O MEU GURI: UM RECORTE SEMIÓTICO DA CANÇÃO MARTINELLI, Delaine Marcia* RESUMO: Esse artigo realiza uma análise da construção de sentido, sob a perspectiva da semiótica francesa (ou semiótica greimasiana), da letra da música O meu guri, composta por Chico Buarque. A análise procurará desvelar o texto nos três níveis do percurso gerativo de sentido: fundamental, narrativo e discursivo. ABSTRACT: This article performed an analysis of the construction of sense, in terms of semiotics french (or semiotic greimasiana), the lyrics of the song O meu guri, composed by Chico Buarque. The analysis will seek to unveil the text of the route gerativo three levels of meaning: fundamental, narrative and discursive. PALAVRAS CHAVE: semiótica, música, Chico Buarque. KEYWORDS: Semiotics, music, Chico Buarque. INTRODUÇÃO O presente artigo realiza uma análise da construção de sentido(s) da letra da canção O meu guri de autoria de Chico Buarque, sob a perspectiva da semiótica greimasiana, oportunizando ao leitor, outra visão para a canção. A opção pela semiótica francesa encontra abrigo no fato de que a mesma “se interessa por tudo que faça sentido para o ser humano. Herdeira de Saussure e de Hjelmslev, não toma a linguagem como sistema de signos, e sim como sistema de significações, ou melhor, de relações, pois a significação decorre da relação” (Barros, 2005, p.13) e, também, no fato de a concepção metodológica do Percurso Gerativo de Sentido, proposta por Greimas, permitir que se analise os mais variados discursos – políticos, religiosos, obras de artes, propagandas, letras de música – enfim, todo e qualquer produto cultural passível de sentido(s) para o homem. Lembramos que a semiótica francesa é de extração lingüística, vez que sua base alicerça-se nos postulados de Saussure, Hjelmslev, Propp e Lèvi-Strauss, ou seja, foi a partir desses postulados que Greimas construiu a Semântica Estrutural (1966), obra fundadora da semiótica francesa. Ressalta-se que, além da Escola de Paris, há outras correntes teóricas que voltam o olhar para a construção de sentido(s) do/no texto, entre elas a Semiótica Peirciana (Charles Sanders Peirce) e a Escola de Tartu (Yuri Lotman), as quais têm renomados seguidores junto à academia brasileira. A seguir, apresentamos breve retrospecto dos princípios que norteiam a semiótica greimasiana sem grandes incursões, visto ser impossível dar conta de todo seu fazer teórico, além disso, ela “não está facta, mas in fieri” (FIORIN, 1999, p. 1), ou seja, é uma teoria que se modifica, se onde é/são ‘gerado(s)’ o(s) sentido(s) do texto. 13). é ‘algo’ percebível aos sentidos e. porém. visual ou gestual (imagens. como objeto de comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário. Vale ressaltar. 7) Barros (2005) esclarece. como qualquer disciplina. é a relação entre as unidades estruturais de um texto a responsável pelo(s) sentido(s) ali presente(s). Diferentes teorias voltam-se para essa análise do texto. ao elaborar sua Teoria Semiótica. 2005. Enfim.refaz. diferentes planos de expressão manifestam mesmos conteúdos. sob a forma de um percurso gerativo. dança etc) ou mesmo sincrético. que o texto pode ser oral ou escrito (texto lingüístico). a Semiótica tem suas limitações teóricas. ao mesmo tempo. isto é. mas sim a se formar. no entanto. A significação é sempre articulada. cânone metodológico proposto por Greimas (1966) para se analisar qualquer texto. pelo texto como verdade. então. por sua vez é responsável pela construção de simulacros. relação é o termo chave na Teoria Semiótica proposta por Greimas. “tenta determinar as condições em que um objeto se torna significante para o homem” (BARROS. O teórico propõe que se tome o texto como um todo de significações. propondo. segundo o estudioso. Essas diferentes possibilidades de manifestação textual devem. 2005. não está pronta. aciona os órgãos sensoriais (audição. um simulacro. ainda que. ou seja. porque. de acordo com a Teoria Semiótica. para o plano de conteúdo. a partir de princípios e como métodos e técnicas diferentes. Enfim. seja de forma verbal ou não-verbal. é ela que dá ao texto significação. como já dito. a um conhecimento. Antes. corrige-se. A significação. que tais significações se fundem na relação existente entres as unidades que estruturam o texto. A semiótica1 é uma delas. entendido como objeto de significação. também. cumpre esclarecer o que a semiótica francesa entende por texto. cada texto constrói uma imagem. p. e preocupa-se com os efeitos que a produção do texto deixa apreender. acabada. é uma teoria in fieri. prender-se a uma descrição dos sistemas sígnicos. tato. para a análise estrutural. (BARROS. A esse tipo de descrição tem-se atribuído o nome de análise interna ou estrutural do texto. paladar. remete a um conteúdo. responsáveis diretos . a construir-se. faz que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam. A Semiótica volta-se. ainda. olfato e visão). O Percurso Gerativo de Sentido (PGS). ser abstraídas. que o tecem como um ‘todo de sentido’. Como o texto constitui-se materialmente. Para o autor. sem. Um texto define-se de duas formas que se complementam: pela organização ou estruturação que faz dele um ‘todo de sentido’. p. Greimas. buscou compreender a produção de sentido de um texto a partir das relações entre as unidades. o que possibilita tomarse o texto no seu plano de conteúdo e a partir desse explicar o(s) sentido(s) presente(s) no texto. A primeira concepção de texto. acerca da teoria greimasiana. e e) a terceira etapa. logo. É na estrutura interna do texto que a semiótica explica o seu dizer. há os patamares: fundamental (o nível das estruturas profundas. 7). que percebemos. p. p. problemático. que relacionam produtor e receptor do texto para descrever e explicar o que se diz e como se faz esse dizer. levam o homem a dar sentido a essas percepções. o narrativo e o fundamental e é por meio dele. é uma teoria metodológica capaz de investigar os diversos níveis encontrados na produção de sentido. que diz respeito ao plano de conteúdo. c) a primeira etapa abrange o nível fundamental ou das estruturas fundamentais (simples e abstrato). temos ‘verdades’ diferentes. esclarecer que o PGS mostra os níveis crescentes de invariância do sentido e dá a cada um desses níveis uma descrição metalingüística adequada. Como dito. a semiótica ocupa-se em descrever e explicar “o que o texto diz e como faz para dizer o que diz” (BARROS. Pode-se afirmar que. Distinguindo a imanência. Qualquer aspecto da realidade é mais complexo do que supomos e essa complexidade está atrelada ao sistema de valores do sujeito e dos objetos com os quais ele se relaciona. são dependentes entre si no que diz respeito ao sentido. nos mostra que a verdade é concebida como a verdade do texto. recebemos e recuperamos detalhes da produção do(s) sentido(s) contidas em um texto – do nível mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. ou terceiro nível.pela percepção humana do mundo e. Barros (2005) nos explica que o PGS – ou simulacro metodológico – fundamenta-se nas seguintes etapas: a) o PGS abrange todos os níveis (do mais simples ao mais complexo e abstrato). para valores diferentes. no nível da imanência. é do discurso. conseqüentemente. narrativo (onde o sentido se organiza em programas que envolvem sujeitos e objetos. da manifestação. para tanto. ou das estruturas discursivas. b) o PGS envolve três níveis que. 116-117). diz respeito ao nível narrativo. valendo-se. numa sucessão de estados de transformação em que os sujeitos visam valores) e discursivo (que considera os aspectos de tempo. O princípio semiótico. d) a segunda. de espaço. ao produzir/dar sentido a um texto. o que significa dizer que o semioticista faz a análise interna do texto. Resumindo: o plano de conteúdo está hierarquizado metodologicamente em três níveis: o discursivo. . os atores. onde a narrativa organiza-se a partir do ponto de vista de um sujeito determinado. Cumpre. portanto. “A verdade é sempre uma construção dos homens e por isso é necessário acolher seu caráter múltiplo. variável em função dos pontos de vista humanos” (PIETROFORTE & LOPES. embora autônomos. O homem. dos procedimentos da própria organização textual e dos mecanismos enunciativos. está produzindo ‘verdade’. que diz respeito à verdade. plano de conteúdo. 2005. em que predomina o maior grau de abstração). os temas e as figuras). 2003. a seguir. propomo-nos. é o meu guri E ele chega . 1. é um compositor dos mais respeitados e consagrados no Brasil e fora dele. não se tratará aqui de buscar as “reais” intenções do homem Chico Buarque. tem como foco o jovem marginalizado dos grandes centros urbanos. A canção O meu guri. olha aí Olha aí. não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice ele um dia me disse Que chegava lá Olha aí Olha aí Olha aí. a partir delas. na íntegra. seu moço Que haja pescoço pra enfiar Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave. Conhecido. é o meu guri E ele chega Chega suado e veloz do batente E traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro. Trazemos. caderneta. ocupa espaço nos cadernos policiais de boa parte dos jornais de circulação nacional. ou seja. traçar um percurso gerativo de sentido ou sentidos e. reproduzir o poema narrativo.Enfim. vão ao front para matar ou morrer. com intuito de situar o leitor. mas sim identificar quais marcas foram deixadas no texto e. por unir poeticidade e melodia a um aguçado desvelamento das mazelas sociais incrustadas em nossa sociedade. CHICO BUARQUE E SUA CANÇÃO: ESCOLHAS JUSTIFICADAS Francisco Buarque de Hollanda. ai o meu guri. ‘capturados’ pelo tráfico de drogas. ai o meu guri. é um assunto que. e reconhecido. terço e patuá Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar. olha aí Olha aí. E. nesse trabalho. de posse dessa metodologia. alguns dados sobre o compositor do texto para. características determinantes em sua obra e que a tornam eterna e sempre atual. embora transcorridos 26 anos. seu moço. nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando. são soldados na/em guerra e que. ou seja. gravada em 1981. o Chico Buarque. conseqüentemente. apresentar um recorte semiótico da canção. como em qualquer guerra. pela atemporalidade e pelo não-espaço. O Meu Guri Quando. Jovens que são arregimentados. infelizmente. olha aí Olha aí. analisar O meu Guri de Chico Buarque nos três níveis do PGS. olha aí Olha aí. seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato. Logo. ai o meu guri.2 CONSTRUINDO SENTIDO(S) A semiótica define objeto como “o que é pensado ou percebido como distinto do ato de pensar (ou de perceber) e do sujeito que o pensa (ou o percebe)” (DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA. 2. constroem no nível fundamental. ou seja. é o meu guri. Essa oposição é detectada na 1ª e 2ª estrofes.1 AS FRONTEIRAS SOCIAIS O meu guri está estruturada em quatro estrofes. acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo. retrato Com venda nos olhos. então. manchete. s/d. sujeito e objeto são distintos e é a relação entre eles que permite se perceber tal distinção. cimento.Chega no morro com carregamento Pulseira. eu não disse. o narrativo e o discursivo. relógio. às quais. é uma aplicação prática da Teoria Semiótica. olha aí Olha aí. o que implica dizer que não há como se determinar previamente o objeto. e analisar os níveis propostos por Greimas: o fundamental. “. um mesmo objeto pode estar investido de valores positivos para um sujeito e de valores negativos para outro. olha aí Olha aí. 312-313). no nível mais abstrato da geração de sentido a oposição pobreza x riqueza ou classe social desprestigiada x classe social de prestígio. gravador Rezo até ele chegar cá no alto Essa onda de assalto tá um horror Eu consolo ele. olha aí Olha aí. pneu. 2. ANÁLISE Nosso olhar buscou focar no texto da canção O meu guri “o que ele diz e como faz para dizer o que diz”. buscando uma reflexão isenta e centrada no texto. p.com cara de fome” x “tanta corrente de ouro”. ele me consola Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo... olho pro lado E o danado já foi trabalhar. legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente. É a relação que determinará os valores do objeto para o . seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí. O que se propõe. isto é. é o meu guri E ele chega Chega estampado. numa perspectiva semiótica. ai o meu guri. Chico Buarque 2. fama) nos objetos: presente.. seu moço.sujeito. pois a enunciadora. O sujeito guri é apenas mais um. geralmente. deseja os objetos que significam riqueza e para obtê-los vai desencadear um novo percurso narrativo. que haja pescoço pra enfiar / me trouxe uma bolsa já com tudo dentro/chave. O sujeito guri quer. No âmbito da teoria semiótica greimasiana. . uma vida desigual. a mãe. Esse segundo percurso nos permite levantar a possibilidade de ser o sujeito mãe um sujeito disjunto do amor ao filho. sem nome. sem registro de nascimento. o guri não quer ficar conjunto a essa situação (pobreza) e investe os valores riqueza. busca: fama. sequer possuía documentos (E eu não tinha nem nome pra lhe dar) para torná-lo um cidadão perante o Estado... desta vez de transformação. como a própria mãe. Como fui levando. Dessa forma o guri assume o fazer – “traz sempre um presente pra me encabular”. corrente de ouro. documentos). O percurso de transformação nos mostra o guri atuando performaticamente na apropriação dos objetos desejados e valorizados como riqueza e tudo o mais que eles representam. nos objetos (corrente de ouro. dentre uma multidão de brasileiros. investido ao objeto pelo próprio sujeito que o busca. ‘respeito’. a segunda e terceira estrofes mostram uma aproximação entre os sujeitos: o guri a presenteando. diz que sua relação com o guri é marcada pelo distanciamento (Quando. fama etc.). de miséria. O primeiro programa narrativo que destacamos é o de aquisição. temos um percurso narrativo de continuidade em relação ao primeiro: a vida conjunta para o sujeito guri é uma vida de pobreza. dignidade. bolsa. não sei lhe explicar). O meu guri tem seu percurso narrativo estruturado em programas narrativos centrados no sujeito. os quais busca desde menino: “E na sua meninice ele um dia me disse que chegava lá”. “tanta corrente de ouro. O sujeito guri fica conjunto com a vida (Quando. nasceu meu rebento / Não era o momento dele rebentar. No texto pode-se notar que o sujeito (guri) investe determinados valores (riqueza. Ambos se consolam mutuamente. caderneta. rezando. nesses objetos estão embutidos os valores que ele. sujeito. valor este. A seguir. bolsa. seu moço. Entretanto.. ter um nome etc. no primeiro verso. o nível narrativo apresenta sempre um sujeito que parte em busca de objetos de valor. terço e patuá / um lenço e uma penca de documentos / pra finalmente eu me identificar” – e transforma sua vida e a vida de sua mãe. depois. seu moço. O sujeito mãe não tinha condições de criá-lo. nasceu meu rebento / Não era o momento dele rebentar / Já foi nascendo. ou seja. ai o meu guri. No segundo caso temse a morte do guri. legenda e as iniciais”). então. afinal desde o início a enunciadora avisa: “Ele disse que chegava lá”. O enunciatário tem.3 A MARCA DO DISCURSO: TEMAS E FIGURAS É importante lembrar que este nível. permite tal ‘leitura’. a qual possui uma carga semântica que. pois a imagem proposta (“Chega estampado. manchete. ou. o discursivo. retrato / Com venda nos olhos. pois é menor (“Chega estampado. sem dinheiro. de ser um ‘sem-registro’. a fala de uma mãe que vê seu filho ‘cair na vida’. legenda e iniciais’. do começo ao fim do enunciado: “Olha aí. O sujeito guri deixa. olha aí”. para se fazer rico. ter sido detido. retrato”).Mas. se presentifica na fala da enunciadora que repete. ilícitas. nesse último programa narrativo. enfim. A morte do guri. de ser um desconhecido para se tornar conhecido (“chega estampado. retrato / Com venda nos olhos. daqueles envolvidos com o tráfico de drogas. significa/identifica o transporte de mercadorias ilegais ou contrabandeadas. ainda que ‘com venda nos olhos. ‘estar nas páginas policiais’ ou. ou seja. Entretanto. fala que tem similaridade com a fala de uma mãe que vê seu filho sem vida: “ai o meu guri”. principalmente. A enunciadora abre o último percurso narrativo.. legenda e as iniciais” [. duas possibilidades de interpretação: pode crer ter o sujeito guri conquistado a riqueza e a fama e. essa mesma fala pode marcar outros enunciados como. legenda e as iniciais” recupera as manchetes que marcam os homicídios e as chacinas de menores. manchete. manchete. No primeiro caso o guri sai de seu ‘anonimato’. manchete. também. legenda e as iniciais” e podemos dizer que esse é também um novo percurso de transformação. sua teorização é menos estabilizada que as demais utilizadas até aqui. Vale ressaltar que essa implicitude fica comprometida pelo uso da palavra ‘carregamento’. retrato / com venda nos olhos. portanto. ter o filho detido e encaminhado a uma casa de recuperação. no jargão policial. o sujeito guri realiza um outro programa narrativo e que se encontra implícito no texto da canção: um programa de roubo. para realizar esse programa de transformação. mas há a possibilidade de ser o percurso de sanção. de contrabando.. dizendo que o guri “chega estampado. acho que tá rindo / Acho que tá lindo de papo pro ar”). ao final. manchete. retrato / com venda nos olhos. é o mais recente do percurso gerativo de sentido.] / O guri no mato. 2. para adquirir fama ao sair ‘estampado’. sair da miséria e do anonimato. . A fala da enunciadora “chega estampado. ainda. Ao final desse percurso ambos os sujeitos estão de posse do objeto-valor almejado: a riqueza. pode crer estar o sujeito guri morto. por exemplo. da fama. um juiz. a relação eu-tu representada na canção. ou seja. A enunciadora usa o termo “cá”. Já a palavra “lá”. Temos as figuras guri. no terceiro verso da segunda. já que se trata de uma canção) envolve-se com o que é dito.O texto da canção O Meu Guri é figurativo. Esta figura. e pelas falas da enunciadora. O mesmo acontece com a marcação do espaço no texto. Chico Buarque valeu-se de elementos de figurativização para construir/dar efeito de real à canção. gerando. ou seja. levando o leitor a imaginar-se no mesmo lugar em que ela se encontra. essa relação eu-tu aponta para a subjetividade do texto. de intimidade com o enunciatário. seu moço. principalmente. lugares dos quais ela não se exclui. eu não tinha nem nome pra lhe dar (3º verso. caberá ao enunciatário decidir. usada repetidas vezes no enunciado. chamada ao texto pela enunciadora. Interessante observarmos. A figura da mãe é aqui tomada como a da enunciadora – o texto traz marcas visíveis que atestam tal crença. causa um efeito de sentido de proximidade. as autoridades constituídas. um efeito de proximidade. as figuras tematizam um dos maiores problemas sociais brasileiros: jovens marginalizados dos grandes centros urbanos e sua ‘captura’ pelo crime organizado. não é uma palavra da enunciadora. constitui-se na 2ª pessoa do singular.. no terceiro da quarta e no sétimo verso da última estrofe – na forma do “tu”. pode representar um delegado. O “lá” nesse caso seria o lugar da riqueza. por exemplo: “nasceu . do prestígio. por exemplo. A figura da mãe é identificada pelos pronomes pessoais de primeira pessoa eu e meu. na repetição da expressão meu guri. como em: meu rebento (1º verso. pode ser um chamamento ao leitor ou a sociedade brasileira. também. um jornalista. um promotor. identificada com equivalente a meu filho. Já a figura seu moço. mais uma vez. um vizinho. um advogado.. que são utilizadas para dar concretude ao tema destacado no nível fundamental (pobreza x riqueza ou classe social desprestigiada x classe social de prestígio). 1ª estrofe). com quem se fala. o eu também se constrói e cria um simulacro da própria estrutura da comunicação no interior do enunciado. mãe e seu moço. 1ª estrofe) e. aquele que lê o enunciado (ou o ouve. A figura da enunciadora tomada como mãe na forma do “eu” e um enunciatário com quem ela se comunica (“seu moço”) – presentes no primeiro verso da primeira estrofe. A figura do guri é construída pela fala do sujeito mãe e constitui-se de um alguém (3ª pessoa singular) sobre o qual se fala. ou numa análise mais pertinente (talvez mais apropriada): a falta de políticas públicas para amenizar o abismo sócio-econômico do povo brasileiro. ou seja. pois ao criar um “tu”. pois o “lá” sempre aparece como uma citação do guri: “ele disse que chegava lá”. como. à segurança etc. ver que o ‘trabalho’ do guri (“chega no morro com carregamento / pulseira. desde o início do texto. A enunciadora nos permite. conseguirá ser imparcial ao falar sobre o próprio “rebento”. aos quais são negados Direitos Fundamentais – como à vida.”. Rezo até ele chegar cá no alto / Essa onda de assaltos tá um horror /.meu rebento . pneu. legenda e as iniciais”. olha aí. ainda. Parece-nos mais natural que um “guri” que mora no morro. cimento. “boto ele no colo. ao longo de seu discurso. Uma mulher que ficava encabulada com os presentes que o guri lhe dava. assassinatos e a traficantes. Ou seja. também abastecido e controlado pelo crime organizado. gravador”). principalmente. A repetição constante do verso “Ele disse que chegava lá” marca. pode-se dizer que a enunciadora. eu não tinha nem nome pra lhe dar. neste ponto.. quem gera ‘emprego e renda’ para as famílias que ali habitam. Ao final do texto a mãe diz não entender o alvoroço que se faz a partir da “manchete. A visão de um guri trabalhador (“E ele chega / chega suado e veloz no batente / e traz sempre um presente. Apresenta-se como uma mulher pobre e ignorante. é o meu guri” – e por isso supõe-se que as opiniões e juízos de valor dispensados por ela sejam questionáveis.. cuja mãe sequer tem documentos e que traz para ela “uma bolsa já com tudo dentro”.. a enunciadora se coloca como alguém que nada podia fazer (ou não queria fazer) para interpelar o guri.. vez que. que criou o filho sozinha.. a pessoas humildes. relógio..... a roubos.”. que tem medo (“essa onda de assalto tá um horror”). olha aí. quis convencer o interlocutor de sua inocência. mas sim. e na sua meninice ele um dia me disse. alude. que é pessoa temente a Deus (“rezo até ele chegar cá no alto”)... mas que remete também. sem documento. dificilmente. pois este tinha o querer-poderfazer e nada o destituiria de seu desejo maior: ficar disjunto de uma vida miserável. E o danado já foi trabalhar”) que a mãe quer passar ao enunciatário (leitor) não se sustenta. à igualdade. . em regra.. A figura morro remete a um espaço físico que. retrato. ao longo da canção. pois ao referir a si própria usa efeitos de proximidade e de subjetividade. não seja um guri que trabalha na legalidade. o desejo do guri e. um guri que trabalha para as instituições criminosas que existem nesses espaços e que são. ai o meu guri. com vendas nos olhos. sem oportunidade a ‘um outro tipo de vida’. com todas as dificuldades que isso implica. a enunciadora registra a conquista do querer maior: chegar lá. sustenta outro comércio: o mercado negro.. do verso “olha aí. ao finalizar as estrofes com “Ele chega”.. brasileiros. no atual contexto social brasileiro. e pela repetição. v . 2.). A fala da enunciadora “ai o meu guri” pode remeter a um acontecimento de morte. para ser explorado. São Paulo : Cultrix./jul. É claro que pode também ser a notícia de sua morte. São Paulo : Contexto. tão bem trançados e tramados pelo compositor em sua canção. GREIMAS. _____. São Paulo: Ática. o que a presente análise não comprova. sendo um dos princípios da semiótica a “verdade do texto”. Semântica estrutural. embora. s/d. Entretanto. . guri. FIORIN.. E. assim. novas leituras REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BARROS. observadas no nível fundamental. 1966. pois faltam marcas no texto que embasem tal afirmação. _____. 1999. Diana Luz Pessoa de. São Paulo : Revista Delta. São Paulo: Atual. Esperamos ter conseguido. ou seja. s/l. indicar um novo olhar sobre o texto. registramos não ser possível destecer todos os fios. Por fim. espaço e tempo. que investe nos objetos que busca os valores riqueza. Sujeito esse que busca e conquista os valores almejados.15. ed. como dito. como já dissemos à página 9 quando tratamos do nível narrativo. fama. sob o recorte dos postulados de Greimas. ed. Essas oposições marcam também as fronteiras sociais e econômicas existentes em nosso país. Ressaltamos que estudos apontam para a morte do “guri”. Teoria semiótica do texto. Algirdas Julien. a canção O meu guri reafirma o que se diz sobre a obra de Chico Buarque: é sempre atual e. nº 1. 3. 2002. aberta a novos olhares. a verdade que é construída pelo homem e que por isso mesmo tem caráter múltiplo. O fato de haver uma foto do guri no mato com vendas nos olhos. Introdução à Lingüística I – objetos teóricos. manchete e as iniciais pode significar apenas o flagrante de um menor em ato criminoso. feb.CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo desse trabalho foi. portanto. ainda. Sendas e veredas da semiótica narrativa e discursiva. desvelar os níveis de geração de sentido e. 1997. posição social como a única alternativa para ficar disjunto de uma vida de miséria e pobreza. As oposições riqueza vs pobreza ou classe social prestigiada vs classe social desprestigiada. optamos em deixar o leitor livre para escolher a sua ‘verdade’. 2003. caberá ao enunciatário tal interpretação. As astúcias da enunciação – as alegorias de pessoa. José Luiz (Org. mas pode também ser a fala de uma mãe desesperada que vê seu filho nas páginas policiais. Muito há. sustentam a análise de um sujeito. DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA. Semiótica das paixões. Petrópolis : Vozes. 1993. In: * 1 Professora de Linguagem e Argumentação – Cursos de Administração e Educação Física / UNIGRAN e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 2006. Ivã Carlos. Sobre o sentido – ensaios semióticos. . A língua como o objeto da lingüística. _____._____. São Paulo : Contexto. HERNANDES. 2003. Antonio Vicente. Winfried. Chico Buarque de. São Paulo : Companhia das Letras. São Paulo : Annablume. NÖTH. Nilton e LOPES. HOLLANDA. A semiótica no século XX. 2005. Dos estados de coisas aos estados de alma.) Semiótica – Objetos e Práticas. Tantas palavras. São Paulo : Ática. Grifo nosso. (Orgs. 1996 PIETROFORTE.