As cem melhores crônicas brasileiras_002

March 20, 2018 | Author: gelavieira | Category: Languages


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Introdução Joaquim Ferreira dos SantosA crónica não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz literatura também. Textos feitos para o momento e que, pela qualidade, vão ficar para sempre. Eis o breque deste livro. As cem crónicas e os 62 autores que transformaram um género, chamado ora de menor, ora de literatura de bermuda, num chorrilho interminável de grandes clássicos de referência de bons momentos em nossa língua. Salve! Viva! o monumento de nação redigido em cada linha de Dom Casmurro e Grande Sertão: Veredas, mas preste atenção agora que Rubem Braga vai começar, assim como quem não quer nada, a sua "Aula de inglês". É uma crónica de fala mansa, sem aparentar pompa ou qualquer circunstância, como é típico da espécie, mas está entre os cem mais de qualquer coisa escrita neste país. Temos o samba, a prontidão e podemos colocar a crónica entre o que Noel Rosa listou como outras bossas. Os ingleses talvez carreguem mais no sarcasmo, os franceses talvez apostem na erudição. Problema deles. A crónica brasileira tem uma cara própria, leve, bem-humorada, amorosa, com o pé na rua. Quase 150 anos depois de instaurada nos jornais, ela apresenta uma espetacular capacidade de se reinventar e se comunicar com o leitor. Literatura é tudo aquilo que permanece. É o caso das crónicas que vêm a seguir. Se levar a palavra ao pé da letra e destrinchar o radical grego chrono, tempo, você vai chegar à aborrecida definição que o dicionário dá para crónica: "Compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem de As Cem Melhores Crónicas Brasileiras 15 confirmaram a necessidade editorial de registrar. por favor. esse "vira-lata" talentoso. no abuso da subjetividade e na descontração do texto para criar peças que funcionam como oásis de respiração e bom gosto no meio das crises e tragédias de um jornal. no escondido. e isso nas mãos dos craques faz o charme da crónica brasileira. Machado valoriza o comportamento. eu é que os hei de aclamar extraordinários. Segundo António Cândido. "uma reminiscência clássica" dali. Ele não tem compromisso em informar o que está acontecendo. que o género começou a ficar com o jeitão atual. e querem alguns que a (. Eram os chamados "folhetins". receita de crónica é uma obra particular." Desencaixotando Machado: a crónica está no detalhe. Mas foi a partir de janeiro de 1854. As de Lima Barreto trazem no tempero alguma erva colhida num quintal suburbano. Muitas vezes uma crónica brilha. Passou a refletir com estilo. o duelo dos amantes e tudo mais que se mexesse no caminhar da espécie sobre esse vale de lágrimas. Não reverbera empáfia de doutor. e o género. uma reminiscência clássica. como é comum. Narrava o comportamento tias tribos urbanas. É. mas "quando não tem assunto então é ótimo". Em 1861. no Correio Mercantil. como o bruxo do Cosme Velho pedia. r Joaquim Ferreira dos Srmtos O jornal Espelho Diamantino produziu a partir de 1828 a pré-história da crónica brasileira ao manter uma seção fixa para registrar os usos e costumes do período. comentar com verve. a crónica que surge na relação com a imprensa. O borogodó está no que o cronista escolhe como tema. Está no jornal. com humor. os primeiros autores recebiam como missão escrever um relato dos fatos da semana. o que se via e ouvia pelas ruas. Ou seja. o andarilho que comenta o que vê pelas calçadas. Eu é que os hei de enfeitar com dois ou três adjetivos. eu é que os hei de declarar transcendentes. autor do clássico A Moreninha. quando transformada em livro. ele simplesmente flanava pelo Rio de Janeiro.MKcssíio no tempo". em 1832. Ela ocupa hoje pelo menos meia página diária em todos os grandes jornais brasileiros e. viajasse a pena e desse uma geral na humanidade. um dos fundadores da pátria. puxa uma palavra daqui. Não vale o que está escrito. gloriosa. Alencar. As de Clarice Lispector vêm regadas de azeites da alma. ele fala da crise financeira de agosto de 1896. era o início de uma raça de "cães vadios. em 44 textos sob o título "Um passeio". mas. onde cabem quase todos os ingredientes — mas. Joaquim Manuel de Macedo. no Correio da Moda. ganhou cara própria. eis a palavra mágica.anu de Pêro Vá/ de Caminha foi nossa primeira matéria no género. Um "falar à fresca". Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos. daria contribuição luxuosa ao inventar um caminho perseguido ainda hoje pelos cronistas: o flâneur. Machado. mesmo que o autor esteja declarando. como desse na telha. Em nenhum momento usa a auto-suficiência de um analista económico. e os mais galões do estilo. vai buscar inspiração nas pombas que bicam a cabeça do apóstolo São João na igreja da Santa Cruz dos Militares. quando José de Alencar publicou o primeiro folhetim da série "Ao correr da pena". É um rabo de arraia na pompa literária. declarava-se autor em que o estilo grave não cabia — era apenas "um escriba de coisas miúdas". Aos poucos a tarefa foi entregue a penas geniais como a de Machado de Assis. livres farejadores do cotidiano. Isso pode até ter acontecido. um fenómeno de aceitação popular. como no caso das produções de Verissimo e Arnaldo Jabor. Nada de engomar o verbo. queria distância da solenidade dos grandes acontecimentos. fica durante dezenas de semanas nas listas dos mais vendidos. uma desimportância qualquer. sem dúvida. mas como está escrito. Eis a crónica moderna. os homens. sem pigarrear. O fato escolhido como tema era desde o início um detalhe de somenos. Apostava no micro. que já agora há de morrer comigo. o que ia pelos costumes sociais. autor de três textos nesta antologia. sempre com muito molho. uma flutuação cambial que desvaloriza a moeda brasileira. Eles apostavam. Ele próprio avança mais um pouco na definição do que é um cronista: "Nasci com certo orgulho. mas não é um espaço de notícia. naquilo que aos olhos comuns pode não significar nada. O padre Lopes Gama em O Carapuceiro. Não discursa. No início da história que nos interessa. a missa do galo na Catedral — e fazia o casamento definitivo entre literatura e jornalismo. na virada para o século XX. e coloca-se de pé uma obra delicada de observação absolutamente pessoal. 16 As Cem Melhores Crónicas Brasileiras As Cem Melhores Crónicas Brasileiras 17 . sem subir à tribuna. batizados com outro nome vale-tudo: crónica". Numa das crónicas de Machado de Assis escolhida para este livro. a falta de qualquer assunto. No Jornal ao Commercio. em 1839. um pretexto reles para que o escritor. Abusa da liberdade. o crescimento das cidades. Manuel Bandeira dizia que Rubem Braga era sempre bom. Zé e Joaquim deixavam o género com pistas a serem percorridas pela multidão de cronistas dos séculos seguintes. refinamento literário aparentemente despretensioso. o contato mais cotidiano do brasileiro com os grandes autores da língua. no mínimo. comentava com graça e leveza os acontecimentos da semana — a primeira corrida no Jockey Club. Tenho horror a toda superioridade. Os fatos. e Martins Pena. como a desvalorização financeira transborda para as pessoas nas ruas e. como cláusula primeira de sobrevivência.
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