Arthur Schopenhauer_ Olavo de Carvalho-Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão-Topbooks (1999).pdf
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COMO VENCER UM DEBATE SEM PRECISAR TER RAZÃO OBRAS DE OLAVO DE CARVALHO Universalidade e Abstração e Outros Estudos. São Paulo, Speculum, 1983 O Crime da Madre Agnes ou: A Confusão entre Espiritualidade e Psiquismo. São Paulo, Speculum, 1983 Astros e Símbolos São Paulo, Nova Stella, 1983 Símbolos e Mitos no Filme “O Silêncio dos Inocentes”. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 O Caráter como Forma Pura da Personalidade. Rio, Astroscientia Editora, 1993 A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994 (1ª ed., fevereiro; 2ª ed., revista e aumen- tada, agosto) Uma Filosofia Aristotélica da Cultura: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994 O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César ~ Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. Rio, Diadorim, 1995 O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. Rio, Faculdade da Cidade Editora e Academia Brasileira de Filosofia, 1996 (1ª ed., agosto; 2ª ed., outubro; 3ª ed., abril de 1997 ; 4ª, maio de 1997) Aristóteles em Nova Perspectiva. Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Rio, Topbooks, 1996 A Longa Marcha da Vaca para o Brejo – e, logo atrás dela, Os Filhos da PUC. (O Imbecil Coletivo II). Rio, Topbooks, 1998. O Imbecil Juvenil, ou A Educação do Pequenino Intelectual. (O Imbecil Coletivo III). Rio, Topbooks, 1999. ARTHUR SCHOPENHAUER Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão A Dialética Erística (em 38 Estratagemas) de ARTHUR SCHOPENHAUER anotada e comentada. EM 38 ESTRATAGEMAS (Dialética Erística) Introdução, Notas e Comentários por OLAVO DE CARVALHO Traduzida porção de DANIELA CALDAS e OLAVO DE CARVALHO 2a. edição, revista e aumentada TOPBOOKS Copyright da 2a. ed.© Olavo L. P. de Carvalho, 1999 Todos os direitos reservados pela Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda. R. Visconde de Inhaúma, 58, gr. 413 - CEP 20091-000 Rio de Janeiro RJ - Tel. (021) 233-8718 __________________________________ Impresso no Brasil ......................132 § 10...16 Nota Prévia da primeira edição.................................................121 § 9.........................................................................................24 § 1...................41 § 2.......................................143 .....................................................................................................................................................................104 § 7...........................................................................................................48 § 3.................................................................................70 § 5.......................12 Nota Prévia à Segunda Edição................................................................................116 § 8.........57 § 4...................................... SUMÁRIO INTRODUÇÃO CRÍTICA À DIALÉTICA DE SCHOPENHAUER.............................87 § 6.................................................................................................................................................................................................................... ...208 4 [Pré-silogismos].......................................................215 7 [Perguntas em desordem]...................................................233 18 [Uso intencional da mutatio controversiæ]....236 21 [Preferir o argumento sofístico]....255 .....................................................222 12 [Manipulação semântica]...................................231 17 [Distinção de emergência] ...........................237 22 [Falsa alegação de petitio principii].................................220 10 [Pista falsa].............246 27 [Provocar a raiva].........................................................................217 8 [Encolerizar o adversário]....................................228 15 [Anulação do paradoxo].................................................148 [Intróito].....................187 [Estratagemas dialéticos]...................................221 11 [Salto indutivo]........................234 20 [Uso da premissa falsa previamente aceita pelo adversário].149 A Base de Toda Dialética..........239 24 [Falsa reductio ad absurdum]...................................234 19 [Fuga do específico para o geral]..........................213 6 [ Petição de princípio oculta].............................195 1 [Ampliação indevida]...........................................................................195 2 [Homonímia sutil].............................................................................219 9 [Perguntas em ordem alterada]...........................................................................................................248 29 [Desvio].........................................................................................................................................241 25 [Falsa instância].......................................................................251 30 [Argumentum ad verecundiam]......................................................................242 26 [Retorsio argumenti]...................................211 5 [Uso intencional de premissas falsas]...........................................................................201 3 [Mudança de modo]...................................................................................247 28 [Argumento ad auditores]...........229 16 [Várias modalidades do argumentum ad hominem] ....226 14 [Falsa proclamação de vitória]..................238 23 [Impelir o adversário ao exagero]..223 13 [Alternativa forçada]................................................................................DIALÉTICA ERÍSTICA................... ......................................290 Adendo de Schopenhauer......................329 III: n...................................................353 X: n................ 124......368 XIV: n................................282 ...............................................................300 Esquema da Dialética segundo Schopenhauer..........................................364 XIII: n..............................................................................323 COMENTÁRIOS SUPLEMENTARES E CONCLUSÕES............ 31 [Incompetência irônica]....323 [por Olavo de Carvalhde Schopenhauer..............334 IV: n.........274 35 [Persuasão pela vontade]........................................................273 34 [Resposta ao meneio de esquiva]..................................... 123.......................351 IX: n.................................................................. 129...................................................................... 95....................................................................................370 XV: n.....................................325 Comentários Suplementares..... 114.....................................................................342 VI: n............................ 112.......... 117........................... 120..........290 Anotações de Schopenhauer........272 33 [Negação da teoria na prática]......................... 126...................................................................................................................................................................................347 VIII: n................................ 130.........374 ................................. 68.......................... 127............................................................................360 XII: n......279 37 [Tomar a prova pela tese]............................................................... 97............344 VII: n... 107....................340 V: N.............................................275 36 [Discurso incompreensível]...........................................................................326 II: n.............326 I: n....... 91........................354 XI: n..........270 32 [Rótulo odioso]....280 38 [Último estratagema]................................................................................ ..................................................................................................380 1....................................................... XVI: n..............380 2... ......................... Guia de Estudos. 151..386 ......... Conclusões.................................376 Comentários Finais... Introdução Crítica à Dialética de Schopenhauer por OLAVO DE CARVALHO . tio deste livro. A JOSÉ MÁRIO PEREIRA. . . . corrigido mas não substancialmente aumentado. Já a preocupação vem de uma dúvida que me assalta sempre que topo com alguém que. devo expressar a alegria e a preocupação que me infunde o rápido esgotamento da primeira edição. se põe a louvá-las pelos dons argumentativos do autor. julgando ou fingindo poder fazê-lo sem qualquer adesão substancial às . tendo lido esta e outras obras minhas. O motivo da alegria é óbvio: ninguém escreve um livro para escondê-lo.NOTA PRÉVIA À SEGUNDA EDIÇÃO A o reeditar este livro. se consegui. . que ensina as pessoas a adorar as palavras sem atentar para o que dizem. a perversão maior da nossa cultura nacional. se não consegui provar nada. e a cujo serviço pôs inteiramente esses supostos dons. ele confunde a argumentação filosófica com a mera persuasão retórica (para não dizer a manipulação erística).INTRODUÇÃO CRÍTICA 17 idéias que ele defende. Com a maior sem- cerimônia. por que o leitor não se persuadiu? O drama inteiro reside em que um livro sozinho não basta para opor efetiva resistência a séculos de verbalismo esteticista. Ao sentir portanto pesar sobre sua alma a força coercitiva de uma demonstração cabal. Pois. em si mesmos nulos e despiciendos. que belo argumentador sou eu! E. o brasileiro não admite ter sido vencido pela verdade. mas apenas pela destreza verbal maior do adversário. descrença que é vício inerente à cultura do estetismo1. Desenvolvimento e Cultura. ao opinar sobre política. e tanto mais suspeito de safadeza 1 Leiam o clássico de Mário Vieira de Melo. O Problema do Estetismo no Brasil. Nessas condições. Contribui para esse efeito a descrença visceral na existência de qualquer verdade efetiva. o autor de um livro contra a pseudo- argumentação erística corre o risco de passar por admirador secreto das astúcias que denuncia.18 OLAVO DE CARVALHO mesmo ao ler um livro que tem por objeto precípuo estabelecer entre essas duas coisas a mais clara distinção profilática. quando menos. pela facilidade leviana com que. Relativismo cuja perversidade se evidencia. . e que hoje em dia é ademais fortalecida pela moda chique do relativismo blasé. o relativista salta logo para a condenação moral absoluta e irrecorrível de seus execrandos desafetos partidários. de que qualquer aplauso àqueles dons que mencionei acima me soa como amarga ironia. E quem. sincera até à medula. afinal. . exceto se posta a serviço de algo que a transcende e justifica? 2 Antonio Machado. De pouco adiantará minha declaração. é tudo o que o brasileiro quer ser quando crescer. no por el docto oficio del forjador preciada2. neste país de admiradores da força sem sentido. já que não me apego a eles senão como o soldado à sua espada. acreditará em mim se eu disser que mesmo a mano viril não me impressiona em nada.INTRODUÇÃO CRÍTICA 19 argumentativa ele se tornará quanto mais eficazmente desmantele as artimanhas do argumentador erístico que. famosa por la mano viril que la blandiera. Assim. Não creem senão naquilo que . em sua pureza. no desenvolvimento natural do homem. Alberto Magno que sempre dou a ler aos alunos que ingressam no meu Seminário de Filosofia: “Há outro impedimento na especulação da verdade. pouco importa. eu gostaria de transcrever. São pessoas nas quais a força da imaginação prevalece sobre a inteligência. a teoria da verdade. Embora o homem. seja só inteligência. as seguintes palavras de Sto. é arrastada pela imaginação. enquanto homem. Que cada um creia no que bem entende ~ ou não entende. Apenas. uns. se não lhes demonstramos em figuras matemáticas as coisas que lhes dizemos. no fim das contas. no pórtico deste livro. esta. não lhes dão assentimento.20 OLAVO DE CARVALHO Mas. pelos sentidos e por outras forças corporais que não a deixam contemplar. o qual tem sua raiz na nossa própria condição natural. seja de demonstração. seja porque.INTRODUÇÃO CRÍTICA 21 são capazes de imaginar. Aos outros. os que estão acostumados aos estudos filosóficos querem. não havendo estudado. seja de evidência. ignorando a eficácia do aparato silogístico. que têm o entendimento inteiramente voltado para os sentidos. Outros. Os que estão acostumados às ficções jurídicas se dão por satisfeitos quando lhes citamos o testemunho de um poeta que tenha forjado similares ficções. uma certeza. lhes parece triste e adusta a certeza filosófica. seja porque têm a inteligência curta ou algum defeito da razão ou do engenho... Em contraste com isso. Com efeito. em tudo o que ouvem. não são capazes de entender essa linguagem. afeitos à vulgaridade e à ignorância. uma verdade que se obtém com certeza por via silogística é de tal condição que não pode facilmente alcançá-la quem não . não aceitam nada se não o mostramos em exemplos para os sentidos. 103. ed. em Opera omnia. p. Selección de Textos. não acreditarão estar diante de uma verdade. Münster. s..”3 Enquanto a nossa educação nacional não cuidar de infundir nas crianças o senso de uma realidade que ultrapassa a esfera dos jogos subjetivos. . Los Filósofos Medievales. j. os brasileiros adultos continuarão acreditando na onipotência das palavras e na infinita plasticidade de um mundo dócil à sua mágica verbal. vol. Um povo assim está condenado a ser tanto mais otário quanto mais esperto se pretenda. pp. BAC. sempre que lhes provarmos o que quer que seja. 3 De Anima.22 OLAVO DE CARVALHO estude. Não abalará suas esperanças insensatas a constatação do fracasso repetido. 1980. Colon. em Clemente Fernandez. Madrid. 194-195. E. e sim apenas de alguma prestidigitação mais engenhosa. II. e está totalmente incapacitado para ela aquele que seja de curto alcance. cit. INTRODUÇÃO CRÍTICA 23 Na esperança de que pelo menos alguns de meus patrícios escapem a esse destino patético ~ e não na de fazer bonito às custas dos demais ~ foi que empreendi estes comentários a Schopenhauer, o qual por sua vez escreveu o breve tratado aqui comentado movido por análoga esperança quanto a seus compatriotas. Rio de Janeiro, 2 de Junho de 1999 OLAVO DE CARVALHO. 24 OLAVO DE CARVALHO NOTA PRÉVIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO “Dogmatiser sur un bien originel, c’est le livrer démagogiquement à la dispute. Et la dispute, c’est le diable.” HENRI MONTAIGU M uitos leitores, e não dos piores, ainda não atinaram com a unidade física e mental do autor que subscreve, de um lado, o Aristóteles em Nova Perspectiva, de outro, O Imbecil Coletivo. Ante a aparência bifronte da criatura, optaram por imaginar que se tratava de um caso de dupla personalidade: sob o influxo talvez do plenilúnio, o pacato estudioso se transfigurava ciclicamente em INTRODUÇÃO CRÍTICA 25 polemista hidrófobo e colecionador de cabeças, babando sangue ante o computador e antevendo, entre delíquios de prazer sádico, as reputações agonizantes de seus desafetos. Depois voltava ao nor- mal e, como se nada tivesse acontecido, se punha a falar de arquétipos platônicos, de formas a priori e de silogismos modais ~ tudo com a maior cara de inocência. A alguns, que me consultaram a respeito dessa hipótese, fiz observar que em O Jardim das Aflições as duas cabeças já se encontravam reduzidas a uma: a polêmica das páginas iniciais se desenvolvia naturalmente numa sondagem histórica e esta se desdobrava em discussões filosóficas das quais emergia, nas páginas finais, a solução da polêmica ~ tudo num crescendo cuja composição lembrava, segundo o prefaciador Bruno Tolentino, os procedimentos or- 26 OLAVO DE CARVALHO questrais de Jan Sibelius. Mas não se persuadiram. A transfiguração da picuinha em metafísica, que ali se concretizara, podia ser enge- nhosa o quanto fosse, mas era apenas a unidade de um processo temporal, não lógico: afinal, no tempo, também Mr. Hyde se transfigurava no Dr. Jekyll, e vice- versa, sem que entre eles deixasse de haver por isto um abismo de contradições, que os impedia de aparecer simultanea- mente em público na figura de um terceiro personagem condensado e sintético. Também não adiantava nada argumentar que, segundo Hegel, só o fluir do tempo sintetiza a tese e a antítese, reabsorvendo no devir real as contradições da forma lógica. Depois das coisas horríveis que no mesmo livro eu tinha dito do filósofo de Jena, pegava mal apelar à sua autoridade para atenuar as humilhações de minha condição bicéfala. INTRODUÇÃO CRÍTICA 27 Não parecia haver portanto meio de reconquistar a unidade de minha imagem autoral senão colocar, entre O Imbecil e o Aristóteles, um termo médio, que demonstrasse por sua presença mesma o elo, a conexão indissolúvel entre as cogitações filosóficas mais altas e a sondagem das misérias culturais do dia. Não que a dualidade de minha fisionomia fosse, em si, causa de preocupação: conhecendo-me há meio século, e não me envaidecendo de ser eu mesmo, antes suportando com resignação essa identidade que tanto me pesava nos tormentosos dias da adolescência e que é o que me sobra na impossibilidade de ser coisa melhor, acabei por me afeiçoar a este que ora lhes fala, e não poderia me deixar enganar por visões duplas de testemunhas incertas para enfim me desavir comigo como o triste Sá-Carneiro; e sendo, ademais, inclinado a 28 OLAVO DE CARVALHO desprezar solenemente quem se dê o trabalho fútil de criar opiniões profundíssimas sobre a minha psicologia, que considero óbvia e patente até o limite do tedioso, pouco se me dava que me considerassem dois ou mil, contanto que não se multiplicasse por igual quantia o cálculo do meu imposto de renda. Só comecei a me afligir quando um simpático leitor paulista de O Imbecil Coletivo me perguntou, sem sombra de ironia, se eu conhecia um meu homônimo que escrevera sobre coisas místicas em algum tempo remoto (para um jovem, dez anos é antigamente). Aí comecei a suspeitar que a duplicação da figura do autor podia conferir a seus escritos publicados uma perigosa duplicidade de sentidos, com o que eu acabaria por incrementar involuntariamente a confusão nacional, em cuja redução empenhara o labor dos meus dias. INTRODUÇÃO CRÍTICA 29 Urgia, portanto, colar meus pedaços. Estava eu assim a imaginar pontes no ar, quando o editor José Mário Pereira apareceu com a solução pronta e infalível: um livro sobre a dialética erística ~ a arte do debate malicioso ~ que, redu- zindo a esquemas gerais as pseudo-argumentações que em O Imbecil eu denunciara em amostras e casos isolados, evidenciasse a relevância filosófica dos pequenos embustes e o fundamento metodológico sério que embasava sua refutação humorística. Mais ainda, disse ele, se em vez de simplesmente escrever o livro eu o construísse sob a forma de comentário a um texto clássico sobre o tema, ficaria demonstrado e patente ante os leitores que também os grandes filósofos do passado se ocuparam de desmontar picuinhas, sem que isto os afastasse de suas cogitações mais altas, e que desta mediante exemplos concretos. longe de ser uma extravagância polêmica a destoar do conjunto de um empreendimento filosófico. por ser curto e. toda a erística de Schopenhauer era construída em contraponto à dialética de Aristóteles. Para completar.30 OLAVO DE CARVALHO forma O Imbecil Coletivo. que por seu estado mesmo exigia explicações e acréscimos para tornar-se mais facilmente digerível. por ser um rascunho inacabado. dando en- carnação concreta à sua idéia. passou-me às mãos um exemplar da Dialética Erística de Schope- nhauer. era também filosofia. apenas exercida na praça pública. o texto ideal para servir de matéria a um comentário dessa ordem. mais ainda. o que me dava ocasião de fazer de seu Comentário um desenvolvimento da Teoria dos Quatro Discursos. E. as razões filosóficas mais sérias que embasavam certas refutações . mas também de evidenciar. mas revelam algo da natureza das coisas e do estado dos fatos. uma galeria de . Não se pense. porém. Este livro é. A melhor forma de agradecer um conselho providencial é levá-lo à prática no ato. que com este livro eu pretenda incentivar os leitores à disputa de opiniões. mas a dialetizar consigo próprio. Eis aqui. O objetivo deste escrito não é induzir o leitor a discutir com os outros. por julgar que da discussão nasça a luz.INTRODUÇÃO CRÍTICA 31 polêmicas trazidas em O Imbecil Coletivo. na serenidade de uma investigação sincera. a idéia de José Mário Pereira realizada. quando está aí a história do mundo para provar que da maioria delas nascem apenas as falsas certezas e as decisões catastróficas. com efeito. pelo menos até estar seguro de que suas opiniões não expressam apenas o desejo egolátrico de impor preferências. portanto. em desonestidade e perversão. é apenas serva e discípula da verdade intuída. Na maior parte dos casos. um homem tanto mais gesticula e dramatiza em defesa de suas opiniões quanto menos está seguro delas por dentro. por não as haver examinado bem. no sentido da demonstração apodíctica. que mesmo a prova. dar livre curso à paixão de persuadir. No mais das vezes. com insistência. que mostram no que resulta. Por isso mesmo. é habilidade menor e derivada em relação ao perceber e ao intuir. que mais vale saber sem poder provar do que produzir um milhão de pro- vas daquilo que. por ne- cessária que seja nas circunstâncias práticas da vida intelectual.32 OLAVO DE CARVALHO maus exemplos. a simples afirmação direta do que se enxerga tem mais força do que . no fundo. é bom lembrar ao leitor. que a capacidade de argumentar. não se intui de maneira alguma. Olhando fixamente para dentro de seu coração. não há outra arma senão dizer a verdade com tal clareza.INTRODUÇÃO CRÍTICA 33 muitos argumentos. Ora. a gramática do idioma pátrio. os esquemas argumentativos padronizados e as exigências da moda ~. as regras de estilo. os usos do vocabulário comum. com tal precisão. um homem “lê” o que está inscrito na sua consciência íntima. nenhum jogo de cena ou artifício de palavras possa prevalecer contra ela. as palavras do discurso íntimo se embaralham. como redes superpostas. Contra as tentações do erro e da fantasia. entrando por automatismo nesses canais e . ne- nhum rodeio. que nenhuma finta. como palavras de um texto supremamente auto- evidente. essa clareza não se obtém sem um tremendo esforço de atenção que é quase um exercício ascético. Ao subir para a periferia da mente ~ onde estão depositadas. até que a imagem do discurso interior fique tão nítida na memória. afeiçoando o discurso ao conteúdo intuído. Então é preciso mergulhar de novo e de novo.34 OLAVO DE CARVALHO arranjos pré-moldados que as desfiguram e as afastam infinita- mente do significado originário. sem que este se deixe arrastar pelas exigências daquele. Talvez por pressentir essa força é que o adversário maldoso busca sempre desviar-se do centro das questões para algum detalhe . que as formas da linguagem externa se amoldem a ela como meras vestimentas. Essa é também sua única força: ela sobe com um impulso avassalador que rompe os muros da indiferença. sem deformá-la ou incomodá-la. Esse é todo o trabalho do autêntico escritor: dizer exatamente o que percebeu desde o centro do coração. rasga as máscaras do fingimento e demole a fortaleza de palha da tagarelice. até à exaustão. maliciosos. ou. a repetir mil vezes nosso discurso sob mil formas diferentes. mais excitado ficará o nosso cérebro e mais longe estaremos do centro do nosso coração. sem consciência nem inteligência. ainda. bem explorado. Uma vez neutralizada a diferença qualitativa que era nossa única . revoltados. dar margem a controvérsias sem fim. quanto mais tivermos de nos gastar no esforço de provar ninharias. às vezes sublinhadas com emocionalismo teatral. mas que não possa ser contestada sem longas e tediosas explicações. Ele sabe que. cínicos. E este é o seu verdadeiro propósito: tornar-nos iguais a ele. fazer de nós uns sonsos tagarelas. ou ~ o que dá na mesma ~ colocar alguma objeção sabidamente tola. irritados.INTRODUÇÃO CRÍTICA 35 miúdo e periférico que possa. obrigar-nos. descendo a exemplos e detalhes cada vez mais elementares. mediante resistências fingidas. mesmo na linguagem pessoalíssima de um sonho. velozmente. Ir e voltar muitas vezes. por perfeita que seja. em geral. e o melhor dos treinos é lutar contra as nossas próprias mentiras. a verdade muda. Por isto. conservada no fundo da alma. o superior de uma ordem religiosa proíbe os noviços de entrar em disputa com o argumentador mundano. do que sua ex- pressão clara e distinta em termos lógicos. ele pode nos vencer pelo mais simples dos expedientes: reúne meia dúzia de comparsas e nos esmaga pela força do número. pelo menos até estar seguro de que não se perderão no caminho entre o coração e o mundo. Ir ao centro já é difícil. às vezes. a qual. é uma habilidade que não se conquista sem décadas de treino. de uma imagem.36 OLAVO DE CARVALHO superioridade. há se ser alvo de mal- entendidos tão logo caia no . Mais vale. INTRODUÇÃO CRÍTICA 37 mundo. Para quem não esteja seguro de possuir essa via de retorno. não deve porém ser compreendido como apologia do irracional. que qualquer outra forma de conhecimento. àquela fonte viva onde a alma e a verdade se interpenetram. os combates de argumentos são uma dispersão fatal no mundanismo. de modo a poder retornar. Não creio de maneira alguma que a arte esteja mais próxima. sempre que queira. daquelas . nem muito menos como proclamação da superioridade da “arte” em relação ao saber científico e à reflexão filosófica. tal como aqui o defendo. e tornar-se objeto de controvérsias tediosas que reduzirão a cinzas o fogo da sua intuição originária. O primado da interioridade. Somente um longo aprendizado da concentração habilita o homem a sair imune dessas controvérsias. àquele centro de si mesmo. em princípio. e tão perigosos. não se faz com impressões diretas. tão exteriores e alienantes. mesmo incomunicável.38 OLAVO DE CARVALHO “impressões autênticas” que Saul Bellow tão eloqüentemente contrasta com a seca esterilidade dos debates intelectuais. chegando a essa profundeza. ciência ou teologia ~ todas as formas da expressão do saber. A arte. mas com sua manipulação sapiente por meio de códigos e convenções formais. Com razão assinala Louis Lavelle o pudor que acomete o filósofo quando se aproxima da intimidade espiritual em que a consciência revela sua unidade com o ser. quanto os esquemas retóricos e as normas do debate acadêmico. Quantos sábios. Arte ou filosofia. afinal. por medo de degradá-la com uma expressão deficiente! . porque é feita de ser e de nada mais. somadas. não preferiram conservá-la em silêncio. não valem a visão interior da verdade. .. a apagar de seu coração tudo aquilo que não seja confirmado pelo falatório dos vizinhos. pela pressão exterior. tendo encontrado a fórmula da expressão mais digna. Ao entregar ao público este trabalho. fazendo da opinião pública ~ rainha da tagarelice ~ o juiz da interioridade humana. só para vê-la em seguida ignorada e desprezada por aquele reflexo infalível de autodefesa com que a estupidez do mundo sabe fechar-se em si mesma! Ter invertido a hierarquia natural e justa. não a proclamaram do alto dos telhados.INTRODUÇÃO CRÍTICA 39 Quantos outros. até chegar à suma degradação de se ignorar por completo e de ter de ir à butique esotérica ou psicoterapêutica da moda na esperança de comprar o último modelo de autoconhecimento prêt-à-porter. faço-o no intuito de lhe . onde cada homem é obrigado. é talvez o pecado original da cultura contemporânea. 40 OLAVO DE CARVALHO oferecer instrumentos de defesa. . abril de 1997. Meu desejo é ajudá-lo a resguardar-se dos tagarelas. não de ataque. e não a transformar-se num deles. Rio de Janeiro. O que o leitor tem nas mãos é um tratado de patifaria intelectual. o povo. a edição deste livro é um empreendimento de . nada tendo a objetar seriamente às razões do adversário. mas não para uso dos patifes e sim de suas possíveis vítimas. procura apenas desmoralizá-lo ou confundir a platéia para fazer com que o verdadeiro pareça falso e o falso verdadeiro. nós. No Brasil de hoje.INTRODUÇÃO CRÍTICA 41 § 1. Ensina a reconhecer e a desmontar as artimanhas do debatedor capci- oso ~ o sujeitinho que. Obra de um espírito arguto e particular- mente sensível aos ardis da malícia humana. mas vencer. é um receituário de precauções contra a argumen- tação desonesta ~ aquele tipo de polêmica interesseira onde o que importa não é provar. isto é. que hoje imperam não somente na política ~ onde sua presença é mal sem remédio ~. nosso público se tornou vítima inerme de sofistas e charlatães. os eleitores contra seus candidatos. de onde deveriam ser banidos a pontapés.42 OLAVO DE CARVALHO saúde pública. O leitor não sairá deste livro como entrou: após estudá-lo. os leitores contra os jornais. muito do que hoje aceita como defesa legítima de opiniões honradas lhe soará como insuportável e repugnante intrujice. como também nos altos postos da vida intelectual. isto será somente motivo de regozijo para todos aqueles que acreditam . E se a edição desta obra semear por toda parte a suspeita e a discórdia. os espectadores contra as emissoras de TV. elevando os alunos con- tra seus mestres. Privado de debates sérios há quase meio século. portanto de Co- . sua solução não podia consistir em trabalho de editor e filólogo ~ graças a Deus. na medida do possível. Mas as dificuldades a resolver. no caso.INTRODUÇÃO CRÍTICA 43 que entre a verdade e a mentira não pode haver acordo. preencher suas lacunas e desenvolver suas abreviaturas mediante explicações e exemplos que o tornassem mais acessível ao leitor comum e mais útil ao estudante. Como é trabalho muito conciso. e sim em esforço de compreensão propriamente filosófica. residindo principalmente na comparação sistemática da diada dialética de Schopenhauer com o pensamento do antecessor grego a quem a todo instante se reporta. que não vai bem sem crítica e tomada de posição. procurei. cheio de alusões telegráficas ao pensamento de Aristóteles. porque não sou filólogo ~. Trata-se. e como ademais o autor o deixou incom- pleto e em rascunho. a dialética erística que Schopenhauer apresenta como um desen- volvimento da dialética de Aristóteles? No intuito de dar a este volume também o sentido de uma breve introdução geral a um ramo de conhecimentos particularmente negligenciado neste país. . reside simplesmente na resposta à pergunta: no esquema dos quatro discursos. a teoria da 4 Rio. onde julguei cabível. que exponho em Aristóteles em Nova Perspectiva4. comparei ainda. Topbooks. é portanto o pano de fundo para o estudo aqui empreendido. tomei como esquema comparativo minha própria visão da teoria aristotélica do discurso. que ali defendo como expressão daquilo que julgo terem sido as intenções do Estagirita. onde é que entra (se é que entra). cuja chave.44 OLAVO DE CARVALHO mentários críticos. Para realizá-los. como se verá no devido tempo. 1996. A “teoria dos quatro discursos”. mas porque o próprio Schopenhauer insiste em que os exemplos inventados não são bons nesta ordem de estudos. Introdução e Comentários nasceram de simples notas de leitura à margem da tradução espanhola de Dionísio Garzón. bem como a certas técnicas de manipulação da opinião. de uso corrente hoje em dia. com a ajuda de minha querida . depois os conferi com o original. Onde faltassem no texto exemplos para ilustrar as regras de Schopenhauer. da dialética e da erística antigas e lhes acrescentaram o toque su- mamente perverso do requinte tecnológico. sendo preferíveis os reais e atuais.INTRODUÇÃO CRÍTICA 45 argumentação de Schopenhauer às de outros autores. que se originaram da retórica. não hesitei em preencher as lacunas com casos tirados de minha experiência pessoal ~ não para me por em evidência às custas de um texto alheio. num paroxismo de modéstia descabida. sim: esperaria ele que eu ludibriasse os leitores.5 Os Comentários vêm junto com assob a forma de notas de rodapé e são sintetizados no fim do volume. fazendo- me passar por autor de uma tradução direta? Ou que. ludibriasse a mim mesmo. Caldas. apresentando como tradução de segunda mão o que de fato era uma tradução direta cotejada com a versão espanhola? Não conhecendo a língua alemã o suficiente para assinar eu mesmo a tradução.46 OLAVO DE CARVALHO amiga Daniela Spínola P. indo mesmo além do que se costuma exigir em trabalhos . nem ignorando-a o bastante para ter de me contentar às cegas com um trabalho de segunda mão (como por seu lado a tradutora Daniela Caldas também não conhecia a filosofia de Schopenhauer o bastante para dispensar meu auxílio nem a ignorava ao ponto de não perceber as dificuldades filosóficas do empreendimento). 5 O crítico Luís Antonio Giron. tratei de assegurar ao texto aqui apresentado o máximo de confiabilidade possível em tais condições. da Gazeta Mercantil de São Paulo. Cara de pau. teve a cara de pau de considerar “ingênua” esta franca admissão de que trabalhei primeiro sobre uma tradução espanhola e só depois sobre o original alemão. professora de língua alemã. ao contrário. O episódio é comentado mais extensamente no artigo “A autoridade do Sr. a meu ver. 1998. reproduzido no meu livro A Longa Marcha da Vaca para o Brejo. . ora aponto para leitu- dessa ordem. como partituras. nota por nota. que é o comentário linear antecedido de uma síntese histórico-crítica e seguido de conclusões doutrinais. nos quais ora explico o pensamento do autor. Não há outro método.INTRODUÇÃO CRÍTICA 47 Aplicação e extensão da investigação sobre os quatro discursos. os Comentários são livres. bem ao estilo dos que costumo fazer oralmente em classe. o presente trabalho segue o procedimento habitual adotado em meus cursos para o estudo dos clássicos. A espantosa declaração do crítico põe à mostra o nível de corrupção intelectual a que chegamos. O Imbecil Coletivo II. onde o cotejo com outras traduções é geralmente dispensado. Rio. Giron”. Acompanhando embora o texto linha por linha. Livros de filosofia não se lêem: ensaiam-se e executam-se. Topbooks. ora mostro suas fontes. nenhuma personalização padronizada. era forçoso que estes Comentários. assumissem um tom pessoal e informal. ora exemplifico determinados pontos com fatos da vida atual. segundo entendo.48 OLAVO DE CARVALHO ras associadas e complementares. por definição. etc. E. Arthur Schopenhauer (1788- 1860) é um dos raros casos de precocidade filosófica que a His- tória registra.. Die Welt als Wille und Vorstellung (“O Mundo como Vontade e . Aos 31 anos de idade publica a exposição completa de seu sistema. etc. sem prejuízo. não sendo possível. sempre no sentido de estimular o aluno a personalizar ao máximo sua compreensão do texto estudado. dos rigores do método e da confiabilidade das informações. tal como acontece com o trabalho em classe. § 2. Da primeira. tão característica dos filósofos de maturação lenta. destruir a de Hegel. em versão simplificada. Ele visa a dois objetivos principais: completar a filosofia de Kant. e dela tirará conclusões que funda- mentam uma tomada de posição . de reconstruir pedra por pedra o edifício dos co- nhecimentos humanos. um Otto Weininger). Como costuma acontecer em casos semelhantes (um Bergson. e construído para responder a um número limitado de questões colocadas pelos debates do tempo.INTRODUÇÃO CRÍTICA 49 Representação”) e daí até o fim de sua longa vida tudo quanto escreve são acréscimos que em nada alteram as linhas mestras de seu pensamento filosófico. sem a ambição. e es- quemático. Esse pensamento é essencialmente reativo e não inaugural. o pensamento de Schopenhauer é simples. aproveitará a crítica do conhecimento e o sistema das categorias. todo esforço da inteligência hu- mana. acreditava que a filosofia não surge de uma apreensão cognoscitiva da realidade. que provavelmente o próprio Kant não endossaria no todo mas que seria muito difícil refutar desde os pressupostos do kantismo. mas do simples impulso de auto-expressão de um temperamento inato. por assim dizer. Hegel. com sua filosofia pronta. representava o princípio de autoconfiança cognos- citiva e de otimismo histórico que para Schopenhauer era a encarnação mesma do erro. e todo o seu esforço de argumentação não passa de uma tentativa de adornar . consiste a vida cósmica e. que no início de sua carreira foi bastante influenciado por Schopenhauer. Cada homem nasce. segundo ele. Nietzsche. nela.50 OLAVO DE CARVALHO trágica e irracionalista. por seu lado. da recusa de enxergar o fracasso essencial em que. INTRODUÇÃO CRÍTICA 51 com um verniz de racionalidade suas preferências pessoais. perde em riqueza de perspectivas o que ganha em claridade e elegância da exposição. ela parece menos válida para o caso do próprio Nietzsche ~ que luta com suas idéias de juventude e evolui no tempo em direção a uma meta. Muito do valor esti- lístico que se louva em suas obras provém de expressarem idéias que no seu autor pareciam brotar natu- ralmente. Ele reflete menos uma busca de conhecimento do que o esforço de autojustificação de um . O sistema de Schopenhauer. aliás jamais alcançada ~ do que para o de Arthur Schopenhauer. sem aquela demorada luta da mente consigo mesma que se observa num Aristóteles. O que quer que se pense dessa tese. num Leibniz. mal lhes deixando tempo para mais finas elaborações literárias. e que os levava de in- tuição em intuição. estabilizado prematuramente. A Dialética Erística é um dos muitos complementos que Schopenhauer redigiu para sua obra principal. por algum tempo. e sim na norma de perfeição por que se molda. Neste sentido. e não espanta que tenha encontrado mais admi- radores entre os artistas da palavra (Machado de Assis.52 OLAVO DE CARVALHO certo sentimento do mundo. no qual o filósofo parece ter vivido imerso desde a infância. em inseri-la no segundo volume de O Mundo como Vontade e Representação. é mais obra de arte do que filosofia. o molde ~ kantiano ~ é bastante apertado. em Schopenhauer. pois o valor de um argumento não reside na fonte psicológica que o inspira. Ele pensou mesmo. e. Mas não chegou a realizar essa . Mas isto não diminui em nada a importância objetiva que deve ter para os filósofos. Thomas Mann) do que entre os filósofos de estrita observância. 1851).INTRODUÇÃO CRÍTICA 53 intenção porque. irmanadas à teimosia. não sei em detalhe. agora me provoca náuseas”6. tendo notado no texto alguns pontos problemáticos. . Quais fossem esses pontos. faço algumas conjeturas a respeito. Schopenhauer declara que “o exame desses escorregadios artifícios da estrei- teza e da incapacidade. deixou de lado o breve tratado da intrujice intelectual e acabou não por não voltar ao assunto nunca mais. II:2. igual re- pugnância: 6 Parerga. ante a matéria em estudo. porque na ocasião da redação o filósofo já mostrava. Em bloco. e estando na ocasião ocupado na redação de outros trabalhos reunidos em Parerga und Pa- ralipomena (“Observações laterais e acréscimos”. nos Comentários. Mas estas palavras não indicam de fato nenhuma mudança profunda de atitude. ao orgulho e à falta de probidade. sentiu o natural desgosto ante a inutilidade do esforço deixado a meio. ao contemplar o trabalho após algum tempo. o que suponho é que Schopenhauer. mas não tendo tido tempo de pô-la em condições de uso em vida do adversário.54 OLAVO DE CARVALHO “Donde provém isso? Da perversidade natural do gênero humano. tendo concebido a Erística como uma arma de guerra contra Hegel. tão cedo constatada. por um fator de ordem filo filosófica: Schopenhauer via na dialética um método sem grande valor cognoscitivo e bom somente para . não viu utilidade em retomá-la depois da morte dele em 1831. e. ademais.” Não sendo verossímil que a perversidade natural do gênero humano.. lhe parecesse menos repugnante quando escrevia sobre ela do que anos depois de abandonar o assunto. Inutilidade enfatizada.. nome pomposo que significa simplesmente professor sem remu- neração estatal. sustentado pelas mensalidades de alunos. morto seu principal oponente. No . Schopenhauer obteve na universidade o cargo de Privat- dozent.INTRODUÇÃO CRÍTICA 55 polemizar. Ao instalar-se em Berlim. em cuja filosofia via apenas charlatanice e palavrório vazio. docente privado. mas uma ostensiva disputa de prestígio profissional. em 1821. que podiam ser muitos ou poucos. decidido a arrasar a fama de Hegel. o esforço dialético se tornava completamente extemporâneo: mais valia consoli- dar o próprio sistema ~ que é de fato o de que se ocupou o filósofo pelo resto da vida ~ do que confrontá-lo com o de quem já não podia se defender. Essa interpretação me parece tanto mais razoável porque a querela entre Schopenhauer e Hegel não foi apenas um debate filosófico. Mas o figurão desafiado mostrou sempre o maior desprezo pelo adversário obscuro e não lhe concedeu nem mesmo a honra de uma resposta. Schopenhauer provavelmente de- cidiu usar contra Hegel morto a mesma arma que em vida o adversário usara contra ele. foram poucos. organizada por Arthur Hübscher. A edição crítica só veio mais de cem anos depois. no terceiro . Qualquer que tenha sido o caso. o breve tratado a que o autor não dera sequer um título definitivo ficou na gaveta e só foi publicado quatro anos após a morte do filósofo.56 OLAVO DE CARVALHO caso. “Do legado manuscrito de Schopenhauer” (Leipzig. Não que financeiramente isto fizesse diferença: Schopenhauer era homem de recursos. por iniciativa de seu amigo e discípulo Julius Frauenstädt. com um título simples ~ Eristik ~ no volume Aus Schopenhauers handschriften Nachlass. 1864). Madrid. 1996. O próprio Scho- 7 Estas informações são de Dionísio Garzón. ao mesmo tempo. Edaf. Expuesto en 38 Estratagemas. § 3. publicado em Frankfurt a. pela editora Waldemar Kramer em 1977. Uma edição popular foi publicada em Zurique pela editora Haffmans em 19837.INTRODUÇÃO CRÍTICA 57 volume de Arthur Schopenhauer. é preciso colocá-la sobre o pano de fundo da ciência aristotélica da qual ela pretende ser. El Arte de Tener Razón. Há pelo me- nos uma tradução espanhola e uma francesa. Der handschriftliche Nachlass (“Legado manuscrito”). um complemento e uma alternativa. M. . Para bem compreender o alcance e os limites da técnica de discussão que Schopenhauer esboça neste livro. preparador da edição espanhola. Para Aristóteles. procura esclarecê-la por aproxi- mação e contraste com a dialética de Aristóteles. mas. não corresponde. nem à dialética.58 OLAVO DE CARVALHO penhauer. ao delimitar sua técnica. interpretando esta última não no espírito de Aristóteles e sim apenas no de seus próprios objetivos. a dialética e a analítica (hoje denominada lógica). a retórica. . no esquema aristotélico. embora sendo. uma arte dialética. só havia quatro e não mais de quatro ciências do discurso: a poética. Desde logo. por meios limpos ou sujos ~. nem a qualquer das outras ciências do discurso. a erística schopenhaueriana ~ a arte de ganhar uma discussão a ferro e fogo. deixa as coisas um tanto obscuras para o leitor. e não se identifica exatamente nem sequer àquilo que Aristóteles designava com o mesmo termo erística. na definição do autor. não são nem ciências teoréticas. nem práticas. no esquema fixado por Andrônico de Rodes. O que lhes dava estatuto de ciências era que enunciavam leis gerais aplicáveis a todos os casos semelhantes. mas “introdutórias”. e excluía propositadamente do campo das ciências respectivas os fatores acidentais que interferissem na situação de discurso. no entanto. funcionando como ciências práticas na condução da atividade pedagógica e investigativa. mas com fundamento teórico. Dessas ciências. . Ao definir a primeira como arte da persuasão 8 A rigor. independentemente das circunstâncias concretas em que se realizasse um discurso em particular. nem produtivas. as duas que lidam com a arte da discussão são a retórica e a dialética. Aristóteles interessava- se particularmente pelos aspectos estruturais que diferenciam os quatro tipos de discursos.INTRODUÇÃO CRÍTICA 59 Todas eram ciências práticas8. Acabavam. Aristóteles esclarece que há três fatores determinantes da persuasão ~ a pessoa do orador. . por decisivos que sejam em certas circunstâncias. Estes fatores de persuasão. não são retóricos. por si. etc. A retórica excluía de seu campo de estudo os dois primeiros e se concentrava nos argumentos. Quanto à pessoa. ser mais persuasiva ou menos persuasiva: é mais fácil argumentar contra um assassino do que contra um pequeno ladrão. um orador belo persuade melhor que um feio. Nem o é a natureza dos fatos discutidos. que pode.60 OLAVO DE CARVALHO (π ι θ α ν ο σ . etc. um homem respeitado persuade mais que um desconhecido. independente da qualidade da argumentação. pithanos). Fica ex- cluído do campo da retórica todo elemento que tenha um valor persuasivo próprio. os fatos de que ele fala e o teor dos argumentos. mais fácil acusar o estrangeiro do que o compatriota. Sobre a importância dessa distinção. 1980. mas pode ser decisivo para o retor. . é irrelevante para o retórico. por exemplo. Indiana University Press. Bloomington. o cientista que aborda essa técnica num intuito de pesquisa. Rhetorics as a Contemporary Theory. para citar um). portanto. muito mais o será a sua desonestidade. Novantiqua.INTRODUÇÃO CRÍTICA 61 Documentos e provas maprovas materiais. v. voluntários ou arrancados a muque. também têm seu peso próprio e estão rigorosa- mente excluídos do campo da retórica9. Mas se. aqui. bem como confissões e testemunhos. O valor in intrínseco das provas materiais. a erística de Schopenhauer não é. mas são diferentes atitudes da mente. a honestidade do orador é deixada fora da discussão. Paolo Valesio. Ambos podem coexistir num mesmo indivíduo (Cícero. no nível de abstração em que Aristóteles se coloca. entre o ponto de vista do retor ~ o praticante. o homem que faz uso da técnica retórica ~ e o do retórico. Na medida em que estuda essencialmente a argumentação desonesta. 9 É preciso distinguir. é um exercício do qual só podem . para encontrar. que serve também. mas uma técnica de confrontar os argumentos contraditórios oferecidos em resposta a uma questão. Nesta última função. Quanto à dialética. Quando praticada a dois ~ pois na investigação solitária o homem também em- prega um raciocínio dialético ~.62 OLAVO DE CARVALHO aquilo que Aristóteles entendia como retórica. secundariamente. para o treinamento escolar e para os debates públicos. a dialética tem limites estritos. É uma arte da ininvestigação. Não se deve dialetizar ~ advertia Aristóteles ~ com quem não conheça o assunto e as regras da argumentação válida: contra negantem principia non est dispu- disputandum. os princípios de base que permitam dar à questão uma resposta mais racional. por baixo deles. nem propriamente de discutir. não é uma arte de persuadir. as opiniões que se revelem inconsistentes. À sofística Aristóteles consagra todo um tratado ~ as Refutações . Da lógica ou analítica nem é preciso falar: arte da demonstração científica segundo o encadeamento necessário das razões fundadas em premissas verdadeiras. a existência de duas técnicas secundárias. que funcionavam mais ou menos como falsificações ou caricaturas da retórica e da dialética: a erística e a sofística. Aristóteles admitia. Na dialética de Aristóteles. o próprio Schopenhauer a colocará nos antípodas da sua erística. dispostas a encontrar a verdade e portanto a abandonar. no curso da disputa. não há nem mesmo persuasão. Ela nos leva mais longe ainda da erística de Schopenhauer.INTRODUÇÃO CRÍTICA 63 participar as pessoas informadas e honestas. no entanto. Além das quatro ciências do discurso. não há tru- que. sem levar em conta os aspectos psicológicos do confronto entre debadeba- 10 tedores . Mas aqui também estamos fora da erística schopenhaueriana. nas Refutações e mesmo nos Tópicos. . Finalmente. Aparente- 10 Aristóteles. que acidentalmente podem ter utilidade na erística. às vezes. consagra algumas linhas aos ardis psicológicos. ou belicosa. inconvenientes às definições das técnicas respectivamais ou menos acidentais. Na leitura de Aristóteles é sempre necessário lembrar que seus escritos são em geral rascunhos de aulas ou anotações para uso pessoal. mas parece tratar-se de intrusões acidentais. das falácias lógicas. e sobretudo sem abranger os argumentos corretos. porque se trata somente de fazer o repertório dos esquemas da argumentação falsa. sem o acabamento de obras destinadas à publicação.64 OLAVO DE CARVALHO Sofísticas. a erística propriamente dita. Aristóteles define-a como a arte da discussão contenciosa. onde se trata apenas de vencer e não de buscar uma prova. INTRODUÇÃO CRÍTICA 65 mente. mesmo que Aristóteles a tivesse desenvolvido. Para Aristóteles. em contrapartida. o mais provável seria que se ativesse à questão dos esquemas argumentativos. 3º. o que subentendia que ela deveria ter algumas regras próprias. e que ao mesmo tempo nem todas as regras dialéticas poderiam servir à argumentação erística (para Schopenhauer. Aristóteles não consagrou à erística mais que breves alusões de passagem. erística e dialética são uma só e mesma coisa). Mas. como o fez nos Tópicos e nas Refutações Sofísticas. diferentes das dialéticas. ele a definia como um tipo específico ~ e menor ~ de dialética. 1º. a manipulação hábil das circunstâncias psicológicas dificilmente poderia ser objeto de uma ciência. 2º. Isto seria as- sim por um motivo muito simples. sendo . estamos no terreno da técnica buscada por Schopenhauer. da dialética. A erística. temos de nos aproxi- mar dele devagar. no sentido em que viria a entendê-la Schopenhauer. da sofística e da erística aristotélicas. Qual é. esse sentido? Pisando em terreno escorregadio. 2º Da retórica. seria para Aristóteles mero repertório de experiências pessoais mais ou menos fortuitas. como na retórica forense. 1º A erística schopenhaueriana participa da natureza da retórica. talvez fosse mesmo difícil reduzi-las a um simples formulário técnico. mas distingue-se por admitir vencer por artifícios psicológicos que nada têm à ver . ela se aproxima em parte por ser uma arte do debate ~ de um debate no qual. sem corresponder inteiramente a nenhuma delas.66 OLAVO DE CARVALHO as circunstâncias particulares indefinidamente variáveis. haverá sempre um vencedor e um perdedor. precisamente. mas simplesmente obter a vitória per fas et per nefas. 4º Ela se aparenta à sofística por ser uma arte de enganar. nem muito menos um treinamento do intelecto para as ocupações científicas. objeto precípuo da retórica. nem se limita aos esquemas formais da argumentação. um empreendimento meramente contencioso onde o que menos interessa é descobrir a verdade. mas se diferencia dela porque não exclui os argumentos válidos (sempre que possam ser úteis à causa). mas. uma logica inveni- endi. lógica da pesquisa. 3º Com a dialética ela tem em comum o confronto de argumentos contraditórios.INTRODUÇÃO CRÍTICA 67 com a verossimilhança dos argu- mentos. bem ao contrário. Ela não é portanto um instrumento de investigação. . mas separa-se dela porque não busca arbitrar esses argumentos por um critério de razoabilidade suficiente ~ objetivo da dialética ~. é uma arte da discussão contenciosa. abrange também os aspectos psicológicos do duelo argumentativo. ao mesmo tempo que deixa de lado as regras de ordem ética que faziam da dialética aristotélica um instrumento confiável de investi- gação. para o Estagirita. utilizando os instrumentos da dia- lética. . da erística e da retórica aristotélicas. mas se afasta dela por não abranger todos os temas dialéticos de Aristóteles e por incluir alguns que. da sofística. 5º Finalmente. ela se aproxima da erística aristotélica (da qual pouco sabemos. se é que Aristóteles chegou um dia a desenvolvê-la). em suma. A erística. mas só impropriamente. não seriam dialéticos propriamente.68 OLAVO DE CARVALHO entrando a fundo no campo puramente material dos fatores psicológicos envolvidos na situação de discurso. que. Tudo isso é bastante surpreendente. ele vê na dialética aristotélica um antepassado de sua erística e lamenta que Aristóteles não a tenha desenvol- vido até o ponto em que ele próprio chegou. a rigor.INTRODUÇÃO CRÍTICA 69 Mas. Schopenhauer denomina a sua arte explicita- mente uma dialética. e mais ainda para aquele que as conheça só de longe pelas acepções da fala corrente ~. a primeira formulação do . curiosamente ~ e confundindo um bocado as coisas para o leitor habituado a designar essas artes pelas suas denominações aristotélicas. e estabelece uma distinção geral e taxativa entre dialética (argumentação desonesta) e lógica (ciência da prova honesta). pois a dialética de Aristóteles vai no sentido da mais honesta das investigações ~ ela é. Para piorar ainda mais a situação. É uma regra dialé- 11 Não por coincidência. se é este o caso. por mais que se desenvolvesse. diante de um problema: terá Schopenhauer construído sua dialética erística com base numa interpretação falseada da dialética de Aristóteles? E. . portanto. qual o valor que a erística schopenhaueriana conserva independentemente da base remota que alega ter em Aristóteles? § 4. Para compreender um filósofo ~ dizia Benedetto Croce ~ é preciso saber contra quem ele se levantou polemicamente. Aristóteles designava o livro dos Tópicos também pelo título de Metódica. Estamos. só poderia afastar-se cada vez mais do terreno erístico e aproximar-se da lógica que é a sua continuação natural no curso da investigação.70 OLAVO DE CARVALHO método científico11 ~ e. se tem algo de dialético no seu método (a investigação cientí- fica não consiste. o que em filosofia não é necessário. no qual o ex- perimento e os dados sensíveis en- tram como critérios de avaliação). a filosofia é dialética por essência. sem afirmar isso explicitamente. Se isto é assim. mas “A não é C e sim B”. Em suma. Ortega y Gasset dava-lhe expressão formal dizendo que a forma geral própria da proposição filosófica não é “A é B”. da religião. de fato. ao passo que a ciência. cada tese filosófica só é compreensível como antítese de uma tese que a precede ~ tese que pode vir de uma outra filosofia. de uma ideologia política ou de uma opinião corrente. procede no entanto de acordo com essa orien- . Aristóteles. senão num confronto de hipóteses alternativas.INTRODUÇÃO CRÍTICA 71 tica. e não por acidente. é no entanto idealmente lógica na exposição final do sistema dos conhecimentos adquiridos. Mas o primeiro a afirmar categoricamente a natureza dialética do pensamento filosófico foi Johann G. partindo das várias opiniões de seus antecessores. . a dialética é mais que um método: tem um alcance metafísico explícito que na de Aristóteles era só longinquamente vislumbrado. como cimento da cons- trução. como no racionalismo clássico de Spinoza e Malebranche. Em todos eles. Em todos. com a diferença de que empregam. von Fichte (1762- 1814). Hegel (1770-1831). a filosofia assume a forma de um edifício sistemático. a dialética e não a lógica formal.72 OLAVO DE CARVALHO tação. logo seguido de Friedrich W. von Schelling (1775-1854) e de Georg W. F. confrontando-as para extrair do fundo delas o princípio comum que subentendem e com base no qual serão enfim julgadas. ao expor suas doutrinas sempre dialeticamente. INTRODUÇÃO CRÍTICA 73 Fichte notou. Fichte põe tudo a perder. Daí concluía Fichte que a pura exposição lógica da doutrina falsearia es- sencialmente o empreendimento filosófico. de início. esforço de superar a divisão do eu e do mundo. após ter colocado as coisas de maneira tão elegante. que é atividade do eu em demanda da autoconsciência e. dialeticamente. portanto. divisão na qual o mundo aparece como antítese que. algo que já tinha sido percebido por Platão: a investigação filosófica não pode ser colocada como problema teorético apenas. para cair na . Ele abdica do projeto dialético no meio do caminho. porque tem intrinsecamente um aspecto ético ~ é a busca e a formação da autoconsciência. resolvendo artificialmente a antítese mediante a simples supressão do mundo e a redução de toda realidade ao eu. Mas. é a condição de possibilidade da reali- zação do eu. do ponto de vista do entendimento humano. com mais garra. do sujeito e do objeto. por um lado. identidade plena do predicante e do predicado. Schelling levou em frente. Para Schelling. e da subjetividade. não pode ser pensada.rante. o projeto inicial de Fichte. Mas essa unidade. o fundamento absoluto da identidade e particularidade dos entes. se desdobra. A dialética schellinguiana consiste portanto na superação das contradições do entendimento . por isto mesmo. é. sob a forma da natureza. Deus.74 OLAVO DE CARVALHO unilateralidade de um idealismo quase delirante. sem perder sua unidade intrínseca. para Schelling. a realidade consiste fundamentalmente da manifestação do Absoluto ~ Deus ~ que. é uni- totalidade infinita. apreensível somente pela intuição intelectual. de vez que o entendimento humano só capta seu objeto por distinções e relações. por outro. nenhuma realidade: n’Ele vivemos. a dialética se torna assim a base de uma ascese filosófica. o . aguardava ser reconhecida. em Schelling o mundo e o eu se realizam no reco- nhecimento da sua unidade em Deus.INTRODUÇÃO CRÍTICA 75 e na escalada até a visão intelectual da unidade. apreende a realidade externa ~ a natureza ~ como nada mais que consciência latente. À medida que reconhece a unidade. saltando sobre o dualismo aparente que a sepa- rava do mundo. conclui Schelling com o Apóstolo. congelada. ao mesmo tempo que. fora do qual não tinham. que. a autocons- ciência humana se realiza. nos movemos e somos. à razão. Se em Fichte a auto-realização da consciência se fazia às custas da negação do mundo. faculdade humana de apreender a unidade no diverso. no fundo. por sua vez. Mais que doutrina ontológica. que dará fundamento. Œuvres Méta- physiques. Courtine et Emmanuel Martineau. Philosophie de la Révélation. 1978 (a tradução francesa de Charles Dubois. Isso não era totalmente novo na História. 261 d. 1945.. mas não a conheço).. Quanto à dialética schellinguiana em especial. El Idealismo Moderno. Paris. Buenos Aires. “argumentava com tal habilidade que as mesmas 12 O principal do sistema filosófico de Schelling está em System of Transcendental Idealism.. uma excelente condensação está em Josiah Royce. Paris-Louvain.76 OLAVO DE CARVALHO mapeamento de uma ascensão mística em direção a Deus12. 3 vols. segundo Platão13. Vicente P. Paris. Va. A mutação que a elevara a tais alturas fora essencialmente obra de Sócrates. Imán. Charlottesville. trad. Aristóteles atribui a invenção da dialética a Zenão de Eléia.F.. Platão já vira na dialética um exercício interior capaz de conduzir o homem ao conhecimento dos supremos mistérios. é muito louvada. Quintero. trad. Peter Heath. tr. P. 1980. Jean-Fr. 1978. trad. Marquet et. . 13 Fedro. 1994. Jean-Fr. al.U. Gallimard. que. A arte do confronto de argumentos foi desenvolvida depois pelos sofistas. A virada decisiva em que a dialética se torna independente de toda retó- rica é operada por Sócrates. mas está ainda dentro dos quadros da retórica. instrumento para a conquista do poder político e não para a desco- berta da verdade. especialmente por Protágoras e Górgias. paradas e em movimento”.INTRODUÇÃO CRÍTICA 77 coisas pareciam a seus ouvintes iguais e distintas. O meio que ele emprega para isso é de uma simplicidade espantosa e . hipnotizados talvez pela descoberta de sua capacidade de argumentar pró e contra as mesmas teses. Até aí a dialética é sobretudo uma arte de argumentar: é francamente erística. acabavam descrendo da objetivi- dade da inteligência e professando um relativismo céptico. os quais. unas ou múltiplas. no sentido de Schopenhauer. Sócrates inspirou-se na geometria . Sem a definição. a argumentação abandona a tagarelice da praça pública para se tornar um meio de interiorização e aprofundamento. não há meio de encontrar a definição exceto pelo exame que. sem chegar a uma resposta significativa. em cada proposição oferecida em resposta a uma per- gunta. Sócrates é o primeiro a descobrir que a pergunta filosófica decisiva é Quid? (“Que?”). um método superior de busca da verdade.78 OLAVO DE CARVALHO absolutamente genial: ele internaliza a dialética. De um só golpe. dialetiza consigo mesmo. Particularmente importante era seu emprego na busca das de- finições. Para realizar essa virada. até delimitar aquelas condições sem as quais o objeto em discussão não poderia ser o que é. toda argumentação se perde em deta- lhes laterais e acidentais. Ora. vá separando o essencial do acidental. sem a essência. Paris. que permite remontar das espécies aos gêneros e voltar às espécies. Octave Hamelin. Le Système d’Aristote. deveria ser possível também em setores mais nobres do conhecimento 14 filosófico . 1985. tão decisivo para a história intelectual do mundo. a V. 14 4e. Mais ainda: permitindo ao investigador escapar do círculo das aparências imediatas e alcançar em toda discussão o horizonte da universalidade necessária.INTRODUÇÃO CRÍTICA 79 ~ a única ciência então existente que dominava a definição rigorosa de seus próprios objetos: se um método rigoroso de definição era possível em geometria. éd. pp. . Com isto. introduzindo a técnica da divisão dos conceitos. a totalidade do mundo do conhecimento pode ser montada como uma hierarquia de conceitos: o platonismo inaugura aí a noção de sistema das ciências. 74 ss.. Platão aperfeiçoa o método de Sócrates. Vrin. São Paulo. Victor. ela é em seguida adotada na Academia como uma ética das discussões: a conversação entre dois filósofos devia ser tão sincera e rigorosa como a de um homem que dialoga a sós com a própria consciência. Alguns textos de Hugo de S. 1961. FTD.: Princípios Fundamentais da Pedagogia. 1986). Jerome Taylor. New York and Didascalicon (alguns dos textos principais desta obra magistralLondon. ed. Hugo de S.80 OLAVO DE CARVALHO dialética era um poderoso ins- trumento de educação e ascese intelectual.. Vítor. Vítor sobre Educação foram primorosamente traduzidos para o português por Antônio Donato Paulo Rosa e publicados no volume Hugo de S. Didascalicon. Columbia University Press. Hugh of St. por exemplo. V. Vítor. Modelada por Sócrates como técnica de meditação15. Incorporada às Artes Liberais ~ o sistema das disciplinas básicas na educação medieval ~. a dialética conserva seu prestígio de arte da meditação e de preparação da alma para o conhecimento das mais altas verdades. Chaim Perelman destaca em termos eloqüentes a diferença 15 Esta concepção é rigorosamente mantida durante a Idade Média. . como a concebeu Platão.. um alcance eminente. Bruxelles. mas é pressu- posto que se inclinou ante a 16 Ch. pp. éd.. 1963. 4e. Éditions de l’Université de Bruxe- lles.. mas a adesão de um personagem que. . e à dialética. Não seria certo que a adesão do interlo- cutor fosse obtida unicamente graças à superioridade dialética do orador. não pode senão se inclinar ante a evidência da verdade. La Nouvelle Réthorique. por- que sua convicção resulta de uma confrontação cerrada de seu pen- samento com o do orador.INTRODUÇÃO CRÍTICA 81 entre dialética e persuasão em Platão16: “O que confere ao diálogo. Aquele que cede não deve fazê-lo por ter sido vencido num combate erístico. não é a adesão efetiva de um interlocutor determinado ~ pois este não constitui senão um auditório determinado por entre uma multidão de outros auditórios ~. qualquer que seja. 47-49. como gênero literário. Perelman et L. Traité de l’Argumentation. Olbrechts-Tyteca. tal como enfocado aqui. .” Platão celebra a nova arte como “talvez a maior de todas ciências. mas uma discussão. onde convicções estabelecidas e opostas são defendidas por seus partidários respectivos. conexão que em Schelling constitui o miolo mesmo do sistema. Mas no platonismo não existe uma conexão suficientemente firme entre o método e a doutrina ontológica. É que o diálogo. não deve constituir um debate.82 OLAVO DE CARVALHO evidência da verdade. Esta esperança antecipa de mais de dois milênios o entusiasmo de Schelling. No entanto... onde os interlocutores buscam honestamente e sem parti pris a melhor solução de um problema controvertido. Só ela pode libertar-nos da caverna e levar-nos à contemplação do Supremo Bem. o equilíbrio de método dialético e ontologia do 17 Sofista. a ciência dos homens livres”17. 253 c. equivale ao nada ~ conferindo subrepticiamente validade ontológica absoluta a esse juízo que só tem sentido gnoseológico. rompe-se na filosofia de Hegel. isto é no desenrodesenrolar da dialética no tempo. identifica-se com o Nada18. 18 Pressuposto falacioso que se encontra na base mesma de toda a metafísica de Hegel. o método engole a ontologia: o Ser. o que. escrevi em O Jardim das Aflições § 22: “Uma certa desonestidade aparece já nas bases mesmas de sua metafísica. Não se trata mais de uma ontologia dialética. alcançado por Schelling. mas de uma ontologia reduzida a pura dialética. num homem da sua habilidade lógica verda- deiramente virtuosística. e sua única realidade consistirá na sua realização. onde ele proclama que o conceito de ser. Não é preciso dizer quanto os schellinguianos remanescentes.” . não pode ser um erro involuntário. mas só um truque proposital. A respeito deste ponto. isto é. enquanto indeterminado. confundindo a ordem do ser com a ordem do conhecer. na indeterminação inicial do seu conceito. Aqui.INTRODUÇÃO CRÍTICA 83 Absoluto. mas. ficaram furiosos com a novidade. recebia no en- tanto dinheiro de agremiações maçônicas interessadas em promover a idéia de uma Religião de Estado para se substituir à Igreja cristã (católica ou reformada). como supremo árbitro das questões metafísicas. que desnaturava a descoberta de seu mestre e anunciava con- seqüências temíveis. por isto mesmo. 19 Novamente O Jardim das Aflições. de fato. que se declarava fiel protestante e nunca foi membro de qualquer grupo esoté- rico ou sociedade secreta. o autor da Filosofia da História argumenta. o Estado acabava por se erguer não só como realidade suprema. de um só golpe. a história tendo sua consu- mação no nascimento do Estado moderno. Em segundo lugar.: “Hegel.84 OLAVO DE CARVALHO sempre religiosos e místicos. absorvendo. histórica. Com requin- tada habilidade sofística. em favor do . loc. a filosofia e a reli- gião19. Em primeiro lugar. o Absoluto reduzido a dialética implicava a redução de toda a realidade à di- mensãomensão temporal. e pior ainda. cit. pois a opinião que ele aí expressa não é só a de quem lhe paga. como o Estado moderno incorpora e realiza em suas leis a essência perfeita do cristianismo. meio às tontas. tiveram Hegel como sua bête noire cristianismo. interessados na defesa da interioridade humana contra o avanço avassalador do Estado. das mais diversas filia- ções espirituais e ideológicas. ao fazer do Estado moderno a condição necessária e suficiente dessa liberdade (omitindo-se de defendê-la contra o Estado mesmo ~.” . a serviço da causa que mais nitidamente caracteriza a política do Anticristo sobre a Terra: investir o Estado de autoridade espiritual. mas também a sua própria. Isso não faz de Hegel um intelectual de aluguel. daí por diante todos os homens. restaurar o culto de César. banir deste mundo a liberdade inte- rior que é o reino de Cristo. Mas até que ponto o prêmio financeiro não ajudou a cegar o filósofo para inconsistências que de outro modo ele teria percebido? Pois se de um lado não há como duvidar da sinceridade com que ele defende a liberdade da consciência individual. ele acaba se co- locando.INTRODUÇÃO CRÍTICA 85 Por uma verdadeira afinidade eletiva. de outro lado é fato que. mas sublinhando que. a Igreja se tornou desnecessária e o Estado vem a ser a suprema autoridade religiosa. a dialética só podia ser a incorporação mesma do espírito da mentira. para ele. na impessoalidade do seu conseqüencialisconseqüencialismo abstrato. Assim como Hegel. . Essa alma religiosa e sofredora.86 OLAVO DE CARVALHO por excelência. Um dos primeiros e mais eloqüentes deles foi Arthur Schopenhauer. aquilo a que Nietzsche viria a chamar “o mais frio dos monstros”: o Estado moderno. avesso a admitir separação entre as ques- tões metafísicas e a intimidade dos sentimentos humanos. esse pensador profundamente pessoal. via com verdadeiro horror a máquina dialética a gerar. era o protótipo do argumentador capcioso que faz o falso passar por verdadeiro e o verdadeiro por falso. Aí começa a se esclarecer o porquê de sua redução radical de toda dialética a uma erística. condoída das Dores do Mundo. ele classifica como 20 “lógica” : é um capítulo de lógica indevidamente infiltrado numa técnica que deveria ser consagrada essencialmente ao espírito de disputa. caminho rigoroso da de- monstração da verdade. tenda à investigação e à prova da verdade. caímos no da pura sofística. nesta. Daí também sua peculiar interpretação da teoria aristotélica do discurso. e a dia- lética. voltamos ao campo da mera lógica. lhe assinalamos como objetivo a afirmação de teses falsas. 20 “Se lhe designamos como finalidade a pura verdade objetiva. ao contrário.INTRODUÇÃO CRÍTICA 87 Daí que.” . para Schopenhauer. § 5. Se. arte de argumentar independentemente da verdade. como o é a do próprio Arthur Schopenhauer. só existam dois métodos de pensar: a lógica. Tudo quanto. para absolvê-la de toda acusação de distorção intencional. O domínio da dialética é a opinião. força um pouco a letra dos textos aristotélicos. que ensina como se pode chegar a conhecer uma coisa como necessá- ria. coloca-se a dialética. é preciso ver que ela se baseia na visão do método aristotélico então vigente nos meios acadêmicos. Essa visão está expressa ~ só para dar um exemplo ilustre ~ nas seguintes palavras de Émile 21 Boutroux : “Abaixo da apodíctica. Alcan. 4e.. é certo. O dialético toma por ponto de partida. uma visão que só veio a ser contestada no século XX. éd.88 OLAVO DE CARVALHO Essa interpretação. pp. ou lógica do provável: ela é exposta nos Tópicos. não as definições 21 “Aristote”. em Études d’Histoire de la Philosophie. 126-127. . Mas. Paris. modo de conhecimento suscetível de verdade ou falsidade. 1925. ” . diferentes espécies. e discute uma proposição e a outra. examina contraditoriamente o sim e o não sobre cada assunto. mas as opiniões ou as teses propostas pelo senso comum ou pelos filósofos. tomado como dado. a igual título. dessas opiniões diversas. em definitivo. O dialético raciocina silogisticamente.INTRODUÇÃO CRÍTICA 89 necessárias em si. Mas os princípios específicos não se po- dem deduzir dos princípios genéri- cos. Ele procede por perguntas e respostas. a essência simplesmente genérica. mas partindo do verossímil. Só a adição do princípio específico ao princípio genérico poderia tornar a conclusão necessária. O veros- símil. a mais verossímil. depois uma antítese. pois todo gênero comporta. quando se quer aplicar a proposição a casos particulares. Assim ele conduz suas perguntas de modo a colocar primeiro uma tese. é. Esta discussão consiste em examinar as dificuldades que surgem. e investiga qual é. ainda não determinadaterminada pela diferença específica. donde o nome de peirástica (da raiz π ε ι ρ α . “experimento”) atribuído também à sua arte22. pode provar a veracidade necessária de uma tese. Mas a prova lógica depende sempre de premis- 22 Este é um dos raros pontos em que a notá- vel monografia de Boutroux pode se considerar “superada”. nesse parágrafo. O dialético pode partir do verossímil. muito comum nos intérpretes de Aristóteles. entre meio de prova e meio de descoberta. e ela é portanto o meio indispensável de toda demonstração científica (α π ο δ ε ι ξ ι σ . . É também característica. base. é exposição lúcida e confiável. é certo. mas busca superá-lo através de tentativa e erro. No mais. caso este seja endossado pela opinião consensual dos sábios. isto sim. apodêixis = “prova indestrutível”). peira. Só a lógica. da retórica.90 OLAVO DE CARVALHO Boutroux engana-se ao dizer que a dialética se atém ao verossímil. a confusão. Nenhuma dessas fontes nos dá. e a questão decisiva na investigação científica não está portanto em tirar logicamente as conclusões. por exemplo). um . requer uma abordagem mediata. por outro: o maximamente pequeno e o maximamente grande. Ora. Tudo o que está na zona intermediária. por assim dizer. dos princípios universais. segundo Aristóteles as premissas de base só podem vir de uma de duas origens: ou da experiência sensível ou da imediata intuição dos primei- ros princípios universais (princípios lógicos e ontológicos). no entanto. o conhecimento dos princípios específicos de um determinado campo de conhecimentos (da zoo- logia ou da ética.INTRODUÇÃO CRÍTICA 91 sas. mas sim em descobrir as premissas. e que compõe nada menos que o território inteiro do conhecimento científico tal como hoje o compreendemos. Só há conhecimento imediato do dado particular sensível. por um lado. 92 OLAVO DE CARVALHO meio de acesso. Uma vez encontrado o princípio. o confronto racional das hipóteses. Mas a lógica. ele serve de premissa para muitas demons- trações. precisamente. o princípio buscado. enquanto formalização segundo a cadeia dedutiva estrita. de modo a ir eliminando primeiro as autocon- traditórias. como que em filigrana no fundo da rede de distinções. depois as improváveis. de depuração em depu- ração. para dar solidez ao conhecimento. Ora. só entra em ação no fim. que. depois as que negam os fatos. cuja descoberta é obra e mérito da arte dialética. É verdade que Aristóteles aponta como uma das funções da analítica investigar “por quais meios obteremos os princípios apropria- . estas sim. deverão se ater rigorosamente à lógica. essa depuração é nada menos que o método dialético. Esse meio é. até que. se chegue a intuir. quando passa a explicar esses meios. 53 a 2-3. cit. I 21 43 b 1-4. o que ele diz é24: “Devemos selecionar desta maneira as proposições adequadas a cada problema: primeiro temos de estabelecer o assunto. Pr. 24 Anal. II 1. torna-se claro que a investigação analítica não pode sequer começar sem que a dialética tenha lhe apla- nado o terreno. a definição e as propriedades da coisa. . outro procedimento senão a dialética. mas. Por isto. para isto.INTRODUÇÃO CRÍTICA 93 dos a cada assunto”23. Pr. 25 Loc.” Bem. se a investigação analítica começa pela definição. diz o mesmo Boutroux25: “O papel da dialética é considerável: ela é o único modo de raciocínio possível em matérias que não comportam definições 23 Anal.. voltamos ao ponto de partida: como encontrar a definição? Não havendo.. e que acabam por preencher os hiatos de parte a . As provas que Dumont alega em favor desta interpretação são esmagadoras. é certo que a forma do silogismo lógico é a mesma do silogismo dialético.94 OLAVO DE CARVALHO necessárias. se confirmam ou se desmentem. na investigação das verdades necessárias mesmas. no século XX.” Mas. essas considerações ainda não tinham levado à conclusão que. E. que se entrecruzam ou se afastam. o método científico. em Aristóteles. De outro lado. A lógica é meio de prova. Éric Weil e Jean-Paul Dumont viriam a proclamar abertamente: a dialética e só a dialética é que constitui. ela é o preliminar indispensável da de- monstração. no tempo de Boutroux ~ e a fortiori no de Schopenhauer ~. não de in- vestigação. com a diferença de que este parte de premissas prováveis e segue por duas cadeias silogísticas simultâneas. mas continuam a ser. pois. 134-135. Aristóteles não vê nenhuma diferença entre o raciocínio dialético e o científico. portanto não é lícito fazer nenhuma petitio principii. As premissas têm de ser verdadeiras. as premissas são as afirmações opostas estabelecidas pelos disputantes. no entanto. Do ponto de vista de um leitor da primeira metade do século XIX. Aristóteles. Bernabé Navarro. Nas Analíticas. pp. trad. a ênfase recai na estrutura in- terna do silogismo. 1990. Fundamentalmente. ‘algo que é oferecido a outro para que o tome’. No diálogo. apesar de tudo. como observa sutilmente Kapp. Universidad Nacional Autónoma. México.” (Ingemar Düring.) . Na micro-estrutura íntima de cada um dos discursos que a compõem. a dialética é ~ ao menos idealmente ~ lógica. Daí deve resultar ‘algo diverso’. Exposición e Inter Interpretación de su Pensamiento. a dialética de 26 “Kapp sublinha justamente a diferença entre o raciocínio dialético e o analítico. isolado do antagonista e indiferente às suas premissas26.INTRODUÇÃO CRÍTICA 95 parte. ao passo que a cadeia lógica nada mais é que um dos dois discursos de uma confrontação dialética possível. 132-135.96 OLAVO DE CARVALHO Aristóteles ainda era apenas uma “lógica do provável”. A dialética. seleciona e descobre.. firma e consolida. Quem enfatizou particularmente a necessidade de articular os métodos lógicos e dialéticos foi o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos. Mas quem. compara. A lógica nada descobre: prova. . 28 V. certamente o maior pensador de língua portuguesa em 27 Aristóteles. menos certa e menos decisiva que a “lógica do verdadeiro”. e não duas opções alternativas28. Aristóteles em Nova Perspectiva. Elas constituem duas etapas do trabalho científico. nada prova27: sugere. Ref. abrindo novos ter- renos à descoberta científica? Por sua rigorosidade mesma. 102a12. poderia conduzir a investigação. refuta. a lógica do verdadeiro é obrigada a permanecer no terreno firme do já sabido. sof. senão a lógica do provável. classifica. em suma. pp. São Paulo. 29 V. distinguindo. 1959 (4ª ed. Todo co- nhecimento profícuo. por seu lado. . A dialética. Métodos Lógicos e Dialéticos. 1964). devendo por isto ser corrigida pelo exame dialético para não cair no abstratismo que toma os entes de razão por entes reais29. classificando. dos modos. dos gêneros e espécies.INTRODUÇÃO CRÍTICA 97 muitos séculos. para Ferreira. mas um caminho pelo qual a mente se orienta na selva dos con- ceitos. ~ Todo cuidado é pouco na consulta a estas edições. Ferreira asse- gurava que. 3 vols. se de fato a dialética nada prova. ordenando... 1962).. 1952 (5ª ed. feitas às pressas pelo próprio autor e onde são tantos os erros de revisão que muitos parágrafos se tornam totalmente ilegíveis. não era um método de discussão. perde facilmente de vista as diferenças observadas no mundo real (um desvio que se nota particularmente no raciona- lismo clássico). Lógica e Dialética. das hipóteses e dos pressupostos ocultos. Logos. afirmava ele. Logos. a lógica analítica. São Paulo. Cap. a dialética antinômica de Proudhon e a dialética trágica de Nietzsche. aplicando os re- sultados da Filosofia especulativa na prática. a Dialética será preci- samente.98 OLAVO DE CARVALHO deve proceder em três etapas: a síntese inicial intuitiva. nesse setor. a arte de trabalhar com ambas simultaneamente.. 1966. a análise e posteriormente a concreção. . Ma- tese. I. 30 A Sabedoria dos Princípios. bem como de ascender da prática ao especulativo.entre a Filosofia especulativa e a Filosofia prática não existe um abismo. A dialética tinha ainda por função fazer a ponte entre filosofia teorética e filosofia prática30: “. Ao método pelo qual percorria essas três etapas ele denominou dialética concreta. São Paulo. especialmente a dialética histórica de Karl Marx.. uma arte que soma à elegância e ao rigor das demonstrações escolásticas a riqueza de perspectivas das dialé- ticas modernas. Para começar. pelo nome comum de dialética31. Victor. Hugo de S. Alexandre de Hales e Sto. que sempre imita a de um confronto (a disputatio). ambas eram designadas. A disputatio. nas duas direções: uma que parte das idéias universais para as particulares. mais significativo que isso. Didascalicon. outra que parte destas para atingir as universais.INTRODUÇÃO CRÍTICA 99 realizando portanto operações progressivas e regressivas. e lógicos nos detalhes da demons- tração. Alberto. pois são dialéticos na estrutura geral.” Mas a solidariedade de lógica e dialética já se tornara evidente na Idade Média. que servia de modelo estrutural a esses tratados. Porém. na terminologia das Artes Liberais. Tomás. os tratados escolásticos. que se distinguia da disputa vulgar 31 V. . particularmente as Sumas de Sto. era a disputa acadêmica. são uma síntese de métodos lógicos e dialéticos. era extra formam (“fora da forma”). de modo a evitar por todos os meios o uso de estratagemas que 32 pudessem viciar a conclusão . no sentido medieval do termo: as duas serpentes 32 V. J. o símbolo tradicional de Mercúrio. por seguir rigorosamente a de- dução silogística. era associada à dialética. isto é. enquanto o diálogo socrático. por exemplo. 1937. Freiburg. Elementa philosophiae aristotelico-thomisticae. mas todo um complexo de precauções e dis- tinções. divindade astral que. Gredt. de grande precisão e sutileza. A síntese de dialética e lógica encontrava ainda uma expressão plástica no caduceu. desde os primórdios das Artes Liberais. A “forma” não exigia apenas a obediência aos cânones da lógica aristotélica. .100 OLAVO DE CARVALHO por ser in forma (“na forma”). que delimitavam rigo- rosamente o munus defendendi (tarefa da defesa) e o munus arguentis (tarefa do argüidor). a 33 Comparar isto com a solução que dou ao conflito das interpretações que enfatizam um Aristóteles “aporético” ou um “sistemático”. por si sempre incertos e vacilantes33. pp. em Aristóteles em Nova Perspectiva. . as refe- rências a Mercúrio em O Jardim das Aflições § 17. onde este aspecto que estou apontando é só um entre muitos. tb. Uma análise mais detida desse símbolo mostra a profundidade extraordinária do seu significado34. 125-135. 798 ss. Enquanto a lógica. V. pp. La Mistérieuse Emblématique de Jésus-Christ. pressupõe um domínio completo dos dados em jogo.INTRODUÇÃO CRÍTICA 101 entrelaçadas mostravam os movimentos dialéticos da mente. Louis Charbonneau-Lassay. 34 V. raciocínio linear. representada pelo bastão central. A linearidade da demonstração lógica aparecia aí como um ideal de perfeição pelo qual se guiavam os movimentos reais da mente investigadora. que se afastavam e aproximavam da reta verdade. Le Bestiaire du Christ. porque os desejos só podem ser satisfeitos por uma gratificação . as ondulações da mente humana e os contornos do objeto. mas deve acompanhar. e chega mesmo a ser o seu contrário: a re- volta contra a frustração de um desejo não satisfaz esse desejo. Psicologicamente. a negação de uma negação é uma afirmação: “A é igual a A” é o mesmo que “A não é não-A”. mas até aumenta a frustração. na pura demonstração lógica. Por exemplo: de um ponto de vista lógico. É um raciocínio “impuro”. não teria cabimento. e por isto não pode seguir a linha ideal do raciocínio demonstrativo. até certo ponto.102 OLAVO DE CARVALHO dialética tem como uma de suas funções descobrir os dados faltantes. mas conserva um resíduo empírico e psicológico que. que se modela pela pureza do ideal analítico. quando é sinuoso. a recusa da negação de algo não é o mesmo que sua afirmação. em parte. frônesis. sabedoria35.INTRODUÇÃO CRÍTICA 103 positiva. é ciência prática que. como a ética. nenhuma investigação pode se modelar diretamente pela natureza do ob- jeto (para isto seria preciso conhecê-la de antemão). Logicamente. Napoli. em parte. às casualidades da fortuna. Ora. mas psicologicamente há muitos graus de negação. . Mas a precisão das disputas escolásticas perde-se na entrada dos tempos modernos. 1989. obedece. alguns ex- cludentes entre si. tem de se guiar menos pela pureza cristalina da demonstração do que pela flexibilidade da φ ρ ο ν ε σ ι ς . Heliopolis. v. Carlo Natali. ao jogo interno da mente e. mas. toda negação é afirmação do oposto. juntamente com o domínio da linguagem sim- 35 Sobre a frônesis. Por isto há um resíduo psicológico ~ logicamente “impuro”~ na dialé- tica: arte da investigação. La Saggezza di Aristotele. pp. Aristóteles em Nova Perspectiva. 68- 36 69. Com o advento do racionalismo e a ruptura cartesiana entre res extensa e res cogitans. A erística de Schopenhauer já reflete uma etapa bem mais avançada de sua crescente separação. temos V. segundo uma tradição que vinha de Aristóteles a Hugo de S. § 6. . vai embora também a unidade de lógica e dialética. ção. Vítor.104 OLAVO DE CARVALHO bólica que. Para compreender por que Schopenhauer opôs tão rigorosamente uma à outra essas duas artes que Aristóteles concebera como solidárias. fazia a ponte entre o mundo sensível e o pensamento lógico36. . Conversações com Goethe. em particular. na teologia cristã. declarasse não ver no método dia- lético “nada mais que o espírito de contradição sistematizado”37. mal pôde esconder seu desprezo por uma atividade mental que lhe pareceu arriscada e artificiosa. Tendo Hegel na mira de seus ataques. mas o conteúdo mesmo da filosofia e a lei constitutiva da estrutura do mundo ~ embora o próprio Hegel.INTRODUÇÃO CRÍTICA 105 de levar em conta que o adversário ideal visado por ele era Hegel. 18 37 de outubro de 1827. ante essa definição. na sua célebre conversa com Goethe. para quem a dialética constituía não apenas o método essencial. Se nos lembrarmos de que Goethe. e desejando empregar contra ele as armas forjadas por Eckermann. e de que. compreenderemos perfeitamente a estratégia de Schopenhauer. o espírito de contradição é o diabo propriamente dito. mas até mesmo realizá-las de modo mais perfeito. como a de Hegel. Empreendido hoje. na condição de serva da analítica. se essa operação não lhe pareceu falsear as intenções do Estagirita. Procedimento estritamente dialético. mostrar que uma filosofia reduzida a dialética. no sentido schopenhaueriano do termo. E. teve de primeiro extirpar da dialética do Estagirita todos os elementos de valor cognitivo ~ transferindo-os para o departamento de lógica ~.106 OLAVO DE CARVALHO Aristóteles. era uma filosofia indiferente à verdade. depois de Weil e Dumont. em seguida. no fundo da cozinha. a dialética de Aristóteles ainda vegetava. o projeto de Schope- nhauer teria de se apresentar como disciplina nova e indepen- dente da dialética aristotélica (se bem que relacionada a ela de . para reduzi-la a uma arte da disputa indiferente à verdade e. foi precisamente porque. na época. uma vez que ele tinha a alegar contra Hegel também razões de ordem estritamente lógica. Não é preciso dizer que a estratégia de Schopenhauer. expostos em O Mundo como Vontade e Representação. Todo conhecimento. Mas é preciso notar que a superioridade da lógica sobre a dialética. está rigorosamente circunscrito pelos limites kantianos: consiste apenas na .INTRODUÇÃO CRÍTICA 107 algum modo). é meramente relativa e não implica nenhuma confiança profunda no poder cognitivo da lógica. se recorreu a um expediente erístico. não consistiu em erística exclusivamente. sob pena de que o meio acadêmico. em Schopenhauer. deduzidas dos princípios de sua própria filosofia. o rejeitasse como mera interpretação falseada de Aristóteles. jogando a criança fora com a água do banho. que Schopenhauer pro- clama. a única diferença substancial. que se ergue na ponta do processo de manifestação cósmica da coisa- em-si sem poder retroagir para abarcar cognitivamente a causa . Aqui. De fato. mas que se segue inapelavelmente das suas premissas. portanto. A diferença. da sua incognoscibilidade mesma. ao passo que o segundo deduz. a sua total irracionalidade ~ uma conclusão que Kant não quis tirar. se a lógica é apenas o esquema da razão humana. ela não tem mais o alcance ontológico que tinha em Aristóteles. e não a tradução da esquemática do mundo no microcosmo da razão humana. sobre o fundo eternamente incognoscível da “coisa-em-si”. entre Kant e Schope- nhauer é que o primeiro nada diz sobre a coisa-em-si. apenas a esquemática da razão humana.108 OLAVO DE CARVALHO esfera dos “fenômenos”. como em Kant. no sistema schopenhaueriano. A lógica é. Nesse mergulho no mais sombrio da irracionalidade. como mani- festações dialeticamente complementares. tal como as via Schelling). colocando natureza e subjetividade numa evolução linear e sem volta que vai da Vontade primeva ao surgimento da razão humana (e não mais lado a lado. é portanto irracional. Schopenhauer. observa-se uma significativa inversão do Absoluto de Schelling: enquanto este era não somente fonte do processo cósmico. da dialética que ia unindo natureza e subjetividade na escalada conjunta de ciência e mística. a razão é uma das formas do mundo da Representação. Tal como os sentidos. a coisa-em-si está eternamente fora do alcance de todo conhecimento racional. a casca de aparências que encobre a misteriosa Vontade universal. mas meta do processo cognitivo. corta toda via de .INTRODUÇÃO CRÍTICA 109 que a criou. a-racional ou pré-racional. dissolvendo-se na obscuridade da natureza para chegar à obscuridade ainda mais funda da arbitrária Vontade univer- sal.110 OLAVO DE CARVALHO acesso ao conhecimento do Absoluto: pois a consciência e a razão estão ainda mais afastadas da origem do que o está a natureza. Torna-se aí manifesto que o descrédito do conhecimento. para conhecer essa origem teriam de primeiro abdicar de si mesmas. quanto mais ela se eleva à consci- ência. mais se distancia da origem. a visão linear que Schopenhauer tem da manifestação cósmica é necessariamente a de um progressivo afastamento em que. e. a queda no irracionalismo e numa visão trágica do universo se seguem fatalmente do abandono da dialética (no sentido aristotélico e no sentido schellinguiano do termo): fundada exclusivamente na lógica analítica. . INTRODUÇÃO CRÍTICA 111 condenando a consciência a perder-se no irrelevante. entre a alma e o mundo. na origem e na meta. No instante seguinte. De um só golpe. breve e fulgurante. de equilíbrio dinâmico entre mística e racionalismo. em Hegel o Absoluto mesmo é dialetizado e. a História tomava o lugar de Deus. destituído de toda Identidade salvo a de um conceito vazio. A dialética de Schelling constituiu um momento. não lhe resta senão tentar preencher-se de conteúdo no decurso do processo dialético- histórico. mas a das formações históricas que se sucediam na jornada em direção ao Estado moderno. o equilíbrio rompe-se: se em Schelling a dialética era o meio de acesso ao Absoluto e este constituía a Identi- dade suprema. acima de toda dialética. unidos. pelo Absoluto. e a escalada dialética já não era a da alma que ascendia a Deus. Sob as aparências de uma aparente . como a via de solução para as famosas antinomias em que. a dialética era o instrumento pelo qual o homem se orientava no mundo da manifesta- . em Schelling.112 OLAVO DE CARVALHO contestação à filosofia de Schelling. segundo Kant. o recurso à dialética aparecera. reabriu o caminho para o conhecimento intelectual de Deus. generalizava-os para “toda metafísica futura que pretenda apresentar-se como ciência”. Ora. Nesse caminho. o giro hegeliano ~ e marxista ~ do eixo da filosofia foi uma das mais prodigiosas mudanças de assunto já ocorridas em alguma discussão filosófica. no sentido clássico do termo. tendo descoberto os limites da metafísica dedutiva do racionalismo. desembocava toda investigação metafísica. Schelling empreendeu demonstrar que a generalização fora longe demais. Kant. que esses limites não se aplicavam a uma metafísica dialética. Assim fazendo. mediante o simples recurso de romper o equi- líbrio. A via reaberta por Schelling foi fechada às pressas por Hegel. enfatizando exageradamente o poder da dialética como o racionalismo clássico tinha exagerado o da lógica analítica: a dialetização do Absoluto era a negação da Identidade. coincidência que o racionalismo falhara em demons- trar porque acreditara ingenuamente poder observá-la na esfera da manifestação cósmica. por sua estrutura polar. a qual. a absolutização do . só pode ser apreendida dialeticamente. onde toda dialética se tornava dispensável e onde se reencontrava a plena coincidência entre princípios lógicos e onto ontológicos. Mas o diabo é veloz.INTRODUÇÃO CRÍTICA 113 ção cósmica ~ constituído de polarizações que não se deixavam apreender numa lógica linear ~ para poder ascender até o plano da Identidade. 114 OLAVO DE CARVALHO cosmos compreendido como processo histórico. enigmático. poderia dar nascimento a um processo real. supondo-se que já não fosse em si mesma um monumental contra-senso. que mudava de repente o eixo de todas as discussões e inaugurava um novo repertório de interesses. só adquiria identidade consistente no final do processo. ninguém parecia ter a condição de refutar o pensamento complexo. O Deus que não tinha conteúdo próprio. Sob a estridência das fanfarras hegelianas. Na atmosfera de frisson acadêmico despertado pela nova filosofia. Ninguém teve a coragem de perguntar a Hegel como um conceito vazio po- deria negar-se a si mesmo e como essa autonegação. sob a forma de Estado. mas que ao mesmo tempo só podia realizar- se pelas sucessivas negações de si mesmo. o apelo para um retorno da alma a Deus tornava-se . Inaugurava-se uma nova guerra de doutrinas. e não os indivíduos concretos. o meio filo- sófico dividia-se segundo as categorias políticas modernas: direita e esquerda. O foco de atenção se deslocava. sob a disputa cada vez mais ruidosa e sangrenta entre as duas formas possíveis do Estado. Também não houve quem 38 Está aí a raiz do mais trágico erro de pers- pectiva moral em que a humanidade caiu ao longo de toda a sua História: a convicção de que é a sociedade. Sobre algumas conseqüências práticas da disseminação . O giro do cenário fora repentino e completo: a busca de Deus estava excluída do terreno filosófico.INTRODUÇÃO CRÍTICA 115 inaudível. em aparência definiti- vamente. a questão do destino da alma parecia antiquada e desinteressante. doravante ocupado pela disputa de ideolo- gias38. o verdadeiro sujeito da responsabilidade moral ~ pressuposto que está na base de toda a atual ideologia “politicamente correta”. da busca da perfeição da alma para a luta pelo Estado per- feito. E. diferente de todas as anteriores. 39 § 7. negado o poder cognoscitivo do dessa crença. resolveu atacá-la justamente pelo flanco dialético. esmagando sob suas rodas todas as aspirações mais íntimas do coração humano. recuou horrorizado ante a máquina racional-dialética que. para desmontar a máquina. Mas.116 OLAVO DE CARVALHO perguntasse a Hegel como almas tão desarraigadas de sua vocação espiritual poderiam construir o Estado perfeito. . investida do prestígio sacro do Absoluto. ou: o rabo e o cachorro” em O Imbecil Coletivo. “Bandidos & letrados” e “A superioridade moral da esquerda. v. por julgar que. Schopenhauer. seguia implacavelmente o seu curso em direção ao Estado. 39 As conseqüências desse giro observam-se no dia-a-dia da política atual ~ a busca incessante de uma sociedade virtuosa para homens viciosos. como muitos outros desde o seu tempo até hoje. também não se podia mais encarar a coisa-em-si como a meta de uma escalada cognitiva. Kant já demonstrara que nem aqueles nem esta podiam ter acesso à coisa-em-si. em . Talvez viesse. e que constitui o cerne mesmo da filosofia de Schopenhauer: a coisa-em-si. só sobravam os velhos métodos do empirismo e do racionalismo ~ os dados dos sentidos e a lógica. estando fora do mundo da repre- sentação. viria por terra toda a filosofia de Hegel. mas a que preço? O preço foi o seguinte: excluído o método dialético. alheia a toda lógica. Só restava então tirar a conclusão que Kant não ousara tirar. Pior ainda: abandonado o método dialético. origem da manifestação cósmica e meta resplandecente do conhecimento humano. não apenas é extra- sensorial mas é também irracional.INTRODUÇÃO CRÍTICA 117 método dialético. Se em Schelling o Absoluto era alfa e ômega. a visão circular do universo. é substituída por uma seqüência linear.118 OLAVO DE CARVALHO Schopenhauer ele se tornava um alfa sem ômega. isto é. desemboca no completo irracionalismo. onde o retorno é autodestruição e só resta à consciência desenganada contemplar esteticamente a sua própria impotência. a fortiori. Eis como a ne- gação da dialética como racionalidade imperfeita. em prol da perfeita racionalidade da lógica analítica. cume da manifestação. onde o homem vinha de Deus e a Ele retornava. . de toda consciência humana. da destruição da manifestação mesma e. uma origem sem meta. De Schelling a Schopenhauer. só atenuado por uma triste deleitação estética que é o último consolo dos condenados. eternamente escondida atrás de nós e para sempre inacessível exceto pelo caminho do retrocesso. por outro lado. Freud e . onde já não se compreende nenhuma dialética senão no sentido histórico-social. e onde. Hegel e Schopenhauer inauguram a sensibilidade propriamente mo- derna.INTRODUÇÃO CRÍTICA 119 Sufocada a voz de Schelling. entramos em cheio na era dos utopismos sociais. cujas derradeiras obras foram solenemente ignoradas pelos seus contemporâneos. Com eles. da tecnocracia e da pseudomística. Já é o mundo de Marx e Nietzsche. a alma se debate em vão entre o universo fechado do dedutivismo lógico-matemático e o abismo sem forma de um infinito compreendido como pura irracionalidade. ed. Wittgenstein teria. mas sua própria pesquisa prova que estas já eram suficientemente perversas em si mesmas. numa evolução aliás muito lógica da estatização da consciência. a tornar-se espião e servidor da ditadura soviética. que de certo modo é patente mas que depois me foi confirmada pela leitura da obra de Kimberley Cornish. À teoria wittgensteiniana da “não-propriedade- privada do espírito” corresponderia. 40 Nota da 2a. a doutrina hitlerista da raça como portadora de uma supraconsciência. . Cornish vê no hitlerismo uma perversão das idéias de Wittgenstein. É o “nosso” mundo. que só uma babaquice fora do comum pode supor ter sido menos infame que a de Hitler. 1998. Wittgenstein e Hitler foram colegas de escola e parecem ter passado juntos por certas experiências pseudomísticas que lhes incutiram a convicção da nulidade da consciência individual. London. segundo Cornish. The Jew of Linz. mutatis mutandis. Century Books. tendo levado o filósofo. Wittgenstein. Gurdjieff e Skinner. ~ Juntei estes dois nomes um ao outro sem nenhuma intenção consciente de sugerir sua afinidade. Hitler e Wittgenstein40. Hitler and their Secret Battle for the Mind.120 OLAVO DE CARVALHO Kafka. que. vinte milhões a mais que o total de mortos da guerra. não é de estranhar que siga de perto Kant no que se refere à concepção do método. . no essencial. ajudando os aliados a vencer a guerra. Morticínio previsível. graças a essa e a outras solícitas colaborações de ocidentais irresponsáveis.INTRODUÇÃO CRÍTICA 121 § 8. mas. mas que. de fato. um regime que acabou matando sessenta milhões de pessoas. um prolongamento irracionalista do kantismo. Kant havia. à luz de uma filosofia na qual o indivíduo humano é nada mais que uma boca a repetir sonsamente as palavras ditadas pelo espírito coletivo. se tornaram os grandes vencedores e puderam ainda ajudar a consolidar o comunismo chinês. em vez de passar a informação ao governo inglês. que impugna qualquer justificação moral para a colaboração com os soviéticos. contestando mesmo o estatuto de decifrado certos códigos militares nazistas. ao qual tanto devia na sua condição de menino mimado de Cambridge. não tem realmente nada de mais. preferiu dá-la aos soviéticos. negado todo valor cognoscitivo à dialética. Se o sistema de Schopenhauer constitui. Kant acredita po- . 42 Creio ter deixado bem claro. não lhe negava todo valor prático na investigação filosófica: definindo-a como uma “lógica das aparências”41. vazio. justamente. como se verá mais adiante. Mas. ele ad- mite seu emprego.olavodecarvalho. Tal é a origem das famosas 41 Definição com que Schopenhauer não con- corda.org ~. Que falsas aparências são essas? São aquelas a que o pensamento lógico chega quando. curiosamente. pretende tirar de si mesmo conclusões sobre o real42. esquecendo- se de que é um pensamento mera- mente formal. que esse impedimento afeta o projeto kanti- ano mesmo: buscando fixar os limites reais do conhecimento humano. para a destruição das falsas aparências criadas pela razão.122 OLAVO DE CARVALHO “lógica do provável” que tinha em Aristóteles e chegando a condená- la como “incompatível com a dignidade da filosofia”. em “Kant e o primado do problema crítico”. aula do Seminário de Filosofia reproduzida na minha homepage ~ http://www. se o der encontrá-los por dedução a priori. reduz o raciocínio lógico a mero esquema formal. sem poder cognoscitivo sobre o real e sem conexão com a estrutura da reali- dade. que os ele- mentos do cosmos são simples e que são compostos. Kant a tem na mais alta conta e não poupa louvores a Aristóteles por tê-la inventado. Ao mesmo tempo. A Dialética Transcendental. Aristóteles nada teria a objetar: o raciocínio lógico nada pode sem as premissas e não pode sequer encontrar os seus próprios princípios. Quanto à primeira dessas restrições. Quanto à lógica mesma. etc. Mas. é a destruição das pretensões da lógica que levam a essas antino- mias. na Crítica da Razão Pura. que lhe são dados pela intuição intelectiva.INTRODUÇÃO CRÍTICA 123 antinomias: prova-se que o mundo é finito e que é infinito. contestando o racionalismo clássico de Spinoza e Leibniz. . etc. ela é sua essência total mesma. e 43 F. S. W.. “Até agora não considerastes essa lei senão como formal e subjetiva. Suhrkamp Verlag. 29-3”. Aphorismen zur Einleitung in der Naturphilosophie. daí não se segue que os princípios lógicos sejam desconectados da realidade: para Aristóteles. Frankfurt am Main. em Ausgewählte Schriften. 636- 637 (“Aforismos para uma Introdução à Filosofia da Natureza. 38-40. J. VII: 147-148. pois a intuição que os descobre revela. que são princípios ontológicos ~ um ponto que depois viria a ser maximamente enfatizado por Schelling : 43 “A afirmação da unidade e da totalidade infinitas não é acidental à razão. 1985.124 OLAVO DE CARVALHO raciocínio lógico não pode por si descobrir o real. no mesmo ato. . Schelling. Band 3. W. eles não poderiam sê- lo. rep. números 38-40 (S. em Œuvres Méta- physiques. números 38-40). pp. que se exprime também naquela lei que se admite ser a única que inclui em si uma afirmação incondicionada: a lei de identidade (A = A). que enuncia. ela é uma lei universal infinita. mas que não há eternamente e por toda parte senão Uma coisa que se afirma e que é afir- mada de si mesma. “Considerai essa lei em si mesma. e tereis contemplado Deus. ao proclamar o caráter formal e “irreal” da lógica se 44 Em Breve Tratado de Metafísica Dogmática (apostila do Seminário de Filosofia. que nada verdadeiramente é se não for absoluto e não for divino.INTRODUÇÃO CRÍTICA 125 não soubestes reconhecer nela senão a repetição de vosso próprio pensa- mento. que não há nada nele que seja puramente predicante ou pura- mente predicado. de que Kant. que se manifesta e é manifestada por si mesma. sendo essa apenas uma delas. conhecei o seu conteúdo. Mas ela não tem nada a ver com o vosso pensamento. do universo. 1996) demonstro que a sentença “os princípios lógicos são apenas formais” é uma negação de evidência e que nenhuma negação de evidência pode se expressar senão em proposições de duplo sentido. em suma. .” Não se pode ter a mínima dúvida de que Aristóteles subscreveria letra por letra este parágrafo44. o meio por excelência de articular pensa- mento e realidade. A dialética tem sido. de que Schopenhauer cavou ainda mais fundo o abismo entre pensamento e realidade aberto por Kant. o aspecto cognoscitivo do seu método dialético ~ é o instrumento e a condição sine qua non desse empreendimento abissal.126 OLAVO DE CARVALHO afasta infinitamente do aristotelismo. e de que tanto em Kant como em Schopenhauer o rebaixamento do estatuto da dialética ~ bem como o esforço de um e outro para minimizar. desde Sócrates e Platão. têm admitido a unidade do real e prezado ao menos implicitamente a dialética como . sem exceção. Todos os filósofos. que reconhecem no pensamento hu- mano a capacidade de alcançar o conhecimento do real e de realizar na vida um sentido real da existência. na interpretação que fazem de Aristóteles. mais cedo ou mais tarde. tipo res extensa versus res cogitans. Essa ruptura torna-se particularmente enfática após a materialização da dialética pelo . em Descartes. ou fenômeno versus coisa-em-si. Schopenhauer.INTRODUÇÃO CRÍTICA 127 ponte entre os abismos. em Kant. caindo em algum dualismo irrecorrível. a proclamação da derrota do homem pelas potências das trevas. Inversa- mente. todos aqueles que desprezam a dialética terminam. tem o mérito de proclamar em voz alta a conclusão que a maioria deles procura escamotear mediante sub- terfúgios sentimentais e moralistas ou mediante rodeios de retórica religiosa ou pseudo-religiosa: a negação da dialética traz a negação da unidade do real e a ruptura da alma humana: é a queda inevitável no irracionalismo. alinhando-se consciente e deliberadamente entre estes últimos. até o estabelecimento do completo domínio do homem sobre a natureza. para Marx. Realizando-se por oposições dialéticas.128 OLAVO DE CARVALHO marxismo e o advento da lógica matemática moderna. estratégia do . o processo histórico tomava a forma concreta. Mais que método. Hegel ativera-se ao plano dos conceitos abstratos. que. eliminando a luta de classes. para Marx. mais que um método. mais que doutrina ontológica. não de uma luta de conceitos. é a própria estrutura do mundo. a dialética se tornava. inauguraria a civili- zação mundial socialista. era a própria História humana considerada no seu sentido mais material: a luta do homem pela apropriação e transformação dos bens da natu- reza.Karl Marx começa por proclamar que Hegel não levara suficientemente a fundo sua crença de que a dialética. mas a dialética. mas de uma luta entre classes sociais. se torna um instru- . não buscava compreender o mundo interrogando-o. a dialética se militariza. para realizar o socialismo per fas et per nefas. uma curiosa divisão: alguns. im- potente para transformar o mundo ou mesmo para compreendê-lo como conjunto. o fracasso da revolução socialista na Europa Ocidental produzem. passando por cima das etapas elegantemente escalonadas da teoria histórica de Marx. torna-se técnica do golpe de Estado. mas transformando-o. caem num desencanto trágico. muito dialeticamente. e em suas mãos a dialética.INTRODUÇÃO CRÍTICA 129 movimento socialista que. para- lelamente. O advento do império soviético com toda a sua seqüela de misérias e sofrimentos. e. dentre os mais brilhantes. O leninismo é a erística da dialética marxista. Nas mãos de Lênin. entre os pensadores marxistas. de uma técnica para . loucos e prostitutas. Adorno e Walter Benjamin. e que não passa. com Herbert Marcuse apostando numa revolução de estudantes. Tal é o destino da Escola de Frankfurt. bandidos. que teve como sucessores Theodor W. que acabaram roubando a fama do mestre. no fim das contas. e Jürgen Habermas fazendo apelos impotentes a um tipo de “pensamento dialogal” que sobrepujaria. se pudesse. fundada por Max Horkheimer.130 OLAVO DE CARVALHO mento de sondagem para revirar em detalhe os horrores do mundo capitalista e socialista. numa deleitação mórbida sem esperança que não deixa de ser uma versão ainda mais masoquista do estetismo trágico de Schopenhauer. A Escola de Frankfurt termina melancolicamente. pensadores me- nos profundos porém de maior expressividade literária. o império da ciência e da tecnologia. por meio não só de eleições como da ocupação de cargos de confiança na burocracia (os brasileiros já viram esse filme). as “armas da retórica”. inspirada em Maquiavel. onde os conceitos de “verdade” e “falsidade” são preteridos em favor do voto da maioria. é claro. que tomará a forma de uma “longa marcha para dentro do aparelho de Estado”. o italiano Antonio Gramsci. não desiste da dialética nem da revolução. Outro revolucionário derrotado. à “retórica das armas”. mas pretende realizá- las por meio da persuasão sutil de toda a sociedade. desde que essa maioria. A dialética.INTRODUÇÃO CRÍTICA 131 fabricar consensos mediante a manipulação de assembléias. nas mãos de Gramsci. torna-se maquiavelismo psicopsicológico. esteja disposta a colaborar com o “Novo . uma estratégia sorrateira. invertendo Lênin e preferindo. e à brutalidade repentina do golpe de Estado. em escala monstruosamente ampliada. Esse processo torna-se especialmente nítido com o advento da moderna lógica . como vimos. § 9.132 OLAVO DE CARVALHO Príncipe”. Alguns dos procedimentos mais característicos da estratégia gramsciana repetem ipsis litteris. só para dar três exemplos. Aí a lógica analítica encontra campo aberto para se expandir indefinidamente e instaurar o reinado do dualismo trágico que. Bertrand Russell e Jean Piaget. a dialética perde terreno. Prostituída a esse ponto. isto é. com o Partido. é sempre o resultado do abandono da dialética. os estratagemas denunciados neste livro por Schopenhauer. sendo abertamente desprezada por pen- sadores tão diferentes entre si quanto Heidegger. sem hiatos intuitivos ou vaivéns dialéticos. como meros erros de linguagem que não podiam sobreviver numa lógica sã. à luz dos Principia. pretendendo ser “um desenho do mundo”. na qual o conjunto das ciências pudesse ser reduzido a um único sistema dedutivo. A edição dos Principia Mathematica de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead. A reverência quase mística que os meios filosóficos anglo-saxões ~ e parte dos germânicos ~ concederam à nova linguagem levou alguns pensadores a proclamar que. outros se volatilizariam simplesmente. entre 1910 e 1913. e operando com sinais que representavam os conceitos das .INTRODUÇÃO CRÍTICA 133 matemática. pareceu realizar o velho sonho de uma linguagem inteiramente formalizada. todos ou quase todos os probleproblemas filosóficos tradicionais se dissipariam: alguns seriam absorvidos nas ciências empíricas. Mas a nova lógica. Wittgenstein achou que era melhor . nenhuma esperança de comunicação. o silêncio aterrorizado ante as questões profundas. Entre a tagarelice do lógico e a mudez do místico. Ludwig Wittgenstein. a segunda. sem conexão interior. como bonecos amarrados uns aos outros por fios de barbante. Diante desse resultado. nenhum canal. Em seu Tractatus Logico-philosophicus (1920). Ninguém levou mais a sério os Principia do que um discípulo de Whitehead e Russell.134 OLAVO DE CARVALHO classes de entes. não podia senão reduzir o mundo a uma coleção de fatos e coisas atomisticamente separados. ele tentou formular uma recolocação dos problemas filosóficos a partir dos pressuposto da nova lógica. O resultado foi uma separação abissal entre a esfera do “dizível” e a do “indizível”: a primeira abrangia um conjunto de respostas meticulosamente exatas para questões superficiais. Qualquer escolástico de segunda ordem lhe teria advertido . sem outra mediação exceto a codificação em sinais e a afirmação peremptória de postulados e definições de uma gratuidade a toda prova. Mas nem por isto lhe ocorreu a hipótese de uma ponte dialética. como por exemplo: “O mundo é o conjunto dos fatos”. com resultados de requintada banalidade.INTRODUÇÃO CRÍTICA 135 abandonar o sonho da linguagem lógica perfeita. que não vão além de um pragmatismo mais complicado. mas devo observar. Não é aqui o lugar de discutir as idéias de Wittgenstein. ele ignora totalmente os procedimentos dialéticos que depuram a experiência e a preparam para a formalização lógica. e salta direto para o discurso analítico. de passagem. Passou o resto da vida a analisar expressões da linguagem vulgar. que: 1º Na etapa inicial de seu pensamento (a do Tractatus). isto é. afinal. Assim. e como denúncia das limitações da lógica é um joguinho de cartas marcadas. ética e estética. e no hinduísmo os demônios são designados pelo nome asuras. o que nos indica que o estado supremo a que pode aspirar o iogue wittgensteiniano não é lá dos mais animadores. 4º Sua apologia da . para ele tudo é a mesma coisa (ele leu Schopenhauer muito mal) e vai tudo para a região celestial do “indizível”. o Tractatus é uma brincadeira tola. isto é. “seres desprovidos da palavra”.136 OLAVO DE CARVALHO que isso só poderia terminar como terminou. como tentativa de formalização lógica de uma filosofia. in principium erat Verbum e não Silentium. no esvaziamento da lógica. 2º Religião. 3º Sua idéia da mística como imersão no indizível é antes um estereótipo vulgar do que uma visão séria do assunto. mística. restando explicar para que raios seria preciso uma ética no céu. XXIV. Chap. “todo o espírito que divide a Jesus não é de Deus. 45 V. Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps. toda ascensão mística está impossibilitada pela separação estanque de carne e Espírito. mas é o Anticristo” (1ª Epístola de João. que justamente a Encarnação do Logos viera abolir. no abismo infranqueável entre “fatos” e “valores”. diria René Guénon45. .INTRODUÇÃO CRÍTICA 137 mística é mera inconseqüeência. mas para cair numa mistificação estereotipada da “vida cotidiana” e numa análise obses- sivamente minimalista de ex- pressões da linguagem corrente: a alma. Paris. e. 1945. A anti-alquimia es- piritual de Wittgenstein tem a es- trutura de um delírio lógico furioso. após ter sido esticada até a ruptura entre lógica e mística. 5º Na segunda etapa (Philosophical In- vestigations). IV:3). é agora comprimida na banalidade. Gallimard. como se sabe. Solve et coagula. ele abandona o dualismo. pois. passando do dualismo platônico ao empirismo 46 The Illusion of Technique. o místico voltado contra o espírito mortifica alma e corpo no asce- tismo do esquecimento. para isto. é uma espécie de paz. Corruptio optimi pessima: se a mística é recordação de Deus. para ele. depois sob o peso da banalidade acacha- pante. sendo obrigado. New York. Part I. tentou permanecer fiel aos Principia. ele re- primia o espírito ~ primeiro.47 Bertrand Russell. enquanto os místicos reprimem os sentidos para enaltecer o espírito. a trocar de filosofia várias vezes durante a vida. .138 OLAVO DE CARVALHO apaziguado in extremis por uma autolobotomia voluntária: no fim o louco é devolvido a uma indiferença catatônica que. William Barrett46 ressalta que Wittgenstein tinha uma personalidade de mís- tico. A Search for Meaning in a Technological Civilization. mas que. por seu lado. Doubleday. 1979. sob um logicismo artificioso. tornou-se mundialmente conhecido como um campeão das causas esquerdistas. apenas dissolve a consciência individual na pasta quantitativa da “consciência coletiva”. De l’Homme Universel. procurou restaurar uma visão orgânica e unitária do mundo e chegou a 47 Nota da 2a. Extraits du livre “Al-Insân al-Kamil”. trad. nela. ~ Um dos traços proeminentes da pseudomística wittgensgeiniana é sua incapacidade de distinguir entre generalidade e universalidade. donde resulta que. Assim termina sua busca da coerência lógica ab- soluta: como uma ilustração pitoresca das Leis de Murphy. et commentaires par Titus Burckhardt.INTRODUÇÃO CRÍTICA 139 radical e depois a uma doutrina que denominou “monismo neutro”. . Dervy-Livres. v. Quanto a Whitehead. ed. Sobre a noção de “Homem Universal”. em vez de colocar o indivíduo no caminho de sua transformação em “Homem Universal”. 1975. a superação da individualidade estanque. ‘Abd ak-Karim al-Jîlî. Na velhice. esquecido de que tempos antes havia proposto nada menos que uma guerra atômica preventiva contra Moscou. Paris. Mas. na esfera da ação moral. Vrin.140 OLAVO DE CARVALHO conclusões que. 48 éd. que a dualidade da nossa condição só pode ser vencida pela dialética filosófica que supera as contradições do entendimento. integrando as con- tribuições da física moderna e do pragmatismo norte-americano. não existe acesso direto ao discurso universalmente coerente48 senão pela mediação dos discursos negativos que se depuram ou se resolvem na síntese dialética. A evolução desses três pensadores confirma que. no sentido schellin- guiano da palavra. A. Do mesmo modo. dei- xou completamente de lado os Principia.. para o bicho-homem. não há salto para dentro da pureza V. Paris. usou métodos que não são totalmente estranhos à dialética (embora sem este nome) e. . para isso. 1. Introd. 2e. voltam aos temas da metafísica tradicional. Logique de la Philosophie. 1967. naturalmente. Éric Weil. segundo a máxima de Sto. um estudo das relações entre a dialética e o simbolismo chinês. senão pela mediação da dialética prática que. Parte IVII. Ferdinand Alquié. P.U.. Ela traz em seu bojo uma reivindicação prometéica de 49 V.F. Na pureza do seu formalismo. subjugada e reduzida às dimensões do jogo mental humano51. similares às duas serpentes entrelaçadas ao longo do bastão de Mercúrio49. busca no fundo dos vícios a matéria das virtudes. Le Désir d’Éternité. a rejeição da dialética em nome da lógica é um falso desejo de eternidade. 1968. Paris.INTRODUÇÃO CRÍTICA 141 e da virtude. 50 V. mais ou menos no sentido em que usa o termo Ferdinand Alquié50: é o desejo de uma eternidade unidi- mensional. . A Dialética Simbólica. Cap. 103. Já a antiga sabedoria chinesa ensinava que não existe acesso à retidão suprema do Tao senão pelo diálogo do Yin e do Yang. na dupla sinuosidade de suas transformações no tempo. Agostinho. pp. 55-57 da 1ª ed. que. o pensamento. no ato mesmo de seu funcionamento como ancilla administrationis.). como G. se torna o rector mundi” (Éclipse de la Raison. 69). A chamada . p. acaba por se tornar apenas inumana52. perceberam clara- mente a aliança secreta entre formalismo ló- gico e irracionalismo. 1974. Mas não dá o menor sinal de perceber que colocar a dialética em lugar da lógica na condição de rector mundi torna a dialética igualmente incapaz de discutir seus próprios fins e a reduz a um jogo cego de forças ir irracionais. trad. Jacques Debouzy. não podendo elevar-se à condição sobre- humana. Mas nenhum deles no- tou a semente irracionalista que o marxismo deposita no ventre da dialética ao materializá-la e torná-la condutora do processo histórico. Outros pensadores mar- xistas. o neopositivismo e escolas similares têm uma visão estreita da razão.142 OLAVO DE CARVALHO poder absoluto. fundada no modelo da eficiência prática a serviço de fins que permanecem acima de toda discussão: “Para eles. Paris. A Nova Era e a Revolução Cultural. 51 Max Horkheimer observa que o positi- vismo. como acontece muito claramente nas concepções estratégicas de Antonio Gramsci (v. Lukács. Payot. ela se quebra” ~. mas o desenvolvimento simplesmente lógico de uma tendência inerente às raízes filosóficas do marxismo. sinuosa e ondulante por natureza. The Closing of the American Mind) que hoje é um fato consumado mas no começo deixou escandalizados os esquerdistas tradicionais. a parte reta. No entanto. o famoso hadith (sentença do Profeta) ~ “A mulher nasceu de uma costela torta. que acabam quebrando . e não em tentar “endireitá-la” à força ~ advertência que vale tanto para os moralistas quanto para os logicistas “durões”. não é de maneira alguma um desvio. O trabalho do espírito consiste em fecundar a alma. VI. se a redução da dialética a uma erística pode levar às conseqüências filosóficas ~ e “nietzscheização da esquerda” (v. é o espírito. Allan Bloom. Cap. simbolizada pelo “homem”. que a vulgaridade do nosso jornalismo “cultural” interpreta como expressão de desprezo machista pelo sexo feminino.INTRODUÇÃO CRÍTICA 143 § 10. Explico isto com mais detalhes em O Jardim das Aflições. se tentas endireitá-la. é na verdade um ensinamento de técnica ascética: a “mulher” simboliza a mente. Livro III. respeitando seus movimentos interiores. 52 Na tradição islâmica. pela simples razão de que a refutação das proposições errôneas é umuma preliminar indispensável de toda investigação filosófica ou científica. com a condição de que abdique de sua pretensão de constituir toda a dialética e se contente com ser um capítulo dela. A erística de Schopenhauer pode assim ser incorporada no quadro da concepção tradicional da dialética. também seria impossível excluir da dialética. as primeiras e mais grosseiras dificuldades. criadas pela tagarelice generalizada que. . capítulo utilíssimo. e principalmente na moderna. que ensina a desbastar. considerada como meio de investigação. cerca de obstáculos a costela e caindo no irracionalismo mais humilhante. em toda cultura. na investigação. todo as- pecto erístico.144 OLAVO DE CARVALHO não só filosóficas ~ mais temíveis. no espírito de sinceridade em que quien habla solo espera hablar a Dios un día53 e cada vez mais os procedimentos em uso no debate letrado ~ e mesmo nas discussões acadêmicas ~ tendem a imitar a persuasão retórica e cair na erística pura e simples54. 54 V. Não é preciso dizer que. O Imbecil Coletivo. Diante desse panorama. da 3ª edi- ção. cada vez menos o intelectual que disputa o faz como quem dialoga consigo mesmo. . pp. o estudo da técnica erística se torna uma precaução saudável para 53 Antonio Machado. 79 ss.INTRODUÇÃO CRÍTICA 145 artificiosos a discussão de toda questão filosófica. nesses vinte e quatro séculos que decorreram desde Sócrates. de modo geral. se afastando mais e mais do ideal socrático: cada vez menos a discussão é uma meditação. as disputas intelectuais foram. pois a tagarelice e a patifaria invadiram a cidadela mesma da filosofia e nela ocupam. não raro. hoje seria suicídio tentar defender a honra da filosofia apenas mediante um silêncio desdenhoso e aristocrático ante a tagarelice e a patifaria. Nesse momento. Se no tempo de Aristóteles o filósofo podia recusar-se altivamente a debater com quem não reconhecesse os princípios. a erística assume a dignidade de uma arma indispensável no combate filosó- fico e todos os estudantes de filosofia devem reconhecimento ao pioneirismo e à ousadia de Schopenhauer. . os lugares de comando.146 OLAVO DE CARVALHO quem não deseje se perder no labirinto das argumentações capciosas e da influência psicoló- gica sutil sob as quais se esconde a armadilha do absurdo. É preciso uma luta ativa e sem descanso para expulsá-las. o remédio para um mal que sua filosofia mesma ajudou a disseminar. é preciso lembrar que o irracionalismo de facto não pode ser combatido por um irracionalismo assumido. Como tantas vezes acontece na História das idéias e das doenças. OLAVO DE CARVALHO . e que o império do irracional tem uma de suas causas primordiais na recusa da dialética ou na sua redução a uma erística. similia similibus curantur: e Arthur Schopenhauer nos fornece.INTRODUÇÃO CRÍTICA 147 Apenas. nas páginas deste breve tratado. Dialética Erística TEXTO E COMENTÁRIOS . Aqui e em contextos semelhantes. Mas. emprega o termo Recht behalten. independentemente . faz sempre um paralelo entre Recht haben ( ter de fato razão. manter-se com a razão. estar com a verdade ) e Recht halten ( manter. sustentar. [INTRÓITO] D ialética erística é a arte de discutir. de tal modo que sempre se chegue a vencer . insistir teimosamente em ter razão quando não se tem). estar com a verdade) e Recht halten (aferrar-se à razão. aferrar-se à razão. “ter razão” significa estar do lado certo. a estar certomais precisamente a arte de discutir de modo a vencer55. É fundamental manter isto ! Schopenhauer. em português. estar na verdade. que optei por traduzir por estar (sempre) certo ). a Schopenhauer faz sempre um contraste entre Recht haben (ter razão realmente. e isto per fas et per 55 IMPORTANTE !! Schop. . que literalmente se traduziria como “o ter razão”. “sabichão”. objetivamente se tenha razão. e ainda assim não se a mantenha diante dos olhos dos presentes. “sabereta” etc. tem acepção similar à francesa avoir raison de. por exemplo. em relação à própria questão. quando o adversário refuta de vencer ou perder uma polêmica ou muitas. Recht behalten é francamente pejorativo. independentemente de fazê-lo com razão ou sem ela (no sentido português). Assim ocorre. De fato. mais ou menos no sentido das nossas expressões correntes “dono da ver- dade”. que significa apenas vencer o debate. como se vê pelo título da tradução de Dionísio Garzon: El Arte de Tener Razón. por seu lado. é possível ter razão objetiva- mente no que diz respeito à coisa mesma. Recht behalten. e por vezes diante de seuilícitos).150 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER nefas (por meios lícitos ou ilícitos/ com razão ou sem ela ). O espanhol tener razón pode ser usado indiferentemente no sentido português ou alemão. Ademais. e não tê-la aos olhos dos presentes ou inclusive aos próprios olhos. De fato. é possível que. . a si situação do adversário é inversa àquela que mencionamos: ele mantém-se comparece ter razão.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 151 minha prova. Por conseguinte. e isto acaba valen e isto é tomado como uma refutação da própria afirmaçãotese mesma. Neste caso. sem nenhuma preocupação com à . em todo debate buscaríamos trazer a verdade à luz. em cujo favor se poderiam aduzir outras provas. Donde provém isso? Da perversidade natural do gênero humano. são duas coisas distintas a verdade objetiva de uma proposição e sua validade na aprovação dos contendores e ouvintes. Se esta não existisse. se fôssemos inteiramente honestos. naturalmente. A esta última é que a dialética se refere. ainda que objetivamente não a tenha. não quer aceitar que aquilo que num primeiro momento sustentávamos como verdadeiro se mostre falso. e verdadeiro aquilo que o adversário sustentava.152 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER que ela estaira mais adequada. especialmente suscetível em tudo o que diz respeito à capacidade intelectual. No entanto. isto seria indi- ferente ou. ou àno nosso fundo fôssemos ho- nestos. Portanto. cada um deveria . Nossa vaidade congênita. se à opinião que sustentávamos no começo. em todo debate tentaríamos fazer a verdade aparecer. é isto é agoro que se torna o principal. seria uma questão inteiramenteem todo caso. de importância muito secundária. pelo menos. sem preocupar-nos com que ela estivesse con- forme à opinião que sustentávamos no começo ou com a do outro. à vaidade inata associa-se a ver- borragia e uma inata desleal- dade. deveria-se pensar primeiro e falar depois. se enfraquece enormemente diante do inte- tivo para sustentar o que foi afirmado como verdade. Para isto. depois. que na maior parte dos casos deveria ser o único motivo para se apresentar uma proposição supostamente verdadeira. pretendem que pareça como se fosse ao contrário. O interesse pela verdade. e quando. se dão conta de que sua afirmativa era falsa e de que não têm razão. ainda assim fazem com que pareça não ti- nham razão.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 153 preocupar-se unicamente em formular juízos verdadeiros. na maioria das pessoas. Mas. cede por completo o passo ao inte- resse da vaidade. Falam antes de ter pensado. O verdadeiro . No entanto. Nossas provas não eram verdadeiras. firma-se em nós a máxima segundo a qual. só que o argumento salvador não nos veio à mente no momento.154 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER tem de parecer falso e o falso. tem ainda uma desculpa. verdadeiro. Por este motivo. com freqüência acabamos depois notando que. estamos firmemente convencidos da verdade de nossa tese. no princípio da discussão. mas po- dia existir uma que fosse adequanda à nossa afrida à nossa afirmação. mas agora a argumentação do adversário parece derrubá-la e. apesar de tudo. a insistência em manter uma afirmação que já parece falsa para nós mesmos. Muitas vezes. até mesmo essa deslealdade. tínhamos razão. se renunciamos de repente a defender nossa causa. mesmo quando o contra-ar- . com a crença de que sua veracidade sejanfiantes em que sua retidão é apenas aparente e em que.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 155 gumento do adversário pareça justo e convincente. Somos. nos ocorrerá al- gum outro argumento capaz de demolir a tese contrária ou de reforçar a nossa de algum modo. no curso da discussão. Deste modo. Daí vem que. devemos atacá-lo. em regra geral. a fragilidade de nosso entendimento e a tortuosidade de nossa vontade apóiam-se mutuamente. aquele que entabula uma discussão não se bate pela verdade mas por sua própria tese pro ara et focis (por seu lar e sua fogueirano interesse próprio) e procede per fas et per nefas e. como acabamos de demonstrar. não . assim. quase obrigados ou pelo menos facil- mente levados à deslealdade no discutir. * Maquiavel escreve para o Príncipe se utilizar Maquiavel recomenda que o Príncipe se aproveita de cada instante de fraqueza de seu adversário para o apanhar: porque senão será este que poderá se aproveitar daqueleo instante em que sele é fraco. quando acontecer o contrário: ele irá. pois elas sÃo mal-cer. tudo seria diferente: mas já que o homem não se deixa enganar por elas. ele não as deve exeritar. com certeza. . ele dificilmente fará o mesmo. pois são mal recompensadas.156 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER poderia fazê-lo de outra ma- neira. Se reinassem a fidelidade e a lealdade. O mesmo acontece nas discussões: se eu der razào ao adversário assim que ele parecer ter razãoão ao adversário quando ele parecer ter razão. então. guiado por uma impressão momen- taânea. eu desejaria desistir de minha proposição. Além dissro. assim que me parecesse que ele tem razão. abandonasse a verdade para aceitar o erro.. assim facilmente poderia acontecer de que eu. nós também não o devemos fazer. cada um. Diremos. com facilidade. sobre a qual eu já havia pensado anterianterior- mente. * Por isso. é isto que eu também devo fazer. se esforçará para que . sem ter preferência por nossas proposições: mas não devemos pressupor que o outro fará o mesmo. então. logo. eu queria desistir de minha proposio. em regra geral. que devemos perseguir somente a verdade. com facilidade que devemos perDiremos.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 157 continuar a proceder per fas et per nefas: portanto. de sua dialética natural. não acontece com tanta facilidade que alguém mostre uma deficiência de lógica natural. os recursos de sua argumentação lhe são dados. Cada um está dotado. mesmo quando no momento lhe pareçam falsas ou duvi- dosas. em con- . em certa medida. pois é isto o que lhe ensina a expe- riência cotidiana de discutir. Por isto. assim como de sua lógica natu- ral. Os recursos para tal são entregues razoavelmente ãs mãos de cada um falsa ou duvidosa. Só que aquela não é nem de longe um guia tão seguro quanto esta. por- tanto. por sua própria astúcia e malícia.158 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER suas próprias afirmações triunfem própria tese triunfe. Ninguém pensa ou infere tão facilmente contra as leis da lógica: falsos juízos são freqüentes. falsos silo- gismos são extremamente raros. quando se tem razão. e vice- versa. muitos carecem de uma dialética natural. Os dons inatos. por uma mera argumentação aparente. é um fato que acontece com freqüência. que é um dom da natureza distri- buído de maneira desigual (no que é semelhante à fa faculdade de juízo. deixar-se confundir. e também à razão). aí como em todos os casos. não tanto à veracidade de seuos juízos expostos em suas proposições. De fato. o exercício e também a reflexão sobre as fórmulas para derrotar o adversário. repartida de modo bastante desigual. E aquele que sai vencedor de uma discussão deve-o. são os melhores. muitas vezes.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 159 trapartida. ou sobre aquelas que ele utiliza para . ou refu- tar. quanto à astúcia e à destreza com as quais aque os defendeu. Não obstante. 160 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER vencer, podem levra muitos a se tornremar muitos a se tornar mestres nessa arte. E ainda que a lógica possa no fundo não ter utilidade prática, a dialética, sim, pode ser útil. Parece-me também que Aristóteles concebeu sua ver- dadeira lógica (analítica) basi- camente como fundamento e preparação para a dialética e que esta seria, para ele, o tema principal56. A lógica 56 Éric Weil (“La place de la logique dans la pensée aristotélicienne”, em Éssais et Conférences, vol. I, Paris, Vrin, 1991) e Jean- Paul Dumont (Introduction à la Méthode d’Aristote, Paris, Vrin, 2e. éd., 1992) demonstraram meticulosamente que a dialética é, no sistema de Aristóteles, bem mais decisiva do que a tinham avaliado os intérpretes tradicionais. Embora o livro da dialética ~ os Tópicos ~ pareça ser um tanto anterior às duas Analíticas, não é impossível que Aristóteles, ao criar a analítica, tivesse em vista futuros desenvolvimentos da dialética, que não chegou a realizar. Ingemar Düring (pp. 99-100) julga que a concepção da dialética e da lógica foi simultâneaa da lógica foram simultâneas. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 161 ocupa-se com a mera forma das proposições, a dialética, com seu conteúdo ou maté- ria57. Precisamente por isso, as reflexões sobre a forma, sendo universal, deveriam preceder as considerações o estudo da forma, enquanto exame do universal, deveria preceder o estudo do conteúdo, exame do particular. 57 Schopenhauer deixa-se aqui enganar pela confusão entre a concepção aristotélica da dialética e a sua própria. Em Aristóteles, a dialética é também, ao menos até certo ponto, ciência formal, e o emprego de suas técnicas independe de prévio conhecimento da matéria em debate, como o prova aliás o fato de que é dialético, no aristotelismo, o meio de sondagem do descodesconhecido, ao passo que a lógica serve apenas para dar mais consistência ao conhecido. Já em Scho- penhauer, o termo dialética, designando ao mesmo tempo a dialética (em sentido aristotélico), a erística (que para Aristóteles era uma perversão da dialética) e mesmo partes da técnica retórica, não poderia indicar uma ciência puramente formal. 162 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER sobre o conteúdo, o particular.* Aristóteles não define tão estritamente quanto eu a finalidade da dialética. Atribui- lhe como finalidade principal a discussão, mas, ao mesmo tempo, também o encontrdescobrimento da verdade (Tópicos, I, 2). E depois acrescenta: “Abordam- se as proposições, filo- soficamente, desde o ponto de vista da verdade; dialetica- mente, desde o ponto de vista da aparência, da aprovação ou da opinião dos demais (δ ο ξ α ) ” (Tópicos, I, 12). Ele está consciente da distinção e da separação que há entre a verdade objetiva de uma proposição e a arte de torná-la válida ou de obtepersuadir de sua veracidade ou conseguir a aprovação alheia. Mas não as distingue com suficiente nitidez ao ponto de designar à TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 163 dialética puramente a segunda dessas finalidades. Suas re- gras para obter este último ob- jetivo acham-se, com demasiada freqüência, mis- turadas àquelas que se referem ao primeiro. Por isto, me parece ser este um traba- lho que não foi feito com todo o rigor58. 58 Novamente, Schopenhauer entende Aristó- teles na perspectiva de seus próprios objetivos, que não são os do Estagirita. A dialética aristotélica é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, exercício pedagógico, técnica da discussão e arte da investigação. Nesta última função, é, como disseram os escolásticos, logica inventionis, “lógica da descoberta”, ao passo que a analítica é ape- nas lógica da prova (daquilo que já foi descoberto, é claro). É precisamente por sua função investigativa que a dialética tem a dignidade de uma técnica filosófica e não se confunde com a pura erística (a arte de ven- cer a discussão per fas et per nefas); se Aristóteles não atribui à dialética exclusivamente a função erística, não é por omissão ou por falta de clareza, como pre- tende Schopenhauer, é porque está persu- adido de que ela não é isso somente. No en- tanto, a queixa de Schopenhauer não é de 164 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER * Com seu peculiar espírito científico, tão metódico e sistemático, Aristóteles empre- endeu nos Tópicos a formulação da dialética. Isto merece admiração, se bem que o objetivo, que aqui é claramente prático, não pode se considerar completamente realizado. Depois de ter examinado, na analítica, os conceitos, juízos e silogismos segundo a pura forma na analítica,, ele passa ao conteúdo, onde, em realidade, se ocupa somente dos conceitos, pois é só neles que todo infundada, porque Aristóteles não tem um termo específico para designar cada uma das funções da dialética, e ora usa a palavra num sentido, ora em dois, ora em três. Aristotelis insignis negligentia in scribendo, e no trecho citado por Schopenhauer o termo dialética é usado, sem aviso, no sentido de técnica de discus- são exclusivamente. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 165 reside o conteúdo. Proposições são puras formas, vazias em si,zias em si; os conceitos são o seu conteúdo. Seu procedimento é o seguinte: cada controvérsia tem uma tese ou problema (que se diferenciam tão renciam tão- somente pela forma) e depois proposições que devem servir para resolvê-los59. Aqui trata- se sempre da relação dos con- ceitos entre si. Essas relações são a princípio quatro. Em um conceito, procura-se por: 1) sua definição, ou 2) seu gê- nero, ou 3) sua particularidade, sua nota essencial, o proprium, 60 ιδ ι ο ν , ou 4) seu accidens, isto é, alguma propriedade, 59 A discussão dialética, segundo Aristóteles, pode começar por uma pergunta, à qual se oferecem duas respostas alternativas, ou por uma afirmação, à qual se opõe a afirmação contrária, explicitando-se em seguida a pergunta da qual ambas são respostas implícitas. 166 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER não importa se singular e exclusiva ou não, em suma, um predicado61. O problema de toda discussão remonta sem- pre a uma de tais relações. Esta é a base de toda a dialética. Nos oito livros, ele expõe as relações nas quais os conceitos podem encontrar-se reciprocamente nestas quatro acepções e indica as regras para cada relação possível. Explica, por exemplo, como um conceito deve relacionar-se 60 O idion, na lógica de Aristóteles, não é pro- priamente uma “nota essencial”, mas algum atributo que, não fazendo parte da definição, isto é, da essência do objeto, está no entanto presente em todos os seres que ela abrange e é uma decorrência lógica da definição. Por exemplo, no homem, a capacidade de aprender gramática ~ capacidade essencialmente humana que não faz parte da definição de homem. 61 O acidente também não é uma “propriedade” (se propriedade é o mesmo que idion), mas um predicado que nem faz parte da essência nem pode ser dela deduzido. Por exemplo, no homem, ser gordo ou careca. 62 locus . quais são as normas que devem ser observadas sempre que se estabelecerça (κ α τ α σ κ ε ψ α ζ ε ι ν ) uma tal relação e o que devemos fazer para demoli-la (α ν α σ κ ε ψ α ζ ε ι ν ) quando é um outro quem a expõe. à exposição de cada 62 Topos quer dizer “lugar”. à imagem de uma praça. Tanto a retórica quanto a dialética antigas denominam “lugares” os esquemas argumentativos à disposição do orador ou debatedor ~ donde a expressão corrente lugar-comum.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 167 com outro para ser seu pro- prium. seu accidens. de um teatro. de um . seu definitum ou defi- nição. O termo “lugar” está associado à técnica mnemônica que os oradores empregavam para aprender de cor os seus discursos e para formar seu repertório de argumentos. Nessa técnica. para designar os tipos de argumentos mais freqüentemente usados. Aristóteles chama topos. os esquemas argumentativos eram associados a posições num diagrama espacial. seu genus. portanto. quais erros são facil- mente cometidos em uma exposição e. e sim. Ark. diz respeito sempre a uma relação de classes inteiras de conceitos. 1957). London. The Art of Memory. Teodoro Cabral. Frances Yates. que estão longe de terem sido completadas. donde o nome Tópica. Literatura Européia e Idade Média Latina. . O imenso repertório de esquemas argumentativos e de figuras de linguagem co colecionado pelos retóricos antigos veio a constituir a base permanente da literatura Ocidental (v. A isto acrescenta algumas regras gerais sobre a discussão. O topos não é algo puramente material e não se refere a um objeto ou a um conceito determinado. 1966. a retórica os argumentos e também as figuras de linguagem.168 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER uma de tais regras ou de cada uma das relações das classes de conceitos entre si e assinala 382 destes topoi. (V. Ernest-Robert Curtius. trad. os “lugares” da argumentação. como se fossem objetos. INL. que podem ser a reunião de inumeráveis con- edifício qualquer.) A dialética inventariava só os ar- gumentos. Rio. em cujos vários pontos se distribuíam. . pois esta se ocupa com o conteúdo dos conceitos.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 169 ceitos. ainda que não tão puramente formal como na lógica. classes subordinadas. as quais têm lugaraparecem em toda discussão. no en- tanto. indica. como o conteúdo do conceito A deve referir-se ao do conceito B. 63 Diferença capital entre a dialética de Aristóteles e a erística de Schopenhauer. ou como seu proprium (caráter distintivo). que entra não só na questão da matéria como até mesmo na das circunstâncias psicológicas fortuitas em que se trava a discussão. estabelecida assim que estejam relacionados entre si sob uma das quatro acepções acima mencionadas. de tal modo que este possa ser apresentado como seu genus. em certa medida. E essas quatro acepções têm. isto é. formal63. por sua vez. mas de uma maneira nitidamente formal. por exemplo. O tra- tamento aqui ainda é. insistimos que o adversário as respeite. A maior parte das regras destas relações.. ou segundo as rubri- cas. e. E é em torno dessa relação que toda a discussão vai girar. É mais fácil observar tais regras. ou sua definição. de oposto (α ν τ ι κ ε ι µ ε ν ο ν ). no caso particular. subordinadas a estas. de posse e privação. Por isto. etc. do mesmo modo como ose faz na lógica. do que recordar-se do topos abstrato cor- respondente. que Aristóteles designa precisamente como to- pos. ou perceber que foram transgredidas. portanto. de causa e efeito. são aquelas que enconas que encontram-se na própria natureza das relações con- ceituais. a utilidade pratica deste .170 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ou como seu accidens. Cada um de nós é consciente destas relações. crescer. caminhar. é preciso que a este per tença alpertença alguma espécie desse genus. mas sim para o julgamento do valor dos argumentos. que a alma tem movimento. Mas. mesmo sem ser capaz de enunciar sua definição em linguagem abstrata. caso contrário. De fato. o co- nhecimento explícito das regras da dialética é um instrumento poderoso. Exemplo: “Se se afirma o genus de uma coisa. a mente reconhece instintivamente os esquemas argumentativos. Ela diz coisas quase óbvias que se entendem por si e cuja consideração é quase adivi- nhada por uma mente sã. haverá de ser- lhe própria uma determinada de espécie de movimento: voar. Quando se diz. a afirmação é falsa.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 171 dialética não é grande64. por exemplo. que é seu verdadeiro intuito. 64 A utilidade da dialética aristotélica não é grande para fins práticos de discussão. para avaliar os argumentos de maneira científica e refletida. . na hora da discussão. Por conse- guinte. ela não está dotada de movimento. a falácia que o adversário comete ao predicar um gênero sem indicar ou subentender uma espécie. conhecida ou conhecível. na prática. não só neste ou naquele caso em particular. ~ Novamente. é minhoca.65 Se isto não acontece. sem a intermediação da espécie: um animal não pode ser animal tout court. mas em todos os casos idênticos. e sim para fundamentar teoretica- mente a impugnação desse predicado. a inteligência não precisa conhecer explici- tamente esta regra para reconhecer. não corresponde 65 Dito de outro modo: em nenhum ser o gê- nero pode se manifestar diretamente.172 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER diminuir. etc. não pertence tampouco a nenhum genus: este é o toa que não corresponde nenhuma species. A erística de Schopenhauer. não serve para a arbitragem. se serve para a discussão. . independen- temente das circunstâncias concretas do discurso. mas sim animal de alguma espécie determinada ou determinável: é boi. e não simplesmente “animal”. tem um sentido exclusivamente prático e. àquilo que não pertence nenhuma species. Mas a regra não é indicada para esse fim. é gato. em contrapartida. pois onde não existe genus. o locus 215 diz: “Em primeiro lugar. não falou absoluta- mente nada. não pertence tampouco a nenhumão lhe corresponde o gênero.” Este topos vale para afirmar ou para refutar. se nada pertence ao gênero. na realidade. não lhe corresponde tampouco a espécie. então tampouco falou mal. quando se diz que alguém falou de um outro: se provamos que ele. Sob a rubrica do singular.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 173 tampouco nenhum genus. para refutar: quando o adversário indica como sendo singular algo que só se pode perceber com os sentidos. Este é o topos. E. tudo o que é sensível é incerto na medida que procede do campo dos . É o nono topos. isto está mal indicado: de fato. ao inverso. Por exemplo. tampouco pode existir a espécie. proprium. ou quando. se o é. quando o Sol se põe. não sabemos se se ergue sobre a Terra. mas sua inaptidão para passar. isto não é correto. Assinala-se. a mesma proposição seria válida como indicação de um accidens: o que Aristóteles enfatiza aí não é a fragilidade do conhecimento sensível enquanto tal. do dado sensível à afirmação de um proprium. Em segundo lugar. que demanda um procedimento generalizante. por exemplo. abstrativo. .174 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER sentidos. sem um longo rodeio racional. pois. está presente de modo neces- sário. como sendo singularproprium da superfície que possua sempre uma cor. inacessível ao aparato sensório. 66 Inexata como indicação do proprium. para afirmar: o singular está correta proprium está corretamente indicado quando se sustenta uma coisa que não é conhecida pelos sentidos. já que está fora do alcance dos sentidos66. quando se declara como próprio do Sol ser o astro mais brilhante que se ergue sobre a Terra. . de modo mais que evidente está sempre presente e portanto é correta. não podendo por isto ser igualmente eficaz no campo erístico. como Schopenhauer. segundo se nota por este parágrafo. Schopenhauer dá por pressuposto que a dialética de Aristóteles tinha o mesmo objetivo da sua ~ delinear a técnica da discussão independentemente da veracidade dos argumentos considerados ~. feita de memória. esperaria que fizesse.” Com isto ofereci uma idéia da dialética de Aristóteles. que adorna 67 De novo. quando aquela tinha por meta primordial constituir a investigação da verdade. Quanto a mim. Os Tópicos de Cícero são uma imita-ção bastante superficial e pobre dos de Aristóteles. Cícero não tem um conceito preciso do que seja nem de que objetivo tenha um topos. tentei buscá-lo de outro modo.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 175 Esta é conotação sensível . Não me parece que ela tenha alcançado seu 67 objetivo . e assim vai ex ingenio enfileirando todo tipo de raciocínios. o que com certeza alcançaremos mas facilmente quando tivermos razão na questão.176 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ricamente com exemplos jurídicos. Mas a dialética. devemos deixar de nos preocupar com a reali- dade objetiva (que é a questão da lógica). enquanto tal. Deve-se dis- sociar claramente a descoberta . e encará-la simplesmente como a arte de estar sempre certovencer o de-bate. especialmente dos desleais. sobretudo. * Para se estabelecer uma dialética pura. como poderemos atacar o que o outro afirma sem cairmos em contradição e. deve simples- simplesmente ensinar como defender-nos dos ataques de todo tipo. sem sermos refutados. por isto mesmo. Um de seus piores escritos. e. a emprega. sem conceder explicitamente esse alto lugar à arte dialética. não é uma lógica das apa- . Isto é falso. serviria apenas para defender teses falsas69. é o objeto próprio da dialética. na prática. A segunda. é obra da faculdade de juízo. e mesmo de Aristóteles. da reflexão. que. da experiência e. 69 Contestação errônea da falsa definição. por isto.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 177 da verdade da arte de fazer com que a nossa proposição tenha valor deseja aceita como verdade. de fato. A dialética. porque nesse caso. Pois naquela primeira trata-se de uma questão com- pletamente distinta. não existe uma arte particular referente a ela68. ou atividade. πρα γ µ α τ ε ι α . Até mesmo quando 68 Estamos aqui a léguas de Platão. como tal. Esta foi definida como sendo a lógica das aparências. para o qual a dialética era a arte por excelência da pesquisa da verdade. em contrapartida. por exemplo. Por conseguinte. é possível ou im impossível. na dialética é preciso que deixemos de lado a verdade objetiva. mesmo ficcionalmente. distingue entre o falsamente verossímil e o verdadeiramente verossímil. seja de uma lógica do verossímil (retórica). tem regras estritas para distinguir entre o que. a retórica. Mas isto não quer dizer que a aparência enquanto tal não possa ser objeto de conhecimento verdadeiro. seja sob a forma de uma lógica do possível (poética). no esquema aristotélico. cabe antes à retórica e parcialmente à poética. Sem fazer do veros- símil o verdadeiro. e os mesmos são. A poética. ou que a consideremos como acidental. função que.178 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER temos razão necessitamos da dialética para defendê-la e precisamos conhecer os estratagemas desleais para combatê-los. . por seu lado. frequentemente neceeles são freqüentemente necessários para combatermos com as mesmas armas de nosso ad- versário. para então podermos nos concentrar unicamente em rências. sendo impossível a prática da dialética enquanto distinta da erística caso se faça total abstração do verdadeiro e do falso. ou então apenas parece raciocinar com base no admitido e razoável mas não o faz verdadeiramente” (Tóp. na dialética de Aristóteles. não se pode levar em consideração a verdade objetiva porque.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 179 como defender as nossas pró- prias afirmações e em como demolir as do adverpróprias afirmações e como demolir as do adversário. na maioria das vezes. 100b20-21). essa distinção deve em si mesma ser verdadeira. porque esta toma como premissas “opiniões que apenas parecem geralmente admitidas mas não o são verdadeiramente. . mas não o são. Schopenhauer atribui portanto à dialética em geral um preceito que é da sua em particular. nós mesmos não sabemos se 70 Preceito que. porque a dialética do Estagirita parte sempre de “opiniões geralmente admitidas” ou razoáveis. não sabemos onde ela está.70 E. ou que parecem razoáveis. ou argumentação contenciosa. distinguindo-se da erística. seria impossível de seguir.71 Com freqüência. Ora. nas regras desta arte.. quando for feito. De fato. “a 71 Na dialética de Aristóteles. mesmo porque toda argumentação parte de premissas. nenhuma delas é provadamente verdadeira. a dialética não tem uma tese que possa tomar de antemão como verdadeira (exceto hipoteticamente). na dialética.180 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER temos razão ou não. o confronto de duas teses só é possível justamente porque. . veritas est in puteo (ε ν β υ θ ω ε α λ η θ ε ι α . e estas têm de ser. considerada como um instrumento de investigação. muitas vezes acreditamos tê-la e nos enganamos. verdadeiramente razoáveis ou verdadeiramente admitidas pelo consenso. não trará apenas a vitória de um dos concorrentes. a rigor ~ da razo- abilidade maior de uma das opiniões em litígio. como na erística de Schopenhauer. e o jul- gamento. Por outro lado. não se faz propriamente abstração da veracidade. mas a prova efetiva ~ lógica. Mas isto não quer dizer que o dialético possa fazer total abstração da verdade e ater-se à forma da argumentação. de antemão. Neste caso. mas vai sair em busca do princípio que possa fundar a verdade de uma dentre duas ou mais teses em conflito. mas apenas uma suspensão provisória do julgamento. e com freqüência as duas partes o crêem. como aqui. bem como na de Platão. à medida que a contenda se desenrola. onde o único vencedor possível é a verdade. ela é a força da dialética. e não. Via de regra. isto é. ao falar da dialética como instrumento de investigação. dialética interiorizada. Mas a dialética também não deve buscar entrar nesta discussão. o predomínio da arte de disputar sobre a arte de investigar. na dialética de Aristóteles. a condição da investigação honesta da verdade. e é somente no exato final que se deve esclarecer e confirmar a verdade72. Mas é preciso lembrar que. Aristóteles tem em vista menos o confronto de dois debatedores do que a forma pura do raciocínio dialético. do mesmo modo como o professor de esgrima não pergunta 72 A abstinência do julgamento prévio é. ambas as partes começam a duvidar. na origem da contenda as duas partes crêem ter a verdade do seu lado.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 181 verdade está nas profundezas” ~ Demócrito). não sua limitação. é o sacrifício da opinião própria em favor da busca da verdade. diálogo do filósofo consigo mesmo. . Mas raras vezes isto pode saber-se de antemão73. ao contrário. isto é o que interessa. tinha de fato razão: dar e aparar golpes.o que raramente vezes sabe. E. O mesmo ocorre na dialética. que é uma esgrima intelectual. claramente concebida. em ambos os casos. O verdadeiro 73 Na dialética de Aristóteles também a investigação dialética não pode pressupor a veracidade de uma das teses em disputa (seria o mesmo que dar a disputa por . Só assim. na disputa que deu ori- gem ao duelo. e o que falso . Pois se lhe designarmos como finalidade a pura verdade obje- tiva. teríamos dado por pressuposto que já sabemos o que é objetivamente verda- deiro. caímos no campo da pura sofística. voltaremos ao campo da mera lógica.182 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER quem. Se. ela pode estabelecer-se como disciplina autônoma. lhe assinalamos como objetivo a afirmação de teses falsas. o mais exato é. Neste sentido. a dialética deverá ser simplesmente uma recapitulação e exposição. Embora o nome erística fosse o mais adequado. a distância é grande. re- duzida a um sistema e às regras daquela técnica inspirada pela natureza. aquele que assinalamos: uma esgrima intelectual para que se mantenha a razão na discussãocom o objetivo de vencer a controvérsia. E ela é de grande utilidade. o de dialética erística: Dialectica eristica. não tendo razão de ser o desprezo que se tem tido ultimamente para com ela. Esta última abstenção. . pois. torna impossível o uso da dialética como instrumento de busca da verdade. Mas entre abster-se de pressupor a veracidade da tese e abster-se de toda preocupação de veracidade. que Schopenhauer considera o traço característico da dialética. sem dúvida.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 183 conceito da dialética é. de resolvida antes de começá-la). quiséssemos nos ater à consideração da verdade objetiva e à tentativa de trazê- la à luz. Nos termos de Perelman. Portanto. . enquanto o da dialética socrática é o diálogo do homem consigo mesmo ou com um amigo em quem pode confiar. numa contenda.184 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER que faz uso a maior parte das pessoas quando percebem que. na dialética científica. mas. cujo objetivo não é senão estar sempre certoob- jetivo não é senão vencer o debate. seria também baastante contraprodustante contraproducente se. pois isto não sucede naquela dialética primitiva e natural. querem vencer o estar sempre 74 certosdebate . e o da dialética é o representante do auditório universal. A tarefa principal da 74 O modelo natural em que se inspira a erís- tica schopenhaueriana é o debate entre con- tendores. a verdade não está do seu lado. o interlocutor da erística é simplesmente um auditório em particular. não obstante. nada soube de nadadescobri que. para que assim. nesse sentido. não a verdade objetiva. em sua exposição. e não a verdade objetiva. deve assumir de maneira explícita. nos debates reais. em nossa apresentação que nosso objetivo último no debate é a mera mnutenção da razão. Embora tenha buscado ampla e longamente. como seu objetivo último. Por isto.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 185 dialética científica. É um campo ainda virgem. é expor e analisar os estratagemas da deslealdade no debater. Exatamente por isto. é que devemos assumir de maneira explícita aniquilá- las. tenha significado algum progresso. E para alcançar esse objetivo é preciso . possamos reconhecê-las e renegá-las. no sentido em que a entendemos. tão somente a vitória no debate. e assim estabelecer algumas regras para utilizá-los em vantagem própria.186 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER construir algo a partir da experiência. O que se segue deve ser considerado como uma primeira tentativa. descobrindo sua utilidade. ou para aniquilá-los quando o adversário os emprega. este ou aquele estratagema é utilizado por uma ou outra das partes. é preciso reduzir a seu princípio comum aqueles Stratagemata que se repetem sob diversas formas. nos debates que com fre- qüência surgem ao nosso redor. observando como. . há dois modos e dois métodos: 1) Os modos: (a) ad rem. nós demonstramos que ou a tese não está de acordo com a natureza das coisas. (b) ad hominem ou ex concessis. ou que não concorda com outras afirmações ou apartes do adversário. deve-se examinar o que é essencial em toda disscussão.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 187 A BASE DE TODA DIALÉTICA Em primeiro lugar. isto é. isto é indiferente) expôs uma tese. com a verdade subjetiva. relativa. o que real- mente acontece aínela. Para refutá- la. com a verdade objetiva. O adversário (ou nós mesmos. Este último caso não é senão uma passagem relativa e não . isto é. que não pode ser verdadeira76. ou admitimos os funda- 75 V. A refutação direta ataca a tese em seu fundamento. minorem ). mas demosntramos que a afirmação não resulta dele). mas à condição mínima de possibilidade. I ) Na refutação direta podemos atuar de duas maneiras. (b) indireta.qüências. Comentário Suplementar I. A direta mostra que a tese não é verda- deira. quando mostra que a tese parte de premissas intrinsecamente absurdas ~ faltando não somente à verdade dos fatos. A direta pode fazê-lo também. ou reconhecemos os funda- mentos.188 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER tem importância nenhuma para a verdade objetiva75. 2) Os métodos: (a) Refutação direta. a indireta em suas conse. 76 Não é só a demonstração indireta que alega a impossibilidade da tese. a indireta. . Ou demonstramos que os fundamentos de sua afirmação são falsos (nego majorem. São expressões correntes da dialética escolástica. isto é. com seus antecessores e seus colegas de faculdade: primeiro coloca-se uma questão. que nos debates universitários da Idade Média se declaravam expressamente antes de se enunciarem as refutações. do ponto de vista teológico e político. depois uma resposta e sua alternativa. 77 Nego majorem = “nego a premissa maior”. os argumentos de um lado e de outro. nego consequentiam = “nego a conseqüência”. ambas as respostas .TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 189 mentos. atacamos a conseqüência. mesmo quando as questões em disputa fossem bastante graves. para que o interlocutor soubesse de antemão por onde seu argumento seria impugnado ~ um requinte de cortesia e rigor que bem mostra o espírito de isenção e seriedade que imperava nessas discussões. as respostas a um lado e ao outro e enfim a conclusão. nego minorem = “nego a premissa menor”. depois a solução dada pelo autor. Deve-se observar que cada um dos grandes tratados de filosofia escolástica é construído na forma de uma discussão dialética do autor consigo mesmo. a forma da conclusão77. mas negamos que deles se deduz a afirmação (nego consequentiam). bem longe de toda prestidigitação erística. Em muitos casos. é procedimento estritamente lógico-formal. usaremos ou a apagoge78 ou a instância. arrebatar. curiosamente.7. 78 Apagoge (α π α γ ω γ η ) significa a ação de levar. Aristóteles (An. p. num sentido próximo ao entendido por Schopenhauer. 42).4) usa-a para designar a condução ao absurdo. o que bem mostra a impossibilidade de traçar um limite demasiado estrito entre os dois domínios (v. pr. ~ Com relação à negação da conseqüência. combinando-a com qualquer outra proposição aceita como verdadeira. .190 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER II) Na refutação indireta. Aristóteles em Nova Pers- pectiva. e que. arrastar. usado em dialética. conduzir. foi abandonado pelo ensino universitário mo- derno desde o momento em que este passou a se gabar de ter rompido com todo dogmatismo. a) Apagoge: nós tomamos sua tese como verdadeira e então demonstramos o que dela resultaria se. a adotássemos alternativas são concebidas pelo própróprio autor ~ uma prática dialética que constituía verdadeira vacina contra a crença cega nas próprias opiniões. 1. ( Se com isto o adversário é diretamente levado a contradizer uma verdade indubitável. ) 79 Exemplo clássico. embora de premissas falsas nem sempre se deduzam conclusões fal- sas79. nós então conseguimos conduzi-lo ad absurdum. pois proposições verdadeiras procedem tão-somente de pre- missas verdadeiras. a proposição também era falsa.” .TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 191 como premissa para uma de- dução com a qual se chega a uma conclusão obviamente falsa. Sócrates é homem. Por conseguinte. seja por ela contradizer a natureza das coisas ou por se opor a outras afirmações do próprio adversário. logo. Sócrates é uma pedra. Assim. o silogismo: “Todo ho- mem é uma pedra. em Hipias maior e outros textos). a proposição se revela falsa ad rem ou ad hominem (Sócrates. Este é o suporte fundamental. 80 Εν ο τ α σ ι ς (enotasis) = “oposição”. “unidade”.192 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER b) A instância. temos. “exemplo do contrário”. Lalande encontrassinala-o em Anal. Se o orador diz: “No Brasil os pretos são pobres”. Refutação da proposição universal mediante indicação direta dos casos particulares compreendidos em seu enunciado aos quais ela não pode se aplicar. sem especificar se se refere a todos. no sentido de exemplum in contrarium. a própria proposição tem que tese mesma não pode deixar de ser falsa81. exemplum in contrarium. Suponho que derive de ε ν ο τ ε ς . 69a37. a muitos ou à maioria deles. evidentemente. 80 ενο τ α σ ι ς . . citar como exemplum in contrarium o caso de um ou dois pretos ricos não prova a falsidade da tese. Por- tanto. mas apenas a sua relatividade. Não encontro o termo nem em Bailly nem no Index aristotelicus de Bonitz. 81 Isto depende. o esqueleto de toda discussão. A tradução por instantia consagrou-se nas versões medievais. Pr. II 26. do grau de generalidade da tese. ou ar- gumentação em geral. Na realidade. É por isto que exponho os estratagemas sem preocupar-me ecom saber se têm razão objetivamente ou não. só se chegando a descobrir por meio da contenda. com fundamentos autênticos ou não e. Mas isto pode acontecer realmente ou só em aparência. em toda discussão. seguem-se debates longos e obstinados. E não podemos tampouco se- parar o aparente do ver- dadeiro. é necessário que os combatentn- . aí sua osteo portanto aí sua osteologia. pois isto é exatamente o que os com- batentes nunca sabem de antemão. já que isto não se pode saber com certeza. como não é fácil estabelecer neste ponto algo de seseguro.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 193 portanto. é basicamente a isto que se reduz todo discutir. Além disto. 194 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER tendores estejam de acordo em alguma coisa para que se queira tomar como ponto de partida a questão que se segue: contra neganque se toma como ponto de partida para resolver a questão de que se trata: contra negantem principia non est disputandum (não se deve discutir contra quem negue os princípios). . a própria afirmação ao sentido mais estrito e ao limite mais estreito possíveis. Pois quanto mais geral uma afirmação se torna. Restringir. O antídoto é a exposição precisa dos puncti (os pontos que se debatem ou status . tanto mais ataques se podem dirigir a ela. in- terpretá-la do modo mais geral possível. em con- trapartida.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 195 [ESTRATAGEMAS DIALÉTICOS] 1 [Ampliação indevida] Ampliação. tomá-la no sentido mais amplo possível e exagerá- la. Levar a afirmação do adversário para além de seus limites naturais. a maneira de apresentar a controvérsia)82.196 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER controversiae. Neste caso o uso da generalização é quase obrigatório. incorporando-se à jurisprudência. como por exemplo no caso de uma decisão judicial que. pode-se inferir com razoável grau de certeza o nível de generalização (portanto de ampliação) legítima que admite logicamente (objetivamente) e psicologicamente (subjetivamente. servirá de referência para o julgamento de casos similares. atém-se ao emprego capcioso. 82 Do contexto da argumentação do adversá- rio. é somente um caso particular da ampliação. para o interlocutor como indivíduo concreto no momento do debate). Schopenhauer. A ampliação exagerada. Eu disse: “Os ingleses são a primeira nação no gênero dramático. isto é. Exemplo 1. por seu sentido. que Schopenhauer menciona. levaria a conseqüências absurdas. pede ser generalizada. se generalizada. o antídoto da argumentação casuística: mostramos que a norma adotada para um caso especial. A ampliação é. .” O ad- versário quis tentar uma instância e rebateu: “Todo mundo sabe que na música e. por sua vez. Mas este recurso só é legítimo se a norma. naturalmente. se a expres- são utilizada se prestar a isso. a ópera e a música. para assim abater- me com segurança83.” Repliquei recordando que “a música não está compreendida no gênero dramático. Inversamente. coisa que ele sabia perfeitamente. portanto. na ópera. podemos salvar nossa primeira afirmação restringindo-a mais ainda do que era nossa primeira intenção.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 197 por conseguinte. esta última leva o argumento para fora do gênero compreendido no debate. Exemplo 2. eles nunca foram importan- tes. A diz: “A paz de 1814 restituiu a independência a todas as cidades hanseáticas 83 O exemplo mostra bem a diferença entre a ampliação legítima e a ilegítima. pretendendo generalizar minha afirmação de modo que compreendesse todas as representações teatrais e. este corresponde unicamente à tragédia e à comédia”. . 198 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER alemãs. isto é.”84 Este estratagema encontra- se em Aristóteles. Tópicos. I. 203) despoja os pólipos de quaisquer sensações. cap. Lamarck (Philosophie zoologique. A salva-se assim: “Eu disse todas as cidades hanseáticas alemãs. Exemplo 3. p. seria preciso saber se vinha usando o conceito no sentido amplo ou restrito no discurso já decorrido ou em ar- gumentações anteriores. Danzig é uma cidade hanseática polonesa. Danzig perdeu a independência que Napoleão lhe havia concedido. 11. pois 84 Danzig (aliás cidade natal de Schopenhauer) pertencia à Polônia. . vol. Para averiguar se nisto foi honesto ou desonesto. restringiu a generalidade do con conceito. 12. com aquela paz. ante a objeção. Livro VIII. A prevaleceu-se do fato de que. passando a ser alemã em 1793. ao apresentar seu primeiro argumento. não fixara precisa- mente o nível de generalidade do conceito de “cidade hanseática alemã”. que.” B replica com a instancia in contrarium. e agarram suas presas. supõe-se que neles a massa nervosa esteja dispersa uniformemente pela massa de todo o seu corpo e. esteja fundida nela.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 199 elesafirma que os pólipos ca- recem de toda sensibilidade e estão desprovidos de nervos. já que seguem a luz quando se movem. de vontade e de pensamento. com certa técnica. de alguma maneira. Por isto. é certo que eles tem alêm alguma percepção. ele então argumenta dialeticamente: “Então todas as partes dos corpos dos pólipos deveriam ser capazes ter todos os tipos de sensações e também de movimento. Entretanto. neste caso o pólipo teria em cada ponto de . Como isto derruba a hipótese de Lamarck. de ramo em ramo. pois eles têm evidentemente percepções. sem possuir órgãos sensitivos específicos. julgar. etc. pois cada uma de suas mi- núsculas partículas teria a capacidade que o homem só tem em conjunto. o mais imperfeito de todos os seres. e. está convencido de que não tem razão.. cheirar. e deste modo este mesmo pólipo estaria em um nível superior ao do homem. por fim. concluir: cada partícula de seu corpo seria um animal perfeito. no ín- timo. aàs plantas. Ademais. que também são seres vivos. ouvir. Pois apenas . degustar. no ínnciando que. não haveria nenhuma razão para que aquilo que se afirma do pólipo não abrangesse também ase estendesse à mônada.” Mediante o uso de tais estratagemas dialéticos. um escritor se trai. além de pensar. denuciando que. etc. e cada um destes pontos poderia enxergar.200 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER seu corpo todos os órgãos do animal mais perfeito. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 201 por ter sido dito que: “Todo o seu corpo tem sensibilidade para a luz e. ele infere que seu corpo inteiro pensa85. 2 [Homonímia sutil] A homonímia é usada para estender a afirmação apresentada também àquilo queUsar a homonímia para tornar a afirmação apresentada extensiva também àquilo que. e assimtrata. Lamarck ampliou a objeção para além do gênero compreendido nela: de “percepção da luz” pulou para “conheci- mento”. depois refutar com 85 Isto é. para depois refutar veementemente esta última afirmação. fora a identidade de nome. além da identidade do nome. portanto. . pouco ou nada tem em comum com a coisa de que se fala. é de natureza nervosa”. 13). cap. um corpo não é agudo ou alto no sentido em que o é um som. Este estratagema pode ser considerado idêntico ao sofisma ex homonymia. Omnes lumen potest extingui. ora para os sons . se evidente. Intellectus est lumen. Mas o sofisma da homonímia. Tópicos. são sinônimos. Honesto. . Livro I. 86 Isto é. Homonyma são dois conceitos designados pela mesma palavra (veja-se Aristóteles. NOTA: Synonyma são duas palavras que designam o mesmo conceito. não enganará seriamente.são homôni~ são homônimos86. alto são termos usados ora para os corpos.202 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ênfase esta afirmação e dar a impressão de ter refutado a primeira. sincero. Baixo. agudo. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 203 Intellectus potest extingui. particularmente quando os conceitos designados pela mesma expressão são afins e se fundem um com o outro. É preciso. portanto. ir buscá-los na própria experiência con- creta. (Os casos intencionalmente inventados não são suficientemente sutis para serem enganadores. O intelecto é luz.]apagar-se. Aqui observamos desde logo que há quatro termos: lumen em sentido literal e lumen em sentido figurado. Seria excelente se pudéssemos dar a cada um dos estratagemas um nome con- ciso e adequado. O intelecto pode ser apagado. Exemplo 1. por meio dos . [Toda luz pode ser apagadaapagar-se. Mas casos mais sutis podem levar a um engano. dava um arremedo de credibilidade à sua acusação. num acesso de ira estúpida que. assim que os casos acontecessem87. . observa-se freqüentemente este estrata- gema.” 87 Os nomes atribuídos aos estratagemas. 88 Se o sofisma ex homonymia citado passava do sentido literal ao figurado. nesta edição brasileira.204 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER quais se poderia rejeitar imediatamente qualquer es- tratagema. por exemplo.” B. Nas polêmicas da imprensa cultural brasileira. retroativamente. A ira.) A. mas é difícil distinguir. são de minha responsabilidade. aí como em muitos outros casos. a estupidez e a malícia). aqui passa-se do figurado ao literal.: “Ah! De mistérios nem quero saber88. faz perder o senso das sutilezas da linguagem (parece ter sido por isso que alguns intelectuais criticados em O Imbecil Coletivo se sentiram qualificados pessoalmente de imbecis. usado às vezes menos por esperteza do que por legítima incapacidade de apreender o sentido figurado.: “Você ainda não está iniciado nos mistérios da filosofia de Kant. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 205 Exemplo 2. segundo o qual um homem se torna deslealvell o princípio da honra. segundo o qual um homem perde sua honra quando recebe uma ofensa. O adversário atacou diretamente o fundamento de minha afirmação: mostrou. . e sim apenas por aquilo que faça. de modo evidente. a menos que responda com outra ofensa maior ou a lave com sangue. pois a qualquer um de nós pode suceder qualquer coisa. Critiquei como incompreensível o princípio da lealdade. seja de si mesmo. seja do adversário. de cometer ilegalidades ou de ser negligente no seu negócio. Aleguei como fundamentmotivo para tal isso que a verdadeira honra não pode ser ofendida por algo que sealguém sofra. quando um comerciante é falsamente acusado de enganar. que. Como o ataque à primeira não pode ser tolerado sem reação. mas deve ser rechaçado com uma refutação pública.206 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER sofre um ataque em sua honra por algo que lhe acontece. graças à homonímia. pelo conceito de honra cavalheiresca. e que pode ser ferida pela calúnia. em 89 Em francês no texto. Em resumo. que deve ser rechaçada com uma injúria maior ou com um duelo. . pundonor. Em português. e pode recuperar a honra fa- zendo com que o caluniador seja castigado ou desminta a acusação. também cha- mada point d’honneur89. com o mesmo direito não deve ficar impune um ataque à última. também chamada bom nome. a honra civil. Aqui ele trocou. houve uma confusão de duas coisas essencialmente distintas. que é ofendida pela injúria. Títulos V-X) e também... Saraiva. Miguel Reale. Edmund Husserl. Manuel G. 1-5 e 10). 1991. Schopenhauer . sem que nenhum dos contendores se dê conta do que se passa. Sem nenhum intuito de enganar. Parte II. Morente y José Gaos. por paradoxal que pareça. Alianza. trad. Esta confusão é tão pouco de- pendente de intenções subjetivas dos contendores. Investigaciones Logicas. mas não a única. de fato. que pode afetar ciências inteiras durante séculos. metábasis eis allo genos. §§ 1-3 e caps. de mutatio controversiae.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 207 virtude da homonímia da pala- vra honra e com isto a homonímia dá. Filosofia do Direito. A homonímia deu origem a uma mutatio controversiae (uma mudança do ponto conflitivo em 90 discussão) . 14ª ed. a imprecisão na delimitação do tópico em discussão pode levar a uma µε τ α β α σ ι σ ε ι σ α λ λ ο γ ε ν ο σ . ~ A homonímia é uma das causas mais freqüentes. como aconteceu com a ciência do Direito (v. uma mudança de um gênero de objeto para outro. de qual tipo de honra ~ e portanto de ofensa ~ se tratava. 2ª ed. com a ciência mesma da Lógica (v. São Paulo. Madrid. especialmente Introdução. 90 O argumento inicial não esclarecia. κα τ α τ ι . . é branco. simpliciter. relative. é ao mesmo tempo negro e não negro. universalmente. Tomemos. Portanto. . que na realidade a ninguém enga- naria. Aristóteles dá o seguinte exemplo: o mouro é negro.208 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER 3 [Mudança de modo] A afirmação que foi apresentada em modo relativo. e assim refutada com base neste segundo con- texto. nos dentes. mas. um exemplo da experiência concreta.eé tomada como se tivesse sido apresentada em modo absoluto. ou pelo menos é compreendida em um sentido totalmente diferente. absolute. enfoca somente o caso de confusão proposital. α π λ ο σ . Este é um exemplo inventado. ao contrário. mas corrigi sua afirmação dizendo que não elogiara os quietistas en- quanto filósofos e escritores. Aceitei este fato. não por suas realizações teóricas. em muitas de suas passagens o autor colocava as palavras e o leitor tinha de colocar o sentido. Meu adversário não tentou refutar esta crítica ad rem. apenas sob um . Num colóquio da conversação sobre filosofia. portanto. mas se contentou por formular o ar- gumentum ad hominem: eu havia elogiado os quietistas e estes escreveram também muitas coisas sem sentido. reconheci que meu sistema protegdefendia e elogiava os quietistas. ao menos. Pouco depois surgiu uma conversa sobre Hegel e afirmei que grande parte dos seus escritos não tem sentido ou. e. por seus atos. mas so- mente enquanto pessoas.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 209 Exemplo 1. na realidade.210 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ponto de vista prático. de realizações teóri- cas. que da verdade de sua afirmação . em todos os exemplos apresentados. só que não está em contra- dição real. ele nega a consequência do ataque aüência do ataque à sua conclusão. Estes três primeiros estratagemas são afins. então. fala de uma coisa distinta daquela que se havia colocado. Quando nos deixamos levar por este estra- tagema. ao contrário. Têm em comum o fato de que o ad- versário. cometemos. De fato. tratava-se. uma ignoratio elenchi (ignorância do contra-argu- mento). Negamos que seja correta a conclusão. isto é. com a nossa tese. Deste modo. Mas no caso de Hegel. mas apenas aparente. o que o adversário diz é verdadeiro. o ataque cessou. Deste modo. pois. admita as premissas uma de cada vez e dispersas sem ordem na conversação. de uma refutação direta de sua refuta- ção. quando temos dúvidas de que o adversário as admitairá. 4 [Pré-silogismos] Se queremos chegar a uma certa conclusão. Como antídoto. sem percebê-lo. Não se admitem premissas verdadeiras quando se prevêem as consequüências que delas se seguem.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 211 se deduza a falsidade da nossa. per negationemum consequentiae. devemos evitar que esta seja prevista. do con- trário ele buscará toda sorte de argúcias. Trata-se. os dois seguintes meios: regras 4 e 5. ou. e atuar de modo que o adversário. apresentaremos . pode ser usada não só no debate face a face. Não é necessário dar 91 exemplos . à conclusão desejada pelo manipulador. Estas regras são apresentadas por Aristóteles nos Tópicos. fazendo pré- silogismos. . por indivíduos famosos. portanto. sem perceber. mas em todo processo de manipulação da opinião pública. Li- vro VIII. à questão seguindo um longo caminho. 91 Esta técnica. Cap. até que tenhamos reuinnido tudo aquilo de que precisamos. o público é levado. pelos espetáculos de teatro. aparentemente desconectadas entre si e sem qualquer intenção unitária subjacente. 1. procurando fazer com que admita as premissas de muitos desses pré-silo- gismos. Se a conclusão não for declarada explicitamente em parte alguma. ocultando assim nosso jogo. Aceitando premissas parciais espalhadas aqui e ali pela propaganda. Chega-se. sem ordem e confusamente.212 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER as premissas dessas premissas. das mais requintadas e com- plexas. A maioria das técnicas de manipulação da opinião em uso hoje em dia se constitui de adaptações e formidáveis ampliações de técnicas retórico-dialéticas. ao tirá-la. 1980. Nacional. ela terá ainda mais força persuasiva. para comprovar nossas proposições. Heitor Ferreira da Costa. New York. 65-109. que descrevo em A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. Snapping ~ America's Epidemic of Sudden Personality Changes. e ainda Flo Conway and Jim Siegelman. São Paulo. pp. 2ª ed. trad. porque a vítima. Delta Book. tb. IAL/Stella Caymmi. A Doutrinação. fazer antes uso de proposições falsas. Olivier Reboul.. passando mesmo a defendê-la como expressão pura de sua opinião espontânea. acreditará estar racioci- nando livremente e assumirá responsabilidade pela crença que lhe foi incutida.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 213 5 [Uso intencional de premissas falsas] Podemos também. se o adversário não quiser aceitar as verdadeiras. Rio. 1994. Este processo é usado sistematicamente pela “revolução cultural” gramsciana. 1979. V. . rev. Então adotaremos proposições que são falsas em si mesmas mas verdadeiras ad hominem. podemos tam também refutar teses falsas do adversário por meio de outra tese falsa que ele aceite como verdadeira92. rigorosamente. Pois o verdadeiro também pode seguir-se de premissas falsas. e argumentaremos ex concessis.214 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER seja porque não as reconhece como verdadeiras. Deste modo. seja porque percebe que delas a tese será deduzida como conseqüência imediata. mas não o falso de premissas verdadeiras. Se. tomadas em particular: apenas mostrará a incongruência global de sua posição. a veraci - dade da nossa tese nem a falsidade da tese do adversário. ele é militante de 92 Isto não provará. . por exemplo. a partir do modo de pensar do adversário. Desta incongruência pode-se deduzir a improbabilidade da uma sua tese em particular. Devemos adaptar-nos a ele e usar o seu modo de pensar. mas não a sua falsidade. Aristóteles. as máximas dessa seita. ao postular o que desejamos provar: 1) usando um nome distinto. 94 Conceitos conversíveis ou interconversíveis são aqueles que têm a mesma extensão ~ isto é. podemos adotar contra ele. como 93 principia . “virtude” em vez de “virgindade”. que se aplicam ao mesmo conjunto de objetos ~ embora não .. “boa reputação” em vez de “honra”. cap. Tópicos. 2) 93 Princípios. 6 [ Petição de princípio oculta] Ocultamos uma petitio principii. Livro VIII. etc. 9. ou ainda usando conceitos intercambiáveis: “animais de sangue vermelho” ao invésem vez de “vertebrados”94. por exemplo.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 215 alguma seita com a qual não estamos de acordo. isto é. a desonestidade ou erro não está na intenção dialética. sem inten- ção maldosa. a definição mesma do capitalismo. historicamente. ao surgimento do proletariado). ele não está conscientemente empregando um estratagema. do seu ponto de vista. . que toma por essência o que é acidente (o capitalista não pode ser essencialmente um explorador do proletariado pela simples razão de que o capitalismo é anterior.216 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER fazendo com que se aceite de um modo geral aquilo que é controvertido num caso particular. 3) se. são rigorosamente idênticos em extensão e até mesmo em compreensão. em contrapartida. Algumas escolas filosóficas podem empregar habitualmente esse estratagema. afirmamos a incerteza da medicina postulando a incerteza de todo saber hu- mano. tenham a mesma compreensão. Quando o marxista diz indiferentemente “capitalista” e “explorador da força de trabalho proletária”. por exemplo. do ponto de vista marxista. mas por força de certos postulados básicos que adotam. de vez que a exploração da força de trabalho proletária é. mas no conteúdo mesmo do postulado. mas usando conceitos que. embora suas respectivas definições se componham de notas diferentes. Neste caso. tra. 7 [Perguntas em desordem] Quando a disputa é conduzida de modo rigoroso e formal e queremos fazer com que nos entendam com perfeita clareza. Tópicos. então aquele que apresentou a afirmação e deve prová-la procede contra o . Livro VIII.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 217 duas coisas são conseqüência uma da outra. demonstra- remos uma postulando a outra. (Aristóteles. cap. 4) se precisamos demonstrar uma verdade geral e fazemos que se admitam todas as particulares (o contrário do nú- mero 2). 11.) Os Topica de Aristóteles contém boas regras para o exercício da dialética. 96 Ou seja: trata-se de uma inversão do mé- todo socrático. destinada a confundir o adversário e não a levar ambos os contendores a uma intuição da verdade. na reali- dade. expor rapidamente a sua pró- 95 Erotemático ~ do gr. 15. Este mémétodo erotemático95 era parti- cularmente usado pelos anti- gos (chama-se também método socrático)e é a ele que se referem o presente es- tratagema e alguns dos 96 seguintes . “interrogar” ~ é o método de perguntas e respostas. de Aristóteles. Em contrapartida. .218 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER adversário fazendo perguntas para concluir a verdade a partir das próprias concessões do adversário. e assim ocultar o que.) Fazer de uma só vez muitas perguntas pormenorizadas. cap. queremos que seja admitido. ε ρ ο µ α ι = “perguntar”. (Todos reelaborados livremente a partir do Liber de elenchis sophisticis. 8 [Encolerizar o adversário] 97 Este estratagema é prática usual e aceita como legítima no debate cultural brasileiro. tida ingenuamente como indício de domínio do assunto. Darcy Ribeiro era um mestre no uso deste estratagema. à menor obscuridade. se dá à loquacidade e particularmente à capacidade de falar depressa. pode mandar o argumentador se explicar melhor. conduzidos por um juiz que. fundada nas concessões de outra parte. Algumas de nossas mais brilhantes estrelas intelectuais devem a ele boa parte do seu sucesso. Ainda o são Maria da Conceição Tavares e José Celso Martinez Correia. pois os que compreendem com lentidão não conseguirão acompanhar a dis discussão e não irão dar-secussão e não se darão conta das eventuais falhas e lacunas da de- 97 monstração . Seu emprego é facilitado pela admiração que. Não por coincidência. o emprego dele é raro nos debates forenses.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 219 pria argumentação. em nosso meio. . para que. sobretudo. ele não seja capaz de ra- ciocinar corretamente e perceber sua própria vanta- gem. 9 [Perguntas em ordem alterada] Não fazem-se perguntas na ordem que é normalmente exigida pela conclusão a que queremos chegar. Podemos incitar sua cólera fazendo-lhe algo 98 francamente injusto .220 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER Provoca-se a cólera do adversário. mas sim empreende-se aí todo o tipo de mudançasFazer as perguntas numa ordem distinta da exigida pela conclusão que dela pretendemos. . ve- xando-o e. o adversário não 98 V. tratando-o com insolência. com mudanças de todo gênero. as- sim. Comentário Suplementar II. em sua fúria. como se . intencionalmnte. Este procedimento é análogo ao estratagema nú- mero 4. responde negativamente- nalmente. poderemos também servir- servir-nos de suas respostas para tirar várias conclusões. Neste caso. 10 [Pista falsa] Se percebemos que o adversário. até mesmo contraditórias. conforme as respostas o permitam.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 221 conseguirá saber aonde que- remos chegar e não poderá prevenir-se. então devemos perguntar o contrário da proposição que queremos usar. responde pela negativa às perguntas cuja resposta afirmativa poderia confirmar nossas proposições. pois trata-se de mas- carar o nosso modo de proceder. mas devemos introduzi-la desde logo como estandose estivesse estabelecida e aceita. já que recordarão as muitas pergun- tas feitas sobre os casos singulares.222 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER quiséssemos que fosse aprovada. ou então. não devemos perguntar-lhe se admite também a verdade geral que deriva desses casos. que não podem dei- . pois às vezes ele poderá crer que a admitiu. entãoem que esta se baseia. 11 [Salto indutivo] Se fazemos alguma indução e o adversário admite os casos particulares que se colocam a partir desta. de modo que não se perceba qual delas queremos afirmar. pelo menos. e o mesmo pode acontecer aos ouvintes. por as duas à escolha. é preciso escolher a metáfora100 que 99 É evidente que nem sempre o debatedor fará isso por desonestidade. afirma que esse Instituto exercia censura. Jornal do Brasil. Ora. 100 Ou uma determinada acepção do mesmo termo.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 223 xar de ter levado a este fimle- var à conclusão99. Um exemplo recente é dado pelo uso do termo “censura”. mas às vezes por lhe parecer realmente que o adversário deu a conclusão por aceita. apenas recusava financiá-la com dinheiro público (do qual as editoras de esquerda não . o INL não proibia a publicação desses livros. barrando a publicação de livros de autores hostis ao regime. o jornalista André Luiz Barros (“A censura abafada”. 14 de março de 1997). Comentando uma tese de Ricardo Oiticica sobre as atividades do Instituto Nacional do Livro durante o regime militar. 12 [Manipulação semântica] Quando o discurso é sobre um conceito geral que não tem um nome próprio e que deve ser designado figurativamente por uma metáfora. escolhidos por estes últimos. serviles e liberales101. mesmo quando se aplique a elas mais precisavam de maneira alguma. . na matéria. foi escolhido pelos católicos. O nome hereges. foram.224 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER mais favoreça a nossa tese. A palavra “censura”. Assim. o leitor. certamente. 101 Em espanhol no original ( N. Assim. acaba aceitando como coisa natural a idéia de que a simples recusa de apoio financeiro oficial a editores esquerdistas é odioso ato de censura. O nome protestantes foi escolhido por eles mesmos. pois na época havia um verda verdadeiro boom do livro esquerdista no Brasil). o único que seria admissível no caso. na Espanha os nomes com que são designados os dois partidos políticos. não vem entre aspas nem usada de modo a dar a entender um sentido figurado. por exemplo. distraído. Este princípio vale também para nomes de coisas. da T. em contrapartida. assim como o de evangélicos. ). a chamaremos de “subversão”. por exemplo. O que um chama 102 V. e deriva daí por um simda qual se deriva por um simples juízo analítico102. na denominação.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 225 literalmente. atuaremos de modo inverso se soformos nós que fizermos a proposta. entretanto. no segundo. “regime opressor”. porque esta é uma palavra hostil. O que uma pessoa totalmente sem intenção nem partidarismo chamaria de “culto” ou “doutrina pública da fé”. . “piedade”. Se. e um adversário “crendice”. Comentário Suplementar III. No fundo. quem deseje falar a favor chamaria “devoção”. “fanatismo”. o oposto chama-se “ordem cons- tituída”. trata-se de uma sutil petitio principii: aquilo que se quer dizer é introduzido já na palavra. o adversário propôs uma transformação. e. No primeiro destes casos. De todos os estratagemas. Um ora- dor delata com freqüência sua intenção pelos nomes que dá às coisas. equívoco / obscenidade. Fervor religioso / fana fanatismo. “os padres”. passo em falso ou caso amoroso / adultério.226 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER “manter uma pessoa em segurança” ou “colocá-la sob custódia”. “mediante influência e ligações” / “mediante suborno e nepotismo”. 13 [Alternativa forçada] . seu adversário chama “encarcerá-la”. “reco- nhecimento sincero” / “uma boa remuneração”. desequilíbrio econômico / bancarrota. este é o que se usa mais freqüentemente de maneira instintiva. o outro. Um diz: “os religiosos clero”. tenha de se decidir pela nossa tese que. em comparação à outra. . na verdade. devemos apresentar-lhe também a contrária e deixar que ele escolha. ressaltando essa oposição com estridência. mas isto não implica que esta autoridade seja primeira.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 227 Para que o adversário aceite uma tese. O dever de obedecer aos pais funda-se na premissa de que têm autoridade. da escolha entre o lícito e o ilícito). de modo que ele. Por exemplo: desejamos que ele admita que um homem tem de fazer tudo o que seu pai lhe ordene. perguntamos: “Deve-se obedecer ou desobedecer os pais em todas as coisas?”103 Ou 103 O truque aí consiste em tomar como se fosse primitiva e incondicionada uma escolha que. Para isso. é derivada de outra anterior e mais geral. e que portanto a escolha entre obedecê-los ou desobedecê- los seja independente de tudo o mais (por exemplo. se mostra muito mais provável. se não quiser ser contraditório. originária e fundamentum sui. É como o cinzento que. parece branco e. O adversário dirá: “muitos”.228 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ainda. parece negro. declaramos e pro- clamamos triunfalmente de- A opção sugerida pelo estratagema funda- se. . em última análise. depois de o adversário responder a muitas perguntas sem que as respostas fossem adequadas à conclusão que tínhamos em mente. espe- cífica. é tomada como idêntica à autoridade in genere. perguntamos se por freqüente se quer dizer muitos ou poucos casos. 14 [Falsa proclamação de vitória] Um golpe descarado é quando. colocado junto ao negro. se qualificamosele qualifica alguma coisa como “freqüente”. na troca do gênero pela espécie: a autoridade paterna. junto ao branco. e se tivermos boa dose de descaramento e uma bela voz. para que a aceite ou recuse. Comentários Suplementares IV. este golpe pode- derá funcionar104. uma proposição correta mas 104 V. Este estratagema corresponde à fallacia non causæ ut causæ (engano por ponde à fallacia non causae ut causae (tratar como prova o que não é prova).TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 229 monstrada a conclusão que pretendíamos. . Se o adversário for tímido ou tolo. ainda que de fato ela não se siga de suas respostas. 15 [Anulação do paradoxo] Se apresentamos uma proposição paradoxal e temos dificuldades para prová-la. proporemos ao adversário. . a recu- sar. susnstração. n. então já teremos dito alguma coisa de razoável e precisamos. Se ele. apagoge eis to adínaton. Se ele. trata-se. obviamente.. desviando a atenção do ouvinte para que não perceba o rumo desastroso que nossa argumentação ia tomando. suspei- tando de alguma coisa. prosseguir oderemos protelar a conclu- são106. como se dela quiséssemos construir a demosntração. Ou então aplicaremos o estratagema anterior e declararemos que nosso para- 105 A “condução ao absurdo”. reductio ad absurdum (em grego. conduzimo-lfaremos a 105 redução ad absurdum e triunfaremos. απα − γο γ η ε ι σ τ ο α δ υ ν α τ ο ν ). se ele a aceitar. 106 Nos dois casos. supra. 70. consiste em provar a absurdidade de uma tese mostrando que ela leva a pelo menos uma conseqüência notoriamente absurda. então.230 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER cuja exatidão não seja totalmente evidente. apenas de mudar de assunto. V. Se o adversário faz uma afirmação. ou com os princípios de uma escola ou seita que ele elogie ou aprove. ou com o comportamento de membros dessa seita (ainda que se trate de membros não . mas na expe- riência humana isto acontece. devemos procurar ver se elaerguntar-lhe se não está. Para isto requer-se grande dose de descaramento. 16 [Várias modalidades do argumentum ad hominem] Argumenta ad hominem ou ex concessis.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 231 doxo está demonstrado. de algum modo ~ ainda que seja só em aparência ~ em contradição com algo que anteriormente disse ou aceitou. e há quem pratique este estratagema de modo instin- tivo. a premissa de que nunca se deve permanecer numa cidade incômoda ~ como se a comodidade fosse a única razão para alguém estar numa cidade). logo gritamos: “Por que você não se enforca?” Ou. por exemplo. no ar- gumento sobre Berlim. 107 Neste parágrafo mesclam-se vários estratagemas (argumenta = plural de argumentum) que na verdade são distintos e de variados graus de probidade e improbidade. gritamos de imediato: “Por que você não vai embora na primeira diligência?”107 De uma maneira ou de outra sempre estamos sujeitos a nos deixar apanhar por semelhante tramóia. defende o suicídio. se afirma que Berlim é uma cidade incômoda.232 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER autênticos ou só aparentes). Se. . ou com a conduta do adver- sário mesmo. desde o simples e franco ar- gumentum ad hominem (perguntar ao apologista do suicídio por que não se suicida) até a sorrateira introdução de uma premissa não compartilhada necessari- amente pelo adversário (por exemplo. caso a questão admita algum tipo de dupla interpretação ou dois casos diferentes108. 108 Há aqui uma desonestidade psicológica. ou fingir que sabia desde sempre aquilo que. convém ter em mente que a desonestidade psicológica não . em certos casos. na qual não havíamos pensado anteriormente. Neste caso. com freqüência poderemos nos salvar mediante alguma dis- tinção sutil. deve declará-lo expressamente. que não importa necessariamente em falácia lógica: a distinção em que não havíamos pensado de início pode. acaba de descobrir. sem tentar costurar de improviso os pedaços de sua argumentação para lhes dar um simulacro de unidade. Nada impede que o debatedor descubra algo no curso mesmo do debate. Em todo caso.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 233 17 [Distinção de emergência] Se percebemos que o adversário nos acossa com uma prova contrária à nossa. na verdade. ser pertinente e até elucidadora. Em suma. do ponto de vista formal. sair dele ou desviá-lo e levá-lo para outra questão.234 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER 18 [Uso intencional da mutatio controversiæ] Se notamos que o adversário faz uso de uma argumentação com a qual ele nos iráameaça nos abater. mas devemos interromper o debate a tempo. não devemos consentir que prosseiga neste rumo e chegue até o fim. 19 [Fuga do específico para o geral] é incompatível com uma argumentação perfeitamente lógica. . a falácia aí terá de situar-se nas premissas ou na formulação inicial do pro- blema. trazer à baila uma mutatio controversiæ. vel.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 235 Se o adversário nos desafia a apresentar expressamente alguma objeção contra um ponto específico de sua afirmação. e então falr contra este. se temos de dizer por que uma determinada hipótese física não é crí. se tivermos que dizer por que não se devesolicita expressamente que apresentemos alguma objeção contra um ponto concreto de sua tese. e nós não encon- tramos nada de apropriado. Por exemplo. dando as mais variadas explicaçõeda incerteza geral . Por exemplo. falaremos acreditar em uma determinada hipótese física. mas não encon- tramos nada apropriado. devemos diretamente universalizar o tema. devemos enfocar o aspecto geral do tema e atacá-lo assim. falaremos sobre como é ilusório todo saber humano. tirar nós mesmos a conclusão diretamente a partir dessas premissas. 20 [Uso da premissa falsa previamente aceita pelo adversário] Se nós já tivermos interrogadojá interrogamos o adversário acerca de nossas premissas. com a argumentação ad absurdum.109 Isto é um uso da fallacia 109 Não confundir este estratagema. Devemos. nós a presumiremos como tendo sidmiremos como aceita e tiraremos a conclu- são. não devemos perguntar-lhe mais nada. ainda que esteja faltando uma ou outra premissa. ilustrando-a com toda sorte de exemplos. e ele as aceitou.236 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER do saber humano. Assim. em que o atacante finge aceitar a premissa do adversário no intuito de enganar a platéia. isto sim. onde a falsa premissa é aceita como hipótese apenas para se demonstrar a sua . Pois aqui não se trata da verdade. Se.Mas é ainda melhor se o combatemos e despachamos com um argumento igualmente sofístico e aparente. é porque este oferece duas vantagens: a brevidade e o maior efeito psicológico (para o qual a brevidade é conditio sine qua non). . podemos liquidá-lo ao desvendarmos seu caráter capcioso e ilusório. e dspachamos. 21 [Preferir o argumento sofístico] Quando nos vemos diante de um argumento adversário que é meramente aparente ou sofístico. mesmo podendo apresentar uma refu- 110 tação rigorosa. mas da vitória110. por exemplo. absurdidade.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 237 non causæ ut causæae ut causae. o debatedor prefere o argu- mento sofístico. Se. E é ainda melhor se o combatemos. E. se isto for possível. será mais rápido. De fato. utilizar um argu- mento ad hominem. nos recusaremos a fazê-lo. 111 Petitio principii (“petição de princípio”): figura de sofística que consiste em dar implicitamente por demonstrado aquilo . em lugar de uma longa explicação sobre a verdadeira natureza das coi- sas. é suficiente tirar sua força com um contra-argu- mento ad hominem (ex con- cessis). 22 [Falsa alegação de petitio principii] Se o adversário exigeir que admitamos algo do qual derivaria imediatamente o problema em discussão.238 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ele apresenta um argumentum ad hominem. acima de tudo. con- siderando tal exigência uma petitio principii111. o argumento do adversário não é efetivamente uma petitio principii.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 239 nosso adversário e os ouvintes facilmente enxergarão como sendo idêntica ao problema uma proposição que lhe seja muito afim. 23 [Impelir o adversário ao exagero] A contradição e a disputa impelem ao exagero dluta impelem a exagerar as afirmações. Por isso. Deste modo. mas ape- nas o parece. em si e em certo mesmo que se pretende demonstrar. e sim apenas a formulação do problema em debate. lhe subtrairemos seu melhor argumento. podemos provocar o adversário contradizendo-o e induzi-lo assim a exagerar para além do que é verdade uma afirmação que. pois dele não se deriva diretamente a conclusão desejada pelo adversário. . No caso. qualquer afirmação se mostra absurda. Em contrapartida. 112 Não confundir este procedimento com a reductio ad absurdum. Trata-se. . Já o estratagema 23 é de natureza pura- mente psicológica. mas se mostra que a generalização de sua tese leva a conse- qüências absurdas (subentendendo-se que aquilo que é falso em espécie deve sê-lo também in genere). e nada tem a ver com qualquer absurdidade intrínseca (lógica) contida na tese do adver- sário. uma vez refutado o exagero. em que não se atribui ao adversário a responsabilidade pela ampliação. Na reductio. trata-se na verdade de demonstrar que o adversário ou não está consciente do alcance de suas próprias opiniões ou está tentando propositadamente nos impingir um absurdo. quando o adversário nos contradisser. pode ser verdadeira. de uma mudança do gênero em discussão: transposta para além dos limites do gênero sobre o qual versa. e. quase por indução hipnótica (a programação neurolin neurolingüística tem meios muito eficazes para obter este resultado). na verdade. é como se tivéssemos refutado também a proposição origi- nal112.240 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER contexto. funciona por provocação. de uma µε τ α β α σ ι σ ε ι σ α λ λ ο γ ε ν ο σ . Da proposição do adversário tiram-se à força. Com freqüência o adversário buscará também estender nossa afirmação para além do que havíamos exposto. outras proposições que não estão ali contidas e que de fato não correspondem à sua opinião. e.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 241 deveremos prestar atenção para não exagerar ou estender nossa tese. através de falsas conseqüências e distorções dos conceitos. sendo mesm e que são. em contrapartida. é preciso detê-lo imediatamente e re- conduzi-lo aos limites de nossa afirmação com um: “Eu disse isto e nada mais. são absurdas ou . Neste caso.” 24 [Falsa reductio ad absurdum] A arte de criar conseqüências. 25 [Falsa instância] Aqui trata-se daRefere-se à apagoge baseada numa instân- cia. que estão em contradi- ção ou entre si. . procedem de suas afirmações.242 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER perigosas113. ou com verdades geralmente admiti- das. não se trata de deduzir conseqüências absurdas ocultamente presentes no argumento do adversário. apagoge. É um novo uso da fallacia non causæ ut causæae ut causae. em certos casos. mas de tirar desse argumento conseqüências que só aparentemente (mas não logica- mente) se derivem dele. A 113 Aqui. ter sobre o adversário o efeito de um choque elétrico e despertar a cólera do argumen- tador inconseqüente. novamente. Como agora parece que estatais propo- sições. exemplum in contrarium. isto equivalvalee a uma refutação indireta. Mas uma reductio ad absurdum praticada de modo correto e idôneo também pode. . exemplum in contrarium. . para que este seja 114 Epagoge ou inductio = “Indução”. basta que apresente um caso único para o qual o princípio não seja válido. fundado na premissa de que aquilo que se dá num grande número de caso pode ser tomado como regra geral para todos os casos possíveis.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 243 επα γ ο γ η inductio114. e Crít. 69a20 ss. 25. No presente estratagema. “silogismo em que a premissa maior é certa e a menor é apenas provável. ao contrário. necessita de um grande número de casos para assentar o princípio geral. Voc. ao contrário. logo C é provavelmente B. Por exemplo: A é B. prot. Α π α γ ο γ η = abdução. II. Na . é preciso apresentar apenas um único caso onde tal.. Esse é o sentido que o termo tem em Aris- tóteles (Anal. mas Charles S. Peirce generalizou o seu uso para todos os silogismos cuja conclusão seja so- mente verossímil. enótase. Téc. “exemplo do contrário”) como premissa de uma apagoge. C é provavelmente A. Schopenhauer refere-se ao uso de uma instância (ε ν ο τ α σ ι σ . a α π α γ ο γ η .).). a conclusão tem apenas uma probabilidade igual à da menor” (Lalande. É racio- cínio probabilístico. a proposição “todos os ruminantes têm chifres” é derrubada em única instância pelo camemolida pelo único exemplo do cavalo. mas para este caso aquela verdade não é válida. quando o adversário faz uso desob cujo conceito é preciso assumir algo com respeito ao qual aquela verdade não é válida. A instância é um caso de aplicação da verdade geral onde se submete alguma coisa a um conceito. é derrubada por inteiro. fica completamente demolida. Portanto. Mas neste raciocínio podem haver também enganos. EsteUm caso deste gênero chama-se instância. Por exemplo. ενο τ α σ ι σ .244 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER demolido. quando no debate o adversário . Mas neste raciocínio pode haver também enganos. instantia. exemplum in contrarium. e com isto. por conseguinte. por isto. E. Há pro- blemas cuja única solução autêntica é que o caso não é verdadeiro: por exemplo. conforme à verdade. na realidade. etc. instâncias.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 245 faz uso da instância. histórias de fantasmas. é preciso prestar atenção ao seguinte: 1) se o exemplo realmente é verdadeiroé preciso ter em conta o seguinte: 1) Se o exemplo é. 2) se o conceito realmente pertence àSe realmente entra no conceito da verdade apre- sentada: com freqüência isto acontece só é uma mera aparência. 3) Se está efetivamente em contradição com a verdade apresentada: isto muitas vezes também é . sendo preciso resolver isto por meio de uma nítida distinção. muitos milagres. 3) se também está realem aparência e é preciso esclarecê-lo com uma distinção precisa. Ela é um giro retórico. não é válida nem inválida. em si. Retorsio: “Exatamente porque é uma criança. 26 [Retorsio argumenti] Um golpe mais brilhante é a retorsio argumenti116. ou mais propriamente oratório. que o adversário quer usar a seu favor pode ser melho.246 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER uma meraisto é assim só em aparência115. cuja validade dependerá inteiramente do conteúdo dos argumentos envolvidos. devemos deixá-lo fazer o que quiser”. pode com mais razão ser utilizado contra ele. 116 Retorsão do argumento. Por exemplo. Retorsio: 115 V. Com este. o argumento. devemos tratá-la bem”. quando o argumento. . logicamente. A retorsio. Retorsio vem do verbo retorquere = “remeter de volta”. devemos castigá-l menino. Comentários Suplementares V. ele diz: “É apenas uma criança. devemos utilizá- lo assiduamente Se. devemos utilizar assiduamente esse argumento. não apenas porque é bom deixá-lo irado. e que o adversário. diante de um argumento.” 27 [Provocar a raiva] Se diante de um argumento o adversário. mas também porque se presumepresumimos que a esta altura tocamos o lado mais fraco de umseu raci- ocínio. deve-se castigá-lo para para que não continue com maus hábitos. a neste ponto. ficar zangado.” 27 [uque não persevere em seus maus hábitos. o adversário inesperadamente fica zangado. já não consegue tirar de nossas mãos o co- .TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 247 “Precisamente porque é um menino. inesperadamente. uma objeção inválida. formulamos um ad auditores. de algum modo. ele estará derrotado. ainda que o adversário seja um conhecedor do assunto. isto é. Aos olhos destes. Se não dispomos de nenhum argu- mentum ad rem e nem mesmo de um ad hominem.248 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER mando da situação. 28 [Argumento ad auditores] Em geral. As pessoas são . adota-se este estratagema quando uma pessoa culta discute com um auditório inculto. não o são os ouvintes. sob um aspecto ridículo. tanto mais se nossa objeção conseguir que sua afirmação apareça. domínio da situação. E. mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar. o estreitamento dos limites de tempo veio junto com o afrouxamento das exigências lógico-formais nos debates públicos. em todos os debates. O adversário diz: “Na formação da crosta rochosa primária. torna previsível que raramente a verdade terá chance de preva- lecer contra o argumentador desonesto. a massa que mais tarde se cristalizou para formar o granito e outro tipo de rochas era líquida por efeito 117 Mais difícil ainda é desenvolver uma refu- tação científica em tempo curto. . A adoção generalizada. mesmo universitários. dos limites de tempo próprios ao rádio e à televisão.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 249 inclinadas ao riso fácil. Mas não é fácil encon- trar um auditório interessado nisso117. e os que riem estão do lado daquele que fala. Não por coincidência. o adversário deverá entrar numa longa discussão e re- montar aos princípios da ciência ou a qualquer outro recurso. Para de- monstrar que a objeção é nula. O erro tem o privilégio de ser mais breve que a sua refutação. Exemplo. 250 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER do calor e, portanto, fundida. A temperatura tinha de ser por volta de 250º C. A massa cris- talizou-se sob a superfície marítima que a cobria”. Replicamos com o argumentum ad auditores, assinalando que, a tal temperatura, e até mesmo muito antes, aos 100º C, o mar teria estado fervendo e teria se evaporado no ar. Os ouvin- tes riem. Para vencer-nos, o adversário terá de demonstrar que o ponto de ebulição não depende só do grau de calor, mas também da pressão atmosférica, e esta, assim que apenas a metade da água dos mares tivesse se evaporado, aumentaria até o ponto em que nem mesmo aos 250º C poderia ocorrer a ebulição. Mas isto ele não conse- gue demonstrar porque, para ouvintes sem conhecimentos TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 251 de física, seria preciso expor todo um tratado118. 29 [Desvio] Se percebemos que vamos ser derrotados, recorremos a um desvio, isto é, começamos de repente a falar de algo totalmente diferente, como se fosse pertinente à questão e constituísse um argumento 118 Se contra negantem principia non est disputandum (“não se deve discutir com quem negue ou desconheça os princípios”), com igual razão se aplica este conselho aristotélico quando se trata de discutir face a um auditório inepto que atue como juiz da disputa. O debatedor, aí, enfrenta o mais temível dos desafios ~ tão temível que, entre os gêneros de discursos classificados pela retórica antiga, aquele que se dirige a um juiz inepto ou desconhecedor do assunto recebeu o título de genus admirabile, “gênero admirável”, por ser um dos mais difíceis feitos retóricos (v. Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, trad. R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1972). 252 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER contra o adversário. Isto se faz com alguma modéstia se tal desvio ainda se mantém no campo do thema quæstionis; e de modo bastante insolente, quando vai simplesmente contra o adversário e nada fala do tema119 . 119 Todas as respostas dos incomodados pelo livro O Imbecil Coletivo estão rigorosamente dentro dessa classificação, principalmente as dos srs. Gerd A. Bornheim (“não vou servir de degrau para uma pessoa dessas” — desviando a discussão de um tema de História para uma disputa de ascensão profissional) e Muniz Sodré (“ele não é nem homem” — desviando a discussão de um tema de religião comparada para uma aberrante disputa de macheza comparada). O desvio insolente é de uso generalizado entre alguns dos assim chamados inte- lectuais brasileiros mais destacados do mo- mento, o que já basta para mostrar de que tipo de gente se trata. Exemplo recente: o poeta Ferreira Gullar, acusado por Carlos Heitor Cony de cumplicidade no “patrulhamento” comunista a intelectuais (O Globo, 20 e 21 de março de 1997), não refutou as afirmações do romancista, preferindo recorrer ao expediente de insultá- lo com rotulações estereotipadas (“mccarthysta”, “mitômano”, “recalcado”) e TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 253 Exemplo. Elogiei o fato de na China não existir uma nobreza hereditária e de os cargos serem preenchidos tão somente na base de examina. Meu adversário afirmou que ter conhecimentos não prepara para exercer um cargo mais do que os privilégios de nasci- mento (que ele tinha em alta consideração). Mas isto foi contestado. Ele imediatamente fez um desvio, dizendo que, na China, cidadãos de todas as classes são punidos com cas- tigos corporais, e associou isto com beber muito chá, repro- vando nos chineses ambas as coisas. Quem se deixar levar por todas estas objeções acabará se desviando da discussão e deixará escapar uma vitória que já estava em suas mãos. exercícios de psicologia pejorativa (“ressentimento”, “inveja”, etc.), bem na linha do “queres, querias” mencionado por Álvaro Ribeiro. 254 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER O desvio insolente acontece quando abandona completamente o assunto da quaestio e começa mais ou menos assim: “Sim, pois bem, como você dizia há pouco, etc...” Isto pertence, certamente, ao caso da “Ofensa pessoal”, do qual falaremos no último estrata- gema. Considerada em sentido estrito, o desvio é o grau intermediário entre o argumentum ad personam, que iremos discutir, e o ar- gumentum ad hominem. Qualquer discussão entre pessoas comuns mostra como este estratagema é, por assim dizer, instintivo. Se um debatedor lança ao outro reprovações pessoais, este não responde com uma refutação, mas sim com reprovações pes- soais ao primeiro, deixando subsistir os lançados contra ele e, portanto, quase os ad- TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 255 mitindo. Atua como Cipião, que atacou os cartagineses, não na Itália, mas na África. Na guerra, às vezes um tal desvio pode ser válido. Numa dis- cussão, não é bom utilizá-lo, pois ele acolhe as reprovações anteriormente feitas, e porque o ouvinte escuta as piores coi- sas de ambas as partes. Na discussão, só se deve usá-lá faute de mieux (na falta de algo melhor). 30 [Argumentum ad verecundiam] O argumento ad verecundiam (dirigido ao sentimento de honra). Em vez de fundamentos, utilizamos autoridades, segundo os co- nhecimentos do adversário120. Ou do público, é claro. ~ V. Comentários 120 Suplementares VI. 256 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER Diz Sêneca: Unuscuiusque mavult credere quam judicare (“qualquer um prefere crer a julgar por si mesmo”)121. Portanto, o jogo nos é mais fácil quando temos de nosso lado uma autoridade respeitada pelo adversário. E para este haverá tanto mais autoridades válidas quanto O motivo é evidente. A mera crença, além 121 de ser menos trabalhosa, tem a vantagem de dar ao crente um sentimento de participação e solidariedade grupal, indispensável para manter de pé as personalidades frágeis. Bastaria aliás esta observação para dar por terra com o mito do “espírito libertário da juventude”, topos retórico infalível no discurso político. O jovem não é libertário nem inconformista: apenas adere ao sentimento da maioria esmagadora ~ seus companheiros de ge- ração ~, que exerce sobre ele uma pressão mais direta, na escola e nas ruas, do que a autoridade dos pais, confinada ao recinto doméstico. Daí que a juventude tenha sido sempre a principal massa de manobra para as ideologias totalitárias. Daí também que seja quase impossível, num ambiente dominado por jovens, um debate honesto e sem preconceitos. comporta- se ‘como um sujeito decente deve comportar-se’. 123 Uma boa definição de “homem comum” está em Ludwig von Mises. haverá para ele muito poucas autoridades ou quase nenhuma. 2ª ed. É precisamente esta inércia intelectual que caracteriza um homem . Quando muito.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 257 mais limitados sejam seus conhecimentos e suas capacidades. 1995. Um Tratado de Economia. e mesmo assim com desconfiança122.. Donald Stewart Jr. trad. Se estas capacidades são de primeira ordem. p. Em contrapartida. 49: “O homem comum não especula sobre os grandes problemas. ele respeitará a autoridade de pessoas competentes numa ciência.. Ampara-se na autoridade de outras pessoas. Comentários Suplementares VII. Rio. as pessoas comuns123 têm profundo 122 V. arte ou profissão que para ele sejam pouco conhecidas ou de todo ignoradas. A Ação Humana. como um cordeiro no rebanho. Instituto Liberal. Entretanto.” Essa definição destaca dois traços: a passividade intelectual e a sujeição das idéias à comodidade pessoal ou à busca do conforto psicológico. conseqüentemente. o homem comum efetivamente escolhe. de que falava Nietzsche. Quando se dá ao jovem a ilusão de que ao aderir às modas e crenças de sua geração ele está se liber- tando e se individualizando. e que aquele que ensina como um homem comum. Ignoram que quem faz de um assunto sua profissão não ama o assunto em si. Prefere adotar padrões tradicionais ou padrões adotados por outras pessoas porque está conven- cido de que esse procedimento é o mais adequado para atingir o seu próprio bem- estar. o seu modo de ação.258 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER respeito ante os especialistas de todo gênero. sempre que estiver convencido de que a mudança servirá melhor a seus interesses. o resultado que se obtém é incutir nele o mais perverso dos conformismos. O homem não se liberta do “espírito de rebanho”. apesar disso. . em vez de adverti-lo de que o faz por inércia e por busca de segurança psicológica. E está apto a mudar sua ideologia e. simplesmente por passar de um rebanho mais velho a um mais novo. e sim o lucro que ele lhe dá. em nosso meio. §§ 2 e 3. da Editora Abril. E são as autoridades que o adversário não entende 124 Exemplos de total falseamento da autori- dade citada encontra-se na seleção das obras da série Os Pensadores. tempo para dedicar-se ao ensino. se não encontramos nenhuma auto- ridade adequada. Companhia das Letras. No entanto. para o Vulgus há mui- tas autoridades que gozam de seu respeito. Vale a pena estudar este caso porque ele mostra a profunda desonestidade intelectual de pessoas tidas. portanto. 1992).TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 259 um assunto raras vezes o conhece a fundo. podemos apelar a uma aparentemente adequada124. ou citamos o que alguém disse com outro sentido ou num contexto dife- rente. bem como no ciclo de Ética realizado em 1990 pela Prefeitura de São Paulo e reproduzido na obra coletiva Ética (São Paulo. como autoridades incontes- tes em matéria de filosofia. . Explico isto meticulosamente em O Jardim das Aflições. em geral. porque àquele que o estuda a fundo não resta. como tinham de fazer os demais cidadãos. mas diretamente falsificá-las e inclusive citar algumas que são pura invenção. Geralmente o adversário não tem o livro à sua disposição nem tampouco sabe consultá-lo. Comentários Suplementares VIII. mas. Os ignorantes têm um respeito muito particular pelos floreios retóricos gregos e lati- nos125. soava como paver. Pode-se também. geralmente. Isto convenceu o 125 V. para os ouvintes de língua francesa. “pavi- mentar”). não só deformar o sentido dessas autoridades. caso necessário. para não pa- vimentar a rua em frente à sua casa. citou uma frase da Bíblia: paveant illi. . eu não me apavorarei”. ego non pavebo (“eles que se apavorem. O mais belo exemplo disto nos é dado pelo cura francês que.260 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER aquelas que. mais efeito obtêm. por seu lado. O uso corrente da palavra “preconceito” é de teor nitidamente preconceituoso. com Aristó- teles. . não é preconceito: é exemplo de superior neutralidade científica. a simples adesão a um novo preconceito faz um sujeito se sentir livre de preconceitos. ampliar desmesuradamente o sentido da palavra “preconceito” tornou-se até um método cor- rente de investigação e prova em História e ciências sociais: se um sujeito fez uma piada sobre judeus. só se conhece por alto. A suscetibilidade neurótica que espuma de raiva ante gracejos. Não esquecer que. é prova de que tem preconceito anti-semita.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 261 Conselho da comunidade. em geral. pois cria uma prevenção irracional contra uma opinião que. A acusação de “preconceito” é hoje um dos estratagemas de uso mais freqüente: ela dispensa o exame dos argumentos da parte contrária. que α µε ν π ο λ λ ο ι ς δ ο χ ε ι τ αυ τ α γ ε ε ι να ι φ α ν ε ν 126 conservadores). Também podemos usar os pre- conceitos gerais como 126 autoridade . nos dias que correm. Nos meios acadêmicos. A maior parte das pessoas pensa. fortemente influenciados pela mentalidade “politicamente correta”. 127 V. Comentários Suplementares IX. não existe nenhuma opinião. O Jardim das Aflições. Mas. 128 V. é mais fácil morrer do que pensar. pois basta-lhes observar a si mesmos para constatar como eles mesmos aceitam opiniões sem julgar. . por absurda que seja.262 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER (“as coisas que parecem justas a muitos. São ovelhas que vão atrás do carneiro-guia aonde quer que as leve. Para eles. cit. É estranho que a universalidade de uma opinião tenha para eles tanto peso. na realidade. que os homens não se lancem a torná-la sua. De fato. dizemos que o são”. não o vêem porque estão desprovidos de todo conheci- mento de si mesmos. tão logo se te- nha chegado a convencê-los de que é universalmente aceita127. loc. O exemplo vale tanto para suas opiniões quanto para sua conduta128. pela força do mero exemplo. deveriam estar em vigor todos os antigos erros que num tempo eram universalmente considerados verdade129. do contrário. com Platão: το ι ς π ο λ λ ο ι ς π ο λ λ α δ οκ ε ι (“os muitos têm muitas opiniões”). Não há como escapar à distinção entre a opinião dominante de uma época e o quod semper. e quem desejar livrar-se delas terá muito trabalho pela frente. Os que afirmam isto devem admitir: que a distância no tempo priva aquela universalidade de sua força probatória. Por 129 Se algumas verdades admitidas por todos atravessam os tempos e outras não. não é uma prova nem um indício de veracidade. A universalidade de uma opinião. isto é. quod ubique. estas últimas não são realmente admitidas por todos.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 263 Só os melhores dizem. se falamos a sério. mas só aparentemente e temporariamente. o Vulgus tem muitas lorotas na cabeça. quod . ou de uma época. a diversidade de opinião entre os que profes- sam o budismo. um típico procedimento erístico. seria preciso aceitar de novo o sistema ptolemaico ou. o cristianismo e o islamismo os poria em apuros. dentro dos limites de uma classe. Um esforço genial para extrair da diversidade de religiões um núcleo de princípios comuns encontra-se em Fritjof . mas. mas gerais. em todos os países protestantes.)130 ab omnibus credita est. (Segundo Bentham. segundo Aristóteles.. Tactique des assemblées legislatives. 100b23-25).264 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER exemplo. vol. por definição. por mais longa que seja. que este é difícil de conhecer. como o expõe em seguida o próprio Schopenhauer. 2) que a distância no espaço pro- duz o mesmo efeito. 130 Os dogmas das várias religiões não são. Tomá-las como universalmente admitidas seria. do contrário. Pode-se alegar. opiniões aceitas por todos. em todo caso. 79. por mais vasto. 2. jamais se confunde com a opinião de um grupo. mas só pelos partidários das respectivas religiões. o catolicismo. Não são universais. ou contencioso (Top. p. é claro. 1984.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 265 O que se chama opinião geral reduz-se. Perry. . 1945. Bedfont. utilmente complementado por Whitall N. para sermos precisos. De l’Unité Transcendante des Réligions. Paris. Le Seuil. prejulgando a competência destes. Perennial Books. outros aceitaram igual- mente essa opinião e nestes acreditaram por sua vez muitos outros a quem a pre- guiça mental impelia a crer de um golpe antes que tivessem o Schuon. A Treasury of Traditional Wisdom. num primeiro momento. Então descobriríamos que. e ficaríamos convencidos disto se pudés- semos ver a maneira como nasce tal opinião universalmente válida. Pates Manor. à opinião de duas ou três pessoas. foram dois ou três que pela primeira vez as assumiram e apresentaram ou afirmaram e que os outros foram tão benevolentes com eles que acreditaram que as haviam examinado a fundo. Comentários Suplementares X. os poucos que forem capazes de julgar por si 131 V. Os demais. . E. uma vez que a opinião tinha um bom número de vozes que a aceitavam. a concordância torna-se uma obrigação. De fato. Neste ponto. foram obrigados a admitir o que todo mundo já aceitava131.266 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER trabalho de examinar as coisas com rigor. Assim crescem dia após dia o número de tais seguidores preguiçosos e crédulos. para não passar por espíritos inquietos que se rebelam contra opiniões universalmente admitidas e por sabichões que quisessem ser mais espertos que o mundo inteiro. os que vieram depois supuseram que só podia ter tantos seguidores pelo peso concludente de seus argumentos. de agora em diante. E que outra coisa lhes resta senão tomá-las de outros em lugar de formá-las por conta própria? E. e só pode- rão falar aqueles que. mas todos querem ter opiniões. quanto pela sua audácia de querer julgar por si mesmo. ademais. dado que isto é o que sucede. são muito poucos os que podem pensar. na verdade. odeiam aquele que pensa de modo diferente. coisa que eles nunca poderão fazer. Pois estes. que pode valer a voz de centenas de milhões de . sendo por dentro conscientes disto. E estes. não tanto por terem opinião di- versa daquela que ele afirma. totalmente incapazes de ter uma opinião e juízo próprios. sejam o eco das opiniões alheias. Em suma. são os mais apaixonados e intransigentes defensores dessas opiniões.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 267 mesmos se calarão. o diz também ele. com o que. a arma comum que escolheram é a . quando se discute com pessoas comuns pode-se fazer uso da opinião geral como autoridade. no fim. nil nisi dicta vides. vol. depois de dar-lhe tantas voltas. por exemplo. ninguém mais vê aquilo que se disse. veremos que. (Segundo Bayle. 10.) Dico ego. quando duas cabeças comuns disputam entre si. se denique dixit et ille: Dictaque post toties. (“Eu digo. Em geral.”) Não obstante. enfim. I. tu dizes e. quando se constata que todos se copiaram uns aos outros. p. Pensées sus les Comètes. quanto um fato histórico que se encontre em cem historiadores.268 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER pessoas? Tanto. tu dicis. tudo se reduz a um só testemunho. numa situação determinada. que é firme. Mas a dialética tem um espaço de ação suficiente quando. a autoridade aplicável a um caso concreto. Pois contra a arma dos fundamentos. um Siegfried com chifres. isto é. na realidade alheios um .TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 269 autoridade: é com isto que eles combatem um ao outro. o caso concreto e a lei. Se uma cabeça mais refinada tem de enfrentar-se com al- guém deste tipo. à autoridade da lei. Nos tribunais disputa-se recorrendo exclusivamente a autoridades. O papel próprio da autoridade judicial é encontrar a lei. imerso na maré da incapacidade de pensar e julgar. escolhendo-a conforme os pontos fracos de seu adversário. ex hipothesi. este é. o melhor será lhe aconselhar que se resigne a utilizar também esta arma. quando começou a despertar interesse. pode-se declarar com alegação irônica de incompetência: “O que você diz ultrapassa minha débil capacidade de compreensão. são girados até que se possa considerar que têm uma relação entre si. ao aparecer a Crítica da Razão Pura e. pode estar certo. e também ao contrário. 31 [Incompetência irônica] Quando não se sabe opor nenhum fundamento aos do adversário.270 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ao outro. mas não posso compreendê-lo e re- nuncio a todo julgamento. entre os quais gozamos de consideração. sobre- tudo. disseram: .” Com isto insinuamos aos de- mais ouvintes. que se trata de coisa insensata. Muitos professores da velha escola eclética. ante os ouvintes. e .TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 271 “Não entendemos nada disso”. com sua grande penetração você não teria a menor dificuldade para compreendê-lo. isto corresponde ao estratagema anterior e é um modo especi- almente malicioso de se valer da própria autoridade em lugar de razões. gozamos de estima superior ao que têm pelo adversário. Na realidade. eles não a haviam compreendido. Mas quando alguns professores da nova es- cola lhes mostraram que tinham razão e que. um professor frente a um estu- dante. Este estratagema podemos utilizar tão somente quando estamos seguros de que. O contra-ataque é: “Permita-me. e só pode ser culpa da minha exposição”. Por exemplo. mudaram bruscamente de humor. e com isto pensavam que a haviam demolido. simples- mente. “É idealismo”.272 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER dar-lhe a coisa tão mastigada que ele nolens volens tenha que entendê-la e fique claro que ele. Por exemplo: “Isso é mani- queísmo”. “É pelagianismo”. em reali- dade não entendeu nada. no princípio. 32 [Rótulo odioso] Um modo rápido de eliminar ou.nos um “absurdo” e nós provamos uma “incompreensão”. Ambas as coisas. . com requintada gentileza. 132 V. Comentários Suplementares XI. “É arrianismo”. de tornar suspeita uma afirmação do ad- versário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada. Assim se retorce o argumento: ele queria insinuar. ao menos. ainda que a relação seja pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança132. “É racionalismo”. está compreendida nela e estamos dizendo: “Ah. mas na prática é falso. aceitam-se os fundamentos mas negam-se as conse- 133 Uma das sentenças prediletas do argumentador brasileiro em geral. isto nós já sabemos!”. fazemos duas suposições: 1) que aquela afirmação é efetivamente idêntica a essa categoria ou. Com isto. 33 [Negação da teoria na prática] “Isso pode ser verdade em teoria. e 2) que esta categoria já está de todo refutada e não pode conter ne- nhuma palavra verdadeira.”133 Com este sofisma. ao menos. “É naturalismo”.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 273 “É panteísmo”. “É misti- cismo”. “É brownia- nismo”. “É ateísmo”. “É espiritualismo”. . etc. refugiando- se numa proposição que não tem a ver com o tema e indo para qualquer outro lugar.274 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER qüências. E. Essa afirmação expressa algo que é impossível: o que é certo na teoria tem de sê-lo também na prática. se não o é. há uma falha na teoria: algo foi ignorado e não foi avaliado. 34 [Resposta ao meneio de esquiva] Se o adversário não dá uma informação ou resposta direta a uma questão ou a um argu- mento. por conseguinte. em contradição com a regra: a ratione ad rati- onatum valet consequentia (“da premissa à conseqüência a conclusão é obrigatória”). e se esquiva com uma contrapergunta ou uma resposta indireta. é falso também na teoria. isto . tornará supérfluos todos os demais: em vez de fornecer razões ao entendimento.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 275 é um sinal claro de que nós (às vezes sem sabê-lo) encon- tramos um ponto fraco. do mesmo modo que os ouvintes quando têm um interesse em comum com ele. mesmo quando não vejamos ainda em que consiste a debi- lidade que aí encontramos. mesmo . cor- responde a um mutismo rela- tivo. pois esta atitude. e o adversário. por sua vez. 35 [Persuasão pela vontade] O qual. são subitamente ganhos para a nossa opinião. se puder ser utilizado. Devemos portanto persistir no ponto e não deixar o adversário sair do lugar. influi-se com motivações na vontade. isto só funciona em circunstâncias muito particulares. desde o momento em que seja aceita. Comentários Suplementares XII. Por exemplo. 134 V. pesam mais umas migalhas de vontade que uma tonelada de compreensão e persuasão.276 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER que esta tenha sido tomada de empréstimo num manicômio. Pois na maior parte das vezes. e ele o abandonará. um eclesiástico defende um dogma religioso. faria um dano notável a seus próprios inte- resses e ele a deixará cair com a mesma rapidez com que soltaria um ferro candente que inadvertidamente tivesse agar- rado134. Naturalmente. . Fazemos o adversário perceber que sua opinião. Fazemo-lo observar que isso está indiretamente em contradição com um dogma fundamental de sua igreja. sindicato. mas é suficiente aludir ao fato de que vai contra os interesses co- muns da referida corporação. etc. Fazemo-lo observar que logo também os veículos serão arrastados por máquinas a vapor. Sucede assim quando os ouvintes. corporação.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 277 Um proprietário de terras afirma a excelência da mecânica na Inglaterra. com isso cairá o preço dos cavalos de seus numerosos estábulos. Em tais casos a reação mais freqüente é: Quam temere in nosmet legem sanci- mus iniquam (“Com que ra- pidez sancionamos uma lei que vai contra nós!”). mas não o adversário.. e todos os ouvintes . etc. pertencem a uma seita. A tese que ele sus- tenta pode ser justa. e veremos o que ele diz. clube. onde uma máquina a vapor realiza o trabalho de muitos homens. na maior parte das vezes. Na realidade. geralmente é chamada argumentum ab utili.” Este estra- tagema poderia ser designado como “colher a árvore pela raiz”.278 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER acharão os argumentos do adversário frouxos e mesqui- nhos. terá de abandonar o campo. . ainda que sejam excelentes. e os nossos justos e acertados. (citação completa): “O entendimento não é uma luz que arde sem óleo. etc. Intellectus luminis sicci non est. absurdo ao entendimento. mas é alimentado pela vontade e pelas paixões. ainda que sejam mera burla. envergo- nhado. os ouvintes geralmente acreditarão ter dado sua aprovação por pura convicção. e o adversário. o que nos desfavorece parece. Sim. O coro se pro- clamará ruidosamente a nosso favor. ] Se no fundo está convencido de sua própria debilidade. podemos im- pressioná-lo oferecendo. acredita que também deve haver nelas algo para pensar” (Goethe. ao escutar apenas palavras.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 279 36 [Discurso incompreensível] Desconcertar. se está habituado a escutar todo tipo de coisas que não compreende e faz como se as entendesse. um absurdo que soe . Wenn er nur Worte hört. aturdir o adversário com um caudal de palavras sem sentido.” [ “Normalmente o homem. Es müsse sich dabei doch auch was denken lassen. com ar grave. Isto ba- seia-se em que “Gewönlich glaubt der Mensch. Fausto). p. alguns filósofos adotaram este estra- tagema frente a todo o público alemão. ouvido e pensamento. face ao qual careça de vista. recorreremos a outro exemplo. . sem dúvida. antigo. Como se sabe.280 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER como algo douto e profundo. 34137. 137 V. Comentários Suplementares XIII. 136 Referência a Hegel. 37 [Tomar a prova pela tese] 135 V. tomado de Goldsmith. em tempos recentes. como se trata de exempla odiosa. com êxito bri- 136 lhantíssimo . e apre- sentá-lo como prova in- contestável de nossa própria tese135. Vicar of Wakefield. Comentários Suplementares XIV. Mas. 138 V. Que- rem defendê-la com uma lei que não é aplicável e aquela que é aplicável não lhes vem à mente. uma prova ruim. o argumento ontológico que é fácil refutar138. Esta é a forma pela qual bons advogados perdem uma causa boa. Por exemplo. . para defender-se. No fundo.) Se o adversário tem de fato razão e felizmente escolheu. isto reduz-se a apresentar um ar- gumentum ad hominem por um ad rem. se alguém emprega. para provar a existência de Deus. Se ao adversário ou aos ouvintes não lhes vem à mente uma prova melhor. e dare- mos isto como uma refutação da tese mesma. Comentários Suplementares XV.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 281 (O qual deveria ser um dos primeiros. vencemos. será fácil refutarmos essa prova. quando argumentamos ad personam.282 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER 38 [Último estratagema] Quando percebemos que o adversário é superior e que acabará por não nos dar razão. para distingui-lo do argumentum ad hominem. a sua pessoa. Em troca. Este se afasta do objetivo propriamente dito para dirigir-se àquilo que o adversário disse ou admitiu. atacando. Isto poderia chamar-se ar- gumentum ad personam. grosseiros. O uso das ofensas pessoais consiste em sair do objeto da discussão ( já que a partida está perdida) e passar ao contendor. insultuosos. então nos tornamos pessoalmente ofensivos. e a . de uma maneira ou de outra. o objeto é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário. é usada com freqüência. julga e pensa de maneira equivocada ~ e assim se dá em todo triunfo dialético ~ o amargura mais do que qualquer expressão rude e . Na realidade. ultrajante. com todo comedimento. maldosa. grosseira. Mas é preciso perguntar-nos que contra- ataque poderá empregar a parte contrária. à animalidade. o fato de demonstrar a alguém. por isto. se chegará a uma rixa. pois. pois todo mundo é capaz de aplicá-la e. a um duelo ou a um processo por injúria. por conse- guinte. Esta regra é muito popular. Seria um grande erro pensar que basta evitar toda alusão pessoal.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 283 objeção se torna insolente. se quiser pagar na mesma moeda. que não tem razão e que. É um apelo desde as força do espírito às do corpo. omnisque alacritas in eo sita est. Nada supera.284 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER ultrajante. quibus- cum conferens se. E esta comparação se dá de ma- neira efetiva e muito violenta . Por que Porque. I): Omnis animi voluptas. quod quis habeat. possit magnifice sentide de se ipso (“Todo prazer do espírito e todo contentamento consistem em termos alguém em comparação com o qual possamos ter alta estima de nós mesmos”).) Esta deleita- ção da vaidade provém princi- palmente da comparação de nós mesmos com os demais em todos os aspectos. (Daí procedem expres- sões como “a honra vale mais que a vida”. cap. para o homem. a satisfação de sua vaidade e nenhuma ferida dói mais do que aquela que a atinge. mas es- pecialmente no que se refere às capacidades intelectuais. etc. como diz Hobbes (De cive. mesmo quando não lhe fazem injustiça. portanto. sem prestar atenção às suas ofensas.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 285 nas controvérsias.”) Mas isto não é dado a todos. e daí que ele se refugie. (“Bate. portanto. quando o adversário passa aos ataques pessoais. sem que isto possa ser evitado com simples gentileza da nossa parte. mas escuta. Ter muito sangue frio pode ser de enorme utilidade nessas ocasiões. respon demos com calma que isso não tem nada a ver com o tema discutido e retornamos rapidamente a este e continuamos a demonstrar que objetivamente o adversário não tem razão. α κ ο υ σ ο ν δ ε . Daí o furor do derrotado. se. mais ou menos como diz Temístocles dirigindo-se a Euribíades: πα τ α ξ ο ν µ ε ν . O único contra-ataque seguro é. como último recurso. neste último estratagema. a que já . e que. quando a verdade está do outro lado139. não haverá necessidade de uma dialética no sentido schopenhaueriano.286 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER Aristóteles indicava no último capítulo dos Tópicos: não entrar em controvérsia com qualquer um que chegue. prestem com gosto o ouvido às razões. mesmo quando procedam da boca do adversário. enfim. . Disto segue- Mas é claro que. apreciem a verdade. e sim apenas no sentido aristotélico do termo: uma investigação a dois com o propósito de encontrar a verdade. se essas condições forem 139 atendidas. e sejam o bastante equitativos para su- portar que não se lhes dê razão. mas só com aqueles que conhecemos e dos quais sabemos que têm inteligência suficiente para não propor coisas absurdas que levem ao ridículo. para escutar e admitir tais fundamentos. e que têm suficiente talento para discutir à base de razões e não com bravatas. entre cem pessoas. como um roçar de cabeças que serve para cada um retificar os próprios pensamentos e também para adquirir novos pontos de vista. com freqüência. útil para os dois lados. deixemos que digam o que querem.” Em todo caso.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 287 se que. Aos demais. como fruto. a paz. não está au niveau. porque desipere est juris gentium (ser idiota é um dos direitos do homem) e pensemos no conselho de Vol- taire: La paix vaut encore mieux que la vérité (“A paz vale ainda mais que a verdade”). não capta tudo. Se um carece da primeira. a controvérsia é. Se carece da . e um provérbio árabe diz: “Da árvore do silêncio pende. há apenas uma com a qual valha a pena discutir. Mas os dois contendores devem ser similares em cultura e inteligência. 49 e n. quando preciso. mas. mencionada na p. o praeses (aquele que preside o debate) virá em sua ajuda. 23. à vilania. É a discussão escolástica pro forma. Disputatio pro gradu = debate para conquista de grau aca- dêmico. . pro 140 gradu . como se pode ver por este mesmo trabalho. não existe uma diferença essencial. 140 Disputa in colloquio privato seu familiari = Discussão em colóquio privado ou familiar. A dife- rença é tão só que. Entre a disputa in colloquio privato s. familiari e a disputatio solemnis. o rancor que este fato produz o instigará à deslealdade. como nas atuais “defesas de tese”. se requer que o res- pondens (aquele que res- ponde) deva sempre ter razão face a seu opponens (contendor) e. Disputatio solemnis = Debate solene. o rigor da disputa medieval já tinha sido abandonado havia tempos. etc. Toda essa terminologia escolástica ainda estava em uso no tempo de Schopenhauer. à astúcia.288 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ARTHUR SCHOPENHAUER segunda. neste última.. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 289 Ou também que. se argumenta de um modo mais oficial e os contendores revestem os argumentos de uma forma silogística rigorosa. . nesta última. sejam duas coisas muito distintas. refletir.ADENDO DE SCHOPENHAUER Lógica e dialética foram usados como sinônimos já pelos antigos. examinar. na República. δια λ ε κ τ ι κ η . embora λ ο γ ι − ζεσ θ α ι . Aristóteles emprega τ α δ ι α − . δια λ ε κ τ ι κ η π ρ α γ µ α τ ε ι α (função dialética). δια λ ε κ τ ι κ ο σ α ν η ε (homem dialético). dialogar. Os nomes dialética. e δ ι α λ ε γ ε σ θ α ι . foram usados em primeiro lugar (segundo conta Diógenes Laércio) por Platão. ele entende por dialética o uso correto da razão e o exercitar-se nela. calcular. no Sofista. E vemos que no Fedro. livro 7. Nele encontramos λ ο γ ι κ α σ δ υ σ ξ ε ρ ε ι α σ . De acordo com isto. um dos pioneiros da crítica histórica. Schopenhauer não indica o lugar das obras de Valla de onde obteve a referência. aquele aparece não só nos Tópicos (12. mas (segundo Lorenzo Valla141) havia adotado primeiro λο γ ι κ ε no mesmo sentido. argutias (dificuldades lógicas. que consta ser um livro bem posterior. dialektikê. logikê no sentido de “dialética” antecedeu ou não o de διαλ ε κ τ ι κ ε . 142 É difícil estabelecer se o uso do termo λο γ ι κ ε . 202a22). 141 Lorenzo Valla (1405-1457). 162b27). O que é certo é que Aristóteles jamais usou λο γ ι κ ε no sentido atual do termo . προ τ α σ ι ν λ ο γ ι κ η ν (premissa lógica). isto é. δια λ ε κ τ ι κ ε seria anterior 142 a λο γ ι κ ε . De fato. mas também na Física (3. sofismações). filólogo e humanista italiano.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 291 λεκ τ ι κ α neste sentido. απ ο − ρια ν (aporia λ ο γ ι κ η ν lógica). a ele parece esta últi. ou. 2. sive illam disputatricem dicere malimus (“Portanto. pois. com ajuda dessa ciência a que chamam dialética”). c.292 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER Cícero e Quintiliano empregam com o mesmo sentido geral dialética e lógica. Stoici enim judicandi vias diligenter per- secuti sunt. ea scientia. arte de disputar. Topica. quam dialecticem apellant (“Os estóicos estudaram com minú- cia os métodos do juízo. que ele designava sempre por “analítica”.”) Assim. . XII. parte da dialética. 2): Itaque haec pars dia- lecticae. Quintiliano (lib. veri et falsi quasi disceptatricem (“Inventou-se a dialética como quem decide do verdadeiro e do falso”). Cícero em Lúculo: Dialecticam inventam esse.ma expressão o equivalente de “lógica”. como preferimos designá- la. Cícero. se atém 144 ao uso kantiano do termo. nos últimos anos. tenham sido usados 143 Petrus Ramus = Pierre de la Ramée (1515-1572). No entanto. como “arte sofística de disputar”144. 1569). Não obstante.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 293 dialektike. desde tempos antigos até agora. num sentido pejorativo. filósofo e matemático. os dois termos tiveram em sua origem o mesmo significado e. seguidor de Kant. Este uso dos termos lógica e dialética como sinônimos se conservou na Idade Média e na época moderna até hoje. e por isto se preferiu a denominação “lógica” como menos comprometida. em tempos recentes o termo dialética foi empregado. Audomari Talaei praelecti- onibus illustrata. especialmente por Kant. É uma lástima que dialética e lógica. Schopenhauer. (Tudo isto. segundo Petri Rami143 Dialectica. voltaram a ser considerados sinônimos. . isto é. e a dialética (de 147 δια λ ε γ ε σ θ α ι . isto é. “palavra” e “razão”. 147 Dialegesthai. que são inseparáveis) como “a ciência das leis do raciocínio. por isto. Evidente- mente. de λο γ ο σ . da arte de proceder da razão”. “refletir”. “disputar”. o 145 Logizesthai. as leis do pensamento. a lógica tem um obje- tivo puramente a priori. 146 “calcular”. isto é. mas toda conver- sação é uma comunicação de fatos e opiniões. não posso livremente distinguir seu significado como desejaria e definir a lógica ( de λ ο − 145 γι ζ ε σ θ α ι . determinável sem intervenção de elementos empíricos. . será histórica ou deliberativa) como “a arte de debater” (entendendo esta palavra em sentido moderno). 146 Logos.294 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER como sinônimos. com as quais a lógica. como bem viu Aristóteles. não consegue chegar ao conceito da lógica pura. por mais que tente distin- guir radicalmente entre a lógica e a dialética. nada tem a ver. A lógica pura. quando um ser racional. Ora. lógica da descoberta. a quem nada desvia. segundo Husserl. Daí que a investigação não possa jamais proceder por pura lógica. em toda investigação científica. mas requeira uma mediação “psicológica”. em si mesma. em 148 Schopenhauer. Ora. só o conceito husserliano da lógica pura pode fundar essa distinção de maneira inequívoca. enquanto a lógica analítica é . logica inventionis. deixada a si mesma e não perturbada. e é rigorosamente alheia ao “pensamento” como ato concreto. ou seja. Daí que a separação pretendida por Schopenhauer permaneça antes como uma declaração de intenções. Esta é. totalmente desvencilhada de elementos psicológicos. 11). Cap. que precisamente se encontra na dialética.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 295 procedimento seguido pela razão (o λ ο γ ο σ ). como de demonstrou Husserl (Investigações Lógicas. trata- se justamente de passar da imanência do pensamento à objetividade como tal. A dialética. mas recai na noção psicologista das “leis do pensamento”. pensa por si mesmo148. trata de puras relações ideais entre conceitos. e é isto de fato o que acontece no processo de investigação. em diferentes níveis do ato noético. Schopenhauer fica sem uma mediação entre conhecer e desconhecer. 149 Ora. que pensam junta- mente. apenas mais rigorosos na primeira. entre verdade e possibilidade. menos na segunda. porque não são como dois re- lógios sincronizados. Como pura razão. trataria da comunicação entre dois seres racionais. deve- lógica da prova. mas não a de duas “maneiras de pensar” entre as quais se possa escolher no mesmo plano e em vista da obtenção de um mesmo tipo de conhecimentos. Por isto a distinção de Schopenhauer falha. prova da coisa já desco- berta. Lógica e dialética situam-se. e dos quais nascerá. totalmente alheia ao processo de descobrir. Daí também que a distinção de lógica e dialética seja a de duas formas do discurso. isto é uma luta intelec- tual149. de fato. nada impede que essa luta ocorra dentro de um só e mesmo indivíduo. de um lado. a razão pura do pensador solitário e de outro a razão impura . só lhe restando. Reduzindo a dialética a um confronto de dois sujeitos. e por isto mesmo não há escolha ou hierarquia de qualidade entre elas. uma dis- puta.296 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER contrapartida. só a posteriori. percepções e sentimentos também não estão “sincronizados como relógios”. A gnoseologia de Schopenhauer é. na sua negação radical da des- coberta como processo. no sentido do adágio de Sto. um ele- mento empírico150. por conseguinte. Tomás: Veritas filia temporis. pode existir dentro do indivíduo mesmo. 150 A desigualdade. mas só a oposição estática e eterna entre ambos. “a verdade é filha do tempo”. que é essencial à individualidade. e são. porém. ciência do pensamento.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 297 riam os dois indivíduos estar de acordo. cujas idéias. O teor trágico da metafísica de Schopenhauer deriva portanto diretamente de uma gnoseologia trágica. a dialética. profundamente a- histórica. na qual não existe passagem do erro à ver- dade. sobre a base de dois trapaceiros que procuram se enganar mutuamente. e o processo pelo qual ele pode tentar chegar a um acordo consigo mesmo é unicamente a dialética (interiorizada). em grande parte. A lógica. Suas divergências surgem da desigualdade. . poderia portanto ser construída puramente a priori. assim. mas que pressuponha que estes estão no pensamento do outro: dito de outra maneira. seu próprio pensamento para encontrar-lhe os erros. e aquilo que . se ao pensarem juntos. ao trocarem opiniões (excluídas as comunicações de tipo histórico). o homem. não examine. pela diversidade da individualidade. pre- tende ter razão. por natureza. A percebe que os pensamentos de B sobre o mesmo objeto difere dos seus. em primeiro lugar.298 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER do conhecimento empírico das perturbações a que está sujeito o puro pensar. e do conhecimento dos meios que empregam um contra o outro para que seu pensar individual se imponha como o pensa- mento puro e objetivo. quando pensam juntamente dois seres racionais. É ine- rente à natureza humana que. δια λ ε γεσ θ α ι . isto é. Seria. chamarei dialética erística. a doutrina do procedimento que é inato no homem para pensar que tem razão. . para evitar malentendidos. mas. portanto.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 299 desta condição humana se deriva é o que ensina a disciplina que eu desejaria denominar dialética. persuadir. V. cujo objetivo é το π ι θ α ν ο ν .300 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER ANOTAÇÕES DE SCHOPENHAUER 1. 28) pôs juntas a retórica e a dialética. 151 embora continue indispensável como fonte onde não haja outras mais seguras. não é . Aristóteles (segundo Diógenes Laércio. Os antigos empregam os termos lógica e dialética quase sempre como sinônimos. ∆ι − Não é preciso dizer que Diógenes Laércio. 2. cujo objetivo é a ver- dade151. e também a analítica e a filosofia. O termo erística seria somente uma palavra mais dura para designar a mesma coisa. Outro tanto fazem os modernos. 2º. e neste ponto a confusão que ele faz é flagrante. “verossímil”) é objetivo da retórica. em Vita Platonis). ε ξ ε ρ ω τ η σ ε οσ κ α ι α π ο κ ρ ι σ ε ω σ τ ω ν πρ ο σ δ ι α λ ε γοµ ε ν ω ν. assinala uma subida do nível de credibilidade em relação à mera verossimi- lhança. “persuasivo”. “provável”. a persuasão (π ε ι θ ο . Em Aristóteles. com que lida a dialética. 48. (“A dialética é uma arte da palavra com a qual refutamos ou afirmamos alguma coisa mediante perguntas e respostas dos interlocutores”) (Diógenes Laércio. nenhuma autoridade em matéria de interpretação aristotélica.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 301 αλ ε κ τ ι κ η δ ε ε σ τ ι τ ε χ νε λ ο γ ω ν . não da dialética: 1º. . o ε ν δ ο ξ ο ν . δ ι η σ α ν α σ κ ευα ζ ο µ ε ν τ ι η κ α τ α σ κ ενασ ο µ ε ν . III. caso contrário os princípios da analítica também seriam meramente persuasivos. donde π ι θ α ν ο σ . ela tem de possuir um valor cognoscitivo superior ao da mera persuasão. π ι θ α ν ο σ . se a dialética pode servir para buscar até mesmo os princípios em que se funda a analítica. E que é isto senão a arte de vencer o debate. probabilia (Top. de fato: 1) a lógica ou analítica como teoria ou método para obter verdadeiros silogismos. . I. e não apenas persuadir. . a arte de conseguir uma aparência da verdade sem preocupar-se com o fundo do tema. do razoável ao mais razoável. a dialética aristotélica tem por finalidade subir do provável ao mais provável.302 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER Aristóteles distingue. em todo caso não se dá por seguro que sejam falsos nem tampouco que sejam verdadeiros (em si e por si). 1 e 12)152 ~. 152 Precisamente: partindo dos probabilia. caps. os apodícticos. 2) a dialética. ou método para obter silogismos que passam por verdadeiros ou são aceitos como tais ~ ενδ ο ξ α . à margem de que no fundo do problema se tenha ou não razão? Isto é. e afinando-os por meio da confrontação. não sendo isto o importante. somente o parece. a matéria do silogismo. As três últimas categorias pertencem. e. a erística está abaixo do nível de credibilidade da dialética e mesmo da retórica. procura neutralizar a diferença que . finalmente. a erística. na realidade. de premissas que não são realmente prováveis nem admitidas como tal. Aristóteles divide. à dialética 154 erística .TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 303 Portanto. mas pa- rece correta. 100b22-25). mas que apenas o parecem aos olhos de um determinado público (Top. como dissemos no princípio. I. e depois em 3) erísticos (erística). Sendo assim. em 4) sofísticos (sofística). os silogismos em lógicos e dialéticos. pois todas se A diferença entre dialética e erística não é 153 só essa. não é verda- deira153. como acabamos de assinalar. nos quais a forma do silogismo é correta mas a tese mesma. nos quais a forma do silogismo é falsa. fundado em Diógenes Laércio. A dialética parte de premissas que são prováveis ou admitidas como tal. de fato. 154 Schopenhauer. Absorvidas na dialética. sem ocupar-se dessa objetividade e visando só a vencer o debate. . ao contrário. segundo Schopenhauer. do contrário.304 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER dirigem não à verdade obje- tiva. 3. achatadas no mesmo plano. para atacá-lo. Era o último livro da dialética155. O livro sobre os silogismos sofísticos foi publicado mais tarde e em separado. são absorvidas na erística. este pode. a sofística e a erística são partes ou complementos da dialética. em qualquer ocasião. tirar partido da debilidade do príncipe. desaparece a logica inventionis. se. sofística e dialética. as artes do pensamento falso podiam ser neutralizadas a serviço da logica inventionis. Maquiavel prescreve ao príncipe que aproveite em cada momento a debilidade de seu vizinho. mas à aparência dela. 155 A diferença é bem nítida: segundo Aristó- teles. Se Aristóteles enxerga entre dialética e erística. a dialética e a sofística é que são partes da erística. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 305 existisse lealdade e boa fé, as coisas seriam distintas156. Mas, como não se pode esperar isto dos demais, ninguém deve praticá-las, pois não teria retri- buição. O mesmo acontece nas controvérsias. Se dou razão ao adversário nos momentos em que este parece tê-la, não é provável que ele faça o mesmo no caso contrário. Antes, re- correrá a meios ilícitos. Portanto, devo fazê-lo também. É fácil dizer que se deve buscar tão somente a verdade, sem preconceitos em favor da própria tese. Mas não se pode pressupor que o adversário o fará. E assim tam- pouco devemos fazê-los nós. Ademais, se, quando me parece que o adversário tem razão, desisto de minha tese que ao princípio considerei 156 Ora, lealdade e boa fé são justamente, para Aristóteles, os pressupostos práticos da disputa dialética, diversamente do que acontece na erística. 306 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER verdadeira, é fácil que, levado por uma impressão do momento, eu renuncie à verdade para adotar um 157 erro . 4. Doctrina sed vim promovet insitam. “Mas a doutrina promove a faculdade inata” (Horácio)158. Aqui se torna visível a que distância fomos 157 parar da dialética de Aristóteles: de um mé- todo de busca da verdade, apto a encontrar os princípios de base das várias ciências, até uma arte do maquiavelismo psicológico, há um longo caminho a percorrer ~ para baixo. 158 A diferença em relação a Aristóteles surge realçada até o extremo nesta aparentemente inofensiva citação de Horá- cio. Para Aristóteles, “o homem tem, por natureza, o desejo de conhecer” (Met. A, I, 980a1-2) e é naturalmente inclinado à verdade, só cedendo ao erro por acidente ou privação. Para Schopenhauer, ao contrário, a perversidade é que é natural ao gênero humano, e não só a perversidade moral, mas também a perversidade cognitiva, que leva a preferir o erro à verdade. A citação de Horácio adquire portanto o sentido inverso à que teria na boca de um aristotélico: este se referiria à ajuda que a dialética pode dar à TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 307 5. E, por outro lado, Aristóteles se preocupa, uma vez mais, no livro De elenchis sophisticis, de distinguir a dialética da sofística e da potência natural de conhecer, enquanto Schopenhauer indica, ao contrário, que a natureza perversa se torna ainda mais perversa pela arte da dialética. Há aqui uma contradição profunda, que talvez seja uma das causas de Schopenhauer ter inter- rompido este trabalho e de não tê-lo conse- guido terminar nunca: se a dialética é uma arte de tornar ainda mais perversa a natureza perversa, como poderia tornar-se útil à inteligência bem intencionada que busca a verdade? Dito de outro modo: se a perversidade da dialética é essencial, não acidental, então só acidentalmente essa poderia servir a uma finalidade boa. Mas como fazer um tratado fundado num aspecto meramente acidental de uma de- terminada ciência? O fato mesmo de Schopenhauer empreender este tratado onde a dialética é a vacina contra os males da dialética indica que a dialética pode ter algo de bom em sua raiz ~ o que contradiz, no entanto, a de definição que lhe dá o autor. Para resolver este problema, Scho- penhauer teria de mudar a definição de dialética, isto é, a moldura conceptual do 308 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER erística. A diferença consiste, segundo ele, em que os silogis- mos dialéticos são verdadeiros quanto à forma e ao conteúdo; os erísticos ou sofísticos [que se diferenciam entre si só pelo objetivo, que nos primeiros (erísticos) é ganhar a disputa em si, e nos últimos (sofísticos) o prestígio que assim se adquire e o dinheiro que dessa maneira se ganha] são falsos. Quanto a saber se as proposições são verdadeiras em razão de seu conteúdo, isto é sempre um fato demasiado incerto para que se converta em princípio de distinção. E, menos que ninguém, aquele que discute pode ter neste ponto certeza completa. Nem mesmo o resultado da disputa oferece conclusões cate- góricas. Por isso, na dialética tratado, conservando no entanto o seu miolo: os estratagemas. A dificuldade de resolver esta questão pode ter concorrido para determinar a paralisação do trabalho. TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 309 de Aristóteles é preciso incluir também a sofística, a erística e a peirástica, e defini-la como arte de vencer as disputas e, evidentemente, o que mais ajudará para esse fim será ter objetivamente razão. Mas isto, dada a maneira de pensar dos homens, não é suficiente e tampouco é necessário, dada a debilidade do entendimento humano. Deve-se acrescentar, pois, outros estratagemas, que, precisamente ser independentes de que se te- nha ou não razão, podem também ser adotados quando não se tem. E, se é assim, não se sabe quase nunca com certeza absoluta. Meu ponto de vista é que é preciso distinguir a dialética da lógica mais estritamente do que o faz Aristóteles, deixando à lógica a verdade objetiva, na medida em que é algo formal, e limitando a dialética à arte 310 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER de vencer debates159 e, por outro lado, não separar dela a erística e a sofística tanto quanto ele o faz, pois esta distinção se baseia na verdade material objetiva160, da qual não podemos estar seguros de antemão, mas antes dizer, como Pôncio Pilatos: Que é a verdade?161 Pois veritas est in puteo: εν β υ θ ω η α λ η θ ε ι α (“a verdade está no profundo”)162. 159 V. Comentários Suplementares XVI. 160 Erro de interpretação: a diferença entre silogismos dialéticos e erísticos não está na verdade material objetiva, mas no fato de que as premissas dos primeiros são consen- suais e as dos segundos só o parecem. V., supra, n. 146. Não devemos esquecer que, ao fazer essa 161 pergunta com ar tão sábio, o pedantíssimo Pôncio tinha a verdade bem diante dos olhos da cara, e não a reconheceu: et lux lucet in tenebris et tenebrae non comprehenderunt eum. 162 É claro que este provérbio tem apenas va- lor poético, não se devendo em hipótese al- guma aceitá-lo como verdade filosófica em TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 311 Provérbio de Demócrito: Dió- genes Laércio, IX, 72. É fácil dizer que, numa discussão, é preciso apenas trazer à luz a verdade: mas ainda não sabemos onde ela se encontra. Podemos equivocar-nos pelos argumentos do adversário e também pelos nossos próprios. Ademais, re intellecta, in ver- bis simus faciles (“bem entendida a coisa, é fácil pô-la em palavras”). E como, em geral, se considera o termo dialética sinônimo de lógica, chamaremos à nossa disciplina dialética erística. sentido literal e estrito, malgrado todo o prestígio do misterioso. Pois, como qualquer um sabe por experiência, a verdade pode estar tanto na profundidade como na superfície, há verdades latentes e verdades patentes. Só a título de exercício, o leitor pode comparar a sentença de Demócrito com esta de Plotino, aliás de igual valor poético: “A essência salta aos olhos, pois se revela na forma.” 2) Estão presentes no mesmo sujeito: por exemplo. direito e torto. por exemplo. pl.312 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER 6. τ ο π ο ι . o mesmo se dá com o amor. os esquemas argumentativos típicos. isto é. Se a 163 Locus. um locus de causa e efeito é: “A causa de minha felicidade é minha riqueza. pl. o amor tem sua sede na vontade (ε π ι θ υ µ η τ ι κ ο ν ). loci. topoi. aquele que me deu a riqueza é autor de minha felicidade. e estas classes estão submetidas a algumas regras gerais: estas 163 são os loci. em retórica e em dialética. Mas. se este se encontra no sentimento (θ υ µ ο ε ι δ ε ς ). próprio e oposto. portanto. topos. Por exemplo. causa e efeito. Os conceitos podem-se absorver em certas classes como gêneros e espécie. “Lugares”. posse e privação. .” Loci de antinomia: 1) Excluem-se entre si. então também a tem o ódio. tampouco é bene- volente. 3) Se não existe um grau inferior. Mas na maioria os loci são enga- nosos e sujeitos a grande . tampouco existe o superior. re- correr para delas tirar argumentos e também para referir-nos a elas como universalmente evidentes. Se um homem não é justo. nos casos particulares. Com isto pode ver-se que os loci são certas verdades gerais.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 313 alma não pode ser branca. que se referem a classes inteiras de conceitos. também não pode ser negra. aos quais se pode. Se não sabemos a que antepredica- mento e a que predicável está referido um juízo. Ora. portanto. Cada topos. sem nomeá-la. só adquire sentido se. e tomando ambos como gêneros. entendemos que esse juízo define o gato como idêntico a todo o gênero animal.314 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER número de exceções164. um locus diz: coisas que se contrapõem têm características contrárias. podemos lhe atribuir um sentido que não tem. como conditio sine qua non. o vício é feio. os antepredicamentos (unívoco. os predicamentos requerem. Por exemplo. o sujeito e o . à qual. decerto. diferença. próprio e aci- dente). sem que se saiba que no caso gato é espécie e animal é gênero. se dizemos que “gato é animal”. A amizade é bene- 164 Parágrafo espinhoso e cheio de interpreta- ções equivocadas do texto aristotélico. e as conclusões que tirarmos daí serão desmentidas pela experiência. mas o erro não estará na proposição em si e sim no fato de a termos interpretado na clave errada. Os loci fundam-se na doutrina das categorias ou predicamentos. Por exemplo. parônimo. equívoco. na concreta situação de discurso. análogo) e os predicáveis (gênero. Schopenhauer alude ao dizer que “os conceitos podem-se absorver em certas classes como gêneros e espécie” etc. Por exemplo: a virtude é bela. Considerados no ar. a inimizade malévola. e imagino que o desejo de esclarecê-la em detalhe foi um dos fatores que levaram Aristóteles a desen- volver. a avareza é uma virtude165. a causa disto não reside em que o topos seja falso. Aplicação particularmente inábil. mas em que o aplicamos falsamente. Todas as vezes em que um determinado uso de um topos é desmentido pelos fatos. dado na nota seguinte. trocando espécie por gênero. a metafísica. mas a culpa não é deles. logo os sãos mentem: falso. Os loucos dizem a verdade. mais tarde. Mas o esbanjamento é um vício. e sim de quem lhes atribui sentidos que não têm. real. logo. fora da doutrina completa das catego- rias.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 315 volente. A morte consiste em de- predicado da sentença estão referidos aos predicáveis e aos antepredicamentos adequados. leva a questões que não podem ser decididas só na esfera lógico-dialética. O exemplo da avareza. os topoi levam de fato a inúmeros con- tra-contra-sensos. pois cada tentativa de aplicar um topos a uma situação determinada. A doutrina dos topoi é muito sutil. mas requerem o apelo a considerações ontológicas. que me- 165 nos fala contra a teoria dos topoi do que . permitirá esclarecer este ponto melhor. etc. ou acidente por propriedade. . “vício”. e. “Morte” só é oposto de “vida” por privação (Cat. 11. no livro De predestinatione. 12a1-41). de uma oposição própria uma diferença de gênero (quando a oposi- ção própria. e não por contrariedade própria (isto é. quer refutar os hereges que atribuem a Deus duas contra a erudição aristotélica de Schopenhauer. Scot Erígena. 10. “o contrário de um mal é..316 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER saparecer. como o faz Schopenhauer. 3. aplicação inábil de um locus sem levar em conta as categorias. . e portanto são apenas opostos próprios dentro de um mesmo gênero. 14a2-3). Ora. logo a vida consiste em nascer166: falso. Deduzir. não pertencem a um mesmo gênero). só se dá no mesmo gênero) é de uma inabilidade atroz. Exemplo da falácia de tais topoi. Na doutrina das categorias está clara a distinção entre opostos próprios (pertencentes a um mesmo gênero) e opostos impróprios (não pertencentes ao mesmo gênero). avareza e esbanja- mento são apenas variações quantitativas ~ a falta e o excesso ~ numa mesma clave de comportamento. cap. ora um mal” (Cat. como adverte o próprio Aristóteles na teoria dos contrários. ora um bem. 166 Novamente. por definição. necesse est eorum causas inter se esse contrarias. (“As causas de todas as coisas contrárias entre si devem ser contrárias entre si.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 317 predestinationes (uma dos eleitos. inter se contraria efficere ratio prohibet. e outra dos reprovados. pois a razão proíbe que uma e mesma causa tenha efeitos diversos e contrários entre si. quae sunt inter se contraria. à condenação). 167 O exemplum in contrarium usado para refutar o topos é especialmente desastrado.”) Pois bem! Mas experien- tia docet (a experiência ensina) que o mesmo calor torna dura a argila e branda a cera. e para tal fim utiliza este topos (Deus sabe de onde o tirou): Omnium. Em termos aristotélicos. à salvação. mas na diferente matéria de uma e da outra: o calor . e cem casos similares167. a causa do enrijecimento da argila e do amolecimento da cera não está só no calor. unam enim candemque causam diversa. [Erígena] constrói tranquüilamente sua demonstração a partir do topos. b ou c. considerado fora de seu substrato metafísico e de sua aplicação a cada caso concreto. porque o locus. A idéia mesma de “refutar” um locus é de uma absurdidade sem par. O que Bacon faz ~ e Schopenhauer copia ~ é . no campo da lógica.318 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER E. 168 Opor Bacon a Aristóteles. é um esquema formal sem significado. Podem servir é causa eficiente dessas transformações. que. É como tentar refutar a proposição a + b = c. mas age por meio de uma causa material. em si. no entanto. ou falso exemplum in contrarium (aliás estratagema 25). o topos soa plausível. sendo diversa nos dois casos. Novamente. produz diferentes efeitos. Uma inteira coleção de loci com suas refutações foi compilada por Bacon de Veru- lam sob o título de Colores boni et mali168. sem levar em conta os valores de a. mas a demonstração não tem maior interesse. o topos é aplicado no ar. Trata-se portanto de uma falsa instância. é convocar um duelo de vozes entre Tiririca e Plácido Domingo. fora do quadro das categorias. que não são meros esquemas lógicos como os topoi dialéticos. de Léon Bloy. no Brasil os topoi retóricos que funcionam num auditório de militares não têm eficácia ante uma platéia de jornalistas). e o Dictionnaire des Idées Réçues que Gustave Flaubert pôs em apêndice a Bouvard et Pécuchet. porque têm conteúdo determinado e variam de auditório para auditório (por exemplo. Ele chama-os Sophismata. estes sim podem ser discutidos e refutados. acreditando ter refu- tado o locus correspondente. E nestes Comentários apresentei e discuti vários exemplos de esquemas retóricos de uso corrente na intelligentzia brasileira. e em seguida refutar este sentido. . no Banquete. Já os lugares retóricos. A literatura francesa produziu pelo menos duas coleções magistrais de topoi retóricos refutados: a Éxégèse des Lieux Communs. Como um locus pode também considerar-se o argumento com que Sócrates. que atribuiu ao amor todas as atribuir casuisticamente a determinado esquema um sentido absurdo. mas crenças estabelecidas às quais se pode apelar numa argumentação. se opõe a Agaton.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 319 aqui como exemplos. ) Mas isto não é válido.: “Cada um busca o que não tem. (A lei da compensação é um excelente locus. sem entrar demasiado de perto em seus aspectos espe- cíficos. com as quais se pode deduzir todos os casos particulares.320 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER qualidades excelentes. É algo conatural ao homem numa controvérsia. beleza. precisamente porque os conceitos nascem por abstração das diferenças e. não os tem”. . há certas verdades de validade geral. que de novo reaparecem quando. portanto. etc. compreendem as realidades mais diversas. bondade. Aparentemente. ainda que sejam muito diferentes. associamos os objetos indivi- duais mais diversos e julgamos tão só com base nos conceitos superiores. por isto. quando se vê oprimido. aplicáveis a tudo. por meio dos conceitos. o amor busca o belo e o bem. . entre os muitos escritos retóricos de Teofrasto. 7. Segundo Diógenes Laércio. todos os aforismos são loci com tendên- cia prática. havia um que levava por título: Αγω ν ι σ τ ι κ ο ν τ η σ π ε ρ ι του ς ε ρ ι σ τ ι κ ο υ ς θ ε ω ρια ς ( “Discussão sobre a teoria do dis“Discussão sobre a teoria do discurso erístico”): o tema de que aqui tratamos. cada um com a opiniãpo de seu oponente: fizeram um inter- câmbio. voltam para casa.TEXTO E COMENTÁRIOSDIALÉTICA ERÍSTICA 321 refugiar-se por trás de um topos geral. 8. Os loci são também a lex parsimoniae naturae (a lei de economia da natureza). no fim. todos os afo rismos são loci com tendênealidade. Com freqüência dois discutem com ardor e. Na realidade. todos perdidos. α λ λ α π η η πο υ. Sophisma a dicto secundum quid ad dictum simpliciter (sofisma que passa de algo dito relativamente a algo dito em absoluto). elench. η π ρ ο ς τι λ ε γ ε σ θ α ι (à margem da forma de expressão: ser dito em absoluto ou não. η µη α π λ ω σ. mas em qualquer modo. η π ο τ ε . É o se- gundo elenchus sophisticus em Aristóteles εξω τ ε ς λ ε ξ ε ω ς τ ο α π λ ως.. Soph. 5. lugar ou tempo ou em relação a qualquer coisa). c.322 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER 9. . ESQUEMA DA DIALÉTICA SEGUNDO SCHOPENHAUER [POR OLAVO DE CARVALHDE SCHOPENHAUER ad rem MODOS ad homin em nos DIALÉTICA fundament os Direto nas conseqüên cias MÉTODOS Apagoge Indiret o . 2. .324 ERÍSTICA DE SCHOPENHAUER Instância ESTRATA- GEMAS: 1. 3... Comentários Suplementares e Conclusões por OLAVO DE CARVALHO . de suas idéias. hábitos. No mesmo sentido. Ad hominem = “ao homem”. vai a refutação ex concessis (“pelo que foi concedido”). convicções. porque o argumento apresentado não condiz com a realidade do objeto de que fala e é portanto objetivamente falso. COMENTÁRIOS SUPLEMENTARES I: n. a refutação se baseará na coisa ou assunto. que se baseia no que já foi admitido anteriormente pelo interlocutor no curso do . isto é. etc. isto é. 68 Ad rem = “à coisa”. a refutação se baseará no que se sabe da pessoa do interlocutor. mas abrangendo uma área menor. mesmo admitindo que as premissas discutidas não são admitidas por todos. Poderíamos mesmo qua qualificar essa argumentação de racioracional. 149. não é a mesma coisa”).COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 327 mesmo debate. que consiste em colocar o interlocutor em contradição com suas próprias afirmações. Perelman. e não se pode . Mas não há nada de ilegítimo nesse modo de proceder. a argumentação ad hominem ~ ou pelo menos a ex concessis ~ é um preliminar quase sempre indispensável na discussão séria. duo si idem dicunt non est idem (“se dois dizem a mesma coisa. ~ Ch. Pois são essas premissas que determinam o quadro no qual se move a argumentação. observa: “Schopenhauer qualificará de artifício (Kunstgriff) o uso da argumentação ad hominem. porque lº. com os ensinamentos de um partido que ele aprova ou com seus próprios atos. p.” A meu ver. mas. não é sensato averiguar a veracidade objetiva antes de averiguar a subjetiva. um argumentador sério não busca artificiosamente contradições entre argumentos e atos do interlocutor.328 OLAVO DE CARVALHO compreender bem um argumento colocando-o no ar. muitas vezes. ou entre o que ele diz agora e o que disse on- tem. mais lícito ainda é exigir que tenha coerência com o quadro geral das idéias do interlocutor. se o argumento pretende ser filosófico. Se um argumento con- corda com os fatos. separado das concepções gerais defendidas anteriormente pelo mesmo interlocutor. 2º. mas não con- corda com o restante da doutrina que lhe serve de fundo. elas saltam aos olhos. das duas uma: ou sua coincidência com os fatos é fortuita e o interlocutor nem percebeu que os fatos desmentem sua doutrina em geral na mesma medida em que confirmam uma sua tese em . 4º. 3º. poderia posar falsamente como argumento em favor da doutrina inteira).COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 329 particular (a qual. Não se trata de insulto comum. nesse sentido. como o exame liminar das petições. isto é. mas de ofensa . feito por um juiz: se o requerente não tem condição jurídica de requerer. então o juiz indefere a sua petição in limine. proferido no calor da emoção. ou ele se equivoca na expressão. se aprovada. 91 “Fazendo-lhe algo francamente injusto”: a vítima deve perceber que o acusador está mentindo de caso pensado. A argumentação ex concessis funciona. II: n. por ser menor de idade. “na porta”. pretendendo dizer uma falsidade e dizendo por engano uma verdade. por não se identificar corretamente ou por qualquer outra razão pertinente. sem entrar se- quer no mérito da questão. de modo a infundir na vítima. um sentimento de estranheza e medo. Guimarães. mais que indignação. É de observação corrente que mesmo homens de grande coragem moral e física. 1961.330 OLAVO DE CARVALHO premeditada e fria. 77): “É da observação corrente que a inteligência feminina. onde se requer menos valentia do que uma covardia rancorosa capaz de tirar vantagem da honestidade mesma do contendor. que se apresenta ostensivamente como tal. por definição. a retórica e a . podem ficar inermes no campo da perfídia verbal. Isto transfere a disputa do terreno do debate de opiniões para o da mais perversa agressividade psicológica. Álvaro Ribeiro não hesita em atribuir ao sexo feminino uma especial habilidade para o exercício deste manejo (Estudos Gerais. o lado mais sério está sempre em desvantagem. p. pouco apta para a gramática. Lisboa. se desavisados. onde. usando do verbo querer (queres. quererás). guerra e polêmica. adquire notável agudeza nos momentos de ódio. Ela conhece perfeitamente a vontade que anima o marido. O homem vê a impossibilidade de dialogar. provocando a dramatização dos conflitos domésticos.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 331 dialética. querias. constrói facilmente a conjetura perturbadora e ir- respondível. e en- tão. Quando a vida conjugal perde a sua natural idealidade. por maior que seja em alguns leitores ou leitoras a ten- . pela desistência ou pelo silên- cio. que formam o momento mais intenso de algumas obras de arte. quiseste. a mulher aperfeiçoa a sua linguagem para argumentar no trânsito do adjetivo para o verbo. Nestes breves diálogos. surge a prova de que não há só uma força semântica na atração existente entre a dialética e o divórcio. considera-se vencido. mas atribui-lhe a contrária e.” Por mais que este parágrafo soe irritante. nem podendo agredir a socos a contendora. não raro. etc. ultrapassado certos limites. a mulher pode alcançar um nível de agressividade verbal bem mais alto que o do ho- mem.): . é evidente que. não podendo responder à altura aos insultos que sobre ele derramava aos gritos a deputada Conceição da Costa Neves. Os leitores de mais idade ainda hão de se lembrar do falecido Coronel Fontenelle. em qualquer discussão. este. parte para as vias de fato ou se rende. a forma da atribuição pejorativa de intenções (queres. num debate de TV. querias. Independentemente do sexo dos debatedores. diretor de Trânsito do então Estado da Guanabara. teve um ataque cardí- aco e morreu diante das câmeras. que.332 OLAVO DE CARVALHO tação de respondê-lo com alguma rotulação pejorativa em lugar de argumentos (ilustrando assim na prática o estratagema em questão). a técnica da injustiça premeditada toma. p. procedeu então exatamente como. mas calar-lhe a boca mediante um choque súbito. 331. .COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 333 “Ele quer aparecer”. no debate cultural brasileiro. como no caso de Caetano Veloso respondendo às críticas que Wilson Martins fizera a um livro seu. O Imbecil Coletivo. n. no exemplo de Álvaro Ribeiro. um dis- creto erudito de oitenta anos de idade. Obviamente Caetano sabia que Martins. A freqüência com que se usa deste subterfúgio para fugir à argumentação. a ofensa injusta toma a forma de uma resposta lacônica.). etc. bem mostra a baixeza moral e a po- breza intelectual reinantes. Outras vezes. A resposta consistiu da palavra “porcaria” repetida cinco vezes (v. não estava acostumado a polemizar nesse nível. “Ele quer me usar de degrau”. a mulher que não deseja argumentar com o marido. 128 da 3ª ed. primeiro.334 OLAVO DE CARVALHO III: n. depois. a expres. ela se torna uso corrente.lógico destinado a bloquear. sem um oponente que venha equilibrar as coisas in- vertendo as conotações forçadas que ele dá a certos termos. a manipulação semântica passou a ser usada já não no confronto polêmico. a mera possibilidade de pensá-las.são de idéias antagônicas e. 95 A manipulação semântica é o mais seguro indício de que o debatedor tem o intuito de vencer a qualquer preço. Em épocas de radicalização política. a ênfase postiça ~ positiva ou . com solene des- prezo pela verdade. Nos regimes tota- litários ~ uma invenção do século XX que Schopenhauer não poderia prever — ~. estas vão aos poucos entrando no uso diário e o povo acaba por tomá-las como definições rigorosas. mas como instrumento de um discurso mono. Se o orador sempre fala sozinho para a multidão. sem declaração oficial. com Deus ou com o povo inteiro. A erística sem debate é um dos produtos mais requintados da perversidade humana. Na vida real. George Orwell satirizou esse fenômeno no romance 1984. de modo a que enfim a vítima venha a assumir a responsabilidade pelo . toda composta de co- notações alteradas.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 335 negativa ~ anexa-se de modo definitivo ao significado. Isto torna muito mais difícil combatê-la e sobretudo identificar seus responsáveis: eles permanecem anônimos por trás de um abstrato sujeito coletivo. e se torna impossível pensar o seu objeto independentemente do valor afir- mado ou negado na palavra mesma. até que este acabe por se identificar com a própria natureza impessoal das coisas. as coisas são piores: a Novilíngua é imposta de facto. com a “História”. onde o totalita- rismo perfeito implanta oficialmente a “Novilíngua” (Newspeak). compensado pelo giro oposto empregado pela direita (autodenominada. ou cristã em oposição a materialista). foi origi originariamente um truque semântico da esquerda. sem que uma única voz da direita procure bani-la ou . por exemplo). o emprego da manipulação semântica adquiriu.cal. paradoxal- mente.336 OLAVO DE CARVALHO crime. por exemplo. a acepção esquerdista dos dois termos tornou-se unânime e institucional. No Brasil. porém. No Brasil. pela mesma casta. O emprego do termo conservador enquanto oposto a progressista (e não a radi. democrática em oposição a bolchevista. defendida. talvez jamais observados no mundo: o domínio totalitário da linguagem monológica por uma casta de manipuladores convive pacificamente com a democracia formal. contornos peculiares. nas últimas duas décadas. Em in- glês. Thompson. e tirar suas próprias conclusões. Os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum (talvez o mais significa- tivo seja o uso generalizado da palavra preconceito para carimbar estereotipicamente certas corren- . Em alemão. qualquer um pode ler a primeira acepção em E. nos de Friedrich Mei- necke. a segunda em Winston Churchill. a identificação do nazismo com a direita tornou-se um dado do voca- bulário corrente. e o leitor está livre para adotar uma acepção. P. no mundo todo a esquerda e a direita procuram tirar proveito do horror popular ao nazismo. a primeira identificando-o com o rea- cionarismo. que ninguém pensa em contestar. o contrário de nazista é comunista. a segunda com a subversão revolucionária. a outra ou uma terceira.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 337 neutralizá-la. nos livros de Lukács. De maneira similar. No Brasil. ou conservador. a dificuldade de falar se torna dificuldade de pensar. ao discordar da esquerda. o debate cultural no Brasil não opõe senão as facções de esquerda umas às outras: o resto é tomado ~ segundo um preconceituoso a priori ~ como mero discurso ideológico que não deve ser dis- cutido. Hoje em dia. como seria normal. O domínio esquerdista do vocabulário é total e irrestrito. o juízo composto de imagens afetivas erigidas em pseudoconceitos). As causas que produziram esse . o que faz com que cada cidadão brasileiro. apenas explicado pelos interesses objetivos que o produzem e que ele encobre. se veja desprovido de meios de expressão que não estejam sobrecarregados de um temível potencial de malen- tendidos.338 OLAVO DE CARVALHO tes de opinião ~ por mais finamente conceptualizadas que sejam ~ e não. a crença adotada sem razão. aos poucos. 3) o efeito residual dos dois processos mencionados. me prestei a colaborar).. em resumo. conquistada durante o regime militar através de uma bem organizada campanha (com a qual. A Nova Era e a Revolução Cultural. com a cumplicidade do próprio governo Vargas. A lei inventada pelo deputado petista Paulo Paim. Mas. sem necessidade de qualquer doutrinação ostensiva. conquistada mediante ardilosa estratégia numa luta que começou na década de 30. os se- guintes pontos devem ser levados em conta: 1) a hegemonia da esquerda nos meios intelectuais. que qualifica . V.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 339 estado de coisas são complexas e não posso me estender sobre elas aqui. aliás. 2) a hegemonia es- querdista nos meios jornalísticos. graças ao qual as novas gerações de jornalistas e intelectuais absorvem e retrans- mitem passivamente a semântica esquerdista. a respeito. 97 Aproveitar-se da confusão do leitor (ou ouvinte. não só demonstra o cinismo com que a esquerda dominante se arroga o direito de controlar o uso do vocabulário. ou espectador) para proclamar que está provado o que não foi provado de maneira al- guma é o procedimento mais regular e constante da retórica política e dos meios de co- municação no Brasil. mas também o intuito perverso de usar esse controle para ressuscitar e acirrar conflitos raciais que a quase instintiva democracia racial brasileira já havia eliminado. O exemplo mais flagrante é o caso do ex- . IV: n. “judeu esperto” ou “mulato pernóstico”.340 OLAVO DE CARVALHO como racismo e torna crime inafiançável (porca miséria!) o uso de expressões correntes como “português burro”. para todos os efeitos. de modo que. . Conde- nado politicamente por uma votação do Congresso que não decidia de culpa ou inocência no sentido jurídico dos termos. Sem entrar no mérito das acusações. Collor é ainda. aos olhos dos meios de comunicação. chego a perguntar-me: a causa anti-Collor. a opinião da imprensa continua prevalecendo sobre a sentença do Supremo Tribunal Federal. A credibilidade da conclusão absurda provém ape- nas da confusão alimentada pela própria polêmica que se moveu contra o ex-presidente. e posteriormente absolvido pelo Su- premo Tribunal Federal de todas as acusações criminais que lhe moviam. um criminoso culpado e condenado.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 341 presidente Collor de Mello. bem como do fato de que o primeiro julgamento (político) teve maior cobertura jornalística do que o segundo (judicial). coisa que na verdade ele não é de maneira alguma. em que ou o exemplo não pertence ao mesmo gênero a que se refere a verdade que pretende negar.342 OLAVO DE CARVALHO se fosse realmente idônea como pretende parecer. ou é falso. V: N. compartilhando da antipatia po- pular ao ex-presidente Collor. teria necessidade de amparar-se num estratagema tão desonesto? ~ Faço questão de sublinhar este exemplo precisamente porque. em si. O mais desprezível dos homens é aquele que considera que a intensidade de seu ódio é prova da veracidade de sua crença. recurso probatório legítimo e logicamente eficaz. 107 A instância é. ou . não posso admitir o preconceito absurdo e imoral que faz dessa simples antipatia uma justificativa cabal para a feroz e obstinada recusa de pensar no assunto. O estratagema refere-se ao seu uso aparente. onde o que menos existe é o desejo sin- cero de encontrar a verdade e onde predomina o desejo de incriminar o adversário per fas et per nefas.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 343 não a contradiz efetivamente. quando secretário. ele de- clarou que nunca na vida tivera contato com determinado banco. Os acusadores então mostraram como exemplum in contrarium um documento assi- nado por Pitta. emitido às centenas pela Prefeitura para vários bancos. porque consistia de documento padronizado. O exemplo não se aplicava. que segundo os acusadores o favorecera. no qual autorizava uma negociação qualquer entre a Pre- feitura e aquele banco. Um exemplo re- cente é o caso do prefeito de São Paulo. Celso Pitta: acusado de gestão corrupta na Secretaria das Finanças do município. os casos dessa natureza são abundantes. o que não implicava nenhum contato . Nos debates sobre corrupção. afinal. uma empresa construtora alegou que jamais par- ticipara da construção de aeropor- tos. Seus acusadores então mos- traram. no Rio. vai até o . o exemplo não se aplicava. na famigerada CPI do Orçamento. como exemplum in contrarium. 112. VI: n. A eficácia deste tipo de argumento. Outro exemplo: acusada de ter desviado dinheiro da construção de pequenos aeropor aeroportos do interior do Nordeste. Aqui também. o Galeão não é um pequeno aeroporto do interior do Nordeste. no Brasil. porque eram obras de reforma e não de construção e porque.344 OLAVO DE CARVALHO direto do secretário com um banco em particular. um documento que provava sua participação em reformas do aeroporto do Galeão. e de cujas obras não conhece um título sequer. aceita como autoridades pessoas das quais apenas ouviu falar de longe. curiosamente. que ocorrem quando a negação da obviedade começa a dar na vista). mesmo letrado.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 345 limite extremo: o público. mesmo em campos alheios à atividade do referido. um curriculum de vítima da ditadura não confere a seu portador apenas a aura de santidade (o que seria normal. os twice born das seitas evangélicas e . Nos meios esquerdistas. até certo ponto). Inversamente. Em parte. isso se explica pelo sentimento de pertinência. pelo qual os “de dentro” acreditam saber coisas essenciais cuja visão é negada aos “de fora” ~ fenômeno muito comum entre os psicanalisados. a fama de reacionário suprime automaticamente os mais óbvios méritos intelectuais (com raras exceções. a autoridade inte- lectual e científica. mas também. no caso brasileiro. Outra coisa singular é o influxo mágico que o título de “doutor” exerce no curso das dis- cussões. mesmo entre pessoas que se suporiam imunes a esse tipo de fetichismo e. jamais tendo participado de movimentos clandestinos. pior ainda.346 OLAVO DE CARVALHO os comunistas. No mundo todo. quanto mais de algum mistério su- premo. Numa e a Ninfa. mesmo entre aqueles que estão cientes da má qualidade do ensino universitário no país. não po- dem sequer compartilhar de miúdos segredos estratégicos. ela continua cada vez mais forte. Lima Barreto já denunciava essa superstição (Os Bruzundangas. etc. O curioso. as críticas ao establishment . é que esse sentimento é compartilhado por um vasto número de pessoas que apenas nutrem convicções esquerdistas e que.): passado um século. principalmente naqueles círculos que mais se dizem progressistas e livres de preconceitos. 114. José Ortega y Gasset. Em qualquer investigação científica ou . pp. vol. causam es- cândalo e indignação. justa justamente. não para encerrá-la. 1983.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 347 universitário são uma banalidade na imprensa. Tudo isso mostra a profunda vulnerabilidade do nosso público pretensamente letrado ao argumentum ad verecundiam. Aqui. em Obras Completas. Alianza. VII: n. Madrid.). Ela serve para começar uma discussão. subir da mera opinião consensual a uma razoabilidade mais exigente. Segundo Aristóteles. XII. O argumento de autoridade tem às vezes. para o conhecedor do assunto. Investigaciones Psicológicas. o ponto de partida para as investigações dialéticas é em geral “a opinião dos sábios” ~ a dialética tem por finalidade. um valor de hipótese valiosa (v. 337 ss. o desenvolvimento do debate até o ponto onde o tomamos ~. fará dele um seguidor obediente da autoridade próxima: a rotina . à mercê de seus caprichos subjetivos ou. os “clássicos” da sua área de estudos. A incapacidade de colocar-se sob a “aura” dessa autoridade milenar fará de um pesquisador um átomo solto no ar. e a escolha mesma de um tema de pesquisa se funda em determinadas preferências pessoais que nem são cientificamente obrigatórias para todos os pesquisadores nem são totalmente arbitrárias. é preliminar in- dispensável o conhecimento do status quaestionis ~ o estado da questão. pior ainda.348 OLAVO DE CARVALHO filosófica. e esse sentimento é fortemente guiado pela “autoridade” de seus an- tecessores maiores. mas traduzem o sentimento que o pesquisador tem da importância do tema na tradição e na atualidade da sua ciência. isto é. elevaram monumentos de servilismo a Comte. ratio vero nequaquam ex auctoritate (“a autoridade provém da razão. E as épocas que mais cultivaram o amor aos autores antigos nunca desceram à abjeção com que os tempos modernos. a petulância do jovem enragé ante os grandes do . Stálin. soi disant libertos de todo argumento de autoridade. Marx. Os filósofos medievais apelavam à autoridade de Aristóteles para defender-se de bispos e cardeais. sabendo que auctoritas ex vera ratione processit. não a razão da autoridade” ~ João Scot Erígena. Migne). Por este motivo. 71 da ed.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 349 estabelecida. Madame Blavatski ou até mesmo Freud. a moda ou as “estrelas” intelectuais do dia. Charles Darwin. p. a relação da in- teligência com a autoridade é sempre ambígua. e uma autoridade nos liberta de outra. Allan Kardec. Em geral. I. De Divisione Naturae. o peso do argumento de autoridade é maior justamente nos círculos de esquerda. em todo caso. No Brasil. causa finita. em toda argumentação. um cérebro totalmente livre da influência de alguma autoridade: o decisivo. sobretudo quando se trate do nome de alguma nulidade intelectual que tenha tido a boa sorte de ser perseguida pela ditadura.350 OLAVO DE CARVALHO passado é acompanhada de culto idolátrico a alguma autoridade do presente. onde a simples menção de certos nomes produz um efeito de Roma locuta. Não há. é saber usar do argumento de autoridade como simples ponto de referência digno de atenção ~ nunca como prova. O próprio Freud explicaria isso como regressão uterina conseqüente à culpa edipiana mal resolvida. . politicamente). Nos meios universitários. Jorge Luís Borges ou Nélson Rodrigues (por uma irônica coin- cidência. 117 A autoridade dos poetas varia conforme a época e o lugar. Fernando Pessoa. A arte de cada época é uma das forças mais decisivas para a construção do imaginário coletivo. com cuja força persuasiva irracional o argumentador desonesto sempre . que na verdade constituem um arsenal de pressupostos e até mesmo pré-si- logismos. ~ Mas a utilidade da poesia e da arte na argumentação erística vai muito além do simples forneci- mento de frases de efeito. todos direitistas e conservadores. imagens carregadas de valores. no qual se depositam. é preciso citar Guimarães Rosa. de maneira mais ou menos inconsciente. Clássicos gregos e latinos não exercem em geral. no Brasil de hoje.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 351 VIII: n. o menor efeito. Black.352 OLAVO DE CARVALHO pode contar e onde encontra meios de dar credibilidade mesmo às idéias mais absurdas e autocontraditórias. a força persuasiva (não a validade lógica) de qualquer argumento depende antes das imagens evocadas pelos seus termos do que do sentido lógico dos juízos que o compõem.. org. Bertrand de Jouvenel. em As Origens do Estado Moderno. “Le ‘syllogisme imaginatif’ dans la philosophie arabe: contribution médiévale à l’étude de la métaphore” em M. Rio. A. Zahar. já era assinalado por Aristóteles (v. 1991). Na verdade. Aristóteles em Nova Perspectiva. Toulouse. Uma História das Idéias Políticas no Século XIX. trad. o alicerce “poético” de toda persuasão. 1978. Ères-Unesco. Penser avec Aristote. . Debora L. 63-75) e também por Avicena (v. O fundo imaginativo de toda argumentação. pp. Mamede de Souza Freitas. Sinaceur. 120 A força da imitação na conduta social foi estudada por Gabriel Tarde (Les Lois de l’Imitation. Mais recentemente. IX: n. 1972). a compreensão desse fenômeno foi muito aprofundada por René Girard (La Violence et le Sacré. Étude Sociologique.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 353 pp. Alcan. Paris. As investiga- ções de Tarde têm a mais alta importância para o estudo da persuasão. 1895). Grasset. que vê no “desejo mimético” (desejamos algo porque todo mundo o deseja) a raiz do sacrifício ritual dos diferentes e dos desviantes (o “linchamento original”) ~ um processo que o sacrifício de Cristo . 2e. La Logique Sociale. Paris. éd. Alcan.. Paris. faz considerações importantíssimas sobre a função das imagens como possibilitadoras da persuasão e da sugestão na propaganda das idéias políticas. 1895. 28-34). a capacidade de apreender uma ver- dade universal independentemente e acima do consenso socialmente admitido ~ uma conquista que. § 24. v. “Considerações finais”. Sobre a libertação da consciência indivi- dual. 5 vols. na época que se . Eric Voegelin (Order and History. na filosofia grega e no cristianismo. libertando a consciência individual do mime- tismo e condenando para sempre a ordem social fundada na violência. a duras penas.. Baton Rouge and London. diz ele. bem como A Nova Era. 123 Schopenhauer não poderia adivinhar que. O Jardim das Aflições. 1987) relata o drama milenar através do qual o homem foi conquistando. X: n. Louisiana State University Press. está ameaçada pelas modernas ideologias coletivistas.354 OLAVO DE CARVALHO teria vindo deter. quando crê avançar. a cres- cente ignorância do passado faz a inteligência girar em círculos. relativizando ou revogando. Por outro lado. no ato e sem exame. que o novo e o diferente viriam a adquirir.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 355 seguiria. e que só podem ser compreendidas desde o ponto de vista superior do “sujeito transcen- dental” cujo horizonte abarca a um tempo o conhecido e o conhecer. isto é. Um forte preconceito em favor do “novo” faz tomar por novidades coisas que não o são. desde que Kant trouxe à baila as estruturas que a priori condicionam o conheci- mento. dia após dia. ao mesmo tempo que. essa situação viria a inverter-se. cada qual . a autoridade de crenças universalmente aceitas. uma sucessão impressionante de pensadores e cientistas veio revelando novas e novas estru- turas condicionantes. por força da velocidade das comunica- ções. opiniões milenares. pela pátria. inclusive aqueles que pensam agir por . estadistas e pensadores que. cada vez mais transcendentais. Já segundo Freud. acreditavam estar agindo por Deus. ingenuamente. o titereteiro invisível da História chama-se “interesse de classe”: é ele que move os guerreiros. fossem abarcando e engolindo os horizontes de seus antecessores e desvelando os fios ocultos que moviam os cegos marionetes no palco do drama humano. todos os personagens do drama. Para Marx. Para Nietzsche. como se novos sujeitos transcendentais. pela verdade ou por qualquer outro motivo.356 OLAVO DE CARVALHO pretendendo enxergar por cima e por trás dos ombros alheios. o interesse de classe ou qualquer outro motivo alegado para explicar a conduta humana não é senão o véu ilusório a encobrir a verdadeira motivação da história toda: a vontade de poder. Nietzsche e Jung. Para Jung. sem saber. repetem as tramas arquetípicas de um script milenar registrado no inconsciente coletivo. .. não fazem senão obeceder ao im- pulso da libido inconsciente recalcada. Korzybsky e Whorf. e que os primeiros a escaparem dessa coerção invisível e onipre- sente tenham sido. o revolucionário de Marx.. pretendem que todo o Ocidente. Freud. os fundadores da “Semântica Geral”. incluindo Marx. tenha sido enganado durante dois milênios por “pressupostos metafísicos” aristotélicos imbri- cados na estrutura da linguagem. ao contrário.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 357 interesse de classe ou por uma nietzscheana vontade de poder. Korzibsky e Whorf. o recalcado libidinoso de Freud e o ambicioso super-homem de Nietzsche são apenas atores que. que condiciona todos os conhecimentos particulares de uma dada época ~ incluindo as teorias de Marx. Cada um pretende. De modo geral. o público letrado e científico dá credibilidade imediata e automática a essas revelações. Freud. o a priori supremo. chama-se episteme: é a estrutura geral do saber.358 OLAVO DE CARVALHO Mas Foucault diz que não é nada disso: o script invisível. sem razão plausível. muda para outra episteme deixando todos perdidos no ar. descerrar o véu. Korzybsky e Whorf ~ e que de repente. Jung. sem que a ninguém ocorra a idéia de que seu número mesmo e a velocidade de sua . revelar a trama secreta da qual seus antecessores foram apenas protagonistas inconscientes. em suma. como se um cenário rodante girasse de Hamlet para Romeu e Julieta sem dar aviso aos atores. é o eu transcendental das gerações mais velhas e enxerga o fundo das águas onde boiavam. O temor de passar por “um sabichão que quisesse ser mais esperto que o . um preconceito inverso daquele assinalado por Schopenhauer: o preconceito de que cada geração. dia a dia torna-se cada vez mais difícil mostrar às novas gerações qualquer coisa que os antigos enxergassem perfeitamente bem e cuja visão tenha se perdido entropicamente na massa informática do “novo”. igualmente duvidosas. O esquecimento adquire o prestígio de um saber superior. pelo simples fato de ter nascido mais tarde. por mero decurso de prazo. a todas. Assim. os ante antepassados.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 359 sucessão devem torná-las. nos meios letrados. Tudo isso contribui para criar. Doutrinas que o público desconhece passam por “superadas”. sem exame. inconscientes. que argumentava pelas vantagens da economia liberal sobre a socialista. 124 Expediente característico de nossos polemistas de esquerda. que “pede veladamente a censura” de obras esquerdistas. que se ocupa de idéias superadas. Sader não só . Este preconceito é hoje o mais temível obstáculo em qualquer discussão científica. XI: n. O prof. Emir Sader objetou que o Manual do Perfeito Idiota Latino- Americano (do qual o conferencista é um dos autores) é um livro inquisitorial.360 OLAVO DE CARVALHO mundo inteiro” cede lugar ao medo de passar por um bobalhão desatualizado. ainda que o ponto em discussão não seja de natureza política. o prof. que fogem de todo argumento mediante a simples alegação: “É de direita”. Exemplo escandaloso: saindo da conferência do jornalista Carlos Alberto Montaner. deixando- a pronta para ser usada no presente estratagema. mas falseou a verdade ao catalogar Montaner na odiada categoria dos inquisidores. pois o Manual se limita a fazer. isto é. a respeito de certas obras esquerdistas.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 361 escorregou para fora da questão. que aliás seria despropositada se essas obras fossem proibidas de circular. uma crítica irônica e inteligente. O exemplo mais característico é o emprego obsessivamente repetitivo que a esquerda mundial faz da palavra “mccarthysmo”: a repetição mesma vai criando uma carga persuasiva pronta para ser disparada na primeira ocasião em que o debatedor sinta a platéia emocionalmente preparada para . quando primeiro se carrega uma determinada palavra de conotações pejorativas. ~ Este expediente é mais eficaz ainda quando associado à manipulação semântica (estratagema 12). . respeitando meticulosamente os direitos constitucionais dos depoentes. Ademais.362 OLAVO DE CARVALHO ser persuadida pela força do reflexo semântico condicionado. inclusive o direito de não responder nada. quando na verdade o famoso Comitê presidido pelo Senador Joe McCarthy entre 1950 e 1954 apenas procedia a interrogatórios. funciona como a imagem mesma da repressão inquisitorial. nos casos mais evidentes de suspeitos colocados em funções de segurança nacional. no máximo algumas demissões do serviço público. “Mccarthysmo”. por exemplo.tiva ou positiva associada à palavra tem algo a ver com a realidade do seu significado. a que os interrogados aliás apelaram abundantemente. Raramente a carga nega. com base na Quinta Emenda da Constituição Americana. dos interrogatórios de McCarthy não resultou prisão para ninguém (nem mesmo para o notório espião Alger Hiss). COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 363 Quanto à crença de que o Comitê promoveu censura de livros. bem diferentes daqueles empregados no mundo socialista e mais brandos. do que os usados na nossas CPIs: Joe McCarthy recuaria de horror ante a idéia de dar ao governo o direito de suspender o sigilo bancário de quem bem entendesse. mas na verdade ele deveria designar os métodos de investigação de um Estado democrático. esses livros continuaram a circular livremente. . até. no resto do país. United States Information Service. A histeria esquerdista fez do termo “mccarthysmo” um sinônimo da opressão inquisitorial. onde sua presença era mesmo aberrante porque a entidade fora criada pelo governo com a finalidade explícita de combater a propaganda comunista. é pura balela: tudo o que ele fez foi retirar alguns livros comunistas das bibliotecas públicas do USIS. mesmo tendo abandonado a busca da verdade.364 OLAVO DE CARVALHO XII: n. ela ainda se funda na razão. Enquanto a discussão se move no campo dos interesses reais. Desde Scho- penhauer. 126 Não se trata. mas que obviamente contrariam os seus interesses. necessariamente. mas daquilo que ele imagina ou supõe serem os seus interesses. Os principais marcos no caminho dessas novas formas de persuasão foram: 1º A descoberta dos reflexos . dos interesses reais e objetivos do ouvinte. levando o adversário ou ouvinte a concordar com coisas que não apenas sejam falsas. apoiando-se cada vez mais em fa- tores psicológicos e cada vez menos na razão ou mesmo no interesse objetivo. as técnicas de persuasão progrediram muito. é possível abandonar de todo o campo da razão. No entanto. rompem as cadeias de reflexos condicionados e produzem uma inversão do sentido das emoções: subitamente. levando o indivíduo a apegar-se cada vez mais às suas opiniões e valores. abaixo do limiar da . segundo Pavlov. porque a doutrinação explícita pode estimular o antagonismo. melhores os resultados. o indivíduo passa a odiar aquilo que amava. 2º A descoberta da estimulação subliminar por Otto Poezl. Poezl de- monstrou que estímulos muito débeis. A lavagem cerebral consiste basicamente em atormentar a vítima com violentas estimulações contraditórias. quanto menos doutri doutri- nação explícita se usar. A experiência demonstrou que. que. e vice- versa. psicólogo austríaco. logo utilizada em campos de prisioneiros na China como base para o que veio a se chamar lavagem cerebral.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 365 condicionados por Ivan Pavlov. que os pesquisadores norte-americanos Richard Bandler e John Grinder de- venvolveram a partir de descobertas clínicas do psicoterapeuta Milton Erickson. que. fornece hoje aos manipuladores da mente um receituário compacto e de grande eficácia.366 OLAVO DE CARVALHO consciência. 3º As descobertas do psiquiatra inglês William Sargant. fundindo todas as descobertas anteriores com o estudo dos processos de coco- municação não-verbal. e que. estudando os processos chineses de lavagem cerebral. revelou que efeitos semelhantes ao podiam ser obtidos com estimulação muito mais branda e em muito menos tempo. Explico isso com mais detalhe em O Jardim das . às vezes em uma única sessão. 4º A programa- ção neurolingüística. podem desencadear no cérebro efeitos maiores que os obtidos pelas percepções conscientes. mediante sugestão hipnótica. Le Seuil. suas convicções e seus interesses mais óbvios. São Paulo. Ibrasa. 1967). Calmann- Lévy. Vance Packard. 1978). Alain Caillé. Flo Conway e Jim Siegelman demonstram que se pode mesmo. É um grande erro a afetação de superioridade cética com que os pedantes indefesos se dizem invulneráveis a esse gênero de manipulações. Pode-se ler também. Paris. a respeito.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 367 Aflições. não apenas levar uma pessoa a decidir contra seus valores. como também torná-la . William Sargant. 1957). além do clássico de Serge Tchakhotine. Merloo. L’Homme Remodelé (trad. Heinemann. Joost A. Le Viol des Foules par la Propagande Politique (Paris. La- vagem Cerebral (trad. 1980). §§ 9-13. M. Battle for the Mind (London. por programação neurolin neurolingüística. além da já citada obra de Flo Conway e Jim Siegelman. Eugênia Moraes Andrade e Raul de Moraes. a qualquer argumentação racional. os progressos da maldade humana não foram meno- res no campo da persuasão do que no campo da guerra. A algaravia de Gurdjieff não se destinava só a impressionar. Whitall N. que conseguia usar o discurso non sense como instrumento de persuasão não somente de pessoas crédulas e incultas. Gurdjieff in the Light of Tradition. mas de intelectuais emi- nentes (v. 1963). 127 Desde o tempo de Schopenhauer. de antemão. Uma novidade notável foi introduzida pelo taumaturgo armênio Georges Ivanovitch Gurdjieff. mas era calculada com precisão mate- mática para produzir certos efeitos emocionais que tornavam a vítima vulnerável e dócil além de toda . Bedfont. Perennial Books.368 OLAVO DE CARVALHO refratária. XIII: n. Perry. COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 369 medida razoável e a levavam a submeter-se às ordens mais absurdas e humilhantes. Os Shah introduziram na manipulação psíquica gurdjieffiana requintes de encanto e delicadeza que a tornam mais palatável no início e duplicam sua força escravizadora no fim. Particularmente interessante e digno de um estudo que ainda nin- guém se aventurou a empreender é o uso que fazem do que chamam “situações de aprendizado”. os irmãos Idries e Omar Ali Shah. mas na geração seguinte foram aperfeiçoados por uma notável dupla de farsantes espirituais anglo-indianos. Os mé- todos de Gurdjieff ainda eram um pouco brutais. o que os tornava repugnantes para algumas pes- soas. que . que chegaram a ter entre seus seguidores figuras internacionalmente conhecidas como o poeta Robert Graves e o cineasta Richard Williams. as quais se livraram do pe- rigo fugindo dele à primeira vista. atingindo o seu limite. XIV: n. são usados em orga- nizações de massa. Processos semelhantes.370 OLAVO DE CARVALHO consistem em envolver os discí- pulos em situações fictícias pro- positadamente montadas para desorientá-los por estimulação contraditória. eles abandonem toda resistência e se entreguem passivamente aos comandos mais estapafúrdios ou prejudiciais. mas não a transcreve. de modo que em poucos dias se produz o que Conway e Siegelman chamam “súbita mutação de personalidade”. talvez contando com que o leitor a . até que. Esse resultado é alcançado de maneira extraordinariamente rápida. como as de Moon e Rajneesh. 129 Schopenhauer menciona a passagem. porém bem mais grosseiros. entre as mais conhecidas. tão grande era o círculo de leitores de O Vigário de Wakefield na época. Segue-se o cômico diálogo (traduzi da edição J. disse o Squire. você quer abordar o assunto analogicamente ou dialogicamente? ~ Acho que se deve abordá-lo racionalmente. primeiro as primeiras coisas. Trata-se de uma discussão entre um Squire (membro da pequena aristocracia rural) e Moses. o jovem filho do vigário-narrador. O Squire afirma que “mais vale uma bela jovem do que todo o clero do mundo”. não posso prosseguir. Dent & Sons de 1931. Se você não concede isto logo de início. feliz por lhe permitirem discutir. ~ Muito bem. pp. Moses pede-lhe que o prove. é. M. 37-39): ~ Antes de tudo. . respondeu Moses.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 371 conhecesse. Espero que você não negue que tudo aquilo que é. retorquiu o outro. que em certa medida prova que a essência da espiritualidade pode ser referida ao segundo predicável. ~ É coisa razoável. ~ Nada pode ser mais certo.372 OLAVO DE CARVALHO ~ Acho que posso concedê-lo. que você concorde também que uma parte é menor que o todo. e olhou em torno com seu habitual ar de importância. falando muito rápido. para meu proveito. procedendo numa duplicada razão recíproca. que você não negue que três ângulos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos retos. ~ Muito bem. disse o Squire. disse o Squire. prossigo. ~ as premissas tendo sido assim colocadas. ~ Espero. fazendo observar que a concatenação das auto-existências. . ~ Concedo isso também. respondeu o outro. naturalmente produz um dialogismo problemático. ~ Espero. disse Moses. ~ Sou seu humilde servidor. ~ Se é assim. mas o senhor pretende . ~ Eu nego isso. ~ Oh. como tomado de paixão. gritou Moses! Não compreendo direito a força do seu raciocínio. poderei ter uma resposta. se ele for reduzido a uma proposição simples. replicou o outro. digo. então responda- me diretamente: Você julga a investigação analítica da primeira parte do meu entimema deficiente secundum quoad ou quoad minus? E dê-me suas razões! Dê-me suas razões. Você pensa que posso me submeter assim docilmente a essas doutrinas heterodoxas? ~ Que?. mas. meu senhor!. respondeu o Squire. replicou o Squire. diretamente! ~ Eu protesto!. ~ Não se submeter? Responda-me a uma questão direta: Você acha que Aristóteles tinha razão ao dizer que os relativos estão re- lacionados? ~ Sem dúvida.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 373 ~ Pare! Pare!. gritou o outro. isso. é demais para mim. por definição. o seguinte: Deus é.” Isto efetivamente despertou o riso contra o pobre Moses. Não. a inexistência é uma imperfeição. sendo a priori. eu protesto. por Immanuel Kant. Sto. ora. logo. Tomás e depois. ela não faz parte da natureza de Deus. Segundo Kant. em essência. An- selmo teria cometido aquilo que. para a filosofia crítica.” XV: n. Este argumento foi rejeitado primeiro por Sto. Diz. o ser perfeito. é o pecado .374 OLAVO DE CARVALHO que eu lhe forneça também a argumentação e a inteligência. mais vigorosamente. 130 O argumento ontológico para provar a existência de Deus foi concebido por Sto. senhor. a prova ontológica. só se refere ao conceito de Deus e não implica que o objeto con- ceituado exista realmente. Anselmo de Canterbury (1033-1109). de duplo sentido. isto é. 1995. mas também por análise lógica: proposiproposição auto-evi- dente é aquela que só pode ser contraditada por uma proposição equívoca. Apostila). Mas as coisas não são tão simples. um juízo auto-evidente não pode ser hipotético ou pura- mente formal: é sempre um juízo categórico de alcance ontológico. coloco à refutação de Kant as seguintes objeções: 1º A evidência de uma proposição pode ser reconhecida não só pelo senti- mento de certeza.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 375 capital: deduzir do a priori a existência. 2º Logo. isto é. Insti- tuto de Artes Liberais. Em Breve Tratado de Metafísica Dogmática (Rio. que só pode ser conhecida por experiência. porque é im- . isto é. subjeti- vamente. da análise de um conceito não se pode deduzir a existência de seu objeto. Dito de outro modo. a posteriori. 3º A proposição “um ser ne- cessário existe necessariamente” é auto-evidente. Fica assim derrubada a objeção kantiana. morta e enterrada para sempre. 151 . Em todo caso. XVI: n. e por isto ele a usa como exemplo de prova ruim de uma tese verdadeira. o juízo “um ser necessário existe necessariamente” não pode ser hipotético. No tempo de Schopenhauer. a prova ontológica parecia. até o momento prevalece. à luz desse argumento. ao caso. não se aplicando portanto. o argumento kantiano. Logo.376 OLAVO DE CARVALHO possível decidir se sua contraditória é “um ser ne. 4º. no con- senso dominante. a distinção entre “Deus” e “o conceito de Deus”.cessá- rio não existe de maneira necessá- ria” (subentendendo-se que pode existir de maneira contingente) ou “um ser necessário necessaria- mente inexiste”. e de- pois. a demonstração da verdade (lógica) e. só lhe sobraria. Ora. de um lado. à metafísica. subentendendo que o saber que mais desejamos pode ser o mais difícil de en- contrar. nenhum instrumento de pesquisa e investigação que pudesse levar. se o fizesse. a indiferença à verdade (dialética). da probabilidade e da verossimi- lhança. laboriosamente. se punha a confrontá-los . ninguém mais do que Aristóteles esteve consciente da necessidade dessa mediação. sem que no meio existisse nenhum instrumento de busca da verdade. de outro.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 377 Por que Aristóteles não levou mais fundo essa distinção? Porque. Não nos esqueçamos de que Aristóteles começava seus tratados sempre com uma resenha das opiniões de seus antecessores sobre o assunto em questão. “a ciência que buscamos”. à demonstração apodíctica. meticulo- samente. ele que denominou à suprema ciência. sem jamais se pretender um protegido de Deus que estivesse ao abrigo do erro”. a razão pura meramente formal. com a humildade de quem. mas a φ ρ ο ν ε σ ι ς . frónesis. de outro a fé cega. em vez de se deter às portas do desconhecido. Aristóteles se veria diante de um dualismo kantiano irrecorrível: de um lado. para Aristóteles a razão prática não é um território separado e independente. “fazia o melhor que podia. o ato de vontade arbitrária fundado numa “razão prática” que no fundo não passa de interesse prático. Ou seja. ela faz a ponte entre o conhecido e o conhecível. Se tivesse levado mais a fundo aquela dis- tinção. a sabedo- ria que orienta. em Aristóteles a razão prática tem uma função dinâmica. a busca da verdade nas ciências teoréticas. inclusive.378 OLAVO DE CARVALHO dialeticamente. Ao contrário.Al- Biruni. como dele disse Al. atacada de paralisia kantiana . Para Aristóteles. não existe abismo entre conhecido e desconhecido. .COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 379 avant la lettre. existe apenas o esforço vivente da “ciência que se busca”. Para estudá-la sob este aspecto. nos discursos de políti- . e apresentá-los pela ordem da dificuldade crescente. A Dialética Erística de Schopenhauer pode ser enfocada sob vários aspectos. Guia de Estudos. destacar cinco deles que me parecem os mais importantes. ela é um guia prático.380 OLAVO DE CARVALHO COMENTÁRIOS FINAIS 1. terá muito a ganhar. Vou. Antes de tudo. aqui. O leitor que os aborde sucessivamente. I. o leitor deve examinar meticulosamente cada estratagema e buscar exemplos na imprensa. voltando sempre ao texto para esclarecimentos e consultas. É preciso. nem sempre a idéia defendida com estratagemas erísticos tem de ser falsa. Uma prática interessante. buscar exemplos nas suas próprias opiniões e argumentos. com o compromisso so- lene de procurar e desmascarar seus próprios estratagemas. no entanto. para ser realizada em grupo. buscando corrigir-se. e muitas vezes o esquema erístico tem . é promover um debate qualquer entre dois contendores. nos argumentos de parte a parte. transcrevê-lo e depois buscar. gravá-lo.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 381 cos. os estratagemas usados. e nem sempre os estratagemas são apenas erísticos ~ muitas vezes uma idéia válida é apenas mal defendida. Deve também. estar atento para os seguintes pontos: 1º. nos debates de TV e ~ last not least ~ nas opiniões das estrelas intelectuais do momento. e sobretudo. Os dois contendores devem participar do exame. no Adendo e nas Anotações. Em segundo lugar. ela apresenta uma determinada concepção da dialética. de André Lalande (trad. Schopenhauer apre. II. por julgá-la demasiado óbvia no caso. 2º. que pode encontrar.sentou e discutiu suficientemente essa defi- nição. para que o estudante possa destacá-la e compará-la com outras definições possíveis. um autor pode preferir usar o giro retórico-erístico só para economizar palavras. No Intróito. . no Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. 3º.382 OLAVO DE CARVALHO alguma aplicação dialética perfeitamente honesta (destaquei alguns exemplos nos Comentários Analíticos). por exemplo. um estratagema erístico ou uma pirueta retórica qualquer podem ser apenas um reforço persuasivo acrescentado a alguma demonstração lógica perfeitamente correta. deixando su- bentendida a argumentação lógica. ou em Lógica e Dialética. Le Vocabulaire de Kant: Doctrines et Méthodes. cheias de erros que perturbam a compreensão). também. São Paulo. III. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. várias reedições ~ mas cuidado com as edições deste livro.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 383 Fátima Sá Correia et al. de Mário Ferreira dos Santos (São Paulo. É. Logos. Fundação Calouste Gulbenkian. O estu- dante pode. 1955.. Paris. estudar a concepção kantiana (na Crítica da Razão Pura. 295 ss. pp. IV. trad. Au- bier-Montaigne. e verificar em que medida Schopenhauer a segue estritamente e em que medida lhe acrescentou alguma coisa. 1985. Essa concepção da dialética é uma extensão e desenvolvimento da concepção de Kant.. portanto. uma crítica e uma adaptação da dialética de . Martins Fontes. bem como em Roger Verneaux. Lisboa. 1967). 1996). o leitor pode tentar responder extensivamente. Foi ao estudo deste as- pecto que dediquei a maior parte da Introdução e dos Comentários Analíticos deste volume. Introduction à la Méthode d’Aristote (Paris. V. 1965). 2ª ed. 1992) e na- quelas. Um aprofundamento desse estudo pressupõe uma compreensão mais profunda da dialética de Aris- tóteles. mediante um . Vrin. Sob este aspecto. Matese. se. portanto.384 OLAVO DE CARVALHO Aristóteles. A dialética erística é. uma expressão das doutrinas metafísicas do próprio Schopenhauer. poderá verificar o quanto avançou.. após ler meu Aristóteles em Nova Perspectiva o estudante mergulhar nas densas páginas de Jean-Louis Dumont. finalmente. desde o tempo de Schopenhauer até agora. dos comentários de Mário Ferreira dos Santos às Categorias de Aristóteles (São Paulo. a compreensão do mé- todo aristotélico. mais densas ainda. às seguintes questões. México. cuja resposta abreviada. mas é mais seguro ir à tradução inglesa de R. pode-se começar pela leitura da excelente antologia Schopenhauer en sus Páginas. Haldane e J. Em que medida a metafísica trágica de Schopenhauer se funda numa teoria trágica do conhe- cimento? 2. De O Mundo como Vontade e Re- presentação há uma tradução portuguesa. Quixote. selección. boa mas incompleta. prólogo y notas de Pedro Stepanenko. segundo a entendo. de Raul de Sá Barbosa (Lisboa. Em que medida essa teoria trágica do conhecimento depende do divórcio irrevogável de lógica e dialética? Para um estudo da filosofia de Schopenhauer. for- neci nos Comentários Analíticos: 1. The World as . 1991.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 385 exame prolongado dos textos. Kemp. s/d). Fondo de Cultura Económica. B. todo o seu vigor e atualidade. como se vê pelos exemplos locais e atuais que forneci. 1906 (várias reedições). semelhantes ou diferentes dos meus.j. London.386 OLAVO DE CARVALHO Will and Idea. 1946. Será muito bom para mim saber que o leitor refez o circuito que percorri.. Um bom estudo geral é o de Frederick Copleston. . Arthur Scho- penhauer.. Philosopher of Pessimism. s. quer ele chegue a resultados iguais. 2. London. A Dialética Erística conserva. Conclusões A Introdução e os Comentários que aqui apresentei expuseram brevemente os resultados a que eu mesmo cheguei ao examinar a obra de Schopenhauer sob esses cinco pontos de vista. na sua parte prática e técnica. 3 vols. os quais passo a resumir: 1. Como crítico de Aristóteles. retórica e sofística são reduzidas a um mesmo plano e absorvidas na erística. 4.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 387 2. mas enquanto Kant dá à dialética uma utilização filosófica efetiva (na doutrina das antinomias). dialética. numa arte de disputar. Nessa concepção. radicalizando as opiniões de Kant. não mostra uma compreensão séria do alcance que o Estagirita dava à dialética e erra na apreciação de . A concepção schopenhaueriana da dialética é a de uma “lógica das aparências”. a concepção de Kant. Schopenhauer segue. 3. enfim. com- preendida num sentido similar. mas não totalmente idêntico. isto é. não reconhecendo para esta outro método senão a pura lógica. em geral. àquele com que Aristóteles empre- gava esta palavra. Schopenhauer opõe dialética e filo- sofia. Schopenhauer deixa a desejar. que se resume. que tem raiz numa visão trágica da existência. mas uma arte comple- tamente diferente. também. nada nos restando. A dialética erística de Schopenhauer não é. 5. Em Schopenhauer. nem um aperfeiçoamento nem um complemento da dialética de Aristóteles. pode apenas reconhecer sua impotência e curvar-se ao primado da Vontade arbitrária e ir- racional. não pode voltar-se sobre o passado e compreender reflexivamente esse processo. da Erística de seu discípulo Teofrasto. como pretendeu seu autor. refugiando-se enfim num .388 OLAVO DE CARVALHO vários conceitos particulares do método aristotélico. A oposição radical entre lógica e dialética está diretamente ligada à concepção trágica do conhecimento. o conhecimento. cume do processo cósmico. que talvez correspondesse à erística que Aristóteles menciona mas sobre a qual não nos legou nenhum escrito. no qual no entanto não lhe será revelado nenhum mistério reden- tor. O dualismo trágico dessa cosmovisão é reproduzido em miniatura na concepção scho- penhaueriana do método. a dialética erística de Schopenhauer. e outro que leva a um conhecimento material. tal como em Kant ou na escola analítica. o “estado estético”. se conserva seu vigor e seu utilidade prática. Em conclusão. a . só pode encaixar-se harmoniosamente numa concepção filosófica não-trágica na medida em que. renunciando a ser a única dialética possível. consinta em ser absorvida numa concepção mais ampla da dialética.COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES 389 estado de passividade contem- plativa. mas puramente formal (a lógica). Em Schopenhauer. mas falso ou indiferente à verdade (a dialética). marcada pela separação abissal entre um método que leva a um conhecimento verdadeiro. É sempre a tentação da Árvore da Ciência que leva o homem a perder a Árvore da Vida.390 OLAVO DE CARVALHO recusa da dialética em nome de um ideal de logicidade perfeita acaba por quebrar a “costela torta” que pretendera endireitar. Rio de Janeiro. Páscoa da Ressurreição de 1997. OLAVO DE CARVALHO .
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