Artigos Sobre o Vazio - Revista

March 19, 2018 | Author: thiagoassis1 | Category: Outer Space, Vacuum, Gravity, Matter, Theory Of Relativity


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http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=38&id=454 O signo do vazio e o vazio do signo Por Carlos Vogt 10/09/2008 Se o vazio é, de um ponto de vista teórico qualquer, quantificável, então o próprio vazio não é vazio. É antes, e ao contrário, um conjunto de ausências significativas e, portanto, significativas. Considere-se, por exemplo, o que ocorre com as línguas naturais e com a função comunicativa que as caracteriza. Qual, do ponto de vista teórico, o desafio e o objeto da lingüística? A resposta é simples, embora sua explicação, ao longo do tempo, seja complexa e requeira esforços conceituais e metodológicos consideráveis. Mas qual é essa resposta? Algo que poderia ser enunciado da seguinte maneira: o desafio da lingüística, logo seu objeto, é descrever e explicar como se dá a associação entre som e sentido nas línguas naturais. Em outras palavras, como um fenômeno físico – a cadeia sonora – permite a associação de significados comuns, compreensíveis e intercambiáveis para os indivíduos que se reconhecem pertencendo a uma mesma comunidade lingüística? A questão se torna mais complexa ainda quando se leva em conta o fato de que na seqüência de sons produzidos pelos interlocutores, numa situação de comunicação, não há, de um modo geral, nenhuma motivação na materialidade física da cadeia de sons para as significações que ela permite produzir, reconhecer e comunicar entre os interlocutores do ato lingüístico em questão. Isso quer dizer, entre outras coisas, que o ato de significar na linguagem e pela linguagem se dá como uma forma de negação de sua materialidade física ou, ao revés, como afirmação do que ela não é ou do que está contido nessa materialidade. O ato semântico dá-se, assim, como um ato no vazio, um ato intervalar, um ato que se realiza no campo das relações entre o que a linguagem é e o que ela deixa de ser para significar o mundo e suas representações, que se apresentam juntamente com os atores dos atos lingüísticos, por eles vividos como autores, personagens, leitores do teatro do discurso e da comunicação. O valor do signo lingüístico, tal como definido na tradição herdada de Saussure, constitui-se antes como valor de troca do que como valor de uso. Ou seja, é a substituibilidade do signo por outro signo e a combinatória dos signos entre si que permitem, no jogo estrutural que assim se constitui, o funcionamento sistemático das línguas como princípio ordenado e ordenador da vida em sociedade. As regras de combinação sintagmática, horizontal, do signo, que lhe permitem descortinar-se em futuros discursivos, equilibram a linearidade de sua evolução no tempo sobre o princípio da associação paradigmática, vertical, numa sintaxe espacial feita de presenças e ausências e que põe em jogo o conjunto de relações do signo com o signo no interior do sistema lingüístico estruturado, que ele constitui e que o constitui. Desse modo, o momento semântico da linguagem, seu momento significativo, aquele em que o significante e o significado se apresentam como as duas faces da mesma moeda – o signo lingüístico –, esse momento dá-se como vazio de substância própria, no intervalo entre a sua materialidade física e o que ele deixa de ser para significar outra coisa no mundo. Sob esse aspecto, o signo é forma e a forma do signo supõe essa alteridade estrutural que permite a sua expressão em conteúdos e assegura a dinâmica da comunicação característica da linguagem. Reportagem A física do “vazio” Por Fabio Reynol Roberto Belisário 10/09/2008 No princípio era a matéria. Até que foi concebida a idéia de vazio, de que em algum lugar no espaço haveria o “nada”. A partir daí, uma celeuma foi aberta e travada ao longo da história da ciência entre os que defendiam a existência do vácuo e os que acreditavam que haveria sempre alguma coisa permeando tudo. Guardadas as peculiaridades de cada época, podemos dizer que, ao longo dos séculos, vacuístas (adeptos da idéia do vácuo) e plenistas (defensores da matéria onipresente) se revezaram nos fóruns acadêmicos trocando farpas e apresentando argumentos em prol de suas idéias. Não podemos dizer que seus trabalhos deram em nada. Chegamos ao século XXI com a convicção quase unânime da comunidade científica de que a existência do nada absoluto é mais do que improvável, pois até o que chamamos de “vácuo” possui partículas e energia. Mas, para chegar até aqui, muito bate-boca aconteceu, muitas experiências foram realizadas e repetidas e, entre os protagonistas da discussão, estavam personagens tão notáveis e distantes entre si como Aristóteles e Einstein. A “bola” do vácuo foi levantada por filósofos gregos pré-socráticos chamados “atomistas”, a partir do século V a.C. Foram eles que conceberam a idéia de que as coisas eram feitas de minúsculas partículas que não poderiam ser divididas - por isso, as chamaram de “indivisíveis” que, em grego, se diz “átomo”. Parece estranho que os idealizadores dos tijolinhos da matéria também tenham sido os primeiros defensores do vazio de que temos notícia. “Mas, para eles, tão importante quanto a idéia de matéria era a idéia do vácuo”, conta Osvaldo Pessoa Júnior, filósofo e historiador da ciência da Universidade de São Paulo (USP). Na verdade, os atomistas valiam-se do vácuo para explicar o movimento dos corpos. O raciocínio era simples: se um corpo vai de um lugar a outro, é necessário que ele se direcione para um espaço vazio, uma vez que dois corpos não se interpenetram. E o vácuo atomista ia além da física: “a ele estava ligada a idéia de não-ser e de onde não poderia surgir nada. Analogamente, a matéria tinha, para eles, a noção de ser”, detalha Pessoa. O vazio seria uma espécie de palco, onde a matéria, formada por átomos, atuaria. O maior nome entre os filósofos atomistas era Demócrito, cujas idéias enfrentariam opositores de peso na própria Grécia Antiga, anos depois de sua morte. Entre os adversários do vácuo na Grécia, já depois dos pré-socráticos, estavam Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), para os quais o universo estava totalmente preenchido de matéria. A questão do movimento para eles era resolvida com a idéia da troca de lugares: um corpo se movia no espaço porque um outro saía trocando de posição com ele. Para Aristóteles, a resistência do meio era algo importante. “Um de seus argumentos era que, se um corpo em movimento não encontrasse resistência alguma do meio, sua velocidade seria infinita”, expõe Pessoa. Por isso, seria impossível que existissem lugares totalmente vazios, onde não houvesse um meio material. Aristóteles também dizia que, se não fosse a resistência do ar, objetos de massas diferentes cairiam à mesma velocidade, o que não era observado – mas essa idéia que seria verificada e aperfeiçoada pelas experiências de Galileu Galilei (1564-1642), no século XVI, e comprovada com glamour em agosto de 1971, quando o astronauta norte-americano David Scott deixou cair na Lua um martelo e uma pena mostrando que, sem o ar, ambos atingem simultaneamente o solo. Após Aristóteles, o vácuo seria reabilitado ainda na antiguidade por Heron de Alexandria (século I d.C.) que, embora não acreditasse na existência de um vazio contínuo, concebeu um mundo onde o vácuo estaria distribuído em minúsculas porções no interior de todas as coisas. Quem tem medo do vazio? Aristóteles foi o filósofo mais influente na Idade Média européia. Através dos estudos dos seus escritos, a questão do vazio foi retomada nesse período, quando surgiu a célebre expressão “a natureza tem horror ao vácuo”, para dizer que qualquer porção de matéria retirada é logo ocupada por outra - fenômeno observado em alguns experimentos hidráulicos, por exemplo. Já no período da Renascença, os estudiosos do tema eram tão numerosos que não seria possível descrever suas experiências e contribuições em uma única reportagem. Mas alguns episódios marcantes valem ser destacados daquele período, como o caso do sifão de Giovanni Baliani (1582-1666). Esse italiano tentava levar água de um reservatório a um vale mais elevado através de um sifão. O processo tradicional de encher o tubo com água, fechar suas extremidades e abri-las unindo os reservatórios desnivelados não estava dando certo. Baliani levou o problema a Galileu Galilei, que atribuiu à altura entre os reservatórios (cerca de 20 metros) a causa do fracasso da manobra. Para Galileu, o vácuo teria uma força limitada, comprovadamente eficaz até 12 metros de altura. Baliani, por sua vez, enxergou nessa experiência uma maneira eficiente de se produzir vácuo. Foi de um discípulo de Galileu uma das mais famosas e intrigantes experiências a respeito do vácuo. Evangelista Torricelli (1608-1647), em 1644, encheu um longo tubo de vidro com mercúrio, fechou sua abertura e o emborcou dentro de uma bacia, também com mercúrio. A coluna do líquido dentro do tubo desceu até certo ponto e parou. No topo do tubo, portanto, ficou uma área aparentemente sem nada. O que havia lá? Eis a pergunta que intrigou os observadores. O próprio Torricelli não se arriscou a dizer que a resposta era o vácuo. Mas supôs que o efeito era devido à pressão do ar sobre o mercúrio da cuba, que “empurrava” o mercúrio no tubo até um certo ponto – que é a explicação atual. Ele também notou que a altura da coluna de mercúrio variava de um dia para outro: era como se “o peso” do ar variasse. Estava esboçada a noção de pressão atmosférica e o princípio de funcionamento do barômetro. A experiência de Torricelli ficou tão famosa que foi repetida por inúmeros outros curiosos por toda a Europa. Em 1646, na cidade de Rouen na França, Pierre Petit refez um experimento similar para o conterrâneo Etiénne. O evento serviu de inspiração para o filho de Etiénne, o jovem Blaise Pascal (1623-1662). Pascal então desenvolveu uma série de experimentos sobre o vácuo e os registrou em vários escritos. Graças ao seu trabalho, o barômetro foi aperfeiçoado e o conceito de pressão atmosférica foi lapidado. Encontrou oposição em seu contemporâneo René Descartes (1596-1650), o mais ferrenho opositor ao vácuo do século XVII. Defensor do éter, uma “matéria sutil” que tudo permeia, Descartes duvidava que era vácuo o que havia no tubo acima do mercúrio, contrapondo-se a Pascal, que admitiu isso em seu estudo “Novas experiências sobre o vácuo”, de 1647. Num capítulo pitoresco da história, Descartes afirmou ter dado a Pascal a idéia de testar o barômetro no alto de uma montanha. A experiência foi feita pelo cunhado de Pascal, o que comprovou a redução da pressão atmosférica com o aumento da altitude. Pascal afirmava que a experiência fora uma iniciativa própria, negando a alegação de Descartes. O debate foi desnecessário, pois ambos entraram para a história por suas contribuições à ciência independentemente de quem teria mandado o barômetro subir à montanha. Ascenção e queda do éter: o “nada” leva tudo A idéia do éter, defendida por Descartes, havia sido concebida na antiguidade para explicar fenômenos remotos e Aristóteles já o mencionava. “Ele vem da idéia de que não há ação à distância, ou seja, uma coisa não pode agir onde ela não está”, explica Roberto de Andrade Martins, físico especialista em história da ciência, da Unicamp. São Tomás de Aquino (1227-1274) levou o conceito aristotélico de éter para a teologia, ao dizer que, como Deus age em todos os lugares, Ele está presente em todos os lugares - ou seja, “para São Tomás de Aquino, nem Deus poderia agir à distância”, brinca Martins. O éter seria reincorporado à ciência moderna com a descoberta de que a luz é uma onda eletromagnética, em 1889, por Heinrich Hertz. Ora, a luz das estrelas atravessava o espaço vazio até a Terra. Mas o próprio conceito de onda, uma vibração, supõe a existência de um meio a ser vibrado – ou, nas palavras do físico escocês James Clerk Maxwell: “quem seria o sujeito do verbo „ondular'?” Conclusão: sai o vácuo e volta o éter para solucionar a questão. Porém, ainda no fim do século XIX, uma forte corrente de filósofos da ciência pregava a rejeição sumária de todo elemento inobservável das teorias científicas. Por sua notória fama, o éter foi um de seus alvos prediletos. A desqualificação dessa idéia espalhou-se e o termo ganhou uma pecha pejorativa para muitos cientistas. Um deles foi Albert Einstein, que chegou a propor a eliminação do éter na física. A teoria da relatividade especial, de 1905, da qual ele foi um dos principais autores, tornou o éter ainda mais fantasmagórico, pois mostrou que era impossível identificar o referencial no qual ele estaria em repouso. Foi o golpe final. O éter foi novamente desbancado do mundo científico, apesar das ondas, e o vácuo voltava a ser reabilitado. No século XX, o vazio não tem vez Mas a posição de Einstein não duraria para sempre. Entre 1907 e 1916, ele e, independentemente, o matemático alemão David Hilbert publicaram a teoria da relatividade geral, que substituía a lei da gravitação de Newton, que falha para campos gravitacionais muito fortes ou em regiões muito extensas (galácticas). Nessa teoria, espaço e tempo – tomados conjuntamente como uma só entidade, o espaço-tempo – se curvam ante a presença de matéria; o efeito dessa curvatura é interpretado como uma força gravitacional que desvia a trajetória dos corpos. Além disso, não só a matéria, mas o próprio o espaço-tempo curvo também é fonte de campo gravitacional. Assim, mesmo o “espaço vazio” poderia conter energia gravitacional e agir fisicamente sobre a matéria! Diante disso, Einstein mudou de posição e passou a defender abertamente que sua teoria da relatividade geral só fazia sentido se o espaço não fosse vazio e o éter existisse. Mais ataques ao vazio absoluto ainda viriam. A partir de 1928, a relatividade especial foi unificada com a teoria quântica, formando a “teoria quântica do campo”. O que emergiu dela foi surpreendente: o vácuo não está vazio, mas cheio de partículas subatômicas que aparecem e desaparecem muito rapidamente, chamadas “partículas virtuais”. Isso acontece porque, pela teoria quântica, há um limite na precisão com que se pode determinar os valores de certos pares de grandezas físicas medidas simultaneamente, incluindo o par “energia e intervalo de tempo” (é o “princípio da incerteza” ou “da indeterminação”). O que impediria até mesmo de se dizer que o vácuo tem energia “precisamente” zero – o que se traduz fisicamente na existência de diminutos resquícios de campos (elétricos, magnéticos, nucleares) e dessas partículas virtuais. Apesar de parecerem fantasmagóricas, elas produzem conseqüências mensuráveis, como uma minúscula força de atração entre placas metálicas paralelas, chamada efeito Casimir, prevista em 1948, pelo holandês Hendrik Casimir (1909- 2000), e confirmada em 2001. Em 1998, apareceu uma terceira ameaça fatal ao vácuo absoluto. Descobriu-se que a expansão do universo está se acelerando. Sabe-se, desde os anos 1920, que os grupos de galáxias que formam o cosmo estão afastando-se uns dos outros. Mas esperava-se que essa expansão cósmica estivesse se desacelerando, por causa da ação da gravidade. A aceleração da expansão indica que há uma força repulsiva agindo, e a fonte dessa força parece ser algo que permeia todo o espaço. Deu-se o nome de “energia escura” a essa fonte desconhecida. E mais: nos anos seguintes, medidas da radiação cósmica de fundo – uma radiação sutil que permeia todo o espaço cósmico e que contém registros do conteúdo médio de matéria e energia do universo conhecido – indicaram que a maior parte desse conteúdo, nada menos que 75%, é de energia escura! Se somarmos isso com a dita matéria escura – que se revela apenas por sua influência gravitacional e é de natureza também desconhecida –, conclui-se que sabemos o que forma apenas 4% do conteúdo do cosmo. E o “tudo ou nada” continua Além de tudo isso, sabe-se que, mesmo que não houvesse nenhum desses “éteres” modernos, o espaço interestelar e intergaláctico não é vazio. Há partículas espalhadas por ele, emitidas pelo Sol e pelas estrelas (são os ditos “ventos solares” e “estelares”), por supernovas ou por outros fenômenos astrofísicos. No espaço entre estrelas, a densidade típica de matéria das regiões mais densas é de um milésimo de trilionésimo da pressão atmosférica na Terra. A região entre as galáxias é cem milhões de vezes mais rala: um átomo a cada 10 litros. Como diz o físico Walter Maciel, da USP, no seu livro “Astrofísica do meio interestelar”, da Edusp, “um copo de vácuo” feito pelo ser humano “contém muito mais partículas pelo menos mil vezes que em qualquer situação usual no meio interestelar.” Isso é pequeno, sim, mas não é zero. O “vácuo” interestelar é denso o suficiente para que as ondas de choque causadas pelo encontro do vento solar com os ventos estelares produzam algumas estruturas nesse diáfano “meio interestelar” ao redor do sistema solar – a principal delas é chamada “heliopausa”. Os dados enviados pelas sondas Voyager 1 e 2, lançadas nos anos 1970, indicam que elas estão começando a penetrar nessas estruturas. Deverão nos enviar informações muito preciosas sobre elas nos próximos anos. Ainda que esses elementos sejam diferentes do éter do século XIX, eles mostram que o espaço sem matéria não pode ser identificado com o “nada”. Mas, sendo assim, como fica o espaço “vazio” na extremidade do tubo de mercúrio de Torricelli? Ora, como diz Martins, “ninguém pode mostrar que existe vácuo”, pois apenas “o que se pode estabelecer pela experiência é que em certo lugar não há certas coisas”. Torricelli viu que não havia ar ou mercúrio no seu tubo; mas não “provou” que lá havia vácuo – seus seguidores, como Pascal, apenas interpretaram assim. Nunca poderemos dizer tudo sobre o nada. Reportagem “Vazios” que revolucionaram a matemática Por Cristina Caldas 10/09/2008 Nós em cordões, cortes em pedras, varinhas de plantas, entalhes em pedaços de ossos são apenas alguns exemplos de métodos de contagem utilizados pelo homem ao longo de sua história. Mas foi a invenção do zero, cuja etimologia remonta ao vazio, que revolucionou o sistema de numeração, impactando inúmeras sociedades, principalmente após o século XIII. O que seria da ciência atual sem o zero? “A matemática, na antiguidade, era um sistema de contagem e você só conta o que está ali para contar”, explica Ubiratan D'Ambrósio, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No entanto, chega um momento na história onde escrever números torna-se complicado. O sistema de numeração dos romanos, por exemplo, era extremamente complexo – e não existe algarismo romano para o zero. “Surge então, vindo da Índia, a idéia de uma notação posicional, onde com alguns símbolos você pode escrever qualquer número. O zero passou a ser um instrumento para escrever qualquer número”, complementa D'Ambrósio, que se dedica ao estudo da história e filosofia da matemática. Usamos a tal “notação posicional” o tempo todo. No nosso sistema numérico hindu- arábico, o número três pode representar diferentes valores dependendo da sua posição: se estiver sozinho significa três unidades, se estiver na frente de outros números, pode representar dezenas, centenas, milhares, e assim por diante. Por exemplo, no número 388, o três está representando três centenas. Hoje em dia pode parecer simples, mas não foi sempre assim. E como se deu o processo de construção lógica que culminou na notação posicional e invenção do zero? Fabiane Guimarães, que defendeu recentemente a dissertação de mestrado Sentidos do zero pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP), sob orientação de D'Ambrósio, fez um passeio pelos diferentes sistemas de numeração desde o ano 5000 a.C. Começando com os egípcios, que representavam os números por meio de combinações de poucas figuras, como flor de lótus, homem e peixe, Guimarães destaca que “o sistema numérico dos egípcios não necessitava do zero porque os algarismos egípcios tinham valores fixos não importando a posição que se encontrassem”. Por exemplo, o símbolo de um peixe representava sempre o valor cem mil, independentemente de sua posição. Guimarães explica que os gregos absorveram e ampliaram a cultura egípcia, substituindo figuras por letras, tirando do seu alfabeto símbolos para representar uma quantidade maior de números. Tanto os egípcios quanto os gregos usavam o princípio aditivo: para saber os números que os símbolos representavam era preciso somar os valores dos diferentes símbolos. Número 87: egípcio, grego, romano e hindu-arábico Já os romanos, tiveram contato com o sistema grego, mas tinham seu próprio sistema de numeração que utilizava letras relacionadas a quantidades, faziam agrupamentos e utilizavam tanto o princípio aditivo quanto subtrativo (nove em algarismo romano é representado pelo IX, ou seja, dez menos um). Foram os indianos, influenciados pelas idéias dos babilônios, que criaram o sistema de numeração decimal que utilizamos até hoje, segundo Guimarães. “Os numerais indianos passaram por uma longa evolução”, esclarece Dick Teresi, no livro Descobertas perdidas.Utilizando tábuas de contar divididas em colunas para as unidades, dezenas, centenas, milhares, e assim por diante, os indianos preenchiam as diferentes colunas com os símbolos relativos às diferentes quantias. Encontrados na cidade indiana de Gwalior, os algarismos remontam pelo menos a 876 d.C., segundo Dick Teresi No começo, representavam os números através da escrita, onde cada um dos nove números inteiros tinha um nome: eka – 1; dvi – 2; tri – 3; catur – 4; pãnca – 5; Sat – 6; sapta – 7; asta – 8; nava – 9. Assim, explica Guimarães, ainda numa forma verbal e já adotando a base dez, nasceu o sistema de posição indiano. E quando não havia unidade alguma em determinada ordem decimal, utilizaram a palavra sūnya, vazio. Por exemplo, o número 1001 era escrito “eka sūnya sūnya eka”. Nascia o zero indiano. D'Ambrósio não vê, no momento da gênese do zero, reflexão filosófica alguma a respeito da natureza do zero, do vazio. “Ele aparece como uma conveniência de poder fazer operações mais elaboradas”, diz. Depois disso sim, uma série de biografias do zero surgem, como o livro O nada que existe – uma história natural do zero, de Robert Kaplan (leia resenha do livro). Sucesso do zero: uma conjunção de fatores O zero entra na Europa entre os anos de 900 e 1000 d.C., mas não chama a atenção naquele momento. Já por volta de 1200 d.C., aparece o italiano Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci, que escreveu o Líber abaci, apresentando o novo sistema de numeração hindu-arábico que havia aprendido com os árabes. Foi o maior best- seller da história, várias pessoas publicaram livros parecidos, segundo D'Ambrósio. O ponto forte da obra era a notação posicional que possibilitava a construção de tabelas de operações, multiplicações, adição que, na época, eram extremamente complicadas. E qual é a explicação para tamanho sucesso? Considerando as reflexões filosóficas do momento, as observações dos movimentos dos planetas (o que se passa no céu? Céu considerado como a obra mais visível de Deus; Deus estaria se manifestando nesses movimentos, brincando com os astros, jogando-os de um lado para o outro), as contagens dos objetos, com todo esse pano de fundo o sistema de numeração hindu-arábico encontrou solo fértil para se desenvolver e se espalhar. “Uma conjunção de fatores levou ao sucesso do zero”, segundo o matemático. “Existia a necessidade de explicar todos esses fenômenos, ligado a um Deus que você quer entender e isto só foi possível com um sistema prático de medir tudo isto”. Daí a explicação do sucesso do zero naquele momento, naquele lugar. Ao mesmo tempo, explica D'Ambrósio, esses mesmos padres e esses mesmos filósofos também estavam interessados no desenvolvimento de uma economia que foi fundamental para o desenvolvimento da igreja. Os grandes astrônomos e os grandes filósofos naturais eram também os grandes economistas e entra em jogo toda a questão do mercado, já que uma série de instrumentos – dentre eles, os números – tornavam-se necessários ao desenvolvimento econômico e mercantil. Daí a explicação para a citação de Tobias Dantzig. Em seu livro Número: a linguagem da ciência, o matemático chama o zero de “uma das maiores realizações singulares da humanidade”. D'Ambrósio concorda: “O que distingue o grande desenvolvimento que ocorreu na Europa foi justamente a fusão de todos os fatores que listei e um instrumento básico para permitir esta fusão foi a numeração, e este sistema de numeração só funciona porque tem o zero”. O que seria de toda a ciência moderna, com suas contagens e observações sem um sistema de numeração adequado? “Sem dúvida o zero foi uma das maiores realizações. Sem ele, estaríamos fazendo conta com pedrinhas”, brinca o matemático. Não é possível atribuir a criação do zero a uma única cultura e este é um campo controverso dentro da história da matemática. Os maias tinham também um zero, “com uma conotação mística mais explícita, que é o componente do vazio teológico. Deus é infinito, o que acaba criando um vazio sobre o que não é Deus. Este tipo de interpretação, de natureza religiosa, mística, aparece mais explícito no zero maia”, segundo D'Ambrósio. O conjunto-vazio A matemática foi impactada também pelo chamado conjunto vazio. “O conjunto vazio desempenha, na teoria dos conjuntos, um papel dual do zero na teoria dos números. Uma de suas maiores importâncias reside neste fato, pois várias propriedades na álgebra dos conjuntos são definidas analogamente àquelas da teoria dos números”, explica o matemático Gauss Cordeiro, da Universidade Federal Rural de Pernambuco. O campo é árido e de difícil compreensão para os distantes da matemática. “Georg Cantor era além de tudo um espiritualista, e principalmente o começo da teoria dos conjuntos é de difícil compreensão, pois ele era muito ligado também às reflexões teológicas e filosóficas, o que torna suas idéias mais inacessíveis ainda”, pondera D'Ambrósio. Mas imagine uma sacola cheia de números pares e outra cheia de números ímpares. O que as duas sacolas têm em comum? Nada. É uma explicação simples para o conjunto vazio. D'Ambrósio conta que, com a chegada da teoria dos conjuntos, os matemáticos começam a tentar fazer operações com eles. “Nessas operações, é muito conveniente você representar o que é comum entre dois conjuntos que não têm nada em comum”, explica. A operação intersecção exige que exista um vazio. Tal conceito é parte da teoria dos conjuntos, teoria esta que impactou muito a matemática. “Praticamente não há hoje nenhum campo da matemática que não tenha recebido o impacto da teoria dos conjuntos”, afirma Howard Eves em seu livroIntrodução à história da matemática. De acordo com ele, a descoberta de paradoxos ou antinomias nas bordas de tal teoria foi a última das três crises profundamente perturbadoras que os fundamentos da matemática sofreram, antecedida pela criação do cálculo por Newton e Leibniz e a noção de que nem todas as grandezas geométricas da mesma espécie são comensuráveis. Símbolo do conjunto vazio O conjunto vazio impactou também a probabilidade e estatística. “Sem o conjunto vazio, todos os métodos de contagem (combinações, arranjos e permutações) não poderiam ser a base de toda a teoria da probabilidade, pois o conjunto vazio permite „mostrar' que o fatorial de zero é igual a um”, destaca Erick de Paula Crisafuli, mestre em história da matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Assim sendo, explica, as principais distribuições discretas de probabilidades (binomial, poisson, hipergeométrica e geométrica) poderiam apresentar uma falha epistemológica de grande magnitude. Os teoremas de Poisson e de Bernoulli consideram o vazio, pois dependem dos métodos de contagem além das séries de logaritmos. Tais “vazios” revolucionaram a matemática. Cheios de sentido, se aproximam do quadroO grito de Edvard Munch. “ O grito é a expressão de não perceber nada”, conclui D'Ambrósio. E, como diria Chico Buarque, “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar. Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho, que o vinho busca ocupar o lugar da dor. que a dor ocupa metade da verdade, a verdadeira natureza interior”. O vazio funcional da química Por Caroline Borja 10/09/2008 O vazio existe? “Essa é uma das questões mais debatidas através dos tempos e, portanto, mais instigantes para serem estudadas à luz da história e da filosofia da química”, avalia Luciana Zaterka, integrante do grupo de História e Teoria da Ciência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A filosofia considera que as primeiras idéias acerca da existência do vazio surgiram, de forma sistemática, por volta do século V antes de Cristo com os gregos Demócrito e Leucipo. Eles propuseram a teoria da matéria, na qual a natureza era basicamente constituída por átomos e vazio. O filósofo Jorge Lucio de Campos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, explicaque Demócrito concebeu o espaço como “uma extensão vazia (kené diastolé), sem influência alguma sobre a matéria, cujo movimento dar-se-ia em conseqüência das constantes colisões dos átomos”. A teoria da matéria, proposta por ele e Leucipo, estruturou, atomicamente, a realidade, afirmando-se contrária à postulação de que o vazio não poderia existir. Mas, nem todos os pensadores antigos acreditavam na existência do vazio. Aristóteles (384-322 a.C.), lembra Zaterka, defendia que a natureza tem horror ao vazio. Para ele, reconhecer a existência do vazio na natureza seria, antes de mais nada, ir contra o princípio de não contradição, que afirma que uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser. “Segundo essa tradição, um espaço vazio seria privado de coisas, ou seja, no limite, seria o nada. Mas o nada não existe, temos aí portanto uma contradição”, explica. Aristóteles julgava que certos fenômenos dos corpos, tais como dilatação e crescimento, não deviam ser explicados a partir da existência do vazio, como faziam os atomistas antigos. Esses estudiosos acreditavam que algumas coisas se contraiam e eram comprimidas – o corpo comprimido se contraia justamente nos vazios nele existentes. Mas o filósofo do século II a.C. discordava. "As coisas podem ser comprimidas sem ser por seus vazios, mas porque elas espremem para fora aquilo que continham”, diz Zaterka, parafraseando Aristóteles. A existência do vazio foi defendida novamente por pensadores como Lucrécio, no século I a.C, para quem o espaço vazio era o local do movimento dos átomos – se o espaço estivesse pleno de matéria seria impossível termos o movimento contínuo. Só nos séculos XVI e XVII d.C., com a chamada revolução científica, é que a questão da experimentação e dos estudos químicos e biológicos se tornam fundamentais. O químico irlandês Robert Boyle (1627-1691), por exemplo, defendia que não se pode simplesmente afirmar, sem demonstrar experimentalmente, que a natureza abomina o vácuo. Foi por isso que ele investigou o modo de ação da sua famosa bomba de vácuo, com a qual aspirava o ar contido em recipientes de vidro nos quais aprisionava pequenos animais, que morriam durante a ação da máquina. Seu objetivo principal foi demonstrar que é perfeitamente possível produzir vácuo em laboratório. Para esses pensadores, os experimentos só faziam sentido se fossem guiados por determinadas perguntas formuladas de modo que a própria natureza pudesse responder. "Tais respostas são arrancadas da natureza violentamente, ou com o ato de a atormentarmos, sobretudo pela intervenção do homem nos seus processos e fenômenos. Assim, conseguimos penetrar nas suas estruturas e atingir seus segredos mais ocultos. Aqui encontramos, sem dúvida, o homem – ministro – tentando dominar a natureza", analisa a filósofa. Zaterka, que é autora do livro Filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle, ressalta que ainda hoje o homem pretende comandar a natureza, mas acredita que os valores subjacentes às atividades do filósofo natural seiscentis ta e às do cientista contemporâneo são bastante distintos. No século 17, pensadores como Boyle e seu filósofo influenciador Francis Bacon (1561-1626) liam o livro da Natureza, antes de tudo, para se aproximarem de Deus. “Afinal, segundo eles, foi Deus quem construiu o mundo e, portanto, conhecendo cientificamente sua obra poderíamos chegar mais perto de seu autor ”, lembra. Já na ciência contemporânea teríamos o predomínio da relação instrumental do homem com seu objeto, com uma intensa aposta na funcionalidade e utilidade. O vazio interessa na medida em que faz funcionar mecanismos e desenvolver produtos. A química moderna investe não no vazio do vácuo, mas do vazio do vaso – espaços cheios de ar ou de água e plenos de efeito ou ação. Entre macro, micro e nano ocos hospedeiros de moléculas, tonalizantes e isolantes térmicos, a ciência tem ainda a natureza como cenário, fonte, motivo e inspiração. A bordo das nanopartículas ocas Os debates dos filósofo s antigos sobre corpos que se comprimem em espaços vazios ou que ocupam tais espaços espremendo para fora o que eles continham até fazem lembrar as nanopartículas ocas do mundo moderno. Entre elas, destacam-se as ciclodextrinas, anéis formados por unidades de glicose, com cavidades centrais – seus vazios funcionais – que possibilitam o embarque de medicamentos e outras s ubstâncias. A estrutura espacial cônica (ver figura) desses açúcares cíclicos permite que eles se solubilizem em meio aquoso, enquanto encapsulam e acomodam compostos insolúveis em seu vazio interno. Nessas circunstân cias, as cavidades centrais espremem para fora moléculas de água para dar lugar às moléculas hóspedes. A bordo das ciclodextrinas, esses compostos tornam-se solúveis e menos irritantes, protegem-se contra a ação de microorganismos, oxidação, degradação pela luz e calor e perdas por volatilidade. A encapsulação pode ainda mascarar odores e sabores desagradáveis, uma propriedade que torna estratégico o emprego das ciclodextrinas na indústria de alimentos e farmacêutica. “Vazio” interno da ciclodextrina. Adaptado a partir do artigo de Rama e colaboradores. Fonte: www.scielo.br Todavia, as aplicações das ciclodextrinas são quase incontáveis. Em um artigo recente publicado na revista Química Nova, p esquisadores da Universidade de Blumenau enumeram algumas dessas mil e uma utilidades. Para essas nanopartículas e seus vazios funcionais, as possibilidades soam mesmo infinitas. "Ao pensar nelas, torna-se impossível deixa r de evocar o célebre princípio formulado por Paul Ehrlich em sua forma proverbial:corpora non agunt nisi fixata, isto é, 'os corpos não agem a menos que eles estejam ligados'. É precisamente na sua capacidade de ligação aos que reside sua força para transformá-los e amplificar a sua ação", comemoram os autores. E essa capacidade reside no vazio. A opacidade dos vazios nanométricos E a intervenção do homem – descrita por Zaterka – nos processos e fenômenos da natureza segue incansável seu rumo. Na busca pela funcionalidade das cavidades, a química contemporânea reúne vazios para dar o tom à tinta. Há mais de um século, o físico alemão Gustav Mie (1868-1957) propôs a teoria do espalhamento da luz, segundo a qual vazios fechados dentro de partículas ou filmes geram opacidade e produzem pigmentos brancos. São realmente os vazios que fazem branco o pigmento nano- estruturado de fosfato de alumínio, inspirado na teoria de Mie e denominado Biphor, que invadiu o mercado de tintas em 2005. Foi o químico Fernando Galembeck, do Instituto de Química da Unicamp quem coordenou as pesquisas que possibilitaram a descoberta do Biphor, lançado pela empresa multinacional Bunge. Em seu artigo publicado na revista Química nova, Galembeck faz analogias que remetem ao efeito dos vazios do cotidiano que passam desapercebidos. “A cerveja Pilsen é transparente e amarela, mas a sua espuma é opaca e branca devido ao espalhamento da luz nas interfaces entre o líquido que rodeia as bolhinhas e o ar que está no seu interior”, aponta o artigo. Mas mais do que efeitos, a química busca novas funções. De acordo com Galembeck, as pesquisas sobre o novo pigmento continuam. "Um desenvolvimento nunca termina; sempre há possibilidades novas a explorar", diz. O químico acredita que os vazios das partículas ocas de fosfato de alumínio podem revelar outros produtos, com diferentes funcionalidades para muitas aplicações. De fato, na química, cavidades funcionais não se esgotam e elas estão mais perto de nós do que imaginamos. Galembeck exemplifica. “Só se fazem boas geladeiras e congeladores se houver bons materiais isolantes térmicos, que hoje são as espumas de poliuretanas. Nas espumas, quem isola não é a poliuretana, e sim os vazios. A poliuretana apenas mantém os vazios no seu lugar”. Reportagem Interstícios urbanos Por Marina Mezzacappa Colaboração: Enio Rodrigo 10/09/2008 A noção de vazio é inerente à atividade do arquiteto, profissional que trabalha justamente a ocupação construtiva desses espaços vagos. Na concepção de projetos arquitetônicos, além de pensar a materialidade das construções, ele se debruça também sobre os hiatos que em meio a ela se fazem necessários. “O arquiteto compõe o espaço como uma música, com sons cheios e silêncios vazios. Esses dois elementos têm que dialogar”, compara a arquiteta alemã Anja Pratschke, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos. Nesse sentido, o vazio não é um área sem definição, mas sim a contrapartida do cheio. “O vazio que os arquitetos pensaram e pensam é o vazio típico do que chamamos „interior' e sempre foi um espaço completo, com uma finalidade, uma função, um „vazio preparado', arquitetado para uma ocupação”, explica Fernando Freitas Fuão, docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Alguns vazios, contudo, são pensados para se manterem como tal. No seu processo de criação, podem ter diversos sentidos. “Os pontos de partida para esses vazios podem ser filosóficos, históricos, de compreensão do espaço”, elenca Pratschke. Ela cita dois exemplos, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Museu Judaico de Berlim. No caso brasileiro, o terreno que abrigava o mirante do belvedere do Parque Trianon foi doado para a construção do Masp com a condição de que a vista que ele proporcionava fosse preservada. Assim, a arquiteta Lina Bo Bardi desenhou, em 1958, o vão livre de 74 metros que deu origem a uma praça coberta entre os andares superiores e inferiores do museu. Hoje, quarenta anos após sua inauguração, as transformações da cidade encobriram parte da vista original, mas o espaço adquiriu novos significados. “É como um respiro. Você tem todo o movimento na avenida Paulista contrapondo-se a esse vão que está vazio”, reflete Pratschke. No caso do Museu Judaico de Berlim, projetado por Daniel Libeskind, os vazios foram estruturados para representar a ausência dos judeus, expurgados da cidade por ocasião do Holocausto. “Ele deixa o vazio para te convidar a refletir sobre uma coisa que não esta resolvida”, explica a pesquisadora. Com a modernidade, novos significados foram atribuídos ao vazio. O urbanismo modernista troca os espaços confinados pelos grandes espaços livres e grandes avenidas, propondo cidades abertas. Surge a idéia do espaço público, aberto, como o lugar do grande vazio, mas também do encontro, do evento. Clara Luiza Miranda, arquiteta da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), cita a Praça dos Três Poderes, em Brasília, como um dos ícones desse movimento. “É fato que a multidão esperada para a praça ainda não teve seu tempo”, lamenta. Em contraponto, a praça contemporânea preocupa-se em recuperar o sentido de urbanidade, resgatando os espaços das praças histórias e seu sentido de pertencimento. Fissuras nas cidades Também, na concepção das cidades, a questão do vazio se impõe enquanto dialética entre espaços construídos e espaços não-construídos (ou desconstruídos, esvaziados). “A relação entre cheios e vazios em uma cidade se iguala e se faz tão importante quanto em uma obra de arte, quando quer o artista fazê-la compreensível e assimilável”, compara Dias. Mas, atualmente, essa contraposição fica dificultada, já que as cidades transformaram-se em massas excessivamente construídas e são escassas as áreas não edificadas, livres de concreto e ferro. “Desde a metrópole, a multidão e, agora, a mega-cidade, o vazio se torna uma matéria rara, que incorpora não apenas o sentido físico e econômico, mas de lugar de memória, existencial, estético, essencial ao repouso, à desaceleração, à síncope do tempo”, avalia Miranda. À medida que os cidadãos só conseguem ou podem se relacionar com espaços construídos, os espaços públicos são entregues à decadência e à marginalidade e reafirma-se a cidade como uma soma de espaços privados, segmentados e limitados por paredes, alambrados e cercas elétricas. “O medo do espaço amplo externo (agorafobia) burguês se dirige, no caso do homem contemporâneo, ao espaço vazio, aos interstícios, instalando, então, espaços contenedores controlados por uma variedade de dispositivos de segurança”, diz a arquiteta da Ufes. A cidadania é reduzida à capacidade de possuir um imóvel. A lógica de empreendedorismo e utilitarismo impede que, ao invés da construção de edifícios, cultive-se um pomar, uma horta ou um jardim nos locais ainda vagos. “Muitas prefeituras sobretaxam terrenos desocupados, como um modo de „punir' aqueles que preferem criar capim a construir algo”, lembra Rocha. Como bem coloca o educador e escritor Rubem Alves no artigo O vazio, meio urbano e meio rural se contrapõe nesse ponto. “A roça é o lugar onde o vazio é grande. A cidade é o lugar onde o vazio é pequeno. Na cidade a gente olha para fora e os olhos logo batem num edifício, num muro, nos automóveis. Na cidade a gente vê curto. Na roça, porque o vazio é grande, os olhos vêem longe, muito longe”, escreve. Nesse sentido, o vazio também tem o papel de “fazer ver” a própria arquitetura. “O vazio torna visível o construído. Desta forma o ser produz o útil, mas é o não-ser que o torna eficaz”, explica Dorival Rossi, professor do curso de design da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru. Para Paula Landim, do Departamento de Desenho Industrial da mesma universidade, contudo, é comum encontrar ótimos projetos de arquitetura, que, “espremidos” em um terreno, perdem seu destaque. “É o que eu costumo chamar de peru num pires”, brinca. A mesma lógica das construções ela aplica aos objetos, sua área de estudo atual. “Ao colocar um vaso ou uma cadeira em um ambiente atulhado de outras coisas, atulhado de informações, você não tem condições de enxergar e apreciar”, pontua. Vazios urbanos Ainda sob o prisma do urbanismo, existem os chamados vazios urbanos, lugares abandonados, esquecidos, destituídos, despovoados, desabitados, ociosos, obsoletos. São galpões, portos, edifícios antigos em ruínas, fábricas, entre outras edificações e espaços, que apresentam uma dupla ausência: de ocupação material/funcional e de interesses/significados sociais. “É o vazio como o resultado daquilo que se esgotou. O esgotamento do sentido, da essência”, sintetiza Freitas Fuão. Segundo ele, esses espaços, que muitas vezes não conseguimos determinar a quem pertencem, incomodam principalmente por sua improdutividade. O surgimento desses vazios remete a processos políticos, econômicos e sociais. Algumas áreas valorizaram-se historicamente em detrimento de outras, que são progressivamente abandonadas. “Se examinarmos o próprio movimento que esvaziou os centros das cidades da presença de classes mais abastadas, perceberemos que, toda vez que o diminuto mercado de classe média em nosso país abre uma nova frente de expansão, esvazia a anterior”, lembra Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em Um novo lugar para o velho centro. “Desvalorizados pela lógica do mercado e pelo imaginário de nossa cultura urbana, esses espaços semi-abandonados abrigam hoje o que „sobrou' de sua centralidade anterior – quem não teve renda para acompanhar os novos lugares „em voga', quem sobrevive da própria condição de abandono”, prossegue. Inaproveitados, esses espaços não são apenas uma questão social, de mau uso do capital investido e de desprezo do patrimônio construído, mas também um problema ambiental, como aponta Demetre Anastassakis, arquiteto e ex-presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil no texto Sustentabilidade das cidades. “Deixam de usar uma infra-estrutura projetada e calculada para sua plena utilização, fazendo a cidade buscar novos terrenos, novos territórios para crescer, territórios para urbanizar”, detalha. Paradoxalmente, cinco milhões de casas e apartamentos estão vagos nas áreas urbanas brasileiras, como apontam dados da Fundação João Pinheiro, colhidos em 2005. Apesar de denominados “vazios”, esses vazios urbanos também têm vida, “reivindicam” alguma coisa, ainda que muitos não se dêem conta. “Esses vazios do abandono, não são vazios, não são sem sentido essas arquiteturas, pois esses objetos falam, gritam, apontam, reenviam para um outro tipo de vazio”, avalia Freitas Fuão. Assim, como lembra Rossi, o vazio pode ser entendido com virtus , como potência “algo que ainda não existe no plano material, que se originou e que significa energia de fazer”. Por essa perspectiva, esses espaços também carregam em si a expectativa do novo. “A crise traz a angústia da ausência clara do uso atual, mas também a esperança de algo novo, indeterminado e promissor”, reflete Carlos Leite, professor do programa de pós- graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie emartigo publicado na ComCiência. Ao menos parte desses espaços pode constituir a base para projetos urbanos estratégicos de regeneração de cidades ou periferias. Contudo, essa reapropriação dos vazios não é simples e gera desdobramentos. Revitalizados, esses espaços acabam por expulsar as atividades e territórios populares que nele se estabeleceram, pressionando ainda mais a precarização da cidade. “Cada porção do centro „enobrecida' é mais uma favela ou pedaço de periferia precária que se forma”, finaliza Rolnik. Reportagem O poder da técnica e o esvaziamento da política Por Carolina Raquel Justo 10/09/2008 Pesquisadores e filósofos têm procurado entender e explicar o vazio que habitaria o mundo de hoje anunciado pela ruína da essência dos humanos, da “morte” da história, da literatura e dos deuses. O desenvolvimento e aposta no progresso técnico são apontados como os principais catalisadores desses processos. Emergem das análises compreensões distintas sobre como esse vazio impacta as sociedades contemporâneas e seus possíveis perigos e potenciais: a tecnocracia estaria triunfando e destituindo a crença e a política de suas forças, abolindo-as, jogando-as no nada da descrença e despolitização, em que só o tempo presente vale; o vazio da crença e da política seria antes a possibilidade de pensar em “crenças” e “políticas”, múltiplas e inacabadas, a chance que os seres humanos teriam de reinventar suas histórias, pensamentos e futuros. “É do vazio da política que a verdadeira política necessita. Nesses momentos é que podem emergir as ações inesperadas, que possibilitam uma tomada de palavra, um exercício de poder, uma reação que signifique uma reorganização da ordem social”, argumenta o filósofo Silvio Gallo, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. O vazio das crenças e das palavras Durante séculos da história os homens cultuaram deuses, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Entretanto, desde o século XVIII, o chamado século das luzes, teria ocorrido um processo que o sociólogo alemão Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”. O avanço da razão sobre o misticismo teria feito com que o mundo perdesse sua aura encantada, tornando os homens mais céticos. “A filosofia crítica e as ciências tornaram o mundo vazio dos deuses que durante milênios pareceram habitá-lo”, explica José Augusto Mourão, da Universidade Nacional de Lisboa. O filósofo alemão Nietzsche – segundo Mourão um dos pais do niilismo, corrente de pensamento que nega ou dissolve qualquer fundamento último –, afirma que “Deus morreu”. Com isso ele pretende dizer que a crença no Deus cristão caiu em descrédito. Com o vazio dos deuses e das crenças, esvaziaram-se também valores, princípios, normas e categorias que neles se baseavam. “A decomposição duma doutrina cristã deixou a desordem, deixou um vazio em lugar das percepções essenciais de justiça social, de sentido da história humana, das relações entre o corpo e o espírito, do papel do saber na nossa conduta moral”, analisa. Já Sílvio Gallo, acredita que por sermos conscientes, somos seres cindidos, fragmentados, sem uma essência que nos preencha. Em outras palavras, nossa grandeza e nossa miséria consiste em sermos seres do vazio, da incompletude. Ou seja: aquilo que nos torna incompletos é exatamente o que nos faz agir; se nada somos, de antemão, se não há uma essência que nos determine, podemos ser qualquer coisa. Em outras palavras, nossa grandeza e nossa miséria consiste em sermos seres do vazio, da incompletude. Em outras palavras, nossa grandeza e nossa miséria consiste em sermos seres do vazio, da incompletude. Viver num mundo vazio de deuses e crenças teria ainda, para José Mourão, outra conseqüência: a morte da literatura: “A literatura vive do imaginário, da utopia que implica a crença num mundo melhor e outro. A literatura está a morrer porque deixou de ser alimentada pela crença de um mundo (admirável porque outro)”. O mundo repleto de imagens e informações é paradoxalmente o do vazio das palavras. Segundo Mourão, ao mesmo tempo em que a linguagem, como a literatura, pode representar coisas reais, as palavras podem ser não mais do que palavras. “Há um abismo que separa as palavras das coisas”, afirma ele. É o que acontece com palavras “mágicas” da publicidade e da política, exemplifica. Ajoelhamo-nos diante delas sem identificarmos o seu conteúdo, sem capturarmos o seu sentido, a essência do que representam. São palavras vazias. Poder da técnica e vazio da política O homem que deixou de acreditar em Deus e de submeter-se a ele tornou-se “o todo poderoso”. O progresso técnico seria o resultado deste homem onipotente: “O homem poderoso, faustiano, é hoje o cientista – que emerge da neurologia ou da biotecnologia, que reduz mesmo o bem e o mal ao biológico e que promete a imortalidade”, analisa Mourão. Matrix (Matrix, Matrix reloaded e Matrix revolutions) Série dirigida por Andy Wachowski e Larry Wachowski Franklin Leopoldo e Silva, professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), destaca que o homem perdeu o controle do processo civilizatório em decorrência do progresso científico e tecnológico. “Não é mais o homem que é autônomo no exercício da atividade técnica, mas é a técnica que se torna autônoma e a partir daí se desenvolve de maneira irrefletida”, explica. A conclusão do filósofo lembra algumas cenas de Matrix,o homem sendo “engolido” por máquinas todo-poderosas. Hoje o homem subordina-se ao que faz. Ele já não sabe porque faz e deixa de perguntar-se sobre isso. Seria o vazio da reflexão que permitiria a colonização do homem. Para Leopoldo e Silva esta é a base da tecnocracia. A técnica se confunde com o poder e deixa de estar a serviço dele. “Os meios deixam de estar sujeitos aos fins”, diz o professor. A esfera dos fins esvaziou-se e foi ocupada pela dos meios. Na análise de Leopoldo e Silva, o poder da técnica esvaziou a política, que se diluiu na esfera econômica, numa tecnocracia economicista. “O triunfo da tecnocracia é a abolição da política”, explica. Entretanto, este vazio da política pode ser só aparente: a despolitização é uma estratégia política utilizada pela tecnocracia. Segundo o professor, escondido por trás da máscara de objetividade técnica estaria um projeto político de dominação transnacional. A base deste projeto é negar a política como deliberação, isto é, como exercício das palavras, da discussão. “A tecnoburocracia, que ocupou o vazio da deliberação política, despreza a palavra, trivializa e degrada a interação política que a palavra deveria proporcionar, no propósito, desgraçadamente bem-sucedido, de afirmar o caráter supérfluo do sujeito histórico como agente de transformação”, conclui Leopoldo e Silva. O vazio político da ausência de deliberação elimina as possibilidades de projeção e planejamento do futuro. O futuro incerto antecipou-se: não representa mais uma possibilidade de ação porque se tornou presente e dado. Como dizem slogans de diversas propagandas, “o futuro já chegou!”. Para Leopoldo e Silva, o futuro foi “presentificado”, apropriado de maneira irrefletida e irreflexiva. O futuro ocupou o presente e mandou-o para trás, para o passado. Com isso, o presente ficou vazio. O vazio cheio de possibilidades Sílvio Gallo enxerga o vazio de outra forma. “Se pensamos o mundo como multiplicidade, o vazio não é um problema, ele é mais um constitutivo dessa multiplicidade. O vazio passa então a ser tomado de modo positivo, como possibilidade de traçar linhas de fuga, de inventar, de construir o futuro. Assim, as saídas não estão dadas, não estão definidas de antemão. É preciso inventá-las, é necessário criá-las”, avalia ele. O mundo fragmentado, vazio de crenças e de política, é, na opinião de Gallo, o que permite a ação. O homem está livre para ocupar espaços e com isso (re)criar crenças e a própria política. Gallo se opõe aos pesquisadores que vêem a vida como uma totalidade cheia de sentido. “Se vejo o vazio, é porque antes o mundo era considerado „cheio', „pleno'. Mas será mesmo que o mundo foi, alguma vez, pleno de sentido, íntegro, completo?”, questiona ele. “Não será esta uma fantasia que construímos sobre o passado?”, continua. Para Gallo, o vazio, a incompletude, a fragmentação, a falta de essência e de sentido fazem parte da vida, do mundo e do ser humano. Por isso, aí, onde outros pensadores vêem um problema, ele vê uma solução. “O mundo em que vivemos é dinâmico, está aberto, em transformação constante. Esta abertura é justamente onde podemos encontrar possibilidade, projeto, construção”, completa. Essas possibilidades para o futuro, o filósofo Gallo também encontra na política, no exercício da reflexão e da palavra. “O problema é que costumamos pensar o poder como plenitude, e a política como o exercício dessa plenitude. E quando a plenitude não se dá, incomoda-nos o vazio que fica em seu lugar”, pondera ele. O show de Truman (1998), Peter Weir O vazio é, para Gallo, o caminho para o pensamento, a criação e a ação. Num mundo onde a informação preenche tudo, onde há, referindo-se aos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, “o império da opinião”, Gallo vê no oposto, no vazio, uma saída. Se a opinião está na plenitude das informações, trata-se, então, de criar um vazio nesta plenitude, de rasgar o céu da opinião e ver o que está atrás dele”. Como no filme O show de Truman, é quando “o céu se rasga e o mundo cai” que a dúvida se instala, as certezas se dissolvem e torna-se preciso desconfiarmos de nós mesmos e do mundo, e irmos atrás das respostas. “Penso que esta é uma boa metáfora para a resistência hoje necessária. Precisamos desconfiar da opinião, inventar um vazio na plenitude de informações que torne possível que pensemos, que inventemos, que ajamos autonomamente, que façamos política (a verdadeira política)”, conclui Gallo. Leia mais Resenha Matrix www.comciencia.br Artigo Silêncios: presença e ausência Por Eni P. Orlandi 10/09/2008 Na teorização que propus do silêncio (Orlandi, 1992) pensando a relação sujeito- linguagem-história, meu objetivo principal era justamente desestabilizar a idéia pré- concebida, que se tinha, de que o silêncio é o vazio. O silêncio é prenhe de sentidos. Ao tratar o silêncio de modo a incluí-lo na perspectiva analítica do discurso, não pensamos o silêncio místico, nem o silêncio empírico, mas o silêncio que tem sua materialidade definida pela relação estabelecida entre dizer e não dizer. Nessa forma de reflexão, também o político adquire sua especificidade. É, então, enquanto relações de poder simbolizadas, e que dividem os sentidos, que nos interessa o político investido na significação. Nesta, finalmente, é que podemos observar a articulação entre o que é dito e o que é silenciado. Vamos falar dessas relações de poder simbolizadas na constituição e silenciamento de uma função-sujeito fundamental na organização da vida intelectual: a função de autoria. Nosso objeto de reflexão é aqui o silenciamento e as políticas científicas. Estamos menos interessados em falar do silenciamento sobre o autor, como plágio, e mais interessados em mostrar como o silenciamento produz uma “versão” da autoria com efeitos teóricos decisivos (perversos?) para as políticas científicas. Do ponto de vista teórico, queremos dar maior espessura à noção de intertextualidade, pensando-se as relações entre textos, tomadas enquanto formulações, versões que põem em cena os sujeitos, os processos de textualização e seus mecanismos, assim como o que é particular às diferentes formas de discursos. A função-autor e a produção das suas versões Tenho distinguido o sujeito, enquanto posição, e sua função-autor. Estabeleço que a função autor se dá quando o sujeito se coloca – no imaginário constituído pelo que Michel Pêcheux (1975) chama “esquecimento número 1” – na origem do que diz. Este gesto o constitui em autor ao mesmo tempo em que constitui o texto como unidade de sentidos em relação à situação. Assim como, enquanto sujeito pragmático, o sujeito tem necessidade de um mundo semanticamente normal, ele também tem imaginariamente necessidade de um dizer com começo, meio e fim, com progressão, coerência, constituindo uma unidade fechada. Mas temos de ir mais adiante e pensarmos que o texto se “apresenta” como uma unidade fechada sem que no entanto o seja realmente. O texto não começa em sua primeira palavra (é sempre possível começá-lo em outro lugar) e não termina em seu “fim” pois é sempre possível acrescentar-lhe algo. Para compreendermos bem isto vamos utilizar a distinção que estabelecemos (Orlandi, 2001a) entre: constituição, formulação e circulação dos sentidos em sua textualização. Nesta, veremos como funcionam as “formulações” e o que temos chamado “versões” 1 . No processo de constituição dos sentidos, temos o trabalho da memória (interdiscurso), a interpelação do indivíduo em sujeito, a constituição de sua forma histórica e os efeitos que produz a partir de sua posição sujeito; no processo de formulação, temos a relação do discurso com o texto que atualiza a memória em presença, a individualização do sujeito pela sua função autor; na circulação, temos o funcionamento das circunstâncias de enunciação e a experiência de mundo (os “fatos”, os “acontecimentos”, os “seres”) como elementos desencadeadores e os sujeitos sociais que encarnam a função autor em seus percursos (por onde circulam), nos diferentes “meios” (verbal, não-verbal, etc). Estes três processos funcionam simultaneamente e tanto o sujeito, como o sentido são afetados por eles. Um sentido é como ele se constitui como se formula e como circula. E o sujeito em sua função-autor tem sua forma afetada pelo “meio” em que se constitui. O autor de um enunciado estampado em uma camiseta e o autor do “mesmo” enunciado em um livro distinguem-se em sua forma e modo de funcionamento. Se a função-autor é a que torna o sujeito mais visível, o mostra mais afetado pelas determinações sociais, e é de quem se cobra a responsabilidade pelo texto produzido (pelo que disse), também o texto é o lado mais visível do discurso, o que se organiza segundo injunções da sociedade, das instituições e que se apresenta com dimensões e textura. Mas assim como há uma incompletude do sujeito e do discurso, sendo a identidade um movimento na história, também a textualidade é uma, entre outras, versão praticada entre as inúmeras possíveis (Orlandi, 2001b). Nesse sentido, no modo como tenho considerado a relação sujeito/discurso e função- autor/texto, não há senão versões; de-sacralizando a noção de texto, considero que não há um texto “original” do qual os outros são “comentários”. Do ponto de vista histórico e da imprensa, em que isto é pensado assim, temos um texto (obra) e a garantia de sua autoria que se reproduz em uma multiplicidade de exemplos. Todas eles exemplares do “mesmo”, garantia esta firmada pela assinatura. Os “outros” textos seriam seus comentários (Foucault, 1971). No caso em que penso as formulações (que refere a produção pelo sujeito-autor) e as versões (que são versões do texto), não se trata do mesmo texto/obra (impresso) e suas cópias, mas uma formulação em relação a outras possíveis, suas versões (e não cópias). Nessa perspectiva, todo sítio de significação é passível de ser trabalhado por muitas formulações (versões). Cada uma delas sendo uma forma entre muitas, tendo em sua “fonte” um sujeito que se individualiza em sua função-autor, de modo específico à memória discursiva, ao discurso que pratica e às condições em que funciona. E, ao fazê-lo, experimentando a sua representação (imaginária) como origem do texto, torna-se seu autor. A autoria silenciada Cada ordem de discurso tem suas formas de autoria e seus modos de produzi-la. Vamos nos ater à forma de autoria do discurso científico e vamos falar sobre o que pode ser uma das formas de silenciamento, tal como tenho considerado, e que afeta a função-autor. Lembremos que faz parte do discurso científico a citação de outros textos, com seus autores, ou seja, é da ordem do discurso da ciência a explicitação da intertextualidade que sustenta suas formulações e o reconhecimento das diferentes funções-autor, que intervêm ao longo do texto, reconhecimento garantido pelas citações. Entre as formas do silêncio que tenho considerado que são o “silêncio fundador” (base de produção dos sentidos) e a “política do silêncio” ou “silenciamento” que, por sua vez, subdivide-se em “silêncio constitutivo” e “silêncio local” (ou censura), vou aqui trabalhar o silenciamento. E, em relação a este, interessa-me particularmente o que chamo de silêncio local ou censura. O silêncio local (ou censura), como sabemos, é aquele em que entra a interdição por alguma forma de poder da palavra (interno ou externo). Não falaremos tampouco do silenciamento local em geral mas da censura relacionada ao modo como se produz ciência, apagando aspectos característicos de suas formulações. Grilagem intelectual e descaracterização da autoria no mundo das letras Não parece um título compatível com a vida intelectual. E não é. Mas a universidade não é feita só de intelectuais, de pensadores. Há muitas razões, todas elas pouco intelectuais, pelas quais sujeitos apresentam-se como detentores do saber. E o fazem respeitando ou não os princípios da autoria. Distanciando-nos de uma posição moralista ou administrativa, não vamos aqui elencar e analisar essas razões. Vamos ver alguns efeitos sobre a questão da autoria. Vamos também realçar a relação de poder e de disputa de legitimidade que acompanha esses gestos de autoria. Importando um termo muito ao gosto da psicanálise, vou procurar mostrar alguns aspectos do que é “autorizar-se”, quando se trata da instituição acadêmica e de formas de relações entre sujeitos que ela propicia, estabelecendo certas condições de sua produção. Como veremos, autorizar-se pode muitas vezes significar fazer uma violência intelectual contra a posição-sujeito de ciência em sua função de autoria. Isto porque o gesto de autorizar-se pode-se dar simultaneamente à instituição de uma imagem de autoria que silencia, em outro sujeito, aspectos importantes de sua função-autor funcionando como uma censura que cria assim, no outro, uma versão de autoria marcada por esse silenciamento. Faz parte das relações do saber/poder a disputa pelos sentidos e pela autoria (função-autor). A legitimidade rege fortemente a produção científica. Manter-se no campo da legitimidade de uma dada ciência ou disciplina e ousar o irrealizado, o ainda não significado, nem sempre é possível. E há os que se expõem e os que não se expõem a esse risco, a essa impossibilidade. Onde a legitimidade se expõe a uma ruptura. Nessas condições, nem sempre aquele que “descobre” é aquele que “diz” em termos de legitimidade. Vou dar um exemplo dessa situação, em que jogam a função-autoria e sua versão, para analisarmos e chegarmos à compreensão de um dos aspectos do funcionamento dessa discursividade e do silenciamento que a acompanha. Há o silenciamento para fora, no plano da política científica internacional (Orlandi, 2003) que apaga a nossa autoria frente aos autores estrangeiros e, um silenciamento para dentro, próprio às relações científicas em um mesmo país, que é a de que me ocuparei a seguir e que afeta fundamente a relação com a vida intelectual e a ciência em geral. Todos conhecemos notícias de cientistas que se apropriam do texto de outro pura e simplesmente (citando ou não seu autor), adaptando-o a sua produção sem referir a formulação de onde vem e, ao integrá-lo, apagam o que é sua autoria e sua força teórica própria, produzindo uma versão “domesticada” do texto e do autor. Ou seja, ele perde, junto com sua autoria, o que traz de diferente em termos de sua “formulação” porque é dito de outro lugar, de outra posição-sujeito de ciência, de uma “outra” filiação teórica. O que há de grave nesse procedimento retórico (pragmático) é que a formulação é o lugar da autoria, aquele em que o sujeito se coloca imaginariamente na origem do que diz e, ao fazê-lo, marca-se em seu modo de produzir sentidos, em seus gestos de interpretação, em sua responsabilidade de dizer. E é aí que a ciência pode(ria) fazer- se/dizer-se de outro modo. Portanto, essa forma de censura, entre outros efeitos, tem o de funcionar na administração do mesmo, na imobilização do discurso científico. Mas esse mesmo procedimento, da política científica, tem um outro efeito que passarei a explorar. A versão da autoria No mesmo gesto em que o autor apropria-se da função-autor de outro, há o silenciamento daquilo que está na formulação deste autor expropriado. Digamos que a retomada do texto, embora não se mostre como, representa um “comentário”. Na perspectiva em que estamos trabalhando, os “comentários” são na realidade argumentos que procuram dar uma direção aos sentidos, fixá-los em certas regiões, além, claro, de subtrair-lhes a autoria (função-autor). Com isso se cria uma “versão” do outro texto. Nesse procedimento, através da produção de um efeito-leitor em que está inscrita a censura (e este é o ponto), se produz uma imagem “do que o texto diz” (já com o silenciamento funcionando). Constrói-se assim um estereótipo, uma “versão” apagada do que efetivamente estava formulado. E o que é o fundamento do que permite essas formulações, no referido trabalho, fica apropriado mas silenciado. Com isso, realçam-se certos aspectos significativos em detrimento de outros. Produz-se assim uma versão da autoria, perdendo a sua singularidade. Resulta daí o que comumente chama-se “vulgata” do texto e perde-se, em geral, a característica mais forte, a sua propriedade intelectual e científica. Silencia-se a função-autor. Cria-se uma versão-autor. O que quero dizer, em termos de política científica, é que é menos a expropriação do que foi dito (o apagamento do autor) e muito mais a criação dessa versão-autor que é decisiva. Porque, junto ao apagamento da formulação específica à função-autor apagam-se também filiações teóricas em suas elaborações, singularidades do modo de fazer ciência, conseqüências ideológicas na história da ciência. Nas ciências humanas, isso produz efeitos muito negativos. Porque não temos como garantia senão as nossas formulações, nossa escrita. Então Retornemos ao início do texto em que falávamos do silêncio, da autoria, das versões e das políticas científicas. Em um mesmo lugar textual (sítio de significação) são muitas as formulações possíveis abrindo para a possibilidade de interpretar e estabelecendo a possibilidade de muitas formas de autoria. Ao silenciar o modo como se constitui uma função-autor com sua formulação, é todo um processo de significação que fica apagado. Por outro lado, a ciência certamente ficaria mais interessante se não houvesse um acúmulo em um mesmo lugar e se a função-autor fosse considerada como um ponto de relações possíveis oferecendo a possibilidade de um trabalho de sentidos que se expandissem em várias direções. Mas o que há é uma enorme variação do mesmo. Desse modo, na perspectiva da ciência, da sua divulgação e de seus efeitos – enquanto parte do funcionamento da sociedade e do Estado (Orlandi, 2000) – isto pode-nos mostrar o alcance de um pequeno gesto desencadeado por razões nem sempre científicas sobre o próprio modo como se constrói ciência e como se constroem autores, sujeitos de ciência. Se dissermos que a formulação (também) em ciência está necessariamente sujeita a versões, no entanto isso não significa que o texto, a formulação, não resiste em sua estrutura, não se particulariza em seu acontecimento. Dizer que estamos sempre em face de versões possíveis em um sítio de significação, não significa dizer que 1. o texto (a formulação) não tem sua especificidade; 2. qualquer versão é boa 3. que, no discurso científico, pode-se dizer qualquer coisa de um texto (formulação), podendo-se mesmo ficar em suas versões (vulgatas) não havendo então necessidade de irmos às “fontes”, ou seja, à versão produzida pela função-autor; 4. e, talvez, o mais importante: que a posição-sujeito científico apaga a função-autor. Ao contrário, é no corpo a corpo com as “fontes” (texto/autor), com as formulações, que a ciência faz seu caminho mais interessante e mais produtivo, movendo-se na rede de suas filiações. Passar do discurso à sua formulação, é justamente dar-se corpo em sua função de autoria e individualizar o dito em suas especificidades. A diferença entre formulações – versões - é significativa e não ocasional, como se pretende. Ela representa uma relação (filiação) do texto com o discurso e deste com a memória discursiva. Portanto situa-se nas mediações entre o real da língua e o real da história, fazendo sentido na medida mesmo em que materializa sua especificidade. Em meus trabalhos tenho ressignificado a noção de autoria e procurado deslocar também a de comentário/versões que não se limita apenas a uma questão formal, de repetição, mas de formulação, tendo a ver com a função-autoria tal como a concebo. Na função-autor efetiva o sujeito não reformula apenas em um sentido superficial, ele entra na relação com o corpo do discurso, com o acesso ao seu acontecimento. Ele desliza, produz efeitos metafóricos, faz funcionar sua memória discursiva. Como hoje temos as novas tecnologias da linguagem, temos então uma nova organização do trabalho intelectual, novas tecnologias da escrita, novas formas de autoria. A variança – e não a falha – nos traz novas formas de organização da escrita (o que chamo escritoralidade) e também afeta a autoria mais formal (a da “obra”, como define Foucault, 1971) na relação com o impresso, com a assinatura. Ao institucionalizar as relações sócio-históricas, a escrita (científica) determina aspectos da autoria (e da relação com o texto na função-autor) que levam à autenticidade e unicidade da obra. Sua “assinatura”. Isto é que lhe é retirado quando se assalta a função-autor, produzindo-se de um lado um silenciamento, de outro, uma versão do autor que não coincidente com sua autoria. Pensando a questão das relações de poder, inclusive na ciência, nos bastidores da encenação dos sujeitos e dos sentidos, as formações discursivas e o interdiscurso fazem seu jogo, a ideologia produz seus efeitos. Pensado dessa perspectiva que estamos elaborando, na ciência, o fato de “ter uma idéia” e de saber “dizê-la” implica pois elaborados processos de formulação pois não se passa direta e automaticamente da memória para o discurso e deste para a formulação (textualização). São complexos processos e mediações que presidem esse funcionamento e a função-autor é uma função nodal nesse processo. Nessas circunstâncias, uma formulação de um autor que projeta uma imagem viezada da função de autoria de outro é um jogo de política científica que funciona justamente porque a versão é uma questão técnica (e não de variança por erro, como se considera no impresso, ou por falha, como seria na Idade Média) que afeta a produção científica, tanto pelo aspecto da função-autor, como da própria formulação na produção de sentidos e de suas conseqüências no campo da ciência. A variança, na análise de discurso, tal como tenho estabelecido (Orlandi, 2001b), tem outro estatuto heurístico quando penso o texto como unidade de análise e de significação em relação à situação. Se a incompletude é parte incontornável dessas relações, e se os sujeitos e os sentidos estão sempre em movimento, é a abertura do simbólico materializada no texto, pela sua formulação, que pode nos dar a dimensão do realizado e do irrealizado, na procura da presença-ausente das formulações e seus confrontos em diferentes versões. O que é fundamental para que a ciência não seja mera repetição e que a função-autor na ciência faça sentido pela maneira mesma com que se constroem as (diferentes) formulações. A variança não é um mero acaso, na ciência, ela é seu cerne. Por isso, ao silenciar, o grileiro de autoria pensa enganosamente estar produzindo ali um vazio. Não. O silenciamento deixa seus vestígios e o real dessa história lateja no jogo das versões. Presença-ausente. Em que o sentido silenciado pode ainda sempre irromper. Talvez por isso, o autor silenciado torna-se ainda mais forte. Porque é o indício de um espaço de significação que não está vazio. Eni P. Orlandi é professora titular de análise de discurso do Departamento de Lingüística, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL); coordenadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp. Notas 1 Quando falo em versões, a perspectiva é o texto, quando penso a formulação, a perspectiva é a relação ao sujeito (constituição, formulação e circulação de sentidos). Bibliografia Foucault, M. (1971) L´ordre du discours, Seuil, Paris. Orlandi, E. (1993) As formas do silêncio, Unicamp, Campinas. Orlandi, E. (2001a) “Tralhas e troços: flagrantes urbanos” in Cidade atravessada Eni Orlandi (org.), Pontes, Campinas. Orlandi, E. (2001b) Discurso e texto, Pontes eds, Campinas. Orlandi, E. (2003) “Tradução e política científica” in Produção e circulação do conhecimento, vol. II, Eduardo Guimarães (org.), Pontes, Campinas. Pêcheux, M. (1975) Les vérités de la palice, Maspero, Paris. ArtigoO mal-estar na contemporaneidade: performance e tempoPor Olgária Matos 10/09/2008 A modernidade é produzida pelo capitalismo contemporâneo e dominada pelo princípio do desempenho, sua temporalidade não é a da experiência, do conhecimento, da felicidade; ela é institucionalmente organizada e este é “o atributo mais eminente da dominação” 1 - o que corresponde a um encolhimento do “espaço de experiências” na vida social e de liberdade; liberdade de acesso ao passado e ao futuro como construção de uma subjetividade democrática. A temporalidade aderida à aceleração do presente - o presenteísmo - apodera-se de todos os espaços democráticos, a começar pela educação, que deixa de ser “educação para a liberdade”, tornando-se “educação para a adaptação”, substituindo-se a noção de “cultura geral” pela de “cultura comum”, cuja finalidade essencial é “preparar os jovens para entrar no mundo tal como ele é” 2 . Essa adesão ao presente plano, caso permita algum sonho, este é paradoxal, sonha tão somente com o status quo, deseja que nada de novo venha a abrir o tempo histórico e o futuro. O tempo na contemporaneidade é fatalizado pela ordem das urgências que significa uma oscilação na razão instrumental, o culto dos meios e esquecimento dos fins. Ele é o reino das revoluções tecnológicas do progresso. A modernidade ocidental nasce sob o signo da mudança incessante. Seu protótipo foi o Iluminismo filosófico e seu desejo de claridade. Com a metáfora da luz o Iluminismo 3 , no século XVIII europeu, inaugura a crença no progresso científico, político, social, moral e econômico contra as trevas do obscurantismo. A noção de progresso traz consigo a idéia de superioridade do presente em relação ao passado, o que resulta em associar-se tradição a atraso, modernidade à revolução científica e tecnológica. O moderno é, também, ontologicamente bom. A utilização anti-humana da ciência e da técnica, porém, e, sobretudo a partir da primeira Guerra Mundial 4 - questiona o conhecimento e a prática científica já que ela serve aos senhores do mundo, como observam Adorno e Horkheimer,“na fábrica ou no campo de batalha” 5 . Para os filósofos, só há progresso se às transformações materiais corresponder bem-estar espiritual do homem. A modernidade capitalista, do industrialismo à micro-eletrônica, supõe a plena luz. Desta forma, com a substituição dos lampiões a gás pela iluminação elétrica em fins do século XIX, “a Via-Láctea foi secularizada” 6 . Estas palavras não se referem apenas ao desencantamento psíquico e da cultura, mas também ao significado socioeconômico desta realização: a atividade sem trégua do modo de produção capitalista tornou-a desmedida, não tolerando o tempo noturno - de passividade, repouso e contemplação. A economia, em sua forma atual de acumulação (cuja infra-estrutura são as nanotecnologias e a microeletrônica), exige a extensão e a intensificação da atividade até os últimos limites físicos e biológicos do indivíduo. Razão pela qual, com a eletrificação, o dia iluminado terá vinte e quatro horas. A organização institucional do tempo é a figura mais eminente da alienação e da dominação do homem pelo mercado mundializado, pois cada um perde o sentido e o mestrado do tempo e de sua vida. Consciente da heteronomia do tempo de trabalho, o Maio de 1968 francês eternizou nos muros da cidade a inscrição: “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”. A ética protestante foi abandonada em nome do espírito capitalista segundo a fórmula de Benjamin Franklin, para quem “tempo é dinheiro”. Se tempo é dinheiro, ele não é busca de sentido e subjetividade, mas quantidade e heteronomia imposta pela temporalidade do capitalismo tardio - o que só aprofunda a crise do sentido da atividade: a desagregação do sentido da vida em comum arrisca subsumir o homem nessa alienação particular que Hannah Arendt nomeava “acosmismo”, o sentir-se estranho no mundo, o sentimento do não pertencimento, o de ser supérfluo. Deve-se, aqui, diferenciar o capitalismo de produção do capitalismo de consumo. No primeiro, o “homem só se sentia em casa quando fora do trabalho e quando no trabalho, estava fora de si” 7 . Na sociedade do consumo, quando o homem está fora do trabalho, tampouco se encontra junto a si. A “escalada da insignificância” resulta em uma lógica do desengajamento em relação a um mundo compartilhado e com respeito também a si mesmo, com a dificuldade de criação de laços duradouros, com a obsolescência de valores como respeito, solidariedade, responsabilidade e fidelidade. O eu procura eliminar todos os laços e sentimentos, reduzidos, agora, a valor de troca, e o mercado conduz ao consumo permanente, induzindo à pressa, constrangendo à rapidez e à aceleração, acentuando a superficialidade nos vínculos (na medida em que os sentimentos exigem a duração para desenvolverem-se), produzindo a “pobreza interior”. No século XIX, o aumento tanto absoluto, quanto relativo do tempo de trabalho era ainda experimentado como uma espécie de tortura: “durante um longo período, as pessoas tentaram uma resistência desesperada contra o trabalho noturno ligado à industrialização. Trabalhar antes do alvorecer ou depois do pôr-do-sol era considerado imoral” 8 . À maneira dos mercados financeiros, o homem não deve dormir nunca e, assim, se institui o stress como modo de vida, seja para aqueles ligados a um trabalho, seja para a massa crescente de trabalhadores precários e desempregados. Predomina aqui uma percepção do tempo na qual não mais se tem tempo - sentimento este paradoxalmente presente, também, entre os desempregados 9 . O capitalismo ultra-liberal confisca o “espaço da experiência” e o “horizonte de expectativas”, resumindo-se a um “presente perpétuo” 10 . A aceleração do tempo do mercado mundial entra em conflito com a temporalidade política das democracias que, desprovidas da experiência do passado e do futuro, não mais possuem a possibilidade de construção de uma memória representável, isto é, contestável - o que põe em questão o próprio exercício democrático: a contemporaneidade transforma a capacidade humana de duvidar em simples falta de convicção. Mas não engajar-se significa “não se empenhar na criação de valores espirituais” 11 . Sem laços estáveis, produz-se um déficit simbólico no indivíduo e na sociedade, uma vez que valores dependem de um espaço comum de experiências compartilhadas 12 . Que se pense na flexibilização dos direitos socais e trabalhistas, bem como nas privatizações forçadas das instituições públicas. Por princípio, a intervenção estatal e os serviços públicos são regidos por uma temporalidade diversa daquela dos negócios privados e do mercado. Serviços de saúde, aposentadorias, rede de transporte, educação, até há algum tempo operavam na duração em longo prazo, senão permanente, para responder a necessidades sociais inscritas, por sua natureza, no tempo de longa duração. Se hoje esses serviços foram tomados pela lógica dominante do lucro em curto prazo, essas reformas significam que o Estado transfere ao mercado sua capacidade e responsabilidade de assegurar o futuro de seus cidadãos: “de agora em diante é o mercado, com suas altas e baixas, que „garante' o recebimento futuro (a aposentadoria). O Estado cede assim sua capacidade de garantir o futuro (...) ao mercado” 13 . Se espacialização do tempo corresponde a sua mensuração abstrata, à quantidade de trabalho socialmente necessário à produção para o mercado, ela é patológica, pois determina o decréscimo das faculdades criadoras e fantasmáticas dos indivíduos, submetidos às leis do mercado, isto é, à insegurança e ao medo. Quando se trata da situação de trabalho, o trabalhador está permanentemente sob pressão das empresas nas quais ele se sente “a mais”, “custando muito caro”. Na perda da identidade profissional e da auto-estima encontra-se uma situação traumática, uma vez que não apenas perde-se um posto de trabalho para, talvez, encontrar um outro como - e antes de tudo - toda uma vida pode ser desfeita: “advêm sentimentos de desvalorização de si, ruptura de redes de solidariedade, perda de elementos constitutivos da identidade profissional, culpabilidade, vergonha, introversão, dilaceramento da comunidade de trabalho que sustentava a existência (...). A perda de confiança no futuro - (...) que se anuncia incompreensível - produz uma profunda ansiedade a que respondem a angústia e o medo do abandono. Angústias arcaicas (...) que podem ter efeitos devastadores” 14 . Modernização significa, assim, a passagem de um mundo com regras conhecidas a um mundo instável e incerto. A temporalidade contemporânea assim constituída produz - não o tédio, mas monotonia. Se o tédio ( l´ennui), como magistralmente o tematizou Baudelaire em poesia e prosa, é a temporalidade do passado que se repete continuamente no presente - como a moda - isso não significava perda do futuro. Ao contrário, o spleenático vislumbra os paraísos artificiais. Por isso Baudelaire escreveSpleen e Ideal, o spleen como ideal para se contrapor à lógica da produção de mercadorias que é a da multiplicação e da repetição, em princípio ilimitada, do mesmo objeto. O dândi, por seu hábito de “mudar de rosto” e a cada dia surpreender com vestimentas excêntricas, é um ser dotado de singularidade em meio à multidão anônima. O olhar do dândi é capaz de reconhecer no novo o antigo e no antigo o novo, conferindo ao repetitivo a raridade do objeto único, captando na repetição o surpreendente e o extraordinário. Como a maquiagem. O pó-de-arroz é como a mica do mármore que confere à mulher moderna a aura de uma estátua grega. Já a monotonia é um tempo estagnado, como se a eternidade do céu se plasmasse na Terra. É uma temporalidade que se exprime na ansiedade de “matar o tempo”. Tempo patológico, seu vazio de significado tem o stress como ideal porque na monotonia o tempo não passa, pois está alienado na perda do sentido das ações. Ele promete a felicidade pelo consumo de bens materiais, mas permanentemente frustra essa esperança, pois não é possível, em regime de acúmulo, reposição e acréscimo do capital, democratizar o excedente e o supérfluo. Tempo que se comprime no desejo de consumo ilimitado, por um lado, determina a exaustão, de outro. Diferem a exaustão e o cansaço. Se neste ainda é possível pensar e imaginar, na exaustão não há possibilidade de exercício do pensamento, apenas hiperatividade vazia e também destrutiva. Abulia e sofreguidão constituem dois aspectos do tempo presente, embora aparentemente diversos: “as duas atitudes possuem um traço comum: a reificação de si” 15 , apreensão de si como objeto sem valor e sem sentido. Não podendo escolher nem deliberar acerca do trabalho ou dos usos que poderia fazer do tempo, os homens não são mais agentes, mas “agidos”: “a atividade tornou-se uma variante da passividade e mesmo onde as pessoas se cansam até seu limite (...), ela tomou a forma de uma atividade - mas para nada -isto é, uma inatividade” 16 . Ou melhor: vive-se, hoje, uma inflação das possibilidades de significados e, portanto, a impossibilidade em reconhecê-los, seja em nosso mundo interno quanto no externo. Nas palavras de Leder: “o imaginário da sociedade contemporânea encontra-se condicionado (...) por uma extrema saturação. O imaginário caracteriza-se por uma abundância potencial que se apresenta ao alcance da mão, mas que se encontra, no entanto, inacessível (...). É precisamente a tensão entre a intuição da presença da satisfação ao alcance da mão e a realidade de seu afastamento e inacessibilidade, o que determina a situação da consciência contemporânea (...). Um exemplo pode ser encontrado na sociedade polonesa, na dicotomia entre sociedade da penúria material e uma sociedade de consumo que ocorreu há quinze anos e transformou totalmente o imaginário social. A mudança da valorização e principalmente da saturação do campo simbólico foi muito mais acelerada que a melhora da qualidade de vida. Paradoxalmente, nos anos sessenta, depois da desestalinização, quando praticamente a totalidade dos poloneses vivia em profunda penúria, mas ao mesmo tempo seu imaginário estava relativamente pouco saturado e, além do mais, estruturado pelo vetor do progresso, a vivência da falta era fraca e cada aquisição material tornava-se um símbolo valorizado positivamente. Nos anos noventa, a transformação econômica melhorou muito a situação material da maioria da população, mas ao mesmo tempo, forçou a integração do campo simbólico dos poloneses no espaço da civilização global. O sentimento de falta e de frustração tornou-se generalizado em todas as camadas da sociedade” 17 . Encontra-se aqui o mal-estar contemporâneo que se expressa em um sentimento de monotonia ou “tédio crônico”, monotonia que conduz a um desinvestimento em valores. Tudo isso se passa em uma temporalidade monótona, específica de uma sociedade organizada, também, de maneira específica - e que é uma desorganização da consciência social pelo sentimento de desvalorização de si e de humilhação: “a privação específica de si, a questão do sentimento mais do que o da consciência da humilhação, do não reconhecimento de si pelo outro, encontra-se no cerne da humilhação nas sociedades contemporâneas” 18 . Tanto mais humilhante é uma situação quanto mais cada um é chamado a consumir e quanto menos poderá fazê-lo. Desprezo dos dominantes, por um lado, humilhação dos excluídos do luxo e da abundância, de outro, resultam em apatia e hiperatividade - ambos os sintomas de excessos - de frustração, de possibilidade de consumir efetivamente o que o que quer que seja. Esse tempo patológico é preenchido por esportes radicais, obesidade mórbida, anorexia, bulimia, terrorismos e guerras contemporâneos. Esta agitação permanente é a expressão do empobrecimento psíquico e da perda de qualquer sentido da vida - de onde a “desvalorização de todos os valores”. A contemporaneidade é a do “crepúsculo do dever”, pois requer tão somente uma “ética indolor” à qual corresponde ausência de normatividade na vida pública, a descrença nas instituições, na aplicabilidade e na eficácia das leis. Como observava Marx, com a produção que visa tão somente o mercado, dá-se a queda do tempo qualitativo em tempo quantificado, tempo que é reificação da duração, pois esta se encontra plasmada no presente - o que resulta na perda da qualidade dialética do vivido, vivido que se tecia de lembrança e esquecimento. E onde não há tempo, tampouco pode haver recordação nem redenção. Como escreveu Benjamin: “as rugas e marcas em nosso rosto são as assinaturas das grandes paixões que nos estavam destinadas. Mas nós, os senhores, não estávamos em casa” 19 . Olgária Matos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo *Este artigo foi publicado originalmente em Medeiros, Beatriz; Monteiro, Marianna; MATSUMOTO, Roberta. Tempo e performance. Brasília: Editora de pós-graduação em arte da Universidade de Brasília, 2007. Republicação autorizada pela autora Notas 1 Canetti, Elias, Masse et puissance, trad. R. Rovini, Paris, 1966, p. 422 2 Cf. Dufet,F., M. DuruBellat, L´hypocrisie soclaire. Pour un college enfin démocratique?, ed. Seuil, Paris, 2000, p. 178. 3 Lembrese que o radical de Aufklärung é klar, Enlightenment, é light, Lumières, Ilustración ou Esclarecimento. 4 A Primeira Guerra Mundial inaugura o bombardeio a populações civis, foi a guerra de trincheiras onde milhões de combatentes se entregaram ao massacre. A afasia daqueles que voltavam da guerra foi estudada por Freud na obra Considerações sobre a guerra e a morte. Walter Benjamin, por sua vez, fala dessa mudez como resultado de um horror sem voz, Do traumatismo que paralisa o tempo e inviabiliza a experiência o poder de narrar a própria história para cicatriz as cicatrizes. Cf, Benjamin, “Experiência e pobreza”, “O narrador”, in Obras escolhidas I, ed. Brasilense, 1983 5 Cf. Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, ed Zahar, RJ, 1983. 6 Cf. Benjamin, Walter, “Arquivo J”, PassagenWerk, ed. Suhrkamp; trad. Le livre des passages, ed. Cerf, Paris, 1980. 7 Cf Marx, Manuscritos econômicofilosóficos de 1844, ed Martin Claret, SP 2001 8 Cf. Kurz, Robert, in Avis aux naufragés, ed. Lignes/Manifestes, Paris, 2005, p. 42. Vale lembrar que durante a Idade Média, quando os artesãos deviam, excepcionalmente, trabalhar à noite, era preciso alimentálos e remunerálos principescamente. Foi proeza do capitalismo transformar uma modalidade de tortura a da alienação do tempo em norma de toda atividade 9 Cf. Bürge, Noëlle, Minima sociaux et conditions salariales, ed. Fayard, Paris, 2000. 10 Que se considerem os mais recentes conflitos na França, quando adolescentes, em sua maioria com ascendência árabe e africana, puseram a nu, em um surto incendiário, a perda desse horizonte de expectativas. Excluídos potenciais e também efetivos do mundo do trabalho, não obstante compulsório na organização da vida em função do capital, chamaram a atenção para o sentimento de humilhação decorrente do tratamento que lhes é reservado como cidadãos franceses, mas de “segunda classe”. 11 Cf. Abensour, Miguel, posfácio a Quelques réflexions sur la philosophie de l´hitlérisme de Emmanuel Levinas, ed. Rivages, paris, 1997.Algumas reflexões sobre a Filosofia do Hitlerismo”, in La philosophie de l´hitlerisme de Levinas. 12 É interessante pensar nos ensaios de Walter Benjamin supracitados “O Narrador” e “Experiência e pobreza”, nos quais o filósofo reflete sobre o mundo moderno no qual não é mais possível dar ou ouvir conselhos, onde não se pode desenvolver uma filosofia prática como aquela contida nas narrativas tradicionais, com suas fábulas, parábolas e provérbios que auxiliavam os homens a enfrentar infortúnio e boasorte. 13 Santiso, J., “Lenteur politique et vitesse économique”, in Malise dans la temporalité,org. Paul Zawadiski, ed publications de la Sorbonne, Paris, 2002, p. 124. 14 Gaujelac, Vincent de, in La société malade de la gestion, ed. Seuil, Paris, 2005, p. 164. 15 Cf. Leder, Andrzej, “La haine comme force formatrice dans le chmps symbolique”, xerox, no prelo da publicação do Colóquio de Cérisy, de setembro de 2005. 16 Anders, Günther, L´obsolescence de l´homme, trad. De Cristophe David, ed. De L´Encyclopédie dês Nuisances/Ivrea, Paris, 2002, p.247. O autor referese às personagens de Esperando Godot de Beckett. Assim Estragon e Vladimir, que não fazem absolutamente nada, representam, na peça, milhões de homens ativos. 17 Malgorzata Szpawoska, Vouloir e avoir. La conscience em Pologne du temps du changement, Varsóvia, 2203, apud Leder, A, “Introduction à une analyse des transformations de l´intuition du temps dans la culture contemporaine”, in Malaise dans la temporalité, org. Paul Zawadiski, Publications de la Sorbonne, Paris,2002 18 Haroche, C., “Processus psychologique et sociaux de l´humilhation: l´appauvrissement de l´espace intérieur dans l´individualisme contemporain, in L´humilhation et le politique, no prelo. Cf nota 8, acima. 19 Cf. “A Imagem de Proust”, in Obras escolhidas I, ed. Brasiliense, SP, 1996 p. 46, trad modificada Artigo O vazio, as marmotas e a arte Por Affonso Romano de Sant'Anna 10/09/2008 No dicionário, o termo vazio remete para aquilo "que não contém nada ou só contém ar". Está correlacionado a desabitado, frívolo, vão, fútil, falto, destituído de inteligência. Na matemática, um conjunto vazio é aquele destituído de elementos. A arte que se tornou oficial na moderna contemporaneidade lida, de forma mais radical do que a arte que a antecedeu, de diversas formas com o vazio. De alguma forma, ela potencializou o vazio, maximizou-o, trazendo-o para o primeiro plano da obra. Já não se trata mais de ter, como na música, um intervalo silencioso entre dois sons, mas o próprio intervalo, o próprio silêncio, ele mesmo, convertido em obra, como no trabalho ("4,33") de John Cage, em que o pianista fica 4 minutos e 33 segundos parado diante do piano e não toca uma única nota. Na poesia seria o mesmo que valorizar, de tal modo, o espaço em branco entre as palavras e os versos que, ao fim, as letras se tornariam desimportantes e o branco da página bastaria a si mesmo, compondo um poema sem palavras. Na escultura seria o mesmo que potencializar os "buracos", ou seja, os vazios de uma escultura de Henry Moore, convertendo-os na própria obra. Marcel Duchamp, pioneiro da arte do vazio, no princípio do século XX, apresentou uma ampola vazia com o "ar de Paris" como obra de arte, reafirmando a definição dicionarizada que mencionamos, de vazio como o que "não contém nada ou só contém ar". Pode-se fazer muita metafísica com isto, através de associações entre o "nada", o "vazio", o "ausente", o "abstrato". Proponho aqui uma reflexão que deve estar no meu próximo livro com o significativo título de O enigma vazio (Ed. Rocco, 2008), no qual tento analisar essa questão dentro da arte do nosso tempo. Vejamos. As marmotas são conhecidas pela curiosidade, um traço que sempre permitiu o sucesso dos caçadores de marmotas. Qualquer coisa branca as hipnotiza. Acenar um pano branco ou uma pena branca faz com que elas entrem em transe, tornando-as presas fáceis. Há até cães brancos especiais, caçadores de marmotas, treinados para agitar a cauda, deixando a marmota impotente, enquanto se aproximam o suficiente para dominá-las. A alegoria das marmotas talvez explique grande parte da arte do século XX: o fascínio pelo branco, ou melhor, pelo vazio, pelo avesso ou anulação de todas as cores (e significados). Neste sentido, os diversos quadros – "Branco sobre branco" que Malevitch pintou, há cerca de cem anos, funcionam duplamente, como metáfora de uma busca e sintoma de uma aporia. A "ausência" suscita várias interpretações. A peça "Art" de Yasmina Reza, que teve enorme sucesso em 36 países, mostra as diversas reações de três personagens diante de um quadro em branco que custou 200.000 dólares ao seu proprietário. Este apresenta essa obra de arte a um amigo esperando que ele veja naquela superfície branca tantas metafísicas e significados quantos os que os marchands e os críticos diziam ali existir. O amigo olha o quadro atentamente e conclui: "This is a white piece of shit", ou seja, “Isto não é nada, é uma merdinha branca”, e não acredita que o amigo tenha pago aquela fortuna pelo engodo. Eles se envolvem numa discussão, e um terceiro amigo é convocado a opinar. Este fica em cima do muro, como se a peça mostrasse um personagem a favor, outro contra e outro nem contra, nem a favor, deixando para o público uma espécie de "você decide". Malevitch, antes do "Branco sobre branco" de 1918, havia pintado vários quadros monocromáticos, inclusive o "Quadrado negro" em 1915. A síndrome da marmota confirma-se nas interpretações oficiais dadas ao "branco" de Malevitch, inclusive usando a palavra "excitação" que caracteriza também a marmota em situação semelhante. Tomemos, por exemplo, a enciclopédia Chronologie de l'art du XXe siècle (Michel Draquet). Ela assinala que "os" "Branco sobre Branco" consagram esta ontologia do nada fundada sobre o princípio da excitação. E ainda vai mais fundo: "A forma, entidade essencial sobre a qual se constrói a diversidade, se desagrega em um movimento sutil que arranca a forma do nada antes de a mergulhar em uma mesma continuidade". Outros pintores, posteriormente, lá pelos anos 50, repetiram ociosamente o mesmo gesto de Malevitch, exercitando o monocromatismo e o minimalismo. E as raposas da crítica ficaram de novo excitadas diante do nada. Poder-se-ia, é claro, de forma talvez irônica, dizer que essa plurivalência gélida do branco na modernidade tem nos aproximado não só das marmotas, mas dos esquimós pois, como se sabe, à força de viverem no branco universo do gelo, os esquimós têm diversas palavras para designar os diversos tipos de branco. De tanto conviverem com o branco descobriram-lhe várias tonalidades. Essa metafísica do branco, sobre a qual Malevitch em suas crises místicas também perorou, está presente também em vários críticos, como no correr do meu livro demonstrei analisando a interpretação de diversas obras críticas de Octavio Paz, Jean Clair, Roland Barthes, Jacques Derrida, e outros. É a "falta", o "ausente", o "branco" suscitando "alucinações" nos críticos tomados pela síndrome da marmota. Isto tem a ver também com o fenômeno de ilusionismo operado pela ciência usando várias cores, que explica como você acaba vendo alguma coisa que não está no mundo físico, e que Maturana chama de "emergência das cores na linguagem". Os quadros monocromáticos, como esses "brancos" de Malevitch, na verdade metaforizam um impasse, que é dele e da arte de seu tempo. O quadro não é mais uma "janela" como o era no Renascimento. Ou, se o for, é uma janela para o nada. É uma sem saída, uma aporia. E é a partir daí que se poderia tentar resumir uma série de aporias a que chegaram os paradigmas estéticos e críticos no século passado. O primeiro deles, sem dúvida, é o cultivo do não-significado. Quanto mais vazio, confuso, inacabado o produto, mais provocador de interpretações. Exatamente como o já citado Jean Clair reconhecia: “mais a obra é minguada, mais sábia sua exegese. Uma dobra na tela, um traço, um simples ponto vira pretexto para extraordinários anfiguri, nos quais se expõem diferentes jargões das ciências humanas”. E o que espanta, não é que em 1918 alguém tivesse pintado o "branco", mas que século adentro isso se repetisse e que as marmotas continuassem excitadas. E torna-se ainda mais preocupante o fato de que a alucinação diante do nada confirma uma outra tendência da arte contemporânea, a do artista sem obra, o que convence aos demais que ele é a própria obra de arte que autoriza obras. Isto vai ter um desdobramento ainda mais patético, porque se por um lado temos artistas sem obra, por outro, "críticos cada vez mais, criam artistas. O que se subentende é que, quanto menos artistas querem criar arte, mais urgentemente os críticos parecem querer criar novos artistas" Affonso Romano de Sant'Anna é doutor em literatura brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais, poeta, ensaísta, cronista e autor, dentre inúmeras obras, do recém-lançado O enigma vazio - impasses da arte e da crítica (Rocco, 2008) e Desconstruir Duchamp (Vieira & Lent, 2003). ArtigoMark Rothko: filosofia e estética negativaPor Cícero Cunha Bezerra 10/09/2008 "Tal o artista que esculpe uma estátua ao natural, desbastando todas as excrescências que entravam a contemplação pura da figura oculta, e apenas mediante essa aférese faz aparecer a formosura escondida tal como ela é em si mesma" (Areopagita, 1996) "A progressão na obra de um pintor, enquanto viaja pelo tempo de um ponto a outro, há de apontar para a claridade: em direção a eliminação de todos os obstáculos entre o pintor e a idéia, e entre a idéia e o observador" (Rothko, 2007b) O que existe em comum entre o pensamento neoplatônico e a arte abstrata do século XX? Aparentemente diríamos que nada. No entanto, tratando-se da relação entre a tradição plotiniana de Dionísio Pseudo Areopagita, mestre Eckhart e a arte de Mark Rothko, muitas coisas podem ser pensadas. Embora não encontremos nenhuma referência direta nos textos de Mark Rothko a Dionísio ou a Eckhart, uma leitura atenta dos seus escritos revela a profunda identificação do artista com a tradição mística neoplatônica. Nascido em 25 de setembro de 1903, em Dvinsk (atual Letônia), Markus Rothkowitz emigrou para os Estados Unidos em 1913. Famoso pelas suas "pinturas negras" (Black Paintings - 1960), Rothko redimensionou a pintura contemporânea graças a uma obcecada busca por encontrar a unidade cromática que fosse capaz de expressar o limite entre as duas realidades que, segundo ele, constituem o real: o sensível e o inteligível. Frases como "nada deve se antepor entre minha pintura e o observador" ou "o silêncio é o mais acertado", revelam, por um lado, uma experiência para além da compreensão verbo-visual, graças às influências que teve de Matisse e Kandinsky e, por outro, uma profunda filiação com a tradição platônica do belo presente, de modo especial, nos Diálogos Fedon e Banquete. Mark Rothko (2007a: 161) inicia o capítulo da sua obra A realidade do artista intitulado "O belo e sua criação" afirmando: "De fato, é difícil escapar à noção platônica de beleza, seja em que época for". Para ele, a arte não é um impulso de imitação da realidade objetiva, mas uma necessidade de refugiar- se “além do mundo representacional” e seu atulhamento de objetos. Nesse sentido, as formas, as cores, são manifestações religiosas e artísticas que nos lembram o que Eliade (1999: 24) chama de “mística primitiva”, isto é, a experiência da perda da forma atual em função do encontro com a forma original. É importante ressaltar, a influência sofrida por M. Rothko nos meados dos anos quarenta, da obra nietzscheana O nascimento da tragédia. Através de Nietzsche, o artista penetrou na mentalidade mítica grega, principalmente, no aspecto dionisíaco que, para ele, encarnava o mais profundo estado de êxtase. Diz ele: “Perguntava-me porque um escrito que trata da tragédia grega tem um papel tão importante na vida de um pintor (dado que as artes, segundo creio, não podem imitar umas as outras), e o único que poderia dizer é que os problemas fundamentais da vida são os mesmos para o artista, o poeta ou o músico. É necessário lembrar que só se pode roubar algo (indecifrável) dos deuses mediante a criação” (Rothko, 2007: 164). Vale lembrar que, no mito, Dionísio é um deus sacrificado por ciumentos titãs, esquartejado por Bacantes e devorado em um ritual. Para Rothko, a tragédia representa a possibilidade de se compreender a abstração como um caminho contemplativo e salvífico. Nesta perspectiva podemos entender suas palavras quando afirma que conhecer é desvelar, isto é, um despojamento de todos os véus ou, como ele mesmo diz, “um elevar-se às profundidades em direção ao conhecimento direto“ (Rothko, 2007b: 166). Por essa razão, Amador Veja (2002: 49), afirma que a indigência espiritual do século XX demonstra, paradoxalmente, uma capacidade simbólica e sacramental que acolhe o mistério em uma linguagem, antes, tipicamente, religiosa. Estamos, portanto, tratando de um discurso estético notadamente apofático dado que é pela negação que o milagre, como define Rothko, da unidade entre criador e criatura se realiza. Segundo Rothko, as grandes criações artísticas do passado são frutos de uma “fé do homem na unidade suprema”. Fé que se desfez com o método científico e a investigação sobre a natureza última das coisas, rompendo com a síntese que existia entre o mundo objetivo e imaginativo. Somente com a redescoberta da síntese, entre estas duas realidades, as chamadas filosofias pessimistas e o ceticismo plástico poderão ser superados. Esse foi justamente o intento do artista com suas “pinturas negras”, isto é, propiciar a superação do conhecimento especulativo por uma experiência extática que nos desafia a pensar na imediatez da experiência estética (Veja, 2002: 50). A arte como exercício da primitiva nostalgia da origem que, citando uma vez mais Eliade, está na raiz da mística primitiva. A estética e a ascética formam, assim, duas dimensões de uma mesma natureza humana. É o desfazer-se da forma atual para encontrar-se com a forma original. Essa experiência de busca e construção, ao mesmo tempo da obra e do artista, aponta para uma dimensão humana da arte abstrata radical na qual artista e obra se fazem mutuamente. Como bem observou Meyer Schapiro (2001: 10), a abstração em pintura evoca, mais intensamente do que nunca, o artista durante o ato de pintar - seu toque, sua vitalidade e estado de espírito, o drama da decisão no processo de feitura da arte. Quando Rothko foi convidado em 1965 para pintar os murais que ilustrariam a Capela da St. Thomas Catholic University, em Houston, mergulhou profundamente no que seria, segundo suas próprias palavras, o seu mais importante testemunho artístico (Baal, 2003). Quatorze grandes pinturas, divididas em três trípticos, pintados de forma monogramática entre castanho e preto opaco, foram definidas por Dominique de Menil na inauguração, um ano depois da morte de Rothko, com as seguintes palavras: “Estamos afogados em imagens, e apenas a arte abstrata nos pode levar ao patamar do divino” (Baal, 2003: 75). Fonte: nga.gov Rothko aponta para a idéia de uma “contemplação pura” que suas pinturas negras,presentes na capela de Houston, tentam expressar, diz ele: “Exigimos antes de tudo e sobre tudo a vitória sobre o subjetivo, redenção do eu e silenciamento de toda vontade e capricho individual” (Rothko, 1966: 62)”. A abstração é, assim, expressão de uma experiência radical em que estética converte-se em ascese propiciando, deste modo, um discurso sobre o inefável, diz Rothko: “Insisto na equivalente existência do mundo engendrado na mente e o mundo engendrado por Deus fora de si ”(Rothko, 2007b: 82). Fonte: houstonmuseumdistrict.org De modo que a pintura abstrata de Rothko tem como finalidade expressar a “idéia inerente à forma”. O artista afirma que entre as expressões artísticas do passado e do presente algo permanece como fio condutor que as unem, a saber: o espírito. Um quadro mais que cor e forma é uma idéia cujo significado, neoplatonicamente, transcende qualquer das suas partes (Rothko, 2007b: 67) ou como nos diz W. Worringer (1953: 135), a criação artística significa um exercício de uma função anímica absolutamente oposta que, longe de toda devoção terrenal, longe de toda afirmação do mundo dos fenômenos, repousa numa zona de necessidade e abstração. Para Rothko, cabe ao filósofo e ao poeta estabelecerem novos caminhos também compartilhados pelo artista, posto que, artista, poeta e filósofos buscam, em concreto, a mesma coisa, isto é, a expressão das suas concepções do real (Worringer, 1953). Uma das afirmações mais importantes para o que estou aqui postulando encontramos noborrador 6 em uma carta dirigida ao editor de Rothko Adolph Gottlieb de 1943, ali lemos que: “O quadro não é simplesmente sua cor, sua forma ou seu sentido, mas é uma idéia imbuída em uma entidade cujo significado transcende qualquer das suas partes”. Idéia esta que escapa a toda formulação matemática e lingüística posto que, como o próprio Rothko diz, esses meios jamais conseguem apreender a abstração na sua nudez. Rothko o compara ao “velho ideal de Deus ” desconhecido (absconditus)(Rothko, 2007b). Rothko, Mark Interior, the Rothko Chapel North view, including the apse triptych at far right – Houston, Texas Fonte: abstractart.20m.com Deus nas suas teofânias é o modelo utilizado, por Rothko (2007b), para pensar a beleza do sensível nos mesmos moldes pensamento neoplatônico, isto é, como participação na “infinitude do real” que só é possível pela sua negação. Diz ele: “É graças ao reconhecimento dessa identidade com o protótipo que podemos observar sensatamente as diferenças” (Rothko, 2007b). Finalmente, estamos diante de uma concepção da arte como espelho da realidade e, seguindo a tradição, como vimos anteriormente, do “Deus desconhecido”, Rothko alinha-se perfeitamente à idéia de que o belo é conhecido indiretamente. A pintura moderna é definida por Rothko como “prancha de lançamento” para a construção, a partir da destruição de uma arte que, como nos diz o seu filho Chistopher Rothko no prefácio da obra A realidade do artista, é como uma música que procura exprimir o inexprimível. No fundo é a transcendência absoluta às regras e normas que delimitam o espaço entre criador e criatura. A feitura de um quadro é, para Rothko, algo milagroso, arrebatador e que, finalizado, se converte em algo estranho, tanto para o artista quanto para o espectador. É uma revelação (Rothko, 2007b: 101) ou um re-invenção frente à avalanche consumista dos nossos tempos que nos convida a pensar em uma arte que ousa mergulhar no vazio e enraizar-se, crescendo e fincado-se no silêncio. Por tudo isso, podemos compreender as palavras de Rothko ao dizer: “Quando se consegue a unidade, não se pode explicar como ocorreu, porque nem eu sei” (Rothko, 2007b). Cícero Cunha Bezerra é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Este artigo foi elaborado graças ao apoio do projeto PAIRD/UFS Referências bibliográficas Areopagita, D.P. (1996) “Teologia mística II, 1025b”. in Medievalia, textos e estudos, n.10. trad. Mário Santiago de Carvalho. Porto: Fundação Eng. António de Almeida. Baal, T. J. Rothko. (2003). trad. Francisco Paiva Boléo. Lisboa: Taschen. Eckhart, M. (2006). Sermões alemães, 5b. trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes. Eliade, M. (1999). O sagrado e o profano. trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes. Lossky, V. (1998) Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maître Eckhar. Paris: J. Vrin. Rothko, M. (2007a). A realidade do artista. trad. Fernanda Mira Barros. Lisboa: Cotovia. Rothko, M. (2007b) Escritos sobre arte (1934-1969). trad. Miguel López-Remiro. Barcelona: Paidós Estética 41. Schapiro, M. (2001). Mondrian, a dimensão humana da pintura abstrata. trad. Betina Bischot. São Paulo: Cosac & Naify. Vega, A. (2002) “La noche del sentido: fundamentos para una hermenéutica de la negatividad en el siglo XX”. in: Arte e santidad, cuatro lecciones de estética apofática, Navarra: Universidad de Navarra. Worringer, W. (1953). Abstraccion y naturaleza. trad. Mariana Frenk. México: Fondo de Cultura Econômica. Artigo “A passagem de um vazio” em fotografias de escolas Por Alik Wunder 10/09/2008 “Na fotografia um detalhe conquista toda minha leitura; trata-se de uma mutação viva de meu interesse, de uma fulguração. Pela marca de uma coisa, a foto não é mais qualquer. Essa alguma coisa deu um estalo, provocou em mim um pequeno abalo, um satori, a passagem de um vazio”. (Roland Barthes, 1984) Na escola, lugar de passagens, há muitos que não deixam seus nomes e há os que passam e que insistentemente querem marcar o espaço: nomes, imagens e palavras por todos os lados, paredes, mesas, cadeiras, portas de banheiro, cartazes, ofícios, livros de registro... Coisas que corporificam a passagem de seres, diferentes formas escolhidas para deixar rastros dos encontros. O que fica depois de nossos encontros com seres e coisas? Marcas? Vazios? Como expressar essas forças? Como a fotografia entra nesse jogo? Há uma intensidade de desejos de dizer do vivido nas fotografias produzidas no interior das escolas, como tentativas de reter sentidos, de preencher materialmente os vazios abertos pelo tempo que insistentemente corre. Como se a imagem pudesse eternizarefemeridades. Há uma carga de narrativas desejantes de comunicação na invisibilidade do cotidiano. Uma forma de contar sem palavras, de trazer à vista cenas, práticas e políticas pouco aparentes nas edições comumente realizadas sobre escolas: os gestos sutis do aprender a ler, os olhares por entre as fileiras escolares, os instantes de ajuda entre as crianças, a diferença que há na repetição do cotidiano da sala de aula, corpos a escrever, a modelar, a afagar, a ajudar, a brincar, a ler, a formar palavras... A retenção fotográfica desses seres, coisas e gestos é uma forma de ser cúmplice deles, de torná-los dignos e de conceder-lhes certa continuidade. Montagem a partir de fotografias de Silvana Lessio e Anna Paula Silva Esses pensamentos, fragmentos de minha tese de doutorado, fizeram-se no encontro com leituras, com educadores e com fotografias de cenas cotidianas de escolas produzidas por eles em cursos sobre a linguagem fotográfica e a educação que realizei entre 2003 e 2006 na rede pública de ensino em Campinas, São Paulo. As imagens apresentadas aqui são ora fotografias produzidas por educadoras nos cursos, ora composições feitas por mim a partir de suas imagens. Os diferentes cursos não tinham como proposta gerar pensamentos sobre o olhar e possibilitar que cada educador encontrasse seu próprio modo de dizer por meio da linguagem fotográfica. A intenção era centrar nas possibilidades da fotografia como expressão de certas visões, de encantamentos e assombros em relação ao que se vive na escola, e também como geradora de outras visibilidades e perplexidades. Nessa perspectiva, ao final dos cursos, fizemos o convite aos educadores de realizarem um ensaio fotográfico individual sobre a sua escola. Em sua maioria, as experiências escolhidas para perdurar nos ensaios fotográficos, trazem crianças a manipular coisas e sendo manipuladas por elas: jornal, tela, parede, giz, bambolê, tinta, boneca, garfo... As imagens nos fazem imaginar uma escola onde se deseja ensinar o uso das coisas e dar um sentido às ações ditadas por elas. Um convite a adentrar a um certo mundo de sentidos. Uma pedagogia silenciosa e invisível, a todo instante a lapidar gestos: crianças em ações de aprendizagem. As fotografias tratadas apenas como retenção do tempo vivido dão força aos sentidos que se querem fazer caber nelas. Efetuam num silêncio persistente, desejando que durem em repetição. Mas, as fotografias também são coisas... E como coisas, o que ensinam? Para além de reterem os sentidos dos encontros, as fotografias também efetuam sobre eles. As fotografias desarranjam os nossos discursos sobre as coisas e os seres; nelas, eles também ganham outras formas. Há a potência do corte, do apagamento, da sombra, da luz, da transformação das cores, em especial nas imagens preto e branco, da justaposição, do adensamento de corpos e da retenção do efêmero. Fotografia de Sidnéia Oliveira dos Santos As fotografias além de reterem marcas, também criam outras. Os sentidos dessas fotografias de escola não são habitantes fixos que podem ser reconhecidos, descritos e analisados. Há uma potência do inominável, dos sentidos em constante escape e desconexão. Mesmo sendo um objeto produzido com a intenção de reter e aprisionar sentidos, a fotografia possui uma força outra, efetua em sua superficialidade, em seu silêncio, em dizeres balbuciantes, em tênues expressões e deixa um potente espaço vazio para sentidos não determinados. As fotografias afetam-nos pela efemeridade de seus gestos incompletos, pelas suas improváveis formas, cores e sombras, por pairarem em uma lacuna do tempo e do espaço. Outros acontecimentos na superficialidade do visto, invisibilidades, imprevisões, outras visões. Nessas lâminas impregnadas de sentidos, a retenção de algo do visto que se esvai em infinitos instantes, em visões multifacetadas daquilo que sempre passa. Nas fotografias produzidas cotidianamente nas escolas, acredito na possibilidade doacontecimento (na proposição realizada por Deleuze, 2003) que se dá pelas superfícies das imagens, quase que descolado do tempo fotografado. Nesse plano sem profundidades há algo que não se consegue apreender e representar em palavras conhecidas. Outros tempos, outros sentidos fazem-se no silêncio inapreensível das imagens. As fotografias, ao quererem reter o tempo, ser um objeto que materialize sentidos, também “são posses imaginárias de um passado irreal” (Sontag, 1984, p.19). Há nesta irrealidade do passado algo a pensar sobre o gesto de deixar aos outros uma herança do tempo. O gesto de uma criança na escola pode nos remeter a um momento finito, que passou e não mais retorna, a partir de uma imagem de tempo encadeado em passado- presente-futuro. Mas, seu gesto retido também cria a suspensão de uma imagem de tempo que somente passa, cria uma outra temporalidade. A fotografia pára o movimento e, ao mesmo tempo, mantém sua potência, num constante saltar, pender, cair... gesto que não termina, que paira suspenso na vibração de um desequilíbrio. Por mais que tentemos legendar as imagens, compô-las em ordem cronológica ou em qualquer outra organização (álbuns, painéis, sites, relatórios...), há sempre uma impossibilidade de contextualização espacial e temporal. As fotografias de cenas comuns das escolas são ao mesmo tempo singulares e plurais, ficam entre a particularidade daquele instante efêmero e os efeitos múltiplos e improváveis que se fazem nos nossos encontros com esses instantes plasmados na superfície-papel. Assim, a fotografia da mesma maneira que retém o instante não possibilita nos apropriarmos dele, lança-nos a outros tempos além daquele particular e datado. Oferecem-nos “instantes inapropriáveis” (Vilela, 2006, p.126) como um acontecimento que nos rompe inesperadamente. Um lugar de trânsito como um labirinto entre o que foi e o que é na imagem. O acontecimento como um vazio, uma lacuna dos sentidos, a emergência de algo novo, uma rachadura, linha do sentido rasgada, desfiada, triturada, esmigalhada que abre forças de pensamento. O acontecimento é inapreensível, irredutível ao mundo das palavras e das imagens, espalham sentidos em deriva. No efeito de um sentido desse instante não interpretável, não compreensível, outros são gerados. Montagem a partir de fotografias de Márcia de Jesus Ferreira Toma e de Lídice Ferreira Esses pensamentos vão no sentido de considerar a fotografia menos como um meio material que transporta uma mensagem no tempo, como um sentido que possa ser retido e comunicado de antemão. Nesta outra perspectiva, fotografar e observar fotografias seriam mais uma dança entre a informação e a imaginação, entre o registro e a invenção, entre a compreensão e o assombro, gestos que abrem possibilidades de expressão e criação de sentidos sobre as escolas e a educação. Dizeres fissurados pelos sentidos do que foi e pelos sentidos que vem sem controle pelo adensamento silencioso de luzes no papel, e nesta fissura, e neste vazio, acredito habitar a força da imagem fotográfica. Pensar pelo instante inapropriável das fotografias seria uma tentativa de “habitar de uma outra forma o mundo e o sentido” (Vilela, 2006), deixando-se contaminar por uma força vibrátil, por efeitos outros além da luta de sentidos que se quer fazer aderir. Um dizer com imagens que nasce do estado limite entre a vida e a morte do sentido, que rompe com o modo de pensar que quer desvendar o mundo, ser espelho de uma nítida imagem ideal. Um deixar-se afetar pelos sentidos que nunca se fixam. Fotografia de Gene Heber As fotografias de escolas como objetos lançados ao tempo lançam luzes e presenças, sombras e ausências. São dizeres de um passado, de um tempo de encontros entre o aprender e o ensinar, e também são silêncios. “Não reproduzem o que transmitem, não reproduzem o mesmo, avançam em silêncio obliquando-se, mudando de direção, variando sua tela, perpetuamente herdada do outro” (Deleuze, 2003, p.334). Estas fotografias resistem a um dizer último com seus silêncios, criam uma sombra “dissidente de uma imagem definitiva” ( Vilela, 2004, p.126) do passado, do tempo, da criança, do aprender, da escola, do professor, do educar... Busco uma poética e política de possibilidades para pensar as fotografias da escola não como documentos que atestam fatos ou como objeto de análise de visibilidades, mas como lâminas que possibilitam novas e infinitas dobras de sentidos. Um pensar que mude seus rumos pela passagem inexorável da luz: uma forma, um brilho, um gesto que nos atinge. Uma aventura não programada de nossos dizeres. O pó de giz na lousa, no chão, nas mãos, sombras e luzes singulares e cotidianas na concretude das paredes, o intenso e fugaz encontro de olhos, o instante em que a tinta se adensa na superfície do papel e que se esvai na água, um toque de corpos, a corda azul que se apaga e se adensa na superfície-papel. Se a educação se faz no desejo de deixar marcas, de ensi(g)nar – e se a fotografia entra como potencializadora desse seu desejo, que ela também possa expandi-lo (talvez subvertê-lo) na sua potência como um dizer em fulguração. Coisas e seres passam, passam-se, não se passam, marcam, marcam-se, não se marcam, abrem vazões, não abrem... Um movimento contínuo entre o controle e o acaso, entre marcar (não marcar) e ser (não ser) atingido por inesperadas e inapreensíveis aberturas. E se elas ensinam, talvez seja um pensar/dizer aberto ao imprevisível e incontrolável. Um ensi(g)nar que se faz como rasgo na pele de um tempo controlado que quer emoldurar com imagens o que lhe escapa. Poética fissura, abertura a um outro tempo em constante variação com luzes e palavras. Na “estática humildade” (Pessoa, 2007, p.50) da imagem corriqueira, as mínimas coisas sem função, sem utilidade, sem importância carregam a força sutil daquilo que está esvaziado de sentidos. Nas frestas dessas janelas-superfícies de vazias paisagens, uma rajada de vento, imaterial e efêmera que contém a força de nos tirar do lugar. “Um cheio e um vazio de poética insuficiência” (Zambrano, 1999, p.101). Este texto é uma versão reduzida do artigo “Restos quase mortais: fotografia,acontecimento e escola” enviado para a 31ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação Pesquisa em Educação (Anped – 2008), fragmento da tese de doutorado Foto quase grafias, o acontecimento por fotografias de escolas (Faculdade de Educação – Unicamp, 2008). Alik Wunder é doutora em educação pelo Olho - Laboratório de Estudos Audiovisuais, da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas Bibliografia BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. VILELA, Eugénia. "Resistência e acontecimento. As palavras sem centro". In: KOHAN, Walter Omar.Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.107-128. VILELA, Eugénia. Corpo, resistência e testemunho nos espaços contemporâneos de abandono. Dissertação de doutoramento em filosofia, Universidade de Letras do Porto, 2004. PESSOA, Fernando. O livro do desassossego de Bernardo Soares. Lisboa: Planeta DeAgostini, 2006. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ZAMBRANO, Maria. Dictados y sentencias (edición de Antoni Marí). Barcelona: Edhasa, 1999. Resenhas Vazio palpável O vazio é o protagonista dos filmes A casa vazia e Tocando o vazio, que refletem sobre o papel do vazio na existência humana Por Chris Bueno 10/09/2008 Um vazio tão denso que chega a ser palpável. Esta talvez seja a característica em comum dos filmes A casa vazia (Bin jip, Coréia do Sul, 2004) e Tocando o vazio(Touching the void, Inglaterra, 2003), tão distintos em suas formas e origem – o primeiro é um filme-arte oriental, enquanto o segundo é um documentário ocidental. Ambos os filmes usam o vazio como matéria-prima, fazendo com maestria a relação com a existência humana. No filme A casa vazia, de Kim Ki-duk, isso fica evidente através da arte. O roteiro apresenta um jovem, Tae-suk, que tem um modo bastante peculiar de viver: sem moradia fixa, ele leva a vida pregando anúncios de um restaurante nas portas de residências, voltando pouco tempo depois para conferir quais não foram retirados – o que pode ser um sinal de que os moradores não estão. Então, invade a casa e confere, através das mensagens nas secretárias eletrônicas, se os moradores estão realmente ausentes. A partir daí, passa não apenas a viver na casa das pessoas ausentes, mas como essas pessoas ausentes: usa suas roupas, lê seus livros, ouve seus CDs. Tae-suk "paga" pela hospitalidade fazendo a limpeza e pequenos reparos na residência. Em uma de suas invasões, porém, ele se depara com a jovem Su-hwa, que sofria agressões do marido e era prisioneira em sua própria casa. Su-hwa passa a acompanhar Tae-suk em suas invasões até que os dois são encontrados pelo marido e levados às autoridades. O final, poético e surpreendente, evidencia a metáfora do filme: não só as casas são vazias, mas as vidas dos personagens também (tanto dos proprietários das casas quanto dos protagonistas invasores), que passam toda a história tentando preencher esse vazio vivendo a vida de outras pessoas. A cena da invasão da mansão onde mora Su-hwa é particularmente interessante por ser emblemática de todo o filme. Após invadi-la, Tae-suk certifica-se que não há ninguém na casa, percorrendo os vários cômodos, sem se dar conta da presença de Su- hwa, encolhida em um canto de seu quarto. Ela aparece, desta forma, como uma invasora de sua própria casa, uma estranha em sua própria vida. Ao se dar conta da presença de outra pessoa na mansão, Su-hwa passa a seguir Tae-suk pela residência, refazendo seus passos como um fantasma, sem ser percebida pelo invasor. Tae-suk só se dá conta de sua presença quando ela se apresenta a ele. Interessante também perceber a relação que o filme faz com a fotografia. As casas invadidas estão vazias, mas seus moradores se fazem presentes através das fotos penduradas nas paredes ou espalhadas em porta-retratos pelas residências. É assim que é possível saber que numa das casas mora um lutador de boxe, na outra um fotógrafo, na outra, um casal com uma criança. O casal de invasores também se faz presente através da fotografia: em cada casa que entram, tiram fotos próximas aos retratos dos moradores e de seus objetos de estimação. A foto não apenas dá a falsa sensação de pertencimento a algum lugar aos protagonistas, como também, de certa forma, é uma prova de sua existência – já que vivem como fantasmas nas casas vazias sem deixar marcas que denunciem que algum dia estiveram lá. O vazio entremeia todo o enredo do filme. As grandes avenidas movimentadas e os enormes prédios de apartamento do centro urbano contrastam com o silêncio e a solidão das personagens, evidenciando uma das marcas da modernidade: o sentir-se só em meio a uma multidão. O que une o casal de protagonistas é a solidão de cada um, e, mesmo juntos, não deixam de serem solitários. A solidão marca o vazio de relações, de entendimento, de contato humano. O silêncio é outra marca que reforça isso: são pouquíssimos os diálogos existentes, e o casal de invasores não troca uma só palavra durante todo o filme. E é aí que se mostra arte de Kim Ki-duk ao fazer o filme usando apenas gestos e olhares de mínima expressividade. Em Tocando o vazio, de Kevin MacDonald, troca-se a ficção pela realidade, e os grandes e movimentados centros pela vastidão dos montes peruanos. O filme, baseado no livro homônimo escrito por Joe Simpson, conta a história real da escalada trágica do Siula Grande, a 6.300 metros de altura, nos Andes peruanos, em 1985. Uma dupla de alpinistas britânicos – Joe Simpson e Simon Yates – tenta realizar o feito inédito de atingir o cume da montanha por sua face oeste. Apesar de terem conseguido realizar a façanha, é na descida que as coisas começam a se complicar: Joe quebra a perna e, para descer, tem que ser suspenso por uma corda amarrada a seu companheiro. Porém, a descida é longa e logo anoitece. As dificuldades se acumulam e Joe acaba pendurado sobre uma parede da montanha. Sem poder ver ou ouvir o amigo, Simon presume que ele esteja morto e corta a corda que os une. Joe despenca quarenta metros no interior de uma greta de gelo e se arrasta durante dias por mais de vinte quilômetros, até chegar ao acampamento onde Simon e outro companheiro se preparavam para partir, certos de que ele morrera. O filme tem todos os elementos para se tornar um blockbuster de aventura, mas não foi assim que o diretor decidiu fazer. Ao contrário, trata-se de uma história que se passa essencialmente na cabeça do personagem principal, apenas um ser humano se arrastando durante dias pela neve, gelo e pedras. O filme mescla cenas com atores e depoimentos dos personagens reais e é complementado por um documentário e ummaking of que mostram o retorno de Joe e Simon ao Siula Grande para as filmagens. Todas as panorâmicas e cenas gerais foram feitas no próprio Siula, com Joe e Simon representando a si mesmos. O drama psicológico vivido por Joe, enquanto se arrasta sozinho pelo gelo até o acampamento, é o que torna esse filme tão precioso. Sua solidão e seu medo são tão reais e densos como o vazio que o cerca. A vastidão dos Alpes peruanos, branco, frio e infinito, apresenta um vazio tão denso que seria possível tocá-lo – como aponta o próprio nome do filme. É este vazio que faz companhia para o protagonista, e deve ser vencido por ele em sua luta por sobrevivência. Aliás, toda a brutalidade selvagem do Siula Grande faz com que ele surja como um gigante monstro branco que os alpinistas tentam vencer a grande custo. Sua imensidão, ainda mais quando colocada em proporção com os alpinistas tão pequenos que chegam a ser insignificantes, também traz a questão do vazio do homem frente à força da natureza. Os dois filmes evidenciam a fragilidade da existência e das relações humanas – seja sozinho em meio a uma multidão, em um grande centro urbano, senha abandonado em uma vastidão gelada. De qualquer modo, mostram que o vazio faz parte do mundo e da vida, e, especialmente, da arte. Filme: A casa vazia (Bin jip) Direção: Kim Ki-duk Coréia do Sul, 2004 Filme: Tocando o vazio (Touching the void) Direção: Kevin MacDonald Inglaterra, 200 Entrevistas Gilles Lipovetsky Para Lipovtesky, vivemos um período em que as grandes ideologias que marcaram a modernidade, perderam força, forma e estabilidade. Nas sociedades contemporâneas, o interesse por temas públicos tornou-se à-la-carte: os cidadãos podem, eventualmente, mobilizar-se por uma questão ou outra, e logo em seguida deixar de manifestar interesse. Por Flavia Natércia e Luciano Valente 10/09/2008 Professor de filosofia da Universidade de Grenoble, pesquisador do Conselho de Análise da Sociedade da mesma instituição, Gilles Lipovetsky é um dos mais conhecidos pensadores de questões acerca da atualidade. Publicou dez livros sobre uma ampla gama de assuntos, como artes, educação, psicologia, política, luxo, moda, cultura da mídia, consumo e ética. O fio que reúne sua obra é a condição do homem moderno, que vive, segundo ele, na era do hiperindividualismo, hiperconsumismo, perdido em meio ao excesso de informações e sem valores para se apegar. Procurando entender esse homem da sociedade atual, Gilles Lipovetsky, com sua filosofia, dá novos traços na definição do indivíduo hipermoderno, como ele definiu na entrevista que concedeu à ComCiência. ComCiência - Em 1983, o senhor publicou o livro A era do vazio, no qual diz que nossa sociedade sofre de uma falta de interesse pela esfera pública. O senhor acredita que essa tendência tenha se aprofundado desde então? Lipovetsky - O que eu quis dizer em A era do vazio era que vivíamos um período em que as grandes ideologias que marcaram a modernidade, como o nacionalismo, o socialismo, a revolução e o progresso, tinham perdido sua força, forma e estabilidade no mundo contemporâneo. Acho que isso continua verdadeiro. Atualmente, a descrição deva ser que, nas sociedades contemporâneas, o interesse por temas públicos é variável, tornou-se à-la-carte. Isto é, os cidadãos podem, eventualmente, mobilizar-se por uma questão ou outra, e logo em seguida deixar de manifestar interesse. Penso que não seja um desinteresse absoluto, um vazio absoluto e niilista. É um estágio em que os cidadãos mobilizam-se em função de seus interesses, e não de maneira sistemática ou em função de uma problemática do dever da cidadania. Hoje, por exemplo, nota-se um grande interesse pelas grandes questões climáticas, como o aquecimento global, mas essas grandes questões afetam diretamente a vida das pessoas. As pessoas voltam-se menos para causas anônimas ou abstratas, pois se mobilizam mais por coisas que podem concernir diretamente à sua existência, como a ecologia e o clima. Elas também se interessam por suas cidades e os lugares onde moram. Penso, por exemplo, no interesse de muitas pessoas pelas associações, que se mobilizam pela defesa de algum aspecto da vida social – os pobres, os portadores de deficiências, as crianças doentes. Entendo, então, que não haja um desinteresse absoluto, e sim um interesse que se manifesta menos em função de perspectivas universalistas. ComCiência - É por isso que o senhor fala do vazio, e não do nada em seu livro? Lipovetsky - O vazio era uma metáfora. Não é um vazio absoluto. Hoje, o vazio, se eu tivesse de defini-lo, é antes uma desorientação, um vazio de referências estruturantes que não vem do fato de não existirem, mas de simplesmente terem se tornado flutuantes e muito numerosas. Podemos tomar diversos exemplos. Tomemos um ao acaso: a arte. Por muito tempo houve uma definição clara da arte. Hoje a arte, a não- arte, o marketing, tudo se mistura. O que é arte hoje? Bom, tudo isso se tornou muito vago. Essa perda de referência também se encontra no casamento, por exemplo, hoje há homossexuais que têm o direito de se casar ou reivindicam este direito. Então, o que significa o casamento a partir do momento em que os gays podem se casar e querem adotar crianças? Há também uma mistura na oposição direita x esquerda no plano político. Hoje as pessoas de esquerda aceitam o mercado e o capitalismo. Então, para muita gente, a oposição direita x esquerda já não é mais clara. Estamos, portanto, numa situação de confusão, de complexidade... Não estamos no vazio puro, mas sim perdidos entre tantas referências... Um outro exemplo: a moda. Por muito tempo, no domínio da moda, as coisas eram claras: havia a moda e os démodés. Era uma oposição muito clara e que mudava a cada seis meses. Hoje, a oposição da moda e dos démodés se tornou vaga, confusa, portanto eu diria que, mais do que uma “era do vazio”, vivemos a “era do vago”, a era da confusão, a era da desorientação. ComCiência - Podemos pensar, então, que as causas comuns, questões como a ecologia ou o aquecimento global, podem se tornar efetivamente uma outra tendência na sociedade de hiperconsumismo? Lipovetsky - Claro. Há, de um lado, o colapso das grandes ideologias da história, mas ao mesmo tempo elas se recompõem por certos “grandes discursos”. Primeiramente, os direitos do homem; em segundo, a ideologia médica – há uma espécie de obsessão pela saúde hoje em dia – e, por fim, a preocupação com o ambiente e a natureza. É algo extremamente importante. Todo mundo sabe bem que a lógica de hiperconsumismo não poderá ser seguida indefinidamente e que há limites ligados à natureza. Tudo isso foi interiorizado, cada vez mais, as preocupações relativas à natureza vão se tornar essenciais. Agora há toda uma pesquisa motivada pelo aumento do preço do petróleo: motores limpos, motores elétricos que, ao mesmo tempo, vêm para responder a esses custos crescentes, e também às preocupações ligadas ao aquecimento global e emissão de gás carbônico. O ambiente pode ser uma causa mobilizadora. É um bom sinal, quer dizer que o individualismo não é completamente cego e deixa a porta aberta para uma tomada de consciência dos problemas do futuro. Com Ciência - O homem da atualidade, que persegue um ideal elevado de beleza, que desfruta de uma tecnologia cada vez mais acelerada e que está submetido a um excesso de informação - o qual suscita um sentimento de desinformação - chegará a uma espécie de limite ou crise? Lipovetsky - A crise já existe. Sobre a beleza, a época em que vivemos é marcada por uma espécie de exigência cada vez mais forte dirigida aos padrões corporais, especialmente para as mulheres. Nunca o corpo foi tão solicitado, sendo objeto de trabalho, ginástica, body-building, regimes etc. E isso é vivido como uma forte pressão, como as feministas falam: uma “tirania da beleza”. Mas, ao mesmo tempo, nunca houve tantos casos de pessoas obesas. Nos Estados Unidos quase 40% da população está com sobrepeso. Isso, evidentemente, explica-se em parte pelo aniquilamento das tradições, mas também por um universo de consumo no qual há informações complexas, múltiplas e contraditórias. O consumidor fica perdido. Hoje, muitos não sabem como se alimentar, por exemplo. Aí também há um estado de confusão que se choca frontalmente com as exigências estéticas. Então a crise é, a princípio, subjetiva. Há uma crise, porque muitas pessoas vivem mal, as mulheres ficam mal, por exemplo, por estarem gordas demais, vivem mal quando fazem regimes nos quais fracassam. A situação, de hiperconsumismo na qual estamos, acarreta uma situação de crise, tanto numa escala global, com o problema do ambiente, quanto na escala individual, com a multiplicação das depressões, das ansiedades, das angústias, das tentativas de suicídio. Há, portanto, com a sociedade de hiperconsumo, uma fragilização dos indivíduos que faz com que o bem-estar material cresça, mas ao mesmo tempo a existência se torne mais difícil, mais geradora de ansiedade. As pessoas têm menos defesas pessoais para enfrentar as crises. Então, creio que o século XXI vai ver se desenvolver esse tipo de processo que está ligado à individualização pelo fato de que os planos conectivos tradicionais, religiosos, são menos fortes que antes, menos estruturantes que antes, e isso acarreta uma fragilização das pessoas, uma espécie de desequilíbrio que se traduz por toda essa espiral de problemas subjetivos. Com Ciência - Na sua análise, as mulheres são as principais vítimas dessa ordem, dessa sociedade de hiperconsumo? Lipovestky - Sim, primeiramente, porque os estudos mostram que 80% das compras são feitas pelas mulheres. A consumidora majoritária em nossa sociedade é a mulher. Em segundo lugar, a relação com a beleza é muito mais importante para as mulheres. Parece-me que as mulheres são mais vítimas do consumo que os homens. O indivíduo- consumidor, hoje, assim como no começo do século XX, continua sendo a mulher, porque é ela que se ocupa da casa, das crianças. São elas que se ocupam mais delas mesmas, de seus corpos, de sua aparência, portanto, o consumo é um fenômeno muito mais importante para as mulheres do que para os homens. Vale ressaltar que o consumo não envolve somente aspectos frívolos. Hoje há uma sociedade que liga o consumo à causa das questões de saúde. Há uma inquietação sobre o que se come, o que se bebe e o que se respira. Todos os elementos que encontramos numa casa são suscetíveis de fazer mal à saúde e, como as mulheres ocupam-se mais das crianças, há toda uma relação extremamente preocupante com relação a esse domínio de consumo. Portanto, sim, as mulheres são as primeiras vítimas. ComCiência – Mas é possível dizer que uma nova revolução individualista está sendo gestada? Lipovetsky – Não, a revolução individualista coincide com a modernidade, em meados do século XVIII. Vivemos uma segunda revolução individualista depois nos anos 1960, 1970, que chamo de hipermoderna para distingui-la da primeira, que era moderna. Acredito que haverá um aprofundamento da lógica individualista, que vai mudar coisas muito contraditórias ao mesmo tempo: todas as demandas de diversão, de consumo, de jogos, de atividades lúdicas, de viagens, as demandas de participação, de atividade... O consumo não pode satisfazer completamente às pessoas. No século XXI, haverá todo um conjunto de comportamentos nos quais vamos ver pessoas que querem fazer mais por elas mesmas. Fotos, filmes, escrever blogs na internet, participar de associações... Não creio que haja uma nova revolução individualista sendo preparada, e sim um aprofundamento dessa segunda revolução individualista, que irá - como eu dizia antes - produzir muita inquietude. Cada vez mais as pessoas procuram soluções individuais para seus problemas, sofrimentos, para suas existências e não vejo nenhum discurso, nenhum programa capaz de colocar fim a essa dinâmica. Não entendo que a modernização ou que os problemas do ambiente vão parar a lógica individualista. Todos esses fenômenos podem, de certa maneira, responsabilizar mais o individualismo, torná-lo mais ansioso e, sem dúvida, medicalizado. Por muito tempo buscaram-se soluções políticas para as desgraças da modernidade e, hoje, buscam-se soluções... talvez pela educação, pelos remédios, terapias, até por novas formas de religião. Mas creio que todas essas dinâmicas aprofundam a dinâmica individualista, e não preparam uma nova revolução. Com Ciência - Nossa sociedade desprovida de valores morais coletivos reflete- se na educação das crianças. Qual é o desafio da educação das crianças neste momento de crise? Lipovetsky - Inegavelmente, há uma crise múltipla na educação. No primeiro nível, há um fracasso geral na aquisição dos saberes mais elementares. Mesmo nos países ricos da Europa e da América, há entre 10 e 20% da população que não escrevem e nem lêem corretamente. É um fracasso escandaloso. Há, portanto, um desafio enorme a se enfrentar. É preciso que a escola saiba encarar tais desafios, já que não há nada de impossível. Não devemos aceitar que os cidadãos das sociedades desenvolvidas não dominem saberes tão fundamentais. Há uma crise da escola, porque a escola se choca agora contra os mass media. Antes, a escola laica chocava-se com a religião. Hoje, a escola laica choca-se com a televisão e a internet. E nós vamos ter de transformar muito os métodos da educação a fim de que a escola integre a capacidade que temos hoje de ter uma informação ilimitada e fácil. Portanto, um dos novos desafios é recompor o que devem saber os cidadãos. Isso não está claro, pois os saberes e as informações são superabundantes, pode-se ter tudo no plano da informação. A escola ainda não compreendeu isso. Portanto, é preciso repensar o que deve ser uma cultura geral, para se orientar dentro do saber e para permitir ter algumas grandes linhas referenciais importantes, para poder depois orientar-se dentro da superabundância de informação. A escola também deve oferecer aos jovens não somente saberes, mas também experiências que ampliem seus horizontes. A época em que escola só transmitia saberes fundamentais corresponde a um período passado. Hoje é mais complicado, porque tudo está aberto às pessoas. Deveríamos abrir a escola para o mundo exterior. As pessoas mudam muito em função das experiências, dos encontros com outras pessoas e com coisas que elas não conhecem. E assim teríamos uma escola mais dinâmica e estimulante, por exemplo, se as profissões diversas pudessem chegar à escola para mostrar aos jovens todas as possibilidades que há de viver neste mundo. Os jovens conhecem, de fato, um mundo bem pequeno, o mundo em torno deles, de seus pais e de seus amigos. A escola deve fazê-los experimentar outras coisas. Esse é o grande desafio que transformará os métodos fundamentais da escola. A escola não sofre de falta de valores, mas de referências para construir o século XXI. Ela deve ser mais aberta, mais experimental. Com Ciência - Pode-se dizer que, com o excesso de informações e imagens no mundo, o que diversos filósofos assinalaram, a escola deve se tornar um espaço para vivência, experimentação, e não somente para conhecer as coisas abstratamente? Lipovetsky - Exatamente. A experimentação, eu esclareço, evidentemente não é a única função da escola. Se a escola trouxesse pessoas de fora para falar de seus trabalhos, levasse os jovens às diferentes empresas para ver como é a vida exterior, poderia contribuir muito para ampliar horizontes. A escola deve, a princípio, fornecer ferramentas conceituais e teóricas, mas apenas isso não basta, pois o mundo hoje é aberto, variado, mutante. Creio que uma escola mais aberta a experiências mais humanas – e não somente teóricas – seria mais estimulante. Um lugar de vida, e não simplesmente um lugar onde se aprende a base para situar-se no futuro. Não quero voltar aos erros da educação permissiva, em que se permitia que as experiências fizessem qualquer coisa com os jovens, o que para mim foi um erro. Nós devemos, ao contrário, restabelecer a disciplina nas escolas. Devemos ensinar os jovens a ver que ser um adulto é respeitar determinado número de regras, é aprender, é progredir e, para isso, é preciso trabalhar. A escola deve colocar isso, mas não por meio da violência ou do terror, simplesmente porque essa é a condição para ser um adulto responsável. É preciso fazê-lo. É preciso impor aos jovens um certo número de planos para que eles se construam, porque não se pode educar uma criança somente em função do prazer, isso não existe e não é possível. Há necessidade de limites, de restrições e de disciplina para que se forme alguém capaz de dominar seu ambiente. Mas também é preciso abrir a escola às novas dimensões do mundo e ampliar os horizontes dos jovens. O caminho não está unicamente nos livros. No caso da escolha das profissões, por exemplo, para proporcionar paixões aos jovens, deve haver contatos, encontros. Não há paixão sem encontros. É essa situação que cria a paixão. E, tendo contato, experiência com encontros, com pessoas que não são seus professores. Isso seria enormemente rico para o futuro.
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