronteiras e fronteiros. “O fronteiro-mor do Império”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943, pp. 138-179. LACOSTE, Yves. Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Trad. Maria Cecília França. Campinas, SP: Papirus, 1988. RIBEIRO, Duarte da Ponte. Parecer. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RJ). T. XVI, 1853. ______. Exposição dos trabalhos históricos, geográficos e hidrográficos que serviram de base à Carta Geral do Império. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876. ______.As relações do Brasil com as repúblicas do Rio da Prata. Rio de Janeiro: s.n, 1936. SOUZA, José Antonio Soares de. Um diplomata do Império (Barão da Ponte Ribeiro). São Paulo: Cia. Editora Nacional. Biblioteca Pedagógica Brasileira, série V, vol. 273, 1952.

Documentos Arquivo Histórico do Itamaraty. Parte III – 34 – Arquivo Particular – Barão da Ponte Ribeiro (Duarte da Ponte Ribeiro). Apresentação do embaixador Maurício Nabuco. Arquivo Histórico do Itamaraty, 1965. Correspondências particulares e oficiais. Parte III – 34, Barão da Ponte Ribeiro. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. O acervo de documentos do Barão da Há uma expressão inglesa que denota o caráter épico da trajetória de algumas pessoas, a saber: self-made man, ou seja, aquele que se fez sozinho; porém, no presente caso, trata-se da constituição da memória do futuro Instituto Barão do Rio Branco pautada numa pessoa! Algo, aliás, característico na origem da formação do Estado brasileiro, qual seja, a eficiência da instituição pendente dos talentos, humores e pendores das pessoas que a lideravam! 26 Uma clara alusão à obra de Yves Lacoste – A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra (1988). 25

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Ponte Ribeiro [Livro] / Isa Adonias. Rio de Janeiro: [s.n.], 1984, xxi, 91 p.: il., ret., fac-similes; 22 x 31 dm “Centenário de sua incorporação aos arquivos do Ministério das Relações Exteriores (1884-1984). Bibliografia: p. 89-91 BNB84 ISBN 85-85907-01-9 (broch.) Catálogo de Mappas que possue a Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros. Organizado com a respectiva classificação e anotações pelo Conselheiro Barão da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & Laemmert. Rua dos Inválidos 71, 1876. Coll. D. Thereza Christina Maria da Biblioteca Nacional (RJ). Exposição dos trabalhos históricos geographicos e hydrographicos que serviram de base à Carta Geral do Império. Exhibida na Exposição Nacional de 1875 pelo Conselheiro Barão da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1876 (Biblioteca Nacional). Sic – 981, (Iconografia, Biblioteca Nacional-RJ) I. Ponte Ribeiro, Duarte da Ponte Ribeiro, Barão de, 1795-1878 – Arquivos II. Brasil. Ministérios das Relações Exteriores – Catálogos III. Brasil – História – Fontes IV. Adonias, Isa. V. livros, manuscritos, mapas [271212].

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A Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro1 Apresentação Quando recorremos à obra de Fernando de Azevedo – As ciências no Brasil – na intenção de melhor conhecer a evolução da geografia brasileira (capítulo VII, escrita por José Veríssimo da Costa Pereira), não deixa de ocorrer um contraste entre o que o texto apresenta sobre a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e a dinâmica que esta tem ao lermos as atas de suas reuniões e os boletins que publicava2. No material consultado verifica-se uma vitalidade que cabe ser melhor conhecida. Neste sentido, o presente trabalho, pautando-se pelo material encontrado nos anuários da entidade, visa fornecer subsídios aos que estudam a Geografia no Brasil . A origem No dia 25 de fevereiro de 1883, ao meio dia, um dia ensolarado de domingo, em pleno verão carioca, distintos senhores do Império se reuniram para, em apenas meia hora, fundar a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. A sessão contou com a presença de pessoas ilustres à época, e esta foi precedida por reuniões preparatórias no intuito de se promover tal sociedade. Recorrendo às primeiras atas da sociedade podemos encontrar no Boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, tomo I, nº. 2, 2º trimestre, anno de 1887, a Acta da sessão de fundação, p. 177: Aos 25 dias do mez de Fevereiro do anno de 1883, às 12 horas do dia, reunidos em uma das salas do edificio da escola publica de freguezia de Nossa Senhora da Gloria, à praça do Duque de Caxias, Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem ano 1, n. 1, janeiro/junho de 2002. 2 O material consultado foi encontrado no arquivo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro que após ser encadernado, para melhor preservação, recebeu uma numeração de páginas distinta do original. Para efeito de melhor localização do material consultado, mantivemos a numeração utilizada pelo IHGB. 1

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os Srs. senadores Manoel Francisco Correia, Henrique Beaurepaire Rohan, Alexandre Affonso do Carvalho, ...1 p. 178 ... S. Ex, o sr. Presidente declarou, que o objecto da reunião era, à vista do que vai abaixo transcripto, a fundação de uma sociedade de geographia. Este convite é do theor seguinte: - Dezejando os abaixo assignados fundar n’esta cidade uma sociedade de geographia, à similhança das que existem em quazi todas as cidades importantes, vem rogar a V. Ex., no cazo de adherir a este propozito, se digne comparecer no domingo 25 do corrente, às 12 horas do dia, no...2 p. 179 S. Ex. o Sr. prezidente declarou fundada a Socieade de Geographia do Rio de Janeiro, e não havendo mais nada a tratar-se, levantou a sessão ás (sic) 12 ½ horas.

Temos, a seguir, uma relação de episódios, tendo por base o mesmo boletim aqui utilizado, que demarcam os primeiros passos da entidade: p. 180 1ª sessão preparada em 15 de abril de 1883, com eleição da 1ª diretoria provisória. Presidência do Sr. Conselheiro Manoel Francisco Correa. p. 181 2ª sessão em 20 de maio de 1883. Presidência do Sr. Conselheiro Tristão do Alencar Araripe. p. 182 3ª sessão preparada em 27 de maio de 1883, Prezidencia (sic) do Sr. Vinconde do Paranagua3. p. 183 4ª sessão em 3 de julho Prezidencia do Sr. Vinconde do Paranagua. Na leitura do material pudemos constatar a presença de mais de 38 cavalheiros, entre eles, pela linguagem da época: Alfredo d’Escragnole Taunay, Barão de São Francisco, Barão de Tefé, Luiz Rafael Vieira Souto, Fernando Mendes de Almeida, André Gustavo Paulo de Frontim, commendadores, tenentes, dezembargadores, sob a prezidencia de Manoel Francisco Correia. Na avaliação do Sr. Dino W. Cozza, conforme entrevista em 13/10/00, profundo conhecedor da sociedade e possuidor de cópias de todas as atas da mesma, havia uma clara busca por poder político. Se isto não era benéfico à geografia, imediatamente, o seria para a sociedade. 2 Cabe frisar, conforme ainda o Sr. Dino W. Cozza, neste mesmo local da reunião ocorriam As Conferências do Glória, que tratavam de diferentes temas, além do geográfico. 3 Embora não tivesse sido o primeiro presidente, o primeiro fora indicado no próprio dia 25 de fevereiro, ele, em pouco tempo, assumiu o posto e foi um dos seus principais impulsionadores. À época, ele tinha destacado papel no Império; amigo de D. Pedro II, chegou a ser conselheiro do Imperador no ministério. Em Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, tomo II, anno 1886, 1º boletim, p. 258, consta que o Visconde de Paranaguá veio a ser presidente do Conselho dos Ministros e senador do Império. 1

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p. 184 5ª sessão 10 de junho Prezidencia do Sr. Vinconde do Paranagua. p. 185 6ª sessão em 17 de junho Prezidencia do Sr. Vinconde do Paranagua. p. 186 7ª sessão com um de julho Prezidencia do Sr. Vinconde do Paranagua. p. 187 8ª sessão com 8 de julho Prezidencia do Sr. Vinconde do Paranagua.

Após estes trabalhos, é então definida uma Assembleia Geral que veio a ser realizada em setembro de 1883. Nesta, o então presidente senhor visconde do Paranagua, que contou com a presença de 29 pessoas, lembrou, conforme p. 188 do Boletim ora utilizado: ... a conveniencia da inscripção de senhora como socias, e submete uma proposta á consideração da assembléia. Essa proposta, depois de sobre ela orarem o Sr. prezidente, Octaviano Hudson, Alencar Araripe, Luiz Alvares, Licinio Barcellos, Pereira de Campos, Aleixo Gary e conselheiro Henriques foi adiada, sendo nomeada uma comissão composta dos Srs. Conselheiro Henriques e Affonso de Carvalho e Dr. Parreira do Campo, para interpor parecer4.

Em seguida, p. 188 em diante, foi eleita uma direção e as seguintes comissões de estudo –geographia physica, geographia politica, geographia mathematica e do americanista – assim como o estatuto, que se segue: capítulo I Art. 1 Fica fundada na cidade do Rio de Janeiro uma sociedade com a denominação de Sociedade de geographia do Rio de Janeiro tendo por fim o estudo, discurso, investigação, e exploração scientifica da geographia nos seus differentes ramos, princípios, relações, descobertas, progressões e aplicação; e como especialidade o estudo e conhecimento dos factos e documentos concernentes à geographia do Brazil. Art. 2. A sociedade preencherá os fins indicados no artigo antecedentes por meio: De sessões, conferencias, preleções, congressos scientificos, investigações, viagens, etc.; 2. De publicação, archivos, bibliothecas, museus e correspondenEsta proposta do então presidente à época foi pioneira, pois a participação feminina costumava ficar restrita aos eventos sociais. 4

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cia ou relação com outras socieadades ou gremios geographicos nacionaes ou estrangeiros ... p. 197 Art. 28 A receita da sociedade consistirá: 1. Nas mensalidades, joias e remissões dos socios effectivos 2. No produto dos exemplares dos estatutos, regulamentos, prelecçãos, conferencias e quaesquer outros trabalhos da socieadade, que forem impressos; 3. Nos donativos feitos á sociedade; 4. Logo que a somma em seu poder, deduzido a necessaria para as despezas, excede de 200$000, a recolherá a um banco, podendo realizar a compra da apolices logo que haja para esse fim quantia disponível.

Um elemento que auxiliou a realização da ideia da sociedade foi a própria proximidade física das pessoas envolvidas, ou seja, a entidade ficava próxima das moradias das pessoas diretamente interessadas. O prédio ocupado para as reuniões é o que corresponde, atualmente, ao prédio da escola Amaro Cavalcanti (no largo do Machado, então conhecido como praça Duque de Caxias, onde havia uma estátua de Duque de Caxias)5. Porém, ao par deste aspecto, há outros assinalados pelo senhor Dino Willy Cozza. Este, em sessão magna da entidade, que agora tem o nome de Sociedade Brasileira de Geografia, afirmara no dia 25 de fevereiro de 1997, data do 114º aniversário da sociedade: Não é demasiado recordar as vantagens, que resultam em geral do estabelecimento de sociedades deste gênero; principalmente nos países como o Brasil (...)O Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico Brazileiro que se acha instalado nesta Côrte desde o ano de 1838, muito tem comparado para a elucidação de diferentes assuntos concernentes à geografia do império; porém, a complexidade dos seus fins, e principalmente a maior concentração da sua atividade nos estudos históricos deixam manifesta a conveniência de se confiarem aqueles assuntos a uma associação especial que deles cogite expressamente.

Segundo o senhor Dino W. Cozza, havia reuniões regulares aos domingos, até por uma questão de comodidade, pois se dava após a missa e um pouco antes do almoço, sem recebimento de espécie pecuniária alguma; já as eleições e reuniões ordinárias ocorriam durante a semana às 19 horas, antes do jantar. 5

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A Seção da Sociedade de Geographia de Lisboa6, instalada em 1878 nesta Côrte, como filial à daquela capital, preencheria por si plenamente os fins acima expostos, se não subsistisse a circunstância de ser apenas uma seção da Sociedade de Geographia de Lisboa7. (...) A mais antiga sociedade de geografia é a de Paris, cuja fundação remonta a 1821. À fundação da Socieade de Geografia de Paris seguiram-se as de Berlim, em 1828; de Londres, em 1830; de Bombaim, em 1831; de Franckfurt-sobre-o-Meno (sic), em 1836; o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1838; do México, em 1839; de São Petersburgo, em 1845; outras seguiram-se em Nova York, Viena, Gênova, Turim, Florença, Munique, Lisboa, e finalmente Rio de Janeiro8.

Assim, a nova instituição brasileira procurava diferenciar-se do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ao enfatizar a perspectiva geográfica em seus estudos, além disto, procura-se criar uma instituição nacional, não pendente do que pudesse ser veiculada pela seção portuguesa9. Neste sentido, cabe destacar a própria ação favorável do então imperador D. Pedro II que, ao frequentar a Sociedade de Geografia de Paris, costumava ser arguido ao porquê da inexistência de uma sociedade de igual característica no Brasil. Assim, segundo o nosso entrevistado, que é sócio da Sociedade de Geografia de Paris, D. Pedro II teve decisiva importância na gestação da sociedade, tendo inclusive ocorrido algumas reuniões da Sociedade no próprio Paço Imperial, localizado na Praça 15. Consta que suas participações implicavam em sabatinar diferentes membros da sociedade, ou então Grifo nosso. Segundo entrevista com o Sr. Dino W. Cozza, era estatutária à sociedade lusitana ter seções espalhadas no mundo. Dada a importância que Portugal dava à seção no Brasil, a mesma era presidida pelo embaixador de Portugal no Brasil. A seção criada em 1878 despertou grande interesse junto aos mais cultos da época, sendo então uma grande honra pertencer a esta sociedade; havendo, inclusive, quem destacasse em cartões de apresentação o seu vínculo com a respectiva sociedade lusitana. Nas palavras do Sr. Dino W. Cozza, esta inserção poderia ser considerada como uma espécie de “título”. 8 O que chama a nossa atenção nos nomes desta sociedade vem a ser a sua denominação vir acompanhada pelo nome da cidade-sede da entidade... cidades estas, em sua maioria, com forte função portuária! 9 Segundo apreciação do Sr. Dino W. Cozza, teria ocorrido à época um surto nacionalista que teria impulsionado a criação da sociedade. Diante da indagação se teria ocorrido algo especial para ter ocorrido este surto, o Sr. Dino W. Cozza observou que a iniciativa decorreu de uma natural busca de maior autonomia nos estudos sobre o Brasil. 6 7

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solicitava que um ou outro apresentasse um dado tema na reunião seguinte10. Em 1885, foi publicado pela primeira vez o Boletim da Sociedade, cujos poucos exemplares ainda podem ser encontrados no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e outros na Biblioteca Nacional.

As iniciativas da Sociedade nos seus primeiros dez anos É possível notar várias tentativas no sentido de fazer divulgar as informações disponíveis sobre o Brasil. Chamando pessoas de destaque, reproduzindo textos sobre as diferentes partes do Brasil, e muito particularmente os hábitos indígenas e suas formas de comunicação. Inclusive, consta a proposta de se melhor homogenizar a língua falada no Brasil a partir de normas mais precisas. Bendegó Entre as várias iniciativas poderíamos destacar o transporte do meteorito Bendegó, encontrado as margens do rio Bendegó (Bahia), em direção à Corte. Hoje, o meteorito pode ser encontrado no Museu Nacional. Em passagem encontrada na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, tomo V, 4º boletim, anno de 1889, p. 263, temos: Apresentação em assembléia geral de 19 de dezembro de 1889 pelo thesoureiro de Sociedade Commendador Oliveiro Catramby. A Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, realizou um dos seus grandes intentos, qual o de fazer conduzir dos sertões do Estado da Bahia para a capital federal o famoso meteorito de Bendegó, tendo concorrido com todas as despezas o distincto consórcio benemérito, Exmo. Sr. Visconde de Guaby.

Elisée Reclus Outro aspecto que nos chamou a atenção foi a forte preocupação de se manter correspondência com as diferentes instituições geográficas, assim como o de trocar boletins informativos e promover visitas. Neste sentido, destaca-se a visita de Elisée Reclus à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Quanto à importância de D. Pedro II para a evolução das próprias instituições acadêmicas brasileiras cabe consulta à Silva (1991). 10

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Na Revista da Sociedade, tomo IX, anno de 1893, 1º e 2º boletim (p. 32) consta a seguinte passagem sobre a visita do geógrafo francês: Sessão extraordinaria da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro em honra ao sabio geographo frances. No dia 18 de julho de 1893, sob a presidencia do Sr. Marquez do Paranagua, e achando-se presente os Srs. Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, capitão de Fragata Francisco Calheiros da Grança ... e muitos assistentes, é aberto a sessão, tomando assento o Sr. Elisée Reclus ao lado do Sr. Presidente. Depois do expediente, o Sr. Presidente pronuncia o discurso (adiante publicado), apresentando aos socios da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro o notavel geographo que se acha ao seu lado, conferindo-lhe o diploma de socio honorario, e presenteando-lhe com a collecção de revista da sociedade, o relatorio da Exposição de geographia sul-americana, o catalogo da bibliotheca e o archivo, o relatorio sobre o Meteorito de Bendegó, e outras empresas. O Elysée Réclus agradece o acolhimento, que lhe esta dispensando a Sociedade de Geographo (sic) do Rio de Janeiro, e prenuncia um discurso, de que adiante daremos noticia, refererindo-se às impressões, que lhe tem causado o Brasil nas suas viagens...

Dicionário histórico-geográfico brasileiro É possível lermos ainda o esforço do professor Moreira Pinto para editar seu dicionário histórico-geográfico brasileiro, cujo exemplar pode ser atualmente encontrado no Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Pelas atas da sociedade, verifica-se o seu esforço em enviar missivas para as diferentes províncias no intuito de obter das mesmas subsídios para editar e divulgar a obra. Na 26ª sessão, em 16 de março de 1885, consta a nota abaixo encontrada no tomo II, anno de 1886, Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, p. 57. Presidencia da Provincia de Alagoas, Paraphyba do Norte e Santa Catharina, accusando os officios desta Sociedade, em que solicita um auxilio para a impressão do Dicionario Geographico do Brazil, confeccionado pelo Bacharel Alfredo Moreira Pinto, e declarando aguardar a proxima reunião da assembléia legislativa provincial.

Na 27ª sessão, em 30 de março de 1885, consta no mesmo volume consultado acima, p. 58, a acusação de novos ofícios com o mesmo intento: Período Imperial 107

Dos Presidentes das provincias do Ceará, Goyaz, Maranhao, Pernambuco e Rio Grande do Sul, accusando os officios desta Sociedade, solicita um auxilio para a empressa do Diccionario Geographico do Brazil...

A expedição dos militares patrocinada pela Sociedade visando Mato Grosso Já na 27 ª sessão da sociedade, em 30 de março de 1885, consta: Dos Srs. José Maximiano Lagos e Ernesto de Lellis França, propondo-se fazer diversas explorações, sahindo a Cuyabá procurando a cordilheira directa ou esquerda da Serra Azul e d’alli descer margeando o rio Xingú ou affluente do rio Tapajóz em demanda do Oceano Atlantico até o Grão-Pará. Ficou adiado para ser tomado em consideração, em occasião opportuna11.

Na época, ocorria convites a sucessivos viajantes que tendo percorrido o interior do Brasil relatassem as suas impressões. Neste aspecto, chama especial relevo as discussões que existiam, à época, de se comunicar a região de Mato Grosso com o Pará, no intuito de se quebrar o isolamento daquela região, que costumava ser acessada através da Bacia do Prata12. Em passagem encontrada no Boletim da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, Tomo 1, nº 3, 3º semestre, 1885, consta na pág. 233 a memória da exploração do rio Xingu pelo Sr. F. A. Pimenta Bueno. Na pág. 235 observa-se que a Sociedade, em 3/12/1884, recebeu os membros da expedição estrangeira que desceram o rio Xingu desde suas cabeceiras até o rio Amazonas, liderada pelo Dr. Carlos Von dem Steiner (sic). Na pág. 259, do mesmo volume organizado pelo IHGB verifica-se: O Alto Madeira e sua ligação ao Mamoré. Discurso proferido pelo commendador Julio Pimbras, ex-engenheiro em chefe da commissão de estudos de viação férrea do Madeira e Mamoré, em presença de S. M. o Imperador, S. A. Real, o Conde d’Eu, S.Ex., o Sr. Dr. João Francisco Velardo, ministro da Bolívia; e grande numero de senadores e deputados, profissionais e socios, In:Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, tomo II, anno 1886, p. 59. Coleção IHGB. 12 Cabe frisar que as sequelas da Guerra do Paraguai (1865-1870) ainda encontravamse vivas nas memórias dos políticos. Deste modo, procurava-se evitar o uso da Bacia do Prata como meio de acesso ao Mato Grosso e adjacências. 11

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na sessão extraordinária de 14 de agosto, presidido por S. Ex. o Sr. Conselheiro Visconde do Paranaguá.

Na explanação do assunto consta observações no sentido de que se visava integrar Brasil e Bolívia através da via Madeira-Mamoré, sendo que o rio Madeira, um grande tributário do Amazonas, propiciaria uma navegação de 3.000 quilômetros (sic) ! Na pág. 263, consta: São grandes realmente as vantagens que do estabelecimento dessa comarca se pode esperar.Elas são de caracter político, estratégico, administrativo e commercial. Político, porque, creando para a Bolivia a sahida, aliás de unica natural que ella tem, essa via será o laço visivel, palpavel, da união das duas nações. Politico, político (sic) porque desvia o golpe que a Republica Argentina feriu ao commercio do Amazonas e Pará, com a abertura do Rio da Prata para os productos bolivianos. Politico, porque consquistara para o Brazil a aliança offensiva e defensiva que a Bolivia terá de contrahir com aquelle Estado que lhe garanti uma sahida viavel para o Atlantico. ... Ella é administrativa, porque, além de por mais a alcance do governo central a provincia fronteira a Mato Grosso, restitui a essa grande porção de seu território actualmente administrada pela provincia do Amazonas. Ella é de vantagem comercial, porque constitui o commercio de Manaos e do Pará em emporio de commercio boliviano, que attinge a 15.000:000$000 annuaes e dando passagem á maior parte das cargas da Bolivia, apresentará uma receita que largamente compensará no futuro os capitaes nella empregados. Todas essas vantagens e outras offerecera o conjuncto de rios navegaveis de que a Bolivia a Mato Grosso dispoem, uma vez eliminado ou transposto a região encaxoeirada do Alto-Madeira e Baixo-Mamoré e que cobrem um milhão de kilometros quadrados, com um desenvolvimento de 4.000 kilometros para a navegação a vapor, como passao a demonstrar ...

A expedição dos militares Já na sessão extraordinária de 2 de março de 1888, sobre a presidência do visconde do Paranaguá e presença do senhor conde d’Eu e do ministro da Guerra, consta na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, tomo V, 3º boletim, ano de 1889, p. 194:

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Do Sr. Coronel Pêgo Junior, como effectivos, os Srs. capitão Antonio Lourenço Telles Pires, Drs. 1º tenente Augusto Ximenes Villeroy, 2º tenente Oscar de Oliveira Miranda e 1º tenente José Carlos da Silva Telles. Annunciando-se a chegada de sua Alteza o Sr. Conde d’Eu, que é recebido com as devidas formalidades, obtida a venia, o Sr. Presidente abre a sessão, dizendo que vai apresentar á sociedade os distinctos conferentes que pretendem, sob a responsabilidade desta associação, fazer uma viagem de exploração em diversos rios da província de Matto Grosso; que todas comprehendem bem a importancia desta commissão, pela honra que resulta para a sociedade que consta apenas cinco annos da existencia, e tem sido para o paiz de grande utilidade Não precisa declarar á Sociedade, que os distintos chefes de tão importante viagem são dignos brasileiros que muito enobrecem a classe militar brasileira. Consta que o Governo Imperial prestara todo o seu auxilio a esses novos, cujo fim é tornar conhecida a geographia de nosso paiz. Segue-se a conferência ...

Enquanto a passagem acima retrata o encontro propriamente dito da comissão com o governo imperial, em artigo da redação da revista da sociedade, consta uma espécie de resumo do papel da comissão em tomo IV, 2º boletim, ano 1888, p. 121: A Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, que acaba de ver coroada a sua obra de ser transportado para o Museu Nacional o meteorolitho de Bendegó, iniciou nova campanha, aproveitando a espontaneidade e a intrepidez de tres dos seus membros, distinctos officiaes do exercito brasileiro, que se propõem explorar a parte, ainda desconhecida, do territorio de Matto Grosso. São os quatro officiaes os Srs. Capitão Antonio Lourenço Telles Pires, 1ºs.Tenentes Augusto Ximenes de Villeroy e José Carlos da Silva Telles e 2º Tenente Oscar de Oliveira Miranda. Ao primeiro, como chefe da commissão militar, dirigio o digno Presidente da Sociedade de Geographia, o Exm. Sr. Marquez de Paranaguá, o seguinte officio: ‘A Socieade de Geographia do Rio de Janeiro, attendendo a diversas duvidas que pairam sobre varios cursos fluviaes da Provincia de Matto Grosso, resolveu, com permissão do Governo Imperial, encarregar V. S. da elevada missão de ir no proprio terreno certificar-se da verdade. 110

Aspectos históricos da geografia brasileira

Acompanham-n’o nesta expedição os 1º Tenente Augusto Ximenes de Villeroy e 2º Tenente Oscar de Oliveira Miranda. A exploração, que ora lhe confia, tem por ponto inicial a cidade de Cuyabá, para onde se dirigirá em um dos primeiros paquetes de Julho proximo; dahi seguirá por terra em busca das vertentes do rio das Piavas, considerado como mais meridional das fontes do rio Paranatinga; deverá percorrer o primeiro, seguir depois o curso deste até o rio S. Manoel, por onde demandará o rio Tapajoz ....’ (segue-se pp. 122 até 127).

Iniciados os trabalhos pela expedição, conforme material encontrado nas revistas da sociedade encontradas no IHGB, tomo V, 2º boletim, ano de 1889, nós temos a seguinte passagem que os caracteriza (pp. 100-101): Da commissão de exploração que se acha em Matto Grosso houve noticia até o mez de Maio ultimo. Foram iniciados alguns trabalhos nas cabeceiras do rio Paranatinga, que distam 45 leguas de Cuyabá, e esperava a commissão o mez de Junho para proseguir nas suas explorações nesse rio e em outros de que já deu noticia o 4º boletim, tomo IV, da nossa Revista. Em todo o tempo decorrido desde que a commissão chegou a Matto Grosso, têm sido feitas observações meteorologicas em Cuyabá, Tres Barras, Caxipó, Estiva, Ponte Alta, Lagôa Formossa, Lagôa Comprida, Fazenda de S. Manoel, confluencia dos rios S. Manoel e Paranatinga e porto de Paranatinga. Ao mesmo tempo tem sido levantada a planta de toda a zona percorrida pela commissão, e effectuadas varias observações astronomicas. As seguintes cartas do Sr. EngenheiroMilitar Augusto Ximem de Villeroy ao Presidente da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro fornecem mais alguns esclarecimentos sobre os trabalhos effectuados pela commissão13. ‘Cuyabá, 10 de Março de 1889. - Illm. e Exm. Sr. - Tenho a honra de enviar a V.Ex. as observações meteorologicas effectuadas durante os mezes de Outubro, Novembro e Dezembro ultimos nos diversos lugares, onde esteve a commissão de que faço parte.’ ‘As observações relativas ao primeiro trimestre do corrente anno, serão enviadas á V. Ex. logo que eu tenha tempo de organisar os respectivos boletins. Na mesma occasião remetterei á V. Ex. a planta de toda a zona percorrida pela commissão, bem como o resultado das observações astronomicas effectuadas.’ 13

Grifo nosso! Período Imperial 111

‘Participo á V. Ex. que nesta data remetto ao Museu Nacional uma collecção de artefactos indigenas, que foi offerecida pelo Sr. Alferes Luiz Perrot.’ ‘Participo mais a V. Ex., que no dia 12 do corrente parto para a colonia de indios da tribu dos Coroados, de S. Lourenço. Aproveitarei esta opportunidade para levantar a carta do curso superior do rio S. Lourenço e seus afluentes.’ ‘S. Ex. o Sr. Presidente desta provincia encarregou-me de examinar a referida colonia, bem como a de Santa Isabel, e de apresentar um plano de estradas de rodagens entre esta capital e as referidas colonias. De todos os meus trabalhos enviarei minucioso relatorio á V. Ex.’ ‘Em Maio proximo estarei nesta capital, á espera dos outros membros da commissão para continuar os trabalhos iniciados ne (sic) rio Paranatinga. ‘Deus guarde a V. Ex. - Illm. e Exm. Sr. Senador Conselheiro Marquez de Paranaguá, Presidente da Socieade de Geographia do Rio de Janeiro. - O Engenheiro, Augusto Ximem de Velleroy.’ A segunda carta, datada de 17 de Maio, confirma as noticias da primeira, e acrescenta as seguintes:14 ‘Conforme participei a V. Ex. fui ao alto de S. Lourenço, onde estudei de perto os indios Bororós-coroados: infelizmente soffri fortes accessos de febres, o que obrigou-me a voltar a esta capital antes do prazo que eu me fixara.’ ... ‘Não obstante, além das observações que fiz, consegui organizar uma pequena grammatica da lingua fallada por aquelles selvagens, um vocabulario muito extenso e uma collecção completa de todos os productos da sua industria, armas de guerra, instrumentoo de caça e pesca, adornos diversos, utensilios domesticos, e de tudo tenho especimes.’ ‘Espero meus companheiros para proseguir nos trabalhos da exploração.’

Para maiores detalhes da expedição, com missivas e diários de viagem de alguns dos participantes da comissão, consta o tomo VI, ano de 1890, 3º e 4º boletins, que apresentam uma copiosa matéria. A seguir, deixaremos as informações dos boletins em favor do diário da família Miranda. 14

Grifo nosso.

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Aspectos históricos da geografia brasileira

O diário do Sr. Miranda A família Miranda nos possibilitou a vista do relatório de viagem do senhor Oscar de Oliveira Miranda. Este escreveu no diário as aventuras e agruras de sua viagem em direção ao Mato Grosso, partindo do Rio de Janeiro de navio15. Assim, o que se segue, é uma leitura que possibilita um maior detalhamento ao que foi encontrado no IHGB. 1º diário do Sr. Oscar de Oliveira Miranda - período de 17 de junho de 1888 / 20 de setembro de 1888 Partem do Rio de Janeiro no dia 17 de junho, a bordo do “Rio Paraná”. A viagem é morosa, permeada por sucessivas paradas dada à forte cerração que ocorre no trajeto. A expedição era conhecida por diferentes autoridades, não faltando ocasião do grupo de exploradores vir a ser congratulado por políticos, quando o navio em que estava se via levado a parar num dado porto para abastecimento16. Nota-se, pelo diário, a precariedade dos meios utilizados para prosseguir viagem em direção à Bacia do Prata, pois havia um cuidado de não se afastar da costa litorânea. No dia 25 de junho chega a Porto Alegre e só sai desta cidade no dia 11 de julho a bordo do “Rio Pardo”. Na seqüência das diferentes etapas da viagem há sempre o cuidado de se medir a temperatura do local e a sua pressão do ar . Numa barra, conhecida por São Gonçalo, eles voltam a trocar de navio - “Rio Grande” - já em direção a Montividéu (sic), isto em 14 de julho. Dois dias depois chegam em Montividéu, onde tomam outro navio, o “Rio Negro” em direção a Corumbá (Mato Grosso). Nestes constantes deslocamentos, já é possível notar a precária saúde do Sr. Oscar de Miranda, usando, sucessivamente, diferentes produtos químicos (entre eles arseniato de sódio) para combater enxaqueca, vômito, febre, mal no estômago etc. Tendo chegado no dia 16 de julho, em Montividéu, já no dia seguinte parte, e, em cinco horas, saem do rio Uruguai e adentram o rio Paraná. No dia posterior (dia 18 de julho) chegam a Rosário, onde desembarcam para uma breve estadia, sendo que a cidade tivesse então Cabe assinalar que o diário corresponde ao tempo de viagem do senhor Miranda, com as devidas interrupções, mas isto não indica, necessariamente, o período de execução e respectivos intervalos de toda expedição. 16 Por exemplo, no dia 20 de junho o coronel Fausto, presidente da província de Santa Catarina, adentra a nau para congratular-se com os viajantes. 15

Período Imperial 113

70 mil habitantes (embora considerassem inferior a Porto Alegre), e partem no mesmo dia. A seguir, seguem lugarejos, como La Paz, Passo de San Juan, entre outros, onde ocorrem diferentes peripécias, incluindo o encalhe do navio, a falta d’água e a forma de se mandar as cartas através do favor de quem seguia o rio no sentido contrário (isto quando não era possível deixar a carta em postos localizados nos povoados)17. No dia 23 de julho, saíram do navio “Rio Negro” em favor do “Rápido”, e a medida que avançavam no percurso surgiam lembranças da Guerra do Paraguai, por exemplo, num dado trecho do diário, do dia 25 de julho, consta: 10h 5min Passamos há 15 m numa barranca muito bonita que o prático me disse chamar-se La Terra (margem esquerda), depois deixamos a barranca para navegarmos entre ilhas; estamos perto de Cuevas; me disse o prático que a passagem de Cuevas tem hoje o canal mudado; este prático desceu com o ‘Ivahy’ 4 dias antes da batalha do riachuelo (sic) e disse-me que ainda pouco se via um mastro de ‘Jeque-(58) tinhonna’ (sic) enterrada em um banco de areia18.

A partir do dia 26 de julho, há uma sensível alteração na descrição da flora e fauna, o número de jacarés passa a ser preocupante, assim como, quando passam a trilhar a mata, o receio com as onças. Nota-se ainda a presença de estrangeiros na área (por exemplo, o vapor inglês “Cosmos”, assim como a presença do Dr. Theodor correspondente da “Algmeine Zaitung” (sic) de Angobing (sic), que ia a Cuiabá dado o apoio do governo imperial brasileiro)19. Tendo aportado em Assunção em 27 de julho, partem no dia seguinte, e quatro dias depois chegam finalmente a Corumbá após um mês e meio de viagem! A partir de então, ainda usando o navio, passam a percorrer rios menores, como o São Lourenço e Cuiabá. No dia 7 de agosto, chegam Sobre este aspecto, cabe mencionar a preocupação de Oscar de Miranda com sua mãe, a quem foi endereçada uma série de cartas. 18 No dia 27 de julho, quando chegam a Assunção, Oscar de Miranda chega a evitar ver as ruínas do antigo palácio de Lopes (Solano Lopez). Transparece, ainda, uma notória dificuldade na definição das fronteiras entre Paraguai e Argentina. 19 No dia 30 de julho, em conversa com o grupo, consta que este Theodor era funcionário do Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. 17

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Aspectos históricos da geografia brasileira

a Cuiabá, onde consta no Arsenal de Guerra um observatório meteorológico deixado pelo Sr. Vogel caracterizado por: Um barômetro de Lunar (sic) em caixa no sobrado e no pátio, numa construção de madeira, um pluviômetro, um termômetro de máxima e mínima e mais dois simples, um deles secou e outro ficou molhado; os termômetros são encerrados dentro de uma caixa de zinco; fora desta construção um cata-vento para marcar as direções dos ventos . 20

Além desta passagem, consta no dia 10 de agosto que : Depois do almoço, fui com o Villeroy a casa do Lourenço e dali saímos para irmos eu e Lourenço ao quartel-general onde fui apresentado ao Capitão Leôncio, neto daquele Peixoto que desceu o São Manuel; este senhor nos arranjou um roteiro do alferes Perrot que acompanhou Steinen na segunda expedição (sic).

Pelo exposto, parece que Cuiabá já agregava certa densidade de interesses de modo a concentrar uma armada, uma estação de pesquisa, e uma memória deixada por viajantes que por lá passaram21. E é essa cidade que será o ponto de apoio das expedições do grupo, tendo nela alugado, pela primeira vez na viagem, diferentes casas para a equipe. Entre o período de chegada à cidade de Cuiabá e a partida para o sertão, demoraram algumas semanas recolhendo material22e aglomerando tropas que acompanhassem a equipe vinda do Rio de Janeiro. Finalmente, após vários percalços, a equipe invade o sertão no dia 18 de setembro; é o acampamento das Três Barras (que não fica, porém, muito distante de Cuiabá). Final do primeiro diário. Na passagem do diário do dia 9 de agosto consta que eles iam conhecer “o Laboratório Phy (?) técnico que está sendo montado”(sic). 21 Consta no dia 25 de agosto que o então alemão Theodor, que já tinha proporcionado ao Oscar de Miranda suas anotações de temperatura e pressão de 1886, chegou a mostrar o livro do viajante Steinen (sic) que teria presenteado ao morador da área Sr. Paula Castro. No dia 29 de agosto, consta que um Dr. Mombach mandaria de Buenos Aires suas anotações meteorológicas realizados anos antes. Este mesmo senhor, no dia 31 de agosto, tendo por base os dados barométricos de Cuiabá, calculava que a altitude da cidade de Cuiabá era de 204 metros. No dia 30 de agosto, com o Sr. Paula Castro, este promete ceder ao grupo as anotações astronômicas do Dr. Otto Clauss (sic). 22 Consta no dia 8 de setembro que Oscar de Miranda teria traduzido um escrito do Dr. Mombach sobre o clima do Mato Grosso. Neste mesmo dia chegou uma comissão francesa que veio fazer estudos na província, estando entre eles um filho de Rochefort. 20

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2º diário - 14 de setembro de 1889/27 de dezembro de 1889 Este segundo diário diz respeito às notas de viagem entre Cuiabá e Pará pelo rio Paranatinga, afluente da margem direita do Tapajós. Na comparação deste diário com o primeiro, ele adquire um aspecto mais técnico. Enquanto no primeiro as notas sobre as temperaturas e pressão atmosféricas eram esparsas ao longo do relato, no segundo diário as mesmas adquirem um tratamento mais sistemático, tendo, inclusive, uma preocupação com medidas detalhadas ao longo do dia, o que não ocorria na primeira fase da viagem. Há, inclusive, figuras geométricas representando a variação da agulha da bússola em direção ao azimute magnético de Antares (uma localidade). É deste período que a expedição passa a registrar os dados segundo tabelas nas quais é possível relacionar a temperatura, pressão do ar e a determinação da longitude segundo diferentes locais. Outro aspecto que chama a atenção de sua leitura vem a ser o seu interesse pela população indígena, procurando, assim, melhor conhecer tanto os costumes indígenas23 quanto os hábitos linguísticos; neste tópico, inclusive, consta o esboço de um dicionário da língua dominante encontrado pela expedição. No entanto, há poucas informações sobre o cotidiano da viagem. O diário aborda um período da expedição em que esta avança mata adentro perdendo-se praticamente contato com os povoados. Parece que imperava o silêncio, com diálogos curtos, com atitudes mais técnicas, procuravam cumprir uma missão enquanto militares que eram! As condições eram bem precárias, viviam, basicamente, da caça (cervo, anta etc.). Os riscos não eram pequenos, dado o risco de serem atacados por animais (destacadamente, onça, jacaré e cobra) ou por índios. Parte da expedição era realizada pelos rios e a pé, tendo que assumir o peso de se carregar as canoas24. Consta, por exemplo, no dia 6 de outubro a observação: “Hoje vi como os índios tiram fogo com dois paus; servem-se para isso da madeira do Urucum; fazem uma pequena cavidade em um e noutro uma ponta; esfregam depois a ponta deste na cavidade do outro até que o atrito desenvolvido inflame o pó carbonizado que dele saí, que assim serve de isca”. 24 Nos chama a atenção o fato do diário terminar no dia 27 de dezembro de 1889, ou seja, após o estabelecimento da República do Brasil, e não ser de forma alguma registrada qualquer notícia nesta direção. Naturalmente que isto está relacionado ao próprio isolamento do grupo que adentrava a mata. No entanto, quando lemos as revistas da sociedade disponíveis no IHGB deste período, ocorre-nos a impressão de que a república não ocorreu de imediato, a não ser para poucos (a família real, por exemplo, veio a ser imediatamente afetada pela mudança), e que esta só veio a ser implantada sinuosamente na história brasileira ao longo dos anos! 23

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Aspectos históricos da geografia brasileira

3º diário - 24 de maio de 1889/19 de agosto 1890 É o diário mais breve dos três, tendo característica semelhante ao segundo no que tange às informações de temperatura, pressão, não constando dados sobre longitude; porém é verificada a preocupação de se caracterizar os tipos de nuvens que dominavam a paisagem. O infortúnio desta fase da expedição está marcado pelo falecimento, por afogamento, de um dos principais membros da expedição, o capitão Antônio Lourenço Telles Pires no dia 2 de maio de 1890. Seu rosto é representado em bico de pena pela revista da sociedade no tomo VI, 3º e 4º boletins, p. 113, segundo material encontrado no IHGB.

Conclusão O aparecimento das sociedades de geografia no século XIX costumava estar relacionado a empresas que tinham nos mapeamentos e relatórios meios para realizar seus interesses em áreas pouco conhecidas. Porém, no Brasil, o que parece ter ocorrido foi a deliberação da elite dirigente do Império que tinha uma forte sensibilidade para trazer para o Brasil o que havia de novo nas nações mais ricas, assim como uma necessidade de se reunir informações sobre o país no intuito de ter um melhor quadro informativo sobre o mesmo. A elite dirigente aqui considerada deve ser compreendida à luz daquela época, ou seja, era composta por pessoas que tinham negócios particulares, o próprio presidente da sociedade era um grande fazendeiro, mas que compartilhavam de uma ambiência que se procurava aninhar institucionalmente pessoas que tinham preocupações comuns com o país. A sociedade não tinha uma administração que funcionasse durante o dia. A pesquisa decorria de esforços, na maior parte das vezes individuais, decorrentes de circunstâncias que levavam a este ou aquele ter maiores informações sobre alguns aspectos do Brasil e que eram compartilhados com os pares da sociedade através de conferências ou palestras. Os primeiros membros da entidade não estavam ligados à geografia, não eram geógrafos, nem professores25. Assim, percebe-se que em nome de um termo-geografia se tem todo um projeto de dominação e controle do território nacional através do acesso à informação; e que este acesso se dá ao longo da história Nas palavras do Sr. Dino W. Cozza, eram pessoas que tinham gosto pela geografia, de certo nível social, com nenhum outro interesse que não o de manter a sociedade ativa. 25

Período Imperial 117

brasileira marcada por incidentes, acidentes, iniciativas, rupturas etc. De certo modo, a tirar do papel desempenhado pela sociedade para a publicação do trabalho do professor Moreira Pinto, e também da expedição, temos nela a identificação de uma organização que agencia esforços para determinados fins se valendo de sua capilaridade no campo do conhecimento de pessoas para se obter a satisfação de certos projetos. No entanto, não se pode entender que havia uma política sistemática em prol do reconhecimento e divulgação das informações sobre o território brasileiro. Havia sim, um coletivo irmanado, sobretudo por uma dada condição de classe social, que os possibilitava de praticar uma atividade que diretamente não lhes rendia benefícios monetários, pelo contrário, não poucas vezes os próprios sócios eram instados a apoiar com recursos pecuniários a sociedade para que houvesse uma sequência dos encontros e das atividades.

Apêndice A sociedade, atualmente conhecida como Sociedade Brasileira de Geografia, costuma ter reuniões mensais (na terceira quinta-feira do mês) no Largo de S. Francisco, centro da cidade do Rio de Janeiro, na antiga Escola Politécnica de Engenharia, atual Instituto de Ciências e Filosofias da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem uma sede própria, efetivamente doada, segundo Dino W. Cozza, durante a presidência do senhor João Batista Figueiredo (19791985). Porém, dado o precário estado das suas instalações, o seu acervo bibliográfico atualmente se encontra num depósito da Biblioteca Estadual localizada na Av. Presidente Vargas (Rio de Janeiro). Atualmente, ela encontra-se em sérias dificuldades financeiras, não tendo tido a providência de realizar projetos semelhantes aos implementados pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e Academia Brasileira de Letras. Estas duas entidades ocupavam salas de um mesmo prédio próximo ao Passeio Público conhecido por Cenáculo, sendo que o IHGB obteve do presidente Emílio Garrastazu Médici, através da Caixa Econômica Federal, um empréstimo que serviu para construir a sua atual sede que, em parte, é alugada a empresas, o que proporciona certa estabilidade à instituição26. 26

Cabe observar, segundo Sr. Dino W. Cozza, que as demais entidades do Cenácu-

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Aspectos históricos da geografia brasileira

Da leitura dos exemplares existentes da Revista da Sociedade Brasileira de Geografia na Biblioteca Nacional é possível observar que a mesma apresentou uma notória atividade, chegando a participar da promoção de mais de dez congressos nacionais de geografia27. Por exemplo, em 1950, a entidade era presidida pelo embaixador José Carlos de Macedo Soares28, tendo na comissão cultural o professor Hilgard O’Relley Sternberg29, e o senhor Alberto Lamego30 como sócio. Em 1969, segundo exemplar da revista, de janeiro a junho de 1969, ns. 29 e 30, consta de maquete de uma futura sede31. Segue abaixo uma relação incompleta dos sucessivos presidentes da sociedade: Fundador: ConselheiroManoel Francisco Corrêa, presidente efetivo desde a sua fundação em 25 de fevereiro de 1883. Dr. José Lustosa da Cunha Paranaguá (Marquês do Paranaguá, de 15 de abril de 1883 a 9 de fevereiro de 1912, data em que falece. Conselheiro Francisco Inacio Marcondes Homem de Mello (Barão Homem de Mello) - de 15 de março de 1912 a 13 de maio de 1914, renuncia por enfermidade . Marechal Gregório Thaumaturgo de Azevedo - de 13 de maio de 1914 a 30 de março de 1920. Retirou-se para o Amazonas, candidato a Governador daquele Estado lo, sem alternativa para alocarem suas atividades, pleiteram e conseguiram ocupar o terceiro andar do atual prédio do IHGB, enquanto este tem para si os quatro últimos andares do prédio (9º ao 12 º andar). Já a Academia Brasileira de Letras, através do seu então presidente Austragésio de Athayde, obteve apoio para construir um prédio no terreno doado à Academia, o que lhe permitiu, nos dias atuais, ter uma autossustentabilidade. 27 Segundo a Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, tomo LIV - 1947-1948, que trata de relatório de atividades de 1946, encontrada na Biblioteca Nacional, é assinalado que o interventor do Pará abre o convite para que o XI Congresso Brasileiro de Geografia fosse realizado no Pará (em setembro de 1947); já que o X Congresso Brasileiro de Geografia ocorreu no Rio de Janeiro (p. 89). 28 O senhor Macedo Soares chegou a ser interventor em São Paulo, segundo a Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, tomo LIV - 1947-1948, encontrada na Biblioteca Nacional. 29 Este professor teve forte influência no quadro de professores de Geografia do Rio de Janeiro. 30 Produtor de clássicos sobre o Estado do Rio de Janeiro, tais como:O homem e a Guanabara, O homem e a serra, entre outras obras. 31 Na Biblioteca Nacional, o seu código de identificação é I-427,2,6, seção de periódicos. Período Imperial 119

Almirante Antônio Coutinho Gomes Pereira - de 30 de março de 1920 a 25 de fevereiro de 1925 - não quiz ser reeleito. General José Maria Moreira Guimarães - de 25 de fevereiro de 1925 a 10 de fevereiro de 1940, quando faleceu. Almirante Raul Tavares - 7 de março de 1940 até 25 de fevereiro de 1945. Solidário com o movimento renovador não se candidatou à reeleição. Embaixador José Carlos de Macedo Soares - de 25 de fevereiro de 1945 a 15 de fevereiro de 1948 - reeleito a 15 de fevereiro de 1948 a 15 de fevereiro de 1951. Almirante Jorge Dodsworth Martins - de 15 de fevereiro de 1951 a 15 de fevereiro de 1954 - reeleito de 15 de fevereiro de 1954 a 15 de fevereiro de 1957. General Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos de 15 de fevereiro de 1957 a 15 de fevereiro de 1960. Almirante Washington Pevay de Almeida - 15 de fevereiro de 1960 a 6 de março de 1963. Dr. Herbert Canabarro Reichardt - 6 de março de 1963 a 4 de março de 1966. Dr. Jurandyr de Castro Pires Ferreira - de 4 de março de 1966 a 1965 - reeleito de 11 de março de 1969 até dezembro de 1977.. Já nesta época, a do Sr. Jurandyr, constava a atuação do atual presidente da Sociedade, Sr. William Paulo Maciel, que então ocupava no cargo de tesoureiro. 32

O que chama a nossa atenção nesta listagem é que até 1914, aproximadamente, temos, sobretudo, a projeção da nobreza. De 1914 até 1963, próximo ao governo militar, temos a presença dos militares; em seguida, verificar-se-á a ação dos civis, destacadamente os da área de direito. Atualmente, poderíamos entender a Sociedade Brasileira de Geografia como uma entidade que enfrenta sérias dificuldades; no entanto, quando nos abeiramos de seu processamento factual, percebemos a riqueza das iniciativas e seu caráter eclético ao estar apto a buscar diferentes fontes de informação. Sendo assim, a Sociedade Brasileira de Geografia é sincrônica à nossa história, naturalmente não pelo que ela faz hoje, que é pouco por falta de recursos monetários e humanos, mas sim pelo que ela representa de memória de toda uma produção que se encontra guarda32

Atualmente, este vem a ser o senhor que preside a Sociedade Brasileira de Geografia.

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Aspectos históricos da geografia brasileira

da/abandonada no acervo da Biblioteca Estadual do Rio de Janeiro (Av. Presidente Vargas, na própria cidade do Rio de Janeiro)33. O resgate de uma memória como o da sociedade nos parece ser fundamental para compreendermos a produção da geografia no Brasil. A conformação de uma identidade de geografia no Brasil passa pelo olhar ao nosso passado. Afirmamos isto no sentido de que o seu passado ajuda-nos a reconhecer caminhos já talhados por outros e que podem criar outra referência além da oferecida por quem busca a leitura corrente internacional. Enfim, importa dar à história de nosso pensamento geográfico uma cor local, um pensamento brasileiro! E para tanto há um longo caminho, pois há toda uma produção que pouco conhecemos. Bibliografia PEREIRA, José Veríssimo da Costa. “A geografia no Brasil”. In: AZEVEDO, Fernando (org.). As ciências no Brasil, 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994, capt. VII, pp. 349-461. SILVA, José Luiz Werneck da. “A cultura científica no contexto da proclamação da República no Brasil” In:Rev. Perspicillum, Museu de Astronomia e Ciências afins, vol. 5, nº 1, nov. 1991, pp. 47-56.

Acervo consultado no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro - consultadas no IHGB Tomo I, nº 2, 2º trimetre, anno de 1885 Tomo I, nº 3, 3º trimestre, anno de 1885 Tomo I, nº 4, 4º trimestre, anno de 1885 Tomo II, 1º boletim, anno 1886 Tomo IV, 2º boletim, anno 1888 Tomo V, 2º boletim, anno de 1889 Tomo V, 3º boletim, anno de 1889 Tomo V, 4º boletim, anno de 1889 Tomo VI, 1º boletim, anno de 1890 Tomo VII, 3º e 4º boletins, anno de 1890 Tomo VII, 2º boletim (sic), anno de 1891 Tomo VIII, 3º e 4º boletins, anno de 1892 Tomo IX, 1º e 2º boletins, anno de 1893

Acervo consultado na Biblioteca Nacional Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro Tomo LIV, 1947/1948. Estas linhas escritas em 2002 vieram a perder a veracidade em junho de 2005. Neste mês tive a honra de vir a ser convidado pela sociedade para dar a primeira palestra durante a inauguração da sua nova sede. 33

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Obs: consta a presença do interventor do Estado do Pará que faz um convite para que o XI Congresso Brasileiro de Geografia fosse realizado em Belém (o X Congresso tinha sido realizado no Rio de Janeiro). Tomo LV, complemento 1947-1948, ano 1948. Obs: é observada a necessidade de se ter as fotos dos presidentes dos 11 (sic) congressos brasileiros de geografia. Boletim da Sociedade Brasileira de Geografia Ano I, nº 1, julho/agosto de 1950. Obs: consta neste número uma comissão cultural da qual participava o professor Hilgard O’Relly Sternberg . Ano I, nº 2, setembro/outubro de 1950. Ano I, nº 3, novembro/dezembro de 1950. Obs: neste número consta a entrada de Cândido Mendes de Almeida e de Alberto Lamego. Ano I, nº 4, janeiro/fevereiro de 1951. Ano I, nº 5, março/abril de 1951. Ano I, nº 6, maio/junho de 1951. Ano XV, nºs. 19 e 20, julho/dezembro de 1966. Ano XVI, n. 22, abril a junho de 1967. Ano XVII, nºs. 25 e 26, janeiro/junho de 1968. Ano XVII, nºs. 27 e 28, julho/dezembro de 1968. Obs: consta neste número a decisão de se levar a cabo a realização do XII Congresso de Geografia, em Belém do Pará. Ano XVIII, nºs. 29 e 30, janeiro/junho de 1969. Obs: consta uma maquete da futura sede da sociedade. Ano XIX, nºs. 33 e 34, janeiro/junho de 1970. Ano XXVII, nº 38, julho/setembro de 1977. Obs: consta neste número William Paulo Maciel como tesoureiro da socieade, que vem a ser o atual presidente da sociedade. Ano XXVVII , nº 39, outubro/dezembro de 1977. Ano XXVIII, nº 40, janeiro/março de 1978. Obs: é mencionada a existência de uma Sociedade Brasileira de Geografia em São Paulo Ano XXIX, nº 43, abril/dezembro de 1979.

Outros Ata da Sessão Magna de 25 de fevereiro de 1997, comemorando o 114º aniversário da Sociedade. Diários de Oscar de Oliveira Miranda.

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Aspectos históricos da geografia brasileira

Período Republicano

Período Republicano 123

Congressos Brasileiros de Geografia1 Apresentação Há um notório contraste entre o que representou à época a realização dos congressos brasileiros de geografia promovidos pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (SGRJ) e o que resta de sua memória nos acervos disponíveis sobre os mesmos2. Os congressos aglutinaram diferentes pessoas, dos mais diversos cargos, a começar pela própria presidência da República brasileira, e, no entanto, pouco nos ficou deste período; é como se esses congressos não tivessem existido. A luta para se obter informações sobre os congressos é literalmente titânica. Um acervo precioso, mas que não está aberto ao acesso público, é o da própria Sociedade Brasileira de Geografia (ex-SGRJ) que se encontra aos cuidados da Universidade Cândido Mendes. Afora este recurso, tínhamos a Biblioteca Nacional (onde pouco pôde ser encontrado), o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, onde tivemos nossas melhores informações, e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no qual há um material bem conservado que não pôde ser pesquisado à época devido à greve dos funcionários. Neste sentido, o que segue abaixo resgata parte da memória de uma produção que se mostrou fundamental para se ter uma ideia do tamanho e da diversidade do Brasil; neste sentido recorremos a extensas citações obtidas nos documentos coletados, preservando-se a grafia utilizada à época. 

Relação dos congressos realizados 1º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Rio de Janeiro, Período:  7 a 16 de setembro de 1909 Características: (abaixo) Os Annaes do Primeiro Congresso Brasileiro de Geografia podem Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem ano 2, n. 3, janeiro/julho de 2003.  Inicialmente sozinha, ela veio a contar com a colaboração do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a partir da realização do 9º Congresso 1 2

Período Republicano 125

ser encontrados, de modo parcial, de acordo com pesquisa na Internet junto à Universidade Federal do Rio de Janeiro, nas bibliotecas do Programa de Pós-Graduação em Geografia desta universidade; assim como, à do Museu Nacional, que devido à greve dos funcionários durante o nosso período de pesquisa nos foi difícil consultá-los. Presidente Almirante Arthur Jaceguay 1º Secretário Dr. José Américo dos Santos 2º Secretário Dr. João Francisco de Novaes Paes Barreto Dr. Manoel Curvello de Mendonça Dr. João P. Cardoso. No material encontrado no IBGE, constam trabalhos da 4ª comissão sobre Hydrographia, potamographia e limnologia. 5ª Commissão – Oceanographia, Corrente Marinha; 6ª Comissão sobre meteorologia, climatologia, magnetismo (trabalhos tipo – carta magnética de SP, variação da declinação magnética em SP; As variações de temperatura em São Paulo; Influência das mattas sobre o clima; O regime das chuvas em S. P).

2º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Curitiba Período: 1911 Característica: pouco material encontrado no IHGB 3º Congresso Brasileiro de Geografia Sem informações 4º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Recife Período: 7 a 17 de setembro de 1915 Característica: Edição da Imprensa Oficial. Há no IBGE. 5º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Salvador, Período: 7 a 16 de setembro de 1916 . Características:  sem informações Há exemplares no Museu Nacional. 6º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Belo Horizonte Período: 1919 126

Aspectos históricos da geografia brasileira

7º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Parahyba, Estado da Parahyba do Norte. Período: 1 a 10 de outubro de 1921. Características: Em publicação colhida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (código de identificação – 193,5,2 nº 17 e que atende pelo título Sétimo Congresso Brasileiro de Geografia) consta a comissão organizadora, assim como o regulamento. Na comissão percebe-se pequena expressão das pessoas envolvidas, no sentido que não contava com pessoas com altos cargos (mas nos chamou a atenção a presença de pessoas religiosas). No regulamento, p. sete, consta, por exemplo: Art. 1º - O Sétimo Congresso Brasileiro de Geographia realizar-se-á na cidade da Parahyba do Norte, de 1º a 10 de outubro de 1921, sob os auspícios do governo do Estado e do Instituto Histórico e Geographico Parahybano. Art. 2º - O Congresso, como os anteriores, tem por fim: 1) Colher e apreciar quaesquer contribuições inéditas, como memórias, mappas, outros trabalhos ou informações tendentes a augmentar e desenvolver o conhecimento, nos seus diversos ramos, da geographia do Brasil; 2) organizar uma exposição de obras, mappas, photographias, telas e apparelhos geographicos sobre o Brasil, quer nacionais quer extrangeiros. Art. 3º - A uma commissão organizadora, eleita pelo Instituto, incumbirá promover todos os meios condizentes ao bom êxito do Congresso constituindo-se o centro director deste e extendendo as suas attribuições até á conclusão final e publicação dos trabalhos do mesmo. P. 8 Art.4º - Essa commissão será auxiliada por outra de technicos, também eleita pelo Instituto, e cujos membros em suas diversas especialidades deverão suggerir os pedidos de informações e questionários, que pela commissão organizadora deverão ser dirigidos ás auctoridades e particulares, e bem assim os assumptos de trabalhos, que pessoas competentes, indicadas também pela commissão technica, deverão ser convidadas a apresentar ao Congresso. Art. 5º - A commissão organizadora se esforçará por obter, com a brevidade possível, informações, relatos officiaes, estatísticas, não só para serem offerecidos ao Congresso, como para habilitarem a mesma commissão a satisfazer pedidos de informações dirigidos por pessoas, inscriptas para o Congresso, que a este pretendam apresentar trabalhos. Art. 6º - Os trabalhos e informes destinados ao Congresso, e os obPeríodo Republicano 127

jectos que o forem á Exposição, deverão ser dirigidos ao secretario geral da commissão organizadora, até o dia 31 de agosto de 1921, devendo aquelles, á medida que se apresentarem, ser publicados em boletim especial, dirigido pela commissão organizadora. Parágrafo Único – A’s pessoas inscriptas para o Congresso, que tiverem pago a taxa de que trata o art. 15, serão logo remettidos o referido boletim e os annaes. P. 9 Art. 7º- A commissão organizadora se esforçará por que seja decretada, pelos poderes públicos, a concessão de prêmios e medalhas ás monographias, geraes ou municipaes, que forem approvadas pelo Congresso. Art. 8º- Fica o Congresso dividido em seis secções assim distribuídas: I – Geographia mathematica – (Geoplanetographia, Noções topographicas e geodesicas. Cartographia). II – Geographia physica – (Geomorphographia, Orograhia, Hydrographia terrestre, Potamographia, Oceanographia, Nesographia, Acrographia, Climatographia, Geographia medica). III – Bigeographia (Phytogeographia e zogeographia). IV – Anthropogeographia ou geographia humana (Etnographia, Geographia política e social. Geographia econômica, agrícola, industrial e commercial, Geographia militar, Geographia histórica). V – Ensino da geographia, regras e nomenclatura VI –Monographias descritivas regionaes. P. 11 Art. 14º - A inscripção no respectivo Boletim3 e o pagamento da quota estipulada no art. 15º são condições esssenciaes para a participação no Congresso e goso das suas regalizas, devendo esse pagamento effectuar-se até o dia 31 de agosto de 1921. Parágrafo Único – Serão adherentes de direito e isentos de pagamento os membros da commissão technica. Art. 15º - A quota de adhesão será de 10$000 para cada congressista; de 20$000 para as representações dos Institutos, sociedade, empresas; de 100$000 para as das municipalidades; de 200$000 para as das assembléas legislativas, governos e altas administrações da União e dos Estados, distribuindo-se cartões de congressistas, nominativos e estrictamente pessoaes, aos que effectuarem taes pagamentos. Art. 16º - Serão considerados membros protectores do Congresso as pessoas ou instituições que contribuírem com uma quota superior a 200$000. 3

Material que divulgaria os trabalhos do congresso.

128

Aspectos históricos da geografia brasileira

P. 12 Art. 19º - A commissão organizadora envidará esforços para que seja cunhada uma medalha commemorativa do 7º Congresso Brasileiro de Geographia, que será distribuída a todos os congressistas. Em outra publicação que atende pelo título de 7º Congresso Brasileiro de Geografia e colhida também no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, código 200, 8, 1 n. 25, consta a composição da comissão organizadora do evento. Assim caracterizada: (pág. 3) PRESIDENTE HONORÁRIO4

O exmo. sr. Dr. Francisco Camillo de Hollanda. 4 Na commissão organizadora, constam: PRESIDENTE Dr. Flavio Marója, presidente do Instituto Histórico e Geographico Parahybano, inspector de Saúde dos Portos do Estado. VICE-PRESIDENTE Desembargador Heráclito Cavalcanti Carneiro Monteiro. SECRETARIO GERAL Dr. João Alcides Bezerra Cavalcanti, 1º secretário do Instituto Histórico e Geographico Parahybano e advogado. 1º SECRETÁRIO Cônego Dr. Florentino Barbosa, membro do Instituto e professor do Seminário Diocesano. 2º SECRETÁRIO Prof. José Gomes Coelho, membro do Instituto e lente da Escola de Agrimensura. THESOUREIRO Prof. João Rodrigues Coriolano de Medeiros, membro do Instituto e lente da Escola de Aprendizes Artífices. Commissão technica PRESIDENTE Dr. Manuel Tavares Cavalcanti, vice-presidente do Instituto e chefe de policia do Estado. VICE-PRESIDENTE Dr. Matheus Augusto de Oliveira, lente do Lyceu Paraghybano e da Escola Normal. SECRETÁRIO Prof. José Gomes Coelho. MEMBROS DA COMISSÃO 1 Dr. Antonio Baptista Neiva de Figueiredo, capitão do exército. 2 Dr. Ascendino Carneiro da Cunha, lente do Lyceu Parahybano. 3 Dr. Álvaro de Carvalho, lente do Lyceu Parahybano. 4 Celso Mariz, director da secretaria da Assembléa Legislativa. 5 Cel. Carlos Coelho de Alverga, thesoureiro da Delegacia Fiscal. 6 Dr. Frederico Cavalcanti Carneiro Monteiro, capitão do exercito. 7 C.º dr. Florentino Barbosa, lente do Seminário Diocesano. 8 Monsenhor Francisco Severiano de Figueiredo, lente do Lyceu Parahybano. 9 Dr. Francisco Seraphico da Nóbrega, advogado. 10 Cel. Francisco Coutinho de Lima e Moura, lente aposentado do Lyceu Parahybano. 11 Pharmaceutico Francisco de Assis e Silva.

4

Período Republicano 129

8º Congresso Brasileiro de Geografia Sem informações específicas sobre o mesmo. 9º Congresso Brasileiro de Geografia Local: Florianópolis. Período: 7 a 16 de setembro de 1940. Característica5: Na Revista Brasileira de Geografia – RBG, v.3,n.1, jan/mar 1941, p. 146, intitulada “Ecos do IX Congresso” – foi abordada a  larga repercussão do encontro:  Sua larga repercussão em todos os setores da atividade brasileira diz bem do enciclopedismo da Geografia moderna, sob cujos princípios básicos foram orientados os trabalhos do IX Congresso Brasileiro de Geografia. ... (patrocinado pelo IBGE) Resolução nº 70, de 4 de novembro de 1940, do Conselho Nacional de Geografia. Exprime regozijos e congratulações pelo admirável êxito do IX Congresso Brasileiro de Geografia.

Para a realização do  Congresso acorreram os préstimos da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e a decisiva atuação do ministro Bernardino José de Sousa que presidiu o Congresso Brasileiro de Geografia. Ainda segundo a mesma matéria da revista utilizada, no Art.4º - Fica consignado um caloroso aplauso à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro pelo pronto atendimento à recomendação 12 Desembargador Gonçalo de Aguiar Botto de Menezes. 13 Dr. Irineu Joffily, advogado. 14 Desembargador José Ferreira de Novaes. 15 Dr. José de Lima Vinagre, director da Repartição de Estatística e Archivo Publico. 16 Dr. João Alcides Bezerra Cavalcanti, advogado. 17 Dr. José Rodrigues de Carvalho, advogado. 18 Professor João Rodrigues Coriolano de Medeiros,  da Escola de Aprendizes Artífices. 19 Monsenhor João Milanez, director da Escola Normal. 20 Dr. José Américo de Almeida, procurador geral do Estado. 21 Dr. Miguel de Medeiros Raposo, director da Escola de Aprendizes Artífices. 22 Padre Nicodemos Neves, Professor do Collegio Pio X. 23 Dr. Orris Soares, secretario geral do Estado. 24 Monsenhor Odilon Coutinho, director do Lyceu Parahybano. 5 Há exemplares na UFRJ (PGG da Geografia, no Museu Nacional o material está completo), mas utilizei o material encontrado no IBGE, editado pelo Conselho Nacional de Geografia. 130

Aspectos históricos da geografia brasileira

aprovada pelo certame de Florianópolis, no sentido de constituir-se a Comissão Organizadora do X Congresso Brasileiro de Geografia, a realizar-se em 1943 em Belém, Capital do Estado do Pará6.  

Já na p. 147 sobre os anais do congresso, temos:  ...será perpetuada nos volumes dos seus ‘Anais’, que constituirão, dentro em breve, magnífico repositório de dados recentes e valiosas informações geográficas sobre o território pátrio, contidos nas dezenas de memórias, teses e monografias apresentadas ao IX Congresso e aprovadas após julgamento das suas Comissões Técnicas especializadas. A divulgação destas valiosas contribuições é uma necessidade que se impõe. Versando sobre os mais variados aspectos da Geografia do Brasil elas são os frutos de inteligentes observações dos fenômenos, quer em pacientes trabalhos de campo quer em acurados estudos de gabinete. É da sua publicação que a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro cogita no presente momento, com a colaboração do Conselho Nacional de Geografia, que aceitou daquela veneranda entidade o encargo de publicar os ‘Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia’. Resolução nº 72, de 4 de novembro de 1940 . Dispõe sobre a publicação dos Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia. Considerando que, nos termos do art. 10 da Resolução nº 42, de 7 de julho de 1939, da Assembléia Geral, ficou estabelecido que o Conselho colaboraria, dentro das suas possibilidades orçamentárias, na impressão dos trabalhos aprovados pelo IX Congresso Brasileiro de Geografia, de acordo com o que a respeito fosse solicitado pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro; Considerando a proposta que, na reunião de hoje, perante o Diretório, em honrosa visita, formulou o eminente Ministro Bernardino José de Sousa, vice-presidente da Sociedade e presidente do Congresso e da sua Comissão Organizadora, no sentido do Conselho encarregar-se da publicação dos Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, em virtude do saldo dos recursos angariados para o certame não ser suficiente para as despesas da sua impressão; (Obs: os anais serão impressos pelo serviço gráfico do IBGE). p. 149 O interesse pelo estudo da Geografia do Brasil despertado pelo IX Congresso Brasileiro de Geografia no nosso meio cultural O que nos chama a atenção é que a SGRJ atendeu a recomendação, ou seja, ela própria não mais indicava a direção dos encontros. 6

Período Republicano 131

exige o prosseguimento da realização de reuniões geográficas periódicas no país. Atendendo a este imperativo a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro está, desde já, providenciando para a organização do X Congresso Brasileiro de Geografia que, por deliberação do plenário do último certame, em Florianópolis, deverá realizar-se em 1943, na cidade de Belém, Capital do Estado do Pará7.

Na Revista Brasileira de Geografia, RBG, vol. 3, nº 3, julho/setembro de 1941, pp. 651-666, consta a extensão dos trabalhos que foram aprovados pelas comissões técnicas julgadoras. Chama a atenção pela diversidade de temas: Geografia Matemática (cartografia); Geografia Física; Biogeografia (Geografia Botânica e Zoológica); Geografia Humana; Geografia Econômica; Explorações Geográficas e Geografia Histórica; Metodologia Geográfica, Regras e Nomenclaturas etc. Com diversos autores, de diferentes cargos, incluindo aí os de patente militar8.   10º Congresso Brasileiro de Geografia Local:  Belém Para isso teve lugar, ainda no fim do ano p. p., na sede daquela Sociedade, uma reunião na qual foi constituída a Comissão Organizadora do X Congresso Brasileiro de Geografia, cujos cargos foram assim preenchidos: Presidente: Professor Ministro João Severiano da Fonseca Hermes. Vice-Presidente: Prof. Dr. Fernando Antônio Raja Gabaglia. Secretário Geral: Engenheiro Cristóvão Leite de Castro. 1º Secretário: Dr. Murilo de Miranda Bastos. 2º Secretário: Professor Geraldo Sampaio de Sousa. Tesoureiro: Dr. Carlos Guimarães Domingues. Vogais: Dr. Mário Augusto Teixeira de Freitas, Coronel Emílio Fernandes de Sousa Doca, Dr. Luiz Rodolfo Cavalcanti Albuquerque Filho, Coronel Djalma Poli Coelho e Comandante Antônio Alves Câmara Júnior. Cabe destacar que este último apresentou grande atuação no Serviço Geográ­fico do Exército, como tivemos oportunidade de destacar em nosso trabalho sobre este órgão. 8 Passo a assinalar os nomes com setas no intuito de realçar as pessoas que faziam parte das atividades. Ten.Cel. Djalma Poli Coelho¬; Ministro José Matoso Maia Forte¬; Ministro J. S. Fonseca Hermes ¬e Murilo de Miranda Basto; Almirante Raul Tavares¬; Prof. Jorge Zarur¬, Padre Balduíno Rambo, S. J., Dr. Caio Prado Júnior¬, General Cândido Mariano da Silva Rondon¬; Prof. Gilberto Freire¬; Prof. Pierre Monbeig¬; Prof. Roger Bastide; Ministro Augusto Tavares de Lira¬; Prof. Everardo Backheuser¬, participação de engenheiros (como o da família Saturnino Braga ¬); Prof. Aroldo de Azevedo¬;  Prof. Artur César Ferreira Reis¬; Dr. Luiz da Câmara Cascudo¬; Dr. Max Fleiuss¬; Dr. Afrânio Peixoto (literato que teria escrito O nome das ruas) ¬ 7

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Aspectos históricos da geografia brasileira

Período: 1943 Característica: Não foi realizado   Em material encontrado no IHGB consta sobre o Décimo Congresso Brasileiro de Geografia o documento “Instruções para a adesão e apresentação de trabalhos ao Décimo Congresso Brasileiro de Geografia, Rio de Janeiro, 1942” (código do material no IHGB: 193,4,4 nº 22).   O Décimo Congresso Brasileiro de Geografia promovido pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro realizar-se-á de 7 a 16 de setembro de 1943, em Belém, capital do Estado do Pará, sob a presidência de honra de sua Excelência o Senhor Doutor Getúlio Vargas e alto patrocínio do Ministério da Educação e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística9. INSTRUÇÕES PARA A APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS AO DÉCIMO CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA. As teses ou outros trabalhos que forem apresentados ao Congresso deverão ser absolutamente inéditos e versar com propriedade específica sobre temas que se enquadrem dentro das matérias previstas na organização das 10 Comissões Técnicas do Congresso10. 9

Comissão Organizadora Central do Décimo Congresso Brasileiro de Geografia: Presidente de Honra – João Severiano da Fonseca Hermes Jr. ¬ Presidente – Fernando Antônio Raja Gabaglia ¬ Vice-presidente – Emílio Fernandes de Sousa Docca Secretário Geral – Christovam Leite de Castro 1º. Secretário – Murillo de Miranda Basto 2º. Secretário – Geraldo Sampaio de Sousa Tesoureiro – Carlos Augusto Guimarães Domingues Vogais – Mário Augusto Teixeira de Freitas¬, Antônio Alves Câmara Jr., Francisco de Paula Cidade¬, Annibal Alves Bastos Suplentes – Ary dos Santos Rangel, José Fiusa da Rocha Representantes de instituições – Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos, Pierre Monbeig¬, Mário Campos Rodrigues de Souza, José Gabriel Lemos Britto, Ruy de Almeida. Ingresso é 35$000, de 100$000  até 1: 000$000 terá o título de Membro Cooperador do Décimo Congresso Brasileiro de Geografia. Sendo 100$000 equivalente a 5 dólares. Quem contribuir com 1: 000$000 (equivalente a 50 dólares) para mais terá o título de ‘Membro Protetor do Décimo Congresso Brasileiro de Geografia’.

10

A saber: 1ª - Geografia Histórica e Explorações Geográficas 2ª - Geografia Matemática. 3ª - Geografia Física 4ª - Biogeografia 5ª Geografia Humana 6ª Geografia das Calamidades 7ª Geografia Médica Período Republicano 133

Os trabalhos deverão ser enviados pelos menos em dois exemplares, dactilografados ou escritos em caligrafia perfeitamente legível, não podendo exceder a 100 (cem) laudas... Será motivo de recusa de qualquer trabalho o fato de nele serem tratados, ainda que leve ou indiretamente, assuntos de política interna ou internacional, questões religiosas, sociais e outras, que possam suscitar polêmicas ou controvérsias e provocar suscetibilidades inconvenientes às altas finalidades dos Congressos Brasileiros de Geografia. REGULAMENTO DO DÉCIMO CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA, Rio de Janeiro, 1941 (código do documento no IHGB: 205,4,4 nº 11) Art. 25 Parágrafo 3º - Os pareceres deverão concluir por uma das seguintes fórmulas: a) – Sou de parecer que a Comissão recomende a publicação integral deste trabalho (tese ou memória) nos Anais do Congresso e que se lhe confira um voto de louvor. b) – Sou de parecer que a Comissão recomende a sua publicação integral nos Anais do Congresso. c) – Sou de parecer que a Comissão recomende a sua publicação nos Anais do Congresso, com as adaptações que a Comissão dos Anais julgar convenientes. d) – Sou de parecer que a Comissão recomende a sua inclusão na lista dos trabalhos apresentados ao Congresso. Parágrafo 4º - Os pareceres poderão conter ainda indicações e recomendações no sentido de ser o assunto ou algum ponto da tese, memória ou trabalho levado à consideração dos Órgãos governamentais ou de Instituições culturais, indicações e recomendações essas que, sendo adotadas pelo Congresso, figurarão nos Anais, em lugar de destaque, na parte relativa às Recomendações.

10º Congresso Brasileiro de Geografia Local:  Rio de Janeiro Período:  7 a 16 de setembro de 1944 Característica: Com a não realização no Pará, ele foi promovido no Rio de Janeiro. 8ª Geografia Econômica 9ª Metodologia Geográfica e Ensino da Geografia 10ª Monografias Regionais, Estudos Especiais da Corografia do Estado do Pará. 134

Aspectos históricos da geografia brasileira

PROGRAMA-CALENDÁRIO do X Congresso Brasileiro de Geografia, Rio de Janeiro,1944 (código do documento encontrado no IHGB: 205, 4,5 nº 15) O DÉCIMO CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA, promovido pela SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, reunir-se-á na CAPITAL DA REPÚBLICA, DE 7 A 16 DE SETEMBRO DE 1944, sob a presidência de honra de sua Excelência o Senhor DOUTOR GETÚLIO VARGAS e alto patrocínio DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL E INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA11. Segue em anexo (nº 1) toda a programação do encontro. 11

COMISSÃO ORGANIZADORA CENTRAL Presidente de Honra – Ministro João Severiano da Fonseca Hermes Jr. ¬ Presidente – Prof. Fernando Antônio Raja Gabaglia ¬ Vice-presidente – General Emílio Fernandes de Sousa Docca Secretário Geral – Engenheiro Christovam Leite de Castro 1º. Secretário – Cônsul Murillo de Miranda Basto 2º. Secretário – Professor Geraldo Sampaio de Sousa Tesoureiro – Doutor Carlos Augusto Guimarães Domingues Vogais e Membros –General Francisco de Paula Cidade, ¬ Doutor Mário Augusto Teixeira de Freitas, ¬ Comandante Antonio Alves Câmara Júnior, Engenheiro Annibal Alves Bastos, Comandante Ary dos Santos Rangel, Engenheiro José Fiusa da Rocha, Coronel Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos, Engenheiro Mario Campos Rodrigues de Souza Professor José Gabriel de Lemos Britto Doutor Ruy de Almeida Professor Pierre Monbeig. ¬   COMISSÃO ORGANIZADOR LOCAL Presidente de Honra: Doutor Henrique de Toledo Dodsworth ¬ Vice-presidente de Honra: Embaixador José Carlos de Macedo Soares. ¬ Almirante Raul Tavares ¬ Presidente: Engenheiro Edison Junqueira Passos 1º Vice-presidente: Coronel Jonas de Moraes Corrêa Filho. 2º Vice-presidente: Capitão Amílcar Dutra de Menezes. 1º Secretário: Cônsul Murillo de Miranda Basto. 2º Secretário: Professor José Veríssimo da Costa Pereira. Membros: Doutor Abgar Renault Coronel Paulo Figueiredo Comandante Ary dos Santos Rangel Doutor Jorge Latour Doutor Carlos Drumond de Andrade ¬ Professor Mario da Veiga Cabral  ¬ Período Republicano 135

Os congressos numa perspectiva sintética Em documento colhido no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro intitulado“Reminiscências e Impressões 5º Congresso Brazileiro de Geographia pelo delegado do Instituto Histórico e Geographico de Sergipe” e seu primeiro secretário, Luiz José da Costa Filho, (lidas em sessão extraordinária do mesmo “instituto”, em 24 de setembro de 1916), consta o mais completo resgate da evolução dos congressos que, embora longo, cabe ser aqui reproduzido, pois nos possibilita resgatar um pouco a ambiência em torno do qual ocorriam os congressos12. P. 3 Venho eu ao varandin desta tribuna, que tantas vezes entrado em penunbra tem, com  a falta de luz e a mingua de claridade da minha obscura voz, para especialmente e só relatar-vos as minhas impressões e dizer-vos os meus labores referentes ao 5º Congresso Brazileiro de Geographia, pouco há reunido com raro fulgor na velha, famosa e distinguida cidade do Salvador, capital do Estado da Bahia, primaz e a mais celebrada entre as suas irmãs do Brazil, sinão dentre todas as cidades das Américas do Sul e Central, pois que de suas virentas e rochosas encostas, do seu mássico granítico osculado pelas vagas do Atlântico, foi que se derramou a seiva e irradiou a alvorada da civilização da América hespanhola e portugueza. P. 4 Não sei como agradecer a este Instituto, que eu tanto amo, a esta benemérita sociedade scientifica, cuja prosperidade e fortuna preoccupam-me tanto, quanto a dos meus filhos, a honraria com que houve por bom investir-me, constituindo-me seu delegado no brilhante seio da grande reunião de doutos e de estudiosos, que foi esse recente e esplendido Congresso de Geographia, organizado com irreprehensivel gosto e felicíssima orientação, pelo esperito infatigável, formoso e culto, de Bernardino José de Souza. A maior parcella de responsabilidade no desluzido e parco papel, que representei naquella notável assembléa de legisladores da sciencia geographica, cabe, bem eu o sei, ao meu honrado e eminente amigo desembargador Caldas Barretto, nobre e valorosa columna, que sustenta a cupola deste templo; nobre e generosa alma que alimenta o santo lume deste sacrário. Foi elle, o laborioso e intelligente director dos preciosos trabalhos Material analisado no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, indexado com o número – 200,8,5 nº 6. 12

136

Aspectos históricos da geografia brasileira

desta casa, quem vos inspirou, meus distinctos confrades, o voto unânime com que me elegestes delegado do vosso pensamento e representante dos vossos ideaes patrióticos, perante o 5º Congressode Geographia. Como vos eu poderei significar a sinceridade do meu agradecimento? Certo, continundo a trabalhar comvosco e com o maior afinco,  e com a mais intensa dedicação aqui, sob este tecto, dentro desta casa forte onde recolhemos carinhosamente o oiro e a prata das nossas tradicções históricas, thesouro de maior realce e cabedal de melhor valia, que podemos legar aos nossos filhos para orgulho delles, fama de Sergipe e gloria do Brazil. O Congresso que se conta no numero cinco dos de Geographia effectuados sob o céo do Cruzeiro, afirmam as pessoas que os quatro outros assistiram, foi o mais concorrido, o melhor organisado, o mais pomposo e aquelle em que maior número de memórias foi discutido e julgado. Todos vós, que fazeis o sacrifício de ouvir me, tão seguros quanto eu estaes da origem e da historia dos Congressos de Geographia na terra brazilica. Mal não farei, porém, repetindo-vos agora, que (p. 5) o gérmen de cuja gemma elles brotaram, foi a sessão da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, realisada aos 27 de ... 1908, na qual, depois de lida e discutida, approvou-se a indicação seguinte: ‘Indico que a Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, na conformidade do nº 1 do artigo 2º dos seus Estatutos, promova a organisação, nesta capital, de um Congresso Brazileiro de Geographia, que reunir-se-á a 7 de Setembro de 1909, funcionando, dez dias. A mesa fica competindo, desde já, a incumbência da nomeação da Commissão de Organisação composta de nove membros, que confeccionará, dentro de trinta dias, o Regulamento do Primeiro Congresso Brazileiro de Geographia, que será distribuído com os boletins de inscripção. A mesa directora dos trabalhos da Sociedade fica, desde já, autorisada a entender-se com o Governo Federal, com os Governos dos Estados, com as Municipalidades e instituições scientificas do Brazil para que se façam representar no alludio Congresso. São considerados presidentes honorários os exmos srs Presidente da Republica, ministros do Interior, Viação e Obras Publicas, Barão do Rio Branco (Presidente do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro), Marquex de Paranaguá, (Presidente da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro) e Prefeito do Districto Federal. Sala das Sessões, 27 de Agosto de 1916. (ass.) José Arthur Boiteux. Período Republicano 137

Segue em anexo (nº 2) um extenso relato sobre os primeiros congressos promovidos pela SGRJ.

  Num outro documento encontrado no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, intitulado “PROGRAMA-CALENDÁRIO do X Congresso Brasileiro de Geografia, Rio de Janeiro,1944” (código do documento encontrado no IHGB: 205, 4,5 nº 15), consta que em 27 de agosto de 1908 a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, por proposta do seu secretário doutor José Arthur Boiteux, deliberou a realização de Congressos Brasileiros de Geografia, iniciando a série em 7 de setembro de 1909.  Segundo este material, elaboramos o resumo abaixo na forma de um quadro dos congressos promovidos pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.  13 14 Congressos

















Ano

1909

1910

1911

1915

1916

1922

1926

Local

RJ

São Paulo

Curitiba PR

Recife PE

Salvador BA

1919 Belo Horizonte MG

Paraíba PB140

Vitória ES

...

Dr. Jayme Dormund dos Reis

557

348

366

213

1.057

464

94

225

108

79

79

48

111

69

26

55

Exposição 231 mapas cartográfica

...

...

...

104

...

...

...

12 vols. 1.494 pgs.

...

...

4 vols. 543 pgs.

2 vols. 1.877 pgs.



1 vol. 251 pgs.

1 vol.

Marquês do Presidente Paranaguá Adesões Trabalhos apresentados

Anais

Dr. Pedro Dr. TheoCelso doro Uchoa Sampaio41 Cavalcanti

Gen. Gen. Dr. Diogo Cândido Thaumade Vas- Mariano turgo de concelos da Silva Azevedo Rondon

Causas independentes da vontade de seus promotores determinaram o adiamento da realização do 9º Congresso. Em 1939, porém, a SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO e o INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA deliberaram reiniciar a série dos Congressos Brasileiros de Geografia, mantendo o seu caráter migratório, de realizações trienais, intercaladamente no Norte, Centro e Sul do país. 13 14

Na época era conhecido como cidade da Parahyba do Estado da Parahyba do Norte. O encontro contou com 75 representações oficiais.

138

Aspectos históricos da geografia brasileira

As Resoluções nº 42, de 7 de julho, e nº 48 de 30 de outubro de 1939, do CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA e a Deliberação de 14 de agosto do mesmo ano da SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, promoveram a realização do 9º CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA, depois de 16 anos de interrupção.   9º Congresso Brasileiro de Geografia Florianópolis (Santa Catarina) Presidente: Ministro Bernardino José de Souza15 Realização: 7 a 16 de Setembro de 1940 Adesões: 2.137 Trabalhos apresentados: 215 Anais: já foram publicados quatro volumes.   O 10º  Congresso Brasileiro de Geografia devia realizar-se em Belém do Pará, de 7 a 16 de setembro de 1943 As dificuldades de transporte e outras determinadas pelos acontecimentos mundiais e pela entrada do Brasil na guerra levaram a Comissão Organizadora Central e o interventor federal no Estado do Pará e deliberaram, primeiramente, adiar a realização do X Congresso por um ano, e, posteriormente, a convocá-lo para a capital federal, a fim de evitar que se rompesse o ritmo de suas reuniões e perdessem atualidade os trabalhos já apresentados.

Avaliação à guisa de conclusão Havendo uma notória falta de informações sobre os congressos16, os que podemos encontrar no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) apresentam um conteúdo formal, acreditamos, para quem queira aprofundar o tema, empreender esforços no sentido de ter acesso ao acervo da Sociedade Brasileira de Geografia que se encontra vedado ao público17, assim como, relacionar o material passível de ser encontrado no IHGB e no Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísÉ o mesmo que foi secretário geral do 5º Congresso de Geografia realizado em 1916 na cidade de Salvador, Bahia. 16 A Biblioteca Nacional apresenta material de um único congresso. 17 A última informação que dispomos sobre o acervo é que ele se encontra aos cuidados da Universidade Cândido Mendes após um convênio com a Sociedade Brasileira de Geografia. 15

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tica (IBGE) com material jornalístico (por exemplo, edições do Jornal do Comércio) de modo a destacar a vivacidade do acontecimento de se promover os congressos que tudo nos indica merecer grande destaque à época pela sociedade. Apenas a título de se destacar este último aspecto, o 1º Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro em 1909, compreendeu diferentes iniciativas atraindo diferentes autoridades e utilizando diferentes equipamentos da cidade, tais como, prédio do IHGB, Jockey Club, prédio do Ministério da Educação etc. Percebe-se na leitura do material disponível que por onde o congresso realizado, os melhores talentos em nível de governo (estadual e federal) encontrados na sede do encontro, eram instados a participar do evento. Chama a atenção a presença eclética de diferentes estrangeiros, elementos da civil e das Forças Armadas. No entanto, nota-se certo caráter informal das organizações dos eventos, ou seja, o que propicia a realização dos encontros, antes da participação do IBGE, é a constituição de redes de relações que através de suas respectivas influências vão obtendo local, material, meios de transporte etc. Não havendo, no entanto, qualquer continuidade entre uma equipe e outra em termos de promoção do evento. Cada estado tinha uma seção própria, e era esta quem de fato possibilitava a realização do encontro. Não podemos afirmar que os encontros promovidos pela SGRJ obedecessem a características acadêmicas. Não havia a hegemonia de uma ambiência propriamente cultural/acadêmica; esta, quando ocorria, era imediatamente perpassada pela questão política. A rigor, os trabalhos, não raro frutos de esforços individuais, serviam no ato de sua divulgação numa tomada de consciência das características do país. Os trabalhos eram um ingrediente importante dos congressos, mas a dinâmica destes não se resumia a eles; havia todo um ritual social, de chancela a poderes que ficam à mostra. Os trabalhos, quando apresentados ao longo de todo dia, consumiam cerca de cinco horas ao todo. Outro aspecto que não podemos desconhecer, por exemplo, os congressos serviam como verdadeiras chances para que políticos, no intuito de saudar a realização do encontro, até governadores, incluindo deputados, se apresentavam e procuravam com esmero causar admiração aos visitantes de outros estados e países; assim como, para aqueles ainda pouco conhecidos, a participação das mesas de apresentação do evento facultava a chance de explorar os dons de sua oratória de modo a chamar para si maior atenção. 140

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Cabe destacar na realização dos congressos pela SGRJ que não havia rádio, só foi disseminado na década de 1930 a partir dos notórios esforços de Roquete Pinto que transferiu sua  rádio para o governo federal (originando a atual rádio MEC). Assim, o púlpito, a sacada para o discurso despertava notória atração entre as personalidades da época. Dá até para imaginar um caráter teatral nessas apresentações, e suas respectivas réplicas e tréplicas. Nos parece que os envolvimentos com os congressos angariavam notabilidade aos seus responsáveis, e provavelmente com isto um meio para deslancharem carreiras. Destacado este ponto, não se quer desconhecer a propriedade dos temas tratados pelos congressos. Não poucos importantes foram os temas tratados pelos congressos, a começar pela candente questão dos limites interestaduais que estavam a merecer decisões que afetavam a convivência entre os estados. Os conflitos entre Paraná e Santa Catarina, Ceará e Piauí, Sergipe e Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo etc. geravam sérias preocupações á época18. Em termos conclusivos podemos registrar que as iniciativas da SGRJ foram emuladas pela proximidade do centenário da Independência do país. Tal observação decorre da tendência de se realizar os congressos durante a Semana da Pátria, sendo o dia inaugural coincidindo com o dia da declaração da Independência do Brasil; assim como, comemorado o centenário, a SGRJ praticamente deixa de promover os congressos, após 1922 só ocorreu mais outro promovido exclusivamente pela SGRJ, o de Vitória em 1926. Depois disso entrou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) promovendo os encontros. De certo modo, do que podemos notar nos encontros promovidos pelo IBGE até meados da década de 1970, período a partir do qual vão tomar vulto os encontros promovidos pela Associação de Geógrafos Brasileiros sem o patrocínio do IBGE, os encontros mantinham certa semelhança de estrutura organizacional herdada da antiga SGRJ19. Eram sessões pautadas em temas de importância voltados Congresso realizado em Belo Horizonte (1919), onde surgiu a proposta da Conferência de Limites Interestaduais, assinada pelos governos estaduais presentes ao evento, marcado para ser realizado em julho de 1920 (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 87, n. 453, v. 141, 1920, p. 369), citado por Eli Alves Penha, “A criação do IBGE no contexto da centralização política no Estado Novo”. (Rio de Janeiro: IBGE, 1993, p. 76). 19 Os congressos da AGB, marcados por uma busca de popularização da produção, introduziram trabalhos de alunos nos anais dos encontros. Embora fossem encontrados nos congressos promovidos pelo IBGE, estes eram em menor número. 18

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como subsídio para ações de governo, assim como com participação reduzida em termos daqueles que apresentavam trabalhos, pois havia toda uma tramitação de julgamento dos trabalhos, de modo que os publicados tinham passado por mesas julgadoras. Parece-nos que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, associado ao Conselho Nacional de Geografia, alteraram profundamente a produção da geografia brasileira. A SGRJ, comparada a estas duas entidades, tinha um caráter heróico, pois as iniciativas dependiam dos sucessos de seus membros em chamar a atenção da sociedade para os temas que procuravam discutir. Neste sentido tiveram pleno sucesso, pois além de um intenso trabalho de divulgação veio a atingir diferentes partes do país. Mas, de qualquer forma, não parece ter ocorrido uma ruptura entre as entidades destacadas, mas sim uma solução de continuidade: de certo modo, o IBGE passou a melhor popularizar sua imagem enquanto produtora de conhecimento a partir da realização dos congressos de geografia iniciados pela SGRJ, que durante os anos 40, com uma alteração de seus estatutos,  passou a ser chamada Sociedade Brasileira de Geografia (como é conhecida até os dias de hoje).

Fontes de consulta Anais Annaes do 1º Congresso Brazileiro de Geographia, realizado na cidade do Rio de Janeiro, de 7-16 de setembro de 1909. Volume II, III, IV, V, VI, VII.Publicados por diferentes tipografias da época, 1910. Consultamos os volumes mencionados  na biblioteca central do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pela Internet, no site da UFRJ consta que o PGG de Geografia da UFRJ dispõe dos volumes 8 ao 12 em um único volume; e pela mesma fonte o Museu Nacional dispõe dos volumes 1 ao 8 num único volume. Annaes do 4º Congresso Brazileiro de Geographia, realizado na cidade de Recife, estado de Pernambuco, de 7-16 de setembro de 1915. Volume I. Publicados pela Imprensa Official do Estado, 1916. Consultamos o vol. I na biblioteca central do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Annaes do 5º Congresso Brazileiro de Geographia, realizado na cidade de SalParece-nos ainda, que ocorreu entre a AGB e o IBGE algo que se deu anteriormente entre o IBGE e a SGRJ, ou seja, um processo de interpenetração no qual, a partir de certo momento uma entidade “passou o bastão para a outra” no que tange à promoção de eventos de encontros geográficos. No caso específico da AGB e IBGE esta interpenetraçãoparece ter ocorrido na década de 1960, sendo que ao final da seguinte a AGB já se encontrava sozinha promovendo os congressos que passaram a ser intercalados com os Encontros Nacionais de Geografia. Não deixa de ocorrer uma impressionante tradição de encontros versados sobre geografia desde o início do século XX! 142

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vador, estado da Bahia, de 7-16 de setembro de 1916. Volume II.Publicados sob a direção do secretário geral do mesmo congresso, professor doutor Bernardino José de Souza. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1916-1918. Consultamos o vol. I na biblioteca central do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pela Internet, no site da UFRJ consta que o Museu Nacional dispõe dos anais. Anais do 9º Congresso Brasileiro deGeografia, realizado em Florianópolis, 1942. Volume 2. Anais publicados sob a direção da comissão de redação composta do Exmo. Sr. ministro Bernardino José de Sousa, do engenheiro Cristóvão Leite de Castro, do senhor Alexandre Ermílio Sommier, sob os auspícios do Conselho Nacional de Geografia. Consultamos o vol. II na biblioteca central do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pela Internet, no site da UFRJ consta que a biblioteca do CCMN dispõe dos volumes III e IV; enquanto o Museu Nacional e o PGG da Geografia dispõem de cinco volumes cada órgão. Anais do 10º Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, 1944. Volume 1. Publicado sob os auspícios do Conselho Nacional de Geografia, 1949. Consultamos o vol. I na biblioteca central do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anais do II Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, 1965. Resumo de teses e comunicações sob o patrocínio da Associação de Geógrafos Brasileiros.

Periódicos Revista Brasileira de Geografia, edições de: 1940 - v. 2, n.1 jan./mar. 1940 (p. 100); v.2, n. 2 abril/jun. 1940 (p. 204); v. 2, n. 3 jul./set. 1940 (p. 484); v. 2, n. 4 out./dez. 1940 (p. 622);  1941 -  v. 3, n. 1 jan./mar. 1941 (pp. 146-149; 191-194); v.3, n. 3 jul./set. 1941 (pp. 651-666); 1942 -  v. 4, n. 3 jul./set. 1942; v.4 n. 4 out./dez. 1942; 1943 - v.5, n. 1 jan./mar. 1943 (p. 131); v. 5, n. 2 abril/jun. 1943 (p. 293); v. 5, n. 3 jul./set. 1943 (p. 491); 1944 - v. 6, n. 1 jan./mar. 1944 (p. 145); v. 6, n. 3 jul./set. 1944 (p. 380, 430); 1946 - v. 8, n. 1 jan./mar. 1946 (p. 172);

Documentos 5º Congresso Brasileiro de Geographia, 1916, IHGB, cód. 200, 8, 5 nº 6. 10º Congresso Brasileiro de Geografia, IHGB, cód. 191, 3, 5 nº 22. Instruções para a adesão e apresentação de trabalhos ao Décimo Congresso Brasileiro de Geografia, 1942, IHGB, cód. 193,4,4 nº 22. Instruções para a adesão e apresentação de trabalhos ao Décimo Congresso Brasileiro de Geografia, 1944. IHGB, cód. 205, 4, 4 nº 12 (é semelhante ao produzido no ano de 1942, voltado para o encontro no Pará). Programa-calendário do X Congresso Brasileiro de Geografia, 1944, IHGB, cód. 205,4,5 nº 15.

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Regimento para a comissão organizadora central do 10º Congresso... sob a presidência de honra do Exmº Sr. Dr. Getúlio Vargas, 7 a 16 / set. / 1943, cód. 191, 3, 5 nº 22. Regulamento do 10º Congresso Brasileiro de Geografia, 1941, IHGB, cód. 205,4,4 nº 11. Reminiscência e Impressões do 5º Congresso Brasileiro de Geografia, 1916, IHGB, cód. 200,8,5 nº 6. 7º Congresso Brasileiro de Geografia, 1921, IHGB, cód. 193,5,2 nº 17. 7º Congresso Brasileiro de Geographia, 1921, IHGB, cód. 193,5,2, n. 17 e 200,8,1 n. 25.  

Bibliografia

BACKHEUSER, Eng. Everardo. “Da trilha ao trilho”. In: 9º Congresso Brasileiro de Geografia, s/d . pp. 102-124. Texto editado pelo Clube de Engenharia do Rio de Janeiro. HERMES, João Severiano da Fonseca. “Limites do Brasil; descrição geográfica da linha divisória”. In: 9º Congresso Brasileiro de Geografia, 1940, Florianópolis. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda, 1940, 135 p. (Memória apresentada à 2ª Comissão Técnica – geografia física – do IX Congresso Brasileiro de Geografia reunido na cidade de Florianópolis, em setembro de 1940.) PENHA, Eli Alves. A criação do IBGE no contexto da centralização política no Estado Novo. Rio de Janeiro: IBGE (1993, p. 76).  

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Anexo nº 1 Programa-calendário das solenidades, sessões, festas, visitas e excursões a serem realizadas durante o período da reunião do X Congresso Brasileiro de Geografia.   Dia 6 (quarta-feira) Às 10 horas Reunião na Secretaria da Comissão Organizadora para a apresentação de credenciais e distribuição de exemplares do Regulamento, programa-calendário, cartão de identidade e distintivo de congressista. Local – Sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Avenida Augusto Severo nº 4. Às 15 horas Sessão plena preparatória, sob a Presidência do Professor Fernando Antônio Raja Gabaglia, Presidente da Comissão Organizadora Central. Ordem do dia: 1) Aclamação dos Presidentes de Honra, Beneméritos, etc. 2) Eleição da Mesa Diretora do Congresso. 3) Posse da Mesa Diretora 4) Designação dos membros da Comissão de Coordenação e Iniciativas e das Comissões técnicas. 5) Distribuição das teses e trabalhos pelas respectivas Comissões técnicas. 6) Leitura e aprovação da Ata desta sessão. Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro   Dia 7 (quinta-feira) Dia da Pátria Pela manhã Os congressistas e suas famílias assistirão ao desfile das Forças Armadas, em comemoração ao “Dia da Pátria”. Local – Avenida Presidente Vargas Traje de passeio; Às 20 ½ horas Sessão pública e solene de instalação do Congresso, sob a Presidência de Honra de Sua Excelência o Senhor Doutor Getúlio Vargas, Presidente da República. Local – Palácio Tiradentes Traje de passeio (escuro) para os convidados e congressistas. Dia 8 (sexta-feira) Das 9 ½ às 12 horas Reunião das Comissões técnicas para estudo das teses e trabalhos e votação dos respectivos pareceres. Período Republicano 145

Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Às 15 horas Sua Excelência o Senhor Presidente da Repùblica receberá os congressistas em audiência especial. Local – Palácio do Catete. Condução – Ônibus especial Ponto de encontro – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Traje de passeio (escuro). Às 16 horas Visita oficial a Sua Excelência o Senhor Prefeito do Distrito Federal. Local – Palácio da Prefeitura, à Praça Floriano Peixoto. Traje de passeio (escuro). Às 20 ½ horas Conferência a ser pronunciada pelo Professor Jorge Zarur, do Conselho Nacional de Geografia, sobre “A Geografia, uma ciência moderna a serviço do homem”. O congressista será apresentado pelo Dr. Christovam Leite de Castro, Secretário Geral do Conselho Nacional de Geografia. Local-Auditorium do Ministério da Educação. Traje de passeio. (Não haverá convites especiais).   Dia 9 (sábado) Não haverá sessão ou reuniões Às 10 horas Visita oficial ao Conselho Nacional de Geografia, que se reunirá extraordinariamente para receber os congressistas. (O Doutor Christovam Leite de Castro, Secretário Geral do Conselho, fará uma exposição sobre as atividades geográficas no país.) Visita ao Serviço de Desenho da Carta do Brasil ao milionésimo. Local – Edifício Serrador – Praça Getúlio Vargas nº 14 (5º pavimento) Traje passeio (Não haverá convites pessoais) Às 17 horas Inauguração da Exposição de Geografia e Cartografia. Local – Edifício Serrador – Praça Getúlio Vargas nº 14 (21º pavimento) (Não haverá convites pessoais). Às 18 horas Cock-tail oferecido pelas Comissões organizadoras do Congresso às Delegações estrangeiras, aos representantes e delegados oficiais e aos congressistas. Local – Recinto da Exposição de Geografia e Cartografia. Traje de passeio. (Não haverá convites pessoais). Às 20 ½ horas

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Jantar oferecido às Delegações e representantes oficiais pelo Presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Local – Salão de Festas do “Automóvel Club do Brasil” – Rua do Passeio, 90. Traje de passeio. (Haverá convites pessoais)   Dia 10 (domingo) Às 10 horas Missa votiva pelo êxito do Congresso, a ser celebrada por S. Ex. Ver.  D. Jaime de Barros Câmara, Arcebispo Metropolitano. Local – Catedral Metropolitana (Praça 15 de Novembro) Condução – Livre Às 13 horas Reunião no “Jockey Club Brasileiro”. Os congressistas e suas famílias assistirão à disputa do “Prêmio X Congresso de Geografia”. Local – Hipódromo da Gávea. Condução – Ônibus especial. Ponto de encontro – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Traje de passeio.   Dia 11 (segunda-feira) Das 9 ½ às 12 horas Reunião das Comissões técnicas Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Das 14 ½ às 17 horas Primeira sessão plenária. 1) Leitura do expediente 2) Ordem do dia: (a ser comunicada previamente aos Senhores congressistas) 3)  Comunicações geográficas. 4) Apresentação de moções, indicações e recomendações. Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Às 17 ½ horas “Tarde brasileira”, em local a ser anunciado oportunamente. Às 20 ½ horas Conferência a ser pronunciada pelo Professor Jaime Cortesão, representante da emérita Sociedade de Geografia de Lisboa, sobre o tema: - A cartografia antiga e os fundamentos pré-históricos da Nação brasileira. Fará a apresentação do conferencista o General Emílio Fernandes de Souza Docca. Local – Auditorium do Ministério da Educação. Traje de passeio. (Não haverá convites pessoais).

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Dia 12 (terça-feira) Não haverá sessão ou reuniões Às 9 horas Visita ao Instituto de Educação do Distrito Federal – inauguração da Secção Didática, anexa à Exposição de Geografia e Cartografia. (Saudará os congressistas o Professor Mario da Veiga Cabral) Local – Rua Mariz e Barros nº 273 Às 15 horas Visita ao Colégio Pedro II (Externato) Inauguração da Secção de Oceanografia, anexa à Exposição de Geografia e Cartografia. Local – Avenida Marechal Floriano nº 80. Às 17 horas Visita ao Palácio Itamaraty e ao Serviço de Documentação do Ministério das Relações Exteriores (Arquivo Histórico, Biblioteca e Mapoteca). (O 1º Secretário de Embaixada Doutor Jorge Latour, Chefe do Serviço de Documentação, exibirá as obras, documentos e mapas das coleções do Itamaraty.) Local – Avenida Marechal Floriano nº 196. (Não haverá convites pessoais para essas visitas).   Dia 13 (quarta-feira) Das 9 ½ às 12 horas Reunião das Comissões técnicas. Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Das 17 ½ horas às 17 horas (sic) Segunda sessão plenária 1) Leitura e aprovação da ata da sessão anterior 2) Leitura do expediente 3) Ordem do dia: (a ser comunicada previamente aos Senhores congressistas). 4) Comunicações geográficas. 5) Apresentação de moções, indicações e recomendações. Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Às 17 ½ horas “Tarde brasileira”, em local a ser anunciado oportunamente. Às 20 ½ horas Conferência a ser pronunciada pelo Professor Everardo Backheuser sobre o tema: - Rio de Janeiro, cidade “sui generis”. Fará a apresentação do conferencista o Professor Maurício Joppert da Silva. Local – Auditorium do Ministério da Educação. Traje de passeio. (Não haverá convites pessoais).  

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Dia 14 (quinta-feira) Não haverá sessão ou reuniões. Às 8 horas Excursão geográfica à Baixada Fluminense (o Engenheiro Hildebrando de Araújo Góis, Diretor do Departamento Nacional de Obras e Saneamento, fará uma preleção sobre as obras de saneamento da região e o Doutor Alberto Lamego dissertará os sobre os aspetos fisiográficos e geo-humanos da região). Ponto de encontro – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Condução – Ônibus especial. Traje de excursão ou passeio. (Não haverá convites pessoais). Às 20 ½ horas Sessão solene em homenagem à Delegação do Estado do Pará, presidida pelo Coronel Magalhães Barata, Interventor Federal naquele Estado. (Em nome dos congressistas, fará o discurso de saudação, o Ministro João Severiano da Fonseca Hermes Júnior. Local – Auditorium da Associação Brasileira de Imprensa. Rua Araújo Porto Alegre nº 71. Traje de passeio. (Não haverá convites pessoais).   Dia 15 (sexta-feira) Das 9 ½ às 12 horas Última reunião das Comissões técnicas. Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Às 14 ½ horas Terceira e última sessão plenária 1) Leitura da ata da sessão anterior. 2) Leitura do expediente. 3) Ordem do dia: (a ser comunicada previamente aos Senhores congressistas). 4) Comunicações geográficas 5) Apresentação de moções, indicações e recomendações Local – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Às 17 ½ horas “Tarde brasileira”, em local a ser anunciado oportunamente. Às 20 ½ horas Conferência a ser pronunciada pelo Comandante Braz Dias Aguiar sobre a Geografia amazônica. (Fará a apresentação do conferencista o Ministro Orlando Leite Ribeiro). Local – Auditorium do Ministério da Educação. Traje de passeio. (Não haverá convites pessoais).

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Dia 16 (sábado) Às 8 horas Passeio pela cidade. Ponto de encontro – Instituto Histórico e Geográfico  Brasileiro Condução – Ônibus especial Traje de passeio (Não haverá convites pessoais) Às 13 horas Almoço oferecido aos congressistas pelo Prefeito do Distrito Federal. Local – Parque da Cidade – Estrada Dona Castorina – Gávea. Condução – Ônibus especial. Traje de passeio (Haverá convites pessoais). Às 20 ½ horas Sessão pública e solene de encerramento do Congresso. Local – Palácio Tiradentes Traje de passeio.

Esquema da Organização do Congresso Mesa Diretora ¯ Comissão de Coordenação e Iniciativas ¯ Secções técnicas ¯ 1ª Geografia histórica e explorações geográficas 2ª Geografia matemática 3ª Geografia física 4ª Biogeografia 5ª Geografia humana 6ª Geografia das calamidades 7ª Geografia médica 8ª Geografia econômica 9ª Metodologia geográfica e ensino da geografia 10ª Monografias regionais, estudos especiais da corografia do Estado do Pará.

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Anexo nº 2 (O que se segue não tem autoria, mas vem logo após a apresentação do Sr. Boiteux; sendo portanto do mesmo material consultado; mas parece-nos que seja de Luiz José da Costa Filho.) Ao notável catharinense e distincto intellectual brasileiro dr. José Arthur Boiteux, também nosso consocio, cabe a ventura de ter sido o creador de certamens scientificos tão proveitosos e benéficos. A ideia vingou, o triumpho coroou a feliz lembrança do illustrado geographo. Na capital federal, em data de 7 de Setembro de 1909, inaugurava-se com solemnidade o 1º Congresso de Geographia, na América do Sul reunido; veio depois o 2º, que teve logar em S. Paulo; em seguida o 3º, com sede em (p. 6) Curytiba; o 4º, realisou-se na cidade do Recife e o 5º, encantou a cidade do Salvador, capital do Estado da Bahia. O 1º logrou ser presidido pelo egrégio patriota e preclaro scientista sr. Márquez de Paranaguá; ao 5º coube a elevada regalia de ter como presidente de honra o venerando estadista do segundo Império e maior geographo nacional, sr. Barão Homem de Mello. Com elle, através da sua morosa, mas, douta e límpida palavra, pronunciada por lábios que fallam há mais de oitenta annos, eu subi em espírito aos píncaros do Itatyaia e das Agulhas Negras; perlustrei as florestas immensas do Valle Amazônico; contemplei, aterrado, as cachoeiras do Rio Grande, em S. Paulo, e de Paulo Affonso, no S. Francisco; embrenhei-me pelas infindáveis e multi-seculares mattas de Matto Grosso; ouvi o rumor e senti os açoutes do pampeiro, nas cochilas do Rio Grande do Sul; atravessei os chapadões de Goyaz; corri sobre os espinhaços das alterosas serras de Minas Geraes; admirei a baixada fluminense; apavorei-me ante o espectaculo horrível das seccas do Ceará; encandiei-me com as fulgurações dos diamantes, das saphiras e dos topasios dos sertões da Bahia; sonheir entre as ondas desse infinito occeano Glauco dos cannaviaes de Pernambuco , de Alagoas e do meu doce, do meu estremecido, do meu nunca olvidado Sergipe. Guiado pela palavra abalisada do velhinho encarquilhado, tremulo, frágil, fidalgo, leve e quase transparente, que é Homem de Mello, o antigo estadista liberal da Monarchia e o grande geographo de sempre, eu viajei em espírito, sobre as volumosas torrentes do Amazonas e do S. Francisco; neste, surprehendendo-me a attenção o seu vasto canon: e naquelle, todos os curiosos phenomenos geológicos com que entontece e confunde a visão dos estudiosos e dos touristes, que lhe contemplam os scenarios instáveis e fugidiços. O Barão é uma História viva, disse-me espirituosamente a sra. Baroneza, certa vez, quando no quarto (p. 7) de repouso da Pensão Randenburg, na VicPeríodo Republicano 151

toria, onde o governo da Bahia o hospedára princepescamente, o barão esclarecia-me certo importante ponto da Historia do Brazil, a respeito do qual eu o importunei por mais de uma vez.   Definio a intelligente e gentil Baroneza com muita propriedade a cultura do seu nobre esposo: elle é a nossa Historia fallando. O obscuro delegado deste Instituto, conseguio, que o barão Homem de Mello venha visitar-nos. Tendo-me scientificado um collega de representação, que s. ex. desejava conhecer Sergipe, para logo diligenciei ouvir do próprio Barão a manifestação do seu desejo. Ouvi. Elle mesmo declarou-m’o no curso de uma palestra em torno da actual administração deste Estado e do seu Presidente, General Valladão. O estadista do antigo regimen fez justiça ao administrador republicano. Disse-me ser o “Senador Valladão, (elle sempre usava do qualificativo de Senador para o General) um espirito bem inspirado, homem de probidade, dos que foram ao Paraguay e bem servem ao novo regimem”. S. ex. o sr. Presidente Oliveira Valladão, confirmando  uma vez mais o proverbial preceito da hospitalidade sergipana, endereçou-me expontaneamente o telegramma seguinte: Rogo fineza apresentar Barão Homem de Mello cordeaes agradecimentos bondosas referenciais minha pessoa e assegurar-lhe que Sergipe ssumo prazer terá receber condignamente quem tanto tem sabido elevar nossa Pátria. Saudações cordeaes. – Oliveiras Valladão. Este nobilíssimo telegramma, eu o apresentei ao Barão na Sala da 2ª commissão do Congresso, presidida pelo conspícuo ancião. Elle, interrompendo os trabalhos por um momento, auctorizou-me, comovido, responder ao “Senador Valladão” o seu offerecimento, acrescentando poderia eu adiantar, que só em Março vindoiro a visita a Sergipe seria effectuada, pois sentia-se bastante fatigado; que opportunamente avisaria ao governo de Sergipe o dia preciso da sua partida do Rio de Janeiro. p. 8N a tarde deste mesmo dia, encontrando-me com a Baroneza no Hotel Meridional , em companhia do dr. Boiteux, que a tinha acompanhado nas visitas que fizera ás casas pias da cidade, falhei-lhe da viajem do Barão ao meu Sergipe. Ella confessou-me achar-se muita satisfeita com a resolução do esposo, e que utilizar-se-ia do ensejo para fundar aqui uma filial da Cruz Vermelha Brazileira. Ao mesmo passo que recebia eu o cavalheiroso telegramma presidencial, outro chegava-me ás mãos também, do meu digníssimo amigo Desembargador Caldas Barretto, noticiando-me haver proposto socio honorário deste Instituto, o sr. Barão Homem de Mello. O espírito equidoso do presidente desta casa, sagrava o mérito, cujo por152

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tador, depois de referir-se encomiasticamente ao Caldas pae, seu velho conhecido, e ao Caldas filho, que firmava o telegramma em questão, pedio-me que o agradecesse. Homem de Mello foi o presidente do 5º Congresso; e porque o foi, dil-o o sabio engenheiro e vernaculista bahiano Theodoro Sampaio, no curto e expressivo discurso com que convidou o Barão a assumir a direcção dos trabalhos, discurso que me não posso furtar ao desejo de aqui transcrever. Escutae-o, meus illustres ouvintes, pois que Theodoro Sampaio é filho estylista e um devotado cultor das nossas lettras clássicas. Disse elle: “Srs. Congressistas: Agradecendo-vos a subida honra com que me confundis elegendo-me para presidir aos trabalhos deste Congresso, honra immerecida e tão superior ás minhas forças, peço-vos de conceder-me um momento de attenção. Quando, na organização deste certamen, se pensou em convidar para vir á Bahia o exm. Sr. Barão Homem de Mello, foi deliberação da Commissão Organizadora entregar-lhe a direcção superior dos nossos trabalhos e essa deliberação se mantém. Fazendo como se acaba de fazer, elegendo-o nosso presidente de honra e a mim simples (p. 9) presidente, foi intuito de nós todos dar maior realce ao nosso gesto, e cercar da máxima consideração o vulto venerando do illustre estadista e homem de lettras que a Bahia hospeda. Não errou o nosso distinctissimo amigo o sr. Dr. José Arthur Boiteux a quem se deve a feliz iniciativa desses Congressos de Geographia no Brazil20, quando justificando-se num incidente de imprensa, aqui há dias, fallou em presidência par droit de conquête. O princípio é verdadeiro; acceitamol-o in totum com a condição, porém, de que se lhe tirem todas as lógicas consequências. Par droit de conquête, sim, é que assumirá a presidência das nossas sessões o inclito geographo; par droit de conquete, sim, que a sua conquista aqui a todos antecede; que aqui a todas sobreleva; aqui a todos nós se nos impõe. Convido ao exmo. sr. Barão Homem de Mello a dar-nos a honra de presidir os nossos trabalhos. Acclamemol-os”. Quem estas palavras escreveu em linguagem assim castiça e pura, com a simplexa de um estylo assim correntio e dulçuroso foi, senhores meus, uma das figuras mais salientes e prestigiosas do Congresso. Nenhum de vós ignora A quem tenha interesse pelo tema dos Congressos Brasileiros de Geografia, caberia melhor explorar a biografia desta pessoa. Numa rápida pesquisa, parece que José Arthur Boiteux vem a ser parente de Henrique Boiteux (militar brasileiro, vice-almirante, historiador naval) e Lucas Alexandre Boiteux (militar, contra-almirante e historiador naval). 20

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os serviços relevantes que Theodoro Sampaio tem prestado a nossa Historia e a nossa Geographia. O seu monumental discurso de boas vindas aos congressistas dos outros Estados, na noite memorável da abertura do Congresso, disse-o com abundancia de senso e rasão o chronista do Jornal de Noticias, “valia só elle por todo um Congresso de literatos e sábios”. Parecia-me, ao escutal-o, que era Eliseu Reclus quem orava, com a linguagem do padre Antonio Vieira: que era Humboldt quem predicava, com a palavra de Alexandre Herculano, ou de Garrett. A saudação de Theodoro Sampaio mereceu naquella mesma noitada de atticismo, a apologia arrebatadora do verbo incendido do dr. José Bonifácio, o eloqüente, sympathico e insinuante delegado de Minas Geraes. Affirmar, que José Bonifácio revelou-se o maior orador do 5º Congresso, é simplesmente fazer justiça certa, aos ricos dotes tribunicios do digno neto do Patriarcha da  nossa independência. O auditório de escol, que, na noite de 7 de Setembro ouvio, no venusto salão nobre da Faculdade de Medicina da Bahia, a calorosa palavra acadêmica do deputado José Bonifácio, convicto dalli sahiu, que o representante de Minas, herdeiro legitimo se mostra da eloqüência cívica dos Andradas. O seu porte franzino e elegante, seus gestos fidalgos e sóbrios, sua falla suave e lenta, sua phrase nervosa e cuidada, seu tracto meneirôso e captivante, tudo nelle denuncia um perfeito homem culto, um esmerado cavalheiro e um futuro estadista. Eu tive a honra, senhores, de ser eleito membro da importante Commissão de Anthropogoeographia, da qual presidente eleito fora o dr. José Bonifácio de Andrada e Silva. Maior honraria coube-me ainda em partilha naquelle torneio da Sciencia: vem a ser, que o illustre delegado mineiro foi quem na 2ª sessão plena do Congresso, com visível enthusiasmo propoz á meza se dirigisse aos Poderes Públicos, da União e dos Estados, no sentido de providenciarem afim de que postos em pratica sejam os votos que formulei nas conclusões da minha Memória, intitulada: “A GEOGRAPHIA E A GUERRA”, a qual mereceu do meu douto e caro Mestre o eminente philogo (sic) e professor de Direito dr. Virgílio de Lemos, um voto de felicitação pelo patriotismo que, consoante elle o dissera, o meu trabalho encerra e revela. Approvada sob uma forte e demorada salva estrondosa palmas por todo o Congresso reunido, a proposta Bonifácio relativa á Memória do humilde delegado do “Instituto Histórico e Geographico de Sergipe”, que vos neste momento a desbotada palavra dirije, o presidente da 4ª Commissão deu-se pressa no endereçar aos Presidentes e Governadores dos Estados circulares a respeito, entre as quaes se me permitia destacar a telegraphica, transmitida ao exm. sr. General Presidente de Sergipe, que vós todos já conheceis, assim redigida:  154

Aspectos históricos da geografia brasileira

“Bahia, 13 – Presidente Estado, Aracaju – Approvada memória Costa Filho, voto felicitações dr. Vírgilo Lemos, conclusões votadas com applausos pelo Congresso Commissão faz votos Governos adoptem realizem. Saudações – JOSÉ BONIFÁCIO, presidente 4. Comissão”. Parabéns isolados, além dos collectivos tradusidos nas palmas unisonas do Congresso, recebi pela utilidade das minhas praticas conclusões, dos srs. Barão Homem de Mello, dr. José Boiteux, dr. João Pedro Cardoso, delegado da “Comissão Geographica e Geologica de S. Paulo”; dr. Irineu Ferreira Pinto, delegado do “Instituto Geographico e Histórico da Parahyba” e dr. Manoel Dantas, delegado do Rio Grande do Norte. Eu vos fallei no dr. João Pedro Cardoso. Foi umas das mais distinctas figuras do 5º Congresso. Engenheiro civil de nomeada e Geographo de méritos não communs, chefia elle com devotamento e brilho a benemérita “Commissão Geographica e Geológica” do rico e grande Estado de S. Paulo. Cavalheiro de invejável educação, armazenando no cérebro uma cultura profissional bem ampla, orador correcto e simples no palavreado da oração, homem de alta estatura, alourado, elegante, e observador meticuloso, o illustrado geographo paulista, presidente que foi da 1ª Commissão do Congresso, no seio deste representou um papel de destaque inconteste. A proveitosa e pratica conferencia, com bellas projecções luminosas de cinema, que realizou no Theatro S. João – sobre os trabalhos de exploração e saneamento do Rio Grande, nos sertões paulistas, ficará como um dos mais úteis aspectos das festas do 5º Congresso, e mais: como uma licção, digna de ser aprendida e imitada, que S. Paulo deu aos demais Estados presentes nas pessoas dos seus delegados – No correr de sua conferencia, referindo-se ao carinho com que os paulistas tractam as suas florestas, disse o dr. Cardoso: “Nós não podemos nem devemos destruir as arvores, porque ellas não nos pertencem. Nossos Paes nol-as legaram, devemos transmittil-as aos nossos filhos”. Julgo, meus nobres ouvintes e confrades, ser esta phrase do distincto paulista digna de uma graphia em bronze, por milhares de chapas, afim de que em cada tronco das nossas mattas estupidamente violadas e depredadas, uma se collocasse bem ostensiva as vistas daquelles que, de machado ao hombro, fazem profissão de verdugos das arvores. O dr. João Pedro Cardoso, srs., foi quem lavrou parecer a respeito do soberbo trabalho do sabio geographo dr. Theodoro Sampaio, denominado: Carta Hydrographica da Bahia de Todos os Santos; de tal maneira encantado ficou por esse trabalho, que, em palavras do mais alto encômio teceu-lhe o relato e salientou-lhe o valor em sessão plena. Iguaes elogios fez o illustrissimo paulista ao outro precioso trabalho de Theodoro Sampaio, intitulado: Planta Geral da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Ambos esses trabalhos foram coroados com voto de louvor. Período Republicano 155

Na 4ª Commissão, srs., houve uma insigne Memória, lida pelo seu próprio autor, e que foi acertadamente mandada tirar em avulso pelo Governo de Alagoas: a do jurista e philologo dr. Virgilio de Lemos, membro da referida Commissão. O venerando Mestre e famoso grammatico burilador do Código Civil, Carneiro Ribeiro, que ouvira attentamente a leitura da peça notável, intitulada: A Língua Portugueza no Brazil, usou da palavra depois, saudando o seu auctôr e sagrando-o mestre da língua formosa e difficil que fallamos. Do que tocou especialmente a Sergipe, nas sessões plenas do 5º Congresso, que apenas três foram, o significativo facto da acclamação do exm. Sr. Presidente Oliveira Valladão para Presidente de Honra do Congresso, afigura-se-me a realidade mais importante, pois é a primeira vez que deferência tão elevada cabe ao nosso querido Estado. Nas sessões parciaies, ou de labores das seis Commissões, dois factos impressionantes e merecedores de nota destacamos: o da energia e altiva attitude assumida pelo illustrado sergipano dr. Rodrigues Doria em face das pretensões arrogantes do dr. Braz do Amaral, tentando lesar direitos do nosso Sergipe, na questão de limites com a Bahia, por ardilosos meios, abusivos e dolosos, postos em armadilha nas (p. 13) paginas de uma sua Memoria sobre o Município de Patrocínio do Coité ; o outro facto, foi o da empolgante defesa feita pelo Engenheiro Civil e Professor da Escola Polytechnica da Bahia, Souza  Carneiro, á Memória apresentada pela talentosa senhorita e escriptora sergipana, Ítala Silva de Oliveira, Memória que foi approvada e será publicada nos Annaes do 5º Congresso. _________ Resta-me agora, generosos ouvintes meus, em nome deste Instituto, e do cimo alumiado da tribuna delle, significar a sua gratidão ás gentilesas dispensadas ao seu humílimo delegado e 1º secretario, durante os dias do Congresso, pelo honrado e excellentissimo sr. Dr. Aontonio Muniz, Governador do Estado da Bahia, que a mim cumulou de attenções solicitas e captivantes; ao Instituto Geographico e Histórico da Bahia, o lar intellectual de Bernardino de Souza, que ao orador que vos falla elegeu sócio do seu benemérito grêmio scientifico; ao Intendente da cidade do Salvador, e aos intellectuaes bahianos, como igualmente a nobre Imprensa da Bahia, esta Imprensa que na Meza do Congresso teve um notável representante, o conceituado jornalista e mavioso poeta Aloysio de Carvalho, uma das mais formosas representações da Bahia intellectual. A todos, os agradecimentos deste Instituto. E me não será licito terminar esta desataviada palestra de impressões, sem que formule um voto do mais fundo recesso da minh’alma e do meu coração de brazileiro, qual seja: para que o Deus Altíssimo, que pregou com estrellas o Cruzeiro do Amor, do Perdão, da Misericórdia, da Civilisação e da 156

Aspectos históricos da geografia brasileira

Fé, lá no velludo azul claro do céo luminoso da Pátria, proteja e anime, encoraje e illumine os apóstolos da Sciencia no Brazil, afim de que os Congressos se multipliquem e renovem, a lâmpada sagrada da intelligencia brilhe cada vez mais, e o Brazil adorado, a Terra da Vera-Cruz, seja no futuro a Rainha da Paz, o Sol da Civilisação, o Modelo da Ordem, o Espelho da Democracia e o PortaEstandarte do Progresso. Trabalhemos com todas as virtudes do nosso espírito, srs., para alevantarmos á cathegoria inter (p. 14) nacional de potencia de primeira ordem, este rico e idolotrado torrão brazilico, em cujas entranhas dormem os ossos dos nossos avós e dos nossos Paes, e oonde amanha também, descansaremos, na infinita e silenciosa noite do derradeiro somno. Trabalhemos todos: - “Pró conjunctione interse brasiliensium”. Hei concluído.

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Delgado de Carvalho e a geografia brasileira1 Introdução Tendo encontrado alguma resposta na pesquisa sobre a origem da geografia brasileira, passamos a explorar novas perspectivas tendo por objeto a geografia brasileira. No momento passamos a explorar uma trajetória por demais importante para a geografia, empreendida pelo então geógrafo Delgado de Carvalho! Delgado de Carvalho é o nosso Friedrich Ratzel, em que pese o não reconhecimento! É o nosso Vidal de La Blache, embora não seja reconhecido como tal! Se assim fosse ao menos seria recomendado nas universidades!

E Aires de Casal? Em artigo de Lima (1999) se afirma, segundo Caio Prado Jr. no seu livro Evolução política do Brasil, que Aires de Casal teria sido o pai da geografia brasileira através de Corografia Brasilica, tendo sido anteriormente o mesmo afirmado por Auguste Saint-Hilaire, no século XIX. Nesse mesmo trabalho a autora enumera diferentes considerações de Caio Prado sobre o referido autor, a saber: I) Aires de Casal realiza uma coleção e registro de fatos. II) Foi a única publicação, durante vários anos, que reunia informações sobre todo território brasileiro sem qualquer contribuição original do autor, ou seja, não há registro de suas observações sobre o Brasil; ele se ocupa, mais uma vez, juntar o que os outros fizeram. III) O mérito do trabalho de Aires de Casal foi o de ter sido o primeiro a unir e sistematizar as informações sobre o país.

Divergências à parte, parece que estamos diante de uma pré-história da geografia brasileira! A obra foi impressa em 1817. Considerou produções realizadas antes do Instituto Histórico Geográfico BrasileiOriginalmente publicado na Revista Geo-paisagem ano 10, n. 20, julho/dezembro, 2011. 1

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ro. Ela chega a considerar texto de 1571, o de Jeronimo Osório, que analisou os índios de então. Seria isto geografia?

Delgado de Carvalho Sua vida Carlos Miguel Delgado de Carvalho nasceu em Paris em 4 de novembro de 1884 e faleceu no Rio de Janeiro em 1980 (e não em 1990 como o Wikipédia indica); foi geógrafo e professor radicado no Brasil1. Filho de pai brasileiro, estudou Direito na Universidade de Lausanne e Ciências Políticas em Paris. Em seguida realizou estudos em Diplomacia, com uma passagem pela London School of Economics. Chegou ao Brasil na primeira década do século XX, visando escrever a sua tese de graduação à Escola de Ciências Políticas de Paris. Atuou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e na Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro (1920). No Magistério, lecionou nas Escolas de Intendência e Estado Maior do Exército (1921), no Colégio Pedro II (Geografia, Sociologia e Inglês) e na Escola Normal, vindo a organizar o Curso Livre Superior de Geografia (1926) destinado à atualização dos professores do Ensino Fundamental2. Em Geografia, os seus primeiros trabalhos foram “O Brasil Meridional” (1910), “Geografia do Brasil” (1913), e “Meteorologia do Brasil” (1916). Posteriormente publicou “Geographia do Brasil” (1923) e “Introdução à Geografia Política” (1929). No campo da História foi autor de “História Geral” (4 vol.) e do conceituado “História Diplomática do Brasil” (1959), fruto das atividades desempenhadas junto ao Instituto Rio Branco em meados da década de 1950. Aos setenta anos de idade, publicou o “Manual de Organização Social e Política Brasileira” (OSPB), livro didático oficial do MEC/Inep. Delgado de Carvalho3 publicou 49 livros e elaborou inúmeros trabalhos nas áreas de ciência política, sociologia, história, educação, relações internacionais e geografia. Desenvolveu estudos fundamentais para a organização do território brasileiro, o aprimoramento do ensino da geografia no país e para a discussão de Apoiado em http://pt.wikipedia.org/wiki/Delgado_de_Carvalho em 20 de maio de 2011. 1

2

Ibidem.

Segundo http://www.ibge.gov.br/eventos/seminario_geografia_geopolitica/index.php 3

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temas relacionados à geopolítica e diplomacia. No IBGE, Delgado trabalhou ao lado da geógrafa, historiadora e professora Therezinha de Castro, parceria que resultou na publicação de inúmeros artigos para a Revista Brasileira de Geografia e para o Boletim Geográfico, além da edição do Atlas de Relações Internacionais (1960). Artigos de Therezinha foram fundamentais para o governo brasileiro reivindicar sua parcela do território na Antártida. Ela também desenvolveu trabalhos focando a geopolítica do Atlântico Sul, especialmente sobre o papel estratégico que o Brasil deveria desempenhar nesta área.

Barros (2008) observa que as atividades desempenhadas por Carvalho assemelham-se em muito às desempenhadas por Carl Ritter (17791859) no contexto germânico. Ainda, segundo este mesmo autor, Delgado de Carvalho participou nas atividades de magistério das Escolas de Intendência e Estado Maior do Exército, em 1921. Ministrou aulas no Colégio Pedro II – as disciplinas Geografia, Sociologia e Inglês (Machado, 2004) – e na Escola Normal, vindo depois a organizar o Curso Livre Superior de Geo-grafia (1926) destinado à atualização dos professores do Ensino Fundamental (primário) (Zusman & Pereira, 2000, p.54; Machado, 2004). As suas atividades ligadas às instituições do EnsinoMédio, Superior e Militar, e seu empenho em divulgar uma geografia modernizada para esses fins lembram as situações em que operou Carl Ritter, como antes indicado, no mundo germânico de antes da institucionalização universitária procedida no último quartel do século XIX e conduzida por F. Ratzel (1844-1904) e F. von Richtoffen (1833-1905).

O professor Pelo texto de Genylton Odilon Rego da Rocha – “Delgado de Carvalho e a orientação moderna no ensino da geografia escolar brasileira”4 – consta o papel decisivo de Delgado na mudança do ensino da Geografia que à época estava muito apoiada no exercício de memória. A partir da reforma de Luiz Alves – Rocha Vaz, Decreto n. 16.782-A, de 13 de janeiro de 1925 –, há uma mudança na incorporação de novos temas, assim como a adoção de uma nova abordagem na apresentação do tema. Para tanto colaborarão colaboraram dois professores do colégio D. Pedro II, a saber, Fernando Raja Gabaglia e Honório Silvestre. Data desse período a obra de Delgado de Carvalho que veio a ser analisada por Genylton Rocha e que trata especificamente da questão 4

In: Revista Terra Brasilis n. 1, jan./jun. 2000, p. 83-109.

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do ensino em Geografia, a saber: Methodologia do Ensino Geographico – introdução aos estudos de Geographia Moderna (1925)5. Pelo estudo de Pires (2006) consta toda uma digressão sobre o grau de representação do Brasil em seu trabalho no nível de diagnóstico para fins didáticos, assim como o modo como ele passou a representar o país na constituição de um novo sentido de como analisá-lo. No entanto, ele de forma alguma ficou restrito à sala; novamente, sua verve na dinâmica administrativa se fez presente quando participou de processo de reforma na educação tendo clara influência sobre a Geografia, como bem destaca Pires (2006)6. Produção A produção de Delgado é eclética e, ao mesmo tempo, profunda. Eclética porque versa sobre uma variedade ampla relacionada à Geografia; profunda porque ele trouxe contributo importante na conformação de uma literatura versada sobre a geografia brasileira, mormente, com tema relacionado às relações internacionais. Mas, simultâneo a isto, ele se ocupou com livro didático, com aquilo que chegava à sala de aula. Assim, ele escreve História diplomática do Brasil (1998), para o corpo de diplomatas, sendo um manual considerado na formação dos mesmos, assim como Organização social e política brasileira (1975), voltado para a sala de aula de alunos de primeiro e segundo graus. Sua linha de pensamento A linha de pensamento de Delgado de Carvalho apresenta uma ambiguidade, a saber, ela é nítida (remontando à escola francesa)7, mas ao mesmo tempo é plural, ou seja, o que sobressai em Delgado de Carvalho é alguém que escreveu livro didiático, livro-texto para diplomata8, e proferiu cursos de metodologia, é a dimensão Fazia parte de sua preocupação didático-pedagógica publicar manuais sobre temas, um deles chegou até nós e versa a História da Cidade do Rio de Janeiro (1994). 6 Em que pese o seu valor apena simbólico, mas por ele se mostra o quanto Delgado Carvalho tem relação com a educação, consta na rua Senador Ruy Carneiro n. 5, Recreio dos Bandeirantes , a existência da Escola Municipal Carlos Delgado de Carvalho. 7 Sobre o tópico indico o texto de Perla Brígida Zusman & Sergio Nunes Pereira: “Entre a ciência e a política: um olhar sobre a geografia de Delgado de Carvalho” (2000). 8 Chama a atenção sua produção na chamada geografia política, tendo em nome desta linha de geografia uma produção que tanto atendia às exigências da época do período militar (1964-1984), quando fez publicar Organização social e política brasileira (1975); o que me leva a lembrar quando ingresso na graduação em Geografia da UFRJ, em 1977, ter cursado a disciplina obrigatória EPB, ou seja, Estudos de Proble5

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de ser um intelectual de Estado, no desempenho de uma função pública! Delgado de Carvalho foi um servidor! Ele propriamente não constituiu uma escola, embora tenha seguido uma; sua produção diversa está a indicar que esteve refém não só de um projeto pessoal, mas de uma circunstância de Estado! Ou seja, ele desempenhou funções, ele pensou tendo em conta o que foi solicitado. Longevidade O segredo da produção de Carlos Miguel Delgado de Carvalho está apoiado na sua longevidade! Viveu quase 100 anos. E produziu até seus 80 anos! Fez de tudo, melhor, escreveu de tudo, desde que relacionado ao Brasil e interesses correlatos. Mexeu com história e geografia, à brasileira. Ainda Delgado era homem de Estado, ou seja, cumpria atribuições que o Estado brasileiro lhe conferia! Num Estado com poucos quadros, ele, Carvalho, ocupou muitos espaços dada a inexistência de outros9. O ocaso de Delgado de Carvalho É um certo despropósito tratar de ocaso relacionado à Delgado de Carvalho simplesmente porque se manteve ativo para além dos 80 anos! Mas, o que se quer aqui destacar é o seguinte: quando consideramos o texto de Nilo Bernardes sobre a geografia tradicional (1982) e o de Carlos Augusto Monteiro (1980) temos neste último o grande significado de Delgado de Carvalho para a geografia brasileira, a saber: ele foi o que foi até 1934. A partir de 1934 temos uma sequência de eventos, tipo criação da Universidade de São Paulo , a universidade no Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e respectivo Conselho Nacional de Geografia, que tornam a geografia mas Brasileiros; assim como uma longa parceria de Delgado de Carvalho com a professora Therezinha de Castro, professora do Colégio D. Pedro II até seu falecimento em 1992. Ainda na década de 1970, com mais de 80 anos de idade, ele e Therezinha divulgavam via Revista Brasileira de Geografia encartes de Relações Internacionais sobre as relações do Brasil com diferentes nações. 9 Outro aspecto oportuno observado por Barros (2008) diz respeito à expansão da indústria cultural e gráfica situada na capital federal, onde ele vivia, que se caracterizava, então, por uma enorme ansiedade para gerar produtos! 162

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brasileira com uma nova dinâmica. Assim, Delgado de Carvalho, na caracterização do próprio Carlos Augusto Monteiro, pertenceu à fase heróica e pioneira (ibidem, p. 140).

Concluindo Há um consenso quanto à centralidade de Delgado de Carvalho, que junto com Everardo Backheuser, segundo Machado (1995), configuraram uma forma mais moderna de condução dos trabalhos geográficos já a partir da década de 1920 do século XX, chegando a trabalhar juntos. Ainda com base em Machado, convém destacar o papel do Colégio D. Pedro II, onde ambos trabalharam como um elemento a aglutinar talentos na discussão do pensar uma outra forma a geografia. Quando consideramos o trabalho de Monica Machado (2009) nos deparamos que, em que pese a importância de Delgado de Carvalho, assim como de Everardo Backheuser, não são eles que configuram a universidade brasileira no campo da geografia. Esta, quando começa a dar decisivos passos na década de 1950 já encontra os dois em idade avançada! Ou seja, a ação de Delgado tem relação com a geografia em gênero, mas não enquanto na constituição de uma escala que adentrou a estrutura universitária tal como ocorreu com Vidal de La Blache já ao início do século XX na França. Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser são expoentes de uma fase escolar da geografia brasileira. Escolar, mas não universitária.

Fonte de consulta Bibliografia de Delgado de Carvalho CARVALHO, Delgado de. Methodologia do Ensino Geographico- introdução aos estudos de Geographia Moderna. Tomo I. Petrópolis, RJ: Typographia das Vozes, 1925. ______.História diplomática do Brasil. Introdução Paulo Roberto de Almeida. Ed. Fac-similar. Brasília; Senado Federal, 1998. ______.Organização social e política brasileira. 11ª ed. ver. E atual. Rio de Janeiro: Record, 1975. ______. História da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura. Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural. Divisão de Editoração, 1994. ______. África, geografia social econômica e política. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1963. Período Republicano 163

CARVALHO, Carlos Miguel Delgado de & CASTRO, Therezinha de. Geografia humana – política e econômica. 2ª edição. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1967. CARVALHO, Carlos Miguel Delgado de. Geographia do Brasil (4ª. ed.). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929. ______. “Brazil as a Latin American Political Unity”. Rice Institute Pamphlet, v. 27, n. 4, 1940. Disponível em: http://dspace.rice.edu/handle/1911/9069. ______. A Excursão Geográfica. Revista Brasileira de Geografia, p. 96-105, out./ dez., 1941. ______. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959. 409 p. ______. Manual de Organização Social e Política Brasileira. Brasília: Ministério da Educação; Inep, 1967. ______. Introdução à Geografia Política. Rio de Janeiro: s/ed., 1929. 132 p. CARVALHO, Carlos Miguel Delgado de& CASTRO, Therezinha. Geografia humana – política e econômica, 2ª edição. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1967.  

Demais fontes

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O Serviço Geográfico do Exército1 Apresentação No artigo “Serviço geográfico no Brasil” do então capitão Tasso Fragoso, encontrado no Anuário do Serviço Geográfico, nº 17, 1967, p. 303, consta uma primorosa avaliação do legado cartográfico proporcionado pelo Exército, que abaixo reproduzimos parcialmente: p.304 Alistamo-nos nas fileiras do exército pouco antes de desaparecerem os derradeiros vestígios dessa útil instituição. Logramos, porém, apreciar um a um todos os mapas por ela gravados e ter ideia através dessa obra, por certo importante para o Brasil, da atividade das gerações militares anteriores a 1870. Nós que chegamos hoje, quanto tudo definha e do passado persistem apenas as saudosas reminiscências, não podemos sopitar a admiração provocada pelas cartas gravadas no antigo Arquivo Militar. Remonta a 1865 ou 1866, segundo informações que nos foram bondosamente ministradas pelo Dr. Luiz Cruls, a primeira tentativa para o início de sérios trabalhos geográficos entre nós. Nessa data, o engenheiro Vlemincks, antes oficial de engenharia do exército belga, mediu uma base na praia de Jacarepaguá e foi incumbido de encomendar na Europa um basimetro, o mesmo aproveitado mais tarde na medição da base de Santa Cruz e ainda hoje existente no Observatório Astronômico... p. 305 Em 1873 encontra-se uma nova tentativa, porventura a mais sistemática, para o levantamento da carta do Brasil, graças à criação da chamada Comissão da carta geral do Império. Esta comissão mediu uma base de 2.500 metros, mais ou menos, em capôs da fazenda de Santa Cruz e iniciou trabalhos de triangulação no então Município Neutro. Extinta em 1878, deu-se o governo pressa em substituí-la pela Comissão da carta itinerária (por iniciativa, ao que nos referiram, do Barão de Capanema) e proveu-a de engenheiros austríacos. Pouco tempo duraram os trabalhos começados no Rio Grande do Sul, pois em menos de dois anos ficava a nova comissão também extinta. ... Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 1, n. 2 , julho/dezembro de 2002 . 1

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Proclamada a República, raiaram novas esperanças para os que se preocupam com estes problemas. Pelo decreto nº 451-A, de 31 de maio de 1890 foi criado o Serviço Geográfico, anexo ao Observatório Astronômico, para execução dos trabalhos geodésicos e geográficos na República dos Estados-Unidos do Brasil. p.306Tão auspicioso tentame, para que colaborara Benjamim Constant, nunca passou de aspiração teórica; foi completamente impossível ao Diretor do Observatório pôr em execução as ideias nele consubstanciadas. A adaptação ao Brasil, em 1896, da clássica organização dos Estados-Maiores europeus trouxe de novo a campo a questão do serviço geográfico. Sabe-se que, em todas as nações já de posse daquela instituição, o Serviço Geográfico fica diretamente subordinado ao Grande Estado-Maior (França, Alemanha, Áustria, Itália). p.307Entre todas as nações da Europa que temos visitado, isto é, França, Itália, Áustria, Alemanha, Portugal, etc. o serviço da carta geral do Páis está desde muitos anos entregues ao corpo de Estado-Maior ou de engenheiros militares. Estes serviram-se do cadastro, já então existente, para estabelecer a medida de base e a triangulação geodésica; daí partiram os trabalhos de levantamento que deram lugar à confecção das cartas modelos que possuem atualmente (p. 308) a França, a Alemanha e a Itália, como viu-se na exposição do Congresso Internacional de Geografia, reunido em Paris, em 1875. p.308Qualquer projeto tendente a fundar o serviço geográfico, deve assentar sobre esta verdade inconcussa: Não é possível a organização de uma carta de país inexplorado, como o nosso quando lhe não servem de fundamento operações geodésicas e topográficas.

A história do Serviço Geográfico do Exército é, portanto, essencialmente, partícipe da história da cartografia brasileira! E assim se caracteriza porque os militares visualizavam na questão do mapeamento do território um aspecto que lhe era muito caro, a saber: a soberania nacional. Soberania que exigia um adequado mapeamento do território brasileiro, para melhor conhecer sua geografia, e nela atuar. Neste sentido, o presente trabalho resgata a história da instituição que é pouco lembrada nos fóruns acadêmicos dedicados à geografia brasileira.

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Origem Num dos poucos materiais disponíveis sobre a história da cartografia brasileira, o artigo de Djalma Polli Coelho – “Geógrafos, cartógrafos e demarcadores” – encontrado no Anuário 1951-1952, nº 4, edição de 1954, pp. 35-471, destaca um levantamento dos diferentes expedientes realizados no sentido de traçar nossas delimitações territoriais. Em seguida, o autor revela o esforço, marcado por acidentes e incidentes, de se reconhecer o nosso território no sentido de melhor orientar os militares em suas tarefas precípuas de defesa. Assim, pelo acima destacado, a experiência adquirida no tempo do Império veio a ser retomada pelo Estado Maior do Exército. Retomando o assunto das mãos da antiga Comissão da Carta Geral do Império... o Tenente Coronel Feliciano Mendes de Morais, chefe da referida 3ª Seção, juntamente com o Capitão Alberto Cardoso de Aguiar e o Tenente Custodio de Sena Braga, adjuntos, assinaram em 9 de abril de 1900 o alentado e bem escrito trabalho ‘A Carta do Brasil - Projeto elaborado no Estado Maior do Exército’ (Coelho, 1954, p. 44). Infelizmente êsse magnífico projeto, condensando tôda a nossa experiência do passado e consignando as melhores ideias e orientação da época, não teve uma execução, e 1918 quando a primeira grande guerra deu lugar a que se inaugurasse no Brasil uma nova e decisiva fase de existência para a cartografia nacional (Ibidem, 1954, p. 45). Apoiado pelo saudoso General Bento Ribeiro, Prefeito da Capital Federal e depois Chefe do Estado Maior do Exército, bem como pelo General Vespasiano de Albuquerque, Ministro da Guerra, o Major Vidal foi se instalar no velho Forte da Conceição, onde até 1917 se alojavam os contingentes de voluntários vindos do Norte, com destino aos corpos das regiões militares do Sul do Brasil. Nessa ocasião o Major Vidal, animado com a experiência que já havido feita na Prefeitura do Distrito Federal, sob sua orientação, achou conveniente trazer para o Brasil um grupo de técnicos do Instituto Geográfico Militar de Viena. A derrocada da Áustria, no final da primeira grande guerra, tornou possível essa providência, com a qual inauguramos uma nova fase de nossas atividades cartográficas. Foi então criado o Serviço Geográfico Militar, a título de experiência, no Morro da Conceição. Em 1921 êsse Serviço era um lugar Este artigo veio a ser reproduzido no livro Cartografia geral de Erwin Raisz (1969), enquanto apêndice. 1

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de intensa e útil atividade. Preparavam-se ali muitos de nossos camaradas, jovens oficiais de tôdas as armas, para o levantamento da Carta do Distrito Federal. Essa carta foi de fato iniciada nesse ano e terminada em 1922. Por ocasião da Exposição do Centenário da Independência em 1922, a carta do Distrito Federal figurou no mostruário da Diretoria do Serviço Geográfico, instituição desconhecida até então e que causou uma notável impressão em todos os visitantes (Ibidem, 1954, p. 47).

Pelo que foi até aqui exposto, o Serviço Geográfico do Exército esteve vinculado ao grande esforço, já encontrado no tempo do Império do Brasil, em gerar informações devidamente localizadas sobre o país. A Comissão da Carta Geral do Império2, para o qual concorreram os esforços da família Niemeyer e Candido Mendes, entre outros, foi retomada pelo novo regime político, o republicano, sob a forma de Comissão da Carta Geral do Brasil. Cabe aqui considerar que nessa fase do recém-implantado regime republicano, o campo próprio da cartografia não se encontrava definido, assim, ele ficava inserido dentro do escopo maior da geografia3. No entanto, quanto às Forças Armadas, e mais destacadamente o Exército, estas iriam se aprimorar para chamar para si a dura tarefa de se mapear o país da melhor forma técnica possível, tendo então o surgimento da carreira de engenheiro geógrafo militar. Foi criada, inclusive, uma escola de engenheiros geógrafos, pelo Decreto nº 19.299 de 5-VI-1930. Sobre este aspecto, entre outros, cabe menção ao artigo do coronel Moisés Castelo Branco Filho – “A escola de engenheiros geógrafos militares e o Curso de geodésia e topografia da E.T.E.”4. Na Bilioteca Nacional (Rio de Janeiro, RJ) é possível ter acesso ao Relatório Final da Comissão da Carta Geral do Império com o código de 0000299259 na seção de periódicos. 3 De um certo modo a cartografia brasileira só viria a se constituir num campo autônomo em relação à geografia durante o século XX, vindo para isto, contar com o Instituto Panamericano de Geografia e História que durante a Sexta Conferência Internacional dos Estados Americanos, em 1928, realizada em Havana, fomentou a cartografia ao estabelecer três comissões, a da geografia, a de história e da cartografia. De modo que o êmulo do campo da cartografia é dado pela geografia, porém, o endosso deste incentivo decorre de uma estratégia promovida pela Organização dos Estados Americanos! Sobre este aspecto há um interessante artigo – “VI Reunião panamericano de consulta sôbre cartografia” – do tenente-coronel Luiz E. F. Abreu e que pode ser encontrado no Anuário de 1951-1952 de 1954, pp. 209 ss. 4 In: Anuário da Diretoria do Serviço Geográfico de nº 4, 1951-1952, edição em 1954, pp. 69-75. 2

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Inicialmente, a Comissão da Carta Geral do Brasil concentrar-se-ia na confecção de mapas sobre o Rio Grande do Sul, que entre as diversas áreas fronteiriças do país, a região Sul era a que apresentava maior possibilidade de conflito bélico. Porém, de 1910 até 1942 a produção foi irregular, mas, com o advento da Grande Guerra, e particularmente a utilização de algumas áreas brasileiras como pontos de apoio para o lançamento de forças militares para o teatro operacional da Europa, nós tivemos medidas em favor do reconhecimento cartográfico do país5. A elaboração dos trabalhos, no entanto, era deveras lenta, até mesmo a capital do país, um espaço privilegiado pela segurança, só veio a apresentar um mapeamento completo através do método geodésico (que tinha por referência as triangulações) em 1922 (sic.), ultimado por Américo Rangel6, no intuito de que o mapa participasse da comemoração do primeiro centenário da Independência brasileira. Segundo o então tenente-coronel Moisés Castelo Branco, em outro artigo –“Comissão da carta geral do Brasil”, Anuário da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército, nº 1, 1949 – (1949), a 3ª Seção do Estado-Maior do Exército publicou, em 1901, um projeto de se criar um serviço voltado para a elaboração da carta, sendo então proposta a triangulação geodésica para o litoral e o cálculo das coordenadas geográficas dos pontos fundamentais para efeito de orientação. Dois anos depois, em 31 de março, pela ordem do dia nº 268 do Exército foi formalizada a Comissão de Carta Geral, e a 26 de junho o coronel Cabe destacar, ainda, dois aspectos: 1º) em 1938 foi criado o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2º) ainda nesse ano foi editada a Lei 311 no mês de março, que tornava obrigatória a confecção, por cada prefeitura do Brasil, de seu mapa no intuito de dirimir dúvidas quanto as suas limitações. Ficou ao encargo do IBGE a edição conjunta dos mapas a ele entregue; tal edição aconteceu, em Curitiba, com uma grande exposição dos mapas municipais, em 1942. Mas a diferença destes mapas para aqueles produzidos pelo Exército encontrava-se na precisão das informações. No Exército, usava-se tanto o método geodésico (o da triangulação) e/ou astronômico (calculando-se a latitude e a longitude). Já os mapas municipais, realizados pelas prefeituras, se pautavam nas ementas das divisas municipais que não raro traziam sobreposição de informações com ementas de outros municípios. Em nosso trabalho sobre a região de Cantagalo (RJ), por exemplo, em entrevista com o Sr. Guinâncio de Santa Maria Madalena em 1995, este relatou-nos, quando jovem, ter participado da confecção do mapa de seu município na época (década de 1930), usando para isto o podômetro, um aparelho que calcula a distância média a partir do número de passos dados pela pessoa que o manuseia. Deste modo, ele e mais dois funcionários (um dos quais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) delimitaram Santa Maria Madalena percorrendo a pé seus limites! 6 In: Polli, Anuário de 1949, p. 7. 5

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Francisco de Abreu Lima era nomeado o seu primeiro chefe, com sede na cidade de Porto Alegre-RS (Castelo Branco, 1949, p. 59). Segundo o tenente-coronel Moisés Castelo Branco (1949, pp. 6264), a Comissão promoveu seus trabalhos até 1930. Nessa época era promovido o Serviço Geográfico Militar sob a orientação de técnicos austríacos, egressos do conceituadíssimo Instituto Geográfico Militar de Viena, que utilizavam os mais modernos métodos estereofotogramétricos combinados a uma boa aparelhagem para reprodução e impressão de cartas7. Após a Revolução de 1930, com a tomada do governo federal pelo senhor Getúlio Vargas, o Ministério da Guerra entendeu por bem reunir os dois órgãos, o localizado em Porto Alegre e o que surgiu depois no Rio de Janeiro. Assim, pelo Decreto nº 21.883 de 29 de setembro de 1932, foi criado o Serviço Geográfico do Exército, após a fusão entre a Comissão da Carta Geral do Brasil e o antigo Serviço Geográfico Militar (Coelho, Gen. Polli Anuário de 1949, p. 5-6; Castelo Branco, 1949, p. 64). Assim, a criação do Serviço Geográfico do Exército se deu justamente numa época quando as forças militares voltavam a desempenhar um papel mais efetivo no rumo da política brasileira. Porém, foi a partir da II Grande Guerra (1939-1945) que os recursos passaram a ser mais decididamente direcionados para a entidade8. É nesse período que as normas orientadoras da produção das cartas foram sistematizadas. Em 1946 foi produzido “Normas Gerais Para Operações de Levantamento e Confecção das Cartas do Tipo Militar” (Ibidem, Coelho Polli, Anuário de 1949, pp. 6-7). Nesse mesmo ano foi editado “Normas para uniformização da Cartografia brasileira” que pode ser consultado pelo Anuário de 1949, pp. 255-257, de acordo com o Decreto-Lei nº 9.210, de 29/04/46. Pelo Decreto-Lei nº 9.210, de 29 de abril de 1946, consta: O Presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o art. 180 da Constituição decreta: Segundo uma entrevista com o professor Orlando Valverde, em maio de 1994, esses austríacos teriam vindo para o Brasil foragidos das consequências da I Guerra Mundial, e, estando no Rio de Janeiro, passaram a promover as primeiras fotografias aéreas da cidade. 8 Nessa época a Escola de Engenheiros Geógrafos do Exército foi constituída, sendo que em 1940 o diretor desta era o então tenente-coronel Djalma Polli Coelho, tendo, inclusive, participado do IX Congresso Brasileiro de Geografia, em Florianópolis-SC (Abreu, Anuário de 1952, p. 137). 7

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Art. 1º Os trabalhos de levantamento que se realizarem no território nacional, no que se refere as operações geodésicas, topográficas e cartográficas, ficam sujeitos a normas técnicas a serem estabelecidas de acôrdo com o presente Decreto-lei, objetivando a uniformização da Cartografia brasileira. Art. 2º São órgãos autorizados do Govêrno da União para que se torne efetiva a uniformização cartográfica: a) O Conselho Nacional de Geografia, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; b) O Serviço Geográfico do Exército, órgão do Departamento Técnico e de Produção do Exército. Parágrafo único. Compete à Diretoria de Navegação da Marinha e a Diretoria de Rotas Aéreas da Aeronàutica, à Divisão de Geologia e Mineralogia e ao Serviço de Meteorologia do Ministério da Agricultura, estabelecer as normas técnicas referentes ao preparo das cartas hidrográficas e aeronáuticas e fixação das normas técnicas relativas as cartas geológicas e climatológicas, respectivamente. Art. 3º. Ao Conselho Nacional de Geografia cabe o encargo de estabelecer as normas técnicas relativas as cartas gerais de escala inferior a 1: 250.000. Art. 4º O Serviço Geográfico do Exército estabelecerá as normas gerais para as operações de levantamento e confecção da carta tipo militar. Parágrafo único. Consideram-se de tipo militar as cartas topográficas, em escala de 1:250.000, ou escalas maiores, que interessem mais preponderantemente à defesa nacional.

É dessa época, inclusive, que o Serviço passou a ocupar o antigo edifício que pertenceu ao Arcebispado do Rio de Janeiro, que fora adquirido em 1922 e após uma grande reforma veio a ser ocupado pelo Serviço Geográfico do Exército em 1948. Ano a partir do qual a entidade passou a noticiar sua produção na forma de anuários de modo a tornar mais explícito o papel desempenhado pelo serviço. Sobre a antiga sede do Serviço Geográfico, já que a atual sede está localizada em Brasília, consta um esclarecedor artigo de Lasinha Luis Carlos que observa: Encostado num morro, semi-oculto por uma cortinha quase impenetrável de arranha-céus, a cidade do Rio de Janeiro guarda um tesouro que poucos conhecem e todos deviam visitar. É o antigo Palácio da Conceição, no morro do mesmo nome, outrora residên-

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cia de Bispos e Arcebispos, e onde hoje funciona o Serviço Geográfico do Exército... A história do encantador palácio, que pelas suas proporções, colorido e frescura, nos dá a impressão de estarmos em Sevilha, vem de longe. Começa em 1634, com uma ermida e uma chácara doadas à Ordem do Carmo e destinadas à fundação de um convento. Os carmelitas em 1669 entregam o sítio aos Capuchichos Franceses, que constroem junto ao santuário pequeno hospício para residência. Mas em 1701 são esses religiosos expulsos da colônia portuguesa. Em 1702, desembarca no rio de Janeiro o Bispo D. Frei Francisco de S. Jerônimo, e ei-lo que descobre o lugar ideal para sua habitação. A residência episcopal ampliada, recebe o nome de Palácio da Conceição. Por detrás do belo edifício, inicia-se, em 1713, a construção de uma fortaleza que aliás, nunca foi grandemente útil à defesa da cidade: a fim de não incomodar com seus disparos os prelados vizinhos, e também porque, com a violência dos tiros, estava danificando as paredes do Palácio, é por ordem real silenciada... (Anuário 1955, pp. 7-8).

A guerra Diante da eminência da eclosão da II Grande Guerra, o Serviço Geográfico passou a ter a vital incumbência de mapear o Brasil o mais rápido possível. Desse esforço, já em 1942 surgiram as primeiras folhas do litoral de Pernambuco, Paraíba e Ilha de Fernando de Noronha. Segundo o tenente-coronel Moisés Castelo Branco, em seu artigo “Mapa dos milhões”, “... nos anos seguintes, as cartas do S.G.E. são lançadas em profusão, aos milhares, em todos os escalões de tropa, do teatro de operações, que sem elas não podiam mais passar, reclamavam sua falta quando se fazia sentir” (1949, p. 243). Pelo Anuário de 1951-52 (nº 4) verifica-se uma profunda alteração da entidade, podendo-se constatar uma elaborada organização, atingindo diferentes partes do território brasileiro. E, em 31 de janeiro de 1953, o ministro da Guerra estipulou pela Portaria nº 58 que o Serviço Geográfico do Exército passaria a ser conhecido como Diretoria do Serviço Geográfico. Assim, deixaria de ser um órgão assessor, vinculado ao Exército, para estar regimentalmente inserido na estrutura hierárquica do Ministério da Guerra. Dessa época, toma forma a ideia de planejamento da ação do governo, no intuito de otimizar esforços na área de produção de uma eficiente defesa do país. 174

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Pelo Anuário de 1960 nos chama a atenção do aparecimento de diferentes empresas envolvidas enquanto parceiras no reconhecimento do território brasileiro, sendo que desse período destaca-se a empresa Cruzeiro Aerofoto, cuja contribuição ainda hoje é notada na leitura das cartas divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Numa visão preliminar, poderíamos entender que na década de 1950 o Serviço Geográfico adquiriu uma autonomia em sua produção, não mais dependendo de situações circunstanciais favoráveis, ou não, às produções dos mapas sobre o Brasil. Foi uma época em que sua atividade esteve articulada ao início do empreendimento planejador no Brasil. Já na década de 1960, temos uma feição mais técnica, onde fica mais generalizado o uso da aerofotogrametria. Na década seguinte, a de 1970, nós temos a experiência do RADAM que procura operar um amplo reconhecimento da região amazônica brasileira através de imagem de satélite, e é desse período, portanto, que o instrumental proporcionado pelo sensoriamento remoto adquiriu maior importância9. É uma época que os anuários apresentam uma excelente apresentação, tendo um corpo de oficiais vinculados ao Serviço Geográfico em cerca de mil pessoas. Uma situação que contrasta com a verificada na década de 1980, onde os próprios anuários perdem sua antiga qualidade gráfica. A partir do exposto, segue-se uma análise da origem do Serviço Geográfico tendo em conta biografias de pessoas a ele vinculadas. Tal expediente visa ressaltar aspectos ainda não destacados.

As personalidades dirigentes Um militar a ser destacado vem a ser o general Djalma Polli Coelho (1892-1954), cujo currículo é apresentado pelo general Lincoln de Carvalho Caldas no Anuário de 1953-54 (pp. 302-304). General Polli Coelho Pelo o que o senhor Caldas pôde levantar, o Sr. Polli Coelho foi de tenente a general durante a sua permanência no Serviço Geográfico. Próximo à II Grande Guerra, em 1939, teve a incumbência de Pelo Anuário nº 22 (1973-1978) é noticiado que em 22 de janeiro de 1973 a sede do Serviço Geográfico foi transferida para Brasília. 9

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dirigir o levantamento aéreo e terrestre do litoral entre os estados do Ceará e Pernambuco.

Fora destacado o seu papel à frente do Serviço Geográfico, vindo a ser, também, presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O que, aliás, assinala, à época, que tanto o Serviço Geográfico quanto o IBGE estavam eminentemente voltados para o reconhecimento cartográfico do país, não havendo entre os dois órgãos diferenças quanto aos principais objetivos a serem alcançados10. Aliás, quanto a formação dos quadros técnicos, muito contribuiu uma expedição de austríacos, sendo que alguns deles resolveram fixar residência. Por exemplo, o senhor Rudolf Langer (1884-1952) foi um destes.

Rudolf Langer Em 1920, quando apenas surgia o Serviço Geográfico Militar, o governo brasileiro contratou um grupo de técnicos de notável saber em assuntos cartográficos, egressos do tradicional e conceituado Instituto de Viena, onde pontificaram grandes vultos da Geodésia, Astronomia, Fotogrametria, Topografia e Cartografia. Entre eles veio, ainda moço, mas com grande soma de serviços prestados à sua pátria de origem, Rudolf Langer que, a partir de 18 de setembro de 1920, ingressou no Serviço, como Chefe de Cartografia11.

Além da inestimável contribuição que deu a toda produção cartográfica do Serviço Geográfico, desde que nele ingressou até a sua morte, coube, ainda, a Rudolf Langer, formar inúmeros desenhistascartógrafos e concorrer para a formação de várias turmas de oficiais engenheiros geógrafos militares enquanto professor do antigo Instituto Geográfico Militar e da Escola Técnica do Exército. Em artigo publicado no Anuário nº 17, 1967, p. 38 ss., intitulado “Um Currículo Novo Para o Curso de Geodésia do IME e a Tradição Em artigo publicado no Anuário nº 17, 1967, p. 37 ss., intitulado “Um Currículo Novo Para o Curso de Geodésia do IME e a Tradição do Exército no Mapeamento do País” do então general R/1 Moysés Castello Branco Filho, engenheiro militar geógrafo, consta que no Brasil a Diretoria do Serviço Geográfico do Exército é o órgão militar incumbido do mapeamento territorial do Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é a entidade estatal civil participante desse empreendimento nacional. 10

11

In: Anuário de 1953-54 (pp. 311-313) do ano de 1955.

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do Exército no Mapeamento do País” do então general R/1 Moysés Castello Branco Filho, engenheiro militar geógrafo, consta que em 1919 o Exército brasileiro contratou a Missão Cartográfica Austríaca, integrada por notáveis engenheiros geógrafos militares, para o planejamento da carta do Estado da Guanabara (antigo Distrito Federal) e organização da Escola de Engenheiros Geógrafos Militares. A carta do Estado da Guanabara, planejada pela Missão Austríaca e levantada pelo recém-criado Serviço Geográfico Militar, foi premiada com medalha de ouro na Exposição Nacional comemorativa do primeiro centenário da nossa Independência política (1922). Conforme o texto (p. 39): Ainda em 1919, ano marco no calendário militar do Brasil, o Exército contratou também a Missão Militar Francesa, dirigida pelo General Gamelin, Chefe de renome na 1ª guerra mundial, com a finalidade mais alta de reestruturar a organização do Exército e o ensino militar no Brasil. O plano de ensino da Missão Francesa compreendia as Escolas de Aperfeiçoamento de Oficiais, de Estado-Maior e a Escola Técnica do Exército (Decreto 13.451, de 29 de janeiro de 1919). As duas escolas profissionais foram criadas, mas a Escola Técnica só o foi em 1928. Em 1941, em virtude da ampliação da Escola Técnica (atual Instituto Militar de Engenharia) e de sua transferência para a sede da Praia Vermelha, a Escola de Engenheiros Geógrafos Militares foi a ela incorporada com a designação de ‘Curso de Geodésia e Topografia’. A matrícula nos cursos da Escola Técnica procedia-se mediante concurso, facultado aos oficiais das armas. De 1941 a 1951, nenhum candidato se apresentou para o Curso de Geodésia. O quadro de oficiais engenheiros do Serviço Geográfico esvaziava-se e os seus trabalhos ameaçavam paralização. A crise foi removida pela criação do Curso de Topografia, anexo à Escola Técnica, aberto aos oficiais das armas por indicação do Estado-maior do Exército. Aos oficiais diplomados nesse curso profissional, foi assegurada matrícula no Curso de Geodésia. De 1952 a 1958, foram diplomadas seis turmas de oficiais topógrafos que prosseguiram os estudos no Curso de Geodésia, mediante pré-requisitos diferentes dos demais cursos da Escola Técnica. A solução foi mal recebida pela direção do ensino de engenharia na Escola Técnica. Em 1959, a lei nº 3654 de 4 de novembro, dá nova estrutura aos cursos do Instituto Militar de Engenharia (antiga Escola Técnica Período Republicano 177

do Exército), extingue o ‘Curso de Topografia’ e dispõe sobre o recrutamento de oficiais para o Curso de Geodésia através de dois anos básicos de estudo de engenharia na AMAN, como os demais cursos do IME. Aí se esboça a crise atual, com a falta de candidatos voluntários à matrícula no curso de Geodésia. ... p. 40 Em 1967 e 1968, ameaçado novamente de esvaziamento o Quadro de Engenheiros Geógrafos da DSG, foram feitas matrículas compulsórias no ‘Curso de Geodésia’. ... p. 45 Disse o eminente professor Allyrio Hugueney de Mattos, em recente palestra, no IV Seminário de Ensino e Pesquisa Cartográficos, promovido pela Sociedade Brasileira de Cartografia, em novembro corrente: ‘Sòmente em 1954, foi criado na Escola Nacional de Engenharia o Curso de Engenheiros Geógrafos, com um currículo mais completo. Durante quatro anos, esse curso funcionou com um número reduzidíssimo de alunos, mas deixou de funcionar por absoluta falta de pretendentes, e até hoje continua parado’.

Cel. Armando Assis Ao acompanharmos o relato de sua vida, fica-nos mais clara a própria evolução da capacitação dos quadros do Serviço Geográfico do Exército. Por exemplo, o senhor coronel Armando Assis, geógrafo12, falecido em 1957, era tenente em Bagé (RS), matriculou-se na Escola de Estado-Maior cujo programa, tal como sucedia na Escola Militar, comportava algumas matérias eruditas, de pouca aplicação imediata nos comandos ou na tropa. Fez, então, farto conhecimento de Astronomia e Geodésia, conhecimentos esses que o tornaram particularmente apto a ingressar na Comissão da Carta Geral do Brasil, o que sucedeu durante a chefia do capitão-chefe interino Arthur do O’ de Almeida. Servir na Carta, na época, era a aspiração de muitos oficiais com vocação para a Engenharia e que, por motivos ocasionais ou imperiosos, destinavam-se às demais Armas. Dada a tarefa gigantesca atribuída à C. C. G. B., suscetível de se estender por decênios, os oficiais que nela ingressavam dispunham-se a ficar por muito tempo. A falta de um Instituto Geográfico era suprida pela existência, na Carta, de uma Escola, como que “doméstica”, de engenheiros; e era, In: Anuário de 1956 (editado no ano de 1957, pp. 393-394), retratado pelo general de Divisão Roberto Pedro Michelena. 12

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segundo Assis, a mais grata e jamais desmentida impressão dos novatos: a Carta era uma família gigante, unida em plenitude de harmonia. Os oficiais veteranos, sem prejuízo de suas próprias missões, incumbiam-se de iniciar os estreantes nos mil e um segredos e subtilezas da técnica cartográfica. Segundo o relato do general de Divisão Roberto Pedro Michelena (1956, p. 394): Armando Assis veio para ficar até o fim! Filho dos Pampas, habituado à vida campeira, encantou-o o calendário anual de trabalhos: primavera, verão e outono, na fronteira, para medir; inverno, na Sede, para calcular, desenhar e, no setor doméstico, estabelecer o justo convívio da família. Ele evidenciou, logo, espontânea vocação de geógrafo. Era mais do que vocação; verdadeira fascinação pela Cartografia. Dedicou-se-lhe de corpo e alma. Era a vida simples e primitiva do gaúcho a serviço da técnica, apoiada esta, de modo geral, nos ensinamentos franceses, salvo a Alta Geodésia, trazida por Tasso Fragoso no convívio dos livros e dos próprios autores alemães. A ‘Turma do Capitão Assis’ tornou-se um paradigma de trabalho. Armava-se barraca em último caso, pois o bom mesmo, no verão, era dormir debaixo da carreta, para maior rendimento do roteiro geodésico. Havia na Carta muito chefe de Turma madrugador a quem o cozinheiro acordava após fazer o fogo. Mas na Turma Assis era este quem acordava o cozinheiro e com ele chimarreava democraticamente, apreciando a policromia cambiante do nascer do sol, coroando o ondulado horizonte da coxilha.

Continua o relato (p. 395): Isso foi em 1940. Oito anos antes, a velha Carta desaparecera, transformada na atual 1ª DL13, subordinada ao Serviço Geográfico do Exército, centralizado no Rio. O Cel. Assis tornou-se, então, o oráculo dos novos geodesistas, agora já diplomados pelo Instituto Geográfico Militar sediado no Morro da Conceição. Atrapalhado, às vezes, pelo infindável cigarro crioulo encardidor das pequenas mãos morenas, pois também ele era de pequeno porte, - desfazia-se em carinhosa e brejeira atenção para com os novos Engenheiros, 1ª Divisão de Levantamento, sendo que Armando Assis, já como coronel, veio a ser seu chefe, porém sem se dispor a usar o carro oficial que costumava acompanhar o ocupante do cargo. 13

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rechiados de teorias flamantes e excessivas. E, enquanto os colegas – aprendizes quebravam a cabeça nas tábuas logarítmicas, ele fazia coordenadas conformes, com cujo valor é evidente, conformavam-se alegremente os fregueses de caderno ... Sim, por ele tinha um invejável espírito prático. Para longe, fórmulas e gabaritos! Improvisava, em cima do joelho, fáceis tabelas, de enorme utilidade, muitas das quais, ainda em uso, constituem valioso legado técnico. Nos últimos anos de plena validez, apaixonou-se pelo problema das projeções. E com razão, dada a felicíssima aplicação ao nosso imenso território pátrio, do sistema conforme de Gauss, baseado nos fusos de seis graus. Já na Reserva, visitava os camaradas, ora na sede da 1ª DL, ora nas residências, matando saudades e sugerindo soluções práticas aos novos problemas, concorrendo, assim, para estimular, em contagiante entusiasmo, as novas gerações de geógrafos.

Para ultimarmos o trabalho, destacaremos a seguir episódios que marcam direta, ou indiretamente, o Serviço Geográfico do Exército.

Cronologia14 1810 – Academia Real Militar – 1ª escola de formação de Geógrafos Militares, criada por Carta Régia, de 4 de dezembro (curso de 8 anos). 1873 – Comissão da Carta do Império. - Levantamento de itinerários e de Posições Geográficas. 1878 – Extinção da Comissão da Carta Geral do Império. 1890 – Criação do Serviço Geográfico, pelo Decreto 451-A de 31 de maio, inicialmente anexo ao Observatório do Rio de Janeiro e depois transferido para o Ministério da Guerra. 1896 – Elaboração da Carta Geral da República. 1903 – A Carta Geral do Brasil – Encarregada da 3ª Seção do EME de executar o Projeto da Comissão da Carta Geral do Brasil. O Aviso nº 801, de 27 de março de 1903, aprova as instruções para o início dos trabalhos da Comissão da Carta Geral do Brasil, a qual foi instalada em Porto Alegre (RS), a 28 de junho de 1903. 1911 – O major Alfredo Vidal considerado fundador do Serviço Geográfico mantém correspondência com a Casa Zeiss, acompanhando o advento do estereoautógrafo PULFRICH -OREL nas operações topográficas. 14

Informações obtidas no Anuário da Diretoria do Serviço Geográfico, nº 29, 1985.

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1917 – O Serviço Geográfico Militar é progressivamente organizado na Fortaleza da Conceição, a partir deste ano. 1920 – A Missão Austríaca chega ao Brasil no dia 14 de outubro, composta de 21 elementos altamente especializados. 1922 – Levantamento de cartas topográficas do Distrito Federal (município do Rio de Janeiro), comemorativas do 1º Centenário da Independência do Brasil, impressos em sete cores e tendo curvas de nível. - A carta do Distrito Federal, de escala original 1:50.000, em certos trechos (Vila Militar), foi desdobrada nas escalas de 1:20.000, 1:10.000 e 1:2.000, e serviram de base à Instrução de Tática da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, dirigida pela Missão Militar Francesa, e dos Corpos de Tropa da Vila Militar. 1923 – Foi adquirido, da Mitra, o Palácio da Conceição, que aumentou o acervo do Serviço Geográfico. 1927 – O SGE adquire equipamentos para restituição e tomada de fotos aéreas. 1930 – Criação do Instituto Geográfico Militar (Fortaleza da Conceição), Rio de Janeiro. 1931 – Diplomada a 1ª turma de Engenheiros Geógrafos, constituída de 14 oficiais do Exército e um oficial da Marinha. 1932 – O Serviço Geográfico Militar passou, pelo Decreto 21.883, de 29 de setembro de 1932, a designar-se Serviço Geográfico do Exército e a Comissão da Carta Geral deu origem à atual 1ª DL, com sede em Porto Alegre. Foi criada a 2ª Divisão de Levantamento (2ª DL) do Serviço Geográfico do Exército, com sede no Rio de Janeiro. 1938 – O Serviço Geográfico do Exército passou a chamar-se Serviço Geográfico e Histórico do Exército, por Decreto-Lei nº 556, de 12 de junho de1938. 1938 – Conselho Nacional de Geografia - Dec nº 237, de 2 de fevereiro, atribuiu a primeira missão que foi a de elaborar a Carta do Brasil na escala de 1:1.000.000. - Conselho Nacional de Geografia do IBGE criado pelo Dec. Lei nº 218, de 26 de janeiro de 1938. 1939 – Foi extinta a 2ª Divisão de Levantamento, por aviso nº 29, de 31/05/1939. 1940 – Plano Geral da Cartografia apresentado pelo Serviço Geográfico do Exército ao Conselho Nacional de Geografia. Período Republicano 181

1940 – O Instituto de Geografia Militar passou a chamar-se Escola de Geógrafos do Exército. 1941 – A Escola de Geógrafos do Exército foi incorporada à Escola Técnica do Exército com a designação de “Curso de Geodésia e Topografia” (Praia Vermelha). 1944 – Criação do Conselho Nacional de Geografia no IBGE, desdobrado nas Divisões de Geografia e Cartografia e de Geodésia e Topografia. 1945 – Criação do Quadro de Topógrafos do Serviço Geográfico do Exército pelo Decreto-Lei nº 8.445, de 26 de dezembro de 1945. 1946 – Regulamentadas as atividades da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército. - Criação da 2ª DL da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército, com sede em Ponta Grossa/PR, em 1º de outubro de 1946. - A Diretoria do Serviço Geográfico do Exército passou à subordinação do Departamento Técnico de Produção (DTP), por Dec. nº 21.738, de 30 de agostode 1946. - Normas sobre a Cartografia Brasileira – Dec. lei nº 9.210/46. 1958 – Sociedade Brasileira de Cartografia – fundada em 28 de outubro. 1961 – Grupo de Trabalho do Estado-Maior das Forças Armadas para apresentar “Bases e Diretrizes de uma Política de Coordenação e Planejamento do Levantamento Cartográfico Brasileiro” propondo o Conselho Nacional de Cartografia (CONCAR). 1965 – Divisão de Geodésia e Cartografia do IBGE inicia trabalhos de mapeamento topográfico. 1967 – Dec. Lei nº 243, de 28 de fevereiro de 1967 fixa as Diretrizes e Bases de Cartografia Brasileira e dá outras providências, inclusive a criação da Comissão de Cartografia (COCAR), incluída na organização da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 1972 – A Diretoria do Serviço Geográfico é transferida para Brasília/DF, por Portaria Ministerial número 1.098, de 25 de outubro de 1972 (e instalada em 22/01/73). 1985 – Ao final do ano, 98,9% do território brasileiro encontravase mapeado, sendo que 61,2% veiram a ser mapeados pelo Serviço Geográfico, 30,5% pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e 7,2% por terceiros. 182

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Conclusões Ao perscrutarmos a história do Serviço Geográfico do Exército deparamo-nos com uma história plural, pois nela se verifica uma multiplicidade de fatores que estão apenas superficialmente representados em rápidos episódios ao longo dos dados coletados sobre a entidade. A relação entre a entidade e a cartografia é muito clara, daí surgir dois aspectos de sobremaneira importante para a nossa investigação, ou seja, no Brasil, em dado momento, os destinos de ambos se cruzam, assim, na virada dos séculos XIX para o seguinte, a constituição de uma Força Armada capaz no país tinha de dispor de um elementar meio informativo detalhando os principais aspectos do território brasileiro através de uma boa cobertura cartográfica do país; a própria cartografia, enquanto campo disciplinar, viria a alcançar a sua própria valorização a partir deste projeto. Levando em conta este aspecto, notamos que o Serviço Geográfico do Exército, enquanto instituição, após um lento processo de formação, encontrar-se-á definitivamente formado ao final da década de 1940. Já a disciplina Cartografia, pelo contrário, adquirirá maior maturidade em termos de entidades que a representem, ao longo da década de 1960. No cruzamento da evolução histórica das duas partes em pauta, nota-se, ainda, que, num certo período, as duas confundiam-se, pois, com o Serviço Geográfico do Exército incumbido de produzir mapas mais detalhados que os do IBGE, o Serviço foi levado a ter um notório acervo técnico e de quadros técnicos que até então não se via paralelo na sociedade civil. O mapeamento do Brasil, num dado momento de sua história, foi algo extremamente estratégico, particularmente nos períodos de 1930-1970, no qual o Exército desempenhou um notório serviço. Pelo lado da Cartografia, por sua vez, tivemos uma notória evolução nos últimos anos, quando, paulatinamente, sai de uma imediata esfera eminentemente militar para galgar novas plataformas de ação que não mais se identificariam com a questão estratégica de se cobrir territorialmente o país com mapas, já que esta função veio a ser finalizada ao longo dos anos 80 do século passado. Este aspecto de autonomia disciplinar traz um efeito na sua relação com a geografia, pois, à época, a primeira estava subentendida na segunda de modo que uma caracterização geográfica configuraria, automaticamente, numa representação cartográfica, tendo sido este aspecto alterado com o tempo. Afora este aspecto cabe frisar outros. Período Republicano 183

Um que chama a nossa atenção, paralelo à extrema precariedade dos meios utilizados para se realizar os primeiros mapeamentos do país, o que desembocava numa morosidade do processo, foi a busca incessante de alguns militares em estar a par do que ocorria nas nações mais desenvolvidas. De modo que, em termos gerais, podemos destacar a forte influência que o Serviço Geográfico trouxe da herança lusitana, particularmente do Real Archivo Militar, em seguida a influência da missão austríaca, e, mais tarde, a influência norte-americana, particularmente a partir dos esforços de guerra implementados durante a II Guerra Mundial. Estas grandes marcas da influência estrangeira, combinadas com as visitas técnicas que faziam parte da formação dos oficiais, ensejavam a divulgação de técnicas que não deixavam o país, de todo, desatualizado das inovações ocorridas na área. Outro aspecto que nos chama a atenção vem a ser o cuidado, à época da formação do Serviço Geográfico, com duas áreas sensíveis em termos de segurança, a saber: a então capital federal, localizada na cidade do Rio de Janeiro, e o Estado do Rio Grande do Sul, onde de fato foram iniciadas os levantamentos geodésicos no país.Este aspecto chama a atenção para o fato de que o Rio Grande do Sul, até a criação do Mercosul durante a década de 1980, detinha a fronteira mais sensível do Brasil, estando nela concentrada a nossa maior capacidade bélica. Sendo esta a razão da primeira Divisão de Levantamento ter sido sediada justamente nesse estado, enquanto a segunda Divisão, inicialmente localizada no Rio de Janeiro, veio a ser transferida para Ponta Grossa (Paraná), e mais tarde para Brasília. Bilbiografia ABREU, Ten. Cel. Luiz E. F. (1954). “O sistema UTM e a quadricula universal das cartas militares” In: Anuário nº 4, de 1951-1952, pp. 135 ... ______. (1954).VI Reunião panamericana de consulta sôbre cartografia. In: Anuário de 1951-1952, pp. 209 ss. CARLOS, Lasinha Luis (1955). Onde dorme a história. In: Anuário da Diretoria do Serviço Geográfico, 1953-1954, Rio de Janeiro: Ministério da Guerra. CASTELO BRANCO FILHO, Gen. R/1 Moisés. (1967). Um currículo novo para o curso de geodésia do IME e a tradição do exército no mapeamento do país. In: Anuário do Serviço Geográfico nº 17,pp. 38 ss. CASTELO BRANCO FILHO, Cel. Moisés (1954). A escola de engenheiros geógrafos militares e o Curso de geodésia e topografia da E.T.E. In: Anuário do Serviço Geográfico de 1951-1952, nº 4, pp. 69-75. 184

Aspectos históricos da geografia brasileira

CASTELO BRANCO, Ten.cel. Moisés (1949). Comissão da carta geral do Brasil. In: Anuário da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército, nº 1, 1948, Ministério da Guerra, Serviço Geográfico, Rio de Janeiro, pp. 59 ss. ______. (1949) “Mapa dos milhões”. In: Anuário da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército, nº 1, 1948, Ministério da Guerra, Serviço Geográfico, Rio de Janeiro, pp. 243. COELHO, Cel. Djalma Polli (1954). Geógrafos, cartógrafos e demarcadores. In: Anuário do Serviço Geográfico de 1951-1952, nº 4, pp. 35-47. ______. (1949) Introdução geral.In: Anuário do Serviço Geográfico do Exército de 1948 , nº 1, pp. 5-6. FRAGOSO, Capitão Tasso (1967). Serviço geográfico no Brasil. In: Anuário do Serviço Geográfico, nº 17, pp. 303 ss. MICHELENA, Gen. Div. Roberto Pedro (1957). Armando de Assis.In: Anuário do Serviço Geográfico, de 1956, pp. 393-394. RAISZ, Erwin (1969). Cartografia geral. Trad. Neid M. Schneider et all. Rio de Janeiro, Ed. Científica.

Anuários consultados ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército, nº 1, 1948. Ministério da Guerra, Rio de Janeiro, 1949. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Rio de Janeiro, nº 4, 1951-1952, editado em 1954. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, 1953-1954, de 1955. ANUÁRIO do Serviço Geográfico, Rio de Janeiro, 1956, editado em 1957. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Rio de Janeiro, 1960. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Rio de Janeiro, nº 16, 1966. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Rio de Janeiro, nº 17, 1967. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Rio de Janeiro (GB), nº 20, 1971. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Brasília, nº 22, 1973/78. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Brasília, nº 23, 1979. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Brasília, nº 24, 1980. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Brasília, nº 25, 1981. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Brasília, nº 26, 1982. ANUÁRIO da Diretoria do Serviço Geográfico, Ministério do Exército, Brasília, nº 29, 1985. Período Republicano 185

Onde está a geografia na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística?1 Apresentação O presente trabalho sobre a FIBGE finaliza a investigação que teve por característica resgatar aspectos da geografia brasileira a partir da evolução das instituições2. Sobre a FIBGE cabe uma observação quanto ao fio condutor utilizado para analisá-la. O estímulo inicial decorreu de um e-mail perguntando sobre Fábio Macedo Soares Guimarães, que, naturalmente não respondi pois meu conhecimento era nulo! Porém, a pergunta ficou! Ao passar a pesquisá-lo, tempos depois, deparei com a importância que a família tinha no então IBGE num dado momento de sua história, e passei a investigar a família Macedo Soares! Porém, no curso da investigação percebi que paralelo ao processo de institucionalização da geografia, pelo qual o ingresso no IBGE cada vez menos dependia de relações familiares e de amizade, havia uma perda de geograficidade no órgão, ou seja, a ideia que surgiu foi: correlato à burocratização do instituto cada vez mais este ficou afeito a estudos economicistas, censoricistas, estatísticos e cada vez menos propenso à pesquisa de campo, por exemplo. Daí veio a pergunta: onde está a geografia na FIBGE? O texto abaixo perfaz o caminho percorrido ao analisar a instituição.

A origem do IBGE A dificuldade de se obter informações estatísticas constantes e padronizadas e a necessidade de se conhecer melhor o território nacional do ponto de vista geográfico e cartográfico estão na origem do IBGE. O geógrafo Orlando Valverde, em entrevista a nós fornecida em maio de 1994, acrescentava outro aspecto, a saber: a criação do IBGE em 1938 se dava numa época em que era prevista uma nova guerra na Europa, o que acabaria afetando a rede de trocas entre os países, Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem ano 4,n.7, janeiro/junho 2005. Parte desta produção é divulgada pela Revista Geo-paisagem (online) em www. fetth.ggf.br/Revista.htm. 1 2

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e o Brasil não dispunha de um acervo sistematizado de informações quanto às suas reais potencialidades no campo comercial, produtivo, minerífero, agrícola etc. Em termos formais, a criação do IBGE foi antecedida pela formação do Instituto Nacional de Estatística em 1934, e respectiva instalação definitiva em maio de 1936 com o nome de Conselho Nacional de Estatística no intuito de organizar os dados disponíveis em bases censitárias, assim como coordenar as futuras atividades voltadas para a captação de dados no Brasil3. Outro órgão importante na formação do IBGE foi a criação, em 1937, do Conselho Nacional de Geografia que, junto ao conselho anterior geraram aquele instituto. Nessa época o IBGE encontrava-se diretamente subordinado à presidência da República. Após o término dos trabalhos da Convenção (Nacional de Estatística), foram encaminhadas ao então ministro das Relações Exteriores e presidente do IBGE, Macedo Soares, as resoluções da Convenção Nacional de Estatística, onde constava a necessidade de melhor articulação entre os trabalhos de natureza estatística e geográfica. Juntamente com as resoluções, foi entregue ao ministro carta do professor Pierre Deffontaines na qual apelava para a efetivação da adesão do Brasil à UGI. Nos entendimentos que surgiram, o ministro convocou, com a aprovação do presidente Getúlio Vargas, uma comissão das figuras mais representativas da cultura geográfica brasileira, no Palácio do Itamaraty, com o estímulo de apresentarem sugestões para a constituição de um organismo nacional de Geografia, destinado a promover a coordenação das atividades geográficas brasileiras. Nessas reuniões realizadas em fins de outubro e início de novembro de 1936, surgiu a proposta de criação do Conselho Brasileiro de Geografia. Esta proposta foi encaminhada ao presidente da República que, aceitando-a, baixou o Decreto nº 1.527, de 24/03/1937, criando o referido Conselho como parte estrutural do então Instituto Nacional de Estatística. A exposição de motivos constantes do decreto considerava a necessidade da adesão do Brasil à UGI, em função de sua projeção mundial, reunindo a colaboração da maioria dos países. Mas considerava, sobretudo, as vantagens de caráter nacional da atividade de um Conselho Brasileiro de Geografia articulado com a administração federal, imbuído da missão de coordenação da Geografia do Brasil. Segundo Eli Alves Penha (1993, pág. 19), a data oficial da criação do IBGE é 29 de maio de 1936, em que foram regulamentadas as atividades do Instituto Nacional de Estatística; com a extinção deste instituto o IBGE foi instituído em 26/01/1938. 3

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Em 1º de julho de 1937 instalou-se formalmente o Conselho Brasileiro de Geografia no Salão de Conferência do Palácio do Itamaraty, inaugurando no mesmo dia os trabalhos da sua Assembleia-Geral, constituída de delegados dos governos da União, dos estados, do Distrito Federal e do Território do Acre (Penha, 1993, p. 78). Na interpretação de Eli Alves Penha (1993) o IBGE é fruto de um processo político em favor da centralização, burocratização e racionalização do Estado em prol da urbanização e industrialização verificadas, sobretudo, a partir de 1930. Porém, curiosamente, como Penha observa, o IBGE decorreu de um convênio que envolvia municípios, estados e o governo federal, havendo para tanto assembleias com os representantes de cada um destes componentes, ou seja, há simultaneamente na origem da instituição um processo centralizado e outro capilarizado procurando adentrar na rede municipal. Porém, em 13 de fevereiro de 1967, o IBGE seria transformado em Fundação no intuito de obter maior autonomia para suas atividades.

Família Macedo Soares e o IBGE O destaque a esta família decorreu não só da importância que esta teve para a história do IBGE, mas também da própria projeção que esta família tinha no cenário político nacional. A família Macedo Soares tem como marco definidor um território. Ou seja, a famosa fazenda do Bananal, localizada na região litorânea entre Maricá e Saquarema,no Rio de Janeiro, assistiu a sucessivas gerações. A aquisição da fazenda pela família ocorreu no final do século XVIII1; porém, retrocedendo ao passado desta família, há ligações que remontam vínculos com a família Sá no século XVI. Um aspecto que favorece a expansão da mesma foi a ausência de receio em ter filhos. Por exemplo, o alferes Antônio Joaquim Soares, casado com D. Maria Antonio Reginalda, nascidos ao final do século XVIII, tiveram sete filhos; um deles, o Joaquim Mariano de Azevedo Soares, casado com Maria de Macedo Freire de Azevedo Coutinho em 1835, tiveram 13 filhos; um dos filhos destes e, portanto, neto de Antonio Joaquim Soares, o José Eduardo de Macedo Soares, nascido em 26/8/1852, e casado com Candida de Azevedo Sodré Macedo Soares teve dez filhos... e isto num único ramo, justamente aquele que 1

As observações apresentadas estão pautadas na obra Soares (1947).

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geraria mais tarde José Carlos de Macedo Soares, futuro presidente do IBGE!2 Outro aspecto a ser destacado envolve a importância da Faculdade de Direito de São Paulo para a família. Não se trata apenas da importância do Direito, pois a família veio a contar com uma série de juízes destacados, mas particularmente o Direito de São Paulo. Quem foi José Carlos de Macedo Soares?3 Nasceu em São Paulo no ano de 1883 e lá faleceu em 1968. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1905. Com a Revolução de 1930 veio a ocupar o cargo de secretário de Interior e Justiça do Estado de São Paulo; em 1932 foi chefe da delegação brasileira à Conferência Internacional de Desarmamento. Em 1933 foi eleito deputado federal por São Paulo e no ano seguinte participou da Assembleia Constituinte. Em seguida ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores, tendo destacado papel na demarcação de nossas fronteiras internacionais e estabeleceu a paz entre Paraguai e Bolívia (Guerra do Chaco). Em 1937 deixou de ser chanceler. Mais tarde veio a ser, por curto período, ministro da Justiça e, após a queda do governo Getúlio Vargas, ao afinal de 1945, assumiu o cargo de interventor federal de São Paulo até 1947 quando cedeu lugar ao novo governador eleito, Ademar de Barros. Em 1955 voltou a ser ministro das Relações Exteriores, só deixando o posto em 1958. Além de presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística foi presidente perpétuo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Quem foi Fábio de Macedo Soares Guimarães?4 Nasceu no Rio de Janeiro em 1906, formou-se em Engenharia Civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro (1928) e licenciou-se em Geografia e História pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1940); fez curso de pós-graduação em Geografia nos EUA (1945-46) e curso de Escola Superior de Guerra (1950). Desenvolveu uma série de funções relacionadas à geografia. Foi Cabe assinalar que no edifício onde está a biblioteca central da FIBGE, Av. General Canabarro (Maracanã, bairro da cidade do Rio de Janeiro) há um busto do embaixador José Carlos de Macedo Soares,primeiro presidente da instituição, entre 29/5/1936 a 30/01/1951 e depois entre 17/11/1955 a 03/05/1956. 3 A presente parte está sustentada em verbete encontrado na Grande Enciclopédia Delta Larousse, Rio de Janeiro: Editora Delta, vol. 11, página 6.372, 1970. 4 A presente parte está sustentada em verbete encontrado na Grande Enciclopédia Delta Larousse, Rio de Janeiro: Editora Delta, vol. 06, página 3.255, 1970. 2

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secretário-geral do Conselho Nacional de Geografia, chefe da segunda expedição geográfica ao planalto central brasileiro para a localização da nova capital do Brasil. Professor de Geografia na Pontifícia Universidade Católica, do Instituto Rio Branco, Instituto Santa Úrsula e Faculdade Nacional de Filosofia. Presidiu a V, VI e VII Reunião Pan-americana de consulta sobre Geografia, do Instituto Pan-Americano de Geografia e História, reunidas em Quito (1959), Buenos Aires (1961) e Guatemala (1965). Certamente, o seu contributo para a geografia brasileira em termos de pesquisa foi o seu papel nas discussões sobre as regiões brasileiras. Foi responsável por um artigo que tornou-se um clássico sobre o tema, a saber, “Divisão Regional do Brasil”, originariamente publicado na Revista Brasileira de Geografia, nº 2, ano III, abril/junho 1941 e reeditado na edição comemorativa desta mesma revista quando completou 50 anos de edição, em 19885. José Carlos Macedo Soares x Fábio de Macedo Soares Guimarães6 O que há de comum a ambos é o parentesco com Joaquim Mariano de Azevedo Soares (nascido em 19/12/1809, na fazenda Bananal e falecido em 8/8/1898), casado com Maria de Macedo Freire de Azevedo Coutinho em 15/9/1836. Enquanto Joaquim foi para José Carlos um avô, pai de José Eduardo Macedo Soares, casado com Cândida Sodré Macedo Soares (pais de José Carlos); Joaquim para Fábio Macedo Soares Guimarães foi bisavô, pai de Antônio Joaquim de Macedo Soares (nascido em 14/1/1838 na fazenda Bananal e faleceu em 14/8/1905), casado com Theodora Alvares de Azevedo Macedo Soares, com quem teve 15 filhos, dos quais Noemia de Macedo Soares (nascida em 22/11/1864 e falecida em 1/3/1947), ao casar com Celso Aprígio Guimarães teve o filho Fábio de Macedo Soares Guimarães!

Uma história oral A realização de um trabalho focando família e sua relação com determinada instituição é deverás difícil.Diante de tal dificuldade passei a pautar-me em depoimentos, ou seja, a história oral pareceu ser um Sobre o tema da divisão regional brasileira há um texto muito interessante de autoria de Angélica Alves Magnago (1995). 6 Parte baseada no livro de genealogia de autoria do avô de Fábio e tio de José Carlos, a saber, Soares (1947). 5

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instrumento válido sobre a questão familiar no IBGE e proporciona a geração de um artigo em caráter exploratório sobre o tema7. Segue abaixo um resumo do observado: Depoimento um O IBGE foi criado durante o governo Getúlio Vargas com a promessa de ter seus cargos preenchidos por concursos, porém, a medida demorou a vingar. A ação das famílias foi muito forte no preenchimento dos principais cargos da instituição. Como estas, geralmente, usufruíam de boas condições educacionais, o preenchimento realizado não chegava a prejudicar a qualidade dos serviços, pelo contrário. Quando temos em conta a questão familiar temos de ter duas perspectivas, a primeira é aquela pela qual a família entra a partir de relações de poder superiores, como foi o caso da família Macedo Soares, e particularmente a família Zarur; mas a outra perspectiva interessante é a constituição de famílias no próprio âmbito profissional do IBGE. Indagado se isto não seria uma estratégia de defesa tendo em vista que não havia estabilidade para funcionários foi observado que sim. Até final de 1960 o grau de relacionamento social era fundamental na viabilização de projetos profissionais. Os passeios em comuns, participação de batismos, aniversários eram ingredientes na chamada família ibgeana. Inclusive, o próprio entrevistado ao entrar no IBGE ao início da década de 70 ainda ouvia que o IBGE era uma família. Hoje este quadro mudou, a família, por sua vez, encontra-se cada vez mais nuclearizada, o próprio IBGE virou fundação ao final da década de 60; as relações de trabalhos passaram a ser realizada sob o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), e torna-se mais freqüente o número de concursos tendo os aprovados seus nomes registrados no Diário Oficial. Depoimento dois Havia dois grandes grupos. Um deles teria vínculos com a União Democrática Nacionalista (UDN) , que remonta ao tempo da origem do IBGE. Este grupo teria a presença da família Macedo Soares e geógrafos como a Lysia Bernardes, Nilo Bernardes. Havia ainda outro grupo, dentro da linha do Partido Social Democrata e Partido Trabalhista Brasileiro, que contava com o grupo do Apresento os depoimentos sem apontar seus autores, pois o objetivo foi o de relatar uma dinâmica que não mais existe na FIBGE! 7

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Zarur, parente de Spiridião Faissol, e contava ainda com a presença do Antônio Teixeira Guerra (pai), Alfredo Pontes Domingues, Aciolly e outros. De certo modo não havia muita diferença entre eles no campo metodológico. Havia uma forte presença da escola francesa. Assim, não havia entre eles um ostensivo conflito, conforme a variação da vida partidária brasileira, ora era um, ora era outro que ascendia nos postos de governo do IBGE. Este equilíbrio veio a sofrer uma mudança com o movimento militar de 1964. Nesta época há a ascensão da UDN. É quando o grupo do Fábio Guimarães e Lysia Bernardes conheceu melhor sorte em suas demandas e foi quando ocorreu uma aproximação deste com aquele que até então seguia uma rota de esquerda tendo inclusive participação ostensiva no Partido Comunista Brasileiro, a saber, Pedro Pinchas Geiger. Graças à intervenção da Lysia Bernardes as agruras que começaram a acompanhar a vida de Geiger foram suspensas dada a uma providencial intervenção de um secretário estadual do governo Carlos Lacerda, secretário este parente da Lysia. Durante o governo militar, militares participavam do Conselho Diretor do IBGE. Havia uma divisão de geodésica que interessava particularmente aos militares (havendo uma regular troca com o Serviço Geográfico do Exército), por esta razão, tradicionalmente destinava uma ou duas vagas por ano da Escola Superior de Guerra ao IBGE. Nesta época, passou a ficar comum a frequência dos geógrafos aos cursos da ESG. Afora a presença dos militares, outro aspecto importante e decisivo nos rumos futuros da instituição foi o convênio entre o IBGE e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sob os auspícios do então Ministro do Planejamento (1970-1974), Sr. João Paulo dos Reis Velloso, este forjou um esforço de integração entre as duas instituições que mostrou-se muito negativa com o tempo. Por que? Porque economista vai, com o tempo, voltar-se sobretudo à macro -economia, à taxa de juros, de câmbio, balança comercial, delegando pouco importância à dimensão propriamente regional do evento econômico. É desta época, por exemplo, que foram reduzidos bruscamente os trabalhos de campo dos geógrafos. Os geógrafos do IBGE ficam reféns de uma ótica economicista, vinculada ao Programa de Desenvolvimento, coincidindo com uma certa dispersão dos dois grupos em favor de diferentes cargos em outras posições. Por exemplo, a Lysia foi para a Secretaria Estadual de Planejamento, tendo como secretário o Sr. Ronaldo Costa Couto; este, por sua vez, quando veio a ocupar cargo de projeção no gover192

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no federal na década de 80 solicitou à professora Lysia que ocupasse a Secretaria de Superientendência da Região Sudeste (SERSE)8. Assim, o Congresso de 1956 ensejou a formação de uma equipe e uma rede de contatos que se mostrou poderosa por quase vinte anos, mas não logrou o sucesso de gerar uma geração que sucedesse aquela que teve notória exposição na geografia brasileira. Ao longo da década de 70 o Instituto de Geografia será extinto dentro do IBGE e o espaço destinado aos geógrafos diminuiu sensivelmente dentro do IBGE.

Onde está a geografia na FIBGE? A presente indagação tem uma relação com um texto encontrado na Revista Geo-paisagem (on line) que aborda a fase aúrea da geografia na instituição9. Se aceitarmos a visão de que ocorreu uma fase áurea da geografia no então IBGE cabe relacionarmos esta situação a uma crise que teria ocorrido com esta instituição nos idos anos 50. Nessa época, embora o levantamento realizado pelo instituto fosse nitidamente pioneiro, havia uma notória dificuldade de sistematização da informação. O tamanho do território, a diversidade das variáveis consideradas geravam problemas em ter um tipo de abordagem que facilitasse o acesso à informação necessária num breve espaço de tempo. É como se ocorresse uma crise decorrente do crescimento, tanto do instituto quanto do próprio país; não bastava mais ter a informação, esta deveria ser suficientemente transmitida para rapidamente favorecer processos de intervenção no território. Neste sentido, cresce o movimento em favor da harmonização das variáveis consideradas, evitando nuances particularizadoras. A princípio, esta mudança de linha metodológica veio a ser consagrada durante o processo de alteração das próprias características do IBGE. No trabalho “IBGE: um retrato histórico”, de Jayci de Mattos Madeira Gonçalves (1995, p. 39), consta a seguinte passagem que reproduzimos abaixo: A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FundaCuriosamente fui testemunha dos dois movimentos, seja no primeiro porque fui convidado pela referida professora a estagiar na Secretaria em 1977; seja já como profissional de uma empresa de consultoria a teria encontrado na referida Superintendência. 9 O artigo é fruto de uma palestra do geógrafo aposentado Miguel Alves de Lima e pode ser conhecido no endereço virtual: www.feth.ggf.br/Geografia.htm. 8

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ção IBGE), instituída pelo Decreto-lei nº 161, de 13.02.1967, em substituição à autarquia IBGE, introduziu profundas modificações nas atividades do sistema estatístico nacional e nas de natureza geográfica e cartográfica, vez que passou a coordená-las na condição de órgão central. ... A expansão do planejamento econômico-social, tanto na área governamental, como no setor privado, assim como a crescente demanda de informações estatístico-geográficas, exigiam melhor qualidade e presteza dos levantamentos tradicionais e implantação de novas pesquisas, o que de longa data vinha sendo dificultado por uma série de fatores, alguns deles decorrentes da estrutura organizacional, sem flexibilidade capaz de assegurar o indispensável dinamismo, faltando, ainda, participação mais efetiva dos usuários na elaboração dos programas de trabalho, para melhor adequá-los aos seus interesses.

O que chama a atenção nesta passagem é a existência de uma cobrança por eficiência que se esbarrava com a forma de fazer ciência então vigente. Numa elucidativa passagem da obra “Novos estudos de geografia humana brasileira”, de Pierre Monbeig, é assinalada a existência de um conflito na época, a saber: Se o mapa, a planta, a topografia e a gravura são os auxiliares indispensáveis desta descrição da vida urbana, isto não quer dizer que, sob o pretexto cômodo de fazer ciência, o estilo deva tomar uma aparência de relatório oficial, administrativo e impessoal. Pois não é conhecer a alma da cidade, depois da de seus bairros, o que se deseja? Na comunicação já citada, Gilberto Freire insistiu muito, e com razão, sobre a ‘qualidade sinfônica’ da paisagem cultural, rural ou urbana. Escreve ele que ‘o fato deve ser destacado no Brasil, onde um cientificismo exagerado insiste em levantar-se contra aqueles trabalhos de história e geografia ou de sociologia aplicada em que os autores se aventuram em tentativas de interpretação compreensiva ... Afinal o rigor do particularismo objetivista – tão necessário como disciplina e método de análise – pode, pelo excesso, nos levar à inteira desumanização daquelas ciências voltadas para o estudo dos grupos humanos considerados nas suas relações, ou inter-relações, de tempo ou de espaço’. O perigo é exatamente o de ‘desumanizar’, pois ninguém acreditará ter mostrado o homem, quando o apresenta como um rebanho de gado. É tempo de fazer uma injeção de Elysée Reclus na geografia dos sinclinais e das estatísticas, assim como na 194

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sociologia que acredita expremir o real, enquandrando-o em equações. Antes de escrever, o geógrafo deveria por-se em contato com a literatura, no sentido estrito da palavra, que existe sobre a cidade estudada: os arquivos, as estatísticas, os planos dos urbanistas, não ensinam mais que o passeio das moças no domingo à tarde na praça pública da cidade pequena, ou que as cores, os sons, os odores da grande avenida principal da Capital, a multidão dos operários em alvoroço à saída da fábrica e a luz de um belo dia de sol sobre as areias vermelhas e os arranha-céus.Mas que não se despreze, também, ‘o rigor do particularismo objetivista, tão necessário como disciplina e método de análise’ (Monbeig, 1957, pág. 53).

Conclusão Ao iniciar o curso de Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1977 tive a oportunidade a assistir a uma Semana de Geografia promovida por minha turma. Nesta, apareceu um geógrafo francês que chamou a nossa atenção para a singularidade da FIBGE no campo da produção do conhecimento geográfico, observava ele que algo semelhante não existe na França. De fato, é impensável considerarmos a geografia brasileira sem ter em conta esta fundação e seu destacado papel na segunda metade do século XX, a começar pelo decisivo apoio na elaboração de diversos encontros de geógrafos em diferentes lugares e épocas. Porém, sem receio de cometer grande injustiça, é possível afirmar que após a decisiva participação da FIBGE na Conferência Regional Latino-americana de 1982, realizada no Rio de Janeiro, entre outros estados, pela União Geográfica Internacional, a fundação, desde então, desapareceu dos principais encontros dos geógrafos enquanto promotora de grandes eventos da área. Esta ausência nos leva a esta leal provocação, porque é feita de forma aberta: onde está a geografia na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística? Quando consideramos a história brasileira é possível notar como, de um lado, esta história tem poucos heróis; por outro lado, como a questão da territorialidade e sua respectiva unidade foi um elemento fundador do sentido de nacionalidade brasileira e para tanto contribuíram várias instituições que tinham no território brasileiro a sua razão de existir, particularmente, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, mais tarde, Sociedade Brasileira de Geografia, que promoveu uma série de congressos sobre o tema na primeira metade do Período Republicano 195

século XX (vide www.feth.ggf.br/Congresso.htm, assim como, sobre a Sociedade, www.feth.ggf.br/Socgeorio.htm), o Serviço Geográfico do Exército, que ao longo do referido século realizou um prodigioso levantamento cartográfico (vide www.feht.ggf.br/Servigeoex.htm), assim como o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que promoveu vários encontros de geografia no lugar da Sociedade Brasileira de Geografia ao longo da segunda metade do século XX, particularmente o congresso internacional de 1956(vide www.feth.ggf. br/Congresso1956.htm). Mas, e hoje? De certo modo, o crescimento das universidades ao longo da segunda metade do século XX propiciou certa substituição da FIBGE na promoção de novas linhas de pensamento da geografia. O problema é que isto ocorreu de forma um tanto ou quanto avulsa, sem um nexo interno, enfim, sem um projeto comum (vide www.feth.ggf.br/Geouni.htm), ao contrário do IBGE, que chegou a capitanear decisivas discussões sobre a implantação das grandes regiões como instrumento de planejamento, ainda, e aprofundou o tema da transferência e localização da nova capital brasileira; mais recentemente teve importância na discussão do projeto Calha Norte, durante a década de 1980... mas, e hoje? A menor densidade da geografia na FIBGE pode vir a ser interpretada de diferentes maneiras, a saber: 1ª) dentro do novo aspecto tecnológico da produção e circulação da informação a geografia se mostra por demais subjetiva, o que a leva a perder espaço em certas estruturas de poder!; 2ª) simplesmente ocorreu um abandono do projeto de conhecimento e ocupação do território brasileiro capitaneado pelo Estado brasileiro! Porém, há outro aspecto a ser considerado que diz respeito a uma espécie de gap entre os geógrafos que tinham projeção e os que iniciaram suas carreiras na fundação, exatamente numa época em que crescia a chamada Geografia Crítica. Esta, na sua projeção, junto aos alunos e professores universitários, interpretava órgãos de planejamento em geral como grandes instrumentos da reprodução capitalista, criando assim certa animosidade entre as partes10. Pelo menos em parte esse ambiente dificultou o entendimento entre os pares das universidades e órgãos de planejamento quanto a uma ideia de projeto comum. Além disso, como acréscimo na dificuldade de estabelecimento de um projeto em comum, há um aspecto regional, ou seja, a geografia crítica, teve, sobretudo, uma marca paulista! A geografia crítica tem uma grande marca das universidades paulistas, 10

Sobre Geografia Crítica no Brasil veja: www.feth.ggf.br/GeografiaCrítica.htm.

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especificamente da Universidade de São Paulo (USP). Ora, esse ambiente aumentou ainda mais a distância em relação à FIBGE, que foi muito ligada à antiga Universidade do Brasil, mais tarde, Universidade Federal do Rio de Janeiro11. De qualquer modo, ocorreram esforços por parte de alguns geógrafos de dialogar com as novas mudanças da geografia, que ocorriam tanto a nível interpretativo quanto no nível do tipo de organização que passou a ser promovida entre os geógrafos, mas não lograram sucesso. Bibliografia ALMEIDA, Roberto Schmidt. A geografia e os geógrafos do IBGE no período 1938-1998. 2 vols. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2000. Orientação de Lia Osório Machado. FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário estatístico do Brasil – resenha histórica. Rio de Janeiro: IBGE, 1991. GONÇAVES, Jyci de Mattos Madeira. IBGE: um relato histórico. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1995. GUIMARÃES, Fábio de Macedo Soares. Divisão regional do Brasil . Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, nº 2, ano III, abril/junho, 1941. Reeditada em 1988, v. 50, n. especial, t. 1, pp. 9-66. LIMA, Miguel Alves de. Revista Geo-paissagem (online) www.feth.ggf.br/Geografia.htm. MAGNAGO, Angélica Alves. A divisão regional brasileira – uma revisão bibliográfica. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, vol. 57, nº 4, outubro/dezembro 1995, pp. 65-92. MONBEIG, Pierre. Novos estudos de geografia humana brasileira. São Paulo: Ed. Difel, 1957. PENHA, Eli Alves. A criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1993. SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. Nobiliarquia fluminense. Rio de Janeiro: Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1947.

Material de referência Enciclopédia Delta Larousse, vol. 6, 1970. Inclusive, ao término da década de 1970, quando terminava meu curso de graduação em Geografia pela UFRJ, fui convidado a fazer um estágio nessa fundação porque havia um convênio (não sei se ainda há) entre as duas instituições de garantir um estágio aos dois melhores alunos da turma que estava a terminar o curso. Por impossibilidade, não aceite o convite. 11

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O XVIII Congresso Internacional da União Geográfica Internacional (UGI) – Rio de Janeiro, 19561 Apresentação No esforço de resgatar grandes episódios que marcaram a geografia brasileira, e na esperança de que este esforço venha a ser aproveitado para maiores e mais profundos estudos, destaco neste texto o primeiro encontro, e até o momento único, que a União Geográfica Internacional promoveu no Brasil. Existiram outros, como o de 1982, mas tinham uma grau de abrangência mais limitado, não implicavam, por exemplo, a realização, tal como se deu em 1956, da assembleia geral da entidade! ------------------No comitê executivo da UGI havia o professor Hilgard O’Reilly Sternberg que teve grande importância para a geografia brasileira em meados do século XX: ele foi vice-presidente na gestão 1952-1956, e foi primeiro vice-presidente na gestão de 1956-1960, enquanto representante do Brasil. Na ocasião da IX Assembleia Geral da UGI, em 1956, havia 42 países membros regulares (entre os quais o Brasil), e seis países como membros associados, todos admitidos na IX Assembleia. Como preparação do congresso houve uma primeira circular que atingia 8.000 cópias e foi dirigida para diversos países. O congresso registrou 1.220 inscrições, sendo 59 países inscritos, dos quais 53 estavam inscritos para trabalhos. O encontro foi realizado na Escola Naval do Rio de Janeiro, na pequena ilha de Villegaignon (na Baía da Guanabara) entre os dias 9 a 18 de agosto de 1956; para tanto as férias escolares dos alunos foram estendidas. A Marinha, além da Escola Naval, disponibilizou alojamento gratuito para 200 membros do congresso, cobrando por isto e a alimentação por um preço módico para quem desejasse.Para quem quisesse havia ainda um serviço de transporte gratuito entre a Escola Naval e o centro da cidade para evitar o isolamento. Foi instalado, ainOriginalmente publicado na Revista Geo-paisagem ano 3, n. 5, janeiro/junho de 2004. 1

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da, na escola, um serviço regular de correio, radiograma internacional, agência de câmbio, agência de viagem, venda de jornais (revistas, livros), e souvenir do congresso em benefício de obras de caridade. Tinha um escritório central que atendia de 8h30min às 18h30min.A subcomissão de publicidade, por exemplo, favorecia o contato com a imprensa brasileira e internacional (tendo contato com jornalistas previamente credenciados). Os recursos financeiros foram destinados para que os membros do congresso melhor conhecessem o Brasil (contaram com o apoio do Ministério das Relações Exteriores e Centro Cultural Brasil-Israel). Isto permitiu que estrangeiros melhor interagissem com outros centros universitários brasileiros e outros organismos especializados. Neste sentido destacou-se a iniciativa do ‘Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil’ da Universidade do Brasil que, graças ao apoio da Fundação Rockefeller e com a colaboração da CAPES(Comissão de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior) e do CNPq(Centro Nacional de Apoio a Pesquisa) organizou um curso intensivo de seis semanas promovido por 7 professores estrangeiros para quarenta professores universitários brasileiros.

Características do congresso2 O programa – um resumo Quarta-feira – 8 de agosto 13h30min: Apresentação do Comitê Executivo da UGI ao Diretor da Escola Naval. 14h – 17h30min: Inscrições dos congressistas brasileiros e apresentação de cartas de credenciamento de instituições brasileiras. Sala da Secretaria. Quinta-feira – 9 de agosto 8h – 9h: Reunião de copresidentes, de secretários de seção, presidentes de comissão de seção e intérpretes. Sala UGI. 8h– 12h: Reunião entre os chefes de delegação e os representantes das instituições para analisar as cartas de credenciamento. Sala da Secretaria. Baseado em Comptes Rendus du XVIII Congrés International de Géographie. Rio de Janeiro, 1956. Tome Premier. Actes du Congrés. 2

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9h: Reunião do Comitê Executivo. Sala UGI. 10h: Visita ao presidente da República. 11h30min: Visita ao ministro de Relações Exteriores. 14h: Reunião do Comitê Executivo da UGI. Sala UGI. 16h: Visita ao prefeito da Cidade do Rio de Janeiro 17h: Recepção oficial no Palácio do Itamaraty. 21h: Seção inaugural. Teatro Municipal3. Sexta-feira – 10 de agosto 8h – 10h: Reunião dos chefes de delegação. Sala UGI. 10h30min: Inauguração da Exposição Geográfica e Cartográfica – Seção Internacional. Salão de Exposição do Ministério de Educação e Cultura. 11h30min: Visita à Exposição Geográfica e Cartográfica – Seção brasileira. Club da Aeronáutica. 14h: Visita à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal, ao Ministério da Educação, ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ao Conselho Nacional de Geografia, à Faculdade Nacional de Filosofia, à Diretoria do Serviço Geográfico do Ministério da Guerra e à Diretoria de Hidrografia e Navegação do Ministério da Marinha. 16h: Assembleia Geral da UGI. Auditório do Ministério da Educação e Cultura. 21h: Conferência do engenheiro Plínio Cantanhede sobre “Problemas de energia no Brasil”. Auditório do Ministério da Educação e Cultura. Sábado – 11 de agosto 9h – 12h: Reunião das seções e das comissões. 12h: Almoço e festa folclórica oferecidos pelo prefeito do Distrito Federal no Yacht Club do Rio de Janeiro. 15h – 18h: Passeio de ônibus pela cidade do Rio de Janeiro. Domingo – 12 de agosto 8h – 17h: Excursão a Petrópolis e Teresópolis ou pela baía da Guanabara (indo à ilha de Paquetá). A noite, no Teatro Municipal, ocorreu a recepção oficial pelo presidente da República, senhor Juscelino Kubitschek de Oliveira, tendo discursos do professor Jurandyr Pires Ferreira (presidente da comissão organizadora do congresso); discurso do professor L. Dudley Stamp (presidente da União Geográfica Internacional) e discurso final do presidente da República. 3

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Segunda-feira – 13 de agosto 9h – 12h: Reunião de seções. 14h – 17h30min: Reunião de seções. 21h: Conferência do professor Sylvio Fróes Abreu sobre o tema “Recursos minerais e industrialização no Brasil”. Auditório do Ministério da Educação e Cultura. Terça-feira – 14 de agosto 9h – 12h: Colóquio “O problema das savanas e dos campos nas regiões tropiciais”. Auditório do Ministério da Educação e Cultura. 14h – 17h: Reunião das seções e comissões. Noite livre. Seção de cinema. Teatro da Escola Naval. Quarta-feira – 15 de agosto 9h – 12h: Reunião de seções e comissões. 14h – 17h: Reunião de seções e comissões. 21h30min: Auditório do Ministério de Educação e Cultura. Conferência da professoraAlice Piffer Canabrava sobre o “Povoamento do Brasil, seus aspectos geográficos”. Quinta-feira – 16 de agosto 8h: Reunião do Comitê Executivo da UGI. 9h – 12h: Reunião de seções e comissões. 13h – 16h: Passeio de ônibus pela cidade do Rio de Janeiro e áreas vizinhas. 16h: Visita à Universidade do Brasil. 17h: Coquetel oferecido pelo senhor Jurandyr Pires Ferreira, presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Sociedade Hípica Brasileira. 21h: Seção de cinema. Teatro da Escola Naval. Sexta-feira – 17 de agosto 9h – 12h: Reunião de seções e comissões. 14h – 17h: Colóquio sobre “A contribuição da geografia para a planificação regional dos países tropicais”. Auditório do Ministério da Educação e Cultura. Sábado – 18 de agosto 9h – 12h: Reunião de seções e de comissões. 14h – 16h: Reunião de seções e de comissões. 17h: Assembleia geral da UGI. Teatro da Escola Naval. Período Republicano 201

20 h. 30 min.: Te Deum solene promovido por S. Emª. o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, na Catedral do Rio de Janeiro. Sessão solene de encerramento no Teatro Municipal presidida pelo chefe do Estado-Maior da Marinha, almirante Renato Guillobel, representando o presidente da República. Domingo – 19 de agosto 14h: Reunião do Comitê Executivo para o período 1956-1960. Sala UGI.

Comentários sobre o programa Vários aspectos chamam a nossa atenção na viabilização do encontro. O primeiro aspecto diz respeito à decisiva atuação do governo federal no episódio, particularmente das Forças Armadas. Os congressistas, por sua vez, majoritariamente estrangeiros, se ocuparam em estabelecer vários contatos no encontro que envolviam a Presidência da República, o Ministério de Estado das Relações Exteriores, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o Ministério de Educação e Cultura, o Ministério da Marinha, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (o Conselho Nacional de Geografia), a Faculdade Nacional de Filosofia, a Diretoria do Serviço Geográfico, o Ministério da Guerra, a Diretoria de Hidrografia e Navegação do Ministério da Marinha e a Prefeitura do Distrito Federal. O Congresso também atingiu a cidade. A Exposição Geográfica e Cartográfica inaugurada pelo senhor embaixador José Carlos de Macedo Soares, ministro de Estado das Relações Exteriores, e realizada no salão de exposições do Ministério de Educação e Cultura foi voltada para exposição de material estrangeiro (contando com a iniciativa de 20 países). A exposição com material nacional foi exposto no Club da Aeronáutica, contando com seis instituições governamentais e privadas com respectivas cartas, fotos e mapas. Em termos de outras atividades, os congressistas usaram o Teatro Municipal, a Sociedade Hípica do Rio de Janeiro, o Yacht Club do Rio de Janeiro, o Palácio do Itamarati, e curtas visitas por Petrópolis, Teresópolis, baía da Guanabara, e entorno da cidade do Rio de Janeiro. Esse verdadeiro acontecimento deve ter tido fortes influências naqueles geógrafos brasileiros que estavam começando a carreira, tais como: Bertha Koiffman Becker, Milton Santos, Manuel Correia de Andrade, 202

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Aziz Nacib Ab’Saber, Maria do Carmo Correa Galvão, Nilo Bernardes, Lysia Bernardes, Maria Therezinha Segadas Vianna, entre outros. As seções1 Seção I – Cartografia e Fotogeografia, com 26 trabalhos, nenhum brasileiro. Seção II – Geomorfologia, com 69 trabalhos, cerca de oito brasileiros, a saber: Aziz Nacib Ab’Saber, Fernando Flávio Marques de Almeida, Manuel Correia de Andrade, Carlos de Castro Botelho, Alceo Magnanini, Celeste Rodrigues Maio, Mario J. Magnani e Gilberto Osório. Cabe mencionar a presença do professor Hilgard O’Reilly Sternberg que teve decisiva importância na década de 1950 na Geografia da UFRJ . Seção III – Climatologia, com 20 trabalhos; dois brasileiros: Speridião Faissol e Celeste Rodrigo Maio. Seção IV – Hidrografia, com quatro trabalhos; uma brasileira: Ruth Mattos Almeida Simões. Seção V – Biogeografia, com 10 trabalhos, nenhum brasileiro. Seção VI – Geografia humana, com 18 trabalhos, nenhum brasileiro. Cabe destacar na seção dois trabalhos de Pierre Deffontaine (fundador das Associações de Geógrafos Brasileiros). Seção VII – Geografia da população e do povoamento, com 52 trabalhos, sendo seis brasileiros. Destes, temos os professores Milton Santos (com dois trabalhos), Aroldo de Azevedo, F. de Paula Cidade, Maria Rita da Silva de la Roque Guimarães, Carlos Augusto de F. Monteiro, Nice Lecocq Muller e um trabalho coletivo da seção regional do Paraná da Associação de Geógrafos Brasileiros. Seção VIII – Geografia médica, com 19 trabalhos, com nove brasileiros. Todos não conhecidos como geógrafos; são eles: Mario B. Aragão (com dois trabalhos); Emmanuel Dias (com dois trabalhos), Fernando Machado Bustamante (com dois trabalhos); Clarimundo Chapadeiro, Hermínio de Brito Conde. F. Rocha Lagoa, Wantuyl C. Cunha; Olimpio Neto, Henrique P. Veloso (com dois trabalhos), Pedro Fontana Júnior, José Venâncio de Moura. Mais da metade dos trabalhos (11 ao todo) foram realizados por brasileiros2. Apoiado em Resumes des communications.Union géographique internationale. Comitê National du Brésil. Rio de Janeiro, 1956. Na classificação que segue procuramos detectar a importância dos brasileiros na apresentação dos brasileiros em cada seção. 2 É provável que a vigorosa participação brasileira decorra do Instituto de Manguinhos, da atual Fundação Oswaldo Cruz, referência mundial na área de doenças tropicais. 1

Período Republicano 203

Seção IX – Geografia agrária, com 28 trabalhos, com uma brasileira: Ilka Bruck Lacerda. Seção X – Geografia da indústria, do comércio e do transporte, com 28 trabalhos, sendo três brasileiros: Oswaldo Benjamin de Azevedo, Catharina Vergolino Dias e Pedro Pinchas Geiger. Seção XI – Geografia histórica e política, com 20 trabalhos, sem um brasileiro. Seção XII – Metodologia de ensino da Geografia e bibliografia, com 24 trabalhos, sem nenhum brasileiro. Destaque para Francis Ruellan que teve grande importância para os geógrafos brasileiros na época. Seção XIII – Geografia regional, com 10 trabalhos, um brasileiro: Julio Planck Bittencourt. Ao todos foram 260 pessoas envolvidas diretamente em apresentação de trabalhos, dos quais aproximadamente 10% eram de brasileiros3. As excursões4 No intuito de oferecer aos congressistas um melhor conhecimento da geografia física e humana das diferentes regiões do país, foram organizadas nove excursões das quais quatro foram realizadas antes do congresso e cinco após o mesmo, de modo a permitir a um mesmo participante a ocasião, por duas vezes, de entrar em contato direto com a terra brasileira. Entre os percursos percorridos, as excursões se ativeram à Amazônia, o Centro-Oeste e o Sul do país; na parte oriental, o Nordeste, o Estado da Bahia e mais particularmente o Sudeste do Brasil. Nesta última região quatro percursos diferentes tomaram os geógrafos, a saber: de Belo Horizonte até o Vale do Rio Doce, o litoral do Rio de Janeiro, o vale do Paraíba e a região de São Paulo (que incluiu o oeste do mesmo e o norte do Paraná, no intuito de acompanhar a trajetória do café). As facilidades obtidas, seja pelas autoridades federais, estaduais, municipais ou de organismos autônomos, seja empresas particulares solicitadas a colaborar na organização das excursões, permitiram à Foram editados vários tomos, porém só encontramos: tome quatrième, travaux des sections IX, X, XI, XII, et XIII. Comptes rendus du XVIII Congrès international de géographie, Rio de Janeiro, 1956. Comitê National du Brésil, Rio de Janeiro, 1966. Assim como: tome second, travaux des sections I, II et III. Comptes rendus du XVIII Congrès international de géographie, Rio de Janeiro, 1956. Comitê National du Brésil, Rio de Janeiro, 1960. 4 O que se segue foi retirado do documento: Comptes rendus du XVIII Congrés International de géographie Rio de Janeiro, 1956. 3

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Aspectos históricos da geografia brasileira

Secretaria Executiva estabelecer reduções nas taxas das mesmas excursões que puderam ser oferecidas aos congressistas por um preço sensivelmente inferior aos anunciados na Primeira Circular. Para seis das excursões efetuadas, as reduções alcançaram 60% dos valores estabelecidos anteriormente, e para as outras as reduções chegaram de 35% a 50%. Os preços compreenderam o transporte, o alojamento, as refeições (bebidas incluídas), o transporte de bagagem para os hotéis, assim como serviço de transporte para cada parada. Além disso, foi inserido um seguro temporário para acidentes pessoais.

Relação das excursões, respectivos preços e membros participantes por país de origem Excursão nº 1 – Planalto centro-oeste e pantanal do Mato Grosso. 21 julho – 8 agosto Preço: US$ 161,00 Direção de Fernando Flávio Marques de Almeida e Miguel Alves de Lima com o apoio de Lúcia de Oliveira. Membros que participaram : Finlândia (1), Suécia (1), Israel (1), Brasil (3), Reino Unido (2), França (2), Alemanha (1), União Soviética (5). Cabe considerar a forte presença da União Soviética nas excursões de áreas de fronteiras, a saber: Mato Grosso e a Amazônia. Excursão nº 2 – Região metalúrgica de Minas Gerais e vale do Rio Doce. 23 julho – 7 agosto Preço: US$ 119,00 Direção de Ney Strauch com o apoio de Alfredo José Porto Domingues e Maria Thereza Ribeiro da Costa. Membros participantes : Reino Unido (3), França (2), Estados Unidos (6), Itália (1), Dinamarca (1), Canadá (1), Bélgica (1), Suíça (1). Excursão nº 3 – A marcha do café e a frente de pioneiros 21 julho – 6 agosto Preço: US$ 126,00 Direção de Ary França com o apoio de Nice Lecocq Müller, Ruy Osorio de Freitas e Dora de Amarante Romariz. Período Republicano 205

Membros participantes: Suécia (4), Reino Unido (1), Estados Unidos (4), Nova Zelândia (1), Dinamarca (1), Canadá (2), Porto Rico (1), Japão (1), Suíça (1). Excursão nº 4 – Vale do Paraíba, serra da Mantiqueira e região de São Paulo 28 julho – 7 agosto Preço: US$ 84,00 Direção de Aziz Nacib Ab’Saber e de Maria Therezinha de Segadas Soares com o apoio de Luiz Guimarães de Azevedo. Membros participantes: Reino Unido (2), Estados Unidos (3), Dinamarca (1), Canadá (2), Japão (2), Brasil (2), Alemanha (1), Marrocos (1), Noruega (1), Países Baixos (1). Excursão nº 5 – Plano litoral e região açucareira do Estado do Rio de Janeiro. 21 – 28 agosto Preço: US$ 63,00 Direção de Lysia Maria Cavalcanti Bernardes com o apoio de Ruy Osorio de Freitas e Luiz Guimarães de Azevedo. Membros participantes: Suíça (1), Japão (2), França (2), Estados Unidos (1), Nova Zelândia (1), Brasil (1), Suécia (1), Iraque (1), França (1), Países Baixos (1), Dinamarca (1), Noruega (1), Reino Unido (1). Excursão nº 6– Bahia 20 agosto – 3 setembro Preço: US$ 112,00 Direção de Alfredo Pôrto Domingues e de Elza Coelho de Souza Keller, com o apoio de Lilia Camargo Veirano. Membros participantes: Suíça (1), França (3), Estados Unidos (2), França (1), Países Baixos (1), Reino Unido (5), Canadá (1), Polônia (1), Alemanha (1), Itália (3), União Soviética (3), Espanha (1), Romênia (1), Bélgica (1). Excursão nº 7 – Nordeste 21 agosto – 5 setembro Preço: US$ 136,50

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Aspectos históricos da geografia brasileira

Direção de Mário Lacerda de Melo com o apoio de Aziz Nacib Ab’Saber e Dárdaro de Andrade Lima. Membros participantes: Israel (1), Polônia (2), Reino Unido (1), URSS (2), França (4), Itália (1), Argentina (1), Brasil (1), Alemanha (1), Marrocos (1), Finlândia (1). Excursão nº 8 – Amazônia 24 agosto – 13 setembro Preço: US$ 175,00 Direção de Lúcio de Castro Soares com apoio de Roberto Flávio Cristófaro Galvão e Tibor Jablonsky. Membros participantes: Finlândia (1), México (1), Argentina (1), União Soviética (4), França (5), Bélgica (1), Alemanha (3), Cuba (3), Japão (2), Polônia (1), Estados Unidos (3). Excursão nº 9 – Planalto Meridional 24 agosto – 10 setembro Preço: US$ 133,00 Direção de Orlando Valverde e Dora de Amarante Romariz. Membros participantes: Suécia (1), Reino Unido (2), Alemanha (4), Polônia (1), Nova Zelândia (1), Uruguai (1), França (2). Chama a atenção a presença dos alemães na excursão para o Sul do país; provavelmente para conhecer as colônias alemãs na área. Mas ao longo das excursões percebe-se a forte presença dos americanos que tinham, à época, a maior delegação.

Repercussões Na imprensa Ao recorrermos às edições antigas do jornal O Globo, período de 9 a 18 de agosto de 1956, temos uma noção da repercussão do encontro no nível da opinião pública da época. Em manchete de primeira página desse jornal, dia 9/8/1956 consta: “Conquista o Brasil sua maioridade com relação à ciência geográfica”. Na página seguinte, pág. 2, consta que o congresso teria um custo superior a 9 milhões de cruzeiros. Tendo sido o único a ser realizado no Hemisfério Sul, até aquela data, a edição do jornal apresenta as razões do encontro ter ocorrido no Brasil. Período Republicano 207

Em 1949 durante o XVI Congresso, em Lisboa, o Brasil apresentou sua candidatura para realizar o de 1952. Voltavam a realizar os grandes conclaves internacionais depois de um interregno de onze anos. Nosso pedido chocava-se com a pretensão dos americanos que desejavam para sede de 1952 a cidade de Washington, como parte dos festejos comemorativos do Centenário da Associação Geográfica Americana. O Brasil retirou sua candidatura em homenagem à efeméride. Em 1952 contou com o apoio maciço das Américas e de vários outros países, que lhe deram maior número de votos que ao outro concorrente, a Inglaterra (sic.).

Ao longo dos dias do congresso o jornal apresentava uma cobertura do que ocorria. Por exemplo, no dia 10/8 há uma fotografia em primeira página do geógrafo alemão Carl Troll, que tinha estado no Brasil em 1926. Na edição de 13/8 temos a notícia de uma grande exposição cartográfica no Instituto de Educação, com mapas que eram “bonitos como quadros”. No dia seguinte, pág. 11, temos uma entrevista com o geógrafo português Orlando Ribeiro, no Brasil pela terceira vez, que elabora uma comparação entre as cidades do Brasil com a de Portugal e ele interpreta que Ouro Preto (MG) é a cidade mais portuguesa do mundo! Na matéria do dia 18/8, pág. 7, ao término do congresso, os jornalistas colhem depoimentos pelos quais “... em breve o Brasil ocuparia lugar de destaque no Mundo”. Nas instituições universitárias Um local que sofreu forte influxo com a realização do congresso foi a antiga Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No endereço virtual www.geografia.ufrj.br/graduacao.htm sobre o curso de graduação na UFRJ, visto em 13/10/2003, é observado: Dentro da UFRJ, a formação profissional do geógrafo está a cargo do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências, sucessor do mesmo Departamento da antiga Faculdade Nacional de Filosofia. Sua tradição de ensino e pesquisa remonta à década de 1930, quando da criação da Universidade do Distrito Federal. Em sua fase de implantação contou o Departamento com professores de grande renome como Pierre Deffontaines, Carlos Delgado de Carvalho e Francis Ruellan, aos quais coube formar os primeiros geógrafos, professores e pesquisadores, que os viriam a suceder nos quadros da Universidade e que constituíam o núcleo original 208

Aspectos históricos da geografia brasileira

do corpo de geógrafos do então Conselho Nacional de Geografia. Desde a década de 1940, o Departamento começou a dar ênfase à capacitação de seus alunos como pesquisadores dedicando especial atenção às pesquisas de campo, essenciais na formação de geógrafo profissional. Em colaboração com o antigo CNG, professores e alunos do Departamento de Geografia participaram de grande número de pesquisas, que se estenderam a várias regiões do país e cujos resultados se acham publicados nos órgãos de divulgação do IBGE. Tais pesquisas foram da maior importância na formação de numerosos geógrafos que hoje ocupam lugar destacado no cenário geográfico nacional. Por outro lado, no âmbito da própria Universidade, criaram-se condições para o desenvolvimento da pesquisa geográfica. Já em 1952, por iniciativa da cátedra de Geografia do Brasil, o Conselho Universitário criou o Centro de Pesquisa de Geografia do Brasil. Através dos trabalhos que vem desenvolvendo, com a participação de alunos e outros geógrafos, além de professores, este Centro vem dando então valiosa contribuição à qualificação dos geógrafos profissionais da UFRJ. (...) Em seu esforço pelo aprimoramento profissional do geógrafo, o Departamento de Geografia e Centro de Pesquisa de Geografia do Brasil têm atuado também através de cursos numerosos, de especialização ou aperfeiçoamento, alguns outros de extensão universitária. Em 1956, graças à presença no Brasil de grandes nomes da Geografia Mundial, aqui reunidos por ocasião do XVIII Congresso Internacional de Geografia, foi realizado, por iniciativa do CPGB, um curso de Altos Estudos que congregou como alunos geógrafos de várias regiões do país. Nos últimos anos, através de vários cursos de Aperfeiçoamento e de Especialização no campo da Geografia Física, como no da Geografia Humana e Regional. O Departamento de Geografia tem podido oferecer a geógrafos e outros profissionais, uma oportunidade de reciclagem com relação a temas escolhidos.

Em www.geografia.ufrj.br/pos_graduação.htm, visto em 13/10/ 2003, consta: O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA foi criado em março de 1972 com a finalidade de aperfeiçoar a qualificação de geógrafos para o exercício de atividades docentes e de pesquisa nessa área de conhecimento científico. Concede o título de Mestre em Ciências: Geografia e, a partir de 1992, o de Período Republicano 209

Doutor em Ciências: Geografia. O Departamento de Geografia, no âmbito do qual se desenvolveu o Programa, se originou na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, onde diversas iniciativas pioneiras, no sentido da formação de geógrafos pesquisadores, permitiram a fundação do Departamento. Dentre essas iniciativas, destacam-se os cursos de Aperfeiçoamento e Extensão ministrados por professores de renome internacional, como Lucien Febvre, Francis Ruellan, Gottfried Pfeiffer, Jean Demangeon, Jean Roche; a criação do Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil – CPGB, em 1952, pelo Prof. Hilgard Sternberg, com o apoio da Fundação Rockfeller e do CNPq, num momento em que a pesquisa geográfica universitária era ainda incipiente; o Curso de Altos Estudos, após o Congresso Internacional da União Geográfica Internacional (Rio de Janeiro, 1956) do qual participaram Carl Troll, Irwin Raisz, Orlando Ribeiro, Pierre Deffontaines, André Cailleux, Pierre Birot e Pierre Monbeig, e que reuniu, como alunos, um número expressivo de professores universitários de Geografia de todo o país. (...)

Outro local positivamente afetado pelo congresso foi a Bahia. Pelo endereço virtual www.fpa.org.br/reflexao/milton_biografia.htm, visto em 21/11/03, é assinalado um seminário Milton Santos e o Brasil, ocorrido entre 17 a 19 de julho de 2002 no estado brasileiro da Bahia (Salvador). No endereço virtual é apresentado um relato da professora Maria Auxiliadora da Silva sobre o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais criado pelo professorMilton Santos com apoio do professor Michel Rochefort, núcleo de que se derivou o atual Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFBA. Pelo mesmo endereço constam detalhes sobre as repercussões do congresso e que ora reproduzimos. A segunda metade dos anos 50 representa um marco para a ciência geográfica na Bahia. Em 1956, instala-se, no Rio de Janeiro, o Congresso Internacional de Geografia, ocasião em que acontece o encontro do jovem professor Milton Santos com o Prof. Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg, França. Após o Congresso, o Prof. Milton Santos, Bacharel em Direito, Editorialista do jornal mais importante da cidade, A Tarde e professor da Faculdade Católica de Filosofia da Bhia, segue para Strasbourg, de onde volta, em 1958, com seu doutorado em Geografia, juntamente com jovens colegas como Tereza Cardoso da Silva, Ana Dias da Silva Carvalho e Nilda Guerra de Macedo (morta, prematuramente, aos 35 anos), também 210

Aspectos históricos da geografia brasileira

professora secundária, antes da viagem à França, de colégios como o Severino Vieira e o Colégio Central. Na volta da França, o Prof. Milton Santos conheceu, numa reunião na Reitoria, o Reitor Edgard Santos, que o encarregou de organizar um grupo de pesquisa, em cujo nome, entretanto, não deveria figurar a palavra “geografia”, já que a direção não seria dos professores do Curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade da Bahia. Seguiram-se novos encontros com o Prof. Jean Tricart, encontros estes que aconteciam no Hotel da Bahia – hoje Tropical Hotel, único hotel moderno da cidade naquela época, e na sala do escritório de advocacia do Prof. Milton Santos no Edifício Antônio Ferreira, na rua Chile, centro. Assim, com o apoio do Reitor Edgard Santos, da Cooperação Técnica do Ministério das Relações Exteriores da França, representada pelo Prof. Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg e sob a liderança do espírito renovador do Prof. Milton Santos, criou-se o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia em 1º de janeiro de 1959. ....

Nas carreiras profissionais – depoimentos5 Aziz Nacib Ab’Saber6 GEOSUL – O senhor tinha ideia de onde iria chegar com seus estudos? Aziz – Em 1956 estabeleci um roteiro de estudo de geomorfologia. Propus-me inicialmente a entender a compartimentalização e as formas que assumem os compartimentos, aquilo que se vê. Como geógrafo, eu tinha que ter olhos. E isso me foi ensinado, desde a primeira hora, pelos mestres franceses. Portanto, procurei desenvolver essa percepção, pois sem isso é impossível ser geógrafo. A partir de 1956 – por influência dos grandes geomorfologistas e geólogos do quaternário que vieram ao Brasil participar do XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado no Rio de Janeiro –comecei a me interessar pela estrutura superficial da paisagem, ou seja, passei a interpretá-la como documento do passado recente, da história física e ecológica da Terra. Foi aí que me aproximei da ecologia e da geoecologia. Passei a me interessar, sobretudo, pela fisiologia da paisagem, por aquilo que depende Seção apoiada em trechos biográficos de geógrafos e expostos por ordem alfabética. Depoimento publicado na Revista Geosul, revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 14, ano vii, 2º semestre de 1992; pp. 161-182. 5 6

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do clima. Queria ter uma noção dinâmica da fisiologia da paisagem, que integrasse todos os seus componentes: águas caindo, rochas se decompondo, solos se formando, enfim uma cadeia sutil de eventos. Fixei um tripé de estudos: compartimentalização e formas; estrutura artificial da paisagem; e dinâmica ou fisiologia da paisagem. GEOSUL – Como o senhor chegou à teoria dos refúgios? Aziz – Essa história começou quanto entrei em contato com os grandes geógrafos alemães, belgas, franceses, poloneses e russos que vieram ao Congresso Internacional de Geografia realizado aqui no Brasil em 1956. De repente chegou ao Brasil um avião cheio de geógrafos, autores dos livros que eu lia. Foi uma festa! Eles não entendiam por que até durante o jantar eu procurava estar por perto deles. Aquela reunião me marcou. Até então eu não tinha tido oportunidade de ir à Europa e ver de perto o trabalho de geomorfologistas com formação muito superior à minha. Em 1957, quando Jean Tricart, um grande geógrafo de campo, voltou ao Brasil, eu o assessorei numa excursão a Salto, Jundiaí, Sorocaba e Campinas. Um dia paramos perto de um barranco onde havia uma ocorrência de stones lines (linhas de pedra) sobre terrenos mais antigos e, logo abaixo, terrenos cristalinos. Até então as linhas de pedra eram um enigma para nós brasileiros. Até então as linhas de pedra eram um enigma para nós brasileiros. Eu sabia da existência de bibliografia sobre aquelas linhas e sabia também que o que se dizia sobre elas não estava correto. Mas ninguém sabia explicá-las de outra forma com exatidão. O Tricart me disse então que aquelas linhas de pedra – que haviam dado tanto trabalho aos geógrafos, cada um interpretando-as a seu modo – na realidade deviam ser um remanescente de um chão pedregoso do passado. Poderia ser algo parecido – embora não se pudesse afirmar com certeza – com certas formações de pedras típicas do Nordeste brasileiro. Aquela área em que estávamos deveria, no passado, ter sido um chão pedregoso com caatingas ou cerrados, segundo a intepretação arguta de Tricart. Não precisou que ele dissesse mais nada: fiquei encantado com o que me dizia e me dediquei daí para frente a estudar as linhas de pedra7 (pp. 169-170). Em 1995, durante meu curso de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, assisti a uma palestra do professor Aziz que relembrava este momento, na sala de aula ele chegou a afirmar: “Há certos momentos que uma frase, uma colocação, mudam uma vida, e certamente aquele dia, no trabalho de campo, foi fundamental o que viria a estudar anos depois” (reproduzo aqui não a frase, pois não estava com gravador, mas certamente a ideia que quis transmitir). 7

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Aspectos históricos da geografia brasileira

Manuel Correia de Andrade8 GEOSUL – E sobre o Congresso Internacional de Geografia do Rio de Janeiro em 1956, qual a sua impressão? Prof. Manuel – Para mim foi também muito marcante: em primeiro lugar porque lá apresentei o meu primeiro trabalho em um Congresso Internacional – A “ria” do Formoso na Costa Sul de Pernambuco – e, segundo porque me pus em contato com as maiores figuras da geografia mundial, cujos livros eu manuseava e utilizava nos meus cursos e, ainda em terceiro, porque ao se concluir o Congresso foi realizado na então Universidade do Brasil um Curso de Altos Estudos Geográficos de que fui aluno. Este curso foi planejado e dirigido pelo professor Hilgard Stenberg, tendo como assistente a professora Maria do Carmo Galvão e foi ministrado por sete mestres estrangeiros para 40 estudantes brasileiros, todos professores universitários. Este curso foi ministrado pelos professores Orlando Ribeiro, da Universidade de Lisboa que deu um curso sobre a “Geografia da Expansão Portuguesa no Mundo”; por Karl Troll, da Universidade de Bonn que deu curso sobre “Biogeografia da América Latina”; por E. Rainz, que deu curso sobre Cartografia e pelos professores franceses, todos da Universidade de Paris, Pierre Monbeig com um curso de “Geografia Agrária do Mundo Tropical”, Pierre Deffontaines com “Geografia da Pecuária na América do Sul”, Pierre Birot com “Geomorfologia do Cristalino” e A. Cailleux com “Sedimentologia”. Eu era assistente da cadeira de Geografia Física, na então Universidade de Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco, trabalhando com o professor Gilberto Osório de Andrade. Nesse curso em que tive como colegas professores dos mais diversos estados do país – Ceará, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul – pude aprofundar e reciclar os meus conhecimentos e fazer grandes amizades pessoais. Amizades dentre os professores como Orlando Ribeiro, Pierre Deffontaine e Pierre Monbeig, que em 1964/65 seria o meu orientador de estudos, quando tive que sair do Brasil e fiz pós-graduação na França, no Instituto de Altos Estudos da América Latina, graças ao apoio que recebi do professor e amigo. E esta amizade foi mantida até a morte do mestre...Entre os colegas me aproximei muito de Bonifácio Fortes, de Sergipe, de Milton Santos, Dalmo Pontual, Nilda Guerra de Macedo (já falecida) e de Anna Carvalho, da Bahia, Depoimento publicado na Revista Geosul, Revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 12/13, ano vi, 2º semestre de 1991. 8

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da Guiomar Goulart de Azevedo e Alisson Guimarães (já falecido), de Minas Gerais, de Araújo Filho e Blás Berlanda Martinez, de São Paulo, e de Rafael Copstein e Alba Gomes, do Rio Grande do Sul. Admito que o Curso de Altos Estudos Geográficos, quer pela sua importância científica, quer pelo contacto que abriu entre professores brasileiros que se iniciavam e dos mesmos com os mestres estrangeiros, contribuiu enormemente para o desenvolvimento da Geografia brasileira. Convém salientar ainda que ao mesmo tempo em que se realizava esse curso na Faculdade Nacional de Filosofia, se realizava também em uma faculdade particular, localizada na Tijuca, um curso de Geomorfologia com o professor Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg. Esse curso tinha a maior importância porque Tricart divulgava os seus estudos sobre Regiões Morfoclimáticas que teriam uma grande influência nos estudos geomorfológicos nos anos 60 no Brasil. Suas aulas foram depois publicadas em livros dando uma maior divulgação às suas ideias. Convém salientar que as aulas de Tricart eram ministradas à noite e muitos dos meus colegas e eu próprio, ao concluirmos os trabalhos no Curso de Altos Estudos, íamos para a Tijuca receber os ensinamentos do mestre de Strasbourg. A influência de Tricart na evolução do pensamento geográfico no Brasil foi muito grande, quer através da divulgação de suas obras, quer através da orientação de brasileiros, sobretudo da Bahia, que se doutoraram em Strasbourg (pp. 132-134). Milton Santos9 (...) Mas é em 56, então, que se realiza no Rio de Janeiro um Congresso Internacional de Geografia. A Geografia era uma disciplina muito prestigiosa, assim como era o Conselho Nacional de Geografia (CNG) que, aliás, sempre foi dirigido por um geógrafo. Enquanto isso, o IBGE era dirigido por um militar ou um político, ou militar-político, como é o caso do pai da geógrafa Regina Rochefort, o almirante Espíndola, que foi um dos seus presidentes. Foi naquele congresso que se abriram as portas, para nós geógrafos brasileiros, para o mundo, com a vinda de grandes nomes que vieram prestigiar esse evento e que foi bastante divulgado na imprensa. É interessante notar que a abertura desse congresso contou com a presença do então presidente Juscelino Kubitschek. Depoimento publicado na Revista Geosul, Revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 12/13, ano vi, 2º semestre de 1991. 9

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Esse congresso termina, mas não acaba, porque após sua realização ficou sendo ministrado um grande curso chamado de “Altos Estudos Geográficos”, organizado pelo Departamento de Geografia da Faculdade Nacional de Filosofia, coordenado por Hilgard Sternberg, onde vão ensinar nomes como Deffontaines, Pierre Mombeig, André Cailleux, Karl Troll, da Alemanha, que deu aulas em espanhol. Eram seis grandes nomes que deram aulas em francês, Pierre Birot etc. (pp. 186-187). Victor Antônio Peluso Júnior:10 6) E a sua participação na União Geográfica Internacional? R – A questão da União Geográfica Internacional apareceu em uma das Assembleias Gerais do Conselho Nacional de Geografia dos anos 50. Tratava-se de determinar a quem caberia a representação, no Brasil, da União Geográfica Internacional, organismo pertencente à UNESCO, responsável pela realização dos Congressos Internacionais de Geografia, e que realizaria, no Rio de Janeiro, o XVIII Congresso. Diversos geógrafos do Conselho Nacional de Geografia pretendiam que a esse órgão deveria ser entregue tal representação, mas outros, tanto do CNG como a ele apoiando-se em regulamento da própria UGI, que recomendava representação não governamental, queriam que fosse criada comissão constituída de geógrafos das diferentes regiões brasileiras. Defendia esta última posição o professor Veríssimo da Costa Pereira, um dos grandes geógrafos brasileiros. À Assembleia Geral do CNG competia dar a decisão. Manifestei-me, desde o início, favorável ao ponto de vista do professor Veríssimo, que acabou prevalecendo. Foi eleita, então, a Comissão Nacional do Brasil da União Geográfica Internacional que elegeu presidente o professor Aroldo Azevedo e, como secretário-executivo, o professor Hilgard O’Reilly Sternberg, e um geógrafo de cada região brasileira. Tendo o professor Aroldo de Azevedo renunciado à presidência, em 1956, pouco antes da realização do Congresso Internacional de Geografia, fui eleito para o cargo, nele permanecendo até 1966. Foi nessa qualidade que participei dos Congressos Internacionais de Geografia do Rio de Janeiro e de Stocolmo (pp. 15-16).

Depoimento publicado na Revista Geosul, Revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 12/13, ano vi, 2º semestre de 1991. 10

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Conclusão A presença marcante dos membros do IBGE na viabilização do congresso sinaliza claramente a importância que este órgão tinha para a geografia brasileira à época. A geografia à época estava inserida num projeto de Estado. Era uma verdadeira empreitada de Estado, uma empreitada voltada para articulação de elos entre a burocracia nacional com a internacional. Não é surpresa, por exemplo, após a realização desae congresso, vários foram os brasileiros que tiveram oportunidade para estudar no exterior! Desenhava-se ali o novo processo que tomaria corpo na segunda metade do século XX, a saber, a ascensão da Geografia nas universidades brasileiras.

Fonte de consulta Consultando os resumos e palestras do congresso: 1) Resumes des communications Union géographique internationale Comitê National du Brésil Rio de Janeiro, 1956. 2) Tome quatrième , travaux des sections IX, X, XI, XII, et XIII.. Comptes rendus du XVIII Congrès international de géographie , Rio de Janeiro, 1956. Comitê National du Brésil, Rio de Janeiro, 1966. 3) Travaux des sections I, II et III Comptes rendus du XVIII Congrès international de géographie , Rio de Janeiro, 1956. Comitê National du Brésil, Rio de Janeiro, 1960. 4) Comptes rendus du XVIII Congrés International de géographie Rio de Janeiro 1956 Depoimentos consultados: 1) Pedro Pichas Geiger em nota autobiográfica publicada na Revista Geosul, revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 17, ano ix, 1º semestre de 1994; pp. 124-150. 2) Pasquale Petrone , depoimento publicado na Revista Geosul, revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 15, ano viii, 1º semestre de 1993; pp. 103-137. 3) Victor Antônio Peluso Júnior, Roberto Lobato Correa, Armen Mamigonian, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, Ignácio de Mourão Rangel, Manuel Correia de Andrade, Milton Santos, João José Bigarella, Orlando Valverde, depoimentos reproduzidos na Revista Geosul, revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 12/13, ano vi, 2º semestre de 1991. 4) Aziz Nacib Ab’Saber , depoimento publicado na Revista Geosul, revista do Depto. de Geociências – CFH, nº 14, ano vii, 2º semestre de 1992; pp. 161- 182.

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Edições de jornais: O Globo (agosto de 1956), na Biblioteca Nacional (RJ). Consulta na internet: Em www.fpa.org.br/reflexao/milton_biografia.htm, em 21/11/03 verifiquei a notícia da realização de um seminário Milton Santos e o Brasil, ocorrido entre 17 a 19 de julho de 2002, no estado brasileiro da Bahia (Salvador). O endereço é da Fundação Perseu Abramo e pelo mesmo foi possível verificar um histórico da geografia nesse estado. Em www.geografia.ufrj.br/graduacao.htm, em 13/10/2003 verifiquei informações sobre o curso de graduação na UFRJ. Há um histórico da geografia nessa instituição. Em www.geografia.ufrj.br/pos_graduação.htm em 13/10/2003, verifiquei informações sobre o curso de graduação na UFRJ. Há um histórico da geografia nessa instituição.

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Conselho Nacional de Geografia1 Embora não seja do meu feitio nesta revista Geo-paisagem, dedico este trabalho a quem decida fazer deste tema uma dissertação de mestrado ou doutorado!

Começando! O Brasil tem uma tradição de conselho. É um país ao qual não faltam conselhos. Atualmente, um dos mais poderosos conselhos é o Conselho Monetário Nacional que tem em sua área de consideração a atuação do Banco Central, assim como interferência na política econômica. Pois bem, houve um tempo em que existia um conselho para a geografia, e esta é a história que nos dispomos a contar. Um conselho que decidia. Leo Waibel, em seu discurso de despedida do Brasil em 17 de agosto de 1950, assim se expressava: Nos quatro anos de minha permanência neste País, encontrei tanta boa vontade, ajuda e apoio por parte de todos, que quero expressar aqui, publicamente, os meus sinceros agradecimentos. Agradeço inicialmente ao Conselho Nacional de Geografia e ao seu secretário-geral, Dr. Cristóvão Leite de Castro, a quem devo o convite para a minha vinda a este Pais, bem como o grande interesse que sempre demonstrou pelo meu trabalho, apoiando-me amplamente. Agradeço também ao Dr. Fábio de Macedo Soares Guimarães, diretor da Divisão de Geografia do Conselho Nacional de Geografia, que apoiou de todas as formas o meu trabalho científico, e com o qual passei muitas horas animadas, discutindo os problemas da Geografia do Brasil, tanto no campo quanto aqui no Rio. Agradeço ainda aos meus assistentes e companheiros nas inúmeras viagens empreendidas. Cito entre eles Orlando Valverde, Nilo Bernardes e Walter Egler. Tantos estes como outros contribuíram decisivamente para o êxito do meutrabalho. Não devo deixar de agradecer aqui a Marcelino Pereira dos Santos, motorista dediOriginalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 11, n. 21, janeiro/junho de 2012. 1

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cado e infalível, que me conduziu na maior parte das minhas excursões.

Versando sobre o que ele teria aprendido no Brasil, ao final de sua palestra ele observava: Felizmente o Brasil possui no Conselho Nacional de Geografia uma instituição, única no mundo, com possibilidade e técnicos para colocar a ciência geográfica a serviço da solução dos grandes problemas da nação. Terminando, formulo o meu desejo de que o Conselho Nacional de Geografia, sob a dinâmica direção do Dr. Cristóvão Leite de Castro, prossiga com êxito a grande obra iniciada há doze anos e leve a efeito grandes realizações para o futuro do Brasil. O Conselho Nacional de Geografia: Vivat, Crescat, Floreat!2  

A passagem lembra o depoimento de Miguel Alves de Lima que nós tivemos oportunidade de colher e que se encontra em http:// www.feth.ggf.br/geografia.htm. Na oportunidade ele chama a atenção para uma fase de ouro da geografia brasileira, assim se expressando: Fundado o Conselho Nacional de Geografia, que com o Conselho Nacional de Estatística e o Serviço Nacional de Recenseamento constituíam então o IBGE, foi seu primeiro dirigente e o engenheiro Christóvam Leite de Castro que havia recebido em seu curso muitos prêmios na antiga Escola Polytécnica do Rio de Janeiro, homem de extraordinária visão que começou o recrutamento de seus quadros iniciais com inteligência e perspicácia. Chamou para orientar o trabalho da especialidade o também brilhante engenheiro Fábio de Macedo Soares Guimarães e o professor Orlando Valverde, este já diplomado na especialidade. Vale aqui apontar o papel dos engenheiros no desenvolvimento da Geografia no Brasil. Talvez por suas vinculações com o conhecimento geológico eles se interessam inicialmente pela Geografia Física, notadamente, a Geomorfologia, mas logo também às geografias Humana e Econômica. Destacaram-se nelas o grande Alberto Ribeiro Lamego (“Ciclo Evolutivo das Lagunas Fluminenses”, “O Homem e a Restinga”), e o notável Fernando Marques d’Almeida, (“A Morfogênese da Serra do Cubatão”). Assim, logo se constituiu a Seção de Estudos Geográficos, núcleo de formação das primeiras gerações de geógrafos formandos dentro do IBGE. In: Capítulos de Geografia tropical e do Brasil. FIBGE: Rio de Janeiro, 1979, segunda edição revista e aumentada, p. 313, 326. 2

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As faculdades formavam os professores de Geografia. O IBGE treinava e formava os geógrafos especializados3. Ele mesmo, Fábio de Macedo Soares Guimarães, juntamente com Christóvam Leite de Castro, começaram a estudar Geografia na antiga Faculdade Nacional de Filosofia. Leite de Castro, por suas intensas outras atividades, não pode continuar esses estudos, concentrando-se no planejamento e execução dos trabalhos que iriam consagrar aquele Conselho. A essas ações, seguiu-se a de procurar o aperfeiçoamento desses quadros, mandando para diferentes universidades dos Estados Unidos e da Europa, inicialmente, os geógrafos que iniciaram suas atividades no IBGE. Foram logo selecionadas as universidades de Wisconsin, Chicago e Syracuse, nos Estados Unidos da América do Norte, para onde seguiram o próprio Fábio Guimarães, Orlando Valverde, José Veríssimo da Costa Pereira, Speridião Faissol, Ney Strauch, Lúcio de Castro, Lindalvo Bezerra dos Santos e outros orientados pelos professores Vernon Finch e Glenn Trewrtho da Unidade de Wisconsin; Clarence Jones da North Western; Preston James de Syracuse. Na França, no Institut de Géographie de Faculte de Lettres da Sorbonne, e Strasbourg, Lyon, Grenoble e Montpelier, tiveram orientação dos professores De Martonne, André Cholley, Jean Tricart, Jean Dresh, Raoul Blanchard, respectivamente, eu mesmo, Héldio X. L. César, Pedro P. Geiger, Elza Keller, Eloísa de Carvalho, Alfred Domingues, Marília Galvão. Em seguida, Antônio Guerra, Carlos Augusto F. Monteiro, e muitos outros técnicos do IBGE foram beneficiados com essa importante formação. Ainda dentro dos quadros do IBGE destacaram os professores Já diferentemente desta situação, tendo o autor destas linhas iniciado sua graduação em Geografia pela UFRJ em 1977, portanto, depois de instalado o programa de pósgraduação em Geografia nessa instituição (veja para mais detalhes www.feth.ggf.br/ geouni.htm), colheu junto à professora Maria do Carmo Correa Galvão a impressão que junto ao IBGE ocorria uma pesquisa de caráter pragmático enquanto naquela universidade, sendo ela uma representação, uma pesquisa mais voltada para a produção do conhecimento. Mas, de qualquer forma, ainda havia uma articulação entre o IBGE e a antiga Universidade do Brasil, a saber, já ao término dessa graduação me foi oferecido um estágio de seis meses no IBGE por ser um dos dois primeiros alunos do curso de graduação. Não aceitei porque logo no início de minha graduação já tinha passado por um estágio na Secretaria Estadual de Planejamento, sob os auspícios da minha professora de Teoria em Geografia, senhora Lysia Bernardes, e a experiência não foi das mais estimulantes (trabalho puramente braçal), como também pesou o fato de em aceitando o estágio ter de parar os cursos de língua, francês e inglês, que então realizava. 3

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Dora do Amarante Romariz, Lysia Maria Bernardes, Nilo Bernardes entre outros. Bastam os nomes dos cientistas e professores citados para que se tenha uma ideia do que foram esses contatos e treinamento de nossos geógrafos com o que houve de melhor na Geografia Mundial.  

Cabe observar que o depoimento de Miguel Alves de Lima, quando proferido, este tinha 88 anos, ou seja, ele nasceu em 1915. Geógrafo, entrou no IBGE em 1939; teve a oportunidade de participar do processo de promoção da geografia brasileira capitaneada pelo IBGE, que estava intimamente articulado a um projeto de Estado. Estudou na França com Francis Ruellan e Jean Tricart. Ficou no IBGE até 1982; esteve em vários países e ocupou vários cargos naquela instituição. Considerando ou­tro texto da mesma revista online utilizada, encontrado em http://www.feth.ggf.br/fibge.htm. Nesse texto já se registra a decadência da geografia, mas antes de irmos ao texto cabe notar que atualmente há um resgate da geografia dentro do próprio FIBGE... Em termos formais, a criação do IBGE foi antecedida pela formação do Instituto Nacional de Estatística em 1934, e respectiva instalação definitiva em maio de 1936 com o nome Conselho Nacional de Estatística no intuito de organizar osdados disponíveis em bases censitárias, assim como coordenar as futuras atividades voltadas para a captação de dados no Brasil.1[2] Outro órgão importante na formação do IBGE foi a criação, em 1937, do Conselho Nacional de Geografia que junto ao conselho anterior geraram aquele instituto. Nesta época, o IBGE encontrava-se diretamente subordinado à presidência da República. Após o término dos trabalhos da Convenção (Nacional de Estatística), foram encaminhadas ao então Ministro das Relações Exteriores e Presidente do IBGE, Macedo Soares, as resoluções da Convenção Nacional de Estatística, onde constava a necessidade de melhor articulação entre os trabalhos de natureza estatística e geográfica. Juntamente com as resoluções, foi entregue ao Ministro carta do Prof. Pierre Deffontaines na qual apelava para a efetivação da adesão do Brasil à UGI. Nos entendimentos que surgiram, o Ministro convocou, com a aprovação do Presidente Vargas, uma comissão das figuras mais reSegundo Eli Alves Penha (1993, pág. 19), a data oficial da criação do IBGE é 29 de maio de 1936, em que foram regulamentadas as atividades do Instituto Nacional de Estatística; com a extinção deste instituto o IBGE foi instituído em 26/01/1938. 1 [2]

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presentativas da cultura geográfica brasileira, no Palácio do Itamaraty, com o estímulo de apresentarem sugestões para a constituição de um organismo nacional de Geografia, destinado a promover a coordenação das atividades geográficas brasileiras. Nestas reuniões, realizadas em fins de outubro e início de novembro de 1936, surgiu a proposta de criação do Conselho Brasileiro de Geografia. Esta proposta foi encaminhada ao Presidente da República que, aceitando-a, baixou o Decreto nº 1.527, de 24/03/1937, criando o referido Conselho como parte estrutural do então Instituto Nacional de Estatística. A exposição de motivos constantes do decreto considerava a necessidade da adesão do Brasil à UGI, em função de sua projeção mundial, reunindo a colaboração da maioria dos países. Mas considerava, sobretudo, as vantagens de caráter nacional da atividade de um Conselho Brasileiro de Geografia articulado com a administração federal, imbuído da missão de coordenação da Geografia do Brasil. Em 1º de julho de 1937, instalou-se formalmente o Conselho Brasileiro de Geografia no Salão de Conferência do Palácio do Itamaraty, inaugurando no mesmo dia os trabalhos da sua Assembléia-Geral, constituída de delegados dosGovernos da União, dos estados, do Distrito Federal e do Território do Acre (Penha, 1993, p. 78). Na interpretação de Eli Alves Penha (1993) o IBGE é fruto de um processo político em favor da centralização, burocratização e racionalização do estado em prol da urbanização e industrialização verificadas, sobretudo, a partir de 1930. Porém, curiosamente, como Penha observa, o IBGE decorreu de um convênio que envolvia municípios, estados e o governo federal, havendo para tanto assembléias com os representantes de cada um destes componentes, ou seja, há simultaneamente na origem da instituição um processo centralizado e outro capilarizado procurando adentrar na rede municipal. Porém, em 13 de fevereiro de 1967, o IBGE seria transformado em Fundação no intuito de obter maior autonomia para suas atividades.

Ainda pelo mesmo texto: No trabalho - IBGE: um retrato histórico - de Jayci de Mattos Madeira Gonçalves (1995, p. 39), consta a seguinte passagem que reproduzimos abaixo: A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Fundação IBGE), instituída pelo Decreto-lei nº 161, de 13.02.1967, em substituição à autarquia IBGE, introduziu profundas modificações

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nas atividades do sistema estatístico nacional e nas de natureza geográfica e cartográfica, vez que passou a coordená-las na condição de órgão central. ... A expansão do planejamento econômco-social, tanto na área governamental, como no setor privado, assim como a crescente demanda de informações estatístico-geográficas, exigiam melhor qualidade e presteza dos levantamentos tradicionais e implantação de novas pesquisas, o que de longa data vinha sendo dificultado por uma série de fatores, alguns deles decorrentes da estrutura organizacional, sem flexibilidade capaz de assegurar o indispensável dinamismo, faltando, ainda, participação mais efetiva dos usuários na elaboração dos programas de trabalho, para melhor adequá-los aos seus interesses. O que chama a atenção nesta passagem é a existência de uma cobrança por eficiência que se esbarrava com a forma de fazer ciência então vigente. Numa elucidativa passagem da obra - Novos estudos de geografia humana brasileira - de Pierre Monbeig, já aqui utilizada no artigo  - Onde está a geografia na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ? - é assinalada a existência de um conflito na época, a saber: Se o mapa, a planta, a topografia e a gravura são os auxiliares indispensáveis desta descrição da vida urbana, isto não quer dizer que, sob o pretexto cômodo de fazer ciência, o estilo deva tomar uma aparência de relatório oficial, administrativo e impessoal. Pois não é conhecer a alma da cidade, depois da de seus bairros, o que se deseja? Na comunicação já citada, Gilberto Freire insistiu muito, e com razão, sobre a ‘qualidade sinfônica’ da paisagem cultural, rural ou urbana. Escreve ele que o ‘o fato deve ser destacado no Brasil, onde um cientificismo exagerado iniste em levantar-se contra aqueles trabalhos de história e geografia ou de sociologia aplicada em que os autores se aventuram em tentativas de interpretação comprensiva ... Afinal o rigor do particularismo objetivista - tão necessário como disciplina e método de análise - pode, pelo excesso, nos levar à inteira desumanização daquelas ciências voltadas para o estudo dos grupos humanos considerados nas suas relações, ou inter-relações, de tempo ou de espaço’. O perigo é exatamente o de ‘desumanizar’, pois ninguém acreditará ter mostrado o homem, quando o apresenta como um rebanho de gado. É tempo de fazer uma injeção de Elysée Reclus na geografia dos sinclinais e das estatísticas, assim como na sociologia que acredita exprimir o real, enquandrando-o em equações. Antes de escrever, o geógrafo deveria por-se em contato com a literatura, no sentido estrito da palavra, que existe sobre a cidade estudada: os arquivos, as estatísticas, os planos dos urbanistas, não ensinam mais que o passeio das moças no domingo à tarde na praça pública da cidade pequena, ou que as cores, os sons, os odores da grande avenida principal da Capital, a multidão dos Período Republicano 223

operários em alvoroço à saída da fábrica e a luz de um belo dia de sol sobre as areias vermelhas e os arranha-céus.Mas que não se despreze, também, ‘o rigor do particularismo objetivista, tão necessário como disciplina e método de análise’. (Monbeig, 1957, pág. 53).

A origem O primeiro número do órgão oficial do Conselho Nacional de Geografia, a saber, a Revista Brasileira de Geografia, à pág. 9, esclarece vários aspectos sobre a origem do conselho. Ao contrário de tudo aquilo que vimos até aqui na Revista Geo-paisagem, quando instituições como o IHGB, Colégio Pedro II ou Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro foram fundadas, no caso do referido Conselho há uma gerência externa direta. Ou seja, se as demais entidades citadas havia uma inspiração estrangeira, no caso do Conselho há um ingerência direta do externo. Refiro-me à ação da União Geográfica Internacional no episódio. Este aspecto é interessante porque não raro muito se acentua a eminência da geografia paulista, via USP, no entanto, ao contrário desta interpretação há uma clara sintonia este os professores estrangeiros que vieram para o Brasil e a União Geográfica Internacional com o beneplácito do governo federal. Ou seja, não é crível que a entrada dos estrangeiros na Universidade de São Paulo fosse tão somente uma consequência de um projeto hegemônico paulista de formação de quadros; no caso da geografia, é fundamental a compreensão da evolução dos fatos à luz da relação entre a União Geográfica Internacional, então presidida por um francês (Albert Demageon, genro de Vidal de La Blache), e sua ascendência sobre os jovens professores franceses de geografia que passam a atuar no Brasil à época (particularmente Pierre Deffontaine e Pierre Monbeig). Há como que uma espécie de sintonia entre a ação dos que vieram para o Brasil , indo para São Paulo ou para o Rio de Janeiro, e a parceria entre a UGI e o governo brasileiro. Pela revista (primeiro número a partir da pág. 9) fica claro este aspecto. Já nas primeiras linhas do primeiro número da Revista Brasileira de Geografia, o então presidente do IBGE da época, assim asseverava: A revista é fruto de uma determinação do CNG, que pela resolução 18 de 12 de julho de 1938 considerou apropriado a criação de uma 224

Aspectos históricos da geografia brasileira

revista que divulgasse a produção que ora ocorria naquela instituição, fundamentalmente uma veiculação de informações sobre o Brasil2.

O CNG, por sua vez, assim agiu tendo em conta o Decreto 1.527 de 24 de março de 1937, que entre outras incumbências também tinha a função de representar o Brasil na União Geográfica Internacional. Cabe assinalar que nesses primórdios o referido Conselho tem nitidamente um papel de governo no âmbito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ao menos no que se refere ao aspecto propriamente técnico de sua atuação. Esta espécie de triangulação entre CNG, UGI e o governo brasileiro perdura até a década de 1960 quando então há uma radical mudança no IBGE, ou seja, na sequência dos números da Revista Brasileira de Geografia, o Conselho simplesmente deixa de ser mencionado. À época, o IBGE sai de uma relação privilegiada dentro do organograma da estrutura brasileira do poder e passa, dada a ação do então ministro do Planejamento,João Paulo Reis Velloso, o IBGE (transformado em FIBGE) passa a ser um espécie de veículo fornecedor de dados para o Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada, cabendo a esta instituição a análise das informações. Parece-me que está aí o grande segredo da geografia crítica no Brasil que ascende na década de 1970 se assenhorando dos corações e mentes dos universitários, e muito particularmente dos programas de pós-graduação ao longo dos anos que se seguiriam dada a perda de valor estratégico da geografia no cômputo da gestão do poder nacional. Afinal, a mudança no IBGE e a configuração de um papel subalterno, perdendo o seu papel passado de propositor de políticas regionais (um exemplo foi a divisão regional, outro foi a discussão da transferência da capital) fez com que a geografia brasileira adotasse novos rumos, e foi o que se deu poucos anos depois, quando então deixamos de ter uma geografia do planejamento (via IBGE) em favor de uma geografia universitária (www.feth.ggf.br/geouni.htm). Esta mudança ocorre justamente na ascensão da geografia crítica que aborta as incipientes tentativas de se configurar uma geografia Nesse mesmo número consta uma reprodução, a partir da p. 7, da referida resolução. O que chama a atenção na sua leitura é a necessidade de se editar, já no primeiro número, a quantidade mínima de 5 mil exemplares! Cinco mil exemplares voltados para toda a sorte de esferas de governo, a começar pela presidência, ministério, tribunais de justiça, entidades profissionais, enfim, é a configuração de uma consciência geográfica em nível de Estado e de uma elite de governo que extrapolava a estrita esfera governamental, pois também visava lideranças culturais e empresariais; além de exemplares em favor da União Geográfica Internacional e União Pan-americana de Geografia. 2

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quantitativa na universidade. (www.feth.ggf.br/geografiacritica.htm). Enfim, concluímos que a ascensão da geografia crítica no Brasil se deu, correlata à formação de um coletivo capitaneado pelo professor Milton Santos, muito por força da perda de densidade da geografia no âmbito da estruturação dos campos de conhecimento a orientar o governo. O papel central que o IPEA passa a tomar para si, que perdura até hoje, sinaliza a ascensão do economista! Em tese de doutorado defendida no programa de pós-graduação da USP há uma interessante entrevista do então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, que assevera: Nós fizemos uma reestruturação do IBGE, isso foi na altura de 64/65 (sic.). Criei um grupo de trabalho, que eu coordenava, eu era presidente do IPEA e fizemos então, a reestruturação do IBGE que foi transformado em fundação, como é hoje, porque em 65, o IBGE não havia apurado o Censo de 1960. Então, para dar ao IBGE condições de funcionar bem, porque é um papel fundamental, houve a transformação em fundação. Passou de autarquia à fundação; e no caso do IPEA que era um simples escritório, tanto que era EPEA: Escritório de Pesquisas Econômicas Aplicadas, com a reforma administrativa de 1967, ele foi transformado em fundação pública que é até hoje, já com uma outra função. A função do IBGE é tomar os dados do IBGE e pensar o país no médio e longo prazo, elaborar os estudos necessários para que possa haver realmente o planejamento... (AMENDOLA, 2011, p. 239).

Assim, mais poderosa que a geografia crítica foi a decisão governamental de transferir a área de abrangência do IBGE submetida aos ditames do IPEA. Isto se deu justamente na época da ditadura militar onde aqueles que se viam na responsabilidade de dar continuidade à escola reinante se encontravam acuados pelo sistema, particularmente os geógrafos Orlando Valverde e Pedro Pinchas Geiger. Ainda, Lysia Maria Cavalcanti Bernardes mesmo não sendo hostilizada pelo sistema, mas ficando cada vez mais dedicada às tratativas administrativas, chegando a trabalhar no IPEA –depois superintendente na gestão do secretário estadual do Rio de Janeiro na área de Planejamento era Ronaldo Costa Couto (1975-1979), vindo depois a ocupar cargo de direção do SERSE –, significou também uma subtração de quadro da geografia. Enfim, a geografia crítica cresceu não tanto por virtude própria, mas porque quando ocorreu já havia um vácuo. O meio universitário na década de 1970, com a expansão dos programas de pós-graduação, proporcionou uma expansão da produção geográfica. 226

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Conclusão Ao contrário do que volta e meia chegamos a ler sobre a excelência da geografia paulista promovida pelos franceses na USP a partir dos anos 30, nós temos, antes disto, uma excelência da geografia brasileira desenvolvida enquanto um projeto de poder, tendo na relação da União Geográfica Internacional e o Conselho Nacional de Geografia a execução de uma nova geografia via o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeto este que perdurou até o final da década de 1960. A partir de então uma nova geografia surge no cenário. Uma geografia universitária, uma geografia da pós-graduação (veja www.feth.ggf.br/geouni.htm). Uma geografia que pouca chance dará para o florescimento da geografia quantitativa. Aliás, a geografia quantitativa no Brasil foi uma das correntes que menos vicejou. Quando surgiu no cenário e alcança alguns adeptos no IBGE já estamos na década de 1960, justamente quando a geografia do IBGE conhece declínio. Ela deixa de gerar diagnóstico (veja www. feth.ggf.br/fibge.htm). Ela, por sua vez, a geografia quantitativa, quando alcança a universidade, já na década 1970, ela logo é atropelada pela geografia crítica (veja www.feth.ggf.br/geografiacrítica.htm).

Fonte de consulta Consulta da Revista Brasileira de Geografia pelo link http://biblioteca.ibge.gov.br/colecao_digital_publicacoes_multiplo.php?link=RBG&titulo=Revista%20Brasileira%20de%20Geografia%20-%20RBG Principais artigos nos primeiros anos da Revista Brasileira de Geografia relacionados ao tema do presente trabalho, destacando a nominata dos artigos encontrados na revista. Do primeiro número em 1939: Histórico da criação do Conselho Nacional de Geografia – secretaria do CNG. Atividades do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – relatório do presidente lida a 1º de julho de 1937 ao se instalarem os trabalhos das Assembleias Gerais do Conselho Nacional. Primeira Assembleia Geral do Conselho Brasileiro (sic.) de Geografia. Do segundo número em 1939 (abril a junho): Segunda Sessão da Assembleia Geral do Conselho Nacional de Geografia. Do terceiro número em 1939 (julho a setembro): Resoluções da segunda sessão da Assembleia Geral do Conselho Nacional de Geografia. Período Republicano 227

Do quarto número em 1939 (outubro a dezembro): Atividades do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conselho Nacional de Geografia. Dos números em 1940 (o de janeiro, primeiro, e o outubro, terceiro): Relatório do Diretório Central do Conselho Nacional de Geografia. Do número em 1941 – primeiro (janeiro a março): Representação do Ministério da Guerra no Diretório Central do Conselho Nacional de Geografia. Boletins de Associações integradas no CNG. Do número em 1941 – terceiro (julho a setembro): Quarta sessão ordinária das assembleias gerais dos Conselhos Nacionais de Geografia e Estatística. Do número em 1941 – quarto (outubro a dezembro): Resoluções do Diretório Central do Conselho Nacional de Geografia. Do número em 1942 – primeiro (janeiro a mar6ço): Resoluções do Diretório Central do Conselho Nacional de Geografia. Do número em 1942 – terceiro (julho a setembro): Quinta sessão ordinária da Assembleia Geral dos Conselhos Nacionais de Geografia e Estatística.

Base legislativa http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-237-2-fevereiro-1938-350962-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto-Lei nº 237, de 2 de fevereiro de 1938 – regula o início dos trabalhos do Recenseamento Geral da República em 1940 e dá outras providências. Consulta em 10 de março de 2012.

Bibliografia AMENDOLA, Monica. “Uma avaliação do ordenamento territorial no processo de planejamento governamental: estudo do Rio de Janeiro”. Tese de doutorado orientada por Ana Maria Marques Camargo Marangoni no programa de pós-graduação em Geografia da Universidade de São Paulo, 2011. EVANGELISTA, Helio de Araujo. A geografia crítica no Brasil. Trabalho publicado na Revista da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias (RJ), setembro de 2000, ano II, nº 2. ______. A geografia na universidade brasileira.Revista Geo-paisagem (online), ano 3, n. 6, 2004. ______. Onde está a geografia na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística? Revista Geo-paisagem (online), ano 4, n. 7, 2005. LIMA, Miguel Alves de. Os anos dourados da Geografia Brasileira: antecedentes, realizações e consequências dos anos 50 e 60. Revista Geo-paisagem (online), ano 2, n. 3, 2003. WEIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: FIBGE, 1979.

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A Geografia na universidade brasileira1 Apresentação Já tivemos a oportunidade de analisar pela Revista Geo-paisagem inúmeros aspectos da geografia brasileira. Os estudos sobre a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e o Serviço Geográfico do Exército assinalam quão importante é a Geografia. Tal importância decorre de sua relação com um dado projeto de poder voltado ao território brasileiro. A partir da segunda metade do século XX a geografia brasileira sofre uma notória mudança. É a partir desse período que a Geografia nas universidades passa a ter maior projeção. Assim, propomo-nos a analisar as universidades, particularmente as públicas, pois são as que desenvolvem programas de pós-graduação em Geografia, instrumentos importantes na disseminação do conhecimento desta disciplina. *** Os primeiros departamentos de Geografia não se caracterizavam pela pesquisa. Eram os núcleos de pesquisa que a promoviam, e cabe observar, no entanto, que em meados da década de 1970 já tínhamos três mestrados no Brasil: o da Universidade de São Paulo (o mais antigo, que também incluía um doutorado) e os das universidades federais do Rio de Janeiro e de Pernambuco2. Hoje, já temos mais de 20 cursos de mestrado fora os de doutorado! *** A princípio, o papel das universidades ocorreu em duas fase, a primeira foi marcada pela presença dos estrangeiros, dos quais destacaríamos Pierre Monbeig, Pierre Deffontaine, Jean Tricart, além de Leo Waibel (cuja ação se concentrou no IBGE); já na segunda fase temos a disseminação dos cursos de pós-graduação em Geografia no Brasil, cuja referência vem a ser a década de 1970. Porém, entre as duas fases temos o XVIII Congresso Internacional de Geografia promovido pela União Geográfica Internacional, no Rio Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 3, n. 6, julho/dezembro de 2004. 2 O mestrado na UFRJ foi criado em 1972, e o da UFPE em 1977. 1

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de Janeiro, em 1956. Nesse congresso temos uma série de encontros pessoais que mostrar-se-ão decisivos para a geografia universitária brasileira. Pois é nele que os jovens professores Aziz Ab’Saber, Milton Almeida de Santos, Bertha Koiffman Becker, Maria do Carmo Correa Galvão e Manuel Correia de Andrade, entre outros, irão estabelecer contatos que serão muito importantes. *** Na intenção de abordar a Geografia na universidade brasileira recorro a um relato de quatro encontros, encontros com pessoas deveras importantes para a geografia brasileira na segunda metade do século XX. Naturalmente, este artigo deve ser visto como uma contribuição a ser somada a outras que procuram conhecer o espectro que a geografia brasileira passou a assumir a partir da maior atuação da universidade em sua produção. Há diferentes formas para trilhar esta investigação. Optei por um caminho bem pessoal, ou seja, escolhi pessoas que desde a minha época de graduação, iniciada em 1977, já tinham notória projeção acadêmica; e que, de uma forma ou outra, aprendi com essas pessoas. Assim, segue abaixo uma reflexão sobre quatro geógrafos(as) que vão aparecendo por ordem dos contatos que travei durante minha vida acadêmica; são eles: Maria do Carmo Corrêa Galvão, Bertha Koiffman Becker, Milton de Almeida Santos e Manuel Correia de Andrade.

Os encontros 1º) Maria do Carmo Corrêa Galvão Ao final da década de 1970 fui seu aluno de graduação na cadeira Geografia do Brasil. Impressionou-me sua competência, o seu modo de tratar de forma integrada e bem ponderada tanto os aspectos físicos quanto humanos. Ao longo do curso fui convidado para ser seu monitor. O dinheiro era pouco, quase simbólico, mas o recibo registrava o vínculo com o Centro de Pesquisa de Geografia do Brasil, que só mais tarde vim a conhecer a importância da história deste centro. Fiquei pouco tempo; havia colegas de minha turma que já trabalhavam com ela, e tinha poucas chances para obter uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Das discussões, o tema privilegiado era a economia agrária. Na épo230

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ca, cheguei a realizar um trabalho de campo no interior do Estado do Rio de Janeiro com sua equipe. A professora Maria do Carmo era muito dinâmica e tinha um profundo conhecimento do estado fluminense. A partir de 1983 voltei a estabelecer um novo contato com ela, pois coordenava o mestrado em Geografia da UFRJ, que eu acabara de ingressar. Não cheguei a ter aula com ela, suas disciplinas eram voltadas para a agricultura, mas ela assistia a nossas aulas de Epistemologia e Geografia. Graças à sua intervenção foi possível evitar uma reprovação na cadeira de Epistemologia: o professor deixava a desejar e a animosidade entre a turma e o professor era crescente! Num outro momento, no doutorado, ingresso em 1995, voltei a ter um breve contato com ela; havia uma dificuldade na orientação e cheguei a consultá-la se poderia orientar um trabalho que desenvolvia sobre a formação territorial do município de Cantagalo no estado do Rio de Janeiro. Ela declinou alegando excesso de trabalho! Mudei o tema da tese e tive a orientação do professor Cláudio Egler; mas voltei a procurá-la para fazer parte da banca; novamente ela declinou! Mas, salvo engano, foi graças a ela que outra pessoa resolveu assumir a participação da banca e assim foi possível defender a tese antes de meu orientador viajar visando o seu pós-doutorado. Ao escolher seu nome para este artigo como uma das representantes da Geografia universitária muito influenciou esta história formada nos corredores. Eu a via, via como trabalhava. Porém, para minha surpresa, ao consultar o acervo disponível na biblioteca do programa de pós-graduação em Geografia da UFRJ, em 5 de abril de 2004, não encontrei um único trabalho em seu nome! Sua obra encontra-se literalmente dispersa. Salvo engano, não há um livro, em português, de sua autoria. Ela tem uma enorme gama de artigos, vários textos em anais, congressos, seminários... Há toda uma produção inédita caracterizada pelos seus relatórios de pesquisa que são praticamente desconhecidos, ao menos para aqueles que não pertencem (ou pertenciam) ao seu grupo de pesquisa. A produção Tendo em conta seu memorial produzido para o concurso de professor titular realizado em 1993, Galvão observa que exerce desde 1951 uma intensa e exclusiva atuação acadêmica na Geografia da UFRJ. Ingressou nesta universidade através do curso de História que, à época, encontrava-se integrado à Geografia. Ao início da carreira de pesquisadora, tinha como projeto dar aula no colégio Sion, no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Tinha Período Republicano 231

em vista uma forte relação com esta escola que remontava ao tempo que veio a ser educada por esta instituição no sul de Minas Gerais. O que chama a atenção na sua formação inicial é a envergadura do seu conhecimento. Não pode ser considerada como uma especialista nisto ou naquilo. Fez estágio na Antropologia, admirou a geomorfologia de Francis Ruellan e muito apreciava os trabalhos de campo por ele promovidos. Com o tempo, porém, viu-se cada vez mais voltada para uma área, não propriamente para um campo de saber específico, mas “especializou-se” em Geografia do Brasil. E sobre o seu país se interessa por tudo: vegetação, gente, economia etc. Dessa época de sua afirmação concorreu o apoio do professor Hilgard O’Reilly Sternberg. Este foi quem a trouxe para a pesquisa em Geografia do Brasil quando condicionou a sua participação no seu grupo de pesquisa desde que deixasse definitivamente o ensino médio no Colégio Sion. Acabou aceitando a condição e ingressou no Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil (CPGB), o primeiro núcleo universitário de pesquisa geográfica no Rio de Janeiro, criado pelo professor Sternberg, que tinha o apoio da Fundação Rockefeller, do Conselho Nacional de Pesquisa e da Reitoria da Universidade do Brasil – mais tarde cognominada Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após sete anos de sua formatura, a professora deu início em 1959 ao seu doutorado na Faculdade de Ciências Modernas e da Natureza, da Universidade Renana Friedrich-Wilhelm em Bonn, Alemanha. Para lá enviada na intenção de desenvolver um curso na área de biogeografia, que, à época, no Brasil, era muito pouco desenvolvida. Tendo o apoio direto do professor Sternberg, na Alemanha, a professora haveria de ter disciplina com aquele que era tido como o biogeógrafo mais destacado, a saber: Carl Troll. Professor que ela veio a conhecer em 1952, num Congresso Internacional de Geografia da União Geográfica Internacional (UGI), em Washington! Contato este certamente retomado em 1956 quando da realização de um novo congresso da UGI no Rio de Janeiro. A professora Maria do Carmo Correa Galvão, embora jovem, já tinha acesso a diferentes professores que marcavam a geografia mundial da época, para isto contou certa facilidade em obter apoio para congressos internacionais3. Além do encontro de 1952, temos a sua presença em 1954 no V Congresso Internacional de Ciência do Solo em Leopoldville (Congo Belga, na África); no III Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasileiros, Lisboa, 1957; no XIX Congresso Interna3

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O que chama a atenção na trajetória acadêmica da professora Maria do Carmo é o fato de ter tido mais de 30 anos de sua vida marcada por dois grandes e fortes marcos institucionais que profundamente marcaram a geografia brasileira a partir de um aparelho universitário, a saber: o próprio Centro de Pesquisa de Geografia do Brasil, que perdurou por vários anos1; e o programa de pós-graduação em Geografia da UFRJ, que a teve como coordenadora por quase 12 anos! A carreira da professora, por sua vez, começou em 1951, quando não tinha terminado a graduação. Naquele ano, foi designada como auxiliar de ensino, embora o trabalho não fosse remunerado. Na época, graças ao prestígio do professor Sternberg, a professora obteve uma remuneração na forma de bolsa junto à Universidade do Brasil (vindo a ser mais tarde UFRJ) e ao CNPq, cujo presidente, almirante Álvaro Alberto, muito valorizava o trabalho do professor Sternberg. Já em junho de 1952 chegou a assinar um contrato ainda como auxiliar de ensino. Em fevereiro de 1953, foi admitida pela universidade como instrutora de ensino superior. Cinco anos depois, por concurso, preencheu uma vaga para professora assistente da universidade. Aprovada no curso, reprovada pela burocracia. Sua nomeação foi revogada após ser divulgada! Retornou assim à condição de instrutora. Em 1965 passou a ser professora assistente por força de um decreto relacionando o enquadramento pessoal da universidade; em 1967, finalmente, foi homologado o seu credenciamento enquanto professora assistente. O que chama a atenção neste episódio acima é o contraste entre o grau de inserção da professora numa dada gama de relações em nível acadêmico (recém-formada foi ao Congresso Internacional de Geografia, em Washington; anos depois vai para Alemanha para fazer curso com o biogeógrafo Carl Troll) e, no entanto, no campo restrito da vida burocrática da universidade a lógica do processamento das carreiras das pessoas ocorria num outro patamar. Parece-me que as “picuinhas” não deviam ser pequenas, como ainda hoje ocorrem nas cional da UGI, Estocolmo, 1960; no XX Congresso Internacional da UGI, Londres, 1964; na Reunião Regional da UGI, México, 1966; no I Seminário sobre Definição de Região, IPGH, Hamilton, Canadá, 1967; no XXI Congresso Internacional da UGI, Nova Delhi, 1968 etc. 1 Como já assinalado, fui monitor ao final da década de 1970 e o recibo da universidade constava o vínculo da verba com este centro! Ainda lembro-me que antes da reforma da biblioteca promovida pelo curso de pós-graduação em Geografia da UFRJ, promovida na gestão do professor Maurício de Abreu, havia uma menção na porta da antiga biblioteca ao CPGB. Como se o acervo da biblioteca fosse do centro! Período Republicano 233

universidades; afinal, quando ela veio a ser enquadrada como professora assistente, ela já poderia ser considerada professora adjunta. O concurso sendo de 1958, o doutorado em 1962 e com mais dez anos de magistério na universidade, o enquadramento mais adequado seria professora adjunta. Porém, isto só veio a ocorrer em 1969 quando finalmente naquele ano foi reconhecido o seu doutorado! Embora tenha trabalhado em diversas equipes não chegou a gerar, propriamente, uma escola. Tendo sido seu aluno e frequentado alguns trabalhos de campo por ela promovidos, entendo que ela deixou um legado, ou seja, suas intervenções sempre versaram em favor da preservação da chamada unidade da geografia. No seu ponto de vista, o geógrafo haveria sempre de articular os aspectos físicos com os humanos. Ele nunca poderia abandonar uma atitude de abertura na compreensão de aspectos físicos e humanos e a respectiva relação entre as partes. Acredito que a principal obra da professora Maria do Carmo foi institucional, ou seja, ela tem uma direta relação com a implantação e expansão do curso de Geografia na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Inicialmente, sua participação ficou concentrada no Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil, em seguida, no programa de pós-graduação em Geografia da UFRJ. É possível observar que ela agiu de forma pensada, ou seja, ela tinha como projeto, projeto de vida aí incluindo, fomentar a geografia entre seus pares. A sua dedicação foi marcada por uma patente abnegação. Toda a sua produção está marcada pela chancela do Estado. Este, na forma da própria Universidade do Brasil, depois UFRJ, ou ainda o Conselho Nacional de Pesquisa, ou outros órgãos (FINEP, CAPES, FAPERJ2), sempre teve decisiva importância na viabilização de sua produção e respectiva equipe3. 2º) Bertha Koiffman Becker Das quatros pessoas escolhidas foi com quem tive maior contato. O primeiro encontro ocorreu durante a disciplina Geografia da América Latina, como aluno de graduação (1979). Na época, chegou Respectivamente Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. 3 Em anexo relaciono a produção da professora Maria do Carmo segundo o seu memorial formulado para um concurso de professor titular da UFRJ realizado em 1993; isto ajuda a compreender que as informações sobre a professora só vão até aquele ano. 2

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a convidar-me a participar de seu grupo, porém, já tinha firmado compromisso com a professora Maria do Carmo Corrêa Galvão enquanto monitor da cadeira Geografia do Brasil. Fui seu aluno/bolsista do CNPq na qualidade de aperfeiçoamento por dois anos (1981-1983). Em seguida, entrei no mestrado e obtive uma bolsa de mestrado, também pelo CNPq (1985). Foi minha orientadora. Na qualidade de bolsista realizei duas memoráveis viagens pela Amazônia (1981). A primeira foi para Aragominas (no estado de Goiás, atual Tocantins) para estudar comunidades agrícolas. Na época, contávamos com a assessoria do antropólogo Luiz Eduardo Soares, quem mais tarde viria a se destacar na área de Segurança Pública(subsecretário de Segurança Estadual do então governo fluminense Anthony Garotinho e depois secretário nacional de Segurança no primeiro ano da presidência de Luís Inácio Lula da Silva). A segunda viagem foi para a rodovia Transamazônica, no trecho do Estado do Pará, no intuito de estudar as agrovilas. Na época, ela insistiu que estudasse comunidades locais, mas acabei estudando movimentos de moradores urbanos. Minha dissertação foi sobre emissário submarino na Barra da Tijuca e ação dos moradores para viabilizá-lo desde que contasse com tratamento sanitário. Afora as situações de ter nessa professora um estímulo para continuar lendo, pesquisando, em termos mais profundos, destaco o seu apreço em aferir o que se afirmava, ou seja, a professora Bertha muito valorizava a capacidade de investigação da pessoa. O negócio de ficar só na teoria teria pouca relevância se não houvesse um correlato esforço de compreender a realidade a partir de trabalhos de campo. Sentia nela certa liberdade de ter minhas concepções. Produção Como já observado, dos professores destacados, a professora Bertha foi com quem mais convivi e, portanto, sinto-me mais à vontade a falar sobre sua produção tendo em conta o que eu “vi”. Há um aspecto que marca profundamente a trajetória da professora que é a inquietação. Sempre aberta, disposta a escutar novas ideias, a tal ponto que isto gerava certa irritação. Irritação porque ela não chegava a “bater o martelo”, ou seja, afirmar, é isto... No máximo, seria: é isto, por enquanto! De qualquer modo era uma convivência muito instigante, provocativa. Quem não tivesse o hábito de pensar não viria a ter atenção da parte dela. Período Republicano 235

Bertha Koiffman Becker identifica o seu perfil enquanto uma geógrafa política ou geopolítica. Sua produção foi fortemente marcada por um viés que chega a considerar as manifestações políticas no e pelo território. Inicialmente marcada pela forte influência do professor Hilgard O’Reily Sternberg, assim como a professora Maria do Carmo Correa Galvão, esteve afeita à discussão sobre a relação complexa e interativa entre os aspectos físicos e sociais do espaço geográfico. Porém, com o tempo, veio a destacar os aspectos políticos do território. Para tanto muito contribuiu o convite para dar aula no Instituto Rio Branco, órgão que formava os futuros diplomatas brasileiros, que aqui ficou no Rio de Janeiro até 1976, quando então foi transferido para Brasília. Outro aspecto que chama a atenção em Bertha é o seu caráter aberto em termos de linha de pensamento. Ela não costuma traçar uma filiação única em torno de uma estrutura de pensamento. É como se de forma consciente ou inconsciente ambicionasse a constituir o seu próprio modo de pensar, a sua própria teoria de espaço. De qualquer modo, o seu caráter eclético em termos de abordagens rendeu não poucas críticas; mas isto não veio a esmorecer no caminho trilhado. Posteriormente, nos ainda recentes acontecimentos envolvendo os antigos países socialistas, que além do sistema político o sistema de pensamento a eles correlato sofreram um rude golpe em termos de legitimidade; Bertha entendeu que sua trilha de abordagem plural se justificava, pois as escolas de pensamento então consagradas estavam em crise. Esta forma heteredoxa de se estudar o espaço geográfico lhe foi muito útil ao analisar uma parte do Brasil que definitivamente marcou a sua produção, a saber: a Amazônia. O seu encontro com esta parte do Brasil; os sucessivos e regulares trabalhos de campo propiciaram uma gama de informações, e a formação de uma equipe de trabalho, que por vários anos marcaram a sua produção acadêmica. No campo administrativo, que quase a atraiu definitivamente, leio em seu memorial (1993, pp. 37-38), a linhas que se seguem quando esteve à frente do Instituto de Geociências na UFRJ: (...) Em 1976, o Diretor do IGEO me convidou para assumir o cargo de Diretora Adjunta para Pós-Graduação e Pesquisa no Institu236

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to, envolvendo os seus quatro Departamentos: Astronomia, Geologia, Geografia e Meteorologia. Foi o início de uma nova frente de atuação na Universidade que quase me levou a fazer carreira na administração. Permaneci por dez anos nesse cargo, e mais, já em 1979 fui eleita pelo Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) como sua representante no Conselho para Graduação e Pesquisa (CEPG) da UFRJ, atestando o dinamismo que imprimi ao IGEO. Estabeleci, então, uma estratégia deliberada para dinamização do IGEO. O passo inicial seria organizar e fortalecer a Pós-Graduação em Geologia, considerado pela UFRJ, CAPES, CNPq como o de maior valor estratégico, e que na ocasião estava totalmente desarticulado. E nesse contexto, fortalecer a Geografia e os demais Departamentos e promover a integração do IGEO como instituto. Os elementos dessa estratégia, plenamente cumprida, foram os seguintes. Primeiro através de contatos na administração superior da UFRJ, e na CAPES e no CNPq em Brasília, obtive carta branca para contratação de Doutores, inclusive do exterior, e vagas nos programas de Geologia e Geografia. Vários professores vieram então compor o quadro da Pós-graduação em Geologia e na Geografia, pude obter a contratação e a colaboração inestimável de Milton Santos e Maurício Abreu. Segundo, recuperando o Programa de Geologia, mediante a integração de professores que se achavam completamente distantes e isolados, e reorganizando o currículo, os setores e os laboratórios de pesquisa. Terceiro, estabelecendo as normas e o regimento da Pós-Graduação no IGEO, com a colaboração essencial de Marcus Aguiar Gorini, além de Josué Alves Barroso e mais tarde Joel Valença. Quarto, iniciando projetos institucionais de pesquisa financiados pela FINEP, tanto para a Geologia como para a Geografia, que já recebera este auxílio, mas para a implantação do Curso, e a partir de então orientando-se para a pesquisa. Finalmente, promovendo seminários internos departamentais para apresentação das pesquisas, bem como publicações referentes a essas atividades: o catálogo de Pós-Graduação do IGEO, com o auxílio da Prof. Maria Helena Lacorte, que teve duas edições, e o Anuário do IGEO que, após uma pausa, persiste até hoje. Os resultados foram extremamente positivos. Ao nível interno, o IGEO passou a existir como uma unidade, na medida em que os professores dos diversos Departamentos passaram a se conhecer e se relacionar e a pesquisa a se desenvolver. Ao nível

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externo, foi recuperada, com elogios, a imagem do IGEO e da UFRJ4.

Já próximo ao término de sua carreira, ela tem a iniciativa em 1988 de dar uma nova configuração à mesma, o que acabou afetando além da sua a de outros colegas do Departamento de Geografia. A criação do Laboratório de Gestão Territorial (LAGET) naquele ano, expressão institucional de sua “verve geopolítica”, agregou a contribuição de vários professores, incluindo Maria do Carmo Correa Galvão e Jorge Xavier; mas não só; teve a participação de outras instituições em diferentes momentos de sua gestação. No caso, houve um convênio com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, origem do LAGET, um intercâmbio com a Área de Política Científica e Tecnológica da Engenharia da UFRJ (COPPE) e um convênio com o Centro de Recherches et Documentation de l’Amerique Latine. Em 1992 foi vencedor do PADCT, um programa de apoio ao desenvolvimento científico promovido pelo governo federal. Assim, o LAGET foi inserido numa rede de relações que visava promover uma leitura do espaço segundo um foco político. 3º) Milton Almeida dos Santos Conheci o professor Milton Santos durante minha graduação, quando este retornou ao Brasil e promoveu cursos de Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro a partir do final da década de 1970. Ele tinha um estilo expansivo, costumava utilizar roupas africanas difíceis de não serem notadas. Era muito requisitado, onde estava se formava uma “rodinha”. Arguto, vivaz, tratava de diferentes temas, mas demonstrava uma viva sensibilidade no trato com as pessoas. Por trás daquele sorriso gestava-se uma revolução, para alguns um rebuliço! No mestrado em Geografia cheguei a ter um curso com ele, e ainda acompanhei algumas de suas palestras e intervenções em bancas de exames, seminários etc. Mais tarde, cheguei a falar com ele sobre uma transferência para São Paulo no intuito de fazer doutorado, no que fui firmemente apoiado. Porém, a conclusão do mestrado na UFRJ demorou mais do que esperado e fui assumindo outros compromissos na área acadêmica. Para os que trabalham no âmbito de um Instituto de Geociências esta passagem encerra uma bonita e necessária lição! 4

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Nossos três últimos encontros foram: 1) em 1995, no encontro da ANPEGE em Aracaju; 2) em 1998, no Encontro Nacional de Geógrafos da AGB na Bahia; 3) o último ocorreu em 1999 quando o próprio deu a aula inaugural do mestrado da Universidade Federal Fluminense diante de um auditório lotado e contando com a presença do reitor da universidade. Havia a intenção, na época, de lhe fornecer um título honoris causa pela UFF. Mas antes, ele faleceu. Ele faleceu no mês de junho de 2001 e até seu fim obtinha notícias esparsas de suas “andanças”. Dispondo de um contrato de trabalho precário na UFRJ, isto o levou a transferir-se para São Paulo ao início da década de 1980. Promoveu, em 1992, o seminário “O novo mapa do mundo”, pela USP, com grande repercussão; em 1995 foi agraciado com o prêmio internacional “Vautrin Lund”, tido como um prêmio Nobel da Geografia. A notícia chegou a ser transmitida pelo Jornal Nacional da rede de televisão Globo. Nesta mesma época descobriu que tinha câncer. Nos seus últimos anos foi acompanhado pela glória acadêmica, preenchida por uma série de títulos honoris causa em diferentes universidades, e o avanço da doença. Sobre sua produção, o avanço do tempo nos possibilita já realizarmos um melhor discernimento entre a pessoa da obra. No caso do Milton Santos, tanto a obra quanto a pessoa são gigantes. Mas a reflexão que importa é: o que de fato vai ficar de sua produção à medida que a memória das pessoas que conviveram diretamente com ele for paulatinamente envelhecendo e ficando esquecida? Formado em Direito, adotou a Geografia por identificação. Baiano, negro, realizou uma vasta obra que aqui pretendemos fazer uma breve análise. Análise em cima não dos artigos ou de seus escritos publicados no exterior, mas de obras individuais que podem ser conhecidas em português. Mesmo assim, a empreitada é difícil, pois não nos foi possível ter acesso a toda bibliografia. O que encontramos está designada na fonte de consulta. Produção Por uma geografia nova – este foi o título de uma obra que, à época (final da década de 1970) ocasionou turbulência na comunidade acadêmica. Era uma época de ascensão da Geografia crítica e de seu principal representante, professor Milton Santos. Mais de 20 anos depois já é possível uma avaliação do período. A indagação é: o que foi gerado nesse período pode significar uma muPeríodo Republicano 239

dança de como o brasileiro concebe seu país? A resposta que nos vem à mente é de que o processo não logrou o sucesso esperado (particularmente histórico/político)! Certamente trouxe repercussões, particularmente na geração de novos geógrafos descomprometidos com o stablishment acadêmico então encontrado (este, a rigor, é que teve que se atualizar para não perder “o bonde da história). Mas, provavelmente, o grande produto dessa geração tenha sido a nova produção dos livros didáticos, que até final da década de 1970 era muito pouco profusa, com poucos autores, e algumas obras pautadas em simples traduções de obras francesas. Outro aspecto que não podemos olvidar é o caráter intrinsicamente militante do “novo geógrafo”! Neste período, a produção acadêmica haveria de ter uma correspondência com uma prática revolucionária, nem que esta ficasse apenas afeita à discussão teórica, pois era tida como expressão no mundo das ideias dos choques políticos que ocorriam na realidade histórica; sendo assim, os dizeres, as palestras, as comunicações, as descobertas, estavam sob a régia interpretação de que poderiam estar a favor ou contra o curso da história que caminharia para uma sociedade igualitária. Foi uma época (e de certo modo, ainda é) onde as contribuições acadêmicas estão pendentes da filiação (ou desfiliação) ideológica que o produtor de conhecimento tenha para ter seu trabalho considerado deste ou daquele modo. Esta ambiência que vigorou na geografia brasileira, e que ainda temos vários sinais de sua presença nos encontros acadêmicos, acabou afetando o nível de profissionalização do geógrafo; qualquer conteúdo mais técnico na área humana, por exemplo, era visto como estar “a serviço do Capital”; e logo criava-se uma reação à iniciativa. Numa primeira impressão da obra do professor Milton Santos verifica-se que a mesma não está só marcada por um projeto acadêmico, mas também por um projeto político. Há obras que claramente destacam este último ponto, tais como:O trabalho do geógrafo no terceiro mundo (1978); Pensando o espaço do homem (1982) e O espaço do cidadão (1993). Há ainda outra linha, eminentemente voltada para os estudos urbanos, a destacar: O espaço dividido (1979); A urbanização desigual (1982); Ensaios sobre a urbanização latino-americana (1982) e Pobreza urbana (1979). Porém, nenhuma das duas linhas ultrapassa a sua preocupação teórico-metodológica. Esta linha conta com as seguintes obras: Técnica, espaço e tempo (1994); Espaço e sociedade (1982); Espaço e método (1985); Metamorfoses do espaço habitado (1988); A natureza do espaço (1997) e Por uma geografia nova (1986). 240

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A rigor, as três linhas perfazem um único grande projeto, a de um intelectual que procurou aliar o pensar interpretativo da realidade com uma ideia propositiva de como esta poderia vir a ser. É uma obra com uma pulsão de um político/geógrafo que pensa. Afora o observado, há uma linha que veio a ser esquecida pelo próprio a partir de 1964, ou seja, há uma produção do Milton Santos que muito bem lembra os antigos mestres franceses e respectivas obras hoje tornadas clássicas, tais como as de Pierre Deffontaine e Pierre Monbeig. Obras como Zona do Cacau (1957) inserida na prestigiosa coleção brasiliana promovida pela Companhia Editora Nacional e O Centro da cidade de Salvador (1959) são retratos de uma produção profícua que veio a tomar novos rumos a partir dos acontecimentos políticos que se abateram no país a partir de 1964. 4º) Manuel Correia de Andrade Das pessoas aqui escolhidas esta foi a que menos tive contato. A rigor tive um único contato, na realização do concurso para professor titular na área de Geografia humana em 1993, promovido pela Universidade Federal Fluminense. Como presidente da comissão responsável pelo concurso estreitava a relação com os membros da banca, por isto, chegamos a almoçar juntos, falamos durante a semana sobre alguns pontos de Geografia e semanas depois recebi uma carta sua sobre seus estudos de geopolítica e particularmente sobre federação brasileira. Na época, encontrava-me muito voltado para a história territorial do Estado do Rio de Janeiro e, pelo sim, pelo não, a correspondência ficou só naquela carta! Em outras oportunidades assisti suas palestras em seminários e encontros e o que chamou-me a atenção foi a sua postura. Passei a estudá-lo e fiz um trabalho sobre sua produção acadêmica para o I Encontro Nacional da História do Pensamento Geográfico, realizado pela Unesp-Rio Claro, em dezembro de 1999; porém, por motivo de doença, não apresentei o trabalho, mas o mesmo foi publicado em seus anais. Segue abaixo uma reprodução desse trabalho tendo em conta a parte que diz respeito ao referido professor5.

A parte que se segue é extraída de “Epistemologia e geografia brasileira: uma leitura das obras de Manuel Correia de Andrade e Ruy Moreira”, artigo publicado nos anais do I Encontro Nacional da História do Pensamento Geográfico, Unesp-Rio Claro. In:Eixos temáticos, Vol. II, pp. 76-83, 1999. 5

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Produção Manuel Correia de Andrade nasceu em Pernambucano em 03/08/1922, na localidade de Nazaré da Mata. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (1941-45), licenciado em História e Geografia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manoel da Nóbrega, da atual Universidade Católica de Pernambuco (1944-47). Doutor em Economia (por concurso de cátedra) da Universidade Federal de Pernambuco. Curso de Altos Estudos Geográficos na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1956) e Curso de Estudos Avançados no Instituto da América Latina da Universidade de Paris (1964- 65). Foi professor do Ginásio Pernambucano de Recife, da Universidade Federal de Pernambuco (dando aulas em cursos de graduação e pós-graduação nos departamentos de Geografia e de Economia, assim como, coordenador dos cursos de mestrado em Geografia e Economia, e participante da criação dos mestrados em Sociologia e Desenvolvimento Urbano), professor visitante da Universidade de São Paulo (1966/67) e pesquisador pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Social. Dirigiu órgãos públicos como o Grupo Executivo da Produção de Alimentos (GEPA), em 1963-64, e do Grupo de Estudos para a Reforma Agrária (GTRA) em 1969, ambos no Estado de Pernambuco, onde participou como conselheiro do Conselho Estadual de Educação (1964). Apresenta uma vasta obra, tendo mais de 50 livros publicados, duas teses de concurso, 15 plaquetas e 132 outras em forma de artigos, ensaios etc., 49 comunicações apresentadas em congressos e reuniões científicas, 35 artigos publicados em jornais, 138 participações em congressos e reuniões científicas nacionais, 27 congressos internacionais, 124 convites e distinções, ministrou 139 cursos de extensão e conferências, orientou 37 dissertações de mestrado6. Quanto às características de sua obra, percebe-se que sua trajetória foi sempre marcada pela autossuperação pessoal. Um intelectual nordestino cuja preocupação não se limita ao Nordeste; um geógrafo que não se limita à Geografia. Sensível às mudanças das Estas referências biográficas foram amealhadas nas obras do autor: Espaço, polarização e desenvolvimento, 4ª edição. São Paulo: Ed. Grijalbo, 1977; Caminhos e descaminhos da Geografia, 2ª edição, São Paulo: Ed. Papirus, 1993; e ainda temos a obra Manuel Correia de Andrade: o geógrafo e o cidadão, organizada por José Lacerda Felipe, e editada em 1995 pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 6

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disciplinas quanto às abordagens e métodos, nunca ficou, porém, refém de nenhuma delas. Crítico costumaz, arguto observador das tendências, soube criticar e apoiar importantes iniciativas no campo da Geografia brasileira. Manuel Correia de Andrade é geógrafo, com uma formação onde os cursos de Geografia e História estavam mesclados. Ele comunga com um modelo histórico-estrutural utilizando Sociologia e Economia, para mostrar que a Geografia é uma ciência social. Ele não compartilha da visão setorialista segundo a qual teríamos uma geografia fatiada, inclusive, ele não adota esta visão positivista para os vários ramos da ciência. Para ele há uma só ciência, que por conveniência e por influência de determinadas correntes de pensamento, a ciência se viu levada a romper com uma visão integradora, como era própria dos grandes sábios do passado em favor de campos específicos de questionamento. Um aspecto que chama a nossa atenção em seu pensamento vem a ser o relevo que a relação sociedade-natureza tem para os seus estudos. Ele entende que há uma contínua transformação do que ele chama espaço primitivo em favor do espaço geográfico. O primeiro corresponderia à ausência de qualquer ação antrópica, enquanto o segundo conteria a real dimensão para o geógrafo tendo em vista que a natureza estaria humanizada, ou seja, a sua compreensão passaria pela pesquisa sobre as relações sociais, e ainda, como estas mesmas relações sociais são forjadas e/ou condicionadas pelo próprio âmbito natural, gerando assim um quadro complexo e interativo entre estas duas dimensões da realidade. Outro aspecto que chama a atenção em seu trabalho vem a ser a valorização da observação. Não são poucas as passagens em que o autor destaca a forte dependência do geógrafo quanto aos frutos advindos dos trabalhos de campo. Ele mostra-se relativamente cético em relação a uma Geografia que não procura inferir suas conclusões e estudos a partir dos trabalhos de campo. No âmbito da geografia brasileira, Manuel Correia de Andrade não deixa de apresentar, de um lado, um acordo com os aspectos benéficos trazidos pela Geografia Radical, particularmente por ter introduzido a dimensão político e crítica para o discurso do geógrafo, mas, por outro lado, ele não deixa de tecer severas reservas quanto à maneira que a mesma vem priorizando certos enfoques e negligenciando outros. Ele, em suas preleções, em diferentes partes do Brasil, costumeiramente trata dos pseudomarxistas, ou os marxistas virgens, que nunca leram, Período Republicano 243

ou mal leram as obras de Marx. E a partir dessas críticas, ele enfatiza, sobretudo, a importância da natureza num estudo geográfico. Em termos de posicionamento político, Manuel Correia de Andrade mantém uma têmpera marcada pelos dramas de sua região de origem. O Nordeste brasileiro, a sua dura realidade, emulou no próprio um engajamento, não raro corajoso, em favor de medidas que diminuíssem as dificuldades da população mais pobre. Porém, aí entra uma das ambiguidades de sua trajetória: Manuel Correia de Andrade era um homem do Estado, sua carreira acadêmico-profissional se deu sob os auspícios do apoio público às suas pesquisas. O livro Espaço, polarização e desenvolvimento, por exemplo, é um trabalho eminentemente voltado para a instrumentalização de um método de desenvolvimento, o desenvolvimento regional, que capacite quadros técnicos em sua ação na região nordestina; ao contrário, por exemplo, da obra Geografia econômica7que apresenta uma clara matriz marxista na leitura que ele realiza. Assim, temos neste intelectual nuances crivadas em sua trajetória devido a inserções profissionais de diferentes espécies, o que ajuda a explicar, em parte, a sua profícua produção. Outro aspecto que ajuda a compreender senão as características de sua obra, mas pelo menos, o seu volume, vem a ser o fato de Manuel Correia de Andrade ser um bibliófilo. Sendo famosa a sua coleção de livros, esta o auxilia na confecção de cada novo livro abordando diferentes assuntos. Além disto, chama a atenção o fato de suas obras terem sido editadas por diferentes editoras, o que decorre não só da própria profusão criativa do autor, mas também de sua sensível articulação com diferentes editoras. Quando se sabe como é difícil editar um livro no Brasil na área de Geografia, que não seja eminentemente voltado para o ensino, a obra deste autor sinaliza uma habilidade em acessar diferentes empresas8.

Geografia econômica, 10ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 1989. Esta parte do trabalho veio a ser apoiada nos seguintes trabalhos: Caminhos e descaminhos da geografia (op. cit.); Elissé Reclus tendo o próprio como organizador dos textos publicados pelo geógrafo francês, São Paulo: Ed. Ática, 1985; Tendências atuais da geografia brasileira. Recife: Ed. Asa Pernambuco, 1986;Espaço, polarização e desenvolvimento(op. cit.); Manuel Correia de Andrade: o geógrafo e o cidadão(op. cit.); Uma geografia para o século XXI, Campinas (SP): Ed. Papirus, 1994; Geografia, ciência da sociedade: uma introdução à análise do pensamento geográfico, São Paulo: Ed. Atlas, 1987; e a sua obra clássica A terra e o homem no nordeste, 5ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 1986. 7 8

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Conclusão Ao termos a trajetória dos professores acima temos uma noção de como uma dada produção de Geografia no Brasil está desaparecendo. Das quatros pessoas mencionadas, uma já é falecida (Milton Santos), o professor Manuel encontra-se com mais de 80 anos, e as duas professoras, professoras eméritas da UFRJ, diminuíram sensivelmente suas atividades. Assim, a primeira geração de professores brasileiros formada por estrangeiros está finalizando suas atividades. A geografia brasileira encontra-se em nossas mãos. Do que dela fizermos, depende seu futuro. Bibliografia Maria do Carmo Corrêa Galvão GALVÃO, Maria do Carmo Corrêa. Aspectos da Geografia Agrária do Sertão Carioca. CPGB/UFRJ, 1962. ______. Das Ruwergebiet – Landschafswandel und Sozialstruktur. Instituto de Geografia da Universidade de Bonn, 1962. Tese de doutorado. ______. O Rio de Janeiro e a Zona Rural Circunvizinha. AGB, UFRJ, 1965. ______. Características da geografia dos Transportes no Brasil. Publicado pelo IPGH na Revista Geográfica, nº 65, 1966. ______. Características Gerais da Geoeconomia e Geopolítica Nacional. Fórum de Ciência e Cultura/UFRJ, 1971. ______. Limitações e potencialidades agrícolas dos solos tropicais, à luz de uma reflexão geográfica, publicado em volume de Simpósio e Mesas Redondas da Conferência Regional da UGI, Rio de Janeiro, 1982. ______. Limitações e potencialidades agrícolas dos solos tropicais, à luz de uma reflexão geográfica, publicado em volume de Simpósio e Mesas Redondas da Conferência Regional da UGI, Rio de Janeiro, 1982. ______. Concerning agrarian space and its articulation with the urban-industrial economy. Capítulo do livro preparado pela Comissão Nacional da UGI do Brasil, para o Congresso Internacional de Paris, 1984. ______. Rio de Janeiro: Contradições e ajustes de um espaço desigual.Revista Rio de Janeiro, 1986. ______. Questões e desafios para a investigação em Geografia Agrária. Revista Geosul, 1989. ______. Breve Histórico da Ocupação Territorial Fluminense 1890/1990. SEAF: Rio de Janeiro.(s/d) ______. Contribuição ao Debate Metodológico em Geografia Agrária. IGEO/ UFRJ, 1991. ______. A mineração da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. IGEO/UFRJ, 1992. GALVÃO, Maria do Carmo Corrêa – Memorial que acompanha o requerimento de inscrição em concurso para provimento de cargo de professor titular no departamento de geografia da UFRJ, 1993. Período Republicano 245

Bertha Koiffman Becker BECKER, Bertha K. “Crescimento econômico e estrutura espacial do Brasil”. In:Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro: IBGE, 1972. ______. “A Amazônia na estrutra espacial do Brasil”. In:Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro: IBGE, 1974. ______. Geopolítica da Amazônia. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1982. ______. “O uso político do Território: questões a partir de uma visão do Terceiro Mundo”. In:Abordagens políticas do Território. Becker et alli (orgs.). UFRJ: Departamento de Geografia, 1983. ______. “A crise do estado e a região – a estratégia da descentralização em questão”. In:Ordenação do território: uma questão política? Exemplos da América Latina. Becker (org.). UFRJ: Departamento de Geografia, 1983. ______. “A geografia e o resgate da geopolítica”. In:Revista Brasileira de Geografia. IBGE: Rio de Janeiro, 1988. BECKER, Bertha K. & EGLER, Cláudio. Brasil – uma potência regional na economiamundo. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1993. BECKER, Bertha K. “A geopolítica na virada do milênio: logística e desenvolvimento sustentável”. In: CASTRO, Iná et alli (orgs.). Geografia: conceitos e temas, Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1995, pp. 271-307. Milton de Almeida Santos SANTOS, Milton. Zona do cacau, 2ª edição. Coleção Brasiliana, vol. 296, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. ______. O centro da cidade do Salvador. Bahia: publicações da Universidade da Bahia, 1959. ______. O trabalho do geógrafo no terceiro mundo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1978. ______. Pobreza urbana, 2ª edição. São Paulo: Ed. Hucitec, 1979. ______. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Tradução: Myrna T. Rego Viana. Rio de Janeiro: F. Alves, 1979. ______. A urbanização desigual, 2ª edição. Petrópolis: Ed. Vozes, 1982. ______. Ensaios sobre a urbanização latino-americana. São Paulo: Ed. Hucitec, 1982. ______. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Ed. Hucitec, 1982. ______. Espaço e sociedade. Petrópolis: Ed. Vozes, 1982. ______. Espaço e método. São Paulo: Ed. Nobel, 1985. ______. Por uma geografia nova, 3ª edição. São Paulo: Ed. Hucitec, 1986. ______. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Ed. Hucitec, 1988. ______. O espaço do cidadão, 2ª edição. São Paulo: Ed. Nobel, 1993. ______. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994. ______. A natureza do espaço, 2ª edição. São Paulo: Ed. Hucitec, 1997. Manuel Correia de Andrade ANDRADE, Manuel Correia de.A terra e o homem no nordeste, 3ª edição. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973. ______. Geografia econômica do Nordeste, 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 1974. ______. Espaço, polarização e desenvolvimento, 4ª edição. São Paulo: Ed. Grijalbo, 1977. ANDRADE, Manuel Correia de (org.) – Elissé Reclus. São Paulo: Ed. Ática, 1985.

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ANDRADE, Manuel Correia de. Tendências atuais da geografia brasileira. Recife: Ed. Asa, Pernambuco, 1986. ______. Geografia, ciência da sociedade: uma introdução à análise do pensamento geográfico. São Paulo: Ed. Atlas, 1987. ______. O nordeste e a questão regional. São Paulo: Ed. Ática, 1988. ______. Geopolítica do Brasil. São Paulo: Ed. Ática, 1989. ______. Geografia econômica, 10ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 1989. ANDRADE, Manuel Correia de. - Caminhos e descaminhos da geografia, 2ª edição. São Paulo: Ed. Papirus, 1993. ANDRADE, Manuel Correia de. Uma geografia para o século XXI. Campinas (SP): Ed. Papirus, 1994. ANDRADE, Manuel Correia de.Manuel Correia de Andrade: o geógrafo e o cidadão. Organizada por José Lacerda Felipe e editada em 1995 pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ANDRADE, Manuel Correia de.As raízes do separatismo no Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1997.

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Trabalho de campo1 Apresentação A maneira de se entender a geografia brasileira a partir da década de 1980, seu passado recente, veio a ser fortemente influenciada pelo texto A geografia no Brasil (1934-1977), de autoria de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro. Nela consta uma nítida valorização da geografia que então surge na Universidade de São Paulo e uma clara depreciação do que se fazia no Instituto Brasileiro de Geografia sob os auspícios do Conselho Nacional de Geografia. Já pudemos apresentar uma versão diferente no que tange ao papel do Conselho Nacional de Geografia (Evangelista, 2012), mas no momento pretendemos tratar de um tema não abordado pelo referido autor com a devida atenção que versa sobre o capítulo memorável que a questão do trabalho de campo ocupa em nossa formação. É uma prática decisiva em nossa formação, mas tão pouco lembrada nas discussões sobre geografia. É como se o trabalho de campo fosse algo tão natural, dado que ao tempo da evolução da geografia crítica a prática será considerada como atinente a uma geografia tradicional, merecedora, portanto, de esquecimento. Para o geógrafo crítico, que muito nos moldou o olhar a partir de 1980, o trabalho de campo é algo inadequado para quem há de se esforçar em analisar as estruturas sociais, os movimentos gerais do capitalismo, e quem busca lograr uma nova sociedade.

O início do trabalho A ideia da realização deste trabalho ocorreu tendo por base uma conversa de corredor universitário. Não raro, locus onde se dão as grandes ideias (especialmente quando há um cafezinho de permeio). Minha formação em Geografia pela UFRJ ocorreu33 anos atrás! Assim, tendo em conta o tema e minha trajetória, o que aqui fica registrado é muito mais um processo de memória do que uma busca em acervo já cadastrado. É um trabalho que fica baseado na memória das pessoas, que raramente se registra. Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 11, n. 22, julho/dezembro de 2012. 1

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Não me falha memória, são raros quaisquer textos que versem sobre Trabalho de Campo tendo em conta ser uma prática muito disseminada na geografia. É um tema curioso porque dificilmente a formação de um geógrafo, ao menos no Brasil (até por força do tamanho do território que sempre nos convida a conhecê-lo em lócus) se realiza sem ter em conta trabalho de campo; porém, contraditoriamente, é objeto de pouca reflexão. A rigor, é tema de que se ocupam alguns setores da geografia brasileira, por exemplo, geografia física, geografia agrária. Mas, de certo modo, a sua valorização foi muito afetada com a ascensão da geografia crítica que se opunha frontalmente à cultura do trabalho de campo, tendo em conta que o fundamental era a caracterização dos processos estruturais e não o de ficarmos afeitos a particularidades locais. Assim, seria possível conceber uma discussão sobre escolas ou escola que orienta e sta prática na formação do geógrafo brasileiro?

Minhas memórias Minha graduação em Geografia foi iniciada em 1977 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Terminei a graduação em bacharel no ano de 1980 e com mais dois anos, em 1982, obtive o diploma de licenciado em Geografia. Em 1983 dei início ao mestrado que só veio a ser concluído em 1989. Enfim, 12 anos de vínculo institucional com a universidade. De meu período na graduação não houve um único semestre em que não realizasse trabalho de campo. Os temas abordados foram vários. A primeira professora a valorizar esta dinâmica, logo no nosso primeiro semestre de graduação em Geografia pela UFRJ, foi a professora Lysia Bernardes, que então dava aula sobre Teoria em Geografia. Lysia Maria Cavalcanti Bernardes foi professora famosa ao seu tempo, tendo inclusive dado seu nome para uma pequena rua em Copacabana. Ela deu o curso Teorias da Geografia em função do acaso, já que não voltaria mais a dar aula na UFRJ em função da elevada carga de trabalho que tinha na esfera governamental. É da chamada geração de ouro do IBGE, contemporânea de Orlando Valverde e Pedro Pinchas Geiger, por exemplo. Foi com ela, 30 anos depois de seu curso em 1977, ao reler as notações de suas aulas, que percebi quanta bobagem se falava e se fala da chamada geografia tradicional, assim como da geografia quantitativa. Foi um encontro muito útil porque naquele período de minha graduação (1977-1980) tomava forma a chamada Período Republicano 249

geografia crítica. Assim, me foi possível perceber tanto a geografia tradicional quanto a geografia quantitativa sem as rigorosas críticas da geografia crítica. Esta descoberta, inclusive, tomou a forma de textos (confira http://www.feth.ggf.br/geoquant.htm e http://www.feth. ggf.br/geotrad.htm)2. Lembro ainda, numa de suas aulas, que ela atribuía que metade do que ela conhecia do Estado do Rio de Janeiro decorreu de suas constantes idas ao interior do Estado do Rio de Janeiro3. Outra pessoa importante foi Maria do Carmo Correa Galvão, aqui apresentada não segundo uma ordem hierárquica (do mais para o menos), mas segundo uma ordem cronológica. Encontrava-me no meu terceiro ano de faculdade. O encontro se deu na disciplina Geografia do Brasil, oferecida já no meio do curso de graduação (1979). Para ela não havia conflito entre geografia física e humana; sempre assinalava as duas partes em suas aulas. Mais tarde, já participando de sua equipe, cheguei a ser seu monitor, presenciava debates regulares envolvendo metodologia de trabalho e como o físico se integra ao humano. Com esta monitoria, exercia a segunda experiência de estágio, já que a primeira se deu sob os auspícios da professora Lysia Bernardes quando então tive um período de trabalho na Secretaria Estadual de Planejamento do Rio de Janeiro. A professora Maria do Carmo me ensinou a ler; ela tinha um sistema interessante que era de numerar os textos e após a numeração ela fracionava os números. Assim, cada número inteiro significava uma tese, ou ideia do autor, e o número fracionado correspondia a um detalhamento do assunto. Há um texto (www.feth.ggf.br/geouni.htm) no qual realizo um levantamento sobre sua produção. Das pessoas escolhidas para o texto foi a que mais dificuldade me trouxe para ter material, não porque não Julgo que a geografia brasileira muito perdeu ao não saber tratar, sem supor a destruição, abordagens distintas (geografia quantitativa que crescia no IBGE praticamente inexistiu na universidade, por exemplo). O contraste apura a inteligência. 3 Por força do trabalho que desenvolvia à época, ela ocupava a Superintendência do Planejamento da Secretaria Estadual do Rio de Janeiro, não chegou a realizar trabalho de campo com a turma. Mas como cheguei a realizar estagiário nesta Superintendência dado seu convite, por duas vezes participei de trabalhos de campos em dois diferentes municípios do Estado do Rio de Janeiro. Era algo que ela sempre valorizava em seu trabalho. 2

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houvesse, mas porque tudo estava muito disperso. Ela nunca escreveu um livro tentando reunir seu material. Mais tarde a professora Gisela Pires (da Geografia/UFRJ) e colega chegou a fazer isto (parcialmente). A professora Maria do Carmo apresenta uma produção que remonta à década de 1950. Por fim, durante dez anos fui orientando da professora Bertha Koiffman Becker! No grupo da professora Maria do Carmo não me era possível vir a ter uma bolsa pelo CNPq, pois já havia pessoas na frente. Assim, já ao final da minha graduação passei a trabalhar com a professora Bertha. De início obtive bolsa de aperfeiçoamento, modalidade que não existe mais, que veio a ser renovada no ano seguinte; ao terceiro ano veio o mestrado e nova bolsa. Mas o mestrado iniciado em 1983 só foi finalizado em 1989. Diria que o grande momento da orientação correu quando por duas vezes foi possível ir à Amazônia. A primeira ocorreu em nome de uma pesquisa que a Organização das Nações Unidas promovia em diferentes países sobre a situação agrária e a profesora Bertha veio a ser indicada como coordenadora no caso do Brasil. Como havia necessidade de trabalho de campo, nós o realizamos em agosto de 1981. À época quem atuava como consultor era o antropólogo Luiz Eduardo Soares (este que escreveu o livro em coautoria,Tropa de Elite). Essa viagem de agosto coincidiu com um momento político brasileiro particularmente grave porque tinha ocorrido em maio o atentado do Riocentro, e em agosto o então chefe da Casa Civil, general Golbery Couto e Silva, tinha decidido pela saída do governo já que as investigações sobre o caso eram proteladas. Assim, tomamos o ônibus Belém-Brasil com a missão de encontrar um povoado de nome Aragominas ao norte de Goiás4. Pela primeira vez percorria a Belém-Brasília. Anos antes, antes de entrar na universidade, já tinha realizado uma grande viagem indo do Rio de Janeiro em direção ao Ceará pela BR-116. A diferença desta para a anterior era que, para o Ceará, ia enquanto turista, já para a região Norte brasileira adquiria um outro olhar. A noção de tamanho, diversidade, tempos diferentes de desenvolvimento no Brasil foi algo revelador. Em termos de operação do trabalho de campo com a professora Bertha Becker, esta privilegiava entrevistas exaustivas. Ela era muito atenta ao detalhe. Usava muita informação do IBGE, sistematizava constantemente os dados, e esta seria a parte digamos estrutural da informação; a conjuntural, aquela afeita a uma dimensão mais intuitiva, esta ficava por conta do trabalho de campo. Sempre muito curiosa, sempre indagava o que tinha visto, achado, é como se fossemos sensores na captura de informações que geralmente fogem ao largo dos números. 4

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Bom, ao longo da viagem, sempre que podíamos, procurávamos ler algo, escutar algo, ver algo na tv... porém, já 500km distante do Rio de Janeiro não existia mais nada! Nem jornal, nem tv, nem rádio... Um outro Brasil passava a conhecer. Algo que artigos e livros ou aulas não me proporcionariam a inteireza da experiência que foi este encontro com um Brasil imenso, um povo fantástico que do nada faz milagre! Lembro, por exemplo, numa das duas viagens para a Amazônia, de uma cadeira de dentista na qual a peça de obturação que chegava à boca era alimentada pela pedalada que o então prático dava para alimentar a rotação! A presença do Exército, a febre do ouro... a sucuri, tudo gigante, imenso, largo! Na segunda viagem, já com a equipe da professora Bertha, acabou sobrando algum dinheiro e foi cedido para membros da equipe. Então decidi pegar um avião do sul do Pará em direção à cidade de Belém para então pegar o ônibus de Belém para o Rio de Janeiro. Bom, o avião era do tempo da Segunda Guerra e tinha sido cedido pelo governo americano. Foi uma sensação ímpar: o avião com grande dificuldade levantou vôo. Partindo do sul do Pará em direção a Belém com altitude menor que 1.000m de altitude. Via-se tudo! Enfim, este choque com este país tão nu, cru, e tão imenso foi decisivo ao modo como procuro conhecer este país. Não raro sobre ele se dá muito importância a conceito, mas não metem o pé na estrada. Aí, não dá! No mais, vários outros trabalhos de campo foram realizados pela UFRJ, mas os trabalhos realizados não passavam de um dia para o outro, ou seja, começavam e terminavam no mesmo dia. Depois desse período mais acadêmico passei por quase três anos numa empresa de consultoria (1983-1986) desenvolvendo projeto de impacto de represa hidrelétrica. Nela houve a valorização do trabalho de campo. O projeto era para Furnas Centrais Elétricas, e passamos mais de 20 dias divididos em duas fases tratando do tema. Eram observações muito precisas, voltadas para uma questão muito concreta relacionada ao impacto de uma represa na comunidade humana e sistema fitobotânico1. Cabe observar que nesse primeiro trabalho, tendo Furnas Centrais Elétricas como cliente, houve consultoria da geógrafa Lysia Maria Cavalcanti Bernardes que, desde a primeira hora, incentivou o trabalho de campo. Inclusive, seu marido, Nilo Bernardes, por sugestão dela, chegou a fazer um sobrevoo de helicóptero justamente para analisar a organização regional da área em estudo, no caso, norte da região serrana fluminense. 1

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Ainda pela mesma empresa (Monasa Consultoria, Projetos Ltda.), foi feito um trabalho para a concessionária de energia Eletronorte, que então construía a Usina Hidrelétrica de Balbina! Lá estivemos por quase uma semana, sendo dois dias na própria planta da usina.

O Departamento de Geografia na Universidade Federal Fluminense Trabalho há 20 anos neste departamento. Recém-ingresso, à época, não era comum a realização de trabalho de campo. Um professor que muito valorizou este tema, e reaprendi com ele o valor desta dinâmica, foi o professor José Grabois, que esteve durante um período no departamento. Inclusive com ele, tendo em conta o que já tinha visto em entrevista com Orlando Valverde e nas aulas da professora Lysia Bernardes na graduação, é que percebi a existência de uma espécie de metodologia de trabalho de campo que retomava aos gloriosos tempos do IBGE, muito provavelmente ao tempo de Leo Waibel. Assim, em 1994 passei a realizar trabalho de campo com meu grupo de estudos, tendo visitado três vezes o interior fluminense até o início do doutorado na UFRJ em 1995. Mais tarde, tendo concluído o doutorado em março de 1998, retomei os trabalhos de campo com turma. Chegando a conhecer a Refinaria Duque de Caxias, a fábrica de automóveis em Porto Real (RJ) e o porto de Sepetiba. Porém, em 1999 passei por um forte tratamento contra um câncer e praticamente nunca mais realizei trabalho de campo (a resistência do corpo nunca mais foi a mesma). Mas, justamente nesse período é que toma forma uma cultura de trabalho de campo no departamento, muito positiva. E na minha ótica isto se deve em muito ao procedimento, diria heróico, do professor Carlos Alberto Franco da Silva em passar cerca de duas semanas com uma turma repleta de alunos a cada ano em pleno Mato Grosso! Isto virou uma marca no departamento. Não se tratava mais de ir ali... o processo, o projeto, a ambição ficou maior! Era sim conhecer o Brasil, não via grupo de estudo, mas como prática na própria graduação. Foi uma revolução! Hoje, 2012, isto virou um fator corrente no departamento, vários outros professores colocam turmas e turmas para trilhar o Brasil. Destaco este aspecto porque constitui uma cultura regular de pé na estrada com turma de graduação a cada ano. Para efeito de referência, Período Republicano 253

abaixo segue a programação dos trabalhos de campo para o primeiro semestre de 2012. Disciplina

Local

Período

Espaço e demografia

Paraná

uma semana em maio

Geografia da população

São Paulo

três dias em maio

Natureza e sua dinâmica no Brasil

Curitiba-Morretes

uma semana em abril

Geografia urbana

São Paulo

três dias em junho

Organização do espaço centro-sul brasileiro

Cuiabá - MT

oito dias em maio

Pedologia – eng. recursos hidrícos

Paty de Alferes (RJ)

dois dias em maio

Pedologia aplicada

Paty de Alferes (RJ)

dois dias em abril

Geografia agrária

Brasília

uma semana em abril

Geografia agrária

Cuiabá – MT

uma semana em maio

Ecologia Geral

Santo Aleixo

um dia em junho

Ecologia Geral (eng.)

Santo Aleixo

um dia em junho

Climatologia

Iguaba

um dia em junho

Geomorfologia geral

Santa Maria Madalena, Farol São Tomé

três dias em junho

Pedologia

Vassouras

dois dias em março

Edafologia – eng. agrícola

Maricá, Saquarema

uma dia em maio

Tópicos especiais em geografia regional

Recife , Garanhuns

oito dias em maio

 

Haveria escola em trabalho de campo? O presente texto segue uma linha investigativa sobre o tema. Assim, de início verificou-se que há poucos textos sobre o tema. O recurso básico, portanto, foi o de recorrer à própria trajetória pessoal que envolve uma experiência iniciada há 35 anos. Quando cursava a graduação em Geografia, lá pelo ano de 1977, durante aulas da professora Lysia Bernardes, esta enfatizando a importância da observação para o geógrafo, deu algumas dicas de como realizá-lo, embora nunca tenhamos tido trabalho de campo com ela já que, na época, ela era Superintendente da Secretaria Estadual de Planejamento do Estado do Rio de Janeiro, e tinha por isto uma agenda lotada. 254

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A dica consistia em reproduzir um mapa da área que visitaria e ao longo do curso dos trabalhos plotaria diferentes cores representando diferentes atividades (residencial, comercial, igreja, escola etc.) para então tentar ao final do dia extrair uma espécie de caracterização maior do local visitado. Mais tarde, com o ingresso do professor José Grabois no Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, tive oportunidade de realizar trabalhos de campos com ele. Sua metodologia lembrava a apresentada por Lysia Bernardes, novamente as tais das cores reaparecem. Na realização deste texto dei-me conta de uma entrevista com o professor Orlando Valverde (1994) na qual destacava existir uma escola de geografia agrária no Brasil iniciada por Leo Waibel, uma escola da qual ele, Orlando, fazia parte e incluía cerca de dez pessoas dentre as quais encontrava-se José Grabois. Ou seja, Valverde muito aprendeu com Waibel a realização de trabalho de campo e teria repassado tal conhecimento para outras pessoas. Ora, mesmo que a professora Lysia não tenha participado deste grupo, até por diferenças políticas entre Lysia e Orlando, é possível imaginar que a passagem de Leo Waibel no IBGE configurou certa modalidade de trabalho de campo no âmbito da instituição, ou seja, Leo Waibel via Conselho Nacional de Geografia (vide www.feth.ggf. br/conselho.htm) e deste para o corpo técnico da instituição, institucionalizou uma prática que até então não estava sedimentada. Com José Grabois, por exemplo, havia uma metodologia rigorosa. Havia as entrevistas que tinham classificações segundo temas diferentemente coloridos, e havia a preocupação com a plotagem da informação num mapa e desenho. Era algo estafante porque após a realização do trabalho de campo e jantar, o que se seguia era uma reunião de grupo para constituir um relatório, ou seja, ao término do trabalho de campo já saía o relatório. Sobre Waibel: Com uma metodologia diferenciada, a escola alemã representada por Léo Waibel apresenta um esquema metodológico para a geografia rural dividido em três grandes eixos: estatístico, ecológico e fisionômico. Todavia, sua base técnica advém dos trabalhos de campo, do método indutivo-empírico, aliada a inserção de dados estatísticos para corroborar o trabalho de campo (FERREIRA & ALVES, 2009, p.4).

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Quando temos acesso ao texto “O que eu aprendi no Brasil”2, de Leo Waibel, encontramos alguns trechos quevalem a pena ser reproduzidos: Agradeço ainda aos meus assistentes e companheiros nas inúmeras viagens empreendidas. Cito entre eles Orlando Valverde, Nilo Bernardes e Walter Egler. Tanto estes como outros contribuíram decisivamente para o êxito do meu trabalho. Não devo deixar de agradecer aqui a Marcelino Pereira dos Santos, motorista dedicado e infalível, que me conduziu na maior parte das minhas excursões...” A primeira coisa que tive de aprender foi adquirir uma noção clara do tamanho deste País. O fato de ter o Brasil oito milhões e meio de quilômetros quadrados pouco significa para aquele que estudou o país através de livros e mapas. Mas, quem sobrevoa dias a fio as imensas distâncias deste território, como eu o fiz, e somadas todas as excursões feitas de automóvel, perfazendo um total de mais de um ano de viagem3, tem que admitir ter visto apenas uma pequeníssima parcela do País, sente então respeito pelo continente Brasil e a perspectiva real dos seus problemas. O Brasil é de fato um continente...Aqueles que esquecem ou desconhecem essas diferenças regionais, e representam o Brasil como uma unidade natural, cometem um grande erro contra o espírito da Geografia e poderão causar grande prejuízo se estiverem ocupando posições de responsabilidade. Além disso, minhas excursões pelo Brasil me ensinaram como este grande País é pouco conhecido ainda, e como ele é representado de maneira deficiente, superficial e, muitas vezes, errada (Waibel, 1979).

Como comentário podemos observar que na chamada fase áurea da geografia no IBGE (veja para isto www.feth.ggf.br/fibge.htm) é nítida a promoção do trabalho de campo como elemento norteador dos testes aos conceitos que se tem a partir do gabinete. Ao recorrermos a alguns textos sobre o tema do trabalho de campo temos consciência de estar diante de um processo incipiente. Assim, segue-se um ensaio discursivo sobre o tema. Gobbi & Pessoa (2009, p. 485-507) começam sua dissertação de Conferência lida na sede do IBGE em 17 de agosto de 1950, publicada na Revista Brasileira de Geografia 12 (3), 1950 e incorporada na edição de sua obra Capítulos de Geografia Tropical e do Brasil (1979). 3 Cabe lembrar, como ele faz ao início da conferência, que sua estadia no Brasil foi de quatro anos... dos quais um em trabalho de campo. 2

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forma muito inapropriada, ou seja, entendem que a pesquisa qualitativa (na qual inclui o trabalho de campo) tem suas raízes nas práticas desenvolvidas pelos antropólogos. Ora, se recorremos ao trabalho de Nelson Werneck Sodré, Introdução à geografia, de 1979, veremos que esta questão qualitativa está na origem da própria Geografia. Enfim, não podemos ter na Antropologia uma forma de medir o nosso próprio processo de consideração do que seja um trabalho de campo. Já Souza Jr. (2009, p. 25-48) faz uma interessante elaboração no sentido de ter nas entrevistas a captura das intencionalidades dos agentes sociais em suas práticas sociais. Este trabalho, como o anterior, nos chama a atenção que o trabalho de campo e a prática que ele encerra envolvem uma melhor capacitação dos seus realizadores, já que o corpo, o entrevistador, a sua capacidade de olhar, perceber o local, tudo influi na consideração para compreensão de dado local, de dada temática a ele relacionado. Já Santos & Pessoa (2009, p. 123-138) chamam a atenção para o outro, ou seja, afora o cuidado e sofisticação que tenhamos no trato do tema (trabalho de campo), considerar que o outro, o entrevistado, o visitado, necessariamente desenvolve certa forma de defesa, já que pouco conhecemos4. Outro aspecto muito rico do tema é a questão do ensino. Não são poucas as experiências de quem considera o trabalho de campo uma forma de melhor conduzir a prática de ensino. Por exemplo, Urquiza & Asari (2007) tratam do tema numa ótica interdisciplinar ou transdisciplinar. De fato, é uma experiência que supera a visão da sala de aula enquanto ponto de excelência do ensino, o trabalho de campo enseja uma interação que esta última não proporciona porque, afinal de contas, é no contato com a natureza que se tem uma forma de interação entre as pessoas e destas com a natureza de forma ímpar e decisiva. Noutro exemplo, temos Favarão & Gratão (2007) que relatam o quanto de útil é o aprendizado junto dos pequenos tendo em conta certa metodologia, apresentada no trabalho, sobre o campo. Já Ribeiro e Moura (2007) vão destacar de que forma o trabalho de campo Isto me faz lembrar a discussão de um projeto de dissertação no âmbito do Programa de pós-graduação em Ciência Ambiental, da Universidade Federal Fluminense, para o qual dois jovens desenvolviam esforços para analisar a comunidade local, situação em Oriximiná (PA), campo de extensão da mesma universidade. O trabalho ocorria sem muito atropelo, mas também sem muita novidade, muito formal e pouco informativo, até que ao final da entrevista um dos entrevistados propôs uma cerveja no bar próximo. Pronto! Pela conversa, pelo tom mais amistoso, e pelo número de garrafas que foram sendo colocadas de lado, que descoberta não se fez sobre o lugar! 4

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fomenta a chamada inteligência espacial. Enfim, não se trata apenas de obter ou gerar informação, mas de ter no trabalho de campo uma forma educativa de exercício mental. A partir da fase mais avançada dos alunos, já no âmbito universitário (vide Queiroz Filho, 2009), a prática de campo configura uma elaboração que enseja trabalho em laboratório assim como uma elaboração relacionada às escalas de estudo do trabalho, assunto sensível dos estudos, pois envolve tanto a dimensão do estudo a ser implementada quanto a própria representação dos dados obtidos. Marangoni (2009), por sua vez, destaca um tema deveras importante, a saber, os questionários. É um tema deveras necessário de ser abordado porque não raro a pesquisa envolve uma dimensão estritamente subjetiva, já que o questionário envolve uma dimensão pessoal, um talento pessoal em saber perceber nos códigos comunicativos do entrevistado sobre o que haveria a mais nas respostas por parte do próprio entrevistado. Por fim, Venturi (2009) aborda o processo final do trabalho de campo quando então se escreve o relatório sobre o mesmo. É uma contribuição valiosa a de Venturi, porque se atem às partes componentes do relatório, cuidado com a coerência do que foi comunicado, a questão da correção gramatical etc.

Um contraponto necessário Pelo que foi observado anteriormente, há a sinalização de que o trabalho de campo em muito deveria à dinâmica encontrada no IBGE. É fato, mas não suficiente! Ou seja, a questão do trabalho de campo era algo cultural da própria Geografia! A diferença introduzida pelo IBGE não está em ter introduzido o tema, longe disso, mas tê-lo sistematizado para revelar o Brasil. Corroborando o observando cabe resgatar um trabalho intitulado Contribuição ao estudo da Geografia, de autoria de Higard O’Reilly Sternberg (1946), com prefácio em francês de Pierre Deffontaines. Pelo texto nós temos um explícito tratamento sobre a questão do trabalho de campo. Já na própria introdução do texto, Hilgard observa : Acabando de me desincumbir da missão para a qual fui comissionado pela Faculdade Nacional de Filosofia (de acordo com a Portaria n. 4, de 26 de janeiro de 1943), a de fazer estudos de geografia, inclusive ‘os relacionados com a técnica do trabalho de campo, estudando, ao mesmo tempo, com vistas à aplicação na Faculdade 258

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Nacional de Filosofia, a organização de um laboratório de geografia’, apresentei ao Diretor do referido estabelecimento um relatório de minhas atividades nos Estados Unidos. Essa exposição se dividiu em três partes. Na primeira parte, dei conta dos meus estudos de geografia e ciências auxiliares. A segunda parte do relatório apresentado compreende algumas observações sobre o trabalho do material didático de geografia (1946, p. 11).

Dada a introdução, mais adiante o autor observa que a primeira parte do relatório não veio a ser publicado, mas o foi o correspondente à segunda parte, justamente aquela voltada para trabalho de campo. Assim, sobre o tema Hilgard observa: Embora outras ciências possam contribuir com preciosas informações para a elaboração de estudos geográficos, não se pode prescindir da pesquisa original do próprio geógrafo. Ainda mesmo que uma região já houvesse sido estudada por todas as ciências ‘periféricas’ da geografia, os objetivos específicos desta ciência exigiriam o contato direto do geógrafo com a região. Não somente ele faria a verificação dos trabalhos anteriores, estudando, de maneira mais minuciosa, certos pormenores de interesse geográfico, tratados especificamente pelas outras ciências, como também procuraria in loco, correlacionar os fenômenos até então tomados isoladamente. Raramente, no entanto, se encontra em nosso país (p. 14) uma região que tenha sido amplamente estudada pelas demais ciências. Caberá eventualmente ao geógrafo assumir a responsabilidade integral dos estudos necessários, quer sejam eles geológicos, pedológicos, climatológicos, econômicos ou outros quaisquer.

Em seguida, pelo texto, ele tece várias considerações sobre o trabalho de campo do tipo, valor didático do mesmo, as diferentes modalidades em sua execução, mas o que é nítido e notório no texto é a visão de que Geografia tem por excelência o trabalho de campo. A singularidade da Geografia em relação aos demais campos do conhecimento é, como observado acima, “in loco, correlacionar os fenômenos até então tomados isoladamente”. Ora, tal observação minora o papel do IBGE enquanto elemento pioneiro na configuração do trabalho de campo como norma nos estudos geográficos. Porém, há algo que diferencia o que se deu no IBGE e no que se deu fora dele, a saber: o IBGE dispunha de recursos, de respaldo; esta instituição veio ao longo dos anos substituir o Exército Período Republicano 259

na produção de cartas; não houve ao longo do século XX instituição, ou universidade, que fizesse paralelo ao que o IBGE fez em termos de produção de diagnósticos sobre o território brasileiro. Afora este aspecto mais histórico, há um mais atual. Vale a pena contar uma história, a saber, minha graduação começou em 1977, quando o trabalho de campo era aspecto necessário do conhecimento geográfico (vide www.feth.ggf.br/geotrad.htm), porém, ao terminar, em 1980, o bacharelado, a situação era bem diversa. Estava em vigor a geografia crítica, uma corrente que em sua primeira hora desconsiderou o trabalho de campo como elemento de força da produção do conhecimento. Assim, o texto de Hilgard acima parece ser um texto datado, porém, verifiquem o que segue abaixo: Em primeiro lugar, defendemos a ideia de que há uma especificidade disciplinar na discussão aqui proposta, própria à Geografia e à produção do conhecimento geográfico. Uma reflexão sobre a importância do trabalho de campo nesta disciplina requer a compreensão de sua especificidade frente às outras disciplinas, sobre seus trunfos e seus handcaps frente às outras ciências naturais e sociais. Afinal, o que há de epistemologicamente diferente na produção do conhecimento geográfico? Em segundo lugar e, de certo modo, já respondendo, de maneira preliminar às questões enunciadas no parágrafo precedente, afirmamos a necessidade de revelar, através do trabalho de campo em geografia, as diversas possibilidades de recortar, analisar e conceituar o espaço, de acordo com as questões, metas e objetivos definidos pelo sujeito que pesquisa. O trabalho de campo em Geografia requer a definição de espaços de conceituação adequados aos fenômenos que se deseja estudar. É necessário recortar adequadamente os espaços de conceituação para que sejam revelados e tornados visíveis os fenômenos que se deseja pesquisar e analisar a realidade. Como terceiro pressuposto, é necessário também reafirmar a necessidade de superação das dicotomias e ambiguidades características da Geografia. O trabalho de campo é instrumento chave para a superação dessas ambiguidades (Serpa, 2006, p. 8).

Entre os textos de Hilgard e este último de Angelo Serpa publicado no Boletim Paulista de Geografia (revista que teve destacado papel no crescimento da Geografia Crítica)5, percebemos uma certa constância, 5

Vide www.feth.ggf.br/geocrítica.htm e www.feht.ggf.br/geografiacrítica.htm

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o trabalho de campo está voltando... e a Geografia Crítica já não é mais a mesma! Viva o trabalho de campo!

Conclusão Por fim, é corrente na realização de um grande encontro entre geógrafos a realização de trabalho de campo. Porém, não é possível verificar ser este um tema que mereça um reconhecimento para ser objeto de reflexão específico sobre o tema nestes mesmos encontros. Numa graduação em Geografia, quando se tem recursos, o trabalho de campo é algo corrente. Faz parte da formação de um geógrafo no Brasil, pois tem a cultura do trabalho de campo; porém, não ocorre que este processo, essa dinâmica, tão disseminada na formação dos jovens, não venha a ser objeto específico de reflexão. O trabalho de campo enquanto prática é algo corrente; trabalho de campo enquanto objeto de análise é algo fora da agenda, por quê? Parece-me que isto tem uma relação com a ascensão da geografia crítica, mas que após seu descenso iniciado na década de 1990 temos nos últimos anos um incremento dos trabalhos de campo, até porque ao tempo do governo Lula as universidades passaram a contar com muito mais recursos. Bibliografia ALVES, Flamarion Dutra; FERREIRA, Enéas Rente. Estudos rurais e o pensamento geográfico brasileiro: positivismo ao neopositivismo. V Encontro de Grupos de Pesquisa Agricultura, Desenvolvimento Regional e Transformações Sócio Espaciais. UFSM, 2009. BOMBARDI, Larissa Mies. Contribuição à historiografia da geografia agrária na Universidade de São Paulo. In: Agrária, São Paulo, n. 8, 2008, p. 99-121. ETGES, Virginia Elisabeta. A paisagem agrária na Obra de Leo Waibel. In:Geographia, ano II, n. 4, dezembro de 2000, p. 27-47. FAVARÃO, Cláudia Fátima de Melo; GRATÃO, Lúcia Helena B. Toda escola, toda cidade, todo lugar tem um rio. É preciso descobri-lo! Vamos lá? Caminhando... pelo córrego Taboca , Sertanópolis (PR). In:Múltiplas geografias: ensino, pesquisa,reflexão. Vol. IV. Org. Maria del Carmens Matilde Huerta Calvente et alli. Londrina, Ed. Humanidades, 2007, p. 183-206. FERREIRA, Enéas Rente & ALVES, Flamarion Dutra. ESTUDOS RURAIS E O PENSAMENTO GEOGRÁFICO BRASILEIRO: do positivismo clássico ao neopositivismo. In: V Encontro de Grupos de Pesquisa – “Agricultura, desenvolvimento Período Republicano 261

regional e transformações socioespaciais”, 25, 26 e 27 de novembro de 2009, UFSM. GOBBI, Wanderléia Aparecida de Oliveira; PESSÔA, Vera Lucia Salazar. Pesquisa qualitativa em geografia: reflexões sobre o trabalho de campo. In:Geografia e pesquisas qualitativas nas trilhas da investigação / Julio Cesar de Lima Ramires; Vera Lúcia Salazar Pessôa (orgs.). Uberlândia: Assis, 2009, p. 485-507. MANFREDINI, Sidneide et alli. Técnicas em pedologia. In:Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental / Luis Antonio Bittar Venturi (org.) São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 85-98. MARAFON, Glaucio José. O trabalho de campo como um instrumento de trabalho para o investigador em geografia agrária. In:Geografia e pesquisas qualitativas nas trilhas da investigação / Julio Cesar de Lima Ramires; Vera Lúcia Salazar Pessôa (orgs.). Uberlândia: Assis, 2009, p. 379-394. MARANGONI, Ana Maria Marques Camargo. Questionários e entrevistas – algumas considerações. In:Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental / Luis Antonio Bittar Venturi (org.). São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 167-174. MATOS, Patrícia Francisca; PESSÔA, Vera Lúcia Salazar. Observação e entrevista: construção de dados para a pesquisa qualitativa em geografia agrária. In:Geografia e pesquisas qualitativas nas trilhas da investigação / Julio Cesar de Lima Ramires; Vera Lúcia Salazar Pessôa (orgs.). Uberlândia: Assis, 2009, p. 279-291. QUEIROZ Filho, Alfredo Pereira de. A escala nos trabalhos de campo e de laboratório. In:Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental / Luis Antonio Bittar Venturi (org.). São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 55-67. RIBEIRO, Guilherme da Silva; MOURA, Jeani Delgado Paschoal. A inteligência espacial aplicada ao ensino de geografia. In:Múltiplas geografias: ensino, pesquisa, reflexão. Vol. IV. Org. Maria del Carmens Matilde Huerta Calvente et alli. Londrina: Ed. Humanidades, 2007, p. 77-105. ROSS, Jurandyr Luciano Sanches & FIERZ, Marisa de Souto Matos.In:Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental / Luis Antonio Bittar Venturi (org.). São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 69-84. RODRIGUES, Cleide & ADAMI, Samuel. Técnicas fundamentais para o estudo de bacias hidrográficas. In: Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental / Luis Antonio Bittar Venturi (org.) São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 147-165. SANTOS, Joelma Cristina dos &PESSOA, Vera Lúcia Salazar. A pesquisa de campo nos canaviais do oeste paulista. In:Geografia e pesquisas qualitativas nas trilhas da investigação / Julio Cesar de Lima Ramires; Vera Lúcia Salazar Pessôa (orgs.). Uberlândia: Assis, 2009, p. 123-138. SCHNEIDER, Sérgio. A atualidade da contribuição de Leo Waibel ao estudo da agricultura familiar. Em homenagem aos 50 anos da morte de Leo Waibel (18881951). In:Boletim Gaúcho de Geografia, Porto Alegre, vol. 28, n. 1, p. 25-41, 2002. SERPA, Angelo. O trabalho de campo em geografia: uma abordagem teóricometodológica. Revista Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 84, 2006, p. 7-24. 262

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SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à geografia. Petrópolis: Ed. Vozes, 1979. SOUZA JR., Xisto Serafim de Santana. A análise do discurso como estratégica na identificação das intencionalidades e práticas espaciais dos movimentos sociais urbanos de João Pessoa/ PB. In:Geografia e pesquisas qualitativas nas trilhas da investigação / Julio Cesar de Lima Ramires; Vera Lúcia Salazar Pessôa (orgs.). Uberlândia: Assis, 2009, p. 25-48. STERNBERG, Hilgard O’Reilly. Contribuição ao estudo da geografia. Distrito Federal: Ministério da Educação e Saúde, 1946. URQUIZA, Lucilene Barbieri; ASARI, Alice Yatiyo. Trabalho de campo: fonte motivadora no ensino da geografia. In:Múltiplas geografias: ensino, pesquisa, reflexão. Vol. IV. Org. Maria del Carmens Matilde Huerta Calvente et alli. Londrina: Ed. Humanidades, 2007, p. 281-301. VENTURI, Maria Alice. Relato do trabalho de campo. In: Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental / Luis Antonio Bittar Venturi (org.). São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 225-240. WAIBEL, Leo.Capítulosde geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: FIBGE, 1979.

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Geografia tradicional no Brasil. Uma geografia tão mal-afamada quanto malconhecida!1 Introdução Dando continuidade ao eixo iniciado pela geografia crítica apresentado no número anterior da Revista Geo-paisagem, segue uma reflexão sobre a geografia tradicional. Porém, sua análise tem como parâmetro a realidade brasileira, embora aspectos aqui destacados possam ser encontrados alhures. De certo modo o presente texto é um contraponto ao texto produzido pelo professor Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, a saber, “A geografia no Brasil (1934-1977): avaliação e tendências” que aqui comento dois aspectos: o primeiro é a consideração de que havia uma geografia oficial, promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), por ser um órgão do governo federal; e o segundo é que, antes da década de 1930, havia uma geografia abjeta que apresentava raras exceções como as promovidas por Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser. Este dois aspectos decorrem de certo etnocentrismo do autor, ou seja, ele escreve enquanto paulista, entendendo ser a sua geografia, provinda da Universidade de São Paulo (USP), merecedora de uma consideração que a geografia do IBGE não mereceria em igual proporção. O autor, neste caso, desconsidera que a geografia da USP está permeada por um projeto de poder, de poder paulista, a começar pela própria origem da referida universidade. Assim, se a geografia do IBGE era oficial, a da USP também o era. Outro aspecto é a falta de consideração da riqueza que a geografia brasileira tinha mesmo antes das universidades e do IBGE; tal forma de interpretar está relacionada aos próprios limites que o autor se deu para realizar o texto que teve grande repercussão quando apresentado no Encontro Nacional de Geógrafos realizado em Fortaleza/CE no ano de 1978, ou seja, Carlos Monteiro realiza o trabalho tendo por referência anais da Associação de Geógrafos Brasileiros, as publicações do IBGE e da USP, sem se dar ao trabalho de procurar dados junto à Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem ano 5, n. 10,julho/dezembro de 2006 1

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Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (SBGRJ) – mais tarde Sociedade Brasileira de Geografia (SBG) –, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e o próprio Serviço Geográfico do Exército2. Entendo que a atitude mais adequada seria a de se eximir em relação ao período anterior a 1934, sem ter a preocupação de citar exceções como o faz na página 14 do referido texto editado pela USP na forma de monografia em 1980. Os dois pontos acima referentes ao texto de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, embora polêmicos, não são gratuitos. Pelas leituras sucessivas de diferentes textos analisados, grassa uma maneira de interpretar a geografia tradicional brasileira que tem como base o texto citado3.

Um olhar para São Paulo Durante a pesquisa de textos para a elaboração deste artigo encontrei um trabalho que reputo precioso por força do que quero aqui apresentar, a saber, destaco o trabalho de Perla Brígida Zusman intitulado “Na procura das origens da AGB”, que observa: A revolução de 30 reformula o projeto político nacional. Os novos atores no poder almejam a unidade nacional, desta vez não sob a hegemonia monárquica, mas nas mãos de um Estado modernizado, dotado de um aparelho burocrático, intervencionista e hierárquico (DRAIBE, 1985). No entanto, São Paulo dominado pela Ao basear-me nestas três instituições realizei três trabalhos que demonstram que a chamada geografia tradicional no Brasil apresentava-se muito mais interessante; para conferir veja: www.feth.ggf.br/socgeorio.htm , www.feth.ggf.br/servigeoex.htm, www.feth.ggf.br/congresso.htm . 3 Há um par de décadas a geografia produzida no Rio de Janeiro perdeu o poder de gerar um contraponto à maneira de interpretar paulista. O número de teses, os melhores e mais eficientes meios de veiculação da produção têm como marco o ambiente universitário paulista. Vivemos, literalmente, uma hegemonia paulista. Assim, convém termos claro que a consideração sobre a geografia tradicional há de se estabelecer um diálogo, cordial se possível, com esta matriz paulista. Esta situação decorre da própria retirada do IBGE enquanto órgão produtor e estimulador do conhecimento geográfico; neste sentido, vale a pena a consulta ao nosso artigo www.feth.ggf.br/FIBGE.htm, e das próprias universidades encontradas no Rio de Janeiro que relativamente perderam posições, pois os principais órgãos de fomentos, de características, a saber, Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ) e Comissão de Apoio a Pesquisa do Ensino Superior (CAPES), vieram a perder sucessivos recursos, ao contrário da USP que pode contar com forte apoio da Fundação de Apoio a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 2

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oligarquia cafeeira não está disposto a submeter seus próprios interesses aos nacionais. A revolução constitucionalista de 1932 (CAPELATO,1981) e seu fracasso não significam para a elite paulista deixar de lado sua ideia de nortear o desenvolvimento e a política brasileira. E é o setor intelectual desta elite nucleada em torno à família Mesquita e ao jornal “O Estado de São Paulo” que continua a batalha política a partir do campo cultural. A formação de uma elite internalizada nos valores sociais destes grupos era objetivo da primeira universidade, que se organiza neste período, no Brasil (MICELI, 1979). Dita universidade, faz da área humanística seu eixo e procura tornar esta casa de estudos um centro de excelência acadêmica de nível internacional trazendo para este fim professores diretamente da França (MASSI, 1991). Dentro deste contexto, organiza-se a primeira cadeira de Geografia na Universidade de São Paulo a cargo do Professor P. Deffontaines e também a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) (2001, pp. 9-10).

No mesmo texto, Perla observa: Agora bem caberia perguntar-se em que medida poderíamos dizer que a Geografia contribuiu para levar adiante o projeto da elite intelectual de São Paulo. Enquanto este saber era incluído entre as disciplinas que conformavam o ciclo básico de todos os cursos ministrados na Universidades de São Paulo, outorgava-se lhe um importante papel na formação das novas elites dirigentes. Vejamos então de que maneira a Geografia respondeu às expectativas colocadas neste discurso disciplinar. [Sobre a chegada do geógrafo Pierre Deffontaine (1894-1978) que passa a dar aula e funda a Associação de Geógrafos Brasileiros; sobre o modelo da Association de Geographie Française.) Este geógrafo francês congrega estudiosos de procedências políticas e disciplinares díspares no dia 7 de setembro na sua casa da rua Angélica. Os assistentes a esta reunião foram: o geólogo e professor da Escola Politécnica da USP, Luís Flores de Morais Rego, o historiador Rubens Borba de Morais que a partir de 1935 tornou-se diretor da Biblioteca Municipal, o historiador de orientação marxista descendente de uma família tradicional paulista Caio Prado Jr. (DUTRA FONSECA, 1991: LIMONGI, 1987), e o mediador, Geraldo Horácio Paula Souza, diretor do Instituto de Higiene da Faculdade de Medicina. A elite paulista sente-se convocada a participar nesta instituição. Assim, entre os sócios da AGB figuram Júlio de Mesquita Filho, 266

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o historiador, vinculado à Revolução Constitucionalista de 1932 e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Alfredo Ellis Júnior e o industrial ligado à Escola Superior de Sociologia Roberto Cochrane Simonsen, entre outros. Qual poderia ser o interesse destes intelectuais e políticos em organizar uma Associação de Geógrafos? Segundo os objetivos dos Estatutos de 1938, primeira regulamentação da Sociedade, a AGB estabelecia como seus princípios... (pesquisa, divulgação, excursões etc. e alheio a todo conflito social e político). No entanto, em um artigo publicado no jornal que liderou o projeto de formação da USP, ‘O Estado de São Paulo’, e cujo diretor, como já dissemos, formava parte da AGB, atribuí-se a esta Associação outros tipos de objetivos, diferenciados daqueles explícitos em seus estatutos. Esta matéria é atribuída a Moraes Rego, sócio-fundador da AGB. Sob o título “A expansão econômica de São Paulo e a Associação dos Geógrafos Brasileiros” Moraes Rego discute as vantagens naturais que o sítio de São Paulo apresenta para contribuir tanto ao desenvolvimento do Estado quanto do país. Este geólogo da USP frisa os progressos econômicos que este Estado tem vivenciado, especialmente nas atividades industriais. Por sua vez, destaca a necessidade de criar mercados para os produtos de São Paulo. Com este propósito outorga importância à extensão de infra-estrutura adequada de comunicação entre São Paulo e os estados vizinhos. Dentro de todo este quadro de transformações e mudanças econômicas que vivencia o Estado, Moraes Rego busca demonstrar a importância das tarefas correspondentes à AGB, redefinindo os objetivos desta instituição geográfica da seguinte maneira: ‘A Associação dos Geógrafos Brasileiros, fundada em São Paulo, tem por objetivo geral o desenvolvimento dos estudos geográphicos do paiz, especialmente São Paulo e das regiões adjacentes (...) A Associação, além de ser órgão de desenvolvimento da cultura paulista, desempenhará um papel relevante de caráter prático na evolução moderna da vida econômica do Brasil’ (2001, pp. 15-19).

Segundo Perla, o artigo de Moraes Rego publicado em 1935 torna mais nítido o vínculo dos objetivos da AGB com o projeto político -econômico do seu estado. Curiosamente, nesse mesmo ano, Pierre Deffontaine se transfere para o Rio de Janeiro4. Embora tenha ficado pouco tempo no Brasil a sua estadia não foi pouco profícua inclusive, um de seus trabalhos veio a ser reproduzido na comemoração dos 50 anos 4

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Em outro trabalho, que reputo precioso para os nossos propósitos, é o artigo da historiadora Marieta de Moraes Ferreira intitulado “Diário pessoal, autobiografia e fontes orais: a trajetória de Pierre Deffontaines”1. A partir de contato com a família e acesso ao diário do geógrafo, Ferreira destaca alguns aspectos de sua trajetória que cabem ser destacados, como os do registro em diário realizado por Mme. Deffontaines na França sobre a atividade do marido em São Paulo; assim ela assim se expressa: Recebo boas notícias de Pierre que compartilhamos: suas conferências são um verdadeiro sucesso, e ele tem uma colaboração muito interessante com seus alunos, orienta-os na direção de vários temas de estudo da geografia humana e vai com eles aos lugares, faz excursões empolgantes à floresta virgem, às diferentes áreas de culturas japonesas, italianas, com tentativas de cultivo da uva, às grandes fazendas de café, à colheita do palmito, me manda fotos lindíssimas, é um geógrafo feliz mas um papai infeliz... muito tempo demais separado de seus filhinhos. A separação é dura, nos a oferecemos juntos ao Bom Deus reconfortando-nos com boas cartas. Pediram-lhe que traduzisse seu livro sobre ‘o homem e a floresta’ para o português, com fotos do Brasil. Mesquita lhe disse que nenhum professor tinha dado tão certo como ele São Paulo (Ferreira, 1999, p. 134).

Assim, se Pierre Deffontaine estava tão bem instalado em São Paulo, por que pouco depois seguiu caminho para o Rio de Janeiro? Em seu lugar, chegou um outro francês, bem mais jovem, mas que ficou mais de dez anos (1935-1946) na Universidade de São Paulo, e tudo indica ter devidamente aspirado o projeto paulista de saber geográfico na universidade, pois toda a sua principal produção da época gira em torno de São Paulo; refiro-me ao professor Pierre Monbeig (19081984)2. da Revista Brasileira de Geografia, editada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, intitulado Geografia Humana do Brasil (1988). 1 I Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico, São Paulo, vol. 1, pp. 131- 138, 1999. 2 De sua produção destacaria Pioneiros e fazendeiros de São Pauloe La croissance da ville de São Paulo; sendo que a primeira reputo ser a principal obra que li relacionada à geografia brasileira tradicional! Em segundo lugar viria Evolução da rede urbana brasileira, de Pedro Pinchas Geiger que, aliás, merecia uma reedição tal como ocorreu com a obra do autor francês. Sobre Pierre Deffontaine, ele ficou poucos anos no Brasil; no começo de 1939 tentou 268

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A geografia tradicional no Brasil Das escolas existentes é a que me é mais simpática. Por quê? Falavam de coisas que podemos ver! Tem início, meio e fim. Hoje, parece que estamos destinados a fazer parte de times de futebol, não importa o fato e sim uma versão favorável, favorável ao teu time. O conhecimento é mito. Qual a origem da geografia tradicional no Brasil? Pela pergunta, não estamos atentos à produção do texto mais antigo utilizando o termo geografia em seu título. Para isto há o ainda insubstituível trabalho de Pereira (1994) que enumera os mais importantes trabalhos geográficos desde o século XVI. Mas, o que nos importa vem a ser como a Geografia passou a constituir um coletivo, fomentar encontros entre pares, a ter uma produção consequente, não dependendo assim da produção estrangeira sobre o Brasil! Pereira (1994, p. 399) chama a atenção para duas entidades (IHGB e SGRJ), é a primeira vez que a geografia passa a ter uma produção mais sistematizada (com uma certa garantia de memória ao que era produzido), com geração de revistas periódicas regulares; ele chama a atenção para o fato do IHGB divulgar importantes documentos e promover iniciativas no campo das realizações geográficas no país; sobre a SGRJ, ele destaca os congressos brasileiros de geografia. Tanto o IHGB quanto a SBGRJ ajudam na memória, na conscientização, popularização do conhecimento da geografia. Pereira (1994, pp. 400-401), no entanto, destaca que havia uma outra linha além da representada pelo IHGB e SGRJ, há a linha da geografia física, na qual as comissões geológicas e geográficas desempenharam decisivo papel, a saber, a Comissão Geológica do Império de 1875 (fechada em 1876), a Escola de Minas de Ouro Preto (fundada em 1876), a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (fundada em 1866), a Comissão Geográfica e Geológica de Minas Gerais (fundada em 1892), o Serviço Geológico e Mineralógico (fundado em 1907) e cuja orientação pós-1915 é nitidamente voltada para a economia, além do próprio Museu Nacional do Rio de Janeiro, o Museu Goeldi ou Paraense ...; nesta geografia física ficava registrada uma preocupavoltar à França, mas não conseguiu; passou então a trabalhar na Espanha (Ferreira, 1999). Sobre a vida e obra de Pierre Monbeig convém a consulta à recente obra – Pierre Monbeig e a geografia humana brasileira, a dinâmica da transformação, organizada por Heliana Angotti Salgueiro. Período Republicano 269

ção maior da geografia enquanto recurso, assim como uma preocupação com mapas, cartas3 etc. Mais tarde, de certo modo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uniu os dois lados, tanto o aspecto indagativo (reflexivo, inculcador de percepções dadas sobre o país e/ou lugares brasileiros), assim como o caráter censitário, pautado em observações sobre recursos naturais. Outro momento da geografia brasileira foi dado pelo Serviço Geográfico do Exército que teve a incumbência num período semelhante ao do IBGE, a saber, mapear o país, talvez porque tivesse mais estrutura para este tipo de serviço4. Assim, a geografia dos sécs. XIX e XX surgiu como que a reboque das preocupações com a geologia e cartografia da época. ‘...O verdadeiro desenvolvimento dos estudos e pesquisas geográfico-científicos continuava a ficar na dependência do avanço, no país, das investigações realizadas no campo das ciências afins. E todo o período, desde a criação da Comissão Geológica do Império (1875) até a instituição do Conselho Nacional de Geografia (1937), foi, de fato, um período de construção e montagem de peças que viriam compor a complexa engrenagem, transmissora de movimentos e força à moderna pesquisa geográfica’ (Pereira, 1994, p. 415).

Pereira (1994, pp. 418-419) destaca ainda o general Cândido Mariano da Silva Rondon cujo trabalho possibilitou o reconhecimento de 200.000 km2 em favor do Brasil5. Assim, nos parece que há uma fase da geografia brasileira que tem uma imediata relação com o reconhecimento do território e o de representá-lo, o que, de certo modo, isto ainda se faz até os dias de hoje6. Sobre Delgado de Carvalho, Pereira observa: ‘Até os dias atuais, esse pequeno trabalho geográfico de Delgado de Carvalho constitui o texto de ensino melhor urdido e escrito para os estudantes brasileiros. No período de 1900 a 1930, o único Além destas comissões Pereira (1994) destaca a importância assumida no século XIX da revista cognominada O Patriota,que destacava várias informações sobre o país. 4 Com o satélite o quadro foi alterado, acabaram dando o papel maior para o IBGE; sobre o tema veja, como já citado: www.feth.ggf.br/Servigeoex.htm. 5 Em 1953 ele fez uma resenha à AGB, e nessa mesma década fez uma memorável palestra na Sociedade Brasileira de Geografia. 6 Até meados da década de 1970 o Brasil tinha notória parte ainda desconhecida. Só na década de 1980 é que mais de 80% do país foram mapeados. 3

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livro didático que com ele se pôde comparar, pelo método, apresentação e segurança na matéria, foi a Geologia elementar, de Branner, compêndio que, ainda hoje, constitui uma sólida base para quantos queiram iniciar-se nos estudos de geografia física, particularmente no Brasil’ (Pereira, 1994, p. 426; neste trecho ele continua abordando a sala de aula, na qual pouco se usava mapas, nem métodos, até a influência de Carlos Delgado de Carvalho).

Em mesa redonda promovida pelo XII Encontro Nacional de Geógrafos em Florianópolis, 19/7/2000, transcrita pela revista Terra Brasilis7, temos uma série de extratos que cabem aqui ser realçados: Sérgio Nunes Pereira observa: ‘... os geógrafos chegaram a desfrutar de um certo prestígio social e institucional, pelo menos enquanto foi forte, nos meios oficiais, a retórica de valorização do território nacional. Quando os rumos do debate sobre o desenvolvimento do país começaram a apontar para outras direções, colocando novas questões em pauta e demandando outros profissionais para solucioná-las, nossa disciplinar mergulhou num profundo e prolongado ostracismo’ (p. 114). Antonio Carlos Robert Moraes: ‘Em primeiro lugar, cabe salientar a centralidade da geografia, enquanto prática material, na vida social das formações coloniais. A conquista espacial emerge aí como determinação fundante dessas sociedades, como pecado original das colônias, na medida em que a expansão territorial e o domínio de espaços inscrevem-se como móveis básicos de estruturação de sua vida social’ (p. 132). ‘Em termos institucionais, a discussão dos temas e das teorias geográficas pode ser encontrada tanto nas faculdades de direito, quanto nas de medicina e de engenharia, e também nos colégios e demais órgãos ligados ao ensino, e ainda em comissões e repartições públicas destinadas a serviços referidos ao território. Assim, os institutos geográficos não monopolizam a prática desse saber, apesar de constituírem os embriões da institucionalização do campo disciplinar, servindo de ponto de convergência para a comunidade dispersa e não-especializada dos pioneiros ‘geógrafos’ do país. Tanto que o século XX vai assistir a gradativa constituição de uma efetiva estrutura de geração e divulgação do conhecimento geográfico, que tem seu marco de consolidação na década de 1930, com a institucionalização pleno do campo em tela por meio da criação de órgãos específicos dedicados ao ensino e pesquisa de geografia. 7

Terra Brasilis, ano 1, nº 2, jul/dez., 2000. Rio de Janeiro. (pp. 113-145). Período Republicano 271

É interessante assinalar que, contrastando com esse quadro de dispersão no século XIX, tem-se o discurso geográfico como uma ideologia eficaz no contexto periférico, gerando argumentos de base naturalizante bastante úteis numa situação de identidade histórica problemática como era o caso brasileiro. Com a emancipação política em 1822 era necessário consolidar o novo Estado nacional, numa situação onde quase metade da população era constituída de escravos8. Na dificuldade de identificar-se numa nação, o Estado brasileiro vai tomar o território como centro de referência da unidade nacional, tomando o seu povoamento como a tarefa básica a ser realizada no processo de construção do país. Tal concepção espacialista enraíza-se na cultura política do Brasil estimulando argumentações de forte conteúdo geográfico que adentram pelo século XX, fundamentando algumas das principais interpretações do país nas primeiras décadas republicanas. A partir da década de 1930, com a institucionalização do campo disciplinar (com a fundação dos cursos universitários da disciplina, do Conselho Nacional de Geografia, do IBGE, e da AGB), fica mais fácil delimitar as fontes para a história da geografia no Brasil, o que não significa que a formulação de ideologias geográficas passe a ficar circunscrita a essas instituições especializadas...’ (pp. 133-135).

Demétrio Magnoli, por sua vez, destaca que desta geografia antiga, como aqui tratamos como geografia tradicional, reserva uma boa base na própria conformação do Estado brasileiro, como abaixo é realçado em sua obra intitulada O corpo da pátria, imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912): A geografia desempenhou papéis decisivos na produção histórica do território, funcionando como instrumento privilegiado na construção da legitimidade do Estado nacional. Entretanto, e de forma aparentemente surpreendente, tanto a literatura sobre a formação do Estado-Nação como aquela que concerne à própria geografia virtualmente ignoram essa relação. Curiosamente, a própria revisão crítica da história do pensamento geográfico freqüentemente apontou no Estado nacional uma condição (p. 31) para a sistematização da geografia, sem suspeitar que, talvez, o mais significativo seja o inverso: a geografia como condição para o enraizamento social e histórico do Estado nacional9.

E acrescentaríamos, de índios! In:O corpo da pátria – imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912), de Demétrio Magnoli. São Paulo: Ed. Unesp/Ed. Moderna, 1997, (pp. 30-31). 8 9

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Esta observação de Demétrio Magnoli é fundamental para destacarmos que a chamada geografia tradicional nada tem de inócua. Em nosso trabalho sobre Duarte da Ponte Ribeiro, encontrado em www. feth.ggf.br/Duarte.htm, podemos aferir a importância da geografia na configuração de uma escola na área diplomática brasileira e que o Barão do Rio Branco é o seu principal representante. Sobre esta questão do Estado brasileiro ainda cabe um destaque ao trabalho de Eli Alves Penha intitulado A criação do IBGE no Contexto da Centralização Política do Estado Novo10. Como bem descreve Eli Alves Penha, o IBGE foi criado durante o regime autoritário do Estado Novo, e foi considerado por ele como um órgão sui generis por ter-se originado de um convênio entre os municípios, estados e o governo central. E foi regido, democraticamente, por assembleias representativas destas diversas esferas do poder (1993, p. 14)11. Como a história bem o demonstra, a ação estatal no conjunto das transformações econômico-sociais durante o período do Estado Novo implicou uma crescente descentralização do poder político em torno do Estado. Este processo de centralização, imbricado a uma política de integração nacional, resultou na montagem de mecanismos destinados ao controle sobre as esferas estratégicas da economia e, ao mesmo tempo, na necessidade de promover rapidamente uma unificação político-administrativa, através dos mecanismos atuantes na relação do poder central e estados.

Ao processo de centralização somava-se a defesa da racionalidade administrativa. As decisões políticas deveriam ser substituídas por soluções técnicas e fórmulas científicas. Algumas medidas tomadas refletiam essa “nova”concepção da administração pública: controle de câmbio; legislação trabalhista; queda das barreiras alfandegárias interestaduais; nacionalização das reservas minerais. Ao mesmo tempo criavam-se o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), o Instituto Brasileiro do Café(IBC); o Instituto do Mate, do Cacau, do Pinho, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), entre outros. Esta racionalidade administrativa, por sua vez, repercutiu na necessidade de um novo ordenamento territorial, pois os obstáculos que se Rio de Janeiro, IBGE 1993. Prefácio de Pedro Pinchas Geiger. Parece-nos que este é um dos sinais do projeto nacional via IBGE, via geografia, para favorecer a integração nacional. 10 11

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interpunham à consecução das políticas governamentais tinham uma dimensão espacial bastante significativa. Neste aspecto, o território brasileiro, imenso, caracterizado por enorme descontinuidade, dificuldade de comunicação interna, clivagens regionais, poderes locais bastante consolidados, atribuía ao Estado um importante trabalho de remoção desses obstáculos. Daí, atividades como a campanha de interiorização do país, através da “Marcha Para o Oeste”, projetos de colonização interna, criação de infraestrutura de comunicação e, nos aspectos político-administrativos, a diminuição dos poderes estaduais e locais que caminhassem em sentido contrário a esses objetivos (ibidem, p. 18). A criação do IBGE em 1938 refletiu, de forma significativa, o papel que os levantamentos estatísticos e a pesquisa geográfica poderiam desempenhar no tocante à administração do imenso território brasileiro, em via de integração socioespacial. Suas atribuições principais consistiam em realizar levantamentos e sistematizar informações do quadro territorial em todos os seus aspectos: físico, econômico, jurídico, político e populacional; realizar trabalhos cartográficos em variadas escalas; divulgar a cultura geográfica brasileira e promover a reorganização do quadro das unidades político-administrativas tal como a definição de limites, racionalizar a toponímia dos municípios e distritos e estabelecer uma nova divisão territorial. A não resolução dessas questões poderia comprometer vários aspectos da administração pública em geral, principalmente aquelas relativas à divisão de tributos e verbas orçamentárias, regularização de terras rurais e urbanas, centros e pleitos eleitorais e conflitos recorrentes em torno da repartição do poder local e estadual e entre as elites rurais e urbanas. Concebido como importante instrumental técnico-científico de administração do território, a atuação do IBGE foi orientada, assim, a partir de dois vetores: enquanto suporte de funcionamento da máquina estatal no tocante à implementação de políticas públicas e enquanto núcleo administrativo central responsável pelas formulações e execução de políticas territoriais (ibidem, p. 19). Em seguida, Eli Penha indaga se a concepção marco de referência atribuída ao IBGE não estaria, então, relacionada a uma postura ideológica de se contrapor à descentralização político-administrativa existente no regime federalista da primeira República. Esta questão é pertinente, pois nos remete ao contexto específico dos anos 30, quando a repercussão da crise de 1929 introduziu uma 274

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nova concepção de organização política da sociedade, ou seja, a de um Estado mais racional, moderno e centralizador. Dentro deste contexto o tema do Estado é bastante central: as políticas adotadas, visando à superação da crise implicaram uma crescente participação do Estado na formulação de políticas econômicas e no seu planejamento (ibidem, p. 42). Assim, podemos concluir que a geografia tradicional, no caso brasileiro ao menos, está relacionada a uma exigência por terra. Serve para conhecer a terra e dominá-la. A geografia, no caso brasileiro, funda o Estado.

A geografia tradicional, porém moderna! Em outro trabalho intitulado O estudo geográfico da cidade no Brasil: evolução e avaliação. Contribuição à História do Pensamento Geográfico Brasileiro, de Maurício de Almeida Abreu12, percebemos que é comum entender que o ano de 1934, no qual ocorreu a criação da USP, significou a fundação da Geografia Moderna Brasileira, que se oporia à geografia descritiva e enciclopédica, mas esta ainda estaria afeita à compreensão do único, do singular (procurando-se esgotar todas as vias para se compreender dado local, evitava-se a busca do geral e do constante), com a plena ascendência dos mestres franceses convidados pelo governo estadual paulista. Embora não se possa desconhecer a contribuição de Carlos Delgado de Carvalho, que já atuava, desde 1910, antenado à escola francesa (p. 24). Para Maurício “não seria exagero afirmar que foi no trabalho ‘no campo’ – e não nas faculdades – que a primeira geração de geógrafos obteve, verdadeiramente, a sua formação” (p. 25)13. Revista Brasileira de Geografia, IBGE:Rio de Janeiro, 56 (¼): 21-122, jan./dez., 1994. Outros trabalhos que ajudam a compreender o período considerado por Maurício de Abreu são: AZEVEDO, Aroldo de. A geografia francesa e a geração dos anos setenta (1976); BAHIANA, Luis Cavalcanti. Teoria, metodologia e história do pensamento geográfico: flagrantes de um século de reflexão em periódicos selecionados (1992); BERNARDES, Nilo. O pensamento geográfico tradicional (1982 a) e A influência estrangeira no desenvolvimento da Geografia no Brasil (1982 b); MACHADO, Lia Osório. Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930), (1995) e História do pensamento geográfico no Brasil: elementos para um programa de pesquisa (2000); e MACHADO, Mônica Sampaio. A implantação da geografia universitária no Rio de Janeiro (2000). 13 Cabe considerar que tal fato não teria decorrido estritamente da linha metodológica francesa que priorizava os estudos regionais; devemos considerar também outro as12

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Em 1940, ocorreu o IX Congresso Brasileiro de Geografia, reunido em Florianópolis, sob o patrocínio da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e do recém-criado Conselho Nacional de Geografia. Ficando mais notória a constituição de um coletivo de geógrafos que fundariam um caráter moderno à geografia brasileira (p. 26)14. Assim, na nossa avaliação, poderíamos acrescentar que nesse encontro se deu a passagem entre a herança do Império brasileiro, representada pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (que adotaria o nome de Sociedade Brasileira de Geografia), e o Conselho Nacional de Geografia, herança do Estado Novo, que traria decisivas contribuições à geografia brasileira até meados da década de 1970. Mas, o que há de comum nesta passagem de mando na geografia brasileira é que decorre de projeção do poder nacional procurando conhecer e melhor manipular a territorialidade brasileira. Voltando à análise de Maurício de Abreu, temos em São Paulo a fase heróica, na qual a AGB criada por Pierre Deffontaine reunia quatro a cinco pessoas em algumas vezes. Depois de Pierre de Deffointaine na AGB, esta passou a contar com Pierre Monbeig15; em contraponto, no RJ, o Conselho Nacional de Geografia (1937) passou a promover encontros e dar estágio a alunos da Universidade do Distrito Federal – que em 1939 passou a ter o nome de Universidade do Brasil (p. 31). Em 1945, segundo Maurício de Abreu, ainda ocorreu a primeira mudança no estatuto da AGB, e por ela foi possível surgir secções regionais – a de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em seguida temos a de Lorena em 1946, até chegar Vitória em 1969. Nesse período as Assembleias Gerais da AGB eram anuais, tendo comunicações, troca de experiência, mas principalmente trabalho de campo (p. 32). Para Maurício de Abreu a realização do XVIII Congresso Internacional de Geografia representou um marco divisório na história do pensamento geográfico brasileiro, pois promoveu mudanças de temas, enfoques, modo de organizar os encontros (p. 38)16. pecto, qual seja, os geógrafos de então enfrentavam-se diante de notórias dificuldades para realizar suas pesquisas, ou seja, os dados censitários eram precários, a base cartográfica incipiente, os relatórios sobre as diferentes partes do país não estavam devidamente catalogados etc.; assim, o trabalho de campo representava um meio de melhor vasculhar este país de modo a melhor sistematizar as informações sobre o mesmo! 14 Cabe frisar nosso trabalho www.feth.ggf.br/Congresso.htm que aborda os diferentes congressos promovidos pela então Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro inclusive o de 1940. 15 Assim, a AGB vingou graças aos franceses! 16 Aziz Ab’Saber e Manuel Correia de Andrade em entrevista para a Revista Geo-Sul 276

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Mas a capilarização da geografia ocorreu na implantação enquanto disciplina de curso de nível universitário, na década de 1930, e até meados da década de 1960, a Geografia Brasileira foi essencialmente uma disciplina voltada para a chamada “escola francesa”. Foi da França que vieram os seus primeiros mestres; foi com esse país que o intercâmbio científico foi mais intenso; foram autores franceses os que mais influenciaram a geração de geógrafos aqui formada nesse período (p. 43). Em 1970 ocorreu outra alteração nos estatutos da AGB, pela qual foi extinta a prática do trabalho de campo durante as reuniões; assim, em 1972, os congressistas reunidos em Presidente Prudente para o I Encontro Nacional de Geógrafos, já não realizaram as pesquisas de campo que correspondiam a verdadeiros trabalhos de comandos subdivididos com tarefas e temas distintos, e com a incumbência de apresentar na própria assembleia um relatório preliminar. Cabe ainda destacar que até 1970 temos as Assembleias da AGB, mas a partir de 1972 em diante temos Encontro Nacional de Geógrafos (p. 34-35)17. Nesse período, na segunda metade da década de 1960, entretanto, a situação começou a mostrar sinais de mudança. É a partir daí que a chamada “revolução quantitativa” – que vinha ocorrendo nos EUA e no Reino Unido há cerca de dez anos – chegou ao Brasil, no bojo do processo de intensificação das atividades de planejamento territorial promovido pelo governo militar de então. destacam a importância desse encontro para eles e para outros geógrafos. Sobre o tema, temos o nosso trabalho em www.feth.ggf.br/Congresso1956.htm. 17 Nota-se que há um processo de popularização dos Encontros dos Geógrafos, não deixando que eles fiquem restritos a poucas pessoas. Parece que estamos diante de um sintoma de que os trabalhos de campo ficavam dispendiosos, ou que, simultâneo a isto, já não havia mais os recursos necessários para que eles pudessem existir a contento. De certo modo, podemos relacionar este processo de popularização dos encontros quando se verifica um aumento dos que assistiam os encontros com uma perda relativa dos geógrafos (e da própria geografia) enquanto funcionários do Estado. É desta época que a geografia retira-se paulatinamente dos escritórios de planejamento e fica mais presente na sala de aula! Além do observado, sendo procedente o que acima está registrado, devemos considerar que a avalanche que atingiu a AGB nos anos 1978/1979 – no qual a mudança do estatuto facultou que o voto de um aluno fosse igual a de um profissional – foi precedida, a rigor, por um lento mas sistemático processo de abertura, de democratização. E se tudo isto é procedente, segue uma pergunta: a democratização da AGB não é sinal que o projeto paulista de 1938 já se encontrava superado? Senão totalmente... pelo menos parcialmente. Não podemos esquecer que a sede da AGB ainda fica em São Paulo! Período Republicano 277

Nilo Bernardes18, por sua vez – que frisa a importância das universidades paulista e carioca na década de 1930 na configuração de uma geografia científica – destaca, no entanto, que somente na segunda metade da década de 1940 ocorreu um desabrochamento a ponto de atingir outros centros culturais do país, a começar por Recife e Salvador. Isso se deve ao fato de que logo no pós-guerra consolidou-se o primeiro núcleo governamental de pesquisas geográficas permanentes no antigo Conselho Nacional de Geografia (CNG), fundado em 1937 e incorporado ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao mesmo tempo em que se verificou um processo de “maturação” e consolidação de um núcleo de pesquisa na Universidade de São Paulo. Diga-se, de passagem, que o motivo inicial da criação do CNG foi a necessidade de se constituir um órgão pelo qual se fizesse adesão do Brasil à União Geográfica Internacional (UGI). A implantação e a difusão, mais ou menos rápida, da pesquisa geográfica no Brasil se deve creditar, também, e de modo muito especial, à Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) criada em São Paulo em 1934, mas que somente em 1945 foi reestruturada em caráter nacional reunindo os dois grupos, do Rio e de São Paulo19 (1982, pp. 519-520). Para Nilo Bernardes, o sucesso inicial dos cursos universitários de Geografia, a fundação e a reforma da AGB, a adesão do Brasil à UGI, a inspiração para a criação de um núcleo permanente de pesquisas no CNG, a expansão das atividades desses órgãos, enfim, o estimularam que as primeiras gerações de estudantes optassem também por seguir uma carreira profissional em Geografia; tudo isso se deve ao papel desempenhado por alguns mestres europeus aos quais algumas gerações de geógrafos brasileiros devem imensamente (p. 520). Nilo Bernardes destaca a importância de Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980) nesse processo embrionário, assim como Pierre Deffontaine (1894-1978), que chegou ao Brasil um ano depois da visita ao Brasil do então presidente da União Geográfica Internacional, Emmanuel de Martonne, em 193320 (pp. 520-521). Nilo Bernardes: A influência estrangeira no desenvolvimento da Geografia no Brasil.Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 44 (3): 519-527, jul./set. 1982. 19 Após a saída de Pierre Deffontaine, a AGB contou com Pierre Monbeig que chegou em São Paulo em 1935 e foi ele que inspirou a reforma da AGB em 1945 (1982, pp. 521-522). 20 A visita deste, que veio a ser genro de Vidal De La Blache, e a posterior vinda de diversos franceses ao Brasil nos anos seguintes, está a indicar não só um projeto, como já destacamos, do Brasil em direção à Europa na época, como também, o oposto, a Europa, particularmente a França, em direção ao Brasil Um projeto europeu que visava, 18

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Outro geógrafo tão importante quanto Pierre Monbeig foi Francis Ruellan (1894-1975), que ficou de 1940 até 1956 no Brasil, sendo então responsável pela segunda geração de geógrafos no Rio de Janeiro. Cabe lembrar que nessa época o Brasil mal tinha 500 quilômetros de estrada asfaltada e os trabalhos de campo realizados compreendiam várias etapas difíceis, porém, “o conhecimento empírico sobre o Brasil, do Paraná a Roraima, em companhia de Ruellan, foi fundamental para um amplo e rápido desenvolvimento profissional do grupo de geógrafos do Rio de Janeiro” (Bernardes, ibidem, p. 522-523). Outro estrangeiro (alemão) de notável importância foi Leo Heinrich Waibel (1888-1951), que esteve no Brasil durante o final da década de 1940 (1946-1950). Waibel foi contratado pelo Conselho Nacional de Geografia como assistente técnico, tal como ocorreu com Ruellan21. O geógrafo alemão propiciou aos brasileiros uma larga cultura tendo em conta que ele tinha estado na África e na América Central anteriormente (ibidem, p. 523-524)22. Foi uma época prodigiosa, particularmente para o IBGE que elaborava uma série de estudos regionais para efeito de sistematização dos dados censitários e de planejamento regional (ibidem, 524-525)23. Dentro deste espectro de renovação da geografia brasileira, renovação esta vincada no que posteriormente veio a ser chamada de geografia tradicional, cabe a iniciativa do IBGE, com o apoio do governo federal, em realizar o XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, em 1956, o que muito marcou a evolução no mínimo, alocar uma série de talentos que não encontravam fácil alocação naqueles difíceis tempos onde os horrores da I Guerra Mundial ainda não estavam esquecidos e já surgiam preocupantes sinais que a história se incumbiu de demonstrar nas piores formas possíveis poucos anos depois com a eclosão da II Guerra Mundial. 21 Para Pedro Pinchas Geiger a vinda de Leo Waibel para o IBGE, nos fins dos anos 40, representou o início da superação da Geografia Física pela Geografia Humana, nessa instituição. Waibel representa já uma Geografia influenciada pelo pensamento econômico, relacionando a evolução dos sistemas agrícolas aos sistemas econômicos, evocando a teoria de Von Thünen para a distribuição geográfica da produção agrícola (1988, p. 72-73). 22 Esta passagem não deixa de nos incitar a uma reflexão, qual seja, os europeus viajavam! Procuravam e conheciam o mundo. Não podemos deixar de considerar que há todo um projeto de poder, de característica europeia, na profusão desses geógrafos andarilhos; mas a questão é: que projeto tinha o Brasil para os países europeus? Em nome de que projeto tantos geógrafos brasileiros são enviados para a Europa ou Estados Unidos? Que eu saiba, nenhum! A não ser o de gerar elos de transmissão de uma relação de poder pelo qual o que há lá fora é melhor! 23 Sobre esse período cabe uma consulta ao depoimento do geógrafo Miguel Alves de Lima, registrado em www.feth.ggf.br/Geografia.htm. Período Republicano 279

da geografia brasileira. Aliás, na própria sequência dos Congressos Internacionais de Geografia, ele marca o fim de uma fase clássica: a estrutura e a organização dos futuros congressos passariam a ser mais complexas e a emergência de novos temas daí por diante significaria grandes mudanças no campo da pesquisa, atingindo o próprio paradigma da Geografia. Para os brasileiros, segundo Bernardes, o congresso significou diretamente, entre outras coisas, o seguinte: 1) provocou um balanço no conhecimento já acumulado sobre o território e, até mesmo, provocou um avanço nesse conhecimento, consubstanciado na série de nove livros-guias abrangendo todas as macrorregiões do país; 2) pela primeira vez estabeleceu-se uma efetiva e intensa cooperação entre geógrafos dos centros de pesquisa já existentes para a consecução de objetivos comuns; 3) ocorreu a circunstância de que, pela primeira vez, geógrafos do Terceiro Mundo tinham um contato em larga escala com seus colegas mais experientes do hemisfério norte, sendo que para os estudiosos brasileiros, fora dos dois grandes centros, esse contato foi particularmente proveitoso e acelerou a difusão espacial da geografia científica; 4) teve-se consciência de que a pesquisa e o desenvolvimento do campo profissional entre nós já haviam atingido um razoável nível, embora ainda limitados a uns poucos centros; 5) provocou uma aferição dos rumos metodológicos da pesquisa e dos temas preferenciais, rompendo enfoques tradicionais. Bernardes analisando a geografia brasileira observa diferentes fases. O forte predomínio da influência do pensamento da escola francesa lablachiana (a partir de 1934) marcara a primeira fase do desenvolvimento da geografia brasileira, depois dos trabalhos precursores de Delgado de Carvalho. Com os trabalhos de Preston James, mas sobretudo os de Waibel, mais preocupados com a abordagem tópica (sobretudo problemas da utilização da terra) e a ênfase econômica, verifica-se uma segunda fase (1946-1956), sem ter ocorrido, porém, uma eliminação da influência anterior na produção de muitos geógrafos. Esta nova influência resultou de um primeiro contato direto de um pequeno grupo de geógrafos brasileiros que, em meados da década de 1940, estudaram em universidades norte-americanas (Bernardes, ibidem, pp. 525-526). O Congresso Internacional no Rio de Janeiro, por sua vez, pode ser considerado como o evento inicial de uma terceira fase, com a difusão de novos métodos e novos temas, em Geografia Física (Tricart), Geografia Urbana (Rochefort) e Regionalização. Aumentou também 280

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a influência do pensamento da Geografia Social francesa de Pierre George. Esta fase se consubstanciou melhor na década de 1960, marcada pelo desenvolvimento da Geografia Tópica e pela difusão da nova teoria regional, embora com dez anos de atraso em relação a sua reformulação. Ela culminou com os primeiros estudos de regiões polarizadas e outra sobre regiões homogêneas (Microrregiões Homogêneas) do Brasil, realizados no IBGE. Na década de 1960 ocorreu uma busca de interdisciplinaridade a nível técnico; na década de 1970 ocorreu uma abertura interdisciplinar ampla no sentido de conhecer e adotar os progressos de interpretação alcançados pelas demais ciências sociais. Uma quarta fase ocorreu nitidamente ao longo da década de 1970 com a propagação dos métodos quantitativos e a preocupação por teorias e modelos. Ela resultou de uma segunda aproximação com a geografia de alguns centros norte-americanos e foi inicialmente inspirada em Brian Berry (em 1968), e muito influenciada por John Cole. Cabe aqui lembrar a observação de Maurício de Abreu, em texto já comentado, que esse período de sucessão de movimentos de renovação pela qual passou o pensamento geográfico brasileiro, a partir do final da década de 1960, resultou, infelizmente, no aparecimento de uma sequência de posturas niilistas em relação à produção da Geografia Tradicional, que pretenderam reduzir a zero todo um esforço intelectual de mais de 40 anos, como se fosse possível avançar em ciência a partir do vácuo, isto é da ausência de uma base anterior. Tais posturas, embora minoritárias, acabaram produzindo, entretanto, um efeito-demonstração considerável, levando ao ostracismo, por algum tempo, todo um esforço realizado por gerações mais velhas de profissionais da Geografia do Brasil (Abreu, 1994, pp. 42-44).

Finalmente, na década de 1980 (justamente quando Bernardes escreveu o trabalho) representa uma quinta fase, com o advento da geografia radical, ao surgir uma corrente com esta tendência no seio da Associação dos Geógrafos Brasileiros, a partir do 3º Encontro Nacional de Geógrafos, realizado em Fortaleza (1978). A aplicação do marxismo na explanação geográfica foi, inicialmente, resultado de uma reação de alguns ao quantitativismo e a um corpo teórico desenvolvido no contexto da realidade do hemisfério norte. Mas é inegável que esse movimento veio se coadunar com forte orientação de grupos de especialistas das demais Ciências Sociais, as quais não passaram pelo Período Republicano 281

quantitativismo em forma análoga à Geografia. Cabe lembrar, contudo que, como as demais correntes do pensamento geográfico que marcaram as fases anteriores, esta também é bastante realimentada pela atuação de grupos acadêmicos do hemisfério norte24. Outro geógrafo brasileiro com alentada produção sobre a geografia brasileira é Manuel Correia de Andrade. Nos pautaremos principalmente pelo artigo “A construção da geografia brasileira” publicado na Revista RA’EGA, em 1999, pela editora da UFPR25. O artigo mostra que à medida que crescia a conquista de território ia se consolidando uma literatura sobre o Brasil; além desses trabalhos explanativos do que o país dispunha, veio uma série de estudos interpretando aspectos do Brasil, tais como os de Caio Prado Júnior, Oliveira Vianna, Manuel Bonfim e outros. No entanto, a geração de um coletivo detidamente identificado com a geografia científica veio a ser formada paulatinamente ao longo das primeiras décadas do século XX. Mas eram contribuições esparsas que envolviam Raimundo Lopes, Agamenon Magalhães, Everardo Backauser; mas coube a Delgado de Carvalho, a partir de seu livro O Brasil meridional (1910) a definição de uma preocupação mais sistemática com ensino e metodologia de pesquisa em Geografia. O fundamental foi o surgimento de uma geografia hoje chamada clássica, tradicional, mas que na época, década de 1940, era considerada científica; esta decorreu de uma necessidade de conhecimento e mapeamento do território brasileiro combinado à ação dos estrangeiros (Pierre Deffontaines, Pierre Monbeige, Francis Ruellan, Leo Waibel) que suscitou aí uma geração de brasileiros: Orlando Valverde, Aziz Ab’Saber, Pedro Geiger, Pasquale Petrone, Nilo e Lysia Bernardes etc. Em seguida, a partir de 1964, surgia a geografia teorética, com influência da UNESP, campus de Rio Claro, e na UFRJ os geógrafos passaram a criticar os franceses e valorizarem os anglo-americanos. Dessa geração sobressaíram Antônio Christofoletti, Alexandre Filizola Diniz, Pedro Geiger, Speridião Faissol, entre outros. Pedro Pinchas Geiger em “Industrialização e urbanização no Brasil, conhecimento e atuação da geografia”, artigo publicado na Revista Sobre a geografia radical remetemos aos nossos dois trabalhos, a saber: www.feth. ggf.br/GeografiaCrítica.htm e www.feth.ggf.br/Geocrítica.htm. 25 Há outras obras do autor que não podemos nos furtar, a saber: Tendências atuais da Geografia brasileira (1986);O pensamento geográfico e a realidade brasileira (1991); Pierre Monbeig e o pensamento geográfico no Brasil (1994a); Uma geografia para o século XXI. Campinas (SP): Ed. Papirus, 1994 (b). 24

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Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, vol. 50, n. especial, tomo 2: 5984, 1988, observa que o Estado precisava de pessoas que operassem de forma mais ampla e rotineira as atividades estatísticas, cartográficas e geográficas (p. 61). De Martonne, presidente da UGI, solicitou que o Brasil entrasse nesta, e o Conselho Nacional de Geografia serviu de instrumento a esta adesão (p. 62)26. Nas fases iniciais do IBGE, a alta cúpula dirigente da entidade era ligada às instituições geográficas mais tradicionais, mas não tinha grande conhecimento técnico, “... no entanto, é interessante notar que, mesmo tendo nascido na ditadura, a estrutura organizacional do IBGE previa amplas participações: considerado órgão sui generis , o IBGE foi fundado em cima de um convênio reunindo Governos Federal, Estadual e Municipal; CNG e Conselho Nacional de Estatística (CNE) compreendiam corpos deliberativos, os diretórios centrais, formados com representantes de ministérios; havia diretórios regionais, para os estados; e assembleias regulares que propunham e votavam resoluções. A grande massa envolvida na condução do CNG não era de geógrafos.” (Ibidem)

É nesse contexto que a cúpula do IBGE tornou-se, no seu início, um centro de debates sobre os temas gerais da gestão do território, com verdadeira participação interdisciplinar. As tertúlias regulares recebiam pessoas que hoje seriam designadas de cientistas políticos, inclusive altas figuras da República, como o ministro João Alberto, ou o coronel Lysias Rodrigues, tratando de assuntos que se classificariam de geopolítica ou planejamento (p. 64)27. Porém, nessa época surgiu um novo marco institucional, a Fundação Getúlio Vargas, e se acelerou a ascensão dos economistas como Este trabalho não deixa de ser um desdobramento do mesmo autor, intitulado “Evolução do pensamento geográfico brasileiro: perspectivas ou a Geografia brasileira da industrialização por substituição de importações. A oitava economia do capitalismo”, editado em 1980. 27 Tal relato lembra o teor das tertúlias promovidas pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro com a presença do então Imperador D. Pedro II e seu genro, conde D’Eu, sobre o Brasil. IBGE, neste sentido, é a clara expressão da elite dirigente deste país que, para se viabilizar enquanto elite dirigente, desenvolve melhor seu conhecimento sobre a imensa geografia do país. E provavelmente, um dos “segredos” de sua estabilidade, que nunca conheceu, até o momento, momentos de ruptura, está nesta proficiência, num saber particularmente estratégico, dada as características do Brasil. Na nossa avaliação o IBGE vem a ser o IHGB e a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro atualizados e articulados a um projeto de poder. 26

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assessores do poder. A posição privilegiada do IBGE seria perdida e foi transferido para o Ministério do Interior (ibidem, p. 64). Cabe observar, segundo Geiger, que antigamente no IBGE a Seção de Estudos era a própria Geografia; mais tarde essa seção passou a ser caracterizada como Departamento de Geografia (p. 74). Para Geiger, com os militares, os economistas assumiram de vez o domínio do sistema de planejamento do país e, sob orientação dos economistas, o IBGE não se restringe mais ao setor de estatística, cartografia e geografia, tornou-se um órgão interdisciplinar com economistas, sociólogos, antropólogos, demógrafos e, naturalmente, analistas de sistemas (p. 64-65). Nesse novo quadro político institucional, o IBGE passou a colaborar com os economistas, que por sua vez desenvolviam os métodos da econometria. O IBGE devia fornecer mais rápido estatísticas mais precisas, mais sofisticadas, bem como os mapas dos caminhos do funcionamento dos sistemas (p. 77). Foi através dessa ligação com o planejamento que se desenvolveu a Geografia Quantitativa do IBGE, sendo a outra porta de entrada no país, o Departamento de Geografia da USP, em Rio Claro. Uma vez no México, Pedro Pinchas Geiger apresentou um trabalho no Congresso Regional da UGI e foi procurado por John Cole, e segundo Geiger foi este que trouxe a Quantitativa ao Brasil – a partir de um contato com o IBGE (p. 77)28. Para Geiger, desde o início de sua fundação, o IBGE tomou o lugar do grande centro acadêmico, de pesquisa e de editoração, valendo-se das relações com os grandes centros internacionais, razão da origem do CNG, e dos recursos federais. A Revista Brasileira de Geografia, iniciada em 1939, liderou as publicações nacionais do gênero. Deste modo, o IBGE substituiu a falta de maior atividade científica das faculdades de Filosofia (p. 65-66). Ele enviava funcionários para se aperfeiçoarem no exterior e desenvolvia também atividades didáticas, reciclando professores universitários nos Cursos para Professores, criando uma Escola de Estatística e promovendo cursos de Cartografia. O IBGE promoveu a vinda de geógrafos notórios do exterior, como Leo Waibel, Pierre George, sendo que em 1956 sustentou a realização do Congresso Internacional de Geografia da UGI no Rio de Janeiro. No mundo inteiro, era considerado como algo de extraordinário, avançando no tempo, um instituto de pesquisas e de formulação de estratégias espaciais e ecológicas. Até os anos 70 o IBGE foi o principal centro de adoção e difusão Mais observações sobre a relação do IBGE, atualmente FIBGE, com a geografia, veja: www.feth.ggf.br/FIBGE.htm. 28

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de todas as novas ideias e métodos surgidos na geografia mundial. Foi a porta de entrada de corrente da Geografia Sistemática, como a de Waibel, ou P. George; da Geomorfologia Bioclimática de Tricart ou da Geografia Quantitativa de Cole. Compensava, deste modo, a perda da posição relativa que tivera junto ao poder. No entanto, entre as diretrizes do governo militar, constava a de ampliar o papel da universidade como centro de pesquisas e de pós-graduação. No campo geográfico surgiram vários desses centros, que passaram a promover maior produção e editoração de estudos e intensificar relações diretas com o exterior. Paralelamente, atendendo a outra diretriz, a de minimizar superposições, a Geografia do IBGE perdeu sua posição relativa de centro do sistema de atividades acadêmicas. Porém, durante o regime militar, a manifestação política atingiu as organizações e promoveu-se uma grande batalha contra o IBGE, tido como introdutor dos métodos quantitativos e sua identificação com posturas autoritárias do regime. Aliaram-se a esse movimento os que não perdoavam a invasão do IBGE em searas eminentemente acadêmicas com inovações (p. 67)29. Assim, enquanto crescia a universidade, o quadro de geógrafos do IBGE praticamente estagnara e perdera posição hierárquica no organograma institucional, mas a mesma fonte de recursos que sustentava o IBGE promovia a universidade. É de se perguntar se razões de competição corporativa, inconscientes certamente, não se encontravam embutidas na verdadeira guerra movida durante algum tempo na arena da AGB. Não seria este o motivo de se querer distinguir como professores os da universidade, e como tecnocratas os geógrafos do IBGE? (ibidem, p. 68)30. Parece-nos que havia um conflito de índole institucional entre universidades versus IBGE na luta pela hegemonia do discurso... Não seria universidades paulistas versus IBGE? E internamente, na instituição, havia os não geógrafos decididos em minorar de vez a importância da Geografia enquanto expressão de um discurso de interpretação do país. Como sempre, os adversários dos geógrafos brasileiros encontram na divisão que há entre estes os melhores aliados para lograr seus objetivos. Para Eli Penha, por sua vez, no início dos anos 70, quando, sob regime militar tecnocrático, o Brasil passa pelo segundo ciclo de industrialização e urbanização, a própria validade da permanência do IBGE, como órgão autônomo responsável por estatísticas, geografia e cartografia, foi questionada nas altas esferas do Ministério do Planejamento. Particularmente eram exigidos novos ritmos na investigação estatística, novas variáveis na pesquisa, novos indicadores na apuração (1993, p. 13). 30 É interessante a pergunta de Pedro Geiger, porque ela embute outra indagação, a saber: não seria o caso de se imaginar uma aliança entre a geografia crítica, revolucionária (etc.) e a ascensão da universidade na produção do saber geográfico? 29

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Enquanto isto, para Pedro Geiger, não soube a AGB criar infraestrutura administrativa profissional, nem manter capacidade editorial compatível com a sua dimensão, à exceção da seção local de São Paulo. Ousa-se pouco criticar tal situação, mas as citações de trabalhos apresentados nas assembleias, e são muitos de qualidade, diminuem cada vez mais. Com a Nova República, em meados da década de 1980, segundo Geiger, abriu-se a atividade partidária, arrefeceu a atividade política explícita em organizações de caráter científico, como no caso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No entanto, a questão da AGB, hoje, não reside em manifestações políticas, mas que, em vez de ter direções comprometidas com postura pública apartidária, que democraticamente executasse resoluções surgidas e aprovadas a partir da Assembleia, essas direções, ultimamente, tornam públicas as suas posições partidárias, se envolvem na condução de determinadas resoluções, na boa tradição populista. Deste modo, perde o caráter de entidade científica engajada, para procurar parecer uma entidade política com atividades científicas (ibidem, p. 68). Numa avaliação preliminar, o IBGE é o grande divisor de águas neste país. Seja substituindo/absorvendo as antigas atividades da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, seja incorporando/legitimando a utilização da escola francesa e até rompendo com ela ao adotar uma visão mais economicista (seria uma espécie de transição) com Leo Waibel, e até mesmo a geografia crítica teria uma ascensão numa luta de cunho corporativo entre os membros das universidades com os do IBGE. E esta ascendência do IBGE decorreu do fato do mesmo expressar, durante um período, a elaboração de um projeto nacional.

O que postula a geografia tradicional? De início, uma dúvida: será que a geografia tradicional postula alguma coisa, ou fizeram-nos acreditar que ela propunha algo? Acredito que o que gera a geografia tradicional é a geografia quantitativa que no seu afã em reduzir tudo o que havia até então, compungindo a todos que ela seria melhor e, como comparação, elabora a mais violenta redução do que seria a geografia até então praticada, para então todos pensarem: “Oh, a que chegou é a melhor!”31. Uma maliciosa pergunta: quem da geografia quantitativa brasileira gerou um clássico comparável aos estudos feitos no Brasil por Pierre Monbeig ou Pierre Deffontaine? 31

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Enfim, o drama da chamada geografia tradicional foi o de se considerar toda uma produção diversificada, plural, afeita a tantos enfoques e temas, como pertencente a uma coisa só, a uma matriz só. E, ainda, como a ideia de tradicional desperta certa, diríamos, repulsa, particularmente entre os mais jovens, a produção que tinha seu slogan passou a ser soberanamente desvalorizada. No entanto, há alguns aspectos que poderíamos considerar como próprios da chamada geografia tradicional e não de qualquer outra escola que tenha se intitulado enquanto tal. Uma grande marca da chamada geografia tradicional é a deferência e a importância destacada em favor do trabalho de campo. Daí porque a minha simpatia pela assim considerada escola tradicional32. Porém, pesa sobre a geografia tradicional a má fama de ser descritiva. Ledo engano!!! Ué, não era descritiva? Não! Ela era tudo! Era descritiva, mas também teórica. Quem já teve a oportunidade de ter acesso à obra de Friedrich Ratzel escrita em italiano – refiro-me à Geografia dell’uomo – é testemunha do quanto a teoria envolvendo a importância do meio ambiente está lá desenvolvida, e os autores que a utilizam são referências de outras áreas que não a da Geografia. Quando, por exemplo, aproximamo-nos da polêmica entre Emille Durkeim e Vidal de La Blache quanto à importância da consideração do meio geográfico para se compreender o fato social, percebe-se estar diante de uma polêmica que traz profundas consequências na própria concepção da sociologia. Richard Hartshorne, por sua vez, notório historiador do pensamento geográfico, destaca o quanto foi importante Immanuel Kant, um professor de geografia, além de filosofia, na própria produção geográfica. A rigor, entendo que a penetração da filosofia na geografia deConvém lembrar que a FIBGE ao comemorar 50 anos de sua revista – Revista Brasileira de Geografia – reproduziu como trabalhos clássicos somente os relacionados à chamada geografia tradicional. 32 No seminário sobre Espaço e Cultura realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ), foi destacado pela antropóloga Ana Maria Daou, da UFRJ, a importância de se resgatar, conhecendo-o, o acervo fotográfico produzido pela FIBGE entre 1939 a 1968. Seu trabalho teve por título “Aiconografia da paisagem brasileira” e foi apresentado no dia 28 de setembro de 2006 durante o referido seminário promovido pelo Departamento de Geografia daquela universidade. Período Republicano 287

pende da estatura intelectual daquele que a realiza, mas também das circunstâncias que norteiam a sua produção. A geografia trata do espaço, o que significa dizer que sua produção está irremediavelmente vinculada a um projeto de poder. Espaço é poder, o seu conhecimento, a sua representação, a sua gestão, necessariamente, de forma bem imediata, amarra, ou desfaz, relações de domínio. E este caráter imediatista, utilitarista, da geografia, sempre a fez, de um lado, cultuada, e, de outro lado, escondida. A geografia é para poucos o seu exercer!

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Geografia teorética, um registro1 Geografia quantitativa no Brasil, uma curta revolução, porém, uma revolução, não só quantitativa, mas acima de tudo epistemológica. (Em memória da professora Lysia Maria Cavalcanti Bernardes, uma geógrafa que poderia pender para a geografia teorética, mas não para sua quantificação.)

Introdução Antes que estranhe o título, a ideia que percorre o texto é a de que tanto a evolução da geografia crítica no Brasil, quanto a da geografia cultural posteriormente, tiveram um decisivo avanço a partir do que a geografia quantitativa quebrou em termos de produção geográfica dominante. No caso brasileiro, o significado da geografia quantitativa é muito mais profundo do que nos parece indicar os historiadores da geografia crítica brasileira. A geografia quantitativa significou uma alteração do próprio sentido de conceber a geografia, assim como uma mudança axiológica quanto à forma de se entender o valor dela mesma. Muito do que se deu de transformação na chamada geografia brasileira nos últimos anos, os pressupostos pela busca por novas concepções teóricas e horizontes metodológicos, foram semeados pela geografia quantitativa! Assim, em vez de acentuarmos as disparidades ao compararmos a geografia quantitativa, crítica e cultural, enfatizamos interfaces entre elas muito mais amistosas do que podemos imaginar2.Muito do que a Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 6, n. 12, julho/dezembro de 2007. 2 Agora, isto observo no plano do fluxo de uma ruptura (geografia quantitativa) que leva à outra (geografia crítica); porém, em termos pessoais, o conflito entre as duas correntes no Brasil foi aberto. Divergências estas muito mais calcadas em buscas de hegemonias em postos universitários, e na própria Fundação  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, controle da Associação de Geógrafos Brasileiros, configuração de um novo modelo de livro didático em Geografia, etc. Enfim, por motivos muito mais prosaicos, comezinhos mesmos, configurou-se um verdadeiro abismo entre a geo1

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geografia crítica veio a ser no Brasil, e mais tarde a própria geografia cultural, decorreu do que a própria geografia quantitativa ajudou a dinamitar em seu respectivo tempo3. Foi com grande satisfação que realizei este texto, pois ele serviu para enterrar uma visão preconceituosa que aspirei na minha graduação (realizada na segunda metade da década de 1970 na Universidade Federal do Rio de Janeiro), segundo a qual tudo que haveria de ruim se chamava geografia quantitativa4! Seja porque ela representaria a encarnação de uma geografia afeita a otimizar a expansão capitalista, seja porque, convém não deixarmos de considerar este aspecto, a matemática assustava as pessoas. Assim, sem desconhecer estes dois aspectos, cabe reabilitarmos a geografia quantitativa não pelo que lhe foi acusada realizar, mas também por ter realizado mudanças que vão além do aspecto estritamente pragmático. Para tanto, foi particularmente providencial encontrar as anotações realizadas em sala de aula durante o curso Teoria da Geografia, promovido pela professora Lysia Maria Cavalcanti Bernardes no primeiro semestre de 1977 na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Passei boa parte do tempo gasto na produção deste texto resgatando estas notações. Naquela oportunidagrafia quantitativa e a crítica no Brasil , embora com parentesco comum naquilo que souberam fazer bem, a saber, a arte da implosão. Curiosamente, este grau de animosidade não se deu, no Brasil, entre a geografia crítica e a geografia cultural. Talvez porque os eventos que atingiram a queda do Bloco Socialista foram simplesmente terríveis, muitos se desiludiram com a força que o marxismo poderia vir a ter nas mudanças históricas; assim, o caráter combativo do geógrafo marxista foi bem amenizado, seja, também, porque a geografia cultural no Brasil, pelo menos até o momento, não configurou um projeto de poder adentrando na AGB, nos livros didáticos etc., tal como ocorreu naqueles finais de ano de 1970 em diante pelos geógrafos críticos. 3 Sobre a geografia crítica e cultural no Brasil, veja, respectivamente, www.feth.ggf.br/ GeografiaCrítica.htm e www.feth.ggf.br/Geocrítica.htm, assim como  www.feth.ggf. br/Cultgeo.htm. 4 Para alguns geógrafos planejadores não estava em questão preservar ou lutar contra o capitalismo, mas sim de tentar dar soluções a problemas que, se fossem esperar a dissolução do sistema, muito pouco haveria de ser feito em favor de pessoas que sofriam precariedades. Isto se deu tanto na reconstrução da Europa no pós II Grande Guerra, mas, particularmente, antes da guerra, durante as reformas promovidas pelo presidente norte-americano Roosevelt, e seu plano conhecido como New Deal, que trouxe uma versão diretamente geográfica ao promover uma ampla reforma do Vale do Tennessee, que abrangeu 30 obras, visando a regularização dos rios, navegação, produção de eletricidade, desenvolvimento agrícola, industrial e turístico. Pelo Tennessee Valley Authority foi consagrado o desenvolvimento regional com direta ação de geógrafos, destacadamente Edward E. Ackerman, que produziu uma série de artigos de ordem prática sobre geografia e planejamento (Labasse, 1973, pp. 616-617). 292

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de, ela tratou da geografia quantitativa naquilo que mais lhe chamava a atenção: a profunda mudança na forma de conceber o que seria uma pesquisa geográfica. É interessante este resgate, pois as observações foram colhidas antes do aparecimento da geografia crítica brasileira; assim, fica uma leitura menos propensa a atacar a geografia quantitativa, mas sim de compreender o que se passava. Por último, cabe destacar que este artigo não é sobre uma memória de algo ultrapassado; a chamada geografia quantitativa continua, há toda uma forma atual através do Sistema de Informação Geográfica (SIG). O sensoriamento remoto, o GPS etc., são formas de análise da superfície terrestre que estão a exigir conhecimentos técnicos e matemáticos. Mas desta fase mais atual não trato; faço sim uma análise que corrobora uma visão menos preconceituosa da geografia quantitativa.

Primeiras impressões É impressionante o volume de informações sobre geografia quantitativa no Brasil, embora seu período de vigência hegemônica tenha sido muito pequeno. Uma situação bem diferente da encontrada ao analisarmos a geografia cultural no Brasil. No caso da geografia quantitativa, arrisco a dizer que houve um projeto de Estado, ou, um projeto que surgiu sob os auspícios do Estado brasileiro, já que os promotores da corrente encontravamse nele. Destaco especificamente o papel do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no episódio, senão a instituição, ao menos destacados geógrafos da mesma. O ponto de partida da geografia quantitativa brasileira foi dado pelo IBGE5. Na Revista Brasileira de Geografia há preciosos registros do que foi feito de geografia pelo IBGE. Por exemplo, temos um editorial publicado no ano 32, nº 1, de 1970, com os seguintes dizeres: “O Instituto Brasileiro de Geografia da Fundação IBGE vem, desde cerca de dois anos, voltando as suas atenções para a utilização de técnicas quantitativas nas análises espaciais das diversas regiões brasileiras e nos numerosos tópicos da geografia sistemática... Os contactos com geógrafos estrangeiros, pioneiros na adoção de posições semelhantes, deram aos geógrafos do Departamento de Geografia a possibilidade de iniciar o processo no Brasil e, neste sentido, constituiramse como extremamente proveitosas as visitas dos geógrafos professor Brian J. L. Berry, da Universidade de Chicago; professor Howard Gauthier, da Universidade de Ohio; e profesor John P. Cole, da Universidade de Nottingham, o último dos quais, tendo permanecido no Brasil por quatro meses consecutivos, deu um grande impulso aos trabalhos quantitativos do Departamento de Geografia. Desta instituição, chama a atenção para o fato de que praticamente todos os geógrafos da instituição participaram do processo; para minha surpresa, isto inclui a atuação de 5

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Mas o domínio deste movimento teve pouca duração, logrou sucessores, a sua capilarização foi, inicialmente, impactante, porém, de pouca duração. Arrisco a observar que a geografia quantitativa teve seu período maior entre o final da década de 1960 e o final da década seguinte6. O baixo desdobramento da geografia quantitativa no Brasil é por mim interpretada como decorrente de dois processos, um interno, e outro externo. O externo, que vem a ser mais facilmente objeto de consenso, é a projeção da geografia crítica que aparece no cenário brasileiro atacando sistematicamente a quantificação na geografia. Porém, há outro decisivo que afeta a própria geografia no IBGE, ou seja, pelo que foi possível notar tanto no artigo de nossa autoria em www.feth. ggf.br/FIBGE.htm e no de Miguel Alves de Lima em www.feth.ggf.br/ Geografia.htm, a geografia enquanto campo de conhecimento sofreu Pedro Pinchas Geiger que pouco é lembrado no desenvolvimento da geografia quantitativa no Brasil. Cabe aqui frisar que Pedro Pinchas Geiger, um senhor octagenário atualmente identificado com uma abordagem marxista da sociedade, procurou bem desempenhar uma função enquanto geógrafo do IBGE no intuito de melhor municiar a equipe de trabalho e prover os meios necessários para pesquisa; neste sentido há obras suas encontradas na Revista Brasileira de Geografia, na qual constam  resenhas (tais como: Comentário bibliográfico: factorial ecology of Metropolitan Toronto de Robert A. Murdie),  artigos (tais como: Cidades do Nordeste. Aplicação de “factor analysis” no estudo de cidades nordestinas), e comentários (tais como: Renovação na Geografia) que divulgam a geografia quantitativa. Naturalmente que sua produção não chega a fazer sombra a de Spiridião Faissol, principal promotor desta linha de geografia na instituição enquanto geógrafo. 6 Na expansão da geografia quantitativa brasileira temos o curso de Geografia em Rio Claro, no Estado de São Paulo, que contou com geógrafos do IBGE, a saber: Maria Cecília França, doutora Elza Coelho de Souza Keller, e doutor Linton Ferreira de Barros, que afastaram-se dos cargos que ocupavam para assumir, em regime de tempo integral, as cadeiras de Geografia do Brasil, Geografia Física, Geografia Humana e Cartografia e Topografia, respectivamente. Mas, comparado ao IBGE, o curso de Geografia em Rio Claro teve um caráter mais militante com direito a ter curso de pós-graduação relacionado a essa escola, inclusive fundou uma associação, a Associação de Geografia Teorética (AGETEO), fato ocorrido em março de 1971. Embora sediada em Rio Claro, a AGETEO possui vários associados brasileiros e estrangeiros, e publica dois periódicos semestralmente, a saber: o Boletim de Geografia Teorética e a Revista de Geografia. Em janeiro de 1976, foi criada a Universidade Estadual Paulista (UNESP), que passou a congregar vários institutos isolados de ensino superior, o que incluiu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, onde o Departamento e o Curso de Geografia ficaram abrigados no Instituto de Geociências e Ciências Exatas, junto com os cursos (e respectivos departamentos) de Matemática e Física. As informações acima foram obtidas em 21/05/2007 no endereço virtual : www. rc.unesp.br/igce/grad/geografia/historico.html 294

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uma sensível alteração na própria entidade. A FIBGE passou a ser um órgão gerador de dados e não tanto interpretador, fortaleceu-se muito mais a dimensão da coleta e sistematização do que propriamente formuladores de políticas, estas destinadas ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Enfim, aquela fase de ouro, como destaca Miguel Alves, de formar um retrato do país, cedeu espaço para uma tabela, de dados. O fim do prestígio do Conselho Nacional de Geografia coincide com o aparecimento da Geografia Quantitativa7. A tese que defendo é que esta entidade do IBGE teve seu fim precipitado pela ascensão da geografia quantitativa. O então conhecido CNG corporificava no IBGE a matriz europeia (particularmente francesa) da geografia que veio a sofrer um forte abalo com a quantificação da disciplina. Desde então ocorreu uma mudança de tonalidade na produção ibgeana de geografia. A produção tornou-se impessoal. Não entrava mais o papel do mestre, do mentor, mas sim o do método, da análise fatorial etc. Não importava mais o catedrático, mas sim a equipe que passou a ter outro mestre:  o computador. Não importava a formação de quadros pensantes, mas de técnicos. Perdeu-se a dimensão da pessoalidade no ato de conhecer e pesquisar; o que lidera os passos, de quem fosse idoso, maduro ou jovem, é o número encontrado nas tabelas ou nas equações. Quando nos atemos aos impactos da geografia quantitativa na geografia enquanto disciplina é impressionante o seu efeito. Se temos uma avaliação da mesma a partir de uma perspectiva marxista, chegaremos a observar que a geografia quantitativa significou mais do mesmo, porém, sou levado a considerar que a geografia quantitativa significou uma forte mudança cognitiva – conforme Thomas Khun (1978). É a partir dela que as demais evoluções da crítica e da cultural se assentam definitivamente.

Alô, juventude! Este tema vale uma dissertação! Sobre o tema, ver, ALMEIDA, Roberto Schmidt: A geografia e os geógrafos do IBGE no período 1938-1998, 2 vols. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2000. Orientação de Lia Osório Machado; Jayci de Mattos Madeira Gonçalves: IBGE: Um retrato histórico. Rio de Janeiro: FIBGE, 1995. Há ainda: Eli Alves Penha: A criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado Novo. Rio de Janeiro: FIBGE, 1993. 7

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Thomas Khun em A Estrutura das Revoluções Científicas1 Como recurso para trabalharmos as indagações acima, recorreremos à contribuição de Thomas Khun em A Estrutura das Revoluções Científicas. Através dele não intentamos traçar um fichário sobre o seu pensamento, mas sim a partir de suas observações construir um cenário de como a ciência é conceituada como tal. O trabalho de Thomas Khun está centralizado em alguns ramos da ciência como o da astronomia (comparando geocentrismo e heliocentrismo), química (ao tratar da concepção do flogisto e a descoberta do oxigênio), física (a composição da luz, a teoria eletromagnética, a teoria mecânica, a teoria da relatividade e a teoria atômica) e sobre alguns cientistas (Ptolomeu, Copérnico, Lavoisier, Dalton, Maxwell, Isaac Newton e Albert Einstein, entre outros) para pensar a constituição e mudanças de paradigmas na ciência. No entanto, ele não chega a ter nas Ciências Humanas material de apoio para pensar as revoluções científicas. Sobre as ciências humanas ele detecta uma séria dificuldade para se achar um consenso quanto aos paradigmas que orientem os trabalhos; ele, na verdade, não afirma ser possível encontrar nestas ciências paradigma, ele deixa a questão em aberto (pp. 13, 35). Além deste aspecto, embora considere relevante o papel do avanço tecnológico e das condições socioeconômicas como êmulo da ciência, como fatores externos, ele dá pequena importância aos mesmos na justificativa de que “o papel desempenhado pelos fatores externos é de menor importância apenas em relação aos problemas discutidos neste ensaio” (p. 15, e vide nota 4 na mesma página). Thomas Khun procura compreender as rupturas que ocorrem nas ciências, não correspondendo à visão usual de que o conhecimento tem um caráter cumulativo, ele percebe que as transformações no campo científico ocorrem através de rupturas que trazem mudanças radicais nos paradigmas então adotados. O caráter cumulativo do conhecimento ocorre no curso normal das investigações onde há uma hegemonia de um paradigma, é a ciência normal – uma atividade que consiste “em solucionar quebracabeças, é um empreendimento altamente cumulativo extremamente A parte que se segue faz parte de um trabalho intitulado “Geografia Humana: uma ciência? (Uma proposta)” entregue à professora Bertha Koiffman Becker em função de uma cadeira promovida pela professora no curso de doutorado em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1995. 1

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bem sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento científico” (p. 77), porém quando ocorre um acúmulo de dívidas e fatos novos que o mesmo não explica, surgem concepções rivais propondo-se a responder as novas dúvidas. A ciência é vista como um campo onde seu desenvolvimento tem nos estágios preliminares o conflito entre diferentes concepções de natureza. A resolução desses conflitos não ocorre exclusivamente devido à competência intrínseca dos argumentos apresentados, há outros aspectos que se destacam. Ele chama atenção, neste sentido, para o papel da equipe, da coesão dos cientistas, da sua capacidade em articular-se e persuadir os demais de que a sua concepção é a mais eficiente (p. 128). As revoluções científicas surgem como episódio de desenvolvimento, cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior (p. 125). O paradigma informa ao cientista que aspectos da natureza considerar, assim como a maneira como estes se comportam. É como se fosse um mapa de pesquisa, sem o qual a observação estaria mergulhada num mundo complexo e sem expectativa de vir a gerar um conhecimento passível de ser acumulado. O paradigma compreende teoria, métodos e padrões científicos. Deste modo, quando o paradigma é rompido, há uma mudança na legitimidade quanto aos problemas e as soluções consideradas (143-144). O paradigma não tem apenas função normativa, mas também cognitiva e a mudança de paradigma significa a mudança de uma concepção de mundo. Em períodos de revolução científica, a percepção do cientista sobre o seu objeto de estudo passa por uma reeducação, há uma alteração da forma (Gestalt) de se perceber o objeto “embora o mundo não mude com uma mudança de paradigma, depois dele o cientista trabalha em um mundo diferente” (p. 157). É uma perspectiva epistemológica segundo a qual a ciência não deixa de ser uma interpretação humana de determinados fatores: A ciência não se ocupa com todas as manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona aqueles que são relevantes para a justaposição de um paradigma com a experiência imediata, a qual, por sua vez, foi parcialmente determinada por esse mesmo paradigma (p. 162).

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O discurso científico prima por certa unidade, pois o seu enunciado está permeado por procedimento metodológico e teórico que orienta a seleção, avaliação e crítica das experiências realizadas. A ausência de parâmetros necessariamente leva a uma série de divergências que pouco facultam a compreensão mútua e o caráter cumulativo do conhecimento. Mas, se o paradigma atua como o grande norte da pesquisa, o que advém de seu uso é uma construção sobre o real factível de ser remodelado por um novo paradigma. O que abre a indagação da ciência ser algo que chegue de fato à verdade: será que as mudanças dos paradigmas significam uma tendência evolutiva para a compreensão da realidade? Ele percebe que as mudanças de paradigma não têm uma aproximação acumulativa de chegar a verdade; ocorre sim na sucessão dos diferentes paradigmas, de um determinado campo de análise, uma não sucessão coerente de desenvolvimento, em termos de ajusteentre a ontologia de uma teoria e sua contrapartida “real” na natureza; há sim, no processo de evolução dos paradigmas alguns aspectos da realidade destacados e outros que perdem significado – mas que podem vir a ser valorizados pelo paradigma seguinte, como foi o exemplo da Teoria da Relatividade de Einstein estar mais próxima da Teoria de Aristóteles (pp. 213, 235). Assim, a ciência é permeada por um paradigma que a conduz, indica os aspectos da natureza a considerar, assim como os mesmos se comportam. O paradigma compreende teoria, métodos e padrões de procedimento na pesquisa. Ele, enfim, dá legitimidade aos problemas e soluções encontradas durante os trabalhos. Pelo paradigma há, portanto, uma determinada concepção de fazer ciência. Pelo paradigma há a formatação de certa coesão nos discursos, achados e formas de comunicação das descobertas. No entanto, o paradigma não pode ser confundido como sendo a própria realidade; ele é um norte da pesquisa diante de um sem número de fenômenos diante dos quais há que se fazer uma seleção para construir o conhecimento humano.

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Teoria da Geografia, segundo a professora Lysia Maria Cavalcanti Bernardes2 Realizo aqui uma sistematização conceitual da geografia quantitativa segundo anotações de sala de aula obtidas junto à professora Lysia Bernardes quando esta ministrou a disciplina Teoria da Geografia  no primeiro semestre de 19773. Da entrada do século XX até a quinta década ocorreu uma alteração no conceito de geografia. Até o final daquele período destacou-se Hartshorne: americano que valorizava a descrição cognitiva, que afirmava que a geografia apurava racionadamente, ordenamente, descritivamente, as características da Terra4. Ao longo do curso, como  poderá ser constatado, a professora diminuiu a regularidade em suas aulas dado a compromissos na Secretaria de Planejamento do Estado do Rio de Janeiro. Este resumo deve ser visto como uma homenagem póstuma a uma professora que encantou uma turma que acabara de entrar na universidade (a UFRJ) e viu na mesma novos horizontes de como ver a Geografia. 3 Embora não fosse professora efetiva da UFRJ, a professora Lysia proporcionou um curso que se mostrou decisivo para quem ainda encontrava-se aturdido com a escolha profissional adotada, já que a Geografia que se tinha na época era aquela encontrada no segundo grau. Assim, o curso da professora, esposa de Nilo Bernardes (geógrafos da FIBGE), serviu para ampliar o leque das indagações que um campo de conhecimento como a Geografia pode vir a alcançar. 4 A geografia, ao início do século XX, apresentava uma descrição da crosta; com as divisões, botânica, metereologia, astronomia. Quem veio a se destacar nesta fase foi justamente Richard Hartshorne que buscou sua inspiração em Kant, o que contradiz a ideia de que a geografia pouco dava importância à teoria. Acredito, o autor deste texto, que falta, sobretudo, uma melhor compreensão de como a mesma se apresenta neste campo disciplinar aparentemente tão factualista. Voltando a Hartshorne na interpretação da professora. No campo das definições, há três ideias, a saber: a ciência cronológica, a ciência corológica e a regional. A cronológica estudaria os diferentes campos através do tempo; a corológica estudaria aquilo que ocorre em termos espaciais, achava que tudo o que ocorre na crosta é geografia. Estuda um fato único e vê nele suas relações. Há ainda o regional, ou seja, estudava as diferenciações do espaço. Hartshorne não se preocupava apenas com as descrições das mudanças, dos fenômenos, mas também com o entendimento do fato de “ocorrer mudança”. No tempo de Hartshorne vigoravam duas diretrizes: a sistemática e a regional. Após a II Guerra Mundial, a preocupação com a definição do estudo do fenômeno, especificando-o, se diluiu devido à conscientização de haver fatores que se interdependem, não podendo o estudioso estudar apenas um só fato. Com essa conscientização começou a quebrar o receio que havia de não se verificar os fatos circundantes, se resumindo a conhecer o lugar. Com o surgimento da mudança conceitual da década de 1950, Hartshorne foi muito atacado e procurou se defender na obra “Questões sobre a natureza da geografia”, chegando a afirmar que a geografia não era matéria que procuraria uma racionalização dos fatos, mas sim as peculiaridades do lugar que seriam comparadas com outras de outros 2

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Cholley: francês, dizia ser a geografia uma visão racional da Terra. Nesse pequeno período de cinco décadas, a distribuição do homem foi uma das maiores preocupações dos geógrafos. Também nesse período, a restrição com que se fazia a pesquisa era notória; faziam-na a partir de uma visão limitada, procurando analisar as áreas. Até a década de 1950 a explanação da geografia se ocupava com uma ordem genérica, onde vigorava a descrição. A partir dos anos 50, o computador aumentou a sua infiltração nos meios informativos, dando maior número de informações mais objetivas e exatas. A partir da década de 1950 a geografia clássica foi questionada sob vários aspectos. Emmanuel De Martonne observava, por exemplo, que a geografia deveria repartir os fenômenos biológicos, físicos da Terra e seu relacionamento. Já na década de 1950, ocorreu uma renovação conceitual, quantitativa. Quantitativa devido às comparações feitas entre os números de cada cidade, por exemplo, aumentando assim a acuidade dos fatos. Nasceu no seio da geografia a preocupação de se racionalizar os fatos, de se buscar teorias, daí ser a geografia a partir da década de 1950 uma geografia teórica5.A medida que cresce a preocupação na explicação, diminui o fator descritivo do fato. Na era do computador há duas correntes: a do quantitativo e a do não quantitativo. Os quantitativos caem no erro de confiarem demais no computador, perdendo a importância que é dada à origem da informação. Os não quantitativos se apoiam no fato de ser necessário um conhecimento pessoal do lugar que vai pesquisar para evitar de receber informações de computadores sem um olhar crítico e de forma arbitrária. Os não quantitativos dizem que a geografia é o estudo da dinâmica do espaço humanizado. Vê-se nessa teoria duas coisas: 1) o não aspecto descritivo; 2) a necessidade de dados que não são obtidos por computador. Entre os maiores não quantitativos está Brian Berry que referia-se a três pontos fundamentais, três pontos básicos de seu pensamento, a lugares. No entanto, Hartshorne perdeu credibilidade, seja porque entedia que a geografia não era ciência, seja pelo destaque que ele dava para as peculiaridades do lugar. A partir da década de 1950 em diante, toda definição da geografia decorreu da ideia do “enfoque espacial”. 5 A professora Lysia, em sua explanação, observa que no século XIX vigorava uma descrição enumerada, repartida; já no século XX, antes da década de 1950, predominou uma descrição explicativa cognitiva; já no período posterior aos anos 50, temos a teoria. 300

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saber: processo, ecossistema mundial, homem dominante. Assim, ele estudava os processos da realidade atual. “A geografia estuda a inter -relação do homem no espaço”, outra ideia dos não quantitativos. Dentro da renovação da Geografia a professora veio a chamar a atenção para o conceito de sistema que, preliminarmente, poderia ser considerado como um dos assuntos dos mais importantes do curso que ela oferecia; este pode ser visto como resultante de partes interdependentes que se impunham sobre as outras suas influências. Pela perspectiva do sistema, se tem o método de pesquisa utilizado na geografia e na própria história. É necessário, assim, melhor compreender a Teoria Geral do Sistema (TGS). O sistema é um conjunto de elementos estruturados dinamicamente. Para Ullman, o que importava destacar no sistema eram as interações espaciais. Ele afirmava que o sistema era um conjunto de objetos reunidos e entre os seus objetos e seus atributos havia uma relação entre eles. O conjunto, por sua vez, era visto como uma junção de elementos organizados que tem relações recíprocas e são solidários através de atributos intrínsecos a cada elemento. A partir desta noção de interação, destacava-se a noção de Estado, aqui entendido como um conjunto de propriedades significativas num determinado momento. Os sistemas podem ser abertos, pois recebem influências externas, ou fechados, pois apresentam limites rígidos. Os sistemas apresentam gradações, um sistema engloba outro; há, portanto, uma hierarquia porque um sistema abriga um outro sistema subdividido (uma espécie de subsistema). Os sistemas se ligam por elos através de feed-back, ou seja, através de processos que alimentam o sistema para ocorrer outra coisa. Há assim, o in put, insumo, o out put, produto, e o processo de reversão, o feed-back6. No momento, há o método quantitativo e o sistemático, sendo este ditado por áreas (geografia urbana, agrícola etc.). O quantitativo, por sua vez, se oporia ao qualitativo; o quantitativo corresponde a um relacionamento ordenado, já o qualitativo, o relacionamento focado é coordenado7. Esta aula sobre Ullman, ocorrida em 17 de março de 1977 me trouxe um desafio de melhor compreender tanto o conceito de sistema, como o de estrutura, também relacionado ao primeiro. Para quem tem interesse no tema, a professora Lysia Bernardes indicou W. Buckley e a obra “A sociologia e a moderna teoria de sistemas”. 7 Ela chegou a indicar o texto de Paul Claval, “O que é geografia”, sobre a história da geografia através das definições e que pode ser encontrado no Boletim Geográfico nº 228. 6

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Passei um final de semana refletindo sobre o tema e cheguei a seguinte conclusão: Sistema é um conjunto no qual seus integrantes com características próprias e de funções próprias se relacionam interpondo-se, interligando-se, coordenando-se reciprocamente de maneira racional ou instintiva ou ocasional, ou ambas, ou só duas. Notando no conjunto que seus integrantes visam se processar através das trocas. Surgindo dessa coordenação entre os integrantes uma estrutura organizada8.

Na aula de 21 de março o tema foi Brian Berry que, embora afinado com a renovação existente na Geografia, ele não se identificava com a quantificação da Geografia. Este aspecto é interessante frisar porque destaca a inadequação de entendermos o que ocorreu na geografia em geral, e na própria geografia brasileira, sob o título de geografia quantitativa. A rigor, mais do que uma mudança na roupagem do modo de olhar o espaço, ocorreu uma reconstituição do próprio olhar, ou seja, a geografia quantitativa não foi só quantitativa, ela foi mais que isto, ela significou uma alteração epistemológica. Um exemplo desta afirmação é o pensamento de Brian Berry. Brian Berry discorda de Richard Hartshorne que destacava a singularidade da geografia; ele assinala que a geografia estuda os feAo realizar este trabalho de Geografia Quantitativa no Brasil, afora a surpresa do caderno com as anotações da professora Lysia Bernardes, tive a grata surpresa de reencontrar esta definição de sistema; algo que me fez pensar durante dois dias, e considero meu primeiro trabalho na universidade. Após escrito, na semana seguinte, apresentei a definição à professora Lysia Bernardes: ela gostou e ficou de reproduzi-la e distribuir para a turma, não o fez, mas algumas semanas depois ela me chamou para fazer um estágio na Secretaria Estadual de Planejamento do Estado do Rio de Janeiro; na época, ela tinha um papel de destaque enquanto superintendente se reportando diretamente ao secretário, senhor Ronaldo Costa Couto, do então primeiro governo do novo Estado do Rio de Janeiro (pós-fusão), senhor Faria Lima. Fiz o estágio com meu colega de turma, Paulo Motta, atual jornalista de O Globo, responsável pela edição de notícias sobre o Rio de Janeiro. Foi importante o convite porque detestei a experiência e desde então passei a pensar numa opção profissional mais vinculada à academia. A experiência foi tão ruim que poucos anos depois, quando estava para terminar a faculdade, me foi facultado um novo estágio, dessa vez  na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fruto de um acordo entre a instituição e a UFRJ, que garantia aos dois primeiros colocados de cada turma em fase de conclusão a chance de desenvolver um estágio; declinei do convite, encontrava-me em primeiro lugar, e preferi continuar estudando e desenvolver pesquisas, o que veio mais tarde a acontecer quando obtive uma bolsa para quem já tinha se formado, conhecida como bolsa de aperfeiçoamento, oferecida pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), voltada para quem já tinha se formado, mas que ainda não tinha ingressado no mestrado. Depois, no mestrado, vim novamente a ter bolsa pelo CNPq. 8

302

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nômenos componentes da crosta através de enfoque espacial sendo orientada sob uma visão sistemática. Ele entendia a geografia como uma ciência social, uma ciência social, porém, que não esquecia o aspecto físico e biológico. Para ele, não há porque pensar a geografia de forma dicotômica, como se fazia, ou seja, geografia geral ou geografia sistemática versus geografia regional, ou ainda, geografia humana versus geografia física. Ele entendia que tudo influenciava o homem e, portanto, nada poderia ser relegado a segundo plano. O pensamento de Brian Berry não foi particularmente expresso por uma obra, mas sim por um modelo9 que visava sistematizar a pesquisa com enfoque espacial. O modelo atuava como paradigma que se definia como o regente de uma ciência; ela serviu para entender uma dada ciência durante um “certo tempo”. O modelo de Brian Berry vigorou de 1950 até 1970, em termos gerais, ele constitui-se em:  

 

Lugares

Características

1

2

3

4

Populacional (por ex.:  migração)

 

 

 

 

Econômica (por ex.: renda)

 

 

 

 

Relevo (por ex.: topografia)

 

 

 

 

Agrária (por ex.: produção)

 

 

 

 

Assim, se o geógrafo privilegia as colunas, ele realiza uma análise regional, se considera as linhas horizontais, ele tem uma análise sistemática. Assim,  para Brian Berry o foco deveria  considerar as características e lugares, o que pressupunha um aspecto descritivo. Ele, Brian, introduziu uma perspectiva transversal, o que presumia a dinâmica da coisa considerada. Para ele a dinâmica compreenderia uma transformação ocorrida no lugar através do tempo. Assim, teríamos várias fichas sendo apresentadas a cada tempo, formando uma noção prospectiva (o estudo não só reconheceria uma dada realidade, com antes e depois, mas também avalizaria cenários possíveis para o futuro)10, noção, aliás, muito cara e necessária para quem visava planejar áreas11. Naquele fim de semana mencionado, também tratei de definir modelo, a saber: “Modelo tenta ser uma cópia fiel daquilo que se pede através da demonstração de aspectos que facilitem a compreensão do que foi investigado”. 10 Algo muito caro e necessário para quem visava planejar áreas. 11 Sobre este aspecto a professora Lysia Bernardes indicou o texto de Ullman intitulado “Predição e teoria geográfica, avaliação dos benefícios de recreação na bacia do Meramea”. 9

Período Republicano 303

Na aula de 28 de março, Lysia Bernardes destacou uma característica do que ocorria na geografia após a II Grande Guerra, a saber: antes do conflito, a geografia se ocupava com definições, com princípios; após a guerra, a ênfase passou a ser a busca por um paradigma, ou seja, algo que indica os pressupostos organizacionais de uma área e com isto seja factível uma intervenção. Segue abaixo um quadro comparativo montado por Ullman, que para a professora foi quem bem sintetizou a mudança verificada na geografia em termos recentes.   1

Geografia clássica

Geografia atual

2

Ênfase na geografia regional

Ênfase na geografia sistemática ou geografia tópica

3

Monografia

Análise regional

4

Preocupação com a gênese/origem

Processo, interação

5

Interpretação histórica

Interpretação funcional

6

Qualitativo / subjetivo

Interpretação quantitativa

7

Singular /peculiar

Geral e teórica

8

Entende o presente

Visão prospectiva

Para a professora Lysia M. C. Bernaredes, sobre os itens 1 e 2,  a divisão ainda ocorria no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nas décadas de 1940 e 1950, porque havia departamento que destacava a geografia regional e outro a geografia sistemática. Ela entendia, sobre o item 3, que a monografia não era válida porque não tem preocupação geral e sim restrita. Ela não mostra a interdependência de um lugar para o outro. Ela frisa fatores peculiares da região e características. Na análise regional, em contraponto à monografia, usa dados tanto da geografia regional quanto da geografia sistemática. Enquanto a monografia tentava conhecer a área, o local, a análise regional pesquisava com um objetivo tópico; enfim, a análise regional assumia de antemão um limite, já a monografia ambicionava “esgotar” o que pudesse ser dito sobre uma determinada área. Sobre o item 4, na chamada geografia clássica, a questão da gênese assumiu um aspecto que foi profundamente alterado posteriormente. A ênfase na gênese reforçava uma noção ambientalista, como se a razão última de um local pudesse ser encontrada no próprio local; assim, o privilegiamento da noção de processo e interatividade desdobrou-se 304

Aspectos históricos da geografia brasileira

numa noção de que a razão de ser de um local pode não encontrar-se nele próprio. O estudo do processo do presente apoiado pelas razões existentes no passado procurou antever o processo do futuro. Hoje, o passado é usado para entender melhor as interações atuais; assim, estuda-se o ambiente para entender melhor suas interações. Sobre os itens 5 a 7, a interpretação funcional se preocupava com o aspecto da consequência do fato estudado no presente, a interpretação histórica se ocupava com a origem do aspecto. A quantitatividade era menos objetiva, apesar dos cálculos serem objetivos; isto não implica afirmar que as afirmações fornecidas ao computador o eram, que tivesse de fato mais importância que outros fatores. Atualmente a informação quantitativa é base da informação. A interpretação qualitativa pesquisava de maneira despreocupada com a quantidade e sim pela importância que uma coisa poderia ter. Mas isso tornava a pesquisa subjetiva porque cada um tinha uma concepção de importância. Ratzel tinha uma orientação teórica que ao pesquisar levava para dentro de sua teoria, sendo um determinista ambientalista. Ratzel provocou o aparecimento, devido as suas ideias, do possibilismo, que destacava os fatos singulares dizendo que o homem faz ou não, dependendo da natureza ou não. Para William Morris Davis, para se explicar um fato usava-se uma ideia de conjunto, mas foi uma exceção na geografia clássica. Sobre o item 8, a geografia não era feita para ser útil. Estudava-sea geografia para o geógrafo. Havia o pensamento de que se sofria desvirtuamento quando se procura ver a geografia na prática. A geografia atual se preocupa com a previsão e aplicabilidade. Na aula de 31/3/1977, a professora retomou alguns pontos observados e os sintetizou. A geografia clássica não enfatizava a teoria; pautava-se na descrição dos fenômenos, estava atenta à diversidade e singularidade, e não generalizava suas conclusões. A geografia atual ocupa-se com a teoria, está atenta a regras, visa obter conclusões gerais advindas dos estudos das interações dos fatos. Valoriza as leis, os modelos explicativos, e destaca dados quantitativos. A teoria, para a professora Lysia12, nasce pelo conhecimento das disposições dos elementos. A teoria serve de lastro para conceber um modelo. O modelo facilita a praticabilidade da teoria. A preocupação atual é entender o lugar tal como ele é sobre uma visão geral13. O Aulas de 4/4/1977 e 11/4/1977. Embora a professora Lysia considere ser possível através do particular se chegar a uma generalidade. Inclusive, numa de suas aulas, ela destacou o desejo, creio que nunca realizado, de se defender uma tese pela qual se poderia inferir o tipo de ocupação 12 13

Período Republicano 305

modelo atua como um instrumento que dá maior objetividade, ele organiza as informações relevantes de caráter genérico, para que se conheçam os padrões gerais. Esse procedimento leva o pesquisador a se afastar do sentido de único14.  Assim, com o modelo tem-se uma idealização estruturada do real simplificado de modo a mostrar aspectos que refletem o geral da coisa idealizada15. Em resumo, o modelo se constitui dos seguintes aspectos: Características

Funções

Seletivo

Visualizar o todo, ressaltando os fenômenos significativos. 

Estruturado devido ao relato do relacionamento e interconexão das características selecionadas. Relata um padrão regular dessa interconexão para explicar aquela realidade.

Ser uma fonte de novos conhecimentos

Analogia ao real

Organizar as suas informações na lógica daquilo que procura a ponto de chegar a uma explicação

Reaplicação em outros lugares. Se não conseguir essa reaplicação significa que este foi bastante factual

Normativo, será norma para entender o mesmo fenômeno em outros lugares ou entender outros fenômenos. A reaplicação do modelo decorre de sua função normativa. Sistemático, facilita o entendimento da interligação entre os fatores

Tipos

Descritivo

Normativo (grau de probabilidade elevada)

Preditivo

Construção de teoria, prevê a realidade que irá acontecer

Sobre teoria, segundo aula de 14/4/1977, a professora Lysia observou que ao início do século XIX a geografia encontrava-se dividida em várias ciências, tais como: astronomia, botânica, zoologia, ecologia, sociologia, economia, geologia etc. A pesquisa era regional, numa praia a partir do seu tamanho; assim, pelo tamanho, poder-se-ia diagnosticar tendências de uso, por exemplo, quanto menor, a tendência é de uso exclusivo, privado, voltado para moradias ricas ou hotéis de luxo etc. 14 Este último aspecto é um dos sinais da grande ruptura representada pela assim chamada geografia quantitativa. 15 A simplificação é devida à ênfase do significativo. 306

Aspectos históricos da geografia brasileira

um estudo segundo áreas, um estudo que não proporcionava ao geógrafo completo entendimento da realidade. A partir da segunda metade do século XIX cresceu a chamada geografia sistemática ou tópica; por esta linha priorizava-se um assunto, embora isto não fosse a marca da geografia francesa que ainda destacava os estudos regionais. Com o crescimento da assim considerada geografia sistemática, cresceu a especialização, saindo, então, dois grupos, o da área física (enveredando para a biogeografia, hidrografia, mas, particularmente, geomorfologia  e climatologia), e o da área humana (direcionando-se para os estudos da relação homem meio, estando aí destacada a ecologia; na época, a geografia humana era encarada como estudo das relações ecológicas)16. Já no século XX, terceira década, surgiu a visão econômica nos Estados Unidos17.Assim, atualmente,  segundo Lysia Bernardes18, não mais haveria a ciência geográfica dada a existência de vários campos, no geral, a geografia há de ser vista como o estudo das interações sobre enfoque espacial. De certa forma, aula de 25/4/1977, desde os primórdios da disciplina , ela teve a sua praticabilidade e um fomento no campo cultural. Mas, se houve sempre estas duas funções, por que na década de 1950 foi disseminada a ideia de que a geografia evitava os fatos? A professora destaca as repercussões da utilização da geografia pelos nazistas na II Grande Guerra. A utilização alemã via geopolítica visava desenvolver a ideia de que a unidade alemã passava pela consideração de uma defasagem entre o que a Alemanha era e o que de fato deveria ser. Assim, os geógrafos passaram a reagir com um enfoque que evitasse considerações mais práticas19. Mas, hoje em dia, a geografia aplicada não é de uma geografia, mas sim uma maneira de orientar um trabalho. Assim, haveria uma A abordagem gerava uma análise determinista da realidade, sendo o meio aexplicação dos fatos. Em contrarresposta a esta tendência veio o pensamento de se entender as coisas não pelo local que têm, mas pelo que as próprias coisas são; esta linha passou a ser conhecida como possibilismo. 17 Muito impulsionada pelas  reformas promovidas pelo presidente norte-americano Roosevelt, e particularmente o planejamento do Vale do Tennessee, que contou com geógrafos, destacadamente  Edward E. Ackerman (Ibidem, Labasse, 1973) (Nota do autor). 18 Neste caso, a atualmente significada década de 1970 do século XX, quando ocorreu o curso promovido pela professora. 19 Diria política. O que nos leva a lembrar a ácida crítica de Lacoste (1988) sobre este tema. 16

Período Republicano 307

geografia acadêmica (passível de utilização), uma geografia aplicada (passível de ter valor acadêmico), e a geografia encomendada; nesta última pode vir a ter uma especialização de técnicas que resolvam problemas, mas tendo o risco de não se ter consciência das consequências do que está sendo promovido (além de a pessoa ficar muito voltada ao lado prático do processo, sem valorizar o aspecto teórico). A realização de uma pesquisa tradicional, por exemplo20, implicava em ter na observação o ponto de partida de um trabalho. Depois havia a leitura de mapas e busca de informações bibliográficas sobre o tema analisado; era ainda factível a utilização de estatísticas, embora fosse pouco utilizada. Depois disto viria o levantamento de dados. Assim, teríamos, observação (numa forma de inquérito), leitura (que incluía entrevistas) e levantamento de dados. Posteriormente, análise de dados, em seguida, produção de mapas, descrição cognitiva e interpretação. Na pesquisa atual, segundo a professora, a teoria seria o ponto de partida para uma pesquisa, ela atuaria enquanto lastro no trabalho. Para então se ocupar com um conhecimento empírico sobre o local (com leitura, observação etc.). Por este encaminhamento, a junção da teoria com o conhecimento empírico causaria a hipótese. A coleta de dados que se seguiria após a formulação da hipótese envolveria uma etapa mais rebuscada, envolvendo o maior número possível de dados, análise estatística (uso corrente nos trabalhos), interpretação, e, finalmente, avaliação da hipótese formulada21. Para a professora22 o conhecimento empírico participa do ponto de partida de uma pesquisa com a teoria23. O conhecimento empírico oferece ao pesquisador espírito crítico ao resultado encontrado na pesquisa24. Hoje em dia, além do conhecimento empírico, cabe ao geógrafo utilizar problema, teoria, hipótese, conhecimento empírico, observação descritiva, explanação, modelo e classificação. Assim, cada um dos itens compõe um momento que cabe ao geógrafo interagir com os demais durante a pesquisa25. A explanação seria o desfecho do trabaAula da professora Lysia Bernardes de 16/5/1977. É um momento importante porque, para a professora, é a hipótese consistente que constituirá teoria. 22 Aula de 19/5/1977. 23 Para a professora, a geografia antes da II Grande Guerra era só conhecimento empírico. 24 Para a professora “Todo tipo de teoria é formulada num espaço ideal”. 25 Este quadro de itens, segundo a professora, foi composto por Abler Adams Gould. 20 21

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Aspectos históricos da geografia brasileira

lho, mas que resultaria de todo um quadro interativo prévio, muito embora a professora Lysia reconheça que a observação foi um item que ficou desprestigiado, basicamente a partir de 1950, quando então o próprio termo foi sendo esvaziado. Na aula de 30/5/1977, a professora chama a atenção para o problema da hipótese; este é o início do trabalho e tem atenção a uma demanda internacional , ou seja, está afeito a uma gama de assuntos que outras pessoas em outras partes do planeta estão também a verificar26. A hipótese que inspira o trabalho tem três fases de desdobramento: antes, durante e após a pesquisa, ou seja, a hipótese é constantemente incorporada por novos elementos à medida que há uma evolução do conhecimento. Assim, nada impede de uma hipótese em busca de sua veracidade, se chegar à outra. A explanação está imediatamente relacionada à hipótese, embora a classificação não o seja (sic), assim como a descrição não o seja relacionada à hipótese (sic). A rigor, tanto a classificação quanto a descrição pode vir a fazer parte da explanação27. Para a professora Lysia(aulas de 6, 16 e 20 de junho) a teoria tem que vir acompanhada por um conhecimento empírico, isto é, que possibilita a formulação de hipótese. Na consideração tanto de um conhecimento empírico, quanto da teoria, temos a constituição de uma questão de trabalho que leva à consecução de uma hipótese. A hipótese indica o levantamento de dados (compreendendo seleção e coleta de dados, assim como técnicas correspondentes); em seguida vem a análise de dados, para então termos uma explanação com crítica e avaliação do grau de explanação alcançado. O grau de explanação, por sua vez, capacita o pesquisador a inferir a importância da teoria adotada. Se o grau de explanação alcançado é deveras alto, isto indica que o estudo realizado pode ser altamente considerado na avaliação da teoria adotada. Cabe considerar que esta formatação de procedimento está Nesta passagem das aulas nota-se claramente uma ambiguidade, ou seja, a professora Lysia sempre frisa o conhecimento empírio. Inclusive em determinado momento de sua explanação ela destacou que metade de sua projeção profissional, que não era pequena, foi obtida observando os lugares. 27 Não deixa de ocorrer aqui uma confusão, do tipo, a explanação decorre de uma teoria que alicerça uma hipótese, porém, esta explanação pode vir a utilizar tanto uma classificação quanto uma observação que não tem relação com hipótese? Tanto a classificação, quanto a observação foram conduzidas por qual fator?  Embora sempre apresentasse perguntas nas aulas, estas duas não cheguei a apresentar. E elas nunca serão respondidas, a crueldade da passagem do tempo não nos permite a volta dos mortos. 26

Período Republicano 309

relacionada a uma função prática da pesquisa, algo que não era tão enfatizado em período anterior da geografia. Segundo a professora, de meados do século XIX até 1950 a utilização era considerada como subproduto da geografia. Aqui terminam as notas da disciplina Teorias da Geografia, ministrada pela professora Lysia Maria Cavalcanti Bernardes no primeiro semestre de 1977. Por último, cabe destacar que a professora foi muito respeitada na área de planejamento, tendo inclusive sido indicada para ocupar a Superintendência Especial da Região Sudeste (SERSE) pelo então ministro da Casa Civil, Ronaldo Costa Couto, que então trabalhava no governo de José Sarney (1985-1989). Faleceu em 1992 junto com o marido, Nilo Bernardes, num de seus afazeres que mais apreciava, a saber, viajar pelo interior do Estado do Rio de Janeiro; assim, faleceram num acidente de carro. Lysia Maria Cavalcanti Bernardes foi homenageada pela Prefeitura do Rio de Janeiro ao ter seu nome registrado numa pequena rua do bairro de Copacabana da cidade do Rio de Janeiro.

Conclusão Qual a conclusão possível a um trabalho que teve por objetivo inicial fazer um amplo levantamento da geografia quantitativa brasileira, e a bibliografia demonstra o caminho percorrido, mas que se deteve a um testemunho de uma professora tida como afeita à geografia tradicional, particularmente, à geografia francesa. Parece-me que o presente artigo, seguindo este caminho, apresenta uma singularidade, o que realça o seu valor, a saber, ele recolhe notas teóricas que a professora Lysia, em que pese a sua vasta experiência, nunca logrou a sistematizar. Assim, o presente artigo capta um momento da professora que nos leva a ver a geografia teorética, popularmente tida como a geografia teorética, de forma menos preconceituosa. A professora Lysia, na época, 1977, tinha em conta a novidade da geografia quantitativa mas não poderia vislumbrar o que ocorreria no ano seguinte, 1978, em Fortaleza/CE, quando o encontro nacional promovido pela Associação de Geógrafos Brasileiros demarcaria a aurora de uma outra geografia brasileira, a geografia crítica.

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Aspectos históricos da geografia brasileira

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Outras informações Decreto-Lei 243 de 28/2/1967(fixa as Diretrizes e bases da cartografia brasileira.)  

Entrevistas úteis sobre o tema

Professor Pedro Pinchas Geiger, publicada na revista GEO-SUL, revista do Departamento de Geociências da UFSC, nº 17, ano IX, pp. 124-150, segundo semestre de 1992. Professores Roberto Lobato Corrêa, Armen Mamigonian, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Milton Santos e Orlando Valverde, publicadas na revista GEO-SUL, revista do Departamento de Geociências da UFSC, nº 12/13, ano VI, vs. págs., 2º semestre de 1991 e 1º semestre de 1992. Professor Spiridião Faissol, publicada na revista GEO UERJ, revista do Departamento de Geografia da UERJ, Rio de Janeiro, nº 1, pp. 79-94, 1997.

Período Republicano 313

A Geografia Crítica no Brasil1 Introdução O presente trabalho se propõe a analisar uma corrente da Geografia que já teve maior influência na geografia brasileira, a saber: a geografia crítica. Durante a graduação, iniciada em 1977, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi possível acompanhar uma forte renovação do pensamento geográfico combinado ao processo de abertura política. Numa primeira avaliação percebe-se que a geografia crítica, que atraiu tantos quadros jovens à época, era emulada por um processo político que procurava restabelecer a ordem democrática e lutar pela justiça social. No entanto, verifica-se, ao longo da década de 1980, que ocorreu uma inflexão nesse processo, o que levou Oliveira (1997, p. 155) a observar: “A partir de 1989, esta Geografia (a Crítica) começou a apresentar seus primeiros sinais de esgotamento diante da realidade em transformação, expondo seus limites teórico-metodológicos. A queda do muro de Berlim, o fim da URSS, aliados à crise do marxismo e à falência dos paradigmas da modernidade na explicação da nova realidade em mudança, inclusive o da teoria social crítica, revolucionam o pensamento e a produção geográfica em todos os sentidos e direções.

Entendemos, no entanto, que é possível vislumbrar estes sinais de esgotamento antes mesmos dos impressionantes episódios que marcaram os países socialistas, e é isto que procuraremos apresentar ao longo do nosso trabalho. *** A realização do I Encontro de História do Pensamento Geográfico em novembro de 1999 foi marcada por uma surpreendente produção . Nota-se na leitura dos dois volumes dos anais do encontro, que a Trabalho publicado na Revista da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias (RJ), setembro de 2000, ano II, nº 2. 1

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Aspectos históricos da geografia brasileira

geografia crítica só é lembrada, explicitamente, no eixo temático referente à sala de aula. Assim, parece que ocorre hoje o inverso do que ocorria ao início da década de 1980, ou seja, enquanto nos meios universitários a geografia crítica propagava-se de forma muito avançada, particularmente entre os graduandos e recém-formados, no sistema de ensino de primeiro e segundo graus os livros didáticos comportavam-se de forma relativamente imunes ao que se dava no meio universitário; os autores em voga, como Igor Moreira, entre outros, não tinham ainda absorvido, em seus trabalhos, a efervescência do terceiro grau. Hoje, no entanto, a partir dos trabalhos de José W. Vesentini, Douglas Santos, entre outros, os livros didáticos passaram a ter uma nova concepção para a qual a geografia crítica trouxe uma contribuição decisiva; mas, no meio universitário, verifica-se certa “indiferença” quanto à geografia crítica. A tirar pelos trabalhos encontrados nos anais, é possível perceber uma enorme quantidade de trabalhos históricos voltados, sobretudo, para personalidades brasileiras que pertenceram ou não à Geografia; é como se houvesse um esforço, inconsciente ou não, de recuperação das raízes do que significa pensamento geográfico. A análise, no entanto, da geografia crítica brasileira é um tema por demais vasto, ainda mais que a sua história ainda não terminou; de modo que pode-se encontrar nestas páginas uma contribuição à análise de quem acompanhou a evolução da geografia crítica, embora não de forma engajada.

A Geografia Crítica A origem A influência desta corrente de pensamento na Geografia só ocorreu após a II Guerra Mundial2. “É somente no limiar da crise do pensamento tradicional que as ideias de Marx virão à tona no debate R. J. Johnston in Philosophy and Human Geography indica a forte influência do marxismo na Geografia a partir de um ponto de vista estruturalista, pelo qual as explicações dos fenômenos devem estar referenciadas às estruturas que os sustentam, mas que não são imediatamente identificadas por estes fenômenos; assim não basta um estudo empírico para compreender a realidade; cabe sim uma análise que rompa o véu dado por aquilo que nos trazem os nossos sentidos, e apreenda, através de um esforço de raciocínio e abstração, estruturas universais que dinamizam a sociedade (1986 a, pp. 97-101). 2

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da Geografia. Tal processo se inicia no pós-guerra, e adquire alguma intensidade nos anos cinqüenta, já no bojo de uma perspectiva de renovação da Geografia” (Moraes, 1987, p. 40). Houve diferentes aspectos socioeconômicos que deflagaram a influência do marxismo na Geografia; de forma resumida, a partir de Horacio Capel in Filosofia y Ciência en la Geografia Contemporânea, cabe destacar: a) após a morte de Stalin e a tendência de coexistência menos beligerante entre os sistemas socialistas e capitalistas, houve um florescimento da reflexão marxista que não se viu tão premida em defender as políticas do estado soviético; b) a expansão dos movimentos libertários nas antigas colônias dos países europeus encontrados no Terceiro Mundo impulsionou a reflexão sobre o subdesenvolvimento social e a reflexão sobre a busca de solução para os problemas sociais encontrados; c) a consciência da degradação ambiental concorreu com a verificação da deterioração da qualidade de vida das grandes cidades, justificando o aparecimento de movimentos sociais que procuraram se opor a estes processos (1981, pp. 404-406). Segundo Antônio Carlos Robert de Moraes et Costa in Geografia Crítica - a valorização do espaço,os geógrafos que introduziram na Geografia uma abordagem crítica foram Pierre George, Bernard Kayser, Jean Tricart, entre outros, e um marco que formou o grupo de geógrafos da geografia crítica foi as Jornadas dos Intelectuais Comunistas,realizadas em Ivry, na França, em 1953 (1987, p. 40). Segundo Horacio Capel, o aparecimento da geografia crítica nos Estados Unidos ocorreu em 1969, quando foi apresentada, na reunião da Associação dos Geógrafos Americanos, a revista Antipode –A Radical Journal of Geography,editada por Richard Peet. Cinco anos mais tarde, houve a organização da geografia crítica americana através da criação da Union of Socialist Geographers e da associação Socially and Ecologically Responsible Geographers (SERGE), (1981, p. 427). Segundo Horacio Capel, a geografia crítica surgiu na Europa, em parte dadas as condições internas e também ao influxo da escola americana, que teve forte influência em países como a França. Nesse país, a geografia crítica teve, a partir de Yves Lacoste e a criação da revista Herodote,em 1976, uma intensificação na formação de um expressivo grupo de geógrafos críticos (Ibidem, p. 435)3. Esta observação, combinada à de Moraes sobre a origem da geografia crítica (1987, p. 40), destaca a supremacia americana em estabelecer a hegemonia das ideias. Emborca subjacente na década de 1950, na França, a geografia crítica adquiriu capilaridade a partir do seu alcance junto aos diferentes aparelhos de divulgação e das 3

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Porém, o crescimento e projeção da geografia crítica não ocorreram sem os percalços das divisões internas e disputas. Na França, por exemplo, houve aqueles que comungando a teoria marxista defenderam a abjuração da Geografia na justificativa de que a mesma era uma herança da sociedade burguesa, de base positivista, e, portanto, contrária aos interesses dos trabalhadores; eram os chamados liquidacionistas segundo Yves Lacoste (Moraes, 1987, pp. 43-44). Nos Estados Unidos, por sua vez, ocorreu uma discussão interna sobre a propriedade de se manter ou não o caráter revolucionário da geografia crítica, se deveu ou não ser propugnadora de uma quebra da estrutura social vigente. Horacio Capel exemplificou esta polêmica na discussão sobre a adoção do termo radical ou revolucionária pela Geografia (Capel, 1981, pp. 430-431)4.

Matriz teórica Intentaremos, a seguir, analisar o ato de conhecer numa perspectiva marxista, pois isto nos auxilia a compreender melhor o teor da geografia crítica5. Karl Marx foi um homem da tradição revolucionária, herdeiro de uma tradição francesa que buscou a “...a retomada do movimento que foi interrompido, e depois invertido, pela instituição ‘burguesa’ da república ... pela ditadura napoleônica, e enfim pela Restauração e a Contra-Revolução”6. Não se tratava de uma busca por uma situação instituições de ensino americanas que lhe deram uma popularidade que até então não tinha alcançado. Josefina Gómez Mendoza et alli in El pensamiento geográfico estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a las tendencias radicales) chegam a indicar que para a geografia radical existiram dois centros privilegiados: o dos Estados Unidos e o da França (1982, pp. 135-140). 4 Pela exposição que se segue, é adotado o termo geografia crítica, como é conhecida esta corrente no Brasil. Havendo, porém, aqueles que, por razões várias, procuraram distinguir nesta corrente tendências revolucionárias ou reformistas, nós procuramos, no entanto, nos ater às principais marcas da geografia crítica, sem entrar em nuances das diferenças internas. 5 A obra de Karl Marx é extremamente ampla, e a apreensão de sua concepção do ato de conhecer encontra-se disseminada em seus escritos. As obras como Teses sobre Feuerbach, Manifesto Comunista, A miséria da filosofia, O capital e seus estudos históricos pontificam a constituição de sua forma de abordar a socieade. Porém, não há um trabalho de sua autoria que sistematize uma gnoseologia. Por esta razão, nos pautaremos em autores que tiveram preocupação semelhante a nossa. 6 In:A filosofia de Marx, de Étienne Balibar, pp. 30-31, (1995). Período Republicano 317

ideal, mas sim de um movimento social cujos herdeiros dos anteriores revolucionários eram os operários, os trabalhadores7. Karl Marx ao fixar-se na Inglaterra, em 1850, portanto com 32 anos, já tinha passado por uma série de movimentos sociais, tendo sido expulso da França e Prússia, e perseguido na Bélgica8. Enfim, a constituição de seu pensamento esteve intimamente vinculada a uma atividade política, revolucionária, que por sua vez esteve alicerçada a uma determinada concepção filosófica de mundo cujas raízes podemos encontrar em Hegel9. Sobre Marx, que não chegou a sistematizar o seu método de trabalho10, há fragmentos de reflexões metodológicas através das quais Jürgen Kocka chamou atenção para o seguinte: Marx não opera uma separação entre sujeito e objeto, ele entende a realidade como atividade sensorial-humana, como prática, deste modo, a realidade histórica é (...) um processo no qual se objetiva de forma permanente, e em medida crescente, o trabalho humano e, através deste, a consciência humana; e isto, por sua vez, constitui condição para influir reflexivamente sobre o sujeito que pensa e age...a realidade não precisa, por princípio, ser estranha e externa ao entendimento racional do homem, uma vez que ela é crescentemente mediada pelo trabalho e pelo fato de que a consciência tornada prática ajuda na sua constituição (1994, p. 41-42).

A consciência, segundo Marx, não se aproximava “... da realidade com categorias estranhas às coisas; ...valores e perspectivas devem ser vistos como momentos do processo social e histórico global, e não contrapostos à coisa de forma descompromissada” (Ibidem, p. 48). Esta forma de conceber a realidade é interpretada por Jürgen Kocka como a tomada da concepção de Hegel segundo o qual foi localizada uma unidade estruturada em toda a multiplicidade, há um cerne em todos os fenômenos, e isto levou a Marx a reivindicar “... para a ciência a apreensão da essência das condições históricas, isto é, conhecimento da substância ou apreensão da totalidade” (Ibidem, p. 46). O pensamento de Marx surgiu como uma visão geral da história Ibidem, p. 31. Vide Karl Marx: Pequena biografia, de Evguénia Stepánova (1979). 9 Jürgen Kocka (1994, p. 46) destaca este aspecto mencionando diferentes pensadores contemporâneos concordes com este ponto. 10 Como destaca Henri Lefebvre, in a Sociologia de Karl Marx (1979) . 7 8

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humana, detendo-se com maior profundidade nas características da sociedade capitalista, e visualizou a partir das contradições inerentes a esta sociedade uma profunda transformação social. Enfim, o marxismo caracteriza-se por um pronunciamento teórico radical. Pretende ser uma cosmovisão e uma revolução completa. Esta corrente não pode ser caracterizada por uma ética! O ponto de partida do marxismo é o de ter uma concepção da sociedade e história humana que explicita os grandes movimentos destas mesmas sociedade e história e, com isso, acredita ter condições de vizualizar o cenário futuro. Não há o êmulo da moral em Marx para lutar a favor do proletariado; a perspectiva é operacional, ou seja, pela concepção construída, o proletariado corresponde à nova vanguarda da sociedade, tal como foi a burguesia no passado11! O pensamento filosófico da geografia crítica, por sua vez, é, segundo Josefina Gómez Mendoza et ali, in El pensamiento geográfico - estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a las tendencias radicales), reconhecido pela sua diversidade de pronunciamentos e direções (1982, p. 135). Horacio Capel indica que o marxismo foi considerado até a I Guerra Mundial como um pensamento que proporcionava uma visão completa da sociedade e da natureza (1981, p. 439), tendo assim proporcionado uma espécie de um novo padrão científico, pelo qual seria possível um forma global de se analisar a realidade12. Após a I Grande Guerra, a interpretação sobre o marxismo primou por uma discussão histórica; já não se alimentava a pretensão desta corrente ser considerada uma nova forma de fazer ciência, mas fundamentalmente uma nova forma de ver a sociedade. Por este enfoque a história humana seria compreendida por trocas nos sistemas sociais decorrentes do esforço humano em dominar a natureza, e esta mudança seria permeada por um progresso que levaria a um fim (Capel, pp. 439-440). Naturalmente que na mobilização política a questão ética (a luta pelos mais pobres), ou até mesmo o nacionalismo (defesa dos interesses nacionais), podem ser utilizados como formas de galvanizar a opinião pública, porém, estas “bandeiras” decorrem de movimentos táticos que podem ser substituídos assim que ocorram mudanças nas circunstâncias então vigentes. 12 Horacio Capel interpreta estar incluso nesta visão a preocupação positivista de que “...el materialismo histórico dialéctico ha formulado las leyes causales del desarrollo de la humanidad, las cuales permiten predecir de forma ineluctable la evolución pasada – es decir, el origen y desarrollo del capitalismo – y futura – es decir, la necesaria transición al socialismo – de la humanidad” (Capel, op. cit. p. 439). 11

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Josefina Gómez Mendoza et alli observam que o discurso do marxismo na Geografia assumiu duas rotas, a saber: 1) rastreou a existência de uma teoria geográfica nos textos fundadores do materialismo histórico; 2) a partir das categorias existentes e do método marxista, operaram novos conceitos para a Geografia (1982, p. 148). Pela primeira rota é verificada uma divergência entre aqueles que entendem que Marx teria fundado uma teoria da geografia, como o fez para a sociologia, história, economia1; e os que afirmam Marx teria negligenciado o espaço2 (Ibidem, p. 149). Pela segunda rota é importante destacar o método como a afirmação da viabilidade do materialismo como teoria da sociedade. Por esta teoria há relações complexas entre a sociedade e o espaço; tal posicionamento incorre em negar a autonomia ao espaço, tendo seu conteúdo dado pela sociedade (Ibidem, p. 149-150)3. A partir da configuração do pensamento marxista na Geografia, onde é enfatizado um entendimento historicista da sociedade, surge a dificuldade para se adequar a linguagem da temporariedade com o da espacialidade. Yves Lacoste indica a dificuldade de se ter em Marx um ponto de apoio para a Geografia, como fica claro nesta passagem apresentada por Josefina Mendonza: Señala, en efecto, dicho autor que, con el enfoque marxista, los problemas básicos del entendimiento geográfico quedan diluidos e irresueltos en un discurso articulado por – y para – otros dominios del conocimiento social, de forma que a menudo no se hace sino extrapolar, para las estructuras espaciales, interpretaciones “Marx não é, portanto, um geógrafo (assim como não é um historiador nem um sociólogo), mas no marxismo, assim como existe uma teoria da história e uma análise da sociedade, existe também uma geografia, sempre que por geografia se queira entender principalmente “a história da conquista cognoscitiva e da elaboração regional da terra, em função de como veio a se organizar a sociedade” (L. Gambi). No marxismo existem, além de inúmeros temas de pesquisa, também uma teoria da geografia e dos limites das condições e fatores geográficos” (Quaini, 1979, p. 51). 2 “O que choca não é a falta de interesse de Marx para com os problemas geográficos: é a disjunção entre seus textos teóricos mais elaborados,O Capital em primeiro lugar, e seus textos mais circunstanciais, militares ou político-estratégicos. O que choca no próprio bojo dos textos mais elaborados não é tanto a falta de interesse para com os problemas geográficos do que a irrupção, numa problemática globalmente a-espacial, de raciocínios geográficos grosseiramente deterministas” (Lacoste, 1988, p. 141). 3 “Pero si el espacio es la proyección de la sociedad, sólo podrá ser excplicado – y ésta es la consecuencia metodológica fundamental de la asunción inicial – desentrañando en primer lugar la estructura y el funcionamiento de la sociedad o formación social que o ha producido” (Mendoza et alli, 1982, p. 150). 1

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que remiten a estructuras econômicas y sociales, a reflexiones de la historia y de la economía política. Siempre según Lacoste, el razonamiento marxista no basta, en particular, para garantizar un fecundo entendimiento de las estrategias diferenciales sobre el espacio. Se acepte o no en toda su dimensión la crítica lacostiana al discurso geográfico marxista, parece indudable que éste supone un modo de entendimiento que, al centrar toda su argumentación en las capacidades de determinación que se atribuyen a los procesos históricamente actuantes, se ve abocado a negar de hecho – explicita o implicitamente – la espacialidad (Grifo nosso, 1982, 152-153).

Além deste aspecto, Josefina Mendoza indica outro ponto que diz respeito à falta de uma melhor compreensão dos aspectos ecológicos e energéticos por parte dos geógrafos marxistas; falta, segundo ela, uma tomada de consciência conceitual e analítica para tratar destes temas (Ibidem , p. 153). Sobre a relação homem-natureza, Antônio Carlos Robert de Moraes identifica que o marxismo força a opção dos geógrafos “... ou a Geografia é uma ciência da sociedade ou uma ciência da natureza” e sendo adotada a Geografia como ciência social, os fenômenos da natureza são destacados “...enquanto recursos para a vida humana” (Moraes et Costa, 1987, p. 58)4. Na análise da relação da geografia radical com os outros campos da Geografia, por sua vez, verifica-se uma acirrada luta contra a geografia quantitativa, não pelo seu conteúdo técnico, mas sim aos seus pressupostos de base positivista. Neste aspecto, há um ponto de proximidade com a geografia humanista5. A geografia radical alega que os elaborados métodos quantitativistas, em função de sua base de apoio, são enfoques que não trazem contribuições para a compreensão da sociedade, além de ter uma função mitificadora sobre a realidade; por trás da “parafernália” tecnológica há um subjacente objetivo de não revelar os processos sociais, as dinâDurante a realização do Seminário de Geografia Humana, do curso de doutorado, coordenado pela professora Bertha K. Becker, no primeiro semestre de 1995, pelo programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ, o professor Antônio Carlos Robert Moraes teve a oportunidade de externar o mesmo ponto de vista. E, segundo o relato da coordenadora do seminário, que presenciou um debate de David Harvey com uma ecóloga nos Estados Unidos, este deixou claro que o método marxista não foi pautado por uma visão integradora na análise da relação homem-natureza. 5 A explicitação do teor e comparação destas correntes da Geografia foi por nós realizada no texto “Os debates recentes na Geografia e o futuro da disciplina”, que veio a ser divulgado na Revista FEUDUC, nº 1, agosto/99, pp. 44-63. 4

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micas das lutas travadas no bojo da sociedade (Mendoza et alli, 1982, p. 143). Deste modo, a geografia quantitativa apresenta dois aspectos condenáveis, a saber: o reducionismo e o feitichismo espacial. Pelo primeiro aspecto há um esforço de matematização dos fenômenos naturais e de sua relação com os aspectos sociais, o que, segundo Anderson, citado em Mendonza et alli, é um forma de camufladamente introduzir a ciência natural na ciência social e desta forma naturalizar as relações sociais (Ibidem, pp. 143-144)6. O segundo aspecto diz respeito à formalização geométrica do espaço, pela qual as relações sociais se apresentam como relações entre áreas, assim, o espaço é tido como uma variável independente, onde as origens dos processos sociais são detectadas e compreendidas por processos espaciais, cuja dimensão unidimensional não destaca a própria dinâmica da evolução da economia capitalista (Ibidem, p. 144). Enfim, nestes embates teóricos, o marxismo na Geografia forma uma nova escola. Pela primeira vez na história da disciplina, temas sociais e políticos marcados por perspectiva crítica deixam de ser tratados episodicamente, como o fizeram precursores como Elysée Reclus7, para serem tratados sistematicamente. E não foram poucos os geógrafos que adotaram o marxismo; de certo modo, o marxismo facilitou a resolução de certos impasses (por exemplo, a glosa de que a Geografia seria uma disciplina a-política, neutra etc.), pois proporcionou uma visão de mundo (articulando variáveis econômicas, políticas, sociais etc.) relacionando-a a um projeto político (o que proporcionava um sentido para suas próprias vidas). Houve a nítida percepção de que se participava de um processo histórico que os arremessava para o futuro – em nome de uma sociedade igualitária8. Este aspecto traz consequências para o campo político, pois a partir de uma visão natural da sociedade as desigualdades sociais, por exemplo, são tidas como o aspecto natural de um organismo em crescimento (ou doente) cujo problema pode vir a ser superado sem rupturas das estruturas sociais. 7 Élisés Reclus (1830-1905), que embora não fosse marxista, pelo contrário, seu adversário, pois era anarquista e aliado de Bakunin, grande opositor de Karl Marx na I Internacional, foi precursor de uma linha da Geografia que assume um caráter crítico à organização social (Andrade, 1985, pp. 15-16). 8 Entre os recalcitrantes, havia o preconceito de serem considerados pró-capitalistas ... coniventes com a sociedade burguesa! Assim, não raro, o marxismo alcançou seu avanço na Geografia, senão pela livre adoção, pelo menos para se evitar má interpre6

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A Geografia Crítica no Brasil O seu aparecimento ocorreu no segundo lustro da década de 1970. Nessa época, a geografia crítica iniciou sua influência no âmbito universitário e teve decisiva participação nas disputas verificadas na Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB). Podemos afirmar que o Encontro Nacional de Geógrafos Brasileiros realizado em Fortaleza (Ceará), no ano de 1978, demarcou o início da geografia crítica em nível nacional, sendo o encontro seguinte, o de 1980, no Rio de Janeiro, a vitória desta corrente frente às tendências existentes. Com o estabelecimento da abertura política brasileira a partir da década de 1970, o marxismo tornou-se um verdadeiro ponto de referência na Geografia para ajudar a compreender o que se passava e o que passou. Cabe destacar, no entanto, que este vigor da geografia crítica foi mais fácil ser verificado no ambiente universitário e muito menos nos órgãos de planejamento do governo. Já Armando Corrêa da Silva observa que o processo de renovação tem, também, a concorrência de uma velha instituição, a saber: o Departamento de Geografia da Universidade São Paulo (1984, p.73). Mas, acreditamos que o grande gestor da geografia crítica foi o momento histórico que compreendeu o início de abertura política, a volta dos exilados políticos e a realização de várias greves de operários, sobretudo no Estado de São Paulo (o principal pólo industrial do país), enfim, uma época propícia à contestação! Importa frisar que a primeira instituição que passou a divulgar a geografia crítica foi a AGB; a universidade, enquanto instituição, foi mais lenta em adotar a geografia crítica. Aliás, a presença da geografia crítica nas universidades é menos marcante que o verificado na AGB. Esta maior receptividade, à época, pela AGB, decorreu de sua maior permeabilidade aos episódios que então marcavam a política nacional. O resgate das franquias democráticas (queda do AI-5 em dezembro de 1978, promulgação da Anistia e quebra do sistema bipolar da vida partidária em 19799 etc.)propiciou um clima em tação ou obter melhor aceitação em certos coletivos de geógrafos, edições de revistas, encontros acadêmicos etc. 9 Ato Institucional nº 5 foi adotado pelo regime militar em dezembro de 1968 durante o mandato do então presidente da República, Arthur da Costa e Silva. Este ato legitimou o fechamento do Congresso Nacional, demissão de funcionários, cassação de mandatos, destituição de cargos executivos, caso fosse interpretado que tais medidas serviriam para conter qualquer movimento subversivo. O AI-5 era visto pelo governo militar como um instrumento útil para a defesa de sua revolução! Período Republicano 323

que as entidades civis se viram convocadas a participarem do processo. Inicialmente, a própria estrutura de poder então vigente na AGB foi avessa à adoção de uma nova conduta que só ocorreu a partir da entrada de novos elementos em sua estrutura, entre 1978 e 1980. Outro fator importante para compreendermos o vigor da geografia crítica, à época, foi a volta do exílio do professor Milton Santos. A sua obra Por uma GeografiaNova, combinada ao seu estilo carismático, atraiu para si a atenção da comunidade acadêmica e novos adeptos para a nova corrente de pensamento, de tal modo que mesmo aqueles que não somaram com o movimento, reconheceram a sua importância em função da estatura intelectual deste professor10. Mas ele não estava sozinho; diversos professores somaram com os seus esforços, destacadamente os professores Armen Mamigonian e Armando Corrêa da Silva e uma série de outros mais jovens que ainda não tinham suficiente influência na estrutura de poder dos meios universitários, órgãos de planejamento e de pesquisa11. Porém, paulatinamente, por força das iniciativas tomadas por este novo coletivo em ascensão, que não deixou de contar com o apoio da “conversão” de outros geógrafos situados em diferentes locais de trabalho, tivemos uma progressiva expansão da geografia crítica. A rigor, a geografia crítica expandiu-se sobre um terreno que apresentava resistências pontuais. A rigor, as principais dificuldades teóricas ocorriam dentro da própria corrente! À época do início do governo do então presidente João Batista Figueiredo, em 1979, só havia dois partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), isto porque as regras que reconheciam a existência de um partido político eram extremamente exigentes quanto ao número de estados da federação que já apressentassem diretórios regionais, ao número de deputados já partidários da nova gremiação etc. Estes e outros aspectos do regime militar e posterior processo de abertura política já podem contar com diversos trabalhos, mas lembraríamos a recente obra do ex-ministro Ronaldo Costa Couto –História indiscreta da ditadura e da abertura Brasil: 19641985 – por registrar o relato de personalidades diretamente envolvidas no surgimento e/ou enfrentamento ao regime militar. Esta obra vem acompanhada por outra –Memória viva do regime militar Brasil: 1964 – 1985. As duas obras foram editadas pela Record, respectivamente nos anos de 1998 e 1999. 10 Pedro Pinchas Geiger (1988, p. 80) assinala que a sua vinda teve uma repercussão próxima à influência dos professores estrangeiros que aqui ajudaram a formar os primeiros quadros universitários tanto no Estado de São Paulo, quanto no Rio de Janeiro. 11 Houve ainda professores que demonstraram apoio à temática social adotada pela nova corrente, embora não estivessem articulados ao movimento, tais como Manuel Correia de Andrade e Orlando Valverde. 324

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No início da década de 1970, a geografia quantitativa, por exemplo, embora disseminada no ensino de graduação, não se encontrava suficientemente capilarizada. Pelo contrário, a geografia quantitativa estava inserida em algumas “ilhas” do meio universitário e órgãos de governo. Quanto à geografia humanista, esta apresentava pequena produção à época. No entanto, como já observado, o que mais influiu a favor da geografia crítica é a época. O clima de reabertura política incentivava toda e qualquer iniciativa estimuladora de crítica ao governo, ao modelo econômico, à injustiça social etc. Para alguns o Brasil vivia um grande período de efervescência política, chegando a estimular a perspectiva de que pudessem ocorrer mudanças profundas no Brasil12. Mas este processo não desconheceu sérias divergências internas quanto a melhor forma de se apropriar a concepção marxista, divergências estas que atingiam as relações pessoais. O que nos dá a impressão, a partir de certa época, de que os geógrafos críticos tinham maiores desentendimentos com os seus próprios pares do que propriamente com linhas de pensamento adversárias. Estes impasses, em nossa avaliação, decorrem de certo represamento do seu caráter inovador, salvo a área didático-pedagógica, onde os livros didáticos pautados pela geografia crítica, ou influenciados pela mesma, cresciam em importância até o final da década de 1980 e início da década de 1990. Porém, além das incongruências teóricas, parece que o grande impasse que a geografia crítica enfrentou foi de ordem política, o que nos remete à AGB.

A AGB e as conjunturas nacional e internacional É notório que a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), com a ascensão dos elementos vinculados à geografia crítica em seus postos de governo, passou a discutir com muito maior ênfase temas políticos. Este enfoque visou melhor compreender o que ocorre com o Brasil, e, deste modo, vislumbrar quais as melhores alternativas. Pedro Pinchas Geiger, em intervenção no IV Encontro Nacional de Geógrafos realizado no Rio de Janeiro, em 1980, observa: “Vejo diversos geógrafos preocupados com mudança de modo de produção. Não vou discutir se existem, ou não, condições objetivas de mudança próxima do modo de produção. Mas quero lembrar o filme de Eisenstein, Ivã o Terrível: na corte, discute-se a sucessão de Ivã, que, à morte, está recebendo a extrema-unção. Mas Ivã se restabelece, e, como conviver com Ivã vivo?” (1980, p. 349). 12

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Esta mudança de rumo da AGB, expressa pelas características assumidas pela entidade a partir do final da década de 1970, foi acompanhada por uma profunda alteração do estatuto da entidade, o que abriu a oportunidade de maior atuação de estudantes e professores recém-formados. Assim, a partir do final da década de 1970, a AGB transformou-se internamente e externamente ao procurar inserir-se nos debatessobre as mudanças que podiam ser promovidas no país. A primeira metade da década de 1980, neste sentido, foi extremamente fecunda nas discussões políticas, além dos impasses teóricos. Observamos que há como que uma grande sintonia entre o teor do processo discursivo encontrado na entidade com o que se passava no centro político brasileiro13. Deste modo, parece-nos apropriado analisar o que ocorria na política brasileira ao início da década de 1980. No ano de 1980 nós tivemos a eleição, nos principais estados do país, de três governadores de oposição ao regime militar; foram eles: Franco Montoro pelo PMDB (São Paulo), Leonel Brizola pelo PDT (Rio de Janeiro) e Tancredo Neves pelo PMDB (Minas Gerais). A eleição destes candidatos, combinada ao aumento da bancada oposicionista no Congresso Nacional, aceleraram as iniciativas em favor da queda do regime militar pontificadas pela defesa da eleição direta para presidente. Contrariamente às expectativas, após ocorrer uma forte mobilização social envolvendo milhões de pessoas em várias passeatas, em todo Brasil, em prol da eleição direta (emenda do então deputado federal Dante de Oliveira), tal medida não foi aprovada em abril de 1984. Esse desfecho deve ter ocasionado um sério momento de perplexidade na sociedade civil, na medida em que não ficava claro quanto ao possível caminho futuro da mobilização. Nessa situação, surgiu a solução de consenso ao se defender a vitória de Tancredo Neves sobre o então canIsto não era um processo incomum na época; pelo contrário, por exemplo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre outras entidades, estavam profundamente envolvidas no processo que finalizou o período militar no governo brasileiro. Parte deste vigor decorreu da própria inviabilização da via partidária enquanto instrumento para alavancar as mudanças desejadas. Mesmo tendo ocorrido melhor abertura dos partidos, as entidades civis encontravam-se marcadas pela participação de diferentes pessoas que viam nestas entidades que em passado recente não tinham obtido melhores espaços nos partidos existentes. Assim, só com a normalização do processo democrático é que algumas dessas entidades passaram a ter um papel menos político e mais conforme as suas características básicas que as fundaram. 13

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didato oficial Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, o que de fato ocorreu no início do ano de 1985. Ora, essa solução de consenso parece ter quebrado uma expectativa de que a mobilização social “teria vindo para ficar”, ou seja, que não teríamos apenas uma luta pelas Diretas-Já; havia questões mais profundas para se enfrentar, por exemplo: a má distribuição de renda, reforma agrária, dívida externa etc. Outros dois fortes e decisivos momentos da vida nacional foram o falecimento de Tancredo Neves em abril de 1985, não chegando a tomar posse da presidência, sendo substituído por José Sarney, e a implantação do Plano Cruzado em 1986, que conteve o processo inflacionário por alguns meses, mas que proporcionou ao então partido do governo, o PMDB, uma avassaladora vitória nas eleições de novembro daquele ano. Estes dois momentos, embora díspares em suas características, reforçaram no imaginário da população brasileira a ideia de se ter um pacto em torno do governo, pois a nova estrutura de poder, de característica civil, mostrava-se “bem intencionada” em realizar as mudanças desejadas. O surgimento da esperança, na assim chamada Nova República, ou na intenção de melhorar a situação econômica através do Plano Cruzado etc., deslocam o grosso da população brasileira de qualquer caminho que fosse na direção das quebras das estruturas sociais. Assim, a chamada Nova República, no plano político, e o plano Cruzado, no plano econômico, minoram, entre outras iniciativas, movimentos contestatórios mais acentuados na época. Enfim, houve uma mudança de horizonte que acabou afetando as diferentes entidades civis, e naturalmente a AGB. A percepção de que se pudesse ter sinais de um processo mais profundo no país, revolucionário, não logrou o sucesso esperado. Porém, essa retenção não foi somente ocasionada pelas circunstâncias nacionais; houve as internacionais. A questão do socialismo na década de 1980 passou por fortes percalços! O movimento dos trabalhadores portuários de Gdansk, na Polônia, que recrudesceu a partir de 1980 – gerando o movimento Solidariedade –, acentuou o processo de sucessivas revisões quanto ao adequado papel que os então países socialistas teriam no avanço do socialismo. O então eurocomunismo acentuou a adoção de posturas polítcas, distintas da antiga União Soviética e vislumbrou formulação teórica Período Republicano 327

que se distanciava cada vez mais dos postulados do marxismo-leninismo, a saber: a conquista do poder pelo voto! As políticas de Glasnost e Perestroika adotadas pela então União Soviética, em meados da década de 1980, promoveram fortes discussões nos partidos comunistas em diferentes países. Foi a época em que o principal vetor da causa socialista no globo, a URSS, abandonou, na prática, o postulado da ditadura do proletariado em favor de uma abertura política e econômica. Por fim, a repentina queda do bloco socialista, em 1989, e, em seguida, o da própria União Soviética no dia de Natal do ano seguinte, demarcaram uma acentuada virada da história da humanidade. Foram fatos impressionantes tendo em vista que na primeira metade do século XX o marxismo-leninismo teve grande expressão no campo político, econômico, filosófico... e, de 1917 até o final da década de 1970, aproximadamente um terço da humanidade encontrava-se sob sua influência; no entanto, em menos de dez anos, a partir de meados da década de 1980, ocorreu um verdadeiro desmoronamento do sistema socialista de governo! Isto não deixa de causar espécie, pois esta ocorreu sem declaração de guerra e durante um século que apresentou duas guerras mundiais, extermínio de milhões de judeus, vietnamitas e africanos, explosão de artefatos nucleares etc. O bloco socialista simplesmente implodiu e tivemos a oportunidade de ver, pela televisão, esta mudança! Estas considerações de ordem mais abrangente, versando sobre as circunstâncias nacionais e internacionais, se de um lado ajudam a compreender o refluxo do movimento comunista ao final da década de 1980 e início da década de 199014,por outro lado, não são suficientes para explicar a retração que a geografia crítica tem hoje na produção geográfica. Um aspecto a ser destacado diz respeito aos próprios limites encontrados nos que promovem a geografia crítica no país. Por incongruências que não estamos a par, o certo é que não há unidade entre os geógrafos críticos15. O que ocorre é certo número de Este refluxo atinge não só os partidos (que comungam o ideário marxista-leninista), mas a linha editorial de coleções de livros, os quadros políticos e o de intelecutais que passam a ser em menor número etc. Enfim, há toda uma rede de relações e projetos correlatos que são sériamente atingidos por este refluxo. 15 O texto de Armando Corrêa da Silva “A renovação geográfica no Brasil - 1976/1983 (as Geografias Crítica e Radical em uma perspectiva teórica)”, publicado pelo Bole14

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pessoas afinadas com a concepção marxista, mas que não conseguem transferir esta afinidade teórico-metodológica em uma versão propriamente geográfica de forma coesa. As divergências quanto à forma de se realizar esta passagem mostram-se muito séria. De modo que não é possível estabelecer esta escola, em termos institucionais, tal como ocorreu, por exemplo, com a Universidade Estadual de Rio Claro em relação à geografia quantitativa durante uma certa época.

Avaliação A nossa época se caracteriza por um profundo aceleramento das relações sociais, investimentosfinanceiros, decisões políticas... é como se em uma dada dimensão de tempo ocorressem mais coisas, simultaneamente, ocasionando mudanças mais densas e rápidas. Há um processo veloz que a tudo e a todos procura enveredar, juntar, em nome de uma produção. Neste sentido, as verdades estabelecidas deixam de sê-la e a perplexidade é a tônica neste momento16. Para onde vamos? Neste contexto, no campo da ciência, uma nova aventura procura ser empreendida, tal como a iniciada por René Descartes séculos atrás. A teoria do caos, o paradigma da complexidade, a abordagem interdisciplinar ou transdisciplinar, enfoque holístico etc., são correntes que procuram dar conta de nosso admirável e assustador mundo novo. A Geografia, por sua vez, como tantas outras disciplinas, também enfrenta problemas quanto a sua permanência no cenário futuro. Quanto à geografia crítica... esta ainda existe (ou resiste?)! No Brasil, o seu destino parece estar bem articulado ao da AGB e à produção de livros didáticos. Embora não tenha sido o nosso objeto uma análise detida da AGB e dos livros didáticos, foinos possível notar que a partir de certo momento esta entidade, que existe desde a década de 1930, foi o principal instrumento de divulgação da geografia crítica17, ficando por conta dos livros tim Paulista de Geografia, nº 60, de 2º sem. 83/1º sem. de 84, pela seção AGB de São Paulo, apresenta um quadro representativo de quem estava diretamente envolvido nesse processo. 16 É sintomático desse período que o cientista político René Dreifuss, que escreveu um trabalho marcante sobre ascensão dos militares ao poder, em 1964: a conquista do estado, tenha recentemente publicado o livro A época das perplexidades . 17 Em entrevista com Milton Santos, e publicada pela revista Geosul, nº 12/13, 2º sem. de 1991 e 1º sem. de 1992, ele aborda a cobertura que a AGB lhe deu quando de sua Período Republicano 329

didáticos a capilarização do fomento de uma nova consciência política. Se comparamos a AGB do tempo da geografia crítica com a AGB do tempo em que a produção geográfica não era realizada pela universidade18, mas pelo IBGE, temos uma notória diferença de “estilo”, enquanto no primeiro momento promoveu-se encontros relativamente fechados, mas com grande rigor acadêmico19, no segundo incentivouse, com mais intensidade, encontros com grande afluência de pessoas, destacando-se sobretudo a presença de professores20. Hoje, após mais de 20 anos do início da geografia crítica em termos nacionais, parece que ocorre um processo inverso ao de 1979. Enquanto nesse ano a geografia crítica iniciou a sua capilarização nas instituições e mentes, mas não acessava a estrutura de poder; hoje, alguns de seus representantes encontram-se bem situados em termos profissionais, mas verifica-se uma retração de seu campo de influência. Parece que a geografia crítica enquanto movimento parou! volta para o Brasil. Essa cobertura lhe era útil, assim como ao próprio movimento que vinha sendo desenvolvido. 18 A produção universitária passou a tomar maior vulto com a expansão dos cursos de pós-graduação, na década de 1970, o que certamente deve ter influído na criação dos Encontros Nacionais de Geógrafos(ENG), proporcionando encontros com grande afluência, isto antes da geografia crítica tomar vulto no cenário brasileiro. O que os geógrafos críticos introduzem de novo é a temática política acompanhada por novos quadros nos postos de governo da AGB, seja em seções locais ou em nível nacional. 19 Sobre esta comparação, em entrevista com Roberto Lobato Corrêa, e publicada pela revista Geosul, nº 12/13, 2º sem. de 1991 e 1º sem. de 1992, ele chega a afirmar: “Objetivamente falando, acho que a AGB tradicional era mais proveitosa. Contudo nós temos que ser realistas, e pensar um pouco nas centenas e centenas de estudantes de Geografia e professores do secundário que necessitam de um Encontro para aperfeiçoamento. Acho que a AGB atual tem seus méritos, sobretudo porque, através de suas Mesas-Redondas e cursos, tem suprido uma deficiência grave dos cursos de graduação. Portanto, a AGB atual tem um enorme papel social...” (p. 36). 20 Cabe notar que no tempo que a produção geográfica estava sob a influência direta do IBGE, esta produção estava articulada a uma clara lógica de planejamento, visando possível intervenção no território nacional; logo, os trabalho discutidos nos encontros promovidos pela AGB são sobretudo de ordem prática. Em entrevista com o professor Orlando Valverde em maio de 1994, ele destaca o significado estratégico da criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) durante a ditadura de Getúlio Vargas. A perspectiva de uma nova guerra ser novamente deflagrada na Europa leva o governo a ter iniciativas que lhe facultem melhores conhecimentos sobre as características, potencialidades, recursos do país. O IBGE, ao proporcionar um quadro cada vez mais exato da realidade brasileira, faculta ao Estado nacional, que encontrava-se em franco processo de fortalecimento, uma maior eficiência em suas intervenções, mitigando a ação dos poderes das oligarquias regionais que encontravam-se alojadas nas estruturas de governos estaduais. 330

Aspectos históricos da geografia brasileira

E parou não por falta de consciência dos impasses que atravessam a corrente21, mas porque a época que a ensejou não existe mais, seja em nível nacional, seja em nível internacional. Bibliografia ANDRADE, Manuel Correia de. “Atualidade do pensamento de Élisée Reclus”. In: ANDRADE, Manuel Correia de (org.) Élisée Reclus. São Paulo: Ed. Ática, pp. 7-36, 1985. ______.Tendências atuais da Geografia brasileira. Pernambuco: Editora Asa Pernambuco, 1986. BALIBAR, Étienne. A Filosofia de Marx.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 1994. CAPEL, Horacio. “El curso de las ideas científicas”. Tercera parte. In:Filosofia y Ciência en la Geografia Contemporânea. Espanha: Barcanova, pp. 245-509, 1981. CHRISTOFOLETTI, Antônio. “As Características da Nova Geografia”. In: CHRISTOFOLETTI, Antônio (org.). Perspectiva da Geografia, 2ª edição. São Paulo: DIFEL, pp. 71-102, 1985. CLAVAL, Paul. “Les Grandes Coupures de L’Histoire de la Géographie”. Revue Hérodote, pp. 129-151, mai- juillet/1982. ______. “Introducción” e “La Nueva Geografia”. In:Evolución de la Geografía Humana. (1ª ed. em francês).Tradução: Alexandre Ferrer. Barcelona: Oikos-tau, pp. 15-44 e 203-22, 1974. EVANGELISTA, Helio de Araujo. “Os debates recentes na Geografia: o futuro da disciplina”. In:Revista FEUDUC/CEPEA, nº 1, agosto/99, pp. 44-63. FAISSOL, Speridião. “A Geografia na década de 80. Os velhos dilemas”. Revista Brasileira de Geografia, IBGE, Rio de Janeiro, ano 49 (3), 1987. ______. “Planejamento da Geografia: exemplos da experiência brasileira”. Revista Brasileira de Geografia, IBGE, Rio de Janeiro, ano 50, n. especial, tomo 2, pp. 8598, 1988. FERRAZ, Claudio Benito Oliveira. “Crise na renovação da Geografia: a angústia e a relação teórico/prática”. Caderno Prudentino de Geografia, AGB – seção local Presidente Prudente, Presidente Prudente (SP), nº 13, pp. 40-48, junho 1991. FERREIRA, Conceição Coelho e SIMÕES, Natércia Neves. “A Geografia Quantitativa”. In:A evolução do pensamento geográfico. Lisboa: Ed. Gradiva, 1986. GEIGER, Pedro Pinchas. “Evolução do pensamento geográfico brasileiro: perspectivas ou a Geografia brasileira da industrialização por substituição de importações. A oitava economia do capitalismo”. Anais do IV Encontro Nacional de Geógrafos, AGB, Rio de Janeiro, pp. 356-361, 1980. ______. “Industrialização e urbanização no Brasil. Conhecimento e atuação da Geografia”. Revista Brasileira de Geografia, IBGE, Rio de Janeiro, ano 50, n. especial, tomo 2, pp. 59-84, 1988. O trabalho de Ruy Moreira “Assim se passaram dez anos”,ilustra bem as dificuldades teóricas na época (1992) . 21

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Anais consultados • I Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico, São Carlos/SP, 1999. • Encontro Nacional dos Geógrafos (ENG’s) - 1978, 1980, 1982, 1986, 1990, 1996 e 1998. • 4º Congresso Brasileiro de Geografia, em 1984.

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Entrevistas utilizadas Professores Roberto Lobato Corrêa, Armen Mamigonian, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Milton Santos e Orlando Valverde, publicadas na revista GEO-SUL, revista do Departamento de Geociências da UFSC, nº 12/13, ano VI, vs. págs., 2º semestre de 1991 e 1º semestre de 1992. Professor Spiridião Faissol, publicada na revista GEO UERJ, revista do Departamento de Geografia da UERJ, Rio de Janeiro, nº 1, pp. 79-94, 1997. Professor Pasquale Petrone, publicada na revista GEO-SUL, revista do Departamento de Geociências da UFSC, nº 15, ano VIII, pp. 103-137, 1993.

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Cultura e Geografia1 A emergência da cultura! Ao acompanhar a produção da geografia cultural brasileira é forte a presença de jovens tratando o assunto. Mas, o que os estimula a seguir tal vereda? Seria uma nova moda? Acredito que não! A rigor, eles percebem algo que os mais velhos não veem ou evitam de ver, para não se sentirem incomodados. E os jovens, como têm menos coisa a perder, são mais aptos a buscar novas trilhas. Refiro-me, particularmente, à situação de que o poder vem sendo reconstituído. Paulatinamente, as relações de domínio lançam mão menos do poder letal de uma arma em favor do poder sedutor de uma propaganda. A cultura, hoje, é fruto de um merchandising. Vende-se tudo, até mesmo, sendo o caso, uma tela com um único pingo... Acaso Deschamp no início do século passado não trouxe um mictório para uma exposição de arte? Assim, a arte se vale pelo inusitado, inesperado, algo que divirta, entretenha; a cultura, hoje, não é fonte de esclarecimento, mas sim de divertimento. Assim, a arte virou o novo “bobo” da corte? Não, este caráter aparentemente tão tresloucado encerra um processo de disseminação do nada, ou seja, simplesmente as coisas não são. As coisas são fadadas a não ter referência alguma. A arte, a cultural em geral, é a arma mais sofisticada, no nosso tempo, para inculcar novos padrões de comportamento. Antes o processo era inculcado pelo patriotismo, por exemplo; hoje, não, o processo está mais disseminado e o que se visa com isto é disseminar a situação de ausência de medida. Todo e qualquer valor, particularmente o religioso, é combatido. Combate-se a religião como sendo esta sectária, a partir de um procedimento sectário. O cerceamento, o governo, se faz na base do amortecimento ou excitamento dos sentidos; a intenção é tornar as pessoas cada vez mais indiferentes, apáticas, controláveis, os diferentes métodos de engenharia social que apareceram nos últimos 150 anos denotam esta situação, Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 6, n. 11, janeiro/julho de 2007 . 1

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por exemplo, experiências de Pavlov, a neurolinguística, artifícios alcançados no campo da propaganda etc. No nosso tempo, de um lado, temos um processo coisificador que torna tudo dinheiro; por outro lado, temos a constituição de um novo código comunicativo, pautado em símbolos visuais, que têm a propriedade de tornar as pessoas nômades. Se a questão social estava na ordem do dia nos séculos XIX e XX, ensejando a formação de novas disciplinas como a Sociologia e a Antropologia, atualmente, século XXI, a cultura assume um caráter estratégico. A compreensão da mesma estimula a gestação de novas formas de controle. Assim, há uma efervescência quanto ao tema, que superficialmente testemunhamos, mas que de forma mais profunda obedece a indagações sobre o governo das mentalidades.

Governança mundial2 A tese aqui defendida é a de que a constituição da governança mundial, em substituição às quadrículas de poder representadas pelos estados nacionais, está a exigir uma profunda mudança cultural com novos parâmetros e valores, sendo que uma base de apoio é o chamado estado de direito. Não há economia/comércio mundial se não ocorrer, correlatamente, governo mundial (cabendo dar regência, legitimidade às deliberações do campo financeiro, econômico/comercial) ; por sua vez, não há governo mundial se não houver uma cultura mundial, as ideias substanciam as relações de força, só a força em si não ajuda a realizar o pleno exercício do poder, este há de ser reconhecido e quanto mais aceito se torna eficiente, porém, o que consubstancia a aceitação é a cultura. Na conformação da governança mundial há uma verdadeira disputa pelas consciências, elemento vital para se alcançar a conformação de um estado de direito – que pouco diferenciaria de um estado policial (geneticamente manipulado). Este aspecto abre um claro confronto com a religião, pois esta se aninha justamente nas consciências das pessoas. Não foram poucas as experiências históricas pelas quais se tem claro que o controle de uma população não se realiza estritamente pela força. Milhões de pessoas podem vir a ser assassinadas, mas suas O que se segue está baseado em www.feth.ggf.br/Opinião1.htm e www.feth.ggf.br/ Opinião2.htm . 2

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ideias brotarão em outro momento com mais força3. Há de ocorrer um eficiente controle dos corações porque só assim ocorrerá a subordinação do individual à comunidade, do cidadão ao Estado, a segurança do grupo acima da segurança individual. Neste sentido, não há espaço para as religiões, ou seja, estas, com sua tendência de ter por referência algo que transcende a autoridade humana, tendem a representar um certo sinal contraditório ao acordado pelas autoridades. Vivemos uma época demarcada pela profusão de eventos, acontecimentos, circunstâncias que apresentam uma grande velocidade; e tal dinâmica está permeada por uma avalanche de ideários relativos a modos de vida, sensos comuns, costumes etc. Porém, tal processo hodierno não deixa de gestar um gradativo processo político em direção à Governança Mundial. Tal Governança já teria atingido uma rede regular de relações comerciais e econômicas entre os mais importantes países e empresas do globo terrestre; faltando, no entanto, uma dimensão política-institucional para este governo. Esta Governança há de ter uma feição institucional, uma sede, uma representação legítima, para, enfim, acelerar o processo da globalização, que ora assistimos. No entanto, este objetivo não é tão fácil de ser alcançado, pois o próprio inclui uma transformação cultural global a ponto de se ter uma legitimidade política para tal estabelecimento. Assim, pela primeira vez na história humana há condições de se estabelecer um governo envolvendo todo o planeta, e a transformação cultural, enquanto referência para se estabelecer as metas dessa macrossociedade, desempenha um papel nevrálgico.   Tal transformação cultural, por sua vez, passa por uma superação de costumes, valores e ideologias de modo que as bases de uma legislação comum possam ser compartilhadas por diferentes povos. Na consecução desta renovação axiológica, por sua vez, encontrase o papel da mídia.

Cabe aqui menção de um fato aparentemente prosaico, mas muito característico do que aqui pretende ser observado. Durante décadas a ex-União Soviética homenageou seu grande líder revolucionário ao nomear a cidade com o nome de Leningrado (1924-1991). Pois bem, bastou a diluição do sistema socialista para que a cidade retomasse seu antigo nome, São Petersburgo, fundada em 1703 por Pedro, o Grande, e tornada capital da Rússia em 1712. Ou seja, na história há camadas que aparentemente mostram-se “mortas e esquecidas”, mas que ressurgem com toda a força em momentos posteriores. 3

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Mídia A mídia procura ocupar-se com a esfera da intimidade da pessoa. Ela está a oferecer verdadeiros ícones, estrelas que passam a ser divinizadas, cercadas por uma verdadeira aura de reverência, mas de permeio vão semeando aspectos, notícias, valores, que afrontam profundamente os preceitos arraigados! Há muito a mídia afastou-se do talento artístico; o fundamental a um candidato ao estrelato é a ambição. Ambição em aparecer, acontecer, e estar disposto aos mais disparatados papéis ou posições que possam ser solicitados. Não cabem mais talentos com valores próprios, o fundamental é a maleabilidade, às vezes, do próprio caráter! Não importa o senso ético ou moral, o importante é a inserção da imagem segundo um desígnio que pode gerar um produto exótico, exclusivo, ou despudorado, o que seja... As pessoas não se destacam pelo que pensam ou pelos gestos heróicos... a mídia não se pauta pela meritocracia... Não raro, coisas perdidas no tempo e lugar adquirem uma notabilidade que foge às expectativas4. O essencial está no desígnio. Desígnio este que, às vezes, se pauta nas pessoas que pensam, que cometem gestos heróicos... mas, a escolha desse fato e não de outro está orientada por cálculos que há muito fogem de nossa alçada. Desígnio aqui significa algo variável, atrelado à estratégia de merchandising, mas também com caráter político – ora sendo um, ora sendo outro, ora as duas coisas (uma mais importante que a outra, vice-versa). Assim, o desígnio está calcado na circunstância, mas orientado pelo domínio, domínio da mente (e do tempo do raciocínio), do coração – e do tempo da emoção (= sentimento, arrependimento etc.). Enfim, sem deixar lugar para coisa alguma... O desígnio tem na mídia o esforço de hipnotizar (enfeitiçar), deixar todos absortos, estanques de si mesmos, aptos para consumir e obedecer . Nunca, nós últimos cem anos, a rebeldia foi tão padronizada (domesticada, direcionada), pois ocorreu paralelo a fortes e pertubadores padrões de consumo! E não poucas pessoas embarcam na crença de sermos senhores de nós mesmos, ávidos por felicidades sensitivas, cada qual sendo a estrela do seu próprio sistema solar... e dá-lhe consumo, novas viagens, Por exemplo, graças a Hollywood e a um diretor de cinema, Steven Spilberg, os dinossauros viraram coqueluche internacional. 4

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novas situações, novos filmes, novos hábitos, e haja conta-corrente, cartão de crédito, cheque especial etc.5. O recurso de combinar imagem e som com fatos do cotidiano tem o efeito de tornar a TV o canal mais privilegiado de comunicação, exigindo o menor esforço possível por parte das pessoas. Logo, os agrupamentos humanos, mesmo com grande interação com o entorno, dado o efeito da mídia, têm sua motivações discursivas nas conversas habituais sugeridas pelo meio de comunicação; é como se o encontro humano estivesse conduzido por parâmetros vindos por imagens, notícias etc. promovidos pela televisão. Esta linguagem pavimentaria não só visões homogêneas de vida, No entanto, a morte é um duro recado de que a vida não é para ser usufruída como sorvete, pois é fugaz, mas um convite para nos abeirarmos do mistério que significa nossa existência! Neste sentido, a morte tem um caráter didático de nos exigir algo a mais do que possa oferecer a prateleira mais bem organizada de um shopping! Mas até mesmo este caráter da morte encontra-se combatido. Cultiva-se uma falsa noção de perpetuidade, seja pela não celebração dos dias de finados (antigamente vivido com tanto pesar), seja pelos cemitérios que perdem o aspecto de moradia (desaparecem os jazigos com verdadeiras características de lares) em favor dos atuais campos de futebol, aquele gramado bonito no qual a morte é lembrada nas pequenas lápides onde constam os nomes e períodos de vida das pessoas. O cemitério assim despersonaliza a morte, a torna menos pungente. Mas, por último, há um recurso mais radical, para que a morte não deixe memória, a saber, a cremação. Uma vez fui à cremação de um parente, que situação! Parece linha de fábrica. Relato o episódio. Em primeiro lugar, cremar custa caro; além de envolver uma não pequena burocracia, é necessário, por exemplo, registrar em cartório o expresso desejo de ser cremado. Bom, estando no local, este mais parecia recepção de aeroporto. Piso bonito, tudo bem limpo, música ao fundo, caso este serviço seja contratado. Subitamente soa um assovio, todos se dirigem a uma sala. Sentados, veem o caixão chegar por uma esteira mecânica. Exatamente, meia hora depois, novamente um assovio, e o caixão volta de onde veio. No dia seguinte, uma pessoa designada pela família recebe uma caixinha com pó. Ah, quase esqueci, você pode escolher o tipo da caixinha no dia anterior à cremação. Cabe aqui repetir a pergunta de Ronald Knox, a saber: não será um sinal de retorno à barbárie a rapidez com que hoje procuramos livrar-nos dos nossos mortos? Faço aqui outro relato, envolvendo outro morto, também da família. Faleceu e foi enterrado, a cada mês era visitado, depois, no mínimo, uma vez ao ano. Cada visita era uma visão didática quanto ao lado frágil da vida, mas, ao mesmo tempo, havia uma renovação no amor daquelas pessoas em relação ao ente querido. Enfim, uma situação, a meu ver, muito mais rica. Anos atrás assisti a uma entrevista do filósofo italiano, Remo Bodei, ao jornalista Roberto D’Ávila para seu programa divulgado pela TVE. Ao falar de sexo e da morte, o filósofo observava que no passado o sexo era algo obsceno, ou seja, algo para ficar fora de cena, enquanto que a morte era reverenciada, ou seja, as pessoas ficavam de luto e tinham maior atenção com seus mortos. Hoje, ocorre o oposto, temos uma superexposição do sexo e um verdadeiro pavor da morte. 5

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mas, também, a receptividade às normas comuns, legais ou não, de controle da sociedade. Logo, o arrebanhamento que configure a finalização das particularidades, regionalidades, e aspectos locais etc. pode ser visto como condição sine qua non para se viabilizar novas formas, abrangentes, de controle social. No entanto, é interessante notar que esta expansão do controle social é bem recebida, pois aparenta ter a forma de liberdade de expressão; é visto como um processo que visa melhorar a vida dos cidadãos, melhorar o seu grau de trocas, contatos, informações etc. Mas, o que ocorre, de fato, é que por trás disto temos o controle da informação, a rigidez das trocas, e o enrijecimento dos contatos. Pois todo o aparato se dá numa forma tão tecnificada, e cara, que só a alguns são possíveis o usufruto e o assenhoramento dos equipamentos que permitem um direto acesso à formação da opinião pública.   Nossa cultura é marcada pela imagem, não é marcada pelo raciocínio ou lógica expressa por um parágrafo, mas por algo que marque, se destaca pela excepcionalidade em termos de imagem. Para analisar este enfoque sobre os meios de comunicação, tendo em vista a transformação cultural, entendemos ser necessário ressaltar o desvendamento do corpo humano sobre o qual é enfatizado o seu sentido estético e erótico. Cabe aqui indagar se esse processo de formatação do Governo Mundial não teria na questão sexual um elemento de ponta na veiculação das mensagens da mídia que corroborariam na homogeneização dos valores culturais. A sensualidade ganharia campo como um elemento a forjar novos padrões culturais, uma maior licensiodade frente aos ditames morais e religiosos. A universalidade inerente ao sexo propicia um tipo de mensagem que atinge a todos os vinculados pelos meios de comunicação. Além disso, os próprios têm uma vasta capilaridade na nossa psique, psicologia, moral, costume e ética. Deste modo, a roupagem sexual nos programas, mensagens, anúncios, viabiliza uma abrangência da mensagem, assim como uma rapidez de resposta. A disseminação dos conteúdos sexuais tem o poder de configurar, gradativamente, por imagens e clichês, certos signos referentes a relações de poder, relações de autoidentificação e de afetividade junto à sociedade. O conteúdo erótico passa a ser tão generalizado que as formas de sua veiculação adquirem novos aspectos. Se, por exemplo, Toulouse 340

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Lautrec representava em seus quadros a vida boêmia da velha Paris do século XIX, quando o Mouling Rouge era uma das grandes vitrines da sensualidade, chegando, não raro, a ser vilipendiado e combatido, hoje, casas desse gênero perdem expressão enquanto principais capitaneadores do processo de exposição do corpo. Parece-nos útil, por fim, enfatizarmos que correlato a esta cirurgia do campo relacional sexual, gesta um processo político, de ampla escala, que visa o monitoramento das relações sociais sem que isto signifique uma perda significativa na mobilidade e produtividade humana. Ao invés de as pessoas estarem mais próximas, estão mais separadas. Pois os diversos contatos, olhares, conversas, não são suficientes para torná-las seguras quanto ao seu entorno; pelo contrário, dado a avalanche de aspectos, acontecimentos, fatos novos etc. a pessoa cultiva como perspectiva a apatia, como aspecto a acompanhar o seu horizonte de vida, esta atua até mesmo como uma forma de proteção da própria pessoa. Logo, são contatos sem encontros1. O processo de Governança Mundial exige um duplo encaminhamento, a saber: a) de um lado, tornar a pessoa isolada, sem a possibilidade de autoidentificação, a menos que isto ocorra “à luz da mídia”; b) de outro lado, proporcionar uma grande rapidez de contatos entre pessoas (= através dos diferentes aparelhos de comunicação) a ponto de gerar uma certa “anestesia social”, ou seja, inculcar a dimensão de agrupamentos (uma aldeia global), sem uma identificação mútua, sem condições de um autorreconhecimento. Cabe notar, no entanto, que este novo estilo de controle social adquire vulto recentemente. Se no passado sempre ocorreram tentativas expressas de se controlar a opinião para viabilizar relações de poder, este controle, no entanto, não era de todo suficiente, havia de vir correlato à força. Atualmente, o ato de forjar a opinião pública, via mídia, é mais impactante, e menos necessário de expedientes físicos (policial/militar) no controle.

Dramaticamente, os encontros não ocorrendo, estes são substituídos por um cão ou gato, ou seja, qualquer animal doméstico. Vivemos numa época em que os animais domésticos adquirem personalidade, viram pessoas:“Viu ele fala comigo...”,“Com ele não estou só...”. Enfim, nada contra animal doméstico, mas é no mínimo curioso o número de lojas voltadas para animais, não raro, servem para cuidar daqueles que não deixam os seres humanos sozinhos. 1

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A religião Nos dias atuais há uma surda, e às vezes barulhenta, luta contra as religiões. Uma luta que não se genelariza num processo de extinção física dos crentes, mas sim se dissemina dilapidando as bases morais e psicológicas sobre as quais a experiência religiosa se apoia. Em princípio, consideramos que a religião não tem um papel por demais confortável, pois ela tem características que incomodam, qual seja, ela está pautada pela transcendência, ou seja, a fonte de poder da religião encontra-se fora dela mesma, ou seja, ela está apoiada numa revelação que a Torá, o Alcorão e a Bíblia exprimem aos seus fiéis! Este aspecto é de crucial importância, pois a tendência da abrangência do poder global é o de afetar os vários espaços da vida humana a fim de dar pleno sucesso ao controle da população. E a religião traz uma preocupação no sentido de não se submeter, necessariamente, aos ditames das formulações jurídicas acordadas assim como às instituições que passam a ter forma... Na construção das novas relações de poder em escala planetária, consoante ao processo econômico que atinge a mesma escala, não há espaço para a religião, de qualquer tipo. Tal asserção ocorre da necessidade dessa governança política de tudo submeter a um determinado estado de direito em que o parâmetro escolhido esteja apoiado na melhor forma de se garantir o controle das pessoas, dos fluxos, seus sentimentos, anseios, demandas etc. Neste sentido, a religião atua como agente anômalo, pois calca as relações humanas na revelação, algo, portanto, externo (e por que não dizer estranho) à ordem vigente. Este é um projeto; não se afirma aqui que ele logrará sucesso! O ser religioso é aquele ciente de se saber Filho de Deus. Noção que o acompanha e esclarece o rumo de sua vida. Em contraposição, quem, enquanto religioso, se dispõe a matar, com exceção de cometer um ato de autodefesa, nega o próprio caráter de sua filiação. Nos atuais casos de conflitos promovidos por “religião” percebe-se que o percentual destas pessoas no cômputo de toda população de fé é ínfimo. Mas é surpreendente como se divulga e enfatiza o vínculo religioso ao conflito; particularmente a que envolve a população islâmica. Chega-se a gerar o sentimento que para o povo islâmico é natural e até próprio que se reze a Alá com armas ao lado. Quando, a rigor, o muçulmano como qualquer pessoa humana, tem lá suas expectativas, ato e iniciativa, e se é hostil, o é como cada um de nós é capaz de sê-lo. O fenômeno religioso na vida de uma pessoa não tem a proprieda342

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de de nulificar as características pessoais, algumas até das piores, mas sim de dar a esta um olhar, uma perspectiva no viver em função de uma revelação, o de ser bem-quisto por Deus. E esta percepção de pertenciamento vai levando-a a depurar espiritualmente o seu ato de ser... Cabe destacar que esta luta contra as religiões não tem em si um caráter último, ou seja, não se baseia na pura destruição... A destruição das religiões é meio, não fim. O que se busca é uma nova moral, novos parametros étnicos... novas formas de concepção de pessoa humana... de seu destino (e respectivo futuro). E o grande moto deste novo código é a lei... Rompendo-se de vez todo e quaisquer resquícios de uma norma que não tenha sido estabelecida previamente pelo consumo social. Consumo social aqui não no sentido de que a população participaria autonomamente, mas sim que seriam instados a ter por próprio o que lhe foi inoculado mediaticamente... Porém, este processo traz em si algo preocupante e simplesmente mostruoso, qual seja, a construção de uma grande jaula do direito, no qual a vida é normatizada, regulada, acompanhada, não havendo mais segredos, com os sensores estando atentos para detectar todo e qualquer desvio... É o estabelecimento puro e simples da socieade propriamente, teleguiada... Viva a manada!

A emergência da geografia cultural Pessoalmente, não valorizava a geografia cultural. Parecia-me uma espécie de eflúvio.Um requinte na geografia brasileira. Afinal, diante de tanta miséria, alguém que se dispusesse a tratar da geografia na obra de Guimarães Rosa... Cometia um engano. O primeiro sinal deste engano foi quando num desses passeios na Internet resolvi buscar o termo “geografia cultural” no endereço www.google.com.br. Em seguida comparei com o encontrado a partir da busca de outro termo, a saber, “geografia crítica”; esta última apresentava muito menos informações. Por esta busca tive conhecimento do Simpósio Espaço e Cultura, organizado pelos professores Zeny Rosendahl e Roberto Lobato Correa e realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em outubro de 2006. Assisti a algumas mesas e percebi o excepcional trabalho que estes dois professores vêm realizando em favor da reflexão sobre espaço e cultura, assim como constatei a existência de uma geração, nova, de geógrafos afeita ao tema. Período Republicano 343

No entanto, o argumento definitivo em favor da ideia que havia algo muito sério acontecendo na geografia brasileira e que se expandia de forma sinuosa sem fazer alarde decorreu da verificação de uma elevada produção da geografia cultural no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, justamente um programa que conta com professores identificados com a geografia crítica. Assim, iniciei a elaboração desta parte sobre geografia cultural no Brasil. Mas o que é geografia cultural? E se indagasse, o que é wnpxiwk pppp? Reparem que as palavras encerram sentidos próprios, se assim não fosse seria impossível a comunicação humana. Logo, quando trato aqui de geografia cultural trato da geografia que norteia a sua produção a partir da ação da cultura. O que é cultura? São nossas crenças, valores, religiões, músicas etc., enfim, aspectos de nossa vida que estão muito mais relacionados com a nossa constante busca em nos situarmos no universo, do tipo, por que a vida, por que da morte... Tenho para mim que se nós não morrêssemos, ou seja, não viéssemos a conhecer a morte, muito da produção cultural perderia sentido. Enfim, quando falo em cultura não trato em plantio de alface ou obtenção de água num poço artesiano. Parece meio estranho este exercício que estou a apresentar, mas me parece necessário tendo em vista diferentes e-mails que recebi ao tratar com diferentes professores(as) sobre geografia cultural, que perguntavam, por exemplo, se o trabalho é sobre geografia cultural ou geografia humanista. Em suma, trato o tema de forma bastante simples. Não vou aqui entrar em filigranas procurando distinções quando, na verdade, as diferentes linhas estão mais próximas que distantes. Quanto à segunda pergunta, o que é wnpxiwk pppp? Sinceramente não sei, este segundo conjunto de letras, ao contrário do primeiro (geografia cultural) não nos desperta sentido algum, pois é um conjunto de letras que nunca veio a ser utilizado para favorecer a comunicação entre as pessoas.

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Contexto geral2 Pela análise das três correntes na geografia (quantitativa, crítica e humanista), percebe-se a existência de dois grandes campos de conflito na geografia crítica, uma de característica teórica, e outra de abrangência política. No primeiro campo encontramos a divergência entre os que creditam em Karl Marx uma importância teórica para a Geografia, assim pensa Massimo Quaini (por exemplo), e há os que entendem o contrário, como Yves Lacoste. No campo político há o debate quanto ao papel da Geografia na sociedade burguesa; uns propugnam por uma conotação revolucionária e outros a favor de um cunho mais acadêmico. Tal embate tomou expressão na própria divergência quanto ao rótulo a ser utilizado pela Geografia, viria a ser uma Geografia Revolucionária ou Geografia Reformista. Numa comparação entre a geografia crítica e a geografia humanista, verifica-se nas duas correntes a importância da contribuição anglosaxônica, embora, como o próprio Horacio Capel reconhece, no caso da geografia crítica ocorreu uma maior contribuição europeia, havendo quem, como Josefina Gómez et alli, defenda a existência de duas linhas de geografia crítica, a americana e a francesa. Mais recentemente, a partir da constatação das insuficiências analíticas do marxismo, e da necessidade em enfatizar a dimensão espacial no pensamento marxista, Paulo César da Costa Gomes constata que a geografia radical vem se afastando do projeto de construir pelo marxismo uma ciência total; o marxismo passou a ser visto como uma inspiração, enfim como um pensamento pelo qual se tem uma perspectiva que auxilia na compreensão da realidade. O que é interessante notar neste novo período da geografia crítica vem a ser a sua proximidade com o humanismo; entre as duas linhas de pensamento há um imediato ponto de proximidade dada a crítica à O que se segue decorre de um apanhado de diferentes trabalhos por mim elaborados durante o curso de doutoramento na UFRJ, 1995-1998, são eles: artigo publicado no Boletim do Grupo de Estudos Geopolíticos, nº 2/ano 2, Departamento de Geografia, UFF, em março/97; do qual produzimos dois outros artigos, a saber: 1) “Qual o futuro da Geografia após a sua fase moderna?”, publicado na Revista da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias (RJ), agosto de 1999, ano I, nº 1; 2) “Geografias moderna e pós-moderna”, artigo publicado na Revista do Mestrado do curso de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, ano I, nº 1, jan/jun. de 1999, pp. 121-138. 2

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ciência positivista, a partir deste aspecto, e pela respectiva evolução do pensamento geográfico, Paulo César observa que o ... materialismo histórico redescobriu a reflexividade de toda ação social e, por conseguinte, a importância de uma análise que leve em conta o valor e o antropocentrismo da vida social. Ao mesmo tempo, o humanismo se desembaraçou do idealismo e do subjetivismo, que caracterizaram as primeiras análises, e recolocou aimportância da existência material no centro das interpretações (1996, pp. 301-302).

Na análise da formação da geografia radical verifica-se uma deliberada luta contra a geografia quantitativa, não só pelo seu conteúdo técnico, mas precipuamente pelos pressupostos de base positivista. Neste aspecto também há um ponto de proximidade com a geografia humanista. A geografia radical alega que os elaborados métodos quantitativistas, em função de sua base de apoio, estariam apoiados em enfoques que não mais contribuiriam para a compreensão da sociedade, além de ter uma função mitificadora sobre a realidade. Deste modo, para validar a posição de um discurso sem contradição, você retira do seu objeto de análise aspectos que não possam ser imediatamente apreendidos pela teoria adotada; desta forma o resultado advindo deste procedimento é uma imagem higienicamente tratada da realidade, higienicamente vista aqui no ponto de vista de que a matemática não apreende o caos da vida, os sentimentos, as contradições sociais. Tanto João Mello, quanto Werther Holzer, em suas respectivas análises sobre a geografia humanista são acordes em destacar que ela ocorreu no bojo de uma profunda insatisfação com o positivismo. Este separou o observador daquilo que observa, não destacando a própria riqueza que se dá na interação destas partes. A experiência, a experiência vivida, faculta ao observador determinadas informações que pelo método positivista não são destacados3. A decepção com o esforço “métrico” do neopositivismo em analisar a realidade a partir de enfoques mecanicistas, tendo como pressuposto que a mesma é conduzida por mecanismos bem programados, Segundo Yi-Fu Tuan, a experiência é uma operação complexa que varia do sentimento primário até concepções complexamente elaboradas; através dela a pessoa conhece e constrói a realidade. “Experenciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir deles. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um construto da experiência, uma criação de sentimento e pensamento” (Tuan, 1983, p. 10). 3

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gerou a demanda por um enfoque onde o sentimento, o medo, a paixão, a loucura, enfim, tudo aquilo que a princípio não obedecesse a uma ordem racional pudesse ser também campo de reflexão. Há um aspecto que aproxima a fenomenologia, principal base de apoio da geografia humanista, e o marxismo, a saber: ao contrário do neopositivismo, estas não separam o sujeito do objeto; porém, há profundas diferenças entre estas escolas, numa percepção marxista, por exemplo, a consciência é determinada pela vida, enquanto para a fenomenologia a consciência é o próprio indivíduo que por uma interpretação pessoal reflete sobre a sociedade. Enquanto no marxismo há o reforço na consideração das estruturas sociais enquanto meio para compreender a sociedade, a visão fenomenológica destaca o papel da individualidade para compreender esta mesma sociedade. Enquanto, pela visão marxista, é criticada na geografia humanista a ênfase na cultura e nas ações individuais,o geógrafo humanista critica a geografia crítica por destacar o aspecto econômico e racionalista da sociedade de modo a diminuir o papel que a individualidade tem para a organização de uma dada sociedade.

Contexto nacional Ao tentarmos definir os grupos que atuam na geografia cultural brasileira percebemos uma notória dificuldade. Quando analisamos, por exemplo, a geografia crítica (analisadas em www.feth.ggf.br/GeografiaCrítica.htm e www.feth.ggf.br/Geocrítica.htm) notamos claramente que a sua urgência foi ditada por um momento histórico, no caso brasileiro, muito marcado pela reabertura política. Além disso, esta corrente tinha uma corrente de pensamento, o marxismo, que articulava o pensar e o agir. Quando procuramos ver (sic.) a geografia cultural no Brasil, no entanto, notamos um quadro bem diferente; em primeiro lugar, ela é difusa, porém viva. Particularmente são os mais jovens que estão dispostos a discutir religião, hip-hop e lendas do sertão. Outro aspecto que chama a atenção é certa marginalidade que a mesma apresenta, ou seja, a geografia cultural ainda não aconteceu enquanto um happening no Brasil. Ainda não se deu uma inflexão pela qual ela possa virar uma referência com envergadura nacional4. Por exemplo, no caso da geografia crítica, um apoio que teve notório papel em sua disseminação foi a Associação de Geógrafos Brasileiros. 4

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O que temos são pessoas que junto a outras formam núcleos, mas estes ainda não estabeleceram uma agenda que percorra o país. Por exemplo, quando lemos o notável trabalho de Ferreira (2002) sobre a geografia agrária brasileira, fica nítido como um dado coletivo em diferentes partes do país estabeleceu uma estratégia de confluências de talentos voltados para o tema.

De certa forma, as pessoas envolvidas com temas correlatos à geografia cultural não atuam enquanto membros participantes de uma única e mesma grande escola. Cada qual toca o seu instrumento. Não se tem, por exemplo, uma conflagração de uma mobilização que, por exemplo, vise influenciar os livros didáticos, tal como a geografia crítica fez. Este apanhado nos leva a buscar explicações para tal quadro. Na minha interpretação a geografia cultural no Brasil carece de uma paternidade, ou seja, quando temos em conta a geografia crítica, desculpem-me a insistência, o processo de produção esteve e está intimamente ligado ao movimento que ocorria e ocorre nas ruas, nos partidos, nos acontecimentos. Havia, aliás, há um feedback entre a produção acadêmica e a dinâmica social. No caso da geografia cultural, ela está refém da universidade, da universidade pública brasileira, uma universidade que carece de um projeto; está inserida num país que literalmente não tem projeto a não ser o de manter eternamente o status quo. O que destaco aqui é que se a geografia crítica foi favorecida pela reabertura política no país; a geografia cultural, por sua vez, não usufruiu nem de um momento, nem de uma instituição com envergadura nacional como a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), que teve papel decisivo na expansão da geografia crítica. A geografia cultural brasileira é a geografia da Internet. Não fosse isso a sua revolução passaria por baixo do solo de forma menos nítida. A geografia cultural brasileira embora não tenha conquistado os grandes salões da geografia brasileira, tipo, capitanear as primeiras mesas promovidas pela Associação de Geógrafos Brasileiros, ou, ter maior ascendência sobre os encontros promovidos pela Associação de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), ela promove uma profusão de temas e, de certo modo, é a que explora melhor a internet, explora mais porque não encontra-se esgotada,cansada; pelo contrário, ainda tem muito caminho pela frente. Na universidade brasileira, por sua vez, destaco que o principal núcleo de geografia cultural encontra-se na Universidade do Estado 348

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do Rio de Janeiro (UERJ), conhecido pela sigla NEPEC. É o principal porque é o que apresenta a maior diversidade de suas ações, seja no lançamento de livros, seja na promoção de diferentes seminários. Houvesse no Brasil mais um núcleo semelhante a este, muito provavelmente a geografia cultural teria outra característica no país. Destacaria ainda o encontrado na Universidade Federal do Paraná – Núcleo de Estudos em Espaço e Representações (NEER). Fora estes, surge uma série de outros núcleos que parecem que têm também um caráter heróico, ou seja, pessoas afinadas com o tema procuram desenvolver o assunto com o apoio maior dos alunos do que propriamente de outros professores. Temos, assim, iniciativas no Rio Grande do Sul, Bahia, Mato Grosso do Sul, Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Ceará, Santa Catarina etc. Na bibliografia sobre a geografia cultural brasileira há uma notória falta de uma resenha semelhante à realizado por Armando Correa da Silva (1984) em favor da geografia crítica. Convém que isto seja realizado por um geógrafo cultural5. Percebo que há uma notória falta de unidade em termos de configuração de um projeto de poder por parte dos geógrafos culturais, algo semelhante ao realizado pelos geógrafos críticos na Associação de Geógrafos Brasileiros e na produção de livros didáticos. Haveria apetite para tanto? Convém ter! Por quê? Porque simplesmente a geografia brasileira está desaparecendo! Hoje já há um projeto de se retirar a disciplina Geografia da grade do primeiro e segundo graus do ensino sob a argumentação de que o seu programa exposto em sala de aula se assemelha muito às aulas de História e Sociologia. Além disso, a posição profissional do geógrafo no corpo do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), por exemplo, é bastante tímida, os pareceres técnicos de geógrafos são seriamente criticados por engenheiros, economistas etc. E, sinceramente, não é saindo do CREA que a situação vai ser sanada, muito menos criando um conselho próprio, a tirar pelo que ocorre com a AGB que, após mais de 70 anos nem sede própria tem, vivendo literalmente encostada nas universidades; imaginem como ficaria o conselho... Seria reconhecido? Por qual empregador? Há uma perda de ascendência se temos em conta o que já foi gerado pela geografia na conformação do retrato deste país, via Instituto Os trabalhos de Rosendahl & Correa (2005) e Claval (1999) indicam o início de uma reflexão a partir da produção relacionada à geografia cultural brasileira. 5

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Histórico Geográfico Brasileiro, via Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, e por último, via Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Além disso, a Geografia, disciplina, vem perdendo o que outrora lhe foi tão marcante, a saber, uma notória preocupação com o quadro físico, e de forma alguma procurava ser considerada como uma ciência humana6.

Conclusão Vivemos um estado de guerra. Os episódios dramáticos de 11 de setembro de 2001 representam uma inflexão no processo histórico. O estado de guerra atual é difuso, disperso, qualquer pessoa pode virar homem-bomba e se ver no direito de destruir o que bem entende. A questão da cultura torna-se algo pungente, a decifração dos seus caminhos, como surge o processo criador, por exemplo, por que a necessidade da cultura, outro exemplo, faz da geografia cultural um tema de última hora. Esta preocupação com a cultura pode vir a ter endereços para o bem ou para o mal: mal se a intenção é o de fomentar certa engenharia social de controle; bem, se seguir o inverso. Mas, o que é fundamental, é não entender a cultura, por tabela a geografia cultural, como algo curioso, servindo para melhorar o teor de uma conversa, de forma alguma, ela encontra-se na berlinda.

Sobre a ação destas duas últimas instituições, cabe conhecer os seguintes textos: www.feth.ggf.br/Socgeorio.htm, www.feth.ggf.br/Congresso.htm , www.feth.ggf.br/ Geografia.htm e www.feth.ggf.br/FIBGE.htm. 6

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Esta obra foi impressa em processo digital/sob demanda, na Oficina de Livros para a Letra Capital Editora. Utilizou-se o papel polén soft 80g/m² e a fonte ITC-NewBaskerville corpo 11 com entrelinha 13,8. Rio de Janeiro, agosto de 2014.

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