SEDAC – STUDIUM ECLESIÁSTICO DOM AQUINO CORRÊA TEODICÉIA1 Professor: Pe.Paulo Ricardo de Azevedo Júnior Nota-se no homem uma pergunta sobre Deus. O perguntar fala do perguntante. I. INTRODUÇÃO 1. Definição da tarefa: O tema é a pergunta filosófica sobre Deus. Problema: o tema Deus não é empírico e sim metafísico. Vivemos numa época de suspeita à metafísica, suspeita esta iniciada por Kant quando afirma que só é possível o conhecimento empírico (KrV B 806). Aqui podemos notar, porém, a insensatez da afirmação de insensatez. A idéia de que somente afirmações demonstráveis possam valer como afirmações exatas certamente não é demonstrável empiricamente, de tal forma que, permanecendo com o critério de sentido de que dispõe, é ela mesma completamente insensata. Desde o início nos damos conta de que se trata de uma pergunta filosófica. A palavra filosofia indica desde o início uma aspiração amorosa à verdade absoluta e à sabedoria que nos torna felizes, não porém à sua posse. Agostinho fala de dois erros complementares que são empecilho para achar a verdade: a falta de confiaça na possibilidade de encontrá-la e a suposição de tê-la já encontrado 2. Trata-se aqui de uma busca científica que é justamente determinada pelo saber de não saber, na medida em que um espírito finito que se interroga sobre o infinito reconhecerá ao final que aquilo sobre o qual se pergunta transcende infinitamente a si mesmo e a sua inteligibilidade. A tarefa é o falar sobre Deus. Antes disso, porém, pode-se olhá-lo sob vários aspectos: ONDE falo num contexto. Existe um lugar, algo ao redor. DE ONDE falo a partir do sujeito falante. SOBRE O QUE no caso, Deus, mas: - a quem? - com que? - por quem? - contra quem? COMO método 2. Reflexões sobre o método e sobre a realização da tarefa: O pensar Deus na filosofia é uma realidade aporética. À pergunta filosófica sobre Deus não existe uma resposta definitiva e inquestionável. Ela é irrezolvível. Apesar disso, vê-se no homem uma disposição natural à metafísica. 1 Esta apostila foi elaborada a partir do livro de Norbert FISCHER, L’uomo alla ricerca di Dio. La domanda dei filosofi. Milano, Jaca Book, 1997, 390p. 2 «Restant duo vitia, et impedimenta inveniendæ veritatis [...] ne te contemnas, atque inventurum esse desperes, aut certe ne invenisse credas» (Conta Academicos, 2,3,8). Quando olhamos empiricamente para a realidade vemos a aparência das coisas. No entanto, o homem não se contenta com o fenômeno. Os sentidos nos dão o que as coisas são “para nós”, não o que são “em si”, o real, o sentido das coisas. Só a metafísica é capaz disso. Deus entra na filosofia porque o homem tem essa disposição natural à metafísica. A pergunta filosófica é uma pura busca que permanece aberta à resposta. Esta busca pode encontra a sua realização na fé religiosa; porém, tão logo começa a pensar em Deus confiando na fé, cessa de ser filosofia. Esta linha de fronteira, no entanto, vale apenas para o puro processo do pensamento, não para a vida concreta na sua inteireza. Fazemos a pergunta filosófica sobre Deus para demonstrar sua necessidade para os que já têm certeza de tudo, seja positivamente, seja negativamente. Este perguntar é a tarefa insolúvel e ao mesmo tempo necessária da filosofia. De tal forma que quem abandona esta pergunta já abandonou a filosofia. 3. A dialética entre o discurso e o silêncio. Em Heidegger, há uma valorização do silêncio como lugar da revelação do ser. Mas, para que haja silêncio é necessário haver palavra, e vive-versa. Uma coisa possibilita a existência da outra. Podemos falar de uma espécie de “silêncio eloqüente”. A dialética do discurso e do silêncio é constitutiva da possibilidade do discurso filosófico sobre Deus. Deus é inefável (fari = falar). Não podemos falar Deus, mas existe uma dialética entre o falar Deus e o silêncio. A tentativa contínua do falar Deus leva-nos a um silêncio, uma espécie de “silêncio eloqüente”. Será tentando falar de Deus que chegaremos a algum lugar Deus pode se mostrar no mundo apenas ao homem silente, e somente no silêncio os homens podem encontrar a manifestação de Deus e da magnificência divina. Deus pode se revelar ao homem no mundo somente através da alienação simbólica da sua essência. Porém o homem só pode tornar presente aos outros este evento pela fala. Wittgenstein diz no Tractatus Logico-Philosophicus: «As minhas proposições ilustram assim: aquele que me compreende, no final, reconhece-as insensatas, subiu por elas – sobre elas – para além delas. (Ele deve por assim dizer jogar fora a escada depois de ter subido por ela). Ele deve superar estas proposições; então vê corretamente o mundo» (6.54). Iª PARTE QUESTÕES PRELIMINARES SOBRE O HOMEM COMO LUGAR E PORTADOR DA PERGUNTA SOBRE DEUS. Antes de falar de Deus é preciso falar do homem. Por que o homem faz a pergunta sobre Deus? Que tipo de experiência o leva a isso? Que força assertiva, apofântica, tem o discurso sobre Deus? O encontro do homem com Deus deveria ser considerado como realização do seu ser e de sua busca finitos e como termo de toda pergunta e problema. Capítulo I SE O PERGUNTAR A RESPEITO DE DEUS É UMA CONTINGÊNCIA HISTÓRICA OU PERTENCE AO PRÓPRIO SER HOMEM DO HOMEM Trata-se da questão de se o homem que põe a pergunta sobre Deus seja um caso histórico específico ou se este perguntar pertença ao ser homem do homem. Trata-se de decidir se o pensamento sobre Deus deva ser compreendido somente como o sonho religioso da humanidade ou se a pergunta b) sobre Deus deva valer como constituinte implícito da genuína atuação do ser homem que não pode ser realmente colocado em questão nem mesmo na negação de Deus3. a) O homem como tarefa posta a si mesmo e teoréticamente insolúvel. O homem é dado a si mesmo como uma tarefa, uma missão. Ele não nasce homem. Deve realizar-se, construir-se, fazer-se. Mas, ele não consegue alcançar isso objetivamente. O homem não é uma realidade dedutível teoreticamente. Para onde vai o homem? O que ele é realmente? É um problema teorético sério. Porém, apesar dessa dificuldade, o homem deve buscar sempre. A vida do homem é uma “vida viva” (Agostinho, Confissões, 1,7), dinâmica, não estática.O homem é um espírito inquieto e que busca – “Cor inquientum” (Agostinho, Confissões, 1,1). Existe no homem um déficit de determinação. O espírito humano não é capaz de alcançar sua própria identidade. Não se conhece suficientemente. Então, não somente Deus, mas também o homem, como perguntante por Deus, é um mistério. Implicações metafísicas da realização prática de si mesmo por parte do homem, realização que não pode ser concluída. O homem não consegue realizar-se completamente. Não consegue por em ato toda a sua potencialidade. É uma tarefa inacabada. Isso tem conseqüências metafísicas? O homem só será feliz se atualizando, realizando-se – passagem para o ato. Conhecer - quando conhece o que quer se realiza Modos de realizar-se Querer - quando tem o que deseja se realiza Agir - quando faz o que quer se realiza O conhecer: Kant, através de sua crítica, renunciou à posse absoluta da verdade, reduzindo o âmbito do conhecimento para dar espaço à fé (KrV B xxxs). Segundo Kant, não existe conhecimento teórico sobre Deus. Se houvesse conhecimento sobre Deus, este deveria ser empírico, e isso, é impossível. Abre espaço à fé. Mata a Metafísica. Da mesma forma, empiricamente é impossível saber como o homem deve ser. Sabe-se, porém, que o conhecimento metafísico, que ultrapassa o empírico, não tem a mesma firmeza que este. Tem apenas um caráter aproximativo, assimptótico. Trata-se, na realidade, de um socratismo, um “saber de não saber”. A conseqüência metafísica o homem será eternamente um “filósofo”, somente “amigo da sabedoria”, com um “saber de não saber”. O querer: O homem é liberdade finita. Conseqüência: É muito difícil explicar metafisicamente o sentido de uma liberdade finita sem conceber uma liberdade infinita. Assim, Sartre pode tirar todas as conseqüências de um pensamento ateu. Nega a liberdade humana. O homem não é livre, ele é escravo da liberdade. Quando escolho de escolher, já escolhi. Assim, sou escravo da liberdade. É o drama da liberdade finita. Enxerga a liberdade somente como liberdade absoluta. A conseqüência metafísica O homem, enquanto liberdade finita não realizável, abre espaço para o transcendente. O agir: 3 Henri De Lubac dedica seu livro De la connaissance de Dieu «a meu amigos que crêem aos que crêem de não crer». O homem busca a realização da ordem perfeita. Surge assim a aspiração pelo sumo bem, que no entanto, exige o postulado da imortalidade da alma e da existência de Deus. Tanto no conhecer, quanto no querer e no agir, há uma limitação. Este limite define o homem como um ser insatisfeito, que o põe diante da realidade de um cor inquietum. Assim, o homem é, metafisicamente, necessitado de um absoluto. Essa é a conseqüência metafísica maior. Metafisicamente, no ser do homem, há uma sede de absoluto. SER DO HOMEM busca de um absoluto que não é ele. c) A impossibilidade de uma completa autocompreensão e de uma realização da vida por parte do homem. Vimos a finitude do homem no seu conhecer, querer e agir. Com isso, o homem vê sua incapacidade de responder a pergunta sobre si mesmo, de se compreender e, conseqüentemente, de se realizar na vida. Maurice Blondel – recorda a insanável desproporção entre o impulso do querer e a finalidade do agir humano (entre vontade e ação). Existe um abismo entre o élan (impulso) volitivo e a ação humana. O homem quer muito mais do que consegue fazer. A partir disso, vemos a realidade de que o homem tende a um objetivo que não vai alcançar nunca. Ou seja, o sobrenatural (Absoluto) é absolutamente impossível para o homem e, ao mesmo tempo, absolutamente necessário. É por isso que o homem é essa tensão: - Não alcança o Absoluto com sua ação; - Não se satisfaz se não encontrar o Absoluto. - Para a ação humana impossível chegar lá. - Para o querer impossível não buscar. Capítulo II AS “EXPERIÊNCIAS ORIGINÁRIAS” DA PERGUNTA SOBRE DEUS E A PERMANENTE PROBLEMATICIDADE DO SEU CONTEÚDO Dois tipos de experiências que conduzem a Deus: a inquietação e o entusiasmo. Ambas são qualitativamente superiores à “redução científica”. O que se vive é muito mais do que a explicação científica. A ciência pode explicar a inquietação do homem pela falta de um Absoluto e o entusiasmo pela beleza, etc., mas o homem sabe que tais experiências são muito mais que isso. a) A origem da pergunta sobre Deus nas experiências de estupor e de felicidade. O estupor é o início da Filosofia4. A mudez do estupor é eloqüente. Esse estupor não é objetivável, tematizável. Portanto, ele não pode ter a função de demonstração da existência de Deus. Não é prova. É uma luz que ilumina a direção para a qual o homem interroga. Quando a pessoa vive o estupor, vive também o desejo daquilo pelo qual está maravilhado. Há uma desproporção entre a redução científica e o estupor vivenciado. A Felicidade, cujo conteúdo não se pode agarrar e que não é presa no tempo, também é muito mais do que se pode descrever. Portanto, diante da experiência de estupor e felicidade, o homem se põe a pergunta sobre Deus. b) A origem da pergunta sobre Deus na experiência de tristeza e desgraça. 4 «Este na verdade é o sentimento do filósofo, o estupor: não há outro princípio da filosofia se não este – ma/la ga\r filoso/fou tou=to to\ pa/qoj, to\ qauma/zein: ou) ga\r a)/llh a)rxh\ filosofi/aj h)\ au(/th» » (Platão, Teeteto, 155d). O sucesso nas ocupações diárias pode levar a uma certa satisfação. Esta, porém, é prematura e mesquinha se tentar esconder a falta insuperável de perfeita satisfação do verdadeiro desejo humano, dissimulando a pergunta que transcende o mundo. A desgraça pode se abater sobre uma pessoa quando o sofrimento e a morte aparecem em sua vida e quando a liberdade humana produz um agir culposo (cf. Confissões, 4,7ss). O sofrimento é uma forma de experimentar a presença de Deus. Diante do sofrimento a pessoa se faz a pergunta: “E Deus?”. c) O problema da necessidade de a Filosofia interpretar a experiência religiosa. Trata-se do problema da hermenêutica da experiência religiosa. Para os antigos, o problema fundamental consistia no “ quid est”, na busca pela essência de Deus. Nos tempos modernos esse problema não tem relevância. Para o homem moderno é o problema hermenêutico: o que significa Deus? Portanto, revelar o significado ou ausência de significado de Deus. “Círculo Hermenêutico” (Gadamer). O problema do fenômeno religioso é hermenêutico, é de significado. Não tanto factual. Não é da evocação científica e sim da interpretação “hermenêutica”. A experiência religiosa pode e deve ser interpretada. E isso cabe à Filosofia. Rudolf Otto que estudou a Fenomenologia da Religião se dedicou à análise do numinoso (sentimento criatural, o mysterium tremendum, o esplendor, o fascinans, o sanctum). Capítulo III A ASSERTIVA DO PENSAMENTO TRANSCENDENTE ACERCA DA PERGUNTA FILOSÓFICA SOBRE DEUS. O pensamento transcendente tem consciência da própria problematicidade. Porém é necessário não julgar a metafísica a partir de uma falsa identidade. O iluminismo quis dar à filosofia o mesmo estatuto epistemológico das ciências exatas. Com isso condenou a metafísica como ilusória, já que ela é incapaz de produzir uma tal certeza matemática. A metafísica tradicional, porém, jamais teve uma tal pretensão. A metafísica se reconhece como filo-sofia, como saber de não saber. a) A proximidade e a distância do espírito interrogante de uma verdade absoluta e perfeita. A Metafísica foi acusada como sendo um sonho (Voltaire), uma mentira (Nietzsche), um pseudoproblema (Carnap). Até que ponto o pensamento filosófico sobre Deus é capaz de mostrar, afirmar alguma coisa? Vemos que o homem tem a necessidade de perguntar sobre o Absoluto, porém, não é capaz de um pensar o Absoluto. Se pensar o Absoluto, não é o Absoluto. Então, somos capazes de um pensamento transcendente que reconhece seus limites. Assim, não se trata de um pensamento absoluto, mas de um pensamento transcendente limitado, que, porém, tem a ousadia de perguntar sobre Deus, mesmo diante da morte, mesmo diante de sua limitação. O homem vive numa tensão existencial entre uma verdade pobre em conteúdo, mas absolutamente certa e uma verdade plena em termos e conteúdo, porém, insegura. b) O pressuposto do interrogante livre da mera realidade factual e da finitude da sua força. O homem é livre. Mas, de uma liberdade limitada. Por que é importante que o homem seja livre? Porque, se não há liberdade, ele não pode ser um investigador, um perguntador e, assim, não há busca. A liberdade aspira ao Sumo Bem. Nada basta para o homem. Ele pode ter tudo, mas sempre quer mais. Os bens pequenos e passageiros não são suficientes. Tende para o SUMO BEM, mas escolhe bens limitados. Quando existe uma escolha, ela está marcada pela não realização. Essa não realização da finitude do homem é que abre a janela para que enxergue que o que ele busca é o Sumo Bem. c) A temporalidade do homem como horizonte de sua pergunta sobre a eternidade. Ao perguntar sobre Deus, pergunta-se sobre um eterno. Quando recebemos as coisas, captamo-las dentro de dois transcendentais: espaço e tempo. Enquanto estrutura do pensamento não se é possível subtrair-se do tempo. O pensamento só funciona segundo um antes e um depois. Isso quer dizer que somos incapazes de pensar o eterno. Como é, então, que querermos pensar o eterno? O transcendental tempo ao mesmo tempo possibilita o pensamento (antes-depois) e o condiciona, o limita, tornando-o incapaz de conceber o eterno. Como, então, pensar o eterno? Na simples percepção do tempo enquanto tal se pressupõe um momento que ultrapassa esta fugacidade do temporal que parece aniquilar todas as coisas. IIª PARTE A NECESSIDADE E A DIFICULDADE DOS ENUNCIADOS QUE EXPRIMEM O CONTEÚDO DA ESSÊNCIA DE DEUS. Existem várias visões a respeito de Deus: teísmo, deísmo, visão mágica de Deus... Mas, entre as várias concepções, existe um conceito básico, um consenso mínimo a que todos chamam de Deus. Tomás de Aquino, ao final das suas cinco demonstrações da existência de Deus diz: “Et hoc omnes dicunt Deum” – e isto todos chamam de Deus. Existe, então, algo em Deus que é óbvio? Ou ele é algo que muda conceitualmente: hoje é uma coisa, amanhã outra? «Que o homem contemporâneo tenha ou não um Deus é um fato secundário diante do conceito com o qual ele pode ainda compreender o que signifique ter um Deus» (Hans Blumenberg). É preciso compreender o que significa ter um Deus, tendo-o ou não. Deus é importante para o homem função antropológica – o homem é finalidade. Se há um Deus, o homem é para Ele. Deus é a finalidade. É prioritário sobre o homem. Antes de descobrir se Deus existe ou não é preciso sabre “quid sit”, o que Ele é. De onde então devemos partir? - Antiguidade partiu do cosmos (abordagem cosmológica) - Modernidade parte do homem (abordagem antropológica) A abordagem antropológica coloca Deus em função do homem. Porém, reduzir Deus a um conceito funcional, utilitarista, pragmatista, é destruir o conceito de Deus. A relativização funcional de Deus faria escapar de nossas mãos o tão buscado absoluto. Se Deus é para mim, ele é relativo. Então, já não é o absoluto, é o relativo que me ajuda. Um Deus funcional é um Deus que não é Deus. Se existe um Deus ele precisa ser independente do homem, a causa de si mesmo e a finalidade. Mas, ao mesmo tempo, não se pode deixar de partir do homem, pois o homem moderno busca o significado das coisas para si. A Filosofia moderna nasce do cogito cartesiano, do sujeito. O homem é o ponto de partida. Isso está na nossa mentalidade. Proceder de forma diferente no tratado sobre Deus é torná-lo irrelevante, nulo. Como, então, partir do homem? Primeiramente, tomar consciência de sua finitude. Depois, proceder por infinição, que é o caminho da des-limitação de Deus. O caminho da definição, da delimitação de Deus seria sua destruição. Então, tomo consciência de minha finitude e entro, por assim dizer, na infinitude de Deus. Capítulo IV O PROBLEMA DA PERGUNTA: SOBRE AS PROPRIEDADES E SOBRE A ESSÊNCIA DE DEUS Somente um ser finito pode ser captado como ente determinado. Portanto, o pensamento transcendente parece cair em uma aporia insustentável quando tenta compreender conceptualmente a verdade incondicionada e infinita. Uma realidade infinita que fosse representável pelo finito de maneira determinada daria origem, justamente por causa de sua presumida clareza, a uma simples ficção intelectual, uma quimera. a) O duplo significado de o homem não poder saber a respeito da essência de Deus. Significado negativo: O homem que quer apreender a presença de Deus partindo do mundo está submetido a um verdadeiro “suplício de Tântalo” (o objeto de desejo é inatingível), podendo apreender a presença de Deus somente no não concebê-lo. «Deus é aquele que se conhece melhor não conhecendo – Deus est qui scitur melius nesciendo » (Sto. Agostinho, De Ordine, 2,44). Significado positivo: Se o homem pudesse falar de forma determinada do infinito, ou a sua finitude seria deformada pela infinitude de Deus, ou a infinitude de Deus cairia, por assim dizer, nas mãos do homem. Somente renunciando à afirmação usurpada de um conhecimento relacionado com a verdade absoluta do todo, um homem finito pode viver a própria vida pensando e crendo no Deus infinito. b) A necessária determinação da pergunta sobre o infinito. Quem capta o conceito de Deus de forma determinada torna Deus finito e, assim, não fala mais do infinito; quem, porém, tenta falar dele de forma indeterminada, erra igualmente o alvo. O discurso sobre Deus seria absolutamente insensato. “De uma resposta que não se pode formular não se pode formular nem mesmo a pergunta. Não existe enigma. Se uma pergunta pode ser colocada, pode existir também uma resposta.” (Wittgenstein – T.L.F. 6.5). Contra essa afirmação, porém, devemos considerar que o homem se experimenta como uma pergunta para a qual não há resposta. c) A dificuldade na denominação da essência de Deus na passagem para o pensamento infiniente. Três caminhos possíveis: a) “via affirmativa” – acredita que se pode dizer algo positivo sobre Deus, mas de forma analógica. b) “via negativa” – atribui-se a Deus conceitos negativos: infinito, ilimitado... c) “via eminentiæ” – mesmo caminho da affirmativa: pega uma qualidade positiva nas criaturas e eleva-a ao nível superlativo: o homem é bom. Deus é a Bondade. A pretensão de que Deus deva ser pensado, quanto ao conteúdo, de uma forma unívoca, para que a sua existência possa ser demonstrada, parece viciada desde a origem, na medida em que a realização dessa exigência destrói a própria possibilidade de alcançar a finalidade desejada. Portanto, a hipótese assumida, aparentemente paradoxal, que seja melhor conhecer Deus no não conhecer encontra a sua justificativa racional na peculiaridade daquilo que visa a pergunta. Existem tradições conciliatórias que atribuem a Deus propriedades bem determinadas sem que seja claro a sua fonte: onipotência, bondade infinita, auto-suficiência... Não há como negar que se tratam de infinições de características positivas do homem. Capítulo V A REALIDADE EM QUESTÃO NA PERGUNTA SOBRE DEUS COMO PONTO DE PARTIDA PARA O “FALAR ANALÓGICO” DE DEUS. Tomás de Aquino (†1274), seguindo a tradição de Dionísio Pseudo-Areopagita (V/VI séc.), considerava evidente que os homens não pudessem conhecer a essência de Deus. «Quid est Deus nescimus» (De Potentia 7,2 ad 11). No entanto, na Suma Teológica, escreve uma questão intitulada “Sobre a essência de Deus”. Ele não vê nenhuma contradição no seu modo de agir, porque o reconhecimento da razão humana como limitada não impede a valorização desta mesma razão finita. É uma espécie de socratismo cristão. Não considerar a finitude da razão humana desembocaria necessariamente em um otimismo desenfreado. Seria a razão que se impulsiona, positiva ou negativamente, a elaborar um juízo, não sem uma certa u(brij, sobre Deus. Tal pensamento, que quer pensar Deus mediante infinições do finito, está exposto à crítica de quem vê nos seus resultados o fruto de meras projeções nascidas da negação do finito. Karl Barth († 1968), por exemplo, afirma: “Não existe para nós nenhum caminho que conduza a Deus, nem mesmo a via negativa, ou uma via dialética ou paradoxa. O Deus que estivesse no final de um caminho humano já não seria, por isto mesmo, Deus”5. Barth abandona a razão à sua perplexidade e admite somente o caminho da revelação. A tradição católica, no entanto, embora admita o limite da razão humana, se recusa a desprezar a razão, pois, embora manchada pelo pecado original, Deus não criaria um instrumento de engano. Segundo Karl Rahner (†1984), se a razão humana não fosse autônoma e livre, o homem não poderia ser um autêntico ouvinte da Palavra, ou seja, não seria capaz de receber uma revelação, que exige também um assentimento racional6. Para os protestantes, pessimistas em relação à natureza humana, depois da Queda, a natureza e a razão tornaram-se enganosas. Tal afirmação não deixa de conter uma certa verdade, porém não se trata de uma realidade que afeta a estrutura da própria razão. A ascese contribui grandemente para a purificação da razão aprisionada pela filauti/a. a) Os pontos a partir dos quais se movem as infinições com relação ao falar analógico de Deus. Se a razão humana pode exprimir o Deus infinito somente a partir do finito, a diversidade do falar irá depender da diversidade dos pontos de partida finitos. O ponto de partida condiciona o discurso a respeito do infinito. O finito que pode ser infinitizado positivamente em Deus deve ser necessariamente bom e verdadeiro. Uma bondade e uma verdade que coloque o homem num estupor apaixonado, ao mesmo tempo de temor e reverência, conduzindo-o à pergunta sobre Deus. Isso, porém, não significa a divinização do ponto de partida. Divinizá-lo seria cair na ausência de Deus (quando tudo é Deus, nada é Deus). Um falar sobre Deus que nasce destas infinições pode ser interpretado, segundo a tradição neo-tomista, como via do conhecimento analógico. Tais infinições podem ser iniciadas a partir dos conceitos de base da realidade específica do homem. A infinição do conhecimento humano conduz ao pensamento da onisciência; a do querer humano ao pensamento da onipotência; a da temporalidade ao pensamento da eternidade. Trata-se de uma reformulação da doutrina da “analogia entis”. Cf. Erich Przywara († 1972) e Hans Urs von Balthasar († 1988). b) Exemplo de infinição tirado do contexto do conhecimento teórico. O conhecimento humano supõe uma unificação da multiplicidade dada (seja progressiva, seja regressiva) reconduzindo o todo à sua origem; estes dois caminhos nos levam ao infinito inconcebível (cf. Kant, KrV B 438). Com relação ao limite espacio-temporal do mundo, a possibilidade do perguntar atinge uma amplitude infindável, sem poder porém atingir o infinito ( KrV B 546). Este resultado pode ser insatisfatório para a razão teorética que tem em vista resultados unívocos e um saber soberano; ele porém é o sinal da verdadeira situação da razão humana, cujo pensamento determinante malogra tão logo busca a verdade incondicionada e absoluta. A razão humana está essencialmente em busca da unidade de tudo, embora esta permaneça enigmática e misteriosa. c) Exemplos de infinições tirados do contexto do conhecimento prático. 5 Das Problem der Ethik in der Gegenwart. 153. 6 Cf. Hörer des Wortes, 105-134. A boa vontade só pode ser pensada como vontade que quer a realização do bem. Esta boa vontade quer que tudo seja o mais perfeitamente ordenado. Esta boa vontade constitui o bem supremo que o homem pode alcançar com suas forças. Ela, porém, não é boa porque quer ser uma boa vontade, mas porque quer a realização do bem (por falta de força e conhecimento). Porém, quem não tem conhecimento e é fraco, tem a possibilidade de buscar a verdade e de reconhecer a própria fraqueza. Aspirando à suprema ordem perfeita ele faz algo de plenamente sensato. Porém, na incapacidade de realizá-la, reside o conhecimento de uma falta que pode ser superada somente graças a um Senhor do mundo, infinitamente justo e bom. À aspiração da boa vontade pertence a tendência a uma infinição de sua eficácia. Capítulo VI TENTATIVA DE UM ESCLARECIMENTO SISTEMÁTICO DO QUE SE TENTA OBTER NA PERGUNTA SOBRE DEUS. a) Deus como origem absoluta da possibilidade da experiência do mundo e da instância moral. O ateu ou indiferente diante da pergunta sobre Deus poderiam justificar o seu ateísmo ou indiferença afirmando que não há motivo algum para se interrogar sobre um além do mundo ou dizendo que Deus seria inútil, se não até mesmo nocivo para o homem. Em ambos os casos, se esconde a tese geral segundo a qual é necessário contentar-se com o mundo humano ou da natureza materialmente fundada. O homem, no entanto, se experimenta no mundo como um ser problemático a si mesmo, pois desconhece a si mesmo e a sua origem. Ora, tal origem não pode ser conhecida como algo que se encontra no mundo e a sua resposta não comporta uma certeza como um “saber de domínio”, ou uma metafísica da vontade de potência. A pergunta sobre a origem absoluta pode ter como sentido a aproximação do homem consigo mesmo. Uma visão mecanicista da origem do mundo (como a de Darwin) pede, por princípio, uma interpretação filosófica. O homem experimenta o mundo como evento, acontecimento e não como um processo mecânico causal. O resultado das ciências naturais não responde à pergunta filosófica fundamental: quem sou eu, em virtude da minha origem? A compreensão evidente que o conhecimento humano não tenha capacidade de responder a esta pergunta de maneira definitiva não anula o seu sentido. Tal fenômeno pode ser interpretado positivamente pois, neste saber de não saber, o homem chega a uma compreensão de si mesmo. Também no campo da razão prática, a pergunta sobre a origem é determinada em seu núcleo por uma decisão. Quem decide por um agir sensato e se aceita como ser livre e responsável vai na direção de uma origem diferente daquele encontrada apenas no mundo. b) Deus como força absoluta que sustenta a realidade presente do mundo e do homem. A obviedade da existência do mundo é um fenômeno significativo, que chama a atenção, sobretudo porque não possui qualquer fundamento suficiente nas coisas e nas forças mutáveis e caducas que se encontram na realidade mundana. “Nós nos comportamos com grande segurança, como se o nosso ser nos pertencesse de forma estável”7. Este normal sentimento vital oculta conseqüentemente o espetáculo da nadidade da vida. A experiência do pensamento faz desaparecer a imediata segurança do ser, interpretada por Heidegger como antecipação da possibilidade incondicionada da morte. Tem-se, então, a experiência de ser sustentados no nada. “Diante da inegável realidade de que o meu ser é fugaz, prorrogado, por assim dizer, de momento a momento, e sempre exposto à possibilidade do nada, coloca-se uma outra realidade, igualmente irrefutável, que, não obstante tal fugacidade, eu sou, e de instante em instante, sou conservado no ser e que eu posso colher neste meu ser fugaz algo de duradouro”8. 7 Edith STEIN, Endliches und ewiges Sein, 56. 8 c) Deus como fim absoluto esperado, mas não realizável pelo agir, da aspiração humana. O homem sente na sua consciência a proximidade da morte. De certa maneira o vazio do nada ameaça devorar a sua existência temporal. A pergunta sobre o futuro absoluto é orientada pela consciência da morte. Tal pergunta é alimentada pela esperança do desaparecimento da fugacidade do tempo na eternidade. Porém, não se pode deduzir a esperança. Mesmo assim, diante da morte como realidade destruidora de sentido e, por assim dizer, incrível, a esperança se apresenta como crível. “A fé é realmente um milagre; é incrível e, no entanto, é sempre mais crível do que a morte”9. A partir da vida humana, enquanto busca de sentido, o pensamento se move na direção da origem de tudo, da potência que o mantém no presente e do fim no qual o homem e o mundo encontram sua última realização. Se e como deva ser pensada esta realização, não parece ser uma pergunta à qual o homem possa responder. Na impostação do nosso curso, a acusação de antropomorfismo cai no vazio pois ela se apóia na infinição do finito. Fica claro, então, sobre o que se deve interrogar quando se trata de Deus no campo filosófico: Deus é buscado enquanto potência que não está absolutamente disponível e que, no entanto, fundamenta todo sentido, ou seja, torna possível e leva a termo a intuição de sentido que o homem realiza originariamente. Deus é, assim, pensado como o alfa e o ômega do ser e do sentido da liberdade, à qual aspira o homem enquanto ser finito. Embora o pensamento da infinição determine a direção do interrogar, Deus (sobre o qual se apóiam as esperanças do homem oprimido pelos enigmas) permanece essencialmente distante do pensamento finito. Se a esperança de um sentido absoluto encontrasse, no final, o seu objetivo último, a própria esperança já seria, para aquele que a vive, o maior dom de todos os dons no mundo. Iremos agora investigar se existem reflexões racionais a favor de uma tal esperança. O IIIª PARTE DEBATE FILOSÓFICO SOBRE A Capítulo VII EXISTÊNCIA DE DEUS. SOBRE O SENTIDO DA ELABORAÇÃO DAS DEMONSTRAÇÕES DA EXISTÊNCIA DE DEUS E SOBRE O “CARÁTER MODAL” DOS POSSÍVEIS RESULTADOS. a) Os impulsos essenciais na elaboração dos argumentos a favor da existência de Deus. A tentativa de provar com espírito de geometria a existência de Deus cria uma ficção, pois não podemos dissimular como se o coração do homem não dependesse deste problema [de Deus], em uma avaliação, por assim dizer, imparcial, sine studio et ira. O pensamento racional nos permite sim de esperar na realidade de Deus, mas não de demonstrá-la de maneira objetivamente vinculante. Os caminhos para a demonstração podem ser gnosiológicos, ontológicos e cosmológicos. Mas estes mesmos caminhos podem favorecer contra-argumentações. Pois, ao assumir a contingência do finito, pode-se encontrar pretextos contra e a favor do ser absolutamente necessário de Deus. O conhecimento de Deus é uma tarefa difícil, pois necessariamente contrapõe Deus e o homem. Edith STEIN, ibidem. 9 Dolf STERNBERGER, Über den Tod, 34. “Non potest homo naturaliter velle Deus esse Deus [...] Immo vellet se esse deum et Deum non esse Deum”10. O homem, pela sua natureza [decaida!], não pode querer que Deus seja Deus, mas ao contrário, o homem desejaria ele mesmo ser deus e que Deus não fosse Deus. “Não se trata de ateísmo, mas de uma ‘troca’ de papéis do único Deus, de tal forma que não basta a pretensão de gritar eu também! A rivalidade só pode ser absoluta”11. Devido a esta rivalidade, o ateísmo será necessariamente rumoroso. Assim, as demonstrações da existência de Deus, demonstram-se necessárias como contraposição, mesmo se são simplesmente indicações do pensamento finito que convidam à transcendência. b) O aumento da problemática nas tomadas de posição diante da existência de Deus a partir de motivos práticos. A pergunta sobre Deus, a partir das motivações da filosofia prática, obtém uma urgência da qual nenhum homem pode se subtrair. Trata-se de motivações de caráter moral, portanto, direcionadas à realização do próprio sujeito. No entanto, mesmo as motivações práticas necessitam de uma elaboração teórica. c) A questão da modalidade na aceitação e confutação da existência de Deus. A tomada de posição sobre a existência de Deus possui diferentes graduações modais, que estão na base da distinção geral subsistente entre opinião, fé, e saber. O próprio Kant faz distinção ente o opinar, o saber e o crer. Se uma opinião não pode ser excluída por motivos racionais, ela pode ser considerada não impossível.Se nada pode ser objetado contra esta possibilidade, a opinião em questão pode ser sustentada. Tomás de Aquino explicita como se dá este assentimento: per seipsum cognitum ab obiecto cum necessitate (a partir do objeto por necessidade) (conhecido por si mesmo) per aliud cognitum assensus (assentimento) (conhecido por outro) cum dubitatione: opinio (com dúvida: opinião) per electionem (por escolha) cum certitudine: fides (com certeza: fé) →Trata-se de saber se a existência de Deus seja: - 1. Possível; - 2. Lícita; - 3. Necessária; - 4. Imperativa 1. Se é possível: O encontro do homem com a existência de Deus passa por um primeiro nível de dificuldade. Não se trata de saber primeiramente se ele existe, mas de saber se é possível que ele exista e se é possível que o homem assuma sua existência. Ora, a negação da existência de uma realidade incondicionada e infinita por parte de um ser determinado pela finitude e pela contingência é, 10 Martinho LUTERO, Disputatio contra Scholasticam Theologiam, 17. 11 Hans BLUMENBERG, Matthäuspassion, 16. do ponto de vista teórico, um empreendimento ridículo. Ao mesmo tempo em que o homem reconhece que não é capaz de um saber absoluto, deve permanecer aberto à verdade. 2. Se é lícito assumir a existência de Deus: A esperança de uma realização absoluta pertence à essência de homem. Ela põe diante do homem a necessidade de uma confiança sem a qual a sua aspiração seria no fundo insensata. 3. Se o homem deve necessariamente assumir a existência de Deus: A necessidade de aceitar a existência de Deus não ultrapassa o modus deficiens do saber de não saber. 4. Como assumir a existência de Deus? No campo moral é dever do homem aceitar a existência de Deus, pois o homem deve acreditar que a aspiração à realização dos bens supremos (exigida pela razão prática) não se perde no nada. Assim, deve-se compreender que uma demonstração da existência de Deus não será uma inferência lógica necessária, coativa, que não permite réplica alguma. Pois, ao final da cadeia argumentativa, não iremos encontrar a evidência incontestável da existência de Deus. Iremos perceber, isto sim, que a existência de Deus é possível, lícita e imperativa. A realização das disputas sobre a possibilidade da demonstração de Deus, que se tornaram mais agudas, acirradas, no início da época moderna, mas que neste ínterim foram reduzidas a um significado meramente relativo dentro do âmbito de uma reflexão filosófico crítica sobre o pensamento de Deus, causou o fim necessário do sentimento de superioridade típico do início da era moderna, de tal forma que hoje nos dirigimos à filosofia antiga com um interesse não somente historiográfico, mas dirigido á sua efetiva pertinência. Capítulo VIII ALGUMAS NOÇÕES DAS MAIS IMPORTANTES VIAS TRADICIONAIS DA DEMONSTRAÇÃO FILOSÓFICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS Se o homem pudesse conhecer a essência de Deus a questão de sua existência perderia sentido, porquanto a essência de Deus representa a resposta que satisfaz a toda pergunta, o fim de toda dúvida. a) O argumento ontológico de Santo Anselmo: Deus como ser supremo e necessário que existe indubitavelmente por si mesmo. O ente mundano não traz consigo a origem do próprio ser, ao contrário do ser perfeito e persistente que se caracteriza pela autopossessão absoluta do ser. Esta tese ontológica constitui o fundamento do pensamento de Anselmo de Cantuária († 1109) que tenta expor uma demonstração de Deus no seu Proslogion. Anselmo inicia com uma oração, na qual aconselha ao leitor de fugir das ocupações e da confusão que tornam a vida mundana inquieta, para tentar buscar um pouco de paz em Deus . «Doce me quærere te et ostende te quærenti; quia nec quærere te possum, nisi tu doceas, nec invenire, nisi te ostendas [...] Quæram te desiderando, desiderem quærendo. Inveniam amando, amem inveniendo – Ensinai-me a buscar-vos e mostrai-vos ao que busca; porque nem eu posso buscar-vos, se não me ensinais, nem encontrar, se não vos mostrais [...] Que eu vos busque desejando, deseje buscando. Que eu vos encontre amando, ame encontrando» (Pr 1). Deus como «aliquid quo maius nihil cogitari potest». Argumento do Proslogion – “penso um ser do qual não se pode pensar um maior. Ora, o ser do qual não se pode pensar um maior tem, necessariamente, a existência. Logo, um ser do qual não se pode pensar um maior existe”. 1ª crítica: O argumento de Anselmo admite que pode ser pensado um ser cuja não existência seja impensada. Mas isso não é prova da existência desse ser. Prova somente a existência de sua idéia. 2ª crítica: Deus é sempre maior do que tudo que possa ser pensado. Anselmo parece forçar os limites do pensamento humano. Emanuel Lévinas chama a atenção para o fato que Deus ultrapassa os limites do ser pensado e da possibilidade. A questão decisiva é o que significa a pergunta sobre Deus. “Um Deus demonstrado não é mais Deus, por isso somente quem parte de Deus pode buscá-lo. Uma certeza do ser de Deus, porquanto esteja enraizada e seja incompreensível, é uma premissa e não o resultado do filosofar” (Jaspers). O argumento ontológico é retomado por Descartes e criticado por Kant. Kant faz a distinção entre o real e o possível. “Assim, o real não contém nada mais do que o simplesmente possível. Cem táleres reais não contêm nada mais que cem táleres possíveis…Com relação ao estado do meu patrimônio, porém, em 100 táleres reais há algo mais do que simples conceito (ou seja, na sua possibilidade)”. (KrV B, 627). b) O argumento noológico de Santo Agostinho: Deus como verdade absoluta, alvo de toda busca finita da verdade. Na antiguidade, as demonstrações da existência de Deus eram fruto de um diálogo entre os crentes. Por isso, não tinham por finalidade persuadir um incréu. Queriam somente demonstrar como a certeza da fé podia se tornar também uma evidência racional. O fio condutor do argumento agostiniano é o aforismo: « Ubi inveni veritatem, ibi inveni Deum meum – onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus» (Confissões 10,35). No diálogo De libero arbítrio os dois interlocutores, ambos crentes, se perguntam como a existência de Deus possa se tornar racionalmente evidente. 1° passo: antes de tudo demonstra a existência do homem, como vivente e cognoscente; 2º passo: demonstrar a supremacia provisória da razão; 3º passo: demonstrar que esta razão necessita de algo superior a ela, pois ela sabe de não saber; 4º passo: algo superior ao espírito finito é necessariamente Deus. c) O argumento cosmológico de Tomás de Aquino: Deus como fundamento da existência da realidade mundana A primeira via parte do movimento. É a via mais evidente, pois tem como início uma constatação sensível, ou seja, algo no mundo se move. Tomás toma como pressuposto o seguinte princípio: “tudo que se move é movido por outro”. 1ª conclusão: algo não pode ser sob o mesmo aspecto movido e movente. 2ª conclusão: trata de excluir que se possa, na busca de um movente, regredir ao infinito na série de motores movidos. A exclusão dos regressos in infinitum se baseia no fato de que não existiria um motor movido se não houvesse um primeiro motor. O fenômeno do movimento, tal como ele é percebido pelos sentidos, exige um fundamento racional, “por isso é necessário chegar a um primeiro motor que não é movido por ninguém e a este, todos chamam Deus”. A segunda via parte de um conceito. O conceito metafísico de Aristóteles chamado causa eficiente. De forma análoga ao primeiro argumento, chega-se à conclusão de que a auto-causação é impossível. As causas eficientes no mundo podem ser pensadas somente como causas eficientes causadas. Assim, é necessária a existência de uma causa primeira transcendente. A terceira via é conclusão das duas primeiras. Há dois tipos de ser, o possível e o necessário. A característica marcante do ser possível é ter origem e fim. Se tudo pertencesse ao ser possível em algum momento dever-se-ia constatar o nada. Mas isso não acontece, logo existe um ser necessário. “A necessidade incondicionada, que nós exigimos com tal urgência como sustento último das coisas, é o verdadeiro abismo da ação humana” (Kant, KrV B, 641). Ou seja, os homens são incapazes de um regressus in infinitum assim como são incapazes de um regressus in finitum; fica somente a possibilidade de buscar as causas de modo indeterminado (regressus in indefinitum). A contingência dos fenômenos, que nos envia a uma transcendência, é um momento estrutural da filosofia de Kant. O transcendente, porém, permanece incognoscível (a coisa em si). d) O argumento teleológico de Tomás de Aquino: Deus como a causa final e como autor, que opera finalisticamente, da realidade mundana. A quarta via se apóia na reflexão gnosiológica e ontológica de Platão. A perfeição suprema é o pano de fundo dos graus de perfeição mundana. Tal perfeição pode ser interpretada no sentido de causalidade final. Aristóteles recorda que o primeiro motor imóvel move todo o resto da mesma forma que o amante move o amado. Segundo Kant, esta é a demonstração mais antiga, mais clara e que mais se adequa à razão humana. Kant não aprova a sua pretensão de certeza apoditiva, mas reconhece que ela corrobora a fé em um supremo criador até transformá-la em uma convicção irrefutável. A quinta via de Tomás de Aquino determina que as coisas necessitam de um princípio de que as governe. Na ausência da razão as coisas não podem dar a si mesmas uma orientação efetiva. Por exemplo, como explicar a espantosa finalidade dos órgãos corpóreos e dos complexos mecanismos que os regem? Tal argumento conduz à necessidade não de um criador (conceito evidente somente à luz da fé), mas de um arquiteto do cosmos. e) O argumento filosófico-moral: Deus como origem e finalidade do ato de vida responsável do homem. Trata-se de um argumento que leva em consideração as certezas teóricas do argumento teleológico. No entanto, encontra no âmbito da razão prática um conteúdo rico, porém é alheio à razão teórica. Trata-se da busca da felicidade verdadeira que postula os problemas insolúveis da: 1. Liberdade do querer; 2. imortalidade da alma; 3. existência de Deus. Os maiores prazeres possíveis nos conduzem a uma experiência do limite. E uma vida conduzida pelo simples prazer se transforma um instante depois, no seu contrário. A problemática se torna mais aguda onde incide a morte com a perplexidade por ela causada tornando duvidosa a possibilidade de gozo da felicidade mundana. “O conceito de felicidade não é tal que o homem possa extraí-lo de seus instintos, derivando-o, assim, de sua animalidade”. (Kant, Crítica do Juízo, p. 388) Isto faz com que Kant desenvolva um postulado da razão pura prática (a necessidade de o homem alcançar sua própria realização) transformando-o numa demonstração moral da existência de Deus. A liberdade humana implica uma teleologia moral. Esta liberdade não necessita, para sua atuação, de uma causa externa, porém, enquanto seres do mundo, estamos ligados às coisas do mundo. Tal relacionalidade da liberdade nos põe diante daquilo que é moralmente necessário: um escopo final que não exige um outro como condição de sua possibilidade. Capítulo IX OS FUNDAMENTOS OBJETIVOS DAS REFUTAÇÕES DA EXISTÊNCIA DE DEUS E DE SUA DEMONSTRABILIDADE Kant nega uma demonstração da existência de Deus de caráter científico como a matemática, mas não rejeita uma argumentação que sustente a aceitabilidade da fé em Deus. Nietzsche toma essa realidade como ponto de partida para não aceitação das provas de Deus. “Uma demonstração de Deus, v. g., pode ser construída com todos os meios da lógica formal mais rigorosa, e, no entanto, não demonstra nada, pois um Deus, cuja existência deve ser demonstrada, é no fundo um Deus muito pouco divino e a demonstração de sua existência termina por ser, no máximo, uma blasfêmia” (M. Heidegger, Nietzsche I, 366). a) A falta de uma manifestação natural de Deus no mundo e o não saber sobre o ser de Deus. Deus não é percebido de forma imediata no mundo. Se isto acontecesse acabaria para o homem toda não-verdade e maldade. É, portanto, evidente que uma liberdade finita só pode habitar diante de Deus tendo superado a sua fase decisória. A ausência de um encontro imediato com Deus é, portanto, a condição da possibilidade da vida do homem no mundo. O mistério prepara o homem para receber o dom inesperado e gratuito da felicidade pela qual aspira. Esta realidade levou pensadores, de Martinho Lutero a Karl Barth, a sustentar que seja inoportuno um conhecimento certo da verdade absoluta. Do ponto de vista católico, a mediação da natureza possibilita o caminho das infinições do finito, mesmo sem poder apreender o infinito como tal. Tal posição levou Feuerbach a acusar a indeterminabilidade e a incognoscibilidade de Deus como sendo fruto da incredulidade moderna. Tratase, na verdade, de uma existência do conceito de Deus. As demonstrações não excluem a liberdade. De forma análoga, os ateus não podem afirmar que representam o “ponto de vista científico”. O problema de Deus exige, inevitavelmente, uma decisão. b) As vias argumentativas para Deus como problema e a necessidade de uma decisão racional. A distância entre Deus e o homem não deve ser lamentada, pois é a condição da possibilidade de um ser-próprio finito. Kant combate a pretensão arrogante da Escolástica de seu tempo, admitindo a necessária tarefa racional de busca de Deus e reconhecendo-a como teoricamente insolúvel. Assim, ele postula a realização desta tarefa no campo moral. A demonstração da existência de Deus também pode ser vista como uma problemática existencial. Quem compreende a si mesmo e a sua vida de forma correta, não irá arrogar para si um saber absoluto a respeito do absoluto, e nem irá renunciar à pergunta sobre o absoluto (tensão socrática). Uma pessoa que não tenha esta sensibilidade da pergunta sobre Deus não poderá encontrar nada de satisfatório numa demonstração da existência de Deus. O Concílio Vaticano I, na constituição Dei Filius condena as seguintes posições: o Fideísmo (supremacia da fé e desprezo de todo dado racional), o Racionalismo (confiança irrestrita na razão e desprezo da fé) e o Agnosticismo (crença na incapacidade de a razão humana alcançar qualquer conhecimento sobre o Absoluto). c) O Malum como desafio ambivalente da fé em um criador divino do mundo. Trata-se de responder à seguinte pergunta: de que forma Deus pode ser autor de um mundo no qual existe o mal? Uma resposta exige a definição do mal. Para o homem, o mal é tudo o que contrasta com uma tendência com a qual ele se identifica. Leibniz acrescentou à distinção clássica entre o malum morale e malum physicum ao conceito malum metaphysicum (cf. Essais de Théodiciée, 1,21). Trata-se da própria possibilidade do mal enquanto necessidade própria do ser finito enquanto tal. No dizer de Agostinho, o mundo seria menos perfeito se não existisse a possibilidade do pecado (cf. De libero arbitrio, 3,26). d) A questão não resolvida da teodicéia como exemplum crucis da teologia. A angústia, a raiva e o medo diante de uma possível tragédia impulsionam o homem a distanciar-se do mundo e do seu código genético. Se assim não fosse, ele permaneceria na condição sonolenta do recém-nascido, saciado, que sorri feliz e contente e, às vezes, grita sem se dar conta do próprio ser. A liberdade humana não é pensável em um mundo cujo sentido já tenha sido determinado desde o início. Mesmo assim, o pensamento clássico é unânime em afastar de Deus a possibilidade originária pelo mal. Um ser que fosse a fonte originária do mal não pode e não deve ser tido como Deus. Coloca-se, então, o problema da onipotência e da bondade absolutas. Tal questionamento, porém, está geralmente mal posicionado. A acusação, contra Deus, do sofrimento presente no mundo não é o sintoma de um conflito entre o homem e Deus, mas, um conflito interno do homem consigo mesmo, no qual está em jogo a autêntica auto-compreensão do homem. Tal compreensão depende de uma decisão do próprio sujeito. O homem deve reconhecer de não saber, diante do mal do mundo, se pode ou não acreditar em um Deus onipotente e sumamente bom. Sabendo que não é capaz de compreender o sentido do mal, o homem pode responder à pergunta de como deve se comportar diante do sofrimento. Trata-se de crer ou não que a vida tenha sentido. Se a teodicéia é uma defesa de Deus diante das acusações da razão por tudo o que de mal acontece no mundo, então devemos confessar que ela é um empreendimento falido. Capítulo X REPRESENTAÇÕES CRÍTICAS DE ALGUMAS FORMAS EXEMPLARES DE ATEÍSMO a) O problema do ateísmo metodológico e as formas práticas de descaso de Deus. Trata-se de postular que as ciências escatológicas devam apresentar os seus resultados permanecendo neutras diante da questão de Deus. A validade de suas teses deve ser garantida independentemente da questão sobre a existência de Deus ( etsi Deus non daretur). Contra esta exclusão de Deus podemos obviamente nos perguntar como seria possível pensar a existência do mundo e do homem se Deus não existisse. Como desvincular o conhecimento do mundo da questão do significado do mundo? Permanece, porém, o problema da instrumentalização da fé, por parte de alguns crentes, o que leva a alguns ateus a excluírem a existência de um Deus tapa-buraco. Para tais cientistas, o recurso a um autor divino deve ser considerado como um princípio da razão preguiçosa. Mais precisamente do que a funcionalização de Deus nas ciências é a utilização de seu nome para interesses pessoais como o exercício do poder. Afastada esta tentação, a religião não pode ser denunciada como ópio do povo. Contra a indiferença do ateísmo prático deve-se considerar a abertura do conhecimento do homem que não se satisfaz com a finitude. A escapatória do homo faber (homem dominado pela razão poiética) termina em um beco sem saída com a sua morte. b) A tentativa de destruição iluminista e de interpretação antropológica da teologia de Ludwig Feuerbach. Feuerbach parte da pressuposição, para ele óbvia, que a fé seja a forma de representação da religião enquanto o pensamento seja a da filosofia. Assim, não haveria diferença entre religião e filosofia, mas uma distinção entre fé particular e razão universal. A sua meta iluminista é transformar a religião em Filosofia e a fé em pensamento. Seguindo este método ele descobre na Antropologia o segredo da Teologia. A Antropologia é elevada à Teologia e os atributos de Deus, incluindo a onipotência, são transpostos para a essência do homem. O homem e Deus se excluem no que diz à existência, mas não no que diz respeito à essência. A essência do homem é representada pela consciência. Assim, o homem é, ao mesmo tempo, um Eu e um Tu. A partir dessa concepção de homem, Feuerbach usa uma argumentação para provar que o homem possui uma consciência infinita. Tal argumento poderia ser considerado o antípoda do argumento ontológico da existência de Deus: “um ser verdadeiramente finito não tem a mínima idéia, e muito menos a consciência de um ser infinito.” Ora, o homem tem consciência do infinito. Logo, a consciência do homem é infinita. Crítica: é positiva a veneração do divino, mesmo se limitado à essência do homem. Porém, Feuerbach faz pouco caso da autolimitação crítica do pensamento filosófico (saber de não saber). A concepção de identidade entre Filosofia e Religião é insustentável, pois a Filosofia sabe de não ser capaz de conduzir a um saber absoluto. Já a Religião vive da indedutível confiança na onipotência e na suma bondade do infinito. Feuerbach despreza a distinção entre Deus em-si e Deus para- mim. Quanto aos predicados divinos, é evidente que o homem é pobre e mortal. Se o ser do homem é divinizado, o ser de Deus torna-se vão. Mesmo assim, o pensamento de Feuerbach pode ser avaliado positivamente como uma chamada de atenção para as imagens antropomórficas de Deus. Também para os crentes Deus habita em luz inacessível e a sua verdade pode ser encontrada somente enquanto e porquanto ele mostra-se a si mesmo. Quando Feuerbach assistiu às lições de estética dadas por Hegel, ele pode ouvir o contrário de sua própria argumentação. “Quando os deuses eram ainda mais humanos, os homens eram mais divinos.” (Schiller) Hegel comenta; “os deuses gregos encontram lugar somente na representação e na fantasia”. Dizendo isso, Hegel põe a tese da projeção a serviço da verdade do Deus cristão. Marx critica Feuerbach por não ter dado atenção suficiente à miséria humana e reconhece que a religião permanece necessária enquanto durar esta miséria. Marx cria, assim, a fé na utopia real. Mas esta fé atéia claramente já naufragou e o pensamento não parece poder escapar do niilismo. c) Friedrich Nietzsche, o desengano da busca do incondicionado é o seu contra-projeto para a superação do niilismo. Nietzsche é ateu, arauto da morte de Deus e anticristo. Ele propõe Dionísio como alternativa ao crucificado e como tipo de homem que deve ser alimentado, querido digno de viver. O cristianismo declarou uma guerra mortal contra este homem superior, exaltando os fracos e os fracassados. Segundo Heidegger, ao dizer “Deus está morto”, Nietzsche falou em nome do Ocidente. Trata-se do fracasso da metafísica ocidental ao confundir o ser com o ente. A filosofia platônica e a fé cristã são os adversários de Nietzsche. Ele valoriza o instintivo e o irracional como categorias interpretativas do mundo. Ele não nos propõe um pensamento sistemático sobre Deus, mas nega radicalmente a fé. “Porque o ateísmo hoje? O Pai em Deus deve ser radicalmente refutado; assim também o juiz, o remunerador. De forma semelhante o seu livre arbítrio: ele não escuta e, se escutassem não seria capaz de ajudar. O pior é que ele parece incapaz de comunicar de maneira clara: Será obscura?” (Nietzsche, Para além do bem e do mal) Para compreendermos porque é necessário para Nietzsche refutar a fé em Deus, devemos perceber o seu desconforto com tudo aquilo que é mistério. Nietzsche insiste na possibilidade de conhecer agora a verdade absoluta. Ele escreve: “Que direito possuem os veneradores do desconhecido e do mistério em si, de adotar uma interrogação como Deus? Um Deus que se mantém escondido merece medo, mas não adoração”. Assim, como a verdade absoluta não se mostra no presente, Nietzsche perde a esperança de que existe uma verdade. A quem se dedica, como os antigos filósofos, à busca da verdade, Nietzsche responde como uma provocação: “Aposto que não encontrará nada”. (Para além do bem e do mal). Ele se dá conta de que não pode saber nada, mas que deve somente apostar. Nietzsche, porém, não abandona a esperança de uma verdade que deve ser esperada quando o tempo do mundo chegar ao fim. A fidelidade de Nietzsche a terra faz com que ele postule a incredulidade como uma ação consciente e responsável. A doutrina da morte de Deus é, na verdade, um assassinato de Deus. Os antigos valores devem ser substituídos por um novo (pa/qoj). Pa/qoj: a alegria de viver, a gratidão pela vida, a nobreza da vida. A falta de paz e a sede de liberdade de Nietzsche atestam o seu coração inquieto. A morte de Deus conduz a uma morte do homem: se não há verdade e nem obrigação, nenhum delito pode ser desaprovado, nenhuma ditadura pode ser condenada. A luta a respeito das teses de Nietzsche não terminou e nem pode terminar enquanto durar o tempo do mundo. Trata-se de uma decisão que nenhum homem pode evitar. d) Formas exemplares de ateísmo humanístico da seriedade e da responsabilidade. 1. O espírito absurdo em O mito de Sísifo (Le mythe de Sisyphe) de Albert Camus. Para Sísifo, a existência é insensata e absurda. Camus propõe Sísifo como modelo de homem que tem suas forças absorvidas pela faina diária. Sendo assim, os deuses e o divino são de per si irrelevantes. Como espectador deste jogo desumano, do teatro metafísico do mundo, no qual o absurdo, a esperança e a morte debatem entre si, Camus busca sua resposta à pergunta da existência de uma lógica até a morte. Camus realiza um “suicídio filosófico”, pois o absurdo aparece, já no inicio do seu pensamento. A negatividade do absurdo, porém, não autoriza o suicídio nem a esperança. O verdadeiro conhecimento revela a ausência de uma realização na vida e se impõe como questionamento da esperança. O apetite pelo absoluto é a forca que põe em movimento o drama humano. “O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites”. Camus deixa em aberto se o Getsemani humano terá uma resposta ou não. A sua vida não o conduz a um ateísmo dramático, mas a uma situação de decisão. 2. O humanismo ateu em O diabo e o bom Deus (Le diable et le bon Dieu) de Jean Paul Sartre. O drama de Sartre tem como ambiente o início do século XVI, na região de Worms, centro da crise religiosa e social, da guerra dos camponeses e da reforma. O personagem principal é Götz (filho bastardo de um pai nobre). Götz tenta superar seu isolamento social fazendo o mal por amor do mal (diabo). O arcebispo envia Götz como chefe do exército para assediar Worms, onde os pobres se revoltaram contra a Igreja. Um padre chamado Heinrich trai a cidade, entregando a chave a Götz, mesmo sabendo da carnificina que ele irá provocar. Götz diz a Heinrich: “nós dois não temos nada e não somos nada…desde a infância eu olho o mundo pelo buraco da fechadura…renega este mundo que te renega! Faz o mal, verás como a gente se sente leve”. Götz mata seu próprio irmão Conrad dizendo “eu fiz a mim mesmo: bastardo eu o era de nascença, mas o belo título de fratricida eu o devo a meus próprios méritos”. Götz vê no mal a sua razão de ser. Considera-se antagonista de Deus. Heinrich desmascara Götz mostrando que os homens não podem evitar o mal. Se ele quer fazer a si mesmo, deverá fazer algo de novo. Götz muda de atitude e aposta com Heinrich que ele poderá fazer o bem e tornar-se um santo. Götz torna-se um grande benfeitor, mas é perseguido pelos nobres. Começou a viver na solidão e na mortificação. Sua mulher, Hilda, tenta convencê-lo de que ele está agindo por desespero. Passado um ano, Götz se reencontra com Heinrich e se dá conta de que fizera o mal como antes. No desenrolar final, Götz acusa Deus e nota que ele não existe. Inicialmente ele fica prostrado, mas depois descobre um comportamento que poderíamos chamar de ateísmo humanístico. A não existência de Deus é uma libertação. Götz celebra a sua descoberta com palavras parecidas às do memorial de Pascal. Götz, durante toda a peça, permanece fiel à sua vontade de se tornar um ente a partir de si mesmo e, ao não consegui-lo, sendo mau, procura fazê-lo sendo bom. Em ambos os casos, o ser por si deseja alcançar o ser em si. Sartre interpreta este ideal como o homem-deus. Podemos concluir que também para Sartre a realização do homem estaria em Deus, mas tal realidade não é alcançável pelo agir humano. Sartre não crê neste ideal por não ser realizável no mundo. Assim, Deus não é digno de fé. Ele se dispõe a viver uma vida numa esperança sem esperança, ou seja, não realizável e tal opção o aproxima do marxismo. 3. O sentido da insensatez e a epigênese do sentido em Nicolai Hartmann. Nicolai Hartmann assume a primazia do dado fenomênico sobre a teoria. Ele vê o fenômeno da ética como indicação da realidade da liberdade e da responsabilidade humanas. Tal fenômeno é teoricamente incompatível com a presciência e a providencia divinas. “A doutrina teológica da predestinação é uma invenção verdadeiramente diabólica da especulação, escondida debaixo do manto protetor da devoção religiosa”. “Um Deus não pode nem deve existir por causa da liberdade, da responsabilidade, da tarefa – por causa do sentido da existência do homem”. Assim, a potência de Deus nos conduziria à aniquilação de um ser que possa querer e agir responsavelmente. O homem só poderá ser pessoa se ele realizar, determinar e escolher a sua própria finalidade. Sustenta-se aqui a tese da epigênese do sentido do mundo. Disto deriva o sentido da insensatez do mundo. Se é o homem quem dá sentido ao mundo, um mundo que tivesse sentido desde o princípio seria justamente a completa insensatez. O caráter ateleológico do mundo cria a liberdade, a responsabilidade e a tarefa. IVª PARTE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O ASSIM CHAMADO «DEUS DOS FILÓSOFOS» E O DEUS VIVO DA FÉ. Capítulo XI A DISTÂNCIA ENTRE O PENSAMENTO HUMANO DE DEUS E A SUA REALIDADE NA FILOSOFIA DE PLATÃO. a) As características essenciais do discurso explícito sobre Deus nos escritos de Platão. A posição de Platão sobre Deus e o divino pode ser resumida assim: 1. A voz de Deus é imediatamente perceptível pela consciência; 2. Deus é sumamente justo; 3. A divindade representa a finalidade ideal da vida e da aspiração humana; 4. Deus torna possível uma esperança do homem para além da morte; 5. Deus é o artífice inapreensível e livre de inveja do mundo; 6. Deus concede ao homem a liberdade, age livremente e se preocupa com o caminho do homem; 7. Deus é a finalidade escatológica e o tribunal de toda aspiração humana à sabedoria e à justiça; A imagem platônica de Deus é paradoxal, pois Deus é experimentável e, no entanto, inapreensível teoricamente. Tal inapreensibilidade convive com a necessidade cientifica de pensar Deus como pode ser constatado nos principais mitos da República: os homens nada podem saber de Deus, mas a Filosofia deve falar de Deus. Assim, retomando o principio socrático de saber de não saber, Platão expressa filosoficamente um conceito de Deus bastante próximo ao da religião. b) O caráter fundamental, teoricamente reflexivo, da teologia aristotélica. Aristóteles dá atenção à orientação empírica da filosofia pré-socrática. No livro da Metafísica, que combate desde o principio o politeísmo, Aristóteles propõe um modelo evidente do Deus dos filósofos: Deus é puro pensamento e pode ser colhido e captado, na reflexão não objetiva, como substância suprema e vida suprema. A metafísica é o ponto mais elevado da filosofia de Aristóteles: doutrina do ente supremo. Trata-se da afirmação da univocidade do ser. No livro XII da Metafísica, Aristóteles expõe o seu famoso argumento sobre a existência de um motor imóvel. É importante notar que tudo é derivado de uma concepção física do mundo. E, a partir daí, pode-se falar de motor imóvel como objeto de desejo e pensamento. Para Aristóteles a imutabilidade de Deus não deve ser compreendida como rigidez fixista, mas como forma suprema de vida e de energia. Trata-se de um pensamento divino que se compraz em pensar a si mesmo. c) O caráter apologético, negativo e mito-poiético da teologia filosófica de Platão. Platão possui uma filosofia que procura ser científica, não dogmática e metafísica. Ele faz apologia contra os ateus, usa uma linguagem apofática contra os presunçosos e produz representações míticas do mistério para aqueles que estão abertos ao infinito. Heidegger critica Platão: ao fazer do ser uma idéia, Platão o teria transformado em objeto disponível e manipulável, perdendo a noção da a)lh/qeia como revelação livre do ser. Segundo Heidegger, não se pode orar a este Deus filosófico nem fazer sacrifícios em sua honra; diante dele nenhum homem pode cair de joelhos, cheio de reverência ou mesmo produzir música e dançar. Na realidade, Platão não merece tais críticas, pois sabe distinguir a fundação transcendental da filosofia da descrição fenomenológica. Platão erige um altar de pensamento ao desconhecido Deus-Pai, onde ele não cala a respeito de Deus, mas cala diante de Deus. As semelhanças entre o Deus platônico e o Deus bíblico são surpreendentes, embora se deva notar a importante ausência do conceito da graça. É a fé na ação real de Deus, a linha de separação entre a filosofia e a teologia. Neste campo nascem os conflitos da época moderna. Capítulo XII BLAISE PASCAL E A CONSCIÊNCIA DA TENSÃO ENTRE O DEUS PENSADO E O DEUS EXPERIMENTADO. a) Pré-história da distinção entre o Deus dos filósofos e o Deus vivo. Os primeiros autores cristãos, durante séculos procuraram a conciliação entre o dado da fé e o lo/goj helênico. Agostinho propõe sinteticamente no De vera religione que não existe uma alteridade entre o Deus dos filósofos neoplatônicos e o Deus cristão. Esta não alteridade não significa uma identidade completa. O próprio Kant expressou esta diferença na identidade através do esquema de círculos concêntricos. No entanto, a perda de autonomia institucional sofrida pela filosofia na Idade Média fez com que a época Moderna reagisse mudando a imagem que a filosofia tinha de si mesma. A progressiva matematização da filosofia conduziu a uma visão mecânica dos processos de ordem natural. Deus tornou-se uma idéia funcional dentro do sistema imanente da visão de mundo cartesiana. Tal instrumentalização da idéia de Deus, corroborada pela “metodológica vontade de ateísmo”, dilatou o espaço entre a visão filosófica e a visão religiosa de Deus. b) O abandono por parte de pascal do espírito de geometria e o seu voltar-se para o Deus vivo da fé. Para Pascal existem dois tipos de ciência: ciências ligadas à autoridade entre as quais a maior é a teologia, e ciências ligadas à experiência e à razão. A filosofia se coloca como via intermediária entre estes dois tipos de ciência. Ao considerar a existência de Deus, a filosofia pode escolher entre a certeza orgulhosa e o ceticismo que conduz à tristeza. A verdadeira atitude do homem está no equilíbrio. Assim, segundo Pascal, a verdade da filosofia deve se despedaçar, pois conduz à blasfêmia, e dar lugar à verdade do Evangelho. A verdadeira função da filosofia é preparar o homem para a aceitação da revelação dando a ele a verdade sobre a sua miséria. “Caçoar da filosofia é verdadeiramente filosofar”. “A grandeza do homem é grande quando ele se reconhece miserável” (P. 146) O verdadeiro objeto da filosofia é a desproporção que está no ser do homem. “O homem é um nada diante do infinito, um tudo diante do nada”. Podemos concluir que a negação do Deus dos filósofos para Pascal, não é a negação de um acesso filosófico a Deus enquanto ele é buscado no saber de não-saber. Trata-se, ao contrário, da refutação de um Deus encontrado intelectualmente como presunção de um saber absoluto o saber. Assim, Pascal chega a resultados semelhantes aos de Platão: o homem é uma realidade surpreendente e, ao tomar consciência disto, se abre a uma relação com o Deus vivo. c) A experiência crente de Deus por parte do homem que a ele se abre como acontecimento imprevisível. É a famosa aposta de Pascal. Ao contrário de Descartes, Pascal formula a tese de que Deus é infinitamente incompreensível. Assim, os homens não são capazes de saber o que seja Deus ou se Deus existe. É inevitável a aposta: ou aceitar a possível existência de Deus que parece lhe prometer uma vida infinitamente feliz, ou tomar o caminho contrário que conduz necessariamente ao caos infinito. A decisão a favor de Deus teria uma força persuasiva infinita. A aposta de Pascal não quer demonstrar uma verdade de razão, mas quer apontar para o fato que a fé é uma escolha racional, um comportamento racional. Trata-se, portanto, de uma abertura para a possibilidade da revelação. O homem, incapaz de chegar a Deus com a razão, espera a sua intervenção supra racional. No Memorial de Pascal o encontro com Deus na história é decisivo. Não se trata de uma simples experiência mística subjetiva. O texto insiste em acontecimentos históricos muito concretos. Ao renunciar ao espírito da geometria, Pascal reconduz a filosofia ao espírito de fineza dos antigos. Com isto, a refutação do Deus dos filósofos adquire uma natureza filosófica e se torna a refutação do Deus de alguns filósofos, que vêem a filosofia more geometrico (de forma geométrica). Capítulo XIII A CRÍTICA DA METAFÍSICA DE IMMANUEL KANT E O PENSAMENTO SEM DEUS DE MARTIN HEIDEGGER COMO INDICADORES DE UMA TAREFA NECESSÁRIA a) A passagem das categorias físicas para as pessoais no pensamento kantiano sobre Deus. Kant chega a conclusão de que as demonstrações de Deus não atingem a finalidade proposta e postula, ao lado da filosofia crítica (o que posso saber?), duas tarefas necessárias, mas, teoricamente insolúveis: - moral: o que devo fazer? - religião: o que devo esperar? Para Kant, o conhecimento nasce da unificação da experiência. Como conseqüência, só podemos conhecer coisas finitas, embora a razão sinta a necessidade de recorrer a pressupostos que estão além da experiência. Com isto, a coisa em si que não pode ser conhecida é uma indicação necessária de que o conhecimento humano não é absoluto. A crítica de Kant leva a dois resultados a respeito do pensamento sobre Deus: 1) negativo: não é possível uma demonstração; 2) positivo: a constatação de uma abertura infinita que pode ser assumida somente pela fé. A filosofia crítica conduz à possibilidade de crer na existência de Deus, sem a pretensão de poder saber. Segundo Kant, a crítica conduz a um caminho intermediário entre o dogmatismo e o ceticismo. Deus torna-se um postulado da razão prática. Assim, a pergunta sobre Deus abandona o mundo da física e, portanto, da metafísica para habitar o espaço da moral, compreendida como realidade íntima e pessoal. b) a refutação por parte de Heidegger do Deus filósofos e o falar não metafísico sobre Deus Para Heidegger, a filosofia no Ocidente está marcada pelo niilismo por ter identificado o ser com um ente perfeitíssimo, ou seja, Deus. Este esquecimento do ser deve ser respondido com um pensamento sem Deus, deixando de lado o Deus da Filosofia. Heidegger, no entanto, postula um acesso à pergunta sobre Deus, através do pensamento poético. A poesia de Hölderlin trata de uma fuga dos deuses, causada pelo homem, enquanto os homens não se tornarem pensadores e capazes de habitar na sua vizinhança. O caminho para a vizinhança dos deuses está no próprio homem, pois Deus e o homem se pertencem. Na poesia, aquilo que é grande e não habitual é nomeado através daquilo que é cotidiano de pouca valia. Nesta visão, o filósofo aparece como um homem a espera de uma proximidade santa entre Deus e o homem, proximidade que ele não pode por em ato. A sentença de Nietzsche: “Deus está morto”, pode ser lida como a refutação do Deus dos filósofos e, ao mesmo tempo, como esperança do Deus divino. c) A necessidade de uma renovação da filosofia não dogmática no atual pensamento sobre Deus. A atual pesquisa metafísica está marcada pela recusa de toda ontologia dogmática. Não há mais espaço para um pensamento que tome posse da verdade do todo. Por estranho que possa parecer, também Heidegger, juntamente com Kant, trabalha para eliminar o saber e fazer. Filosofar significa o tender a uma sabedoria que nenhum filósofo pode possuir com as próprias forças e que, no entanto,não obstante a sua inalcançabilidade, constitui a verdade do todo que é buscada pelo homem. Assim, como o poder questionar, o não saber é constitutivo de todo filosofar. A verdade pela qual o homem anseia é, em última análise, um mistério no qual o pensamento se transforma em ação de graças. A verdade não possibilita a existência de um saber dominante, pois ela permanece não disponível como dom de um Outro desconhecido e misterioso. O pensamento filosófico sobre Deus deve se defender da negação de Deus como se ela fosse cientificamente fundada. Seria igualmente uma catástrofe o pensamento filosófico sobre Deus que se encontrasse uma demonstração rigorosa da existência de Deus. Baudelaire afirma ironicamente: “Deus é o único ser que, para reinar, não tem necessidade de existir”. Poderíamos inverter seu pensamento: Deus, embora exista, não precisa se impor ao homem pensante. Pensar Deus é simplesmente buscá-lo. Esta busca leva o homem a conhecer suas próprias possibilidades e limites. Dá-se, assim, lugar à fé, ou seja, a abertura de uma aceitação onde quem crê recebe o próprio ser como dom. Capítulo XIV A CONSCIÊNCIA DA INCONCEPTIBILIDADE DE DEUS NO CAMINHO DA BUSCA DE DEUS DE AGOSTINHO E NICOLAU DE CUSA a) A dialética irredutível da busca e do encontro de Deus no pensamento filosófico de Agostinho. Agostinho vê o homem como um coração inquieto. Deus é buscado como aquele que estimula esta busca e que se dá a conhecer quando a eternidade irrompe no tempo. O caminho da busca inicia fora de si e conduz ao retorno a interioridade: “no homem interior mora a verdade”. Não obstante a distância fundamental, Deus deve ser pensado como o mais presente justamente porque o mais distante. Nenhum homem é capaz de encontrar o caminho para Deus. Tal encontro é realizado pelo próprio Deus. A confiança do crente põe sua esperança no fato que o desejo seja uma pregustação da felicidade de Deus. Assim, Deus concede uma tranqüilidade que não suprime a diferença entre Deus e o homem. b) O insuperável muro do paraíso na busca de Deus de Nicolau de Cusa. Nicolau de Cusa aspirava com incansável fervor ao inconcebível. A consciência e o sentimento de que o Absoluto fosse infinito não lhe deixava em paz, na busca de um conceito de Deus que fosse noeticamente indubitável. Exemplo de tais conceitos, nos últimos anos de sua vida são: - possest: neologismo criado por ele, que vem de pode + é. - non-aliud: o conceito de não-outro se aplica a Deus na medida em que algo pode ser conhecido em contraposição a outro semelhante. Esta possibilidade não existe em Deus. Porém, o que é característico do pensamento de Nicolau de Cusa é a introdução da reflexão filosófica no pensamento trinitário. Deus pode ser alvo do desejo humano somente se for concebido ao mesmo tempo como amante e amado. Como não é possível que existam dois deuses vê-se que tal autoridade deve ser pensável como identidade do infinito. O amor amável do Filho tem uma profunda unidade com o amor amante do Pai, o espírito Santo. O Filho é a mediação entre Deus e o homem. O cusano vê em Jesus a união entre Deus e o homem. Que não elimina o seu ser humano. CONCLUSÃO O nosso itinerário nos levou a uma abordagem fenomenológica do homem enquanto lugar da pergunta pelo absoluto. Concluímos que tal pergunta faz parte do ser homem do homem. Ao analisarmos, porém, a natureza do objeto pelo qual se pergunta, nos deparamos com um paradoxo: qualquer resposta obtida ou destruiria o ser do próprio homem enquanto finito, ou eliminaria a verdade do Absoluto enquanto tal. Na esteira de Emanuel Levinás fomos levados a palmilhar o caminho do infinição. Interpretamos, neste sentido, o esforço tradicional da linguagem analógico-simbólica da tradição de Ocidente. Tal opção foi confirmada ao investigarmos longamente a natureza das demonstrações e das refutações da existência de um Absoluto Transcendente: a razão humana, para usar uma expressão de Wittgenstein, não pode dizer o Absoluto, mas pode apontá-lo. Todo este itinerário nos convida a reformular o conceito que temos de nós mesmos e o conceito que temos da Filosofia. O homem do Ocidente se reencontra no socratismo que fundou a sua civilização. O conhecer a si mesmo e o saber de não-saber, arrancam o homem da ilusão da modernidade moderna, fundada sobre uma razão que tudo pode e sobre uma Filosofia elaborada por geômetras. A razão dialética, que caracteriza a Filosofia desde a sua fundação, faz com que não seja possível uma posse absoluta da verdade, mas igualmente demonstra a impossibilidade do abandono da busca. O perguntar sobre Deus revelou ao homem que ele deve compreender a si mesmo como dom, como ser recebido. Tal compreensão nos posiciona numa alegre expectativa de que o Absoluto pronuncie uma palavra. Aqui, a Filosofia nos deixa na soleira da porta da Teologia. Cabe agora ao crente bater à porta e aguardar com paciente esperança a revelação definitiva do mistério. Pode parecer um sonho, mas ai de quem não sonha.