As Linhas Intertextuais no Imaginário Contemporâneo de Neil Gaiman

March 29, 2018 | Author: Laís Fernandes | Category: Greek Mythology, Human, Unconscious Mind, Carl Jung, Sigmund Freud


Comments



Description

LAÍS FERNANDES ROCHAAS LINHAS INTERTEXTUAIS NO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO DE NEIL GAIMAN: Um passeio pelas Dreamlands do autor de Sandman Osasco 2017 LAÍS FERNANDES ROCHA AS LINHAS INTERTEXTUAIS NO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO DE NEIL GAIMAN: Um passeio pelas Dreamlands do autor de Sandman Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade Anhanguera de Osasco, como requisito parcial para a obtenção do título de graduado em Letras. Orientador: Glauce Pagan. NOME DO(S) AUTOR(ES) EM ORDEM ALFABÉTICA Osasco 2017 AS LINHAS INTERTEXTUAIS NO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO DE NEIL GAIMAN: UM PASSEIO PELAS DREAMLANDS DO AUTOR DE SANDMAN Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade Anhanguera de Osasco, como requisito parcial para a obtenção do título de graduado em Letras. Aprovado em: __/__/____ BANCA EXAMINADORA Prof(ª). Titulação Nome do Professor(a) Prof(ª). Titulação Nome do Professor(a) Prof(ª). Titulação Nome do Professor(a) Dedico este trabalho a Deus, aos meus pais (por todo o amor, carinho e livros cedidos ao longo destes meus vinte e um anos) e a Caio. Te amo com todo meu coração. AGRADECIMENTOS Este trabalho não ganharia corpo e vida se não fossem algumas pessoas extremamente especiais que com ele se importaram. Alencar e Ana, meus pais: muito obrigada por terem me criado com tanto zelo e amor. Obrigada por nunca terem negado os livros que foram (e continuam sendo) tão importantes para a minha formação, não só como estudante em Letras, mas fundamentalmente como ser humano pensante e transformador do mundo em que vive. Não seria a mesma sem Mônica, Píppi, Bella, Isabel e tantas outras heroínas de minha infância. Obrigada por terem se desdobrado em milhões para que eu recebesse uma educação de qualidade e pudesse chegar até aqui. Minhas linhas continuariam tortas se não fossem por vocês. Obrigada por tudo o que vivemos e pelo o que ainda viveremos. Enéas, meu irmão e melhor amigo: se não fosse por você, o objeto deste estudo não seria tão conhecido. Obrigada por todas as maratonas de Cavaleiros do Zodíaco e por todas as referências musicais. Obrigada por todas as brincadeiras, risadas e, principalmente, por ter sido uma das maiores referências de personalidade que eu tive. Não seria eu mesma sem você. Caio, meu Guardador de Estrelas: obrigada por ter me enxergado quando ninguém mais o faria. Obrigada por ter insistido que Neil Gaiman seria uma ótima escolha para o meu TCC. Obrigada por todas as indicações de filmes, livros, séries de TV, por todos os momentos e gestos que me fazem acordar todos os dias com a plena certeza de que sou a mulher mais feliz de todos os universos existentes. Obrigada simplesmente por existir (no mundo e aqui dentro do meu coração). Obrigada a todas as mulheres das famílias Fernandes e Rocha. Obrigada a todas as amigas, professoras, parentes e irmãs de luta: este trabalho também é para vocês, belas criaturas, machucadas e esmagadas pelo patriarcado. Nossa batalha só termina quando a última de nós cair; e isso nunca irá acontecer. Sigamos a caminhada de peito aberto e cabeça erguida! RESUMO O presente trabalho tem por finalidade observar amplamente fatores que levam Neil Gaiman a compor suas obras com base em histórias clássicas, conhecidas nas culturas pop e folclórica. Para tanto, será usado o conceito de intertextualidade estudado por Ingedore Villaça Koch, em suas obras O Texto e a Construção de Sentidos (1997) e Ler e Compreender: Os Sentidos do Texto (2006, apud Vanda Maria Elias) bem como os estudos acerca de arquétipos iniciados pelo psicanalista sueco Carl Jung e de seu discípulo, o pesquisador norte-americano Joseph Campbell, cuja obra aborda em profundidade a existência e importância dos mitos dentro dos rituais ancestrais e modernos da sociedade, fator presente consideravelmente na obra de Gaiman. A análise partirá, também, dos métodos que o autor utiliza para resgatar estórias aclamadas, dentre elas os contos de fadas, dando a elas novas roupagens, sem que se percam as essências dos originais (mas com o toque soturno, corriqueiro na obra do autor). Os gêneros estudados serão plurais, assim como a escrita de Gaiman, que parte dos quadrinhos e caminha por romances, poesias e contos, as denominadas short stories. Cada capítulo será dedicado estritamente a uma destas vertentes, sendo o primeiro uma investigação acerca da série de quadrinhos Sandman (1988), o segundo, a influência de Jung e Campbell nos livros Deuses Americanos (2001) e Mitologia Nórdica (2017) e, por fim, no terceiro serão analisados contos e romances infantojuvenis e adultos que resgatam os contos de fadas usados outrora como histórias morais, bem como histórias infantis aclamadas pela crítica que servem de base para muitas vertentes artísticas, como é o caso de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (CARROLL, 1865). Palavras-chave: Intertextualidade; Mitologia; Contos de fadas; Neil Gaiman. ABSTRACT This paper aims to observe broadly the factors that lead Neil Gaiman to compose his works based on classic stories, known in popular and folkloric cultures. To do so, it will be used the concept of intertextuality studied by Ingedore Villaça Koch, in her works The Text and Construction of Senses (1997) and Read and Understand: The Senses of the Text (2006, apud Vanda Maria Elias), as well as the studies about the Archetypes initiated by the Swedish psychoanalyst Carl Jung and his disciple, the American researcher Joseph Campbell, whose work addresses in depth the existence and importance of myths within the ancestral and modern rituals of society, a factor often present in Gaiman's work. Will also be analyzed the methods that the author uses to rescue acclaimed stories, giving them a new lease of life, without losing the essences of the original text (but with the ordinary author’s dark touch). The genres studied will be plural, as well as the writing of Gaiman, who starts from comics and goes through novels, poems and short stories. Each chapter will be devoted strictly to one of these literary genres, the first being an investigation of the Sandman comic series (1988), the second, the influence of Jung and Campbell on the books American Gods (2001) and Norse Mythology (2017), and then, in the third part, it will be analyzed short stories and novels that rescue the fairy tales once used as moral stories, and children's stories critically acclaimed that serve as the basis for many artistic trends, such as The Adventures of Alice in Wonderland (CARROLL, 1865). Key-words: Intertextuality; Mythology; Fairy tales; Neil Gaiman. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Ole-Luk-Oie ............................................................................................ 15 Figura 2 – Sandman ................................................................................................ 15 Figura 3 – As Relíquias de Sandman ...................................................................... 16 Figura 4 – Os Perpétuos ......................................................................................... 17 Figura 5 – As Três Faces da Grande Deusa ........................................................... 21 Figura 6 – As Moiras ............................................................................................... 21 Figura 7 – Coraline e o Gato ................................................................................... 32 Figura 8 – Alice e o Gato de Cheshire ..................................................................... 32 Figura 9 – Os Olhos de Botão ................................................................................. 33 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9 2 VOU REVELAR-TE O QUE É MEDO NUM PUNHADO DE PÓ ........................ 12 3 QUANDO O DIVINO E O MUNDANO DÃO-SE ÀS MÃOS ............................... 18 4 QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU? ............................................................... 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 34 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 36 9 1 INTRODUÇÃO Neil Richard Gaiman nasceu em Portchester, Inglaterra, em 1960 e, ao longo de seus cinquenta e seis anos, arrebata fãs por onde passa. Começou sua carreira como jornalista freelancer, sendo seu primeiro contato com o mundo literário, propriamente dito, a criação das biografias da banda inglesa de rock Duran Duran e do autor de ficção científica Douglas Adams, criador da série O Guia do Mochileiro das Galáxias. Em parceria com nomes famosos, como o do desenhista Dave McKean, roteirizou a graphic novel (termo utilizado primeiramente pelo quadrinista Will Eisner, em 1978, na capa de sua revista A Contract with God, e que diz respeito aos romances em quadrinhos cuja temática adulta pode possuir cunho filosófico e/ou literário) intitulada Violent Cases, que versa acerca da mente criativa de uma criança, capaz de confundir episódios vivenciados em sua família e gerar uma série de mal-entendidos. Mas foi com a série de quadrinhos Sandman que Gaiman ganhou notoriedade e cunhou sua estrela no hall dos escritores mais influentes da contemporaneidade. A vasta obra de Neil Gaiman abrange as literaturas infantil, infantojuvenil e adulta e, em sua maioria, retoma grandes clássicos literários fantásticos e populares através de um novo viés que ultrapassa as expectativas do leitor, por se mostrar plural, criativa e dinâmica. O tema deste trabalho visa estabelecer uma leitura abrangente nas obras deste autor contemporâneo tão conceituado e elogiado pela crítica e, ainda mais, investigar como ele consegue adaptar completamente ou parcialmente histórias já conhecidas, porém fazendo-as possuir novas características que dão a elas um perfil diferente e mais elaborado do que o que fora exposto por seus autores originais. Objetiva-se observar, em primeiro plano, o cuidado e os meios com os quais Gaiman une o passado e o presente em sua prosa e as influências de autores e fatores externos em sua arte. Já em segundo plano, o porquê da intertextualidade ser uma marca tão forte nas obras do autor também será objeto de estudo deste trabalho. Nas palavras da autora Hayley Campbell (2014), a qual escreveu a biografia autorizada do autor, intitulada A Arte de Neil Gaiman: 10 A ficção de Gaiman tem um sentimento que parece pessoal e verdadeiro. Suas histórias se instalam num local particular da mente, um local que todo mundo tem, repleto de memórias de torradas e geleia, velhos livros com anciãos sábios de barbas cinzentas. Ele tece elementos ficcionais consagrados na tapeçaria da história, o que passa a sensação de atemporalidade, como se a história sempre tivesse estado lá e ele tenha sido apenas a pessoa que a colocou na página. (CAMPBELL, 2014, p.11) A metodologia de estudo das intertextualidades nas obras de Gaiman será abordada de acordo com os conceitos de Koch (1991) e Julia Kristeva (1960), cuja definição, em suma, diz respeito à menção de textos já conhecidos dentro de outros textos, o que Bakhtin (1986) chamou de “dialogismo”, obras que conversam entre si e interdependem-se. Para este último, “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (BAKHTIN, 1992, p. 291). Ainda, para Koch e Elias (2006), os intertextos subdividem-se em duas categorias: os de lato sensu e os de stricto sensu. Quanto ao lato sensu, compreendem-se diálogos em sentido amplo, uma vez que todo e qualquer discurso é baseado em outros pré-determinados, não tendo uma natureza pura (apud CASTILHO, 2011, p. 9). Já o stricto sensu, para Koch e Vanda Maria Elias, “ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade” (ELIAS; KOCH, 2006, p. 86). Com base no conceito de intertextualidade estudado por Ingedore Villaça Koch, Vanda Maria Elias (2006) e Julia Kristeva (1960), sob efeito do que foi postulado por Bakhtin, no que se refere a dialogismo, objetiva-se compreender quais os métodos utilizados pelo autor ao mencionar obras consagradas dentro de suas estórias, observando as raízes que permanecem e o que brota de novidade em seus textos, bem como verificar se tal fator é uma constante ou se existem criações do autor sem a influência externa de outros autores, uma vez que “perceber semelhanças entre coisas, seres, ideias leva naturalmente a estabelecer comparações ou semelhanças” (GARCIA, 2011, p. 328). Para tanto, necessita-se uma visão ampla do que já foi produzido por Gaiman, investigando suas short stories (do inglês, “contos”), prosas infantojuvenis, adultas e roteiros para histórias em quadrinhos. Gaiman é um dos autores mais prolíficos e importantes ainda vivos, mas sua notoriedade ainda é resguardada a grupos de fãs de Horror, Terror e Ficção Científica; e, assim como grandes autores de séculos passados, como William Shakespeare, Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, necessita ser amplamente 11 estudado e difundido, para seguir influenciando a arte de diversos jovens escritores ao redor do mundo, uma vez que já o faz há décadas. Compreender seus escritos e, fundamentalmente, as intertextualidades neles, é uma maneira de enxergar a própria história mundial, os hábitos culturais de povos antigos e a importância de se preservar e propagar as narrativas orais nos dias atuais. 12 2 VOU REVELAR-TE O QUE É MEDO NUM PUNHADO DE PÓ O título deste capítulo, um dos versos do poema Terra Desolada, de T. S. Eliot (tradução de Ivan Junqueira), diz muito sobre o personagem que consagrou Gaiman nos quadrinhos: Sandman, ou o “Homem-Areia”, é uma entidade que usa seus poderes para acrescentar glórias ou infortúnios à vida de todos os seres humanos existentes. A figura do Sandman, em si, dentro dos quadrinhos, existia desde os anos 30 e só chegou às mãos de Gaiman, para que o reformulasse para um projeto completamente diferente, cinquenta anos depois: Personagens de quadrinhos passam por tantas mudanças e reinvenções que há uma palavra para descrever o ato de fingir que a atual encarnação sempre existiu: “retcon”, ou continuidade retroativa. Ela bagunça o mundo. Mas o Sandman havia passado por tantas revisões em seu tempo de existência que a cada vez que ressurgia, era praticamente um novo personagem. Criado em 1939 por Gardner Fox e Bert Christman para a Adventure Comics 40, Wesley Dodds era um homem misterioso no estilo pulp noir, que trajava terno verde, chapéu fedora e máscara de gás, e usava uma arma que soltava gás para sedar criminosos. Ele era bom em combate corpo a corpo, mas não tinha superpoderes, exceto a habilidade de ver o futuro em seus sonhos. Em 1941, o personagem foi revisto por Mort Weisinger e pelo artista Paul Norris, que o vestiu num uniforme amarelo e roxo e deu a ele um parceiro mirim, chamado Sandy, o Garoto de Ouro. Ele carregava uma bolsa com pó de sonhos e seu principal objetivo era proteger crianças adormecidas dos monstros em suas cabeças. Esta foi a versão que Joe Simon e Jack Kirby assumiram um ano depois, e então, em 1974, criaram um novo Sandman para outra série de curta duração. (CAMPBELL, Hayley, 2014, p. 96) O conceito de retcon vai ao encontro da intertextualidade que permite a Gaiman e a tantos outros escritores se apropriarem de personagens já conhecidos para protagonizarem ou elencarem suas obras. Esta “reencarnação” de figuras conhecidas no imaginário da cultura pop, não apenas nos quadrinhos, como também nos romances, contos e poesias de Gaiman, tornou-se uma constante em seus escritos a partir de seu primeiro contato com Sandman. A versão de Gaiman de Sandman, lançada em 1988, apresenta em seus treze arcos de histórias Os Perpétuos, criaturas que são mais fortes do que os próprios deuses inventados pela humanidade e que servem de representações antropomórficas para conceitos que estão presentes no cotidiano de cada indivíduo, sendo eles Sonho, Morte, Desejo, Desespero, Delírio, Destino e Destruição. As sete criaturas são irmãs e cada uma delas possui características bem marcantes, como a Morte, uma bela jovem, pálida, de cabelos pretos e estilo gótico, que procura cativar as pessoas que morrem com muita simpatia e bom humor. Enquanto o personagem 13 clássico de Fox e Christman era um homem comum, com poderes, cujas características físicas remetem aos super-heróis da DC Comics, Sandman de Gaiman permeia muito mais o imaginário mitológico e a literatura, por apresentar-se de forma onírica e inalcançável, como o próprio nome sugere. É difícil quantificar a importância do Sandman de Gaiman na história geral dos quadrinhos, mas sua aparição na cena é tão significativa, que não seria exagero sugerir que a história dos quadrinhos podia ser medida em termos de “pré” ou “pós” Sandman. A série ressoa isso profundamente, honrando o que veio antes e estabelecendo um padrão extremamente alto para lançamentos subsequentes. (BISSETE, Stephen R.; GOLDEN, Christopher; WAGNER, Hank; 2009, p. 62) Sandman, também conhecido como Morpheus, Sonho ou Lorde Moldador é a figura-chave para que o desenrolar dos fatos na HQ aconteçam, mas para tanto é necessário voltar aos contos populares, passados de geração a geração (apud ALMEIDA, 2011, p. 3): na mitologia grega, Morpheus é o deus dos sonhos e, no folclore português, a mesma entidade aparece com o nome de João Pestana. João Pestana é um ser encarregado de trazer o sono para todos e, para tanto, entra nos quartos das pessoas, munido com uma sacola cheia de areia, esta última sendo derramada sobre os olhos delas, a fim de que adormeçam. João Pestana gratifica as crianças boas com sonhos vívidos e coloridos e pune as más com sonhos horrorosos – eis a origem dos pesadelos. A manifestação mais antiga e encontrada na literatura clássica sobre a lenda de João Pestana consta, com variações, na obra do contista dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), o qual criou o personagem Ole-Luk-Oie. Ole, em dinamarquês, é utilizado para designar o sexo masculino, já Luk-Oie significa “aquele que fecha os olhos”, podendo este nome ser livremente traduzido como “O Homem que traz o Sono”: There is nobody in the world who knows so many stories as Ole-Luk-Oie, or who can relate them so nicely. In the evening, while the children are seated at the table or in their little chairs, he comes up the stairs very softly, for he walks in his socks, then he opens the doors without the slightest noise, and throws a small quantity of very fine dust in their eyes, just enough to prevent them from keeping them open, and so they not see him. Then he creeps behind them, and blows softly upon their necks, till their heads begin to droop. But Ole-Luk-Oie does not wish to hurt them, for he is very fond of the children, and only wants them to be quiet that he may relate to them pretty stories, and they never are quiet until they are in bed. He is nicely dressed; his coat is made of silken stuff; it is impossible to say of what color, for it changes from green to red, and from red to blue as he turns from side to side. Under each arm he carries an umbrella; one of them, with pictures on the inside, he spreads over the good children, and they dream the most beautiful stories the whole night. But the other umbrella has no pictures, and this he holds over the naughty children so that they sleep heavily, and wake 14 in the morning without having dreamed at all. (ANDERSEN, Hans Christian, 1842) (Não existe ninguém no mundo que conheça tantas histórias como Ole-Luk- Oie, ou quem possa contá-las tão bem. À noite, enquanto as crianças estão à mesa ou sentadas em suas cadeirinhas, ele sobe as escadas calmamente, andando de meias, abre as portas sem fazer barulho e derrama uma pequena quantidade de areia bem fina em seus olhos, o suficiente para prevenir que eles fiquem abertos e o vejam. Então, fica atrás delas e sopra de mansinho em seus pescoços, até suas cabeças começarem a pesar. Mas Ole-Luk-Oie não quer machucá-las, pois gosta muito de crianças e só quer que elas fiquem quietas para que ele possa contar suas histórias – e elas só se calam quando estão dormindo. Ele se veste bem; seu casaco é feito de seda. É impossível dizer a cor, pois muda do verde ao vermelho, e do vermelho ao azul, enquanto ele se move. Embaixo de cada braço ele carrega uma sombrinha; uma delas, com imagens dentro, ele coloca sobre as crianças boazinhas e elas sonham as mais lindas histórias a noite toda. Mas a outra sombrinha não tem imagens e esta ele coloca sobre as crianças malvadas, para que eles durmam agoniadas e acordem pela manhã sem terem sonhado coisa alguma. (tradução minha)) O conto que apresenta Ole-Luk-Oie tem como subtítulo The Dream God (do inglês, “O Deus do Sonho”), e introduz Hjalmar, um garoto que é visitado pela personagem durante sete dias, nos quais Ole-Luk-Oie dedica seu tempo para contar-lhe as mais belas histórias, enfeitando seu quarto com imagens de lindas paisagens. Para que as crianças não percebam sua presença, a criatura usa areia para adormecê-las, característica que perdura até a obra de Gaiman, uma vez que Sandman possui uma algibeira com este mesmo conteúdo, que usa para colocar em sono profundo aqueles que com ele têm contato. Outro ponto em que as obras se unem intertextualmente em stricto sensu, dá-se quando Ole-Luk-Oie conta a Hjalmar que ele, Deus do Sonho, é irmão da Morte, assim como a criação de Gaiman. A Morte seria a outra versão de Ole-Luk-Oie, da mesma forma que o deus da morte, Tânatos, era tido como irmão de Morpheu na mitologia grega. Longe de possuir um visual colorido como o Ole-Luk-Oie apresentado no conto de Andersen, Sandman veste-se com uma túnica escura e possui aparência andrógina. Diferente de Ole-Luk-Oie, uma figura agradável e divertida para lidar com as crianças, cuja personalidade foi pouco explorada por Andersen, Sandman é uma personagem complexa, reclusa, orgulhosa, mal-humorada e encontra-se sempre questionando seu propósito e sua finalidade no mundo dos mortais, em meio a diversas crises existenciais. Gaiman trabalha a psicologia da personagem, conferindo-lhe não apenas status de uma criatura que está acima das divindades que rondam as diversas manifestações e celebrações sociais, mas também como 15 um ser que anseia por compreensão e companhia, vindo a recorrer à ajuda de sua irmã, Morte, muitas vezes. É notório que “Sonho (...) é, de vários modos, um herói clássico, completo com defeitos trágicos – (...) seu romantismo, seu ego facilmente ferido e sua autoconfiança. Através da série, ele se confronta com as consequências de suas ações” (BISSETTE; GOLDEN; WAGNER, 2009, p. 63). Figura 1 - Ole-Luk-Oie. Gravura feita para a ilustração do conto original. Figura 2 – Sandman, em um dos quadros da HQ de Neil Gaiman. 16 Figura 3 – As três relíquias, nas quais Sandman guarda seu poder: o elmo, o rubi e a algibeira de areia. Apesar do aspecto do Sonho ter raízes na mitologia clássica e na articulação de Joseph Campbell de temas míticos e religiosos comuns, é importante notar aos leitores contemporâneos de Sandman e leitores de Gaiman em geral que ele se baseou conscientemente seu trabalho nisso, numa veia do gênero conhecido em alguns cantos como “fantasia recursiva”. A fantasia recursiva se baseia em personagens, conceitos e ambientes já conhecidos – naturalmente, todas as histórias em quadrinhos são assim – mas a definição é específica a trabalhos que lidam com elementos de precursores ficcionais já existentes. Com frequência, isso envolve obras usando famosos personagens de domínio público, como Frankenstein, Drácula ou Sherlock Holmes, mas é a interessante camada de realidade, incluindo aquela que é ficcional dentro do contexto de “realidade” da fantasia, que mais frequentemente está em jogo. (BISSETE, Stephen R.; GOLDEN, Christopher; WAGNER, Hank, 2009, p. 63) Hank Wagner, Christopher Golden e Stephen R. Bissette, autores do livro sobre a vida e obra de Gaiman, Príncipe das Histórias: Os Vários Mundos de Neil Gaiman (2009), definem Sandman como “uma das melhores máquinas narrativas já concebidas” (BISSETTE, GOLDEN, WAGNER, 2009, p.62), por se valer da denominada “fantasia recursiva” e se tornar amparo para outras tantas obras consagradas na Literatura, Artes Plásticas e música, influenciando-as e delas se valendo como inspiração. Não só a própria figura de Sandman, inspirada em personagens folclóricos, possui destaque dentro da obra; a magnitude literária e filosófica dos quadrinhos é imensa, e passa por inspirações vindas de Joseph Campbell, estudioso norte- americano no campo das diversas mitologias existentes, cujos trabalhos influenciaram em grande escala as obras de Gaiman, Edgar Allan Poe (o fiel companheiro de Sandman, Matthew, é um corvo, assim como a personagem da obra mais famosa de Poe, no poema O Corvo), William Shakespeare e Sonho de uma 17 Noite de Verão, dentre outras inúmeras referências. As próprias figuras d’Os Perpétuos, em sentido lato sensu da intertextualidade de Koch, podem ser facilmente comparadas aos Sete Pecados Capitais, não apenas pelo número de entidades, mas também por estarem intrinsecamente ligadas a psique humana e às relações que os indivíduos estabelecem ao longo de suas vidas. A chamada “metaficção” desses quadrinhos vai além de uma história fechada, sendo concebida como uma “história sobre histórias”. A premissa das sete criaturas, personificações de conceitos inerentes à vida humana, é apenas um gancho para o desenrolar de outras narrativas paralelas à central, em que Sandman é aprisionado por engano por participantes de uma seita ocultista que, na verdade, queria capturar a Morte, a fim de alcançarem a imortalidade. Passando quarenta anos dentro de uma redoma de vidro, os sonhos dos mortais entram em colapso e a sociedade não descansa até Sandman conseguir se libertar, recuperar suas relíquias e buscar vingança. Figura 4 – Os Perpétuos (da dir. para a esq.: Sonho, Morte, Desejo, Destruição, Destino e Desespero). 18 3 QUANDO O DIVINO E O MUNDANO DÃO-SE ÀS MÃOS Em seu livro de ensaios, The View from the Cheap Seats (2016), Neil Gaiman afirma que “Sandman foi, de várias maneiras, um jeito de criar uma nova mitologia (tradução minha)” (GAIMAN, 2016, p. 56) e que mitologias sempre o fascinaram, não apenas a existência delas propriamente ditas ou o porquê da sociedade necessitá- las, como também o porquê delas necessitarem dos seres humanos para sobreviverem (apud GAIMAN, 2016, p. 57), fator que é um dos fios condutores do romance Deuses Americanos (2001). O escritor Moacyr Scliar (2009), em seu artigo, para o Jornal Zero Hora (RS), Mito e Evidência, define “mito” como “uma narrativa fantasiosa que, no entanto, cumpre uma função: serve para proporcionar uma explicação para coisas (...) obscuras”. Logo, a Mitologia é a junção de uma série de mitos, os quais são encontrados em todos os cantos do mundo, e que serviam como forma de explicar os fenômenos decorrentes da natureza e colocar o ser humano em contato espiritual com algo além da compreensão terrestre. Os mitos sempre serviram, em primeiro lugar, para explicar o inexplicável: em seu mais novo lançamento, Mitologia Nórdica, Gaiman (2017) esmiúça a mitologia escandinava, referente ao norte da Europa, apresentando seus deuses mais famosos como Odin, Thor, Balder e Loki. Em certa passagem do livro, quando Loki, o deus da trapaça, está preso em uma caverna subterrânea por ter provocado a morte de Balder, Gaiman escreve que ele ”gritou e se contorceu, forçando os grilhões. A própria terra se moveu quando ele se debateu” (GAIMAN, 2017, p. 259). Logo, tal fator originou os abalos sísmicos, os terremotos, e era encarado como verdade absoluta em um período ancestral, no qual a Geografia não existia para explicar os fatos pautada na ciência. Quando esses indivíduos primitivos passaram da caça ao plantio, as histórias que contavam para explicar os mistérios da vida mudaram, também. Então, a semente se tornou o símbolo mágico do ciclo infinito. A planta morria, era enterrada e sua semente renascia. Campbell mostrou-se fascinado pelo fato de esse símbolo ter sido incorporado pelas grandes religiões do mundo, como a revelação da verdade eterna – a vida provém da morte, ou, como ele dizia: “A bem-aventurança provém do sacrifício.” (MOYERS, 1988, p. 11) Joseph Campbell (1988), escritor e estudioso norte-americano no ramo das mitologias, com base nos estudos do psicanalista suíço Carl Jung (1976), constatou 19 que os mitos também serviam como base espiritual para todas as ramificações da sociedade, passando de pessoa para pessoa, e de geração para geração pelo denominado “inconsciente coletivo” (o que outrora servia para explicar os fenômenos da natureza, também passou aos poucos a interferir diretamente nela, em rituais que serviam para garantir a fartura nas colheitas e uma vida repleta de abundância), corroborado pelo ato de celebrar o divino e também pelo contar de histórias: A princípio o conceito do inconsciente limitava-se a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos. O inconsciente, em FREUD, apesar de já aparecer - pelo menos metaforicamente - como sujeito atuante, nada mais é do que o espaço de concentração desses conteúdos esquecidos e recalcados, adquirindo um significado prático graças a eles. Assim sendo, segundo FREUD, o inconsciente é de natureza exclusivamente pessoal, muito embora ele tenha chegado a discernir as formas de pensamento arcaico-mitológicas do inconsciente. Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são 'cum grano salis' os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo. (JUNG, 1976, p. 15) Em linhas gerais, o inconsciente coletivo vem servindo desde a ancestralidade para repassar ideais religiosos e seus rituais de conexão do humano com o divino, bem como o eco que as transições primitivas possuem até hoje nas sociedades. Dois exemplos claros de ritos são as festas de quinze anos, nas quais há a passagem do espírito infantil da menina para o do adulto, agora mulher, e também as celebrações para inícios e términos de ciclos, como o Natal, Ano Novo e Páscoa. Todas estas festas existem desde os tempos mais remotos e, mesmo sendo celebradas de maneiras diferentes das anteriores, possuem em si a mesma função: celebrar os ciclos da vida do indivíduo e as chegadas e partidas das estações do ano. Dentro do conceito do inconsciente coletivo, Jung (1976) postulou os denominados “arquétipos”, ideias fixas, figuras-chave, que transitam por todas as culturas e suas respectivas religiões e que, mesmo possuindo roupagens diferentes, constituem a mesma persona (apud JUNG, 1976, p. 87). Na obra de Gaiman, um arquétipo muito comum e desenvolvido é o da Grande Mãe. Povos ancestrais 20 possuíam como base de suas ideologias de vida a figura feminina, exaltada por sua fertilidade, sabedoria e magia (muitas mulheres eram chefes de suas tribos, respeitadas como líderes e responsáveis por trabalhos pesados que, com o passar do tempo, foi descentralizado e passado para as mãos dos homens). Na cultura Celta, a Grande Mãe, era Cerridwen, também encontrada como Santa Brígida pelos irlandeses, como Hécate, na Grécia, e Maria, Mãe de Jesus, na religião cristã. Em todas as culturas, da africana à hindu, há o arquétipo da Deusa. Em Sandman, a Grande Mãe aparece como as três feiticeiras gregas, As Graças (ou Moiras), bruxas invocadas por Morpheu para dizerem o paradeiro de suas relíquias roubadas. Elas se repartem em Donzela, Mãe e Anciã, mostrando as três idades da mulher, e têm por finalidade tecer, medir e cortar o fio da vida de cada pessoa. Estas mesmas personagens aparecem em O Oceano no Fim do Caminho (GAIMAN, 2013), sob a perspectiva das Hempstock, uma tríade familiar formada por Lettie Hempstock, a menina, Gennie Hempstock, a mulher e mãe de Lettie, e a Velha Hempstock, no papel de anciã. Muito sábias e atenciosas com o protagonista da história, as três personagens ecoam a ancestralidade a qual pertencem, mesmo morando no período moderno, em uma fazenda do interior da Inglaterra. Gaiman é conhecido por desenvolver muito bem o perfil estrutural e psicológico de suas personagens femininas, bem como dar-lhes importância dentro de suas obras, e isso é um reflexo direto da importância do arquétipo da Deusa ao longo de sua formação como escritor, vide a própria Morte, de Sandman, personagem muitas vezes mais adorada pelos fãs da obra do que o próprio protagonista, Morpheus. Era muito mais velha que eu, com pelo menos uns onze anos. O cabelo castanho-avermelhado era relativamente curto para uma garota, e o nariz, arrebitado. Tinha sardas. Estava de saia vermelha – as meninas não costumavam usar calças jeans naquela época, não por aquelas bandas. Tinha um leve sotaque de Sussex e olhos azul-acinzentados e penetrantes. (...) – Sou a mãe da Lettie – anunciou. – Você já deve ter conhecido a minha mãe, no galpão de ordenha. Sou a sra. Hempstock, mas ela era a sra. Hempstock antes de mim, então agora é a velha sra. Hempstock. Esta é a Fazenda Hempstock. É a mais antiga das redondezas. (...) Era a velha sra. Hempstock, o avental suspenso nas mãos, e ali dentro havia tantos narcisos que a claridade refletida neles transformava o rosto dela em ouro, e a cozinha inteira parecia banhada por uma luminosidade amarela. (GAIMAN, 2013, p. 30-31-43) 21 Figura 5 – As três faces da Deusa Mãe (ou Grande Deusa). Figura 6 – As Moiras, em Sandman. Em um parâmetro lato sensu intertextual (apud KOCH, 2007, p. 60), as histórias mitológicas e suas ramificações circulam oralmente, mantendo a essência de seu discurso sob outras perspectivas. Tal fator influencia diretamente a obra de Gaiman, uma vez que o ato de contar histórias chegou até ele por meio de familiares, amigos, livros lidos e resultou em menções em suas obras. (...) comics have always dealt in myths: four-color fantasies, which include men in brightly colored costumes fighting endless soap opera battles with each other (predigested power fantasies for adolescent males), not to mention friendly ghosts, animal people, monsters, teenagers, aliens. Until a certain age the mythology can possess us completely, then we grow up and leave those particular dreams behind, for a little while or forever. 22 But new mythologies wait for us, here in the final moments of the twentieth century. They abound and proliferate: urban legends of men with hooks in lovers’ lanes, hitchhikers with hairy hands and meat cleavers (…), serial killers and barroom conversations, in the background our TV screens pour disjointed images into our living rooms (…); we mythologize the way we dress and the things we say; iconic figures – rock stars and politicians, celebrities of every shape and size; the new mythologies of magic and science and numbers and fame. (GAIMAN, 2016, p.57-58) ((...) os quadrinhos sempre trataram de mitos: fantasias em quatro cores, que incluem homens em roupas coloridas lutando intermináveis batalhas novelescas entre si (fantasias de poder mastigadas para homens adolescentes), para não mencionar fantasmas amigáveis, híbridos de humanos e animais, monstros, adolescentes, alienígenas. Até certa idade, a mitologia pode nos possuir completamente, então nós crescemos e deixamos esses sonhos particulares para trás, por um tempo ou para sempre. Mas novas mitologias esperam por nós, aqui nos momentos finais do século XX. Elas crescem e se proliferam: lendas urbanas de homens-gancho no encalço de amantes, caroneiros com mãos peludas e facas de açougue (...), assassinos em série e conversas de bar; em um plano de fundo, nossas telas de TV transbordam imagens desconexas em nossas salas de estar (...). Mitificamos o modo como nos vestimos e as coisas que dizemos. Figuras icônicas - estrelas do rock e políticos, celebridades de todas as formas e tamanhos; As novas mitologias da magia, ciência, números e fama (tradução minha).) A globalização alimenta o surgimento de novas tecnologias, que por sua vez incrementam novidades e os desejos materiais dos seres humanos. Enquanto nos tempos antigos, nos quais o modo de vida era simples e voltado para o plantio e o culto à natureza, nos séculos nos quais a modernidade se instaurou, as pessoas passaram a se desprender do que outrora era sagrado e passou a cultuar o que é abstrato, relacionando boa parte de suas ações aos atos de dirigir (ou adquirir automóveis, simplesmente), conversar ao celular ou navegar na Internet, por exemplo. As adorações, antes desdobradas em grandes preces, cantigas e ritos tribais, hoje percorrem o cotidiano dos indivíduos camufladas nas ações mais simples do homem contemporâneo que corre contra o tempo. E é em Deuses Americanos (2001) que a chamada “nova mitologia” de Gaiman ganha espaço entre os mitos antigos. O livro começa com Shadow, o protagonista, saindo da prisão e descobrindo que sua esposa, Laura, havia falecido em um terrível acidente de carro. Apático e sem rumo, o homem conhece o misterioso Sr. Wednesday, que oferece a ele um emprego de segurança e motorista, tendo como única condição o silêncio absoluto de Shadow. O protagonista aceita a proposta e embarca em uma viagem de carro pelo território dos Estados Unidos, o qual guarda diversos segredos: os deuses milenares, de diversos panteões, como o 23 africano e o nórdico, há muito caminham pela terra, personificados, e vêm perdendo sua força por falta de sacrifícios e adorações e, por este motivo, acabam trabalhando em empregos comuns aos humanos. - Estou aqui há mais tempo que a maioria de vocês. Como todos neste salão, também imaginei que poderíamos sobreviver com o que tínhamos. Não era o suficiente para sermos felizes, mas era o suficiente para existirmos. Porém, esse talvez não seja mais o caso. Uma tempestade se aproxima, e não é uma tempestade criada por nós. Ele fez uma pausa. Deu mais um passo à frente e cruzou os braços. - Quando as pessoas vieram para a América, nós viemos junto. Elas me trouxeram, e trouxeram Loki e Thor, Anansi e o Deus Leão, leprechauns e cluracans e banshees, Kubera e Frau Holle e Ashtaroth, e trouxeram vocês. Viemos na mente delas e fincamos raízes. Viajamos com os colonos até o Novo Mundo do outro lado do oceano. (GAIMAN, 2001, p. 140) Ao passo que os deuses antigos equilibram-se no cotidiano norte-americano para não desaparecerem, vivem em constante combate com os denominados “Novos Deuses”. Gaiman utiliza os arquétipos de Jung (1976) e os estudos de Campbell (1988) para personificar as deidades, sendo elas o Deus da Autoestrada, o Deus da Tecnologia, o Deus do Mundo (Mr. World) e A Mídia. Este grupo de deuses perversos e orgulhosos vive em todos os lares e no cotidiano de todas as pessoas, possuindo como sacrifício suas horas e, até mesmo, suas vidas. - Quem é você? – disse Shadow. - Certo. Boa pergunta. Eu sou a mãe dos idiotas. Sou a televisão. Sou o olho que tudo vê, sou o mundo do raio catódico. (...) O pequeno altar em torno do qual a família se reúne para louvar. - Você é a televisão? Ou alguém dentro da televisão? - A televisão é o altar. Eu sou a entidade para quem as pessoas fazem os sacrifícios. - O que elas sacrificam? - O tempo de vida, principalmente. – respondeu Lucy. – Às vezes, umas às outras. (GAIMAN, 2001, p.173) A trama, além de narrar os fatos que ascenderam culturalmente os Estados Unidos, formando suas crenças e costumes por meio da mitologia trazida por seus imigrantes, traça um perfil consumista e influenciador do país, por meio de metáforas como a dos Novos Deuses. Para Campbell (1988) a mitologia no mundo moderno apresenta-se e desdobra-se em diversas facetas, uma vez que os indivíduos voltam suas faces e energia para, em um verdadeiro ritual, adorar e cultuar computadores, televisores e telas de cinema. Quando, antigamente, as preces eram elevadas aos céus, nos dias atuais os “deuses” estão ao alcance de um clique. MOYERS: Há uma história encantadora sobre o presidente Eisenhower e os primeiros computadores... CAMPBELL: ...Eisenhower entrou numa sala repleta de computadores e propôs às máquinas a seguinte questão: “Existe um Deus?” Todas 24 começam a funcionar, luzes se acendem, carretéis giram e após algum tempo uma voz diz: “Agora existe”. MOYERS: Mas não é possível desenvolver, em relação ao computador, a mesma atitude do líder tribal, para quem todas as coisas falam de Deus? Caso não se trate de uma revelação especial, privilegiada, Deus, em sua faina, está em toda a parte, inclusive no computador. (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 20) Ao final do livro, Shadow não permite que uma guerra aconteça entre os deuses antigos e os novos. Desta forma, entende-se que uma mitologia não exclui a outra, pelo contrário: as novas mitologias que surgem são frutos das arcaicas e propagam, mesmo que em novas esferas, o que outrora serviu para edificar culturalmente todas as nações mundiais. Além disso, Shadow, que era cético no início da obra, torna-se crente em manifestações sobrenaturais, tanto do bem quanto do mal. É explorada, então, a transcendência da personagem que, antes sem rumo, encontra um propósito de vida. Logo, têm-se o começo, o meio e o fim da denominada “Jornada Interior” de Shadow, cuja peregrinação, fundamentalmente, foi em busca de respostas e autoconhecimento (apud CAMPBELL, 1988, p. 39). 25 4 QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU? Os arquétipos de Jung (1976) também cercam as histórias infantis e infantojuvenis. Em sua maioria encontram-se O Deus (na forma d’O Rei), A Deusa (na forma d’A Rainha), O Sábio, A Velha (a bruxa), A Donzela (a princesa) e O Herói (o príncipe encantado). Os contos de fadas valem-se de tais arquétipos e, desde os tempos antigos, serviam de histórias morais para assustar crianças e educá-las como mini-adultos. É importante frisar que os tempos são outros e a mente das crianças também. Convenciona-se propagar as literaturas infantil e infantouvenil de maneira que crianças e adolescentes aprendam com os textos e não se assustem ou choquem com o que é lido: eles precisam ser norteados no mundo que os cerca e nos problemas que o envolvem para, assim, tornarem-se seres transformadores do lócus em que vivem (apud COELHO, 2000, p. 49). Assim como nos mitos, Gaiman também debruçou-se em demasia em leituras de contos de fadas e estórias clássicas desde a infância. Autores como os Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen e Lewis Carroll eram uma constante em sua lista de leitura (apud GAIMAN, 2016, p. 33) o que fez com que ele se apropriasse de seus escritos e viesse a reformulá-los, colocando seu toque sombrio, quando adulto. Horror and fantasy (whether in comics form or otherwise) are often seen simply as escapist literature. Sometimes they can be – a simple, paradoxically unimaginative literature offering quick catharsis, a plastic dream, an easy out. But they don’t have to be. When we are lucky the fantastique offers a roadmap – a guide to the territory of the imagination, for it is the function of imaginative literature to show us the world we know, but from a different direction. Too often myths are uninspected. We bring them out without looking at what they represent, nor what they mean. Urban legends and the Weekly World News present us with myths in the simplest sense: a world in which events occur according to story logic – not as they do happen, but as they should happen. But retelling myths is important. The act of inspecting them is important. It is not a matter of holding a myth up as a dead thing, desiccated and empty (…), nor is it a matter of creating New Age self-help tomes (…). Instead we have to understand that even lost and forgotten myths are compost, in which stories grow. (GAIMAN, 2016, p. 58-59) (Horror e fantasia (na forma de quadrinhos ou de outra forma) são constantemente vistos como literatura escapista. Algumas vezes eles podem ser – uma simples, paradoxal e pouco elaborada literatura oferecendo catarses rápidas, sonhos vazios, uma válvula de escape. Mas elas não têm de ser. Quando temos sorte, o fantástico nos oferece um mapa – um guia para o território da imaginação, pois é função da literatura imaginativa nos mostrar o mundo que conhecemos, porém de forma diferente. Com frequência, os mitos não são bem observados. Trazemo-los à tona sem procurar entender o que representam, nem o que significam. Lendas 26 urbanas e o Weekly World News apresentam para nós os mitos em um sentido simples: um mundo em que eventos ocorrem de acordo com a lógica da estória, e não como eles realmente acontecem, mas como deveriam acontecer. Recontar mitos é importante. O ato de investigá-los é importante. Não é uma questão de segurar um mito como uma coisa morta, dissecada e vazia (...), nem de criar livros de autoajuda para a nova era (...). Ao invés disso, temos de compreender que mesmo perdidos e esquecidos, os mitos são o solo, no qual as estórias crescem (tradução minha)) Os contos de fadas, originados “entre os celtas, com heróis e heroínas, cujas aventuras estavam ligadas ao sobrenatural, ao mistério do além-vida”, visando a realização interior do ser humano (COELHO, 2000, p. 173) são, além de uma reformulação dos mitos, uma vez que seu intuito também era explicar fatores da realidade por meio de metáforas, uma forte base da prosa gaimanesca, não apenas no que tange a literatura infantojuvenil, como também para a literatura adulta. Em João e Maria (2015), Gaiman intertextualiza o conto original dos irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm (1812), conferindo-lhe um ar sombrio e pesado, diferindo da narrativa original em que, predominantemente, existiam apenas descrições de ações. A estória conta sobre a vida de um pai, lenhador, que por questão de pobreza extrema vê no abandono aos filhos na floresta uma saída para que eles sejam encontrados por alguém de bom coração, que os cuide e dê a vida que ele e a esposa (ora retratada como madrasta) não poderiam oferecer. Em uma primeira tentativa de deixá-las sozinhas, João acaba sendo mais esperto e pega pedrinhas no quintal, a fim de jogá-las pelo caminho, demarcando a volta para a casa. Assim que os velhos adormeceram, Joãozinho levantou-se bem de mansinho, vestiu o paletó, abriu a porta da frente e escapuliu para fora. A lua resplandecia diáfana e os seixos branquinhos cintilavam diante da casa como se fossem moedas recém-cunhadas. O menino apanhou e meteu nos bolsos quantos pôde. Depois voltou para casa e disse a Margarida: - Tranquiliza-te, querida irmãzinha, e dorme sossegada; Deus não nos abandonará. E deitou-se novamente. (GRIMM, 1812. Disponível em: <http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/joao_e_maria> Acesso em 20 de abr. de 2017) As crianças voltam para o lar, porém o pai as abandona novamente. Não conseguindo recolher mais pedrinhas, João distribui ao longo do caminho migalhas de pão, que acabam sendo comidas por pássaros, fazendo com que os irmãos se percam definitivamente. E, andando pela floresta, encontram uma casa feita de doces, que à primeira vista serviria de salvação para a fome que estavam sentindo, se não fosse o fato de que a moradora era uma bruxa malvada. 27 Famintas, começam a devorar a casa e a bruxa, muito “solidária”, os convida para pernoitar e desfrutar das delícias que o interior as reservava. Mal sabiam elas que toda aquela encenação serviria para aprisioná-las e comê-las assadas no jantar. E foi o que a bruxa fez ao cair da noite: trancou João em uma cela e pediu que Maria ajustasse o fogo do forno em que assaria o irmão da menina. Como era muito magro, a mulher passou um período de tempo alimentando o garoto para que ele engordasse. Todos os dias a bruxa ia ao encontro de João e inspecionava seu dedo, que continuava ossudo como sempre fora. João, dotado de esperteza, entregava-lhe um dos ossos que encontrara na cela, fingindo ser seu próprio dedo; por ser quase cega, a bruxa não reparava a artimanha do garoto, mas irritada com a ausência de peso, decide assá-lo mesmo assim. Ela pede que Maria aqueça o forno e olhe se ele está bem quente. A menina finge não compreender e a bruxa, já irritada, decide ela mesma olhar a temperatura. Maria, em um ato de coragem, empurra a mulher para dentro do forno, matando-a. Os dois irmãos fogem do local, reencontram o pai (que em algumas versões larga a madrasta por perceber a perversidade do ato de ser influenciado a abandonar as crianças) e vivem felizes para sempre. Quando Gaiman (2015) decide recontar a mesma estória, vale-se de duas coisas fundamentais: aprofundamento psicológico e contexto histórico-social (apud GAIMAN, 2015, p. 41-44). Em sua versão, a família não é pobre por excelência, como no conto dos Grimm, e sim por conta da guerra que se instaura próxima a casa deles, trazendo consigo fome e mortes: Quando a guerra veio, os soldados vieram com ela – homens esfomeados, furiosos, entediados e assustados que, ao passarem, roubavam os repolhos, as galinhas e os patos. A família do lenhador nunca soube muito bem quem estava brigando com quem, e muito menos o motivo da briga. (GAIMAN, 2015, p. 10) Logo, em um parâmetro sociológico, os mesmos fatos ocorridos no original (o abandono das crianças e a pobreza da família) possuem explicação. Todos os problemas são frutos do meio hostil em que vivem, o qual colabora no estado de pânico dos pais das crianças. Em dado momento, João sente fome e a seguinte descrição se desenrola: As crianças dormiam em montes de feno. Os pais, em uma cama antiga que pertencera à avó do lenhador. João acordou no meio da noite com uma dor aguda e vazia na barriga, mas não disse nada, porque sabia que tinha pouca coisa para comer. Ele manteve os olhos fechados e tentou voltar a dormir. Quando dormia, não sentia fome. (GAIMAN, 2015, p. 13) 28 Gaiman preocupa-se em nortear as personagens em seus problemas sociais, conferindo-lhes perfis de pessoas reais que, infelizmente, existem nas sociedades contemporâneas. Fazendo isso, estimula a criança e o jovem a colocarem-se em seus lugares, propagando empatia e o espírito de mudança para os problemas sociais que cercam o globo terrestre (apud COELHO, 2000, p. 49-50). Até mesmo a conduta canibal da bruxa malvada é explicada por Gaiman: A história de João e Maria foi publicada pela primeira vez em 1812, na primeira coleção de contos de fadas alemães dos Grimm, Histórias das crianças e do lar. Historiadores acreditam que a origem desse conto pode estar no período medieval, quando a Grande Fome de 1315 levou pessoas comuns a abandonarem os filhos e a se alimentarem de carne humana. (GAIMAN, 2015, p. 42) Assim como em João e Maria, adaptado de acordo com o conceito da intertextualidade stricto sensu, de forma implícita, uma vez que “ocorre sem citação expressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto” (KOCH, 2007, p. 63), A Bela e a Adormecida (2015) também resgata dois clássicos contos de fada, de forma que norteie o adolescente nos problemas do mundo e em seus próprios problemas: - Em uma semana – pensou em voz alta. – Em uma semana, estarei casada. Isso parecia ao mesmo tempo improvável e extremamente definitivo. Ela ficou se perguntando como se sentiria na condição de esposa. Seria o fim de sua vida, concluiu, se a vida fosse um tempo de escolhas. Em uma semana não teria mais o que escolher. Reinaria sobre seu povo. Teria filhos. Talvez morresse durante o parto, talvez de velhice, ou em batalha. Mas o caminho para sua morte, a cada batida de seu coração, seria inevitável. Ela pode ouvir os carpinteiros no prado ao pé do castelo fazendo os bancos que permitiriam seu povo assistir ao casamento. Cada golpe de martelo soava como a batida de um coração. (GAIMAN, 2015, p. 14) A rainha, protagonista da estória, é Branca de Neve. Apesar de não ter seu nome revelado, a mulher tem como companhia alguns anões e, em dado momento do conto, passa “a mão pálida pelos cabelos negros como as penas dos corvos” (GAIMAN, 2015, p. 20), descrição que intertextualiza as características da personagem dos Irmãos Grimm (1812-1822). Diferente do conto original, em que a personagem vive em um castelo com a madrasta invejosa, a qual pede a um caçador que mate a garota na floresta e leve até ela seu coração, fazendo com que a moça fuja, encontre a casa de sete anões, passe a viver com eles, seja envenenada por uma maçã presenteada pela madrasta em forma de uma senhora bondosa e termine o conto sendo salva pelo beijo do 29 príncipe encantado, nesta versão de Gaiman observa-se a personagem em posição de liderança (uma rainha) a poucos dias de se casar com o noivo, um príncipe, este sendo hierarquicamente inferior à noiva, contradizendo o que sempre fora postulado pelos contos de fadas. A angústia que a cerca é imensa e cada minuto em que o dia do casamento se aproxima, acaba matando-a um pouco mais por dentro. Gaiman (2015) cria uma personagem autossuficiente, que não espera os fatos se desenrolarem sendo passiva: a rainha tem sentimentos conflituosos quanto ao seu futuro (mais um indício da abordagem psicológica das personagens) e, mesmo não vendo saída para o casamento, encontra uma forma de pelo menos ganhar tempo: no reino vizinho, uma maldição é instaurada por conta de uma bruxa, fazendo com que todos os habitantes, incluindo os do castelo, venham a dormir um sono profundo. O reino da rainha tem medo que o feitiço chegue até eles, o que faz com que a mulher não pense duas vezes e parta com seus anões para solucionar o problema: Ela mandou buscar um mapa do reino, identificou as aldeias mais próximas às montanhas, enviou mensageiros para ordenar aos habitantes que as evacuassem e se dirigissem para o litoral, ficando do contrário, sujeitos à ira imperial. Ela mandou buscar o primeiro-ministro e informou-lhe que ele ficaria responsável pelo reino na sua ausência, e que deveria se esforçar ao máximo para manter tudo intacto e no seu devido lugar. Ela mandou buscar o noivo, pediu-lhe que não fizesse cena; disse que ainda se casariam, mesmo ele sendo apenas um príncipe, e ela, uma rainha, e fez cócegas no belo queixo dele, e beijou-o até que ele abrisse um sorriso. Ela mandou buscar a cota de malha. Ela mandou buscar a espada. Ela mandou buscar mantimentos e o cavalo, e em seguida cavalgou palácio afora, em direção ao leste. (GAIMAN, 2015, p. 21) Mais uma vez, Gaiman cria uma personagem feminina de destaque, que vai de encontro às convenções dos contos de fadas. Se observadas amplamente, a maioria das meninas ou mulheres fica em segundo plano quando algum evento ruim acontece, sendo salvas apenas por homens (vide os casos da própria Branca de Neve, salva pelo príncipe; ou de Chapeuzinho Vermelho, salva pelo lenhador). O autor propõe e defende, em entrevistas, que “gosta de histórias em que mulheres salvam a elas mesmas (tradução minha)” (apud GAIMAN, 2015), logo o viés feminista de suas obras, principalmente infantojuvenis, tem o poder de influenciar garotas a possuírem voz (fator que nos séculos passados era totalmente negado às mulheres e acabava sendo reforçado pela literatura dos contos de fadas). 30 Quando consegue passar por diversos desafios e derrotar a bruxa, a denominada “Adormecida”, que nada mais era do que a suposta princesa deitada no quarto principal do castelo, a rainha decide seguir para o leste, no qual um grande dragão também precisava ser combatido. Desta forma, abandonando sua antiga vida monótona e encarando o novo, a personagem calcifica sua postura independente e se autoafirma como a mulher forte que demonstrara ser desde o começo do livro. Ainda sobre protagonismo feminino, Gaiman cria Coraline (2003), uma garota criativa que busca explorar o local para o qual se muda com os pais, uma casa muito velha, repleta de mistérios e passagens secretas. A obra intertextualiza diversos livros, mas a principal inspiração foi As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (CARROLL, 1865), estória na qual, assim como em Coraline, a protagonista fica entediada com um livro que está lendo e decide explorar os arredores de casa, onde encontra um buraco que a leva para outro mundo, O País das Maravilhas. Em Coraline, a personagem ganha dos pais uma chave, cuja serventia ainda não é de conhecimento de nenhum deles. Ao fazer diversas tentativas nas portas da casa, a menina acaba encontrando uma pequena porta em seu próprio quarto, que a leva, assim como Alice, para um mundo semelhante ao seu, mas ainda assim muito diferente - e aterrador. A porta de Coraline também é encontrada em As Crônicas de Nárnia, série de C. S. Lewis, um dos autores favoritos de Gaiman, e permite que os protagonistas da estória também viagem do mundo real para um paralelo. (...) Coraline put her hand on the doorknob and turned it; and finally, she opened the door. It opened on to a dark hallway. The bricks had gone as they’d never been there. There was a cold, musty smell coming through the open doorway; it smelled like something very old and very slow. Coraline went through the door. (GAIMAN, 2003, p. 26) (Coraline colocou a mão na maçaneta e a girou; e, finalmente, abriu a porta. A porta se abriu para um corredor escuro. Os tijolos há muito haviam sumido, como se nunca tivessem existido. Havia um cheiro frio e de mofo vindo dele; cheirava a algo muito velho e lento (tradução minha)) Outro fator que as duas obras possuem em comum são as personagens-chave para que as duas protagonistas passem a compreender o mundo descoberto e não sintam-se sozinhas. Alice torna-se amiga do Coelho Branco, do Chapeleiro Maluco e do Gato de Cheshire, ao passo que Coraline conhece o Sr. Bobinsky (dono do circo de ratos), Srta. Spink, Srta. Forcible e, também, O Gato. Neste sentido, os amigos que Coraline e Alice conquistam são as representatividades que crianças e 31 adolescentes necessitam para formarem suas identidades e conseguirem atravessar o percurso hostil que leva à vida adulta. Assim como em Alice, o Gato de Coraline é um guia para que ela compreenda a problemática envolvendo “Os Outros Pais”, cópias perfeitas dos pais biológicos da menina que, ao contrário dos originais, oferecem a ela a atenção que ela não tem em casa. Neste ponto as duas obras também se cruzam: o nonsense (palavra utilizada para descrever situações surreais e de total falta de coerência) é resgatado por Gaiman, uma vez que A Outra Mãe oferta a Coraline um par de botões pretos costurados no lugar dos olhos, em troca de sua estadia naquele lugar. Gaiman apropria-se de poemas para enriquecer sua narrativa, assim como Carroll: Pisca, pisca, ó morcego! Que eu aqui quero sossego! (...) Por sobre o mundo você adeja Qual chá numa grande bandeja Pisca, pisca... (CARROLL, 2010, p. 85-86) A cantiga acima aparece no capítulo “Um Chá Maluco”, no qual Alice vai ao encontro do Chapeleiro para tomarem chá. Gaiman faz o mesmo, mas no primeiro capítulo de Coraline. Antes de adormecer, ela sonha com “pequenas formas escuras, com olhos vermelhos e dentes afiados e amarelos” (GAIMAN, 2003, p. 11, tradução minha), as quais cantam para ela: We are small but we are many We are many we are small We were here before you rose We will be here when you fall (GAIMAN, 2003, p.12) (Somos pequenos, mas somos muitos Somos muitos, mas somos pequenos Estávamos aqui antes de você nascer Estaremos aqui quando você morrer (tradução minha)) Apesar de uma canção soturna, e não tão elaborada como os versos de Carroll (apud CASTILHO, 2010, p. 18), Gaiman esforça-se para manter a tradição das cantigas que, assim como as estórias passadas oralmente, possuem poder dentro do folclore mundial e da obra que inspira este livro. Todas as personagens aqui citadas possuem uma linha em comum, que se costura ao longo de todas as obras: são indivíduos em busca de identidade, esta 32 camuflada nas aventuras às quais se dispõem a trilhar, para que assim despertem e aceitem a novidade dentro delas mesmas, o que Campbell (1990) denominou de “A Jornada do Herói”. É de extrema importância que o jovem espelhe-se em leituras do tipo, uma vez que a adolescência é um período crucial de transição para a vida adulta e influências literárias positivas têm o poder de formar o caráter de diversas pessoas. Figura 7: Coraline e o Gato. Figura 8: Alice e o Gato de Cheshire. 33 Figura 9: Os olhos de botão. 34 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com palavras e sentenças simples, mas de extrema profundidade, Neil Gaiman ergue mundos inimagináveis. Ao se apropriar de sua bagagem cultural, reformula e intertextualiza o que outrora serviu de leitura de fruição ou foi fisgado em conversas com pessoas queridas e estudos. Histórias oralmente passadas, sendo elas para explicarem, amedrontarem ou conectarem o humano a algo além da compreensão, são importantes, uma vez que influenciam as condutas dos indivíduos em todos os lugares. Verificou-se que o autor, ora de forma sutil ora de forma explícita, introduz em seus livros passagens já conhecidas no imaginário coletivo de leitores vorazes e de pessoas cujos hábitos de leitura ainda engatinham, mas que em alguma vez na vida ouviram um conto de fadas ou uma lenda urbana; desta forma, torna acessível e democrática boa parte de seus escritos, vindo a popularizar sua prosa, cada dia mais, na contemporaneidade. Concluiu-se também que, ao utilizar metáforas para falar de mitos e rituais que cercam as sociedades atuais, Gaiman colabora para a consciência sociocultural de seus leitores, revivendo o passado para pontuar fatores tão intrínsecos no dia a dia de diversas pessoas, mas que muitas vezes passam despercebidos. Recontando escritos de outros autores com o auxílio das denominadas intertextualidades lato sensu e stricto sensu, Gaiman demonstra que seus escritos, mesmo originais e parcialmente reformulados, possuem influência externa, uma vez que todo e qualquer discurso é baseado em falas pré-existentes, o que garante o teor cultural e a importância histórica dos mesmos. Ao passo que muitas de suas histórias infantojuvenis (originais ou recontadas) carregam em si passagens sombrias, como em Coraline, fica clara a preocupação que o autor tem de defender que tais momentos de terror são passageiros e podem ser confrontados, tanto por meninos quanto por meninas. Portanto, quando a realidade transcende a fantasia e a mensagem fundamental é internalizada, têm-se o resultado da função das estórias nos dias atuais: não moralizar, mas ensinar e tornar pessoas melhores para um mundo melhor. Afinal, como dito por um de seus heróis, o escritor G. K. Chesterton, “contos de fadas são mais do que reais: não porque nos dizem que dragões existem, e sim 35 porque nos contam como podem ser combatidos”. E não seriam todas as vidas um eterno conto de fadas? 36 REFERÊNCIAS Livros: CAMPBELL, Hayley. A Arte de Neil Gaiman. 1. ed. São Paulo: Mythos, 2014. GAIMAN, Neil. A Bela e a Adormecida. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2015. CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou lá. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. GAIMAN, Neil. Coraline. 2. ed. New York: HarperCollins, 2003. GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. 27. ed. São Paulo: FGV, 2011. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. ELIAS, Vanda Maria; KOCH, Ingedore Villaça. Ler e Compreender: os sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2013. COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2000. GAIMAN, Neil. Mitologia Nórdica. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017. JUNG, Carl. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. GAIMAN, Neil. O Oceano no Fim do Caminho. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O Poder do Mito. 22. ed. São Paulo: Palas Athena, 2004. KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007. BISSETE, Stephen R.; GOLDEN, Christopher; WAGNER, Hank. Príncipe de histórias: os vários mundos de Neil Gaiman. 1. ed. São Paulo: Geração, 2011. GAIMAN, Neil. Sandman: edição definitiva. 1. ed. São Paulo: Panini, 2011. ANDERSEN, Hans Christian Andersen. The Complete Hans Christian Andersen Fairy Tales. 1. ed. New York: Gramercy, 1996. GAIMAN, Neil. The View from the Cheap Seats: Selected Nonfiction. 1. ed. New York: HarperCollins, 2016. Artigos: 37 Natália de Melo Castilho. Intertextualidade entre Coraline e Alice’s Adventures in Wonderland & Through the Looking-Glass and What Alice Found There. Universidade Estadual Paulista. 2011, volume 1. Disponível em: <https://acervodigital.unesp.br/handle/11449/118606> Acesso em 3 de mar. de 2017. Moacyr Scliar. Mito e Evidência. Zero Hora (RS). 2009, volume 1. Disponível em: <http://academia.org.br/artigos/mito-e-evidencia> Acesso em 15 de abr. de 2017. Maiara Alvim de Almeida. Sandman: uma leitura comparativa entre Hoffmann e Gaiman. Darandina Revisteletrônica: Anais do Simpósio Internacional Literatura, Crítica, Cultura V - Literatura e Política. 2011, volume 5. Disponível em: <http://www.ufjf.br/darandina/files/2011/08/Sandman-uma-leitura-comparativa-entre- Hoffmann-e-Gaiman.pdf> Acesso em 3 de mar. de 2017.
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.