Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira Wellington TrottaESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA FILOSOFIA DO DIREITO Rio de Janeiro 2006 Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira Bacharel em Comunicação Social pela FACHA. Bacharel em Filosofia pela UERJ. Especialista e Mestre em Filosofia (Ética e Filosofia Política) pela UERJ Bacharel em Direito pela UNESA. Advogada e Professora de Filosofia Geral e Jurídica e Ética Geral Jurídica na Universidade Estácio de Sá Wellington Trotta Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho Bacharel em Filosofia pela UERJ. Mestre em Ciência Política (Política e Epistemologia) pela UFRJ Advogado e Professor de Filosofia Geral e Jurídica e Ética Geral Jurídica na Universidade Estácio de Sá ESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA FILOSOFIA DO DIREITO Rio de Janeiro 2006 2 Sumário Pá Introdução................................................................................... .......................................... I. O surgimento da Filosofia.......................................................................... II. III. IV. V. ................. A justiça na concepção de Platão (428 – 347 a.C.).................................................... A justiça na concepção de Aristóteles (384-322 29 38 48 62 g. 5 5 a.C.)................................................ A Filosofia no período medieval: Agostinho e Tomás de Aquino............................... O Jusnaturalismo....................................................................... ................................. A filosofia prática de Immanuel Kant (17241804)...................................................... O positivismo jurídico................................................................................... ............... O pensamento de Hans Kelsen (18811973)............................................................. A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910 VI. VII. 79 93 IX. X. 10 3 10 9 11 3 -)............................................ Referências Bibliográficas.............................................................................. .................... 3 Assim. Clara Maria C. elaborado e atualizado para o semestre 2006. A obra completa encontra-se depositada no Ministério da Cultura/Fundação da Biblioteca Nacional. o texto foi adaptado exclusivamente para as aulas de Filosofia Geral e Jurídica. constitui parte integrante do trabalho Estudos preliminares para uma filosofia do direito que elaboramos em nossos estudos de filosofia jurídicopolítica.1. ressaltamos que se destina tão somente para uso interno. de Oliveira Wellington Trotta 4 .Prezado (a) aluno (a): Este material. sendo vedada a sua utilização sem autorização expressa dos autores.B. Nesse sentido. [grifo nosso] 1 5 . Werner W. mas é a própria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade. insisto em apontar que a história do pensamento filosófico. não é disciplina jurídica. A grande maioria dos alunos não tem contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou médio. Filosofia do Direito. a história daquilo a que podemos com plena consciência chamar cultura só começa com os gregos”. p. Miguel. 9) Inúmeras vezes percebemos que a falta de interesse pela leitura contribui também para certo desinteresse pelo estudo de Filosofia. geralmente ministrada em apenas um semestre nos primeiros períodos da faculdade. Por mais elevadas que julguemos as realizações artísticas.1 É preciso ressaltar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos problemas fundamentais da esfera jurídica que focalizam em particular a eterna “insociável–sociabilidade humana”. um progresso fundamental. um novo estádio em tudo o que se refere à vida dos homens na comunidade. Nos dizeres de Werner Jaeger.Introdução 1 . São Paulo: Martins Fontes. Todavia muitos profissionais do Direito descobrem a Filosofia em meio aos seus estudos de pós-graduação e experimentam certa ansiedade em tentar suprir essa falta em sua formação intelectual. Ademais. estudar Filosofia significa estudar os fundamentos da nossa própria cultura. em face dos grandes povos do Oriente. “A Grécia representa. 4. Paidéia: a formação do homem grego. Esta se fundamenta em princípios completamente novos. Muitos alunos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a utilidade da Filosofia para o saber jurídico? Nem sempre as respostas que formulamos são convincentes para esclarecer sobre a importância desse saber. (Reale.Considerações sobre a importância da Filosofia para o curso de Direito “Filosofia do Direito esclareça-se desde logo. religiosas e políticas dos povos anteriores. p. Nesse sentido. Poucos se interessam por essa disciplina. o que torna nossa tarefa ainda mais árdua. que é a realidade jurídica”. que se inicia Jaeger. 1989. que foram seus autores. (. A Filosofia ensina a pensar.) É bom saber algo dos costumes de diversos povos.. filosofar é algo que só se pode aprender pelo exercício. o grupo social em que fomos criados. Estudar Filosofia significa estabelecer um diálogo com homens de notório saber. a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão. 1973.39.2 Não posso deixar de mencionar as célebres palavras de Descartes na obra Discurso do Método: “a leitura de todos os bons livros é qual uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados. A Filosofia significa a formação de uma atitude . pelo uso próprio e autônomo da razão.C. isto é. crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa socialização primária. p. ou seja. na qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos. em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Podemos então investigar como esse sistema de valores interfere em nossa visão de mundo. muitas vezes desatento. R. In: Col. VII a. São Paulo: Abril Cultural.. Ensina a formular perguntas. configura o nosso ponto de partida. Ingressar nos estudos filosóficos significa fundamentalmente assumir a árdua tarefa do autoconhecimento que implica transformar o seu próprio olhar. Intencionalmente se cuidou de apresentar um estudo propedêutico que pudesse oferecer uma exposição clara e indispensável. Assim. Como disse Kant em suas lições de Lógica. o início do pensamento racional. capaz de configurar um apoio útil para posteriores estudos de Filosofia do Direito. Um exercício sem medo. como soem proceder aos que nada viram”. compreender lucidamente que viveram em outras épocas. É bom conhecê-los e seus costumes.uma atitude diante da vida. ao lermos um texto filosófico colocamos em ação todo o nosso sistema de valores. pois assim podemos avaliar mais os nossos. e até uma conversação premeditada. DESCARTES. Discurso do Método. constitui as bases de nossa própria cultura. Mas gostaria de esclarecer preliminarmente que o estudo tem objetivo modesto. Significa abolir a pressa e o imediatismo. Os Pensadores.com o povo grego em torno do séc. 2 6 . Fundamentação do Direito Natural ou elementos Filosóficos do ideal do Direito (Grunlage des Naturrechts oder philosophie Grundriss des Ideals des rechts – 1803) e Bosquejo do Sistema de Filosofia do Direito (Abriss des Systems der rechtsphilosophie – 1828) de Karl Christian Friedrich Krause. Muitas vezes este estudo assume nomenclaturas diferenciadas como. Assim.Estudaremos em cada época autores e doutrinas que julgamos essenciais para o estudo jurídico. portanto estavam/estão sujeitos às influências de sua origem. Não podemos esquecer que todo pensador está fadado a ser de seu século a seu contentamento ou pesar. ao expor. Acredito não ter incorrido em erro grave. Elementos de Direito natural e de Ciência Política (Grundlinien der Philosophie des Rrechts oder 3 7 . Tratados que versam sobre leis. Assim. civitas ou um Estado. em particular. as informações apresentadas fundamentam-se em textos clássicos e comentadores consagrados pela tradição filosófica. desvelou-se imperativo observar os diferentes problemas que a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e terminologias acerca do que consideravam relevantes. aquela que estuda a idéia de justiça. a partir das realidades que serviam como pano de fundo. educação e época histórica. O estudo foi essencialmente motivado pelo desejo de compreender melhor a relação direito-sociedade a partir do devir histórico. dar certa objetividade que não comprometa a verdadeira complexidade da matéria. por exemplo. uma res publica. Importa ressaltar que a história apresentada focaliza um dos ramos da Filosofia. direito natural e que assinalam o caminho do pensamento filosófico. podemos afirmar que uma Filosofia do Direito se inicia com os tratados sobre sociedade política: seja uma pólis. O ponto de partida está na noção geral da Filosofia como um saber teórico e universal que fundamenta toda a cultura ocidental . Assim. justiça. Historicamente. buscando não esquecer que os filósofos foram/são homens e que.nossa herança grega. procura-se mostrar que os problemas filosófico-jurídicos são tão antigos quanto as inquietações conscientes dos homens sobre o problema da convivência humana e se desvelam nas concepções fundamentais acerca do Direito e do próprio Estado.3 Direito natural como filosofia do Direito positivo (Naturrecht als Philosophie des positiven rechts – 1797) de Gustav Hugo. Procurou-se. juris naturalis scientia ou Naturrecht als Philosophie des positiven rechts. torna-se fundamental pontos a serem tratados a leitura prévia dos em cada aula. revelando a lógica imanente de certos pontos de vista ou atitudes intelectuais. sem a qual cairíamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo tedioso. Recomenda-se que o aluno procure elaborar um pequeno resumo dos pontos mais relevantes. pertencendo à história humana. participa do seu desenrolar gradual e do seu reencontro consigo mesmo. 8 . Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse – 1821) de Hegel.A abordagem filosófica nos permite então vislumbrar que a transformação das sociedades não implica a superação pura e simples do passado. condicionando o focar dos problemas. Nesse sentido. Enfim. O que importa nesse caminhar é a indispensável tarefa crítica que a Filosofia nos oferece. Não podemos negar a importância da Filosofia. validando algumas soluções. mas antes ressalta que esse passado existe e persiste no presente. Algumas vezes apontando caminhos que não se devem mais seguir. Cada um deve procurar sua interpretação. porque a própria tentativa de impugná-la significa a essência do filosofar. apresentando certas tendências. o Direito. 2 . indicamos outras leituras interessantes e vídeos para que o estudante possa ampliar seus conhecimentos.Metodologia adotada para a disciplina O aprimoramento contínuo oferecido pela Filosofia é importante ferramenta para o desenvolvimento das habilidades necessárias ao advogado. Por isso. mas elaborar o seu próprio texto sobre o que foi lido. Nosso objetivo é ampliar a conscientização sobre o assunto e fornecer as condições de possibilidade para uma reflexão filosófica sobre o direito. buscando não copiar o texto. Parte I – O surgimento da Filosofia 1 . por fim. objetividade. história. experiência. também não pode ser considerada Sociologia ou Psicologia. a Filosofia não se confunde com Ciência. causas. semelhança. artísticos e culturais. busca compreender as idéias ou significados gerais: realidade. subjetividade. inteligência. políticos. diferença. mas se configura como possível interpretação. comportamento. para indagar “o que é”. mas pode ser entendida como reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. vontade. linguagem. pois é produto cultural do homem. paixões. significações da obra de arte e do trabalho artístico. desejo. e sim interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e no espaço e a compreensão do que seja o próprio tempo. um saber do homem situado. cultura. sentimentos. preconceitos. mundo. reflexão. mas reflexão crítica sobre os fundamentos dessas ciências humanas de suma importância. Trata-se de um saber que se preocupa com as origens. natureza. A Filosofia está na história. conflito. O seu olhar observa com cuidado as transformações históricas. a consciência em suas várias modalidades: imaginação. não se reduz à Arte. Podemos então definir Filosofia como a fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e práticas. percepção. Filosofia não é História. prejuízos. “como é” e “por que é” – momentos que constituem o 9 . mas se vê diante de uma reflexão crítica sobre os conteúdos. formas. A Filosofia busca desvelar as interpretações e limites de cada época. memória.O conceito de Filosofia Observando a advertência de Marilena Chauí. compreensão e reflexão sobre a origem. O olhar filosófico se afasta das crenças. a Filosofia não se limita à esfera Política. contradição e mudança. na obra Convite à Filosofia. porém reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. forma e o conteúdo dos valores éticos. A Filosofia diz “não” ao senso comum. pois se trata de um saber que é cronologicamente anterior ao surgimento da própria ciência. a natureza e as formas do poder. não é tampouco Religião. toma distância para interrogar e não aceitar as coisas passivamente. antes. repetição. opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova.Origem e Surgimento da Filosofia na Grécia Antiga Como nos lembra o saudoso professor José Américo M. fragmentado. “o que é a razão?”. Filosofia Medieval. a Filosofia enquanto saber exige fundamentação racional do que é enunciado e pensado e deve formar um conjunto coerente de idéias racionalmente demonstráveis. VI a C.C. desconexo.. Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea.4 4 O que a A palavra Filosofia formou-se da junção de “Filos-filia” (amigo) com “sophia”(sabedoria. “o que é um valor?”. em cada época. portanto. buscar as razões que conduziram o homem grego a fazer filosofia permanece ainda como um problema aberto. “como nos tornamos livres?”. “o que é vontade?”. ou seja. na fundamentação ou justificação do trabalho científico ao indagar “o que é o homem?”. ao nível do senso comum. Assim. Os períodos foram classificados pela tradição da seguinte forma: Antigüidade Clássica ou Filosofia Antiga. O que teria fundamentado esse novo saber? Por que na Grécia em torno do séc. O seu conhecimento se realiza por reflexão que se configura no momento em que o pensamento volta-se para si mesmo a fim de indagar como é possível o próprio pensamento. Sua reflexão é radical. porquanto investiga a raiz. Pessanha. surgiu uma nova mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse fenômeno em uma cultura tão antiga? Sabe-se que na Grécia do séc. os homens colocaram para si mesmos e para o mundo. opondo-se ao termo grego “polimathéia” que significa saber comum. Podemos estudar a Filosofia sob o aspecto temático ou exprimem e manifestam os podemos compreendê-la a partir de seu devir histórico. 2 .pensamento crítico. O valor da Filosofia encontra-se. a história da Filosofia a partir de períodos que problemas e as questões que. VII ou VI a. o que significa dizer que não é mera opinião. saber). Será possível perceber que as transformações no modo de conhecer ampliaram os campos de investigação do filósofo. A Filosofia é um pensamento sistemático. 10 . a origem de tudo o que existe. Pitágoras de Samos denominou-se “Filo-sophos” (amante do saber) e não de “sophos” (sábio). Na verdade a Filosofia segue uma lógica de enunciados precisos e rigorosos. há uma relação de confiabilidade que repousa sobre a pessoa do narrador. a idéia de geração. as narrativas míticas foram reformuladas ou transformadas numa explicação que não admite fabulações. pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo genos assumindo. uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações das coisas. respostas fazedoras de mitos. A palavra proferida pelo poeta-rapsodo. ganhava uma aura de divindade. contar. narrar. Nesse sentido. mas sim um raciocínio lógico. racional e coerente. a narrativa sobre a origem do mundo é denominada como uma genealogia que pode ser cosmologia ou teogonia. portanto. ou melhor. O narrador é chamado de poetarapsodo. dos povos e dos fenômenos da natureza sem recorrer aos mitos. Para o pensamento grego. nomear. a saber: mytheyo que significa contar. ou seja. anunciar. Será cosmologia quando trata do nascimento e da organização do mundo. contradições. Os gregos acreditavam que ele fora escolhido pelos deuses e que se tornara o transmissor de suas mensagens. A autoridade dessa nova explicação não decorre de uma pessoa física. Será teogonia quando a narrativa tratar da origem dos deuses. deuses. como no caso dos poetas-rapsodos. designar. Cosmo quer dizer mundo ordenado. uma crença na autoridade do narrador. Nesse sentido. organizado. Teogonia é composta de gonia e theos que significa em grego: seres divinos. A Filosofia começa quando algo desperta a nossa admiração. A Filosofia é vista como uma cosmologia. mito significa um discurso ou narrativa que é considerada verdadeira para seus ouvintes. nascimento a partir da concepção sexual e do parto.tradição afirma é que a Filosofia foi um fenômeno específico do povo grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. o mito. coisas divinas. falar alguma coisa para outros e do verbo mytheo que significa conversar. portanto inquestionável e incontestável. 11 . O seu surgimento marca uma indagação que não aceita respostas mitológicas ou mágicas. espanta-nos e exige uma explicação sobre a origem do mundo. mas decorre do poder da razão. A palavra mito do grego mythos deriva de dois verbos. com a consolidação das cidades-estados (pólis).A pólis grega e a consciência jurídica Antes do advento da Pólis. que segundo pesquisadores exprimem traços da cultura dórica. mas da transmissão de uma cultura por várias gerações e da memória de um povo. A explicação filosófica. Memória. autor dos famosos poemas que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a. que é apenas uma explicação de homens que buscavam saber. séculos sociedade marcadamente após as guerras troianas. Não há consenso sobre a origem da Filosofia na Grécia antiga. se desenvolveu paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante às explicações mitológicas que povoavam o imaginário do mundo antigo. 3 . A Filosofia é. ficção. um progressivo enriquecimento do comércio e invenção da moeda. política e da ética. Odisseu). com o desenvolvimento da atividade comercial. construíram uma aristocrática que paulatinamente se a própria invenção da transformou no que denominamos civilização grega. nos desvela em suas narrativas o entrecruzamento de história. oralidade e tradição são os componentes indispensáveis à sua sobrevivência. expansão marítima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil politicamente forte. lenda. Homero.Não podemos negar que a mitologia grega está intrinsecamente ligada à história da civilização grega. Os dórios oriundos do norte. portanto. Surgiu no momento de estabilização da sociedade grega.).C. a invenção do calendário. as aventuras de Aquiles e Ulisses (nome grego. mitos e deuses. a Grécia já apresentava uma vida social intensa. porque muitos estudiosos entendem que os povos do oriente já sistematizavam doutrinas filosóficas antes dos filósofos gregos. 12 . Um dos poetas mais importantes. um fenômeno cultural grego. Essa mitologia e seus mitos sobrevivem enquanto se mantiveram vivos na vida cotidiana. Todavia o que se observa freqüentemente é que não se configurou nesses povos o que ocorreu na Grécia: o processo de laicização do saber. o que ressalta a sua dignidade e importância. por isso o relato mítico não resulta necessariamente da invenção individual. Lentamente se formou uma nova organização social e política que segundo ensina Jean-Pierre Vernant destacou a supremacia da razão. porquanto marca uma nova fase da cultura grega. a idéia de justiça. com a invenção da moeda cunhada. a palavra. a persuasão. a região vivenciou um renascimento das relações comerciais que resultou na ruína das antigas linhagens tribais e no surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesãos. Em sua obra denominada Teogonia descreve a criação do mundo. Situa-se. o discurso e a razão ganharam grande relevo nessa nova organização social. uma nova forma de convivência humana: “A polis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega. a pólis configurou um novo momento para os gregos. as discussões políticas. VIII a.Este poeta foi considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental para a manutenção das tradições. Jaeger.73. costumes. no centro de todas as considerações históricas”. cunhagem de moedas. A pólis valorizou o humano. a elaboração das leis. ritos e etc. o seu pensamento para possível debate. a discussão. Além de Homero. p. Paidéia: a formação do homem grego. O discurso tornou-se condição fundamental para a participação nos assuntos públicos. Como nos ensina Jaeger. na esfera pública. Por ocasião do séc. 5 O termo pólis propiciou o aparecimento de palavras como político e política e. Assim. festivais. 5 13 . Com a palavra pólis surgiu também o direito de cada cidadão de emitir. conseqüentemente. Werner W. Em Os trabalhos e Os Dias narra o mito das cinco idades da humanidade. O que se configurou nesta etapa e a revolução política que ensejou o desenvolvimento do pensamento humano. Pólis do plural póleis é uma palavra grega que expressa a idéia de cidades-estados autogovernadas do mundo grego. do discurso.C. deixaram de ser privilégio da aristocracia grega. o pensamento de Hesíodo foi igualmente importante.. São Paulo: Martins Fontes. dos deuses e a organização do Olimpo. enfim o próprio desenvolvimento do discurso. 1989. Cada pólis tinha suas próprias leis de cidadania. por isso. a força do melhor argumento. Assim. p. 8 A reclamação universal pela justiça já figura claramente em Hesíodo e. Jaeger narra que nos tempos homéricos “toda manifestação do direito ficou sem discussão na mão dos nobres que administravam a justiça segundo a tradição.O interesse pela justiça se desenvolveu na vida comunitária da pólis grega e assumiu um grande valor que se afigurou com a mesma intensidade que a força exercida pelo portanto. A idéia do homem justo assume. Contudo. ideal cavaleiresco dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática. um novo locus no pensamento grego. dike. Em Homero temos o direito como Themis que etimologicamente significa lei. Esta última seria o símbolo da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres homéricos. Segundo a narrativa homérica. o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres. Na prática. se converte no lema da luta entre as classes. Não temos fonte sobre a história da codificação do direito grego. é através dele.C. 1989. virtude. VI a. p. 6 7 14 . cumpre o seu dever. Jaeger. ou seja. Paidéia: a formação do homem grego. VIII até o séc. A literatura que testemunha a idéia de justiça como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da epopéia. São Paulo: Martins Fontes. 91. ao qual todos os cidadãos sem exceção estão submetidos. São Paulo: Martins Fontes. Observa-se que a pólis introduz uma verdadeira revolução: “O ideal antigo e livre da Arete6 heróica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado. 8 Jaeger. 1989. areté. gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas”. Werner W. sem leis escritas. surgiu um novo espírito centrado na vida pública. significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei procedente de Zeus. 7 Com a mudança das formas de vida. Zeus ofertava aos reis o cetro e themis. a qual deve ter surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios à nobreza.94. do séc. mas sabe-se ao menos que ao ser escrito assumia o caráter de universalidade.) – excelência. Paidéia: a formação do homem grego. que a palavra direito. Werner W. tal como são obrigados a respeitar a fronteira entre o próprio e o alheio”. aretai (pl. porque aquele que cumpre a lei e se regula por ela. Os Filósofos pré-socráticos 9 Já compreendemos que o que consideramos por Grécia Antiga não constituiu um Estado no sentido moderno do termo. Concluiu. porque a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180º. mas o conjunto de várias cidades autônomas entre si denominadas pólis. imponderável e.C. São Paulo: Cultrix. denominados filósofos da Physis. Tales de Mileto foi considerado o primeiro filósofo e sabe-se que era estudioso de astronomia e. Sabe-se que o berço da Filosofia teria sido a pólis de Mileto. tinham como objetivo construir uma explicação racional e sistemática do universo. situada na Jônia. litoral ocidental da Ásia menor. Anaximadro e Anaxímenes. portanto. estaria fora do alcance dos sentidos. inalcançável aos sentidos. observável. Para um maior aprofundamento sugiro a obra de BORNHEIM. G. ou substancial de todas as coisas. 9 15 . o infinito a massa geradora de todos os seres. portanto a busca pelo princípio originário. Denominou de ápeiron. existente em todos os seres. Meu intento nesta parte foi o de mencionar os pré-socráticos mais conhecidos. Nesta cidade temos três pensadores présocráticos de grande importância: Tales. segundo conta a tradição. portanto que o ar seria o princípio de todas as coisas. no entanto. Tais pensadores buscavam a matéria-prima. 4 . chegou a prever um eclipse total do sol ocorrida em 28 de maio de 585 a. Esses primeiros filósofos. Este pensador apresentou grande desempenho em geometria e demonstrou que todos os ângulos inscritos no meio círculo são retos e que originário era a água.As normas que constituíam as leis de Zeus fundamentavam-se no direito consuetudinário e no próprio saber do homem daquela época. Anaxímenes fosse realmente de Mileto algo admitia que a origem de todas as coisas mas não o concebia como indeterminado. Ademais concluiu que o princípio somente a água permanece a mesma a despeito de todas as transformações. o elemento invisível. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. Anaximandro de Mileto acreditava que o princípio primordial transcendia os limites do observável e que. Seria. a arché. 1997. termo grego que significa o indeterminado. não desvela a verdade. buscou argumentos capazes de legitimar as afirmações de seu mestre e fortaleceu a idéia de que a noção de movimento era contraditória. o rigor moral etc.C.) foi um grande opositor de Heráclito. impulsionado pela luta de forças contrárias. Heráclito concebeu o mundo como dinâmico. em inesgotável transformação. da doxa. mas em função do movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparência enganosa. O mais célebre foi o denominado “Aquiles” que revela o complexo estudo dos 16 a arché. Em seu modo de ver. da essência. região conhecida pelo nome Magna Grécia. Nesta região fundou uma escola filosófica preocupada com questões políticas e religiosas. ao fim que configuraria a origem do finito e infinito.C. único. Essa era a ótica da razão. a essência de todas as coisas residia nos números que representavam a ordem e a harmonia. localizada no sul da Itália. par e ímpar. a ótica da aparência. Acreditava que o fogo era duas vezes nas águas do mesmo rio. e a ao cabo. Heráclito de Éfeso foi considerado um dos mais importantes filósofos pré-socráticos. Seu fragmento mais conhecido menciona que um homem não pode banhar-se .). no plano lógico. imóvel e ilimitado. Para Parmênides o ser é e o não ser não é. discípulo de Parmênides. Suas contribuições foram numerosas. Sua escola filosófica foi denominada de mobilista. Sabe-se que floresceu pelo ano 500 a.C. a diferença entre os seres repousava sobre os números. multiplicidade. Acreditou que o mundo é o lugar das aparências. Para ele. Zenão de Eléia (488-430 a. a via a ser buscada pela filosofia. e se tornou o representante do pensamento dialético. Parmênides de Eléia (510-470 a. a crença na imortalidade da alma e na reencarnação. o não ser não é. Acreditava que o ser era eterno. pois para ele a vida era fluxo constante. dentre elas: o teorema de Pitágoras.Pitágoras de Samos viveu na ilha de Samos e posteriormente deslocou-se para Crotona. A arché teria uma estrutura matemática unidade etc. o mundo da ilusão e que somente pela razão. compreendemos a essência da realidade. Acreditava que a luta dos contrários seria o princípio de todas as coisas e por meio dessa luta o mundo se modifica e evolui. Parmênides afirmou que: o ser é. Por outro lado. a vida e a Natureza. Neste argumento Zenão nega o movimento da seguinte maneira: afirma que o mais lento em uma corrida jamais será alcançado pelo mais rápido. a preocupação dos primeiros filósofos teria sido com o universo. a água e o ar. Outros estudiosos do pensamento grego revisaram essa tese e concluíram que certa reflexão acerca do mundo dos homens teria precedido a reflexão sobre o mundo físico. Para entendermos melhor esse paradoxo de Zenão é preciso compreender o exemplo que nos forneceu e que resumidamente é o seguinte: em uma determinada corrida. a terra. o amor. a saber: de um lado. se a tartaruga (mais lenta) saísse à frente de Aquiles (herói). incluindo as teogonias míticas. tempo e infinito.) tentou conciliar as idéias de Parmênides com o pensamento de Heráclito.conceitos de movimento. o mais lento sair bem à frente. fundadas num politeísmo antropomórfico. o vir-aser. porque o mais rápido terá que primeiro alcançar o ponto de onde partiu o mais lento que. captado pelos sentidos. ou seja. o que traz consigo a personificação dos elementos e das forças naturais e a 17 . este herói não conseguiria alcançá-la em face da vantagem que a tartaruga obteve por ocasião da largada. espaço. por sua vez. Empédocles de Agrigento (490-430 a. conciliar a idéia de essência imutável obtida pela razão com a idéia de movimento. de outro o ódio responsável pela desagregação ou separação das coisas. Efectivamente. os pré-socráticos inauguraram o pensamento filosófico quando iniciaram um estudo racional sobre o homem. personificando a idéia de força de atração ou harmonização das coisas. Truyol y Serra apresenta. ou seja. Mondolfo. estas. Jaeger e R.A idéia de justiça no período pré-socrático Para estudiosos como W.C. o seguinte argumento: “isto é verdade se tivermos em conta a primitiva concepção helênica do mundo e da vida em sua totalidade. Acreditou que o elemento primordial era constituído por quatro elementos: o fogo. nesse sentido. 5 . ou seja. continuaria se movendo. se e somente se. concebem os problemas cósmicos como problemas humanos. Tais elementos seriam misturados de modos diversos a partir de dois princípios universais. 11 Este seria uma grande pólis. Não fica difícil perceber que a idéia de justiça significava garantir essa convivência harmônica a partir de uma repressão a tudo que pudesse comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades que a vida comunitária exigiria. 87. regulamentações que paulatinamente constituíram o nomos. História da Filosofia do Direito e do Estado. Para este autor. Portugal: Instituto de Novas Profissões. Ele afirma a existência de uma justiça cósmica de caráter imanente que preside a geração e a dissolução dos seres particulares. de uma forma ou de outra expressa na literatura disponível à época. O enigma que perturbava o espírito dos pensadores pré-socráticos era o movimento. 1985. Truyol y Serra aponta que Anaximandro teria transposto ou deslocado a idéia de justiça da pólis para o universo. as regras morais e os preceitos jurídicos indistintamente misturados. T. uma grande comunidade sujeita a uma lei ordenadora. 11 Esta idéia estaria presente no único fragmento existente da obra Sobre a Natureza. idéias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmênides de Eléia e Empédocles de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu. 10 A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da experiência da vida humana. Parmênides teria personificado a Justiça nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite e entre a verdade e a opinião. a mitologia. a pólis. A. A imagem da comunidade foi útil para a representação da Natureza. por exemplo. o que justifica a necessidade de buscar um elemento primordial que permanecesse sempre o mesmo. Protegida por seus deuses baseava-se em normas tradicionais de fundamento religioso. A justiça aparece no seu poema como um SERRA. São categorias cuja origem é social: a noção de lei. 85-86. ou seja.apreensão das suas relações segundo a natureza das relações entre os homens”. O cuidado com os valores culturais de cada pólis garantia uma convivência pacífica. O homem desta época vivia em uma comunidade autárquica e sagrada que configurava o microcosmo. 10 18 . ambos intitulados Acerca da Natureza. p. a mudança. pp. Podemos entender por nomos a idéia de ordem da pólis. ou seja. Cada cidade apresentava independência jurídico-política. themistes. Todavia esse perpétuo fluir é presidido por uma lei eterna e universal. Os pitagóricos formularam uma definição de justiça como “aquilo que alguém sofre por algo” – a justiça como uma relação aritmética de igualdade entre dois termos. Essa harmonia. Empédocles usa a idéia de justiça para tentar uma explicação do universo. a lei estende-se sem alteração. o amor e o ódio enquanto forças originais fazem e desfazem as coisas. embora nem todos a revelem em sua conduta. Os pitagóricos foram os primeiros a organizar uma teoria da justiça no interior de sua doutrina dos números. conceberam os números como essência das coisas e expressão de harmonia e regularidade no sentido específico de totalidade ordenada. Pitágoras antecipa também a relação entre Filosofia e política. forçavam o Sol a voltar à órbita se acaso se afastassem. A justiça nessa concepção funda-se na ordem natural presidida pelo número. Heráclito evoca as Erínias.princípio estático que assegura a imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: o ser é e o não ser . assume o sentido de uma correlação de condutas. que segundo a narrativa mítica. 19 . Esta unidade realizada pelo logos manifesta-se no fogo.não é. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação ética e religiosa. a multiplicação de um número ímpar (3) por ele mesmo alcançaria o número 9. porque a multiplicação de um número par (2) por ele mesmo daria 4. Todos os homens participam dessa ordem. Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9. Como concebeu a realidade em perpétuo devir. Essa lei única e divina alimenta a 12 12 Trata-se de uma das fontes do idealismo ético de Platão. Sabe-se que Pitágoras e Heráclito apresentaram considerações mais explícitas sobre a vida social. Por analogia o logos estaria oferecendo ao homem a norma para a ação correta. afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta. o logos. Este logos seria o responsável pela harmonia invisível entre os opostos. transposta para a esfera humana. Cresce o interesse pela vida humana e individual e a Filosofia se configura na possibilidade de uma purificação interior. a justiça é luta. Heráclito de Éfeso associa justiça e ordem universal. personagens da mitologia que eram servidoras de Dike. Esta igualdade aparece como elemento essencial da justiça. Deste modo. Ao apresentar esse conflito.89. p. legislador e poeta. 13 Essa filosofia natural pré-socrática conferiu validade à concepção helênica de justo percebida em Hesíodo e Homero. Esse predomínio da concepção de Hesíodo aconteceu por ocasião de profundas transformações políticas e sociais nos séc. Sólon. Portugal: Instituto de Novas Profissões. Sófocles acrescenta um problema novo: o do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. T. fundada na justiça. Importa perceber que a moralidade. apresentada na narrativa hesiódica. tanto para os pitagóricos quanto para Heráclito. Agamémnon). conferindo o seu sentido de sagrado e justificando qualquer sacrifício em seu nome. Sabe-se que a idéia de igualdade na reciprocidade. A idéia de retribuição está fundada na mais antiga tradição e configura uma legalidade cósmica que para os homens assumia o caráter de férreo destino. anunciou em suas Elegias o conceito de eunomia. de SERRA. foram os os poetas trágicos como Ésquilo e Sófocles herdeiros dessa concepção de justiça pré-socrática. A cidade deve ser comum a todos e todos devem se interessar por sua conservação. 1985. Sólon observou a necessidade de homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. que conduziu às codificações e destacou a figura de Sólon. VII e VI a. fundamenta-se numa lei natural. um jusnaturalismo cosmológico de cunho panteísta. Na fase présocrática houve. Resgatar o equilíbrio entre o crime e o castigo é função da pólis. superou o sentido de autoridade expresso nos poemas homéricos enquanto sentido da justiça. A negação da lei deve ser resolvida com uma sanção conforme o princípio que conhecemos pelo nome de talião: “quem praticou a violência sofrerá violência” (Ésquilo. a ordem equilibrada.C. Este conflito constitui o núcleo dramático da tragédia Antígona. portanto. No âmbito literário. História da Filosofia do Direito e do Estado. Sófocles conduz-nos.lei humana. o que configuraria o que ele entendeu por eunomia. ou seja. Sólon fustigou a hybris como a máxima negação da ordem. 13 20 . A. A lei representa o equilíbrio e a hybris a desmedida. Essa concepção não se estendia ao âmbito político. ou filósofos da physis.certo modo. Como Sócrates. a não universalidade das leis entre as pólis. ou seja. concebia a felicidade na moderação. sua meta era a eutimia que significava um estado de alma sereno e alegre. Este pensador nos conduz à problemática da sofística. culminará no pensamento de Platão e Aristóteles. os elementos últimos da realidade. pois compreendia que a prosperidade do indivíduo está vinculada à vida na pólis. A tradição atribui a Leucipo a inspiração deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepção divina. Sua ética apresenta o que podemos denominar de hedonismo esclarecido. porque acreditava que tais coisas perturbavam o espírito. O seu individualismo se refletia na esfera da família e. na preeminência da alma sobre os sentidos. a relatividade dos costumes. combatia o casamento e a paternidade. móveis no vazio. Daí preocupar-se com questões sobre o bom governo e sobre normas. Esse pensador considerado o “pai da história” apresenta um novo problema: a diversidade das convicções e instituições humanas. longe da desmedida. Trata-se de uma concepção religiosa de justiça em que os deuses ansiosos por justiça procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do orgulho. Sabemos que Demócrito professou um materialismo mecanicista que considerava os átomos. Segundo Aristóteles. embora apresente a advertência que a obra humana também poderá gerar um grande mal. 14 21 . Demócrito inclina- Chamo a atenção para um ponto interessante: a figura do coro na tragédia Antígona desvela certo vestígio da antropologia sofística que exalta o homem e suas obras. ou seja. por sua vez. à filosofia jurídica da sofística. nesse sentido. todavia reconheça e enfatize o caráter sagrado das leis não escritas.) foi o último dos pré-socráticos. Demócrito de Abdera (460-370 a.C. Um estudo através dos fragmentos deste pensador nos permite perceber que sua ética apresenta um desenvolvimento independente de sua filosofia natural. de tranqüilidade e equilíbrio. A importância de mencioná-lo separado dos demais é que ele inaugura o que denominamos de período sistemático da filosofia helênica que. 14 Heródoto de Halicarnasso transpôs para o âmbito da história a concepção de justiça oferecida pela tradição. outros pretendiam uma volta à forma oferecida por Clístenes e alguns defendiam ferozmente uma oligarquia. ou melhor. aproximadamente em 420 a. em 508-7. que significa “a mão soberana do demos”. A palavra demokratía somente aparece em Histórias de Heródoto e na Constituição de Atenas de Xenofonte. Demos tinha acepções diversas na Atenas do séc. Demokatía poderia significar também constituição. As fontes fidedignas não revelam quem inventou a palavra demokatía ou quando começou a ser efetivamente utilizada. como o governo das pessoas comuns que estabelecem uma ditadura da maioria sobre os melhores cidadãos. mas observa-se que a palavra democracia foi inventada tardiamente. sabe-se que esteve presente pelo menos por dois séculos de existência (508 a 322) no mundo grego ateniense. grego. ou seja. igualdade perante a lei. Tradicionalmente.Democracia ateniense A democracia ateniense não foi obra de um único homem. Demokratía poderia ser vista como o governo do povo como um todo ou. literalmente krátos significa poder soberano do demos. 6 . Muitos dos seus opositores defendiam um retorno ao sentido de democracia de Sólon. a maioria pobre do corpo dos cidadãos. V e poderia significar o povo como um todo. entendido como isonomia. Podemos afirmar que os ideais democráticos não eram aceitos por todos. comentamos que Clístenes desenvolveu um sistema de democracia. ou o próprio povo de Atenas na ekklesía. havia inúmeros adversários. Demokratía é considerada uma palavra ambígua no universo ateniense. para um opositor. o conjunto dos cidadãos adultos do sexo masculino. a partir de um equivalente poético: demou kratousa kheir. entendase aqui Clístenes.se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria: em seu modo de ver os melhores deveriam governar.C. na tragédia A suplicante. A teoria democrática tal como se configurou em Atenas viu-se diante da tarefa de 22 . ou ainda uma denominação dada a pequenas áreas dentro da pólis (espécie de divisão em bairros ou comunidades). todavia acredita-se em certa aparição indireta ou virtual. registrada em Ésquilo. Peter (org) O mundo de Atenas. na década de 320 a ekklesia realizava quatro reuniões fixas em cada um dos meses que constituíam os dez meses civis. A democracia ateniense difere da nossa democracia representativa. A palavra ekklesia significa literalmente: “um grupo que é chamado” e que se reunia em uma colina chamada Pnix a sudoeste da agorá que era o centro cívico de Atenas. Segundo especialistas. o que compromete seu estudo. O assunto principal era a política externa. Cada participante era inicialmente verificado. Uma introdução à cultura clássica ateniense. pronunciavam maldições contra traidores e. São Paulo: Martins Fontes. se necessário. a democracia de Péricles15. JONES. sobretudo em face das críticas Aristóteles na obra Política. por volta de 403 a. 1997. Péricles: estadista e general. portanto. elaboradas por O período mais conhecido ou famoso da demokratía ateniense é o da segunda metade do século V. órgão encarregado da tomada de decisões da democracia direta ateniense. De acordo com os relatos de Aristóteles. incentivador da democracia e do imperialismo ateniense.C. A primeira reunião era denominada de ekklesia soberana (Kúria). como também legislava. visto que esse sistema aperfeiçoou-se ao longo do tempo. Duas instituições eram fundamentais para configurar a imediatez dos procedimentos políticos de Atenas: a ekklesia (Assembléia) e a boulé (conselho dos 500) com seu subcomitê de prutáneis (presidentes).uma reconstrução. A democracia descrita por Aristóteles na obra Constituição de Atenas (Athenaion Politeía) não é. as decisões eram tomadas e executadas diretamente pelos cidadãos de Atenas. todos os problemas de Estado eram observados primeiramente pelos cinqüenta prutáneis que viviam em constante vigilância. todavia as fontes disponíveis que tratam do tema remontam ao século IV. convocar-se-ía a ekklesia. Tal função foi posteriormente delegada a um órgão menor de legisladores (nomothétai). 15 23 . em seguida iniciavam as oferendas de purificação. Os cidadãos de mais de dezoito anos que estivessem inscritos nos registros do seu demo (comunidade) poderiam integrar a ekklesia. Este órgão não só deliberava sobre as políticas a serem seguidas. Se constatado a relevância do problema os prutáneis convocavam uma reunião plenária da boulé dos 500 e. a partir de então. mas que pelo menos 5 mil efetivamente participavam da ekklesia. Nesse sentido. ou melhor. Sabe-se que uma reunião ordinária durava menos do que um dia. Alguns desses oradores foram também denominados de demagogós que significa literalmente. Por razões não difíceis de compreender. 1997. no séc. na antiga Grécia não havia a separação dos poderes. Essa habilidade imperiosa para o cidadão ateniense proporcionou um grande desenvolvimento da educação sofística. Os rhetores falavam na ekklesia na qualidade de líderes de pequenos grupos de políticos ou pessoas com idéias parecidas (não confundir com o que chamamos hodiernamente de partidos políticos). Eram agrupamentos informais. 16 24 . Em Atenas. A ekklesia exigia qualidades especiais em seus oradores que lançavam mão da persuasão para obter êxito em relação aos seus interesses. ou seja. freqüentemente tornava-se o porta-voz. IV introduziram uma espécie de pagamento para compensar o comparecimento que implicava perda de horas de trabalho. Uma introdução à cultura clássica ateniense. p. Peter (org) O mundo de Atenas. oradores ou ainda politeuómenoi. onde aquele que expressava com maior clareza suas idéias. 16 . Tanto o local não comportava um grande número de cidadãos como muitos não se sentiam atraídos pelo debate ou ainda viviam desmotivados pela longa distância que teriam que percorrer dos demos até a Pnix. Foi JONES. Os cidadãos que falam à tribuna eram denominados de rhetores. Outro fator importante a ser destacado é que na prática nem todos os cidadãos participavam da ekklesia ou poderiam subir à tribuna.210. os políticos.começavam as sessões. Acreditam alguns historiadores que a população de cidadãos de Atenas flutuava em torno de 20 ou 50 mil pessoas. São Paulo: Martins Fontes. entre 400 e 330 a Pnix sofreu reformas para acomodar um número cada vez crescente de cidadãos alcançando o quorum de 13 mil participantes. democracia ateniense implicava A condução da justiça em Atenas era responsabilidade dos A também uma grande participação do cidadão nos tribunais. seis funcionários. “o condutor do demos“ thesmothétai. Os dikastai eram pagos por cada dia de sessão. mas como primeira instância. todos os tribunais do júri passaram a figurar como Eliaia. Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. mais tarde no séc. graphé paranómom18. Também foi utilizada na competição pelo sucesso político. O primeiro uso da graphé paranómom foi verificado em 415. mas “jurados” que eram ao mesmo tempo juízes. Após 462-61. Tais tribunais eram constituídos por jurados em um número que poderia variar entre 201 a 2. Rumores de subversão e problemas de desafeto político também possibilitariam uma graphé. configuraria um caso público para quem quisesse salvaguardar a democracia. A graphé paranómom substituiu o ostracismo que foi abandonado por volta de 416. O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decisões das autoridades se deu com Sólon em 594. ressaltou que o cidadão de uma democracia não só participava da boulé e ekklesia. 17 Podese presumir que o cidadão que comparecia para ser “jurado” era o mesmo que tinha o hábito de comparecer às ekklesias. momento em que houve rumores de subversão. pagamento que fora introduzido por Péricles. Jones. nesse sentido. IV. intimação por escrito. eram escolhidos dentre os que se ofereciam para tal. denominado de Eliaia. Uma vez emitida a intimação. era considerado como díke por prejudicar o papel da família. embora houvesse a distinção entre casos públicos e casos particulares. na obra supramencionada que o termo “jurado” é um termo inapropriado para designar os dikastai. O procedimento específico desses órgãos ficava a cargo da iniciativa particular. As vespas (422) de Aristófanes que constitui uma sátira sobre os tribunais. graphé. Nos casos públicos a iniciativa ficava a cargo de quem quisesse emitir uma intimação. Neste último somente a parte ofendida poderia mover a ação que por sua vez era denominada de díke. Observa-se ainda a inexistência de um órgão que funcionasse como a promotoria pública ou uma força policial específica. como também.501 membros e. também foram chamados de dikastéria. não só como fase recursal.Aristóteles em sua obra Política que participava nos tribunais. 17 18 25 . Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta inconstitucional. pois não havia juízes no sentido moderno. ao orador Cf. Sabe-se que o júri era escolhido de acordo com a necessidade a partir de uma lista anual de 6 mil jurados e. O homicídio. por exemplo. Cf. Observa Peter V. p. Ambas as partes concordavam com a participação de árbitros particulares e se comprometiam a aceitar as decisões. o escravo era tido como um bem familiar valioso para o senhor que preferia confiáveis. os querelantes falavam em causa própria. O testemunho de escravos somente poderia ser aceito se obtido sob tortura. em certo sentido. Uma introdução à cultura clássica ateniense. coisas. o que contribuiu como argumento válido para a limitação de testemunhos considerados pouco . a intimação era feita verbalmente. Segundo os historiadores. Sabe-se que no séc. porque eram considerados objetos sem alma. 1997.com proposta de lei inconstitucional. Se tal método não fosse eficaz. O conselho judiciário fixava um dia JONES. as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo em um processo civil. Peter (org) O mundo de Atenas. 224. pagaria uma multa e seu projeto seria imediatamente cancelado. Na verdade. Os jurados votavam imediatamente após a fala dos querelantes. Se viável. conselho judiciário em dia estabelecido. o povo como jurado julgava o próprio povo na ekklesia o que desvela. As testemunhas embora fundamentais não eram ouvidas pelas duas partes e os jurados reagiam conforme suas emoções e preconceitos morais. Não havia advogados. percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense. sendo considerado culpado. a queixa era registrada por escrito e ambas as partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro após o julgamento. procedia-se a uma intimação. Em Atenas. Na data prevista tal conselho decidia sobre a possibilidade ou não do processo. A parte ofendida se dirigia à agorá e verificava se as leis que lá estavam expostas apoiavam seus interesses e qual o procedimento adequado à sua causa. São Paulo: Martins Fontes. o réu comunicado perante testemunhas deveria apresentar-se ao árkhon. esta ficaria suspensa até o julgamento e. 26 não submetê-lo a qualquer tortura. IV havia o recurso da arbitragem. o princípio da responsabilidade democrática alcançando a todos. sem fazer uso de recintos reservados ou de conselhos de juiz. Na obra Apologia de Sócrates que narra a versão platônica sobre o julgamento de Sócrates condenado à morte em 399. Inicialmente. sem regras para apresentação de provas e sem juiz. o que ressalta o sentido democrático na oportunidade de ocupar cargos públicos por turnos. Atenas tinha um grande número de funcionários com mandatos anuais. São Paulo: Martins Fontes. que sofreu a perda parcial dos direitos civis por se envolver na profanação dos Mistérios de Elêusis. Uma introdução à cultura clássica ateniense. integrar a boulé. JONES. sobretudo nos casos considerados particularmente graves e era até mesmo dirigida aos descendentes. Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada. a ética. no sentido moderno do termo.para a audiência e determinava que uma cópia da queixa fosse exposta publicamente na agorá. Peter V. A recusa repetida a fazer um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e até mesmo a perda dos direitos civis (atímia). o querelante vencedor poderia apossar-se de suas propriedades no valor referente à quantia imposta. pp. V. No caso de uma dike a aplicação da sentença era função do ofendido.231-2. em 415 a.C. a lógica e as artes (poesia. na segunda metade do séc. Peter (org) O mundo de Atenas. a retórica. porém equiparava-se à morte no sentido político. 19 Enfim. Atenas contava com setecentos funcionários. antes. o de Andócides. tal sentença foi revogada por ocasião de uma anistia geral extraordinária concedida em 403. A sua envolve a matemática. 19 Cf. a perda dos direitos civis era de caráter perpétuo. Em geral. Segundo seus relatos. propriedades ou o exílio. a política. a privação absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia. 27 . a história. Os julgamentos em uma graphé e as sentenças de morte proferidas eram atribuições de funcionários da cidade. entrar nos templos e na agorá. 1997. participar nos tribunais. o homem na condição de átimos poderia ser morto ou roubado sem ter A atimía não acarretava a perda das direito à reparação legal. embora a cidade não possuísse uma burocracia.. escultura e arquitetura). Jones nos relata um caso curioso. nesse sentido. Segundo Aristóteles. A situação de atimía equivalia a estar fora da lei e. a lingüística. importância Atenas foi a pólis grega que mais contribuiu intelectualmente para o desenvolvimento das ciências e artes. 28 . Tais homens causaram receio e escândalo que se refletiram nas comédias de Aristófanes e nos diálogos de Platão. resta-nos a máxima prudência possível ao tentar compreendê-los. Todas as informações que temos dos sofistas foram obtidas através dos diálogos de Platão. 7 . A sofística se tornara uma exigência da própria democracia ateniense: formar cidadãos capazes de brilhar nas assembléias. Esta cidadeestado experimentou um verdadeiro entrecruzamento de pensamentos filosóficos que contribuiu para a passagem do período cosmológico para a fase antropológica. certo ou errado. Eles observavam a diversidade cultural de sua época e percebiam a mudança na esfera das instituições. Estes senhores cultivaram a retórica.Seus pensadores desenvolveram teorias que permaneceram válidas durante milhares de anos e algumas perduram até hoje. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. conferindo maior importância à argumentação . pois a tendência à retórica baseava-se em certo racionalismo e um espírito crítico que calcava aos pés a tradição helênica. é o costume. considerada a capital intelectual do mundo helênico. além de não constituir uma unidade sistemática. Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas freqüentemente criticavam o fundamento que conferia validade às leis e costumes da tradição. o estabelece o que é justo ou injusto. A lei e os costumes assumiam um caráter essencialmente humano. ou seja. Atacavam o aspecto sagrado da tradição helênica. Muitos estudiosos denominaram esta fase como o Iluminismo grego. O único estudo da sofística repousa na existência de alguns fragmentos ou fontes indiretas. vinculado à vontade dos homens. Nesse sentido.a arte de convencer por meio do discurso em detrimento da busca pela Verdade.A Sofística e Sócrates O século V vivenciou um esplêndido apogeu cultural na cidade de Atenas. seu inimigo declarado. Nos diálogos de Platão os sofistas figuram como os interlocutores de Sócrates. convencional. Ressaltaram arbítrio dos homens que a contraposição entre o natural e o convencional. Assim como nos pensadores jônicos, o ponto de partida dos sofistas foi o movimento e a procura de uma realidade única capaz de permanecer idêntica a si mesma. Nesse sentido, surgiu com os sofistas a dicotomia natureza (physis) e lei (nomos) ou convenção. A moralidade passa a estar desligada da ordem natural e o interesse pela conveniência assume o status de pilares da vida social. Trasímaco da Calcedônia que figura como personagem na República, livro I, afirmava que a origem do nomos estaria no interesse, interesse do mais forte. Cada governo promulga leis que lhe são favoráveis. O justo é o que interessa ao governo estabelecido. (Trasímaco pretende descrever aquilo que de fato acontecia) Cálicles, personagem do diálogo Górgias de Platão, concebe o nomos como estabelecido em benefício da massa dos fracos como um limite ao excesso de superioridade dos mais fortes. Cálicles confundia os mais fortes com os melhores. Em seu modo de ver, a injustiça consistiria em alguém se destacar dos demais. Há na sua doutrina uma clara oposição entre um estado de natureza e o estado civil, regido por um direito positivo que limita a liberdade natural. O seu conceito de natureza se reduz aos instintos irracionais primitivos e espontâneos no homem. A oposição entre natureza e convenção criou as condições de possibilidades para uma crítica das instituições positivas. Nesse sentido, atacaram os privilégios de cidadania e de classe, a escravidão, a subordinação da mulher ao marido20 e a discriminação entre gregos e bárbaros. Sabe-se que um sofista chamado Antifonte, escrevera a obra Sobre a Verdade da qual restou apenas um fragmento, afirmava a igualdade natural de todos os homens, asseverando que as leis estabelecidas pelos homens eram leis contrárias à natureza que, na verdade, deveriam conduzir a um igualitarismo democrático. Em outro tratado atribuído a Antifonte, Sobre a Concórdia, os fragmentos que se conservaram afirmavam a obediência às leis fundamentadas em um egoísmo enraizado numa educação criadora de hábitos socialmente aceitos. Os defensores de certo feminismo foram ridicularizados por Aristófanes na obra O congresso das mulheres. 20 29 Crítias, parente de Platão e que fora membro do governo tirânico dos Trinta em Atenas, atribuiu a uma argúcia a origem da obediência às leis e a crença nos deuses. No seu modo de ver como um crime só pode ser punido se a infração for conhecida, o homem teria inventado um ser divino que tudo vê, conhecedor das infrações mais ocultas. Outro sofista importante foi Protágoras de Abdera que, ao lado de Górgias de Leontini, figura como um dos mais antigos representantes da sofística. Sabe-se que Protágoras fora amigo de Péricles e que recebera deste a tarefa de elaborar a redação das leis da colônia ateniense de Turioi, no Sul da Itália, por volta de 444 ou 443 a.C. Observa-se também que Platão tratou-o de forma diferenciada. No mito platônico, Protágoras fundamenta a coesão social nas virtudes do pudor e da justiça, ofertadas aos homens por Zeus. Como os homens viviam em incessantes lutas, Zeus concedeu o dom que iria permitir a edificação das cidades. Esse mito retrata o problema do desenvolvimento das aptidões sociais a partir de uma dura e lenta aquisição do gênero humano prevalecendo sobre as tendências egoístas. Para Protágoras quem não possuir as duas virtudes mencionadas deveria ser eliminado da sociedade, justificando desse modo a supressão dos insociáveis mediante uma teoria da pena como função intimidatória em nome da defesa social. Há a crença numa virtude social média que o esforço pedagógico seria capaz de aperfeiçoar – certo otimismo antropológico. Neste sofista encontramos um relativismo ético que converte em regra desejável a utilidade social. Protágoras transforma o nomos em conseqüência de um acordo de todos os membros da sociedade. O justo será o conveniente em cada caso, desvelando assim, certo pragmatismo. Protágoras configurou também o momento de um relativismo gnosiológico expresso em sua mais famosa frase: “o homem é a medida de todas as coisas: das que são enquanto são; das que não são, enquanto não são”. A sofística contribuiu para a reflexão filosófica na medida em que estimulou os debates sobre os valores partilhados e introduziu novas à formulação de estudiosos do 30 idéias. O racionalismo que marca suas considerações críticas inspirou projetos de reformas institucionais que conduziram constituições supostamente perfeitas. Para alguns helenismo, esse teria sido o momento do surgimento de um gênero literário que para outros só aconteceria muito mais tarde: a utopia. As duas primeiras utopias seriam as de Hipodamo de Mileto e de Fáleas da Calcedônia que foram analisadas por Aristóteles no livro II da Política. A diversidade nas instituições que inspirara os sofistas contribuiu para o surgimento de várias formas de governo. A pólis era a maneira comum de organização, mas o regime variava conforme os indivíduos ou grupos que detinham o poder. Os gregos denominaram de tiranos, os homens que alcançavam o poder de forma irregular, a palavra não tinha o sentido pejorativo que atribuímos. O mundo grego vivenciou a monarquia, o surgimento de uma classe média com a passagem de uma economia natural para uma de cunho mercantil, oligarquias, tiranias e democracia direta que desembocou em demagogia. Heródoto, no livro III, de sua obra História, oferece-nos uma ficção em que há uma séria discussão sobre as diversas formas políticas de governo. Heródoto as observa e as classifica de acordo com o exercício do poder: monarquia, o poder supremo pertence a um indivíduo; oligarquia, o poder pertence a um grupo reduzido de homens que receberam uma educação específica; isonomia, que pertence ao conjunto dos cidadãos, o demos. Esta classificação será sistematicamente observada por Platão, no diálogo O Político e, em Aristóteles, na obra Política. Na época que estamos a considerar dois nomes são importantes para o debate sobre as formas de governo: Isócrates e Demóstenes. Ambos trataram de um problema fundamental à Democracia: a chefia nesse regime democrático. Combateram a demagogia e a corrupção dos tribunais populares. A despeito dos vícios desse regime Demóstenes o considerava o único legítimo. Já Isócrates21 propôs uma reforma que significaria a substituição de uma democracia direta por uma indireta e, nesse sentido, os melhores estariam encarregados da gestão dos negócios públicos. Foi este pensador que distinguiu o sentido de justiça de “dar a cada um o que merece” do sentido “dar a todos o mesmo sem discriminação”. Mais tarde na obra Panegírio de Atenas (380 a.C.) 21 Na obra Areopagítico(354 a.C.) e Panatenaico(340 a.C.) 31 assim como os sofistas. antes. República dos Lecedemônios. porém prioriza a clareza nos conceitos.) Este pensador. além das referências feitas por Aristóteles. Sua existência nos foi transmitida por Platão ao colocá-lo como personagem principal em vários de seus diálogos.C. Críton. introduz os temas mediante o uso de perguntas e respostas que vão pouco a pouco rodeando o objeto. Foram considerados como socráticos porque os diálogos posteriores apresentam mais acentuadamente a personalidade de Platão. Difere dos sofistas quanto ao método. tornou-se o ponto de partida de várias correntes doutrinárias. Górgias e o livro I da República.C. não se preocupa com grandes discursos. Sócrates se tornou a figura mais significativa da Filosofia Antiga e. contemporâneo e opositor mais importante dos sofistas. Sócrates. Sócrates nada escreveu. República de Atenas. Protágoras.430-354 a. são: Apologia de Sócrates. orienta sua investigação para os problemas humanos. observa a necessidade de substituir a obediência cega ao nomos por uma explicação racional convincente. Os diálogos platônicos considerados pela tradição como “diálogos socráticos”. mas enquanto personagem platônico expressou o pensamento de seu discípulo e supostamente o seu próprio de forma que não fica claro a diferença entre o pensamento de um e o do outro. descobrindo seus diferentes aspectos até desnudar a superficialidade e imprecisão de certas opiniões ou juízos proferidos pelo senso comum acerca de tal objeto – Xenofonte(ca. Pode-se acreditar que Isócrates tenha pressentido a possibilidade da caducidade da pólis grega em face da era dos grandes impérios do período helenístico e romano. 8 . Ciropédia e Econômico. 22 32 . isso se deu de tal forma que muitas vezes uma linha tênue separa o homem lendário do histórico. ou seja.) – suas obras foram conservadas na íntegra: Hierão. Eutífron. O que se deve advertir é que se torna recomendável comparar a figura de Sócrates traçada por Platão e a apresentada por Xenofonte22. a simplicidade na exposição e.Sócrates (469-399 a.ressaltou a problemática da política externa e apresentou a idéia de uma confederação pan-helênica que pusesse fim a atomização política da Grécia. Na verdade. A esse respeito cito Truyol y Serra: “Sócrates vê na cidade uma realidade ética. É a pólis que torna possível a vida do cidadão. portanto a figura do homem insubornável. Nesse sentido. Podemos dizer que o seu método o conduziu a um intelectualismo ético.23 Faz-se mister ressaltar que essa postura de Sócrates não torna lícitas considerações de que ele teria sido um positivista que tenha separado o Direito da Justiça. se por uma fatalidade a cometeu. ofereceu resistência passiva a uma ordem injusta. é preferível aceitar a sanção correspondente. O conhecimento se torna uma virtude e. Sócrates ensinava que as leis eram necessárias e correspondiam a uma exigência da natureza humana. a pena figuraria como um remédio para o homem. No âmbito da filosofia político-jurídica. Sócrates personifica. Mas essa desobediência não pode ir ao extremo de pôr em perigo os alicerces da 23 Cf. portanto. porque a verdade nasce no interior desse diálogo. O próprio Sócrates alega que. o papel de tornar possível essa perfeição. A Filosofia assume. o homem pratica o mal por ignorância do bem. sob o governo dos Trinta Tiranos. 33 .método maiêutico. Esta legitimidade essencial não é destruída por erros acidentais. a temperança e a justiça são condições indispensáveis para a maior felicidade humana. no interior de uma ética comprometida com o aperfeiçoamento da alma humana. Isto implica dizer que a obediência às leis é um dever sem excusas. Seu método enfatiza a necessidade de definições rigorosamente formuladas. pois acreditava que todos poderiam conhecer a verdade se interrogassem a si mesmos e comparassem seus juízos com os dos demais. cujo espírito prefere demonstrar uma ignorância confessa a apresentar um falso saber. Quero dizer com isso que para Sócrates a moral se reduziu ao conhecimento do bem. Sócrates se opõe à tese sofística da moral do mais forte e do relativismo. No seu modo de ver. ensinando em seu lugar o princípio segundo qual é mais digno sofrer a injustiça do que cometê-la e. nesse sentido. o diálogo Críton. logo há um acordo tácito pelo qual o cidadão deve a sua obediência. em certa ocasião. Também se opusera a um acordo ilegal feito em assembléia popular. fundamentada na ordem divina das coisas. C. Sócrates foi acusado de introduzir novos deuses e de corromper a juventude. pois não compreendia como uma multidão poderia conduzir corretamente os negócios públicos com a devida competência. A escola cínica operou uma aproximação do pensamento de Sócrates e dos sofistas. Sócrates concebia a existência de leis não escritas advindas da vontade reta da Divindade.24 Ademais. O seu imperativo ético impelia-o à prática do bem. seu pensamento tornou-se o ponto de partida de várias escolas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. visto que Antístenes foi discípulo de Górgias antes de seguir Sócrates.) como primeiro cínico. 24 34 . Foi exatamente sua crítica ao regime democrático em conjunto a um método que denunciava a superficialidade intelectual de alguns homens o que concitou inimigos poderosos. 445-365 a. das que podemos chamar de “socráticas” por aproximarem-se de Sócrates no focar dos problemas por este tratado. Resumidamente podemos dizer que a escola cínica é tradicionalmente atribuída a Antístenes (ca.ordem social. 111. ou seja. destaco os Cínicos e os chamados socráticos menores ou Cirenaicos25. O nome cínico se deve ao fato de que Antístenes ensina junto ao Cinosarges. Outro fator importante é a sua oposição ao regime democrático de Atenas. Todavia não ignorava os conflitos que na realidade aconteciam entre ambas.C. Peter (org) O mundo de Atenas. p. Estas leis estariam nas consciências humanas fundamentando sobretudo as leis positivas. O cinismo exagerou o aspecto ascético da personalidade de Sócrates. foi condenado à morte. São Paulo: Martins Fontes. 1997. Nos diálogos Apologia de Sócrates e Fédon conhecemos um pouco dessa morte trágica e podemos perceber Sócrates como um verdadeiro homem virtuoso que não fugiu à morte. A virtude é convertida na JONES.) outros revelam o nome de Diógenes de Sínope (flc. a jamais retribuir uma injustiça com outra injustiça. sem os quais é inconcebível uma vida humana digna de tal nome”.323 a. daí a palavra cínicos para os seguidores desta escola. 25 Os cirenaicos foram assim chamados por ser o seu fundador oriundo da cidade de Cirene. Como já pude mencionar. Pórtico do Cão. sobretudo de Górgias. que acreditava na imortalidade da alma e na justiça divina. ao nomos etc. hegesias.). o prazer é fugaz. sem intenções de reformas nas instituições. ou seja. Em seu modo de ver a virtude é uma faculdade de gozar e a sabedoria significa saber procurar o prazer. apresentando como saída possível o suicídio.moderação entendida esta como verdadeira negação de necessidades. configurando um verdadeiro conformismo. Pregaram uma desvalorização da cultura e. Comentam os estudiosos que esta doutrina veio a cair num pessimismo motivado pela experiência deprimente da fugacidade do prazer. Compreendiam natureza como o locus de uma espontaneidade sem esforço. compreendendo este como satisfação de um desejo. Conforma-se com o mundo. sobretudo de uma participação política e social. portanto eram avessos à propriedade. Negou-se a vida quando esta não poderia oferecer o mínimo de prazer. O conceito central dos cínicos era a auto-suficiência do sábio e a partir desta concepção formularam críticas às instituições e valores sociais. Na ética cirenaica abre-se o caminho para o postulado de uma autosuficiência. Postula-se a indiferença em relação aos bens externos. Compreenderam que a forma monárquica seria a mais 26 As idéias do cinismo nos fazem lembrar as proferidas por Rousseau sobre o bom-selvagem. Os cirenaicos identificaram o bem com o prazer. Os socráticos menores ou Cirenaicos partem de um ponto de vista aparentemente oposto ao dos cínicos. afasta-se. O sábio cirenaico afasta-se de tudo o que não oferece prazer. o desapego do significado da pólis em face de uma concepção cosmopolita. hedone. à família. Desaconselhavam o casamento em face do amor livre. Aristipo (435-355 a. Um pacifismo radical no interior de um cosmopolitismo igualitário. Percebe-se um vínculo com Sócrates também distante. Construíram um jusnaturalismo fundado na moral da renúncia. antes de se vincular a Sócrates fora discípulo de Protágoras. glorificando o bom-selvagem26. à cidade. O seu ideal seria um estado de natureza sem convencionalismos. A diferença entre os sábios e os ignorantes repousa sobre a capacidade de autodomínio e desapego aos bens materiais. Sabe-se que o seu fundador.C. 35 . logo surge a necessidade psicológica da sua repetição que causa com o tempo um amortecimento progressivo. O apogeu dessas duas doutrinas que contribuíram para formação do estoicismo e do epicurismo marca a decadência da pólis grega como forma suprema de vida. mas positivo. nesse sentido. não há outro direito que o direito fruto da vontade humana. afirmaram que nada é positivismo posterior justo por natureza e. Eles professavam um moral e jurídico que mais tarde será adotado por Epicuro. 36 . O extremo individualismo que surge opera certo desligamento da felicidade em relação à comunidade e em relação à tradicional concepção do homem como bom cidadão.desejável visto não exigir participação do súdito na vida pública. Não conceberam a dicotomia natureza/ norma. a problemática do conhecimento. 28 P. Para Platão a Filosofia adquire a função de crítica dos fundamentos da cultura. ocasionalmente antinômicos do seu ensino. 28 Nesse sentido Platão fornece a primeira formulação clássica da Filosofia. Nos dizeres de Truyol y Serra: “Sócrates ultrapassou o relativismo e o individualismo dos sofistas. de Platão) 1 . apesar de tudo.A justiça na concepção de Platão (428 – 347 a. Brum de Oliveira. (A República.Parte II . Ocorre o contrário com aquela cujos dirigentes são mais ávidos de poder”. 27 37 .119. A tarefa de desdobrar em vasta síntese o que em Sócrates era apenas gérmen. o mundo sensível e o mundo inteligível como objetos de conhecimento. isto é. Platão tornouse discípulo de Sócrates. a verdade é que é mais bem governada a polis em que aqueles que devem deter o poder são os menos ansiosos de poder.C. nos arredores de Atenas. foi discípulo de Crátilo que por sua vez foi seguidor de Heráclito e..)27 “Mas. a possibilidade do conhecimento enquanto realidade. a verificação se o conhecimento passa pelos sentidos ou pela razão. as escolas socráticas limitaram-se a destacar unilateralmente aspectos.Introdução Platão nasceu em 427 ou 428 a. até o momento em que Justiniano a dissolveu em 529 d. Por sua vez. um sistema. Filho de uma família da aristocracia ateniense que se dedicava à política. tanto do sentido de política como dos valores e Este texto foi elaborado em conjunto pelos professores Wellington Trotta e Clara Maria C. Para isso tem por preocupação o método na relação direta se é possível o conhecimento. em cujo pórtico figurava: “Não passe destes portões quem não tiver estudado geometria”. viria a caber a Platão”. posteriormente. A obra desse filósofo é uma longa reflexão sobre a decadência dos costumes atenienses. A academia de Platão durou cerca de um milênio.C. livro VII. não deixou. que desenvolvesse os seus postulados. Fundou sua Academia em 387 a.C.C. ao afirmar a existência de uma ordem moral objetiva de validade absoluta. através da dialética (da discussão). O mito exerce função importante em seus diálogos. trata-se de uma forma permanente na qual persiste às mudanças. cuja função seria denunciar a fragilidade e a ausência de fundamentos das opiniões dos homens. 120). Platão em suas reflexões analisa as estruturas múltiplas de sua cidade e suas respectivas interferências na vida dos homens. a essência é a-histórica. ou seja. imutáveis. imperfeitos. eternas. Nesse mundo inteligível encontramos as idéias (formas puras) das coisas. descobrimos a 38 . concebeu o que chamou de mundo inteligível ou mundo das idéias com realidades abstratas. Por isso afirma-se que o pensamento platônico é essencialmente político. A partir desse princípio. contexto histórico que condenou seu mestre Sócrates à morte. a dar luz às idéias. isso a partir da aplicação do método socrático (maiêutica). E. Tal análise é realizada por meio do diálogo.ideais (modelo). enriquecido com símbolos para ajudar na compreensão dos objetos. Quando pretendemos conhecer algo. A essência possui existência prévia aos objetos. mutáveis. No processo de buscar a essência pelo método da discussão. isso considerando a tradição em que ele se situa e a crise política de seu tempo. em que o conhecimento é superficial. Mundo este que denominou de mundo das sombras. inteligíveis. imediato e incompleto. fonte de sua dialética. qual a função do mito no pensamento platônico? “O eros filosófico de Platão voa jubilosamente nas asas do mito. o mundo material visível com objetos particulares. concretos. Percebe-se então que Platão abraça o problema socrático da superação do cepticismo gnosiológico (impossibilidade do conhecimento) dos sofistas. o de levar seu interlocutor. perecíveis. E partindo desse princípio Platão concebeu o mundo em uma realidade dualista: de um lado. uma vez que a tradição mitológica mantém-se como referência cultural importante. Tratase de um discurso indireto. perfeitas. para Platão. a natureza essencial das coisas. De outro lado. portanto. Platão apela para o mito como recurso. ou seja. comprazendo-se no símbolo e na fábula” (Truyol y Serra. uma vez que aprender é recordar as formas puras contempladas pela alma quando livre do corpo. sendo assim. O papel do filósofo seria. coisas e idéias complexas. O tema da justiça. as idéias (formas puras) constituem a verdadeira realidade e na sua hierarquia. O fim supremo do homem é realizar. É isso que significa a universalidade da razão. independente de origem. porque essa hierarquia ontológica existe também na esfera axiológica conseqüentemente. o que nos revela a sua Carta VII. em certo sentido. vencendo os sentidos por intermédio de uma vida virtuosa fundada no autêntico saber. A realidade política de Atenas marcada pelas particularidades. Essa relação hierárquica influenciará seu pensamento político e diretamente suas construções éticas.essência imutável deste algo que está sendo investigado (Manfredo. O seu programa visava instaurar uma política fundamentada no saber. por injustiças e corrupções. o Bem. Esta famosa epístola descreve o processo da vocação político–filosófica de Platão e sua desilusão com a vida pública. Importa subordinar os sentidos à razão. A República (Politeia). estabelecendo o que deve ser aceito por todos. coroa-se a idéia do Bem. a mera opinião para um reexame crítico. É por isso que os sentidos não oferecem a possibilidade do conhecimento verdadeiro e sim aparências enganosas. o abandono do mundo sensível e a busca do mundo das idéias” (A República. apenas doxa. Seu projeto configurava uma concepção pedagógica da 39 . Em contrapartida as coisas singulares que existem no mundo são sombras das idéias que configuram formas primordiais ou arquétipos eternos. A prática filosófica envolve assim. Cap. o Político (Politikós) e As Leis (Nomoi) são diálogos que nos oferecem a medida da importância da filosofia políticojurídica no pensamento de Platão. 1993: 30). O ponto de partida é o senso comum. classe ou função. Portanto. VI e VII). A esse respeito o próprio Platão comenta que: “A Filosofia corresponderia a um método para se atingir o ideal em todas as áreas pela superação do senso comum. o fez desistir de ingressar na vida pública. Platão compreendeu a corrupção como um dos fenômenos de sua época e acreditou que a Filosofia poderia resgatar a ordem e a justiça nas relações sociais. visto que os homens públicos são dominados pelos interesses particulares. da melhor forma de vida em comunidade. constitui o eixo em torno do qual gira a sua especulação filosófica. o quanto possível. A parte irascível corresponde à fortaleza e coragem que permitem seguir os imperativos da razão. como ordem do cosmos. Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo que estabeleceu entre a tripartição da alma e a sua teoria da polis. Platão concebe a alma como tripartite. Para Platão sua carência propicia a degeneração dos regimes políticos. livro IV.comunidade. a razão é a medida de tudo que possa ser perceptível pela inteligência e. Já a parte da concupiscência está relacionada ao sentido das necessidades elementares. isto é. 40 . portanto política no sentido de unidade comunitária. 3 . A obediência às leis configura. Como o sentido da educação é comunitário e a política visa por meio daquela estabelecer laços integrativos no interior da polis. nesse contexto.Relação entre alma e cidade: o governo da razão Na República. ao seu turno se subdivide em irascível (impulsos e afetos) e concupiscente (necessidades elementares). Com tais virtudes surge a virtude da justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma das faculdades em seu âmbito próprio e função específica. Para tanto destaca a importância da educação. A obra a República contempla a idéia de uma comunidade alternativa àquelas existentes. Para ele uma sociedade deveria ser edificada a partir de laços integrativos. pois de fato suas implicações logicamente que obrigam a criação de uma identidade cultural. a justiça afigura-se como a virtude suprema do cidadão. capaz de estabelecer o que convém a cada um. As duas dimensões da parte irracional da alma devem se submeter à parte racional através da virtude da temperança ou moderação. na concepção grega um quanto de harmonia. A relevância da educação no pensamento de Platão é outra marca de seu pensamento. Platão apresenta o que podemos chamar de concepção organicista de sociedade. e outra irracional que. Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade. A parte racional é regida pela sabedoria ou prudência. Nessa perspectiva Platão é o primeiro pensador a defender o caráter público da educação. o fundamento da polis. ou seja. a mesma se divide em uma parte racional. entregando ao poder público comunitário a responsabilidade de sua execução. Há uma divisão de trabalho que permite coordenar as diversas aptidões visando o bem comum. cultivando a fortaleza. Nesse modo de ver.A Cidade constaria de três classes diferenciadas por suas funções próprias. buscando o sentido de universalidade pela superação da individualidade absoluta. desenvolvidas pela cidade através do processo educacional orgânico-administrado. o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da cidade. Faz-se mister ressaltar que as classes da República não se baseiam em uma ordem hereditária. a justiça apresenta-se primordialmente para garantia do funcionamento do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas específicas de cada classe. Assim como na alma. pois os magistrados deveriam decidir. Platão em seu projeto político-pedagógico suprime a instituição família e a propriedade privada para as duas classes superiores dos magistrados e dos guerreiros a fim de afastar interesses particulares que pudessem conduzir à corrupção. enquanto que o complexo dos artífices estaria limitado à vida na esfera privada. Esta existe para tornar possível a vida humana. governada pelo sentido da filosofia. Ademais. Na cidade platônica. Platão equiparava a mulher ao varão observando uma educação idêntica para ambos os sexos. comerciantes. guiados pela sabedoria. agricultores e aqueles que constituiriam a base econômica da cidade. Platão opera uma inversão na concepção individualista da sofística quanto à relatividade das coisas. Destarte o horizonte do indivíduo seria o horizonte do cidadão. O seu pensamento político inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina ao todo. o indivíduo se situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a polis. Somente as duas classes superiores teriam participação na vida pública. A primeira seria a dos magistrados ou governantes. A aristocracia de Platão é uma aristocracia do espírito – o saber legitima o poder. em 41 . não seria necessário o direito positivo. a segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna e externamente. O ponto fundamental repousa sobre as aptidões pessoais dos membros da polis. As classes dos guerreiros e dos artífices aceitam o domínio dos governantes pela ação da temperança ou moderação. a terceira e última dos artesãos (artífices). Na República descreve cinco formas. O Político e As leis. As legais são a monarquia ou realeza. consciente da imperfeição dos homens. admite a necessidade de fixar princípios de governo em leis positivas. a dinâmica política. Há uma clara mudança de perspectiva em Platão mais velho. pois no seu entender seria a causa de toda a discórdia civil. Se os guerreiros tomarem o poder teremos uma timocracia ou timarquia que significa governo da honra. A cidade descrita na obra As Leis se afigura como uma teocracia em que os magistrados assumem a dignidade de intérpretes da vontade divina. somente uma assume o caráter de justa e legítima: a aristocracia do espírito ou governo dos sábios. a democracia. desiludido com as experiências na Sicília. desrespeitando hierarquias naturais e legítimas. Encontramos três formas legais e três ilegais de governo. Entretanto. Esta forma poderia conduzir a uma oligarquia que liga o poder à fortuna. o governo da multidão. em que Platão. Todas as restantes são formas corruptas que não permitem a realização da justiça. Esse pensamento não perdura nos diálogos considerados tardios. caracterizado pela ambição do espírito belicoso. a aristocracia e a democracia. o que a justiça exigiria segundo as circunstâncias. Em O Político. apresenta a necessidade de uma legalidade. 3 .cada caso particular. evitando-se o excesso de riqueza e pobreza. mais velho. que acaba por ser aproveitada por algum indivíduo ambicioso e audacioso. capaz de instaurar uma tirania que desvelaria um caráter violento e desenfreado. uma na República. As formas corruptas 42 . No Político apresenta dois critérios de formas de governo: o número dos que participam do governo e a legalidade ou ilegalidade dos mesmos.Organização Política da Cidade Platão nos oferece duas classificações distintas das formas de governo. o enriquecimento de poucos e a extrema pobreza de muitos poderá gerar a democracia. Os seus excessos provocariam a reação dos mais decididos e com seu derrube encerra-se o ciclo constitucional. livros VIII e IX e outra no Político. Reconhece a importância da família e da propriedade privada. Todavia. desemboca na desordem. ou seja. Dessa forma. que aspira a igualdade absoluta. da República.são: a tirania. compreende-se com maior clareza o que o fundador da Academia assinala na Carta VII. a saber: a justiça como idéia e a justiça como virtude ou prática individual. Platão apresenta o conceito de justiça comprometido com a idéia de virtude do cidadão ou do filósofo. Joaquim Carlos. que narra a Alegoria da Caverna em conjunto com sua teoria da reminiscência. Platão enfatiza o agir justo na medida em que considera o outro como portador dos mesmos direitos para a superação da ótica egoísta. 1995. Nas Leis. 4 . 43 . “só conhece a justiça àquele que é justo”. As leis são justas porque são editadas por quem pratica a virtude da justiça e a conhece em sua estrutura para além do plano das aparências. isto é. Platão apresenta duas perspectivas de sua concepção de justiça na obra a República. O sentido de ordem política ideal é o de justiça que correlaciona intrinsecamente lei e justiça. só conhece a justiça àquele que a compreende na perspectiva divina. como idéia da razão. Esta concepção assimilada por Aristóteles influenciará seu pensamento político. pelo conhecimento da alma e não dos sentidos. numa imagem divina. Ao relacionar o célebre livro VII. Platão confere maior rigor sistemático às teorias de Heródoto e Eurípides. ou seja. a oligarquia e a democracia (demagogia). ou seja. Segundo Joaquim Carlos Salgado. 24-29. Nas primeiras obras. na qual a família e o indivíduo formavam um todo harmônico. 29 o pensamento platônico sobre a justiça é o ponto de partida para uma reflexão sobre a idéia de justiça como igualdade. A Idéia de Justiça em Kant.A idéia de Justiça A idéia socrática de que a Cidade (o poder político). permanece na obra A República e se torna o fundamento da idéia de justiça como virtude. isto é. Belo Horizonte: UFMG. pp. acrescenta um novo termo: uma forma mista de governo. O 29 SALGADO. Na verdade. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Nesse sentido encontramos a ligação entre as duas perspectivas do conceito de justiça em Platão: justiça como idéia (forma pura) e justiça como virtude. uma mistura de monarquia e democracia que se apresenta como a única capaz de assegurar a paz social. que significa a observância permanente da lei e. ao mesmo tempo. Ou dizendo de outro modo. exprime que o melhor modo de viver é o viver praticando a justiça. Platão elabora duas vertentes do conceito de justiça: a justiça como idéia norteadora do direito e da lei. Sendo assim. Belo Horizonte: UFMG. livro I. e sofrer a injustiça é melhor que praticá-la. a concepção de justiça se apresente como a conformidade das ações com a lei. Platão enfatiza através de seu personagem. na medida em que garante a cada um o que lhe é devido. SALGADO. correlacionando atos justos com alma sadia. a idéia de justiça e a concepção da justiça como hábito de cumprir o direito. e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei. 433a. 1995. 30 que afirmava a idéia de justiça como dar a cada um o que lhe é devido. No dizer de Salgado: “Dar a cada um o que lhe pertence. dividido em planos. A justiça é um compromisso do cidadão com a Cidade. A República. o que lhe pertence por natureza é o posto que corresponde às suas aptidões e a função que cada um. a essência da idéia de justiça platônica não se limita somente a esse entendimento. pode desempenhar no Estado”. 30 31 PLATÃO. Na República. segundo suas aptidões. Platão expressa a difusa idéia de justiça em um conceito preciso a partir do entendimento do poeta Simônides. explicita-se na estrutura do Estado Platônico.31 Platão concebe a justiça como uma preocupação política que repousa na idéia de igualdade. Sócrates. uma igualdade geométrica. Platão amplia essa idéia para além da simples relação entre particulares e a relaciona diretamente com a estrutura de sua cidade. 433ª 44 . Na República. de modo semelhante ao que ocorre com a alma humana. Joaquim Carlos. que fazer a justiça é melhor que recebê-la.outro nos desvela uma dimensão exterior e o comprometimento do homem com a sua polis. A Idéia de Justiça em Kant. por força dessas mesmas aptidões. Tanto na República quanto no Górgias. dedicação ao bom funcionamento da vida coletiva a partir das aptidões naturais de cada um. 332c. O que é devido a cada um. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. A justiça é uma virtude que fundamenta e fortifica a alma. 433e. A República. 27 e Platão. segundo as aptidões de cada um de seus participantes. o que lhe é adequado. na sua concepção. O seu conceito de justiça assume também o caráter de universalidade enquanto se vincula à idéia de harmonia do cosmos. p. Embora no Críton. viajou até uma terra estranha onde o solo era rasgado por dois grandes abismos. algumas eram sensatas outras tolas. Observou que as almas dos injustos passavam por uma longa experiência vivenciando dez vezes mais todo o mal que causaram.O projeto platônico: uma utopia? Sabemos que Aristóteles. no livro II. após expiarem todo o mal que praticaram e vivenciar as dores do arrependimento. Subitamente. para o Céu. natural da Panfília. Átropo e Cloto para receberem novas vidas como mortais. os injustos entravam pelo abismo da esquerda. que conduzia ao mundo subterrâneo. Er. para renascer em novas vidas. livro X encontra-se o mito de Er que consagra o sentido de justiça retributiva e transcendente. mas se configura como a recompensa para aquele que escolhe a vida moral e conforme ao direito. bravo soldado que morreu em combate. Cada alma poderia escolher a vida que desejava. Este é o sentido retributivo da justiça em Platão. de modo que perdessem todas as recordações da vida passada. As almas dos justos falavam em felicidade e alegria. Na República. Todas. volta à vida e narra o que viu no mundo alémtúmulo. na Ásia Menor. bebiam a água do rio do esquecimento. O mito narra a história de um guerreiro chamado Er que vivencia a experiência da justiça como recompensa no além-túmulo.Por fim Platão desenvolve um conceito de justiça retributiva e transcendente. Er não foi autorizado a entrar em qualquer dos buracos. As almas vindas dos subterrâneos. da Política. Muitas praticavam os mesmos erros. 5 . eram encaminhadas ao trono das Parcas: Láquesis. Entre os abismos estavam sentados os juízes que julgavam todas as almas e as marcavam com um sinal: os justos entravam pelo abismo da direito. mas foi escolhido para levar uma mensagem aos mortais. Por cima. recompensas de uma vida virtuosa. Disse que. Vejamos. depois de morto. jaz na pira funerária dez dias após sua morte. apresenta uma reflexão crítica que considera a República e As Leis como projetos de cidade perfeita e as relaciona com as supostas utopias de Hipodamo de 45 . após suas escolhas. havia dois buracos correspondentes no Céu. A justiça para Platão não é deste mundo. Santo Agostinho incorporou o platonismo (teoria das idéias) na concepção cristã do mundo. complexo por mecanismos até em certa medida desnecessários. a pretensão de Platão era descrever uma comunidade possível na perspectiva de novos valores comandados pela retificação dialética da educação.Mileto e de Fáleas da Calcedônia. e dentro dos limites da imaginação. mais tarde parcialmente ofuscada pelo predomínio do utilitarismo e do evolucionismo no séc. o platonismo alcançou os Padres da Igreja Grega. pode-se ler Platão dentro da dimensão crítica dos costumes. no séc. Considerar a República uma utopia dependerá do conceito mais ou menos amplo que se tenha das idéias contidas ao longo de suas linhas. ajuda-nos a vislumbrar uma possibilidade meio que perdida: a reconstrução de uma nova estrutura social a partir de uma reestruturação do homem para essa nova sociedade. XIX. A influência platônica no Renascimento propiciou a abertura de várias Academias a começar por Florença (1459). Houve clara influência sobre a obra Utopia de Tomas More (1478-1535) e sobre o conjunto do pensamento de Campanella (1568-1639). temos que ressaltar que a intenção de Platão não era edificar um mundo social irreal. tendo por 46 . utópico. Nos séculos XVII e XVIII houve grande influência na Inglaterra. Embora Platão esteja distante de nossa realidade. permanecendo ainda através da corrente franciscana da Escolástica. através de seu olhar idealista. notadamente na Escola de Cambridge. através de Cosme de Médices e dirigida por Marsílio Ficino (1433-99). A sua doutrina determinou a orientação do pensamento medieval até a recepção do aristotelismo por Alberto Magno e Tomás de Aquino. longe deste mundo nada simples. projeto este que ficou inacabado por ocasião do falecimento do monarca. O idealismo político de Platão exerceu grande influência na posteridade. mas construir uma crítica aos fundamentos de sua cultura Como essa mesma cultura se estruturava. Mesmo não nos parecendo próximo. Platão. Plotino tentou fundar uma cidade segundo o modelo da República com a ajuda do Imperador Galeno. XIII. Através dos discípulos de Plotino. dos valores e dos hábitos constituídos por uma visão utilitarista dos interesses imediatos. Entretanto. com Henry More (1614-1687). mas como quem vai para uma necessidade. É com receio disso. mas pela dos seus súbditos. Aqui tens. De onde resulta. sem ter pessoas melhores do que eles. que os bons ocupam as magistraturas. a monarquia. e os outros. Portanto. exigindo abertamente o salário do seu cargo.fundamento o ideal de justiça para além das aparências e do sentido mesquinho que por ora corrói o tecido da vida coletiva. Mas esse ponto havemos de o examinar de novo”.o que convém aos poderes constituídos. ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados . que sejam constrangidos e castigados. uma vez que não as estimam.” (p. Força é. de modo algum concordo com Trasímaco.“Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia. da mesma maneira. por conseguinte. (pp. Sócrates – “Por este motivo. nem mesmos iguais. se não quisermos governar nós mesmos.38-39) 32 32 Platão. me parece. não como quem vai tomar conta de qualquer benefício. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 1993. 47 . Efectivamente. sem aguardar a necessidade de tal passo. e então vão para o poder. a que houvesse competições para não governar. para quem possam relegá-lo. monárquicas. Tão-pouco querem governar por causa das honrarias. nem de ladrões. aquilo que eu quero dizer. nem das honrarias. quando governam. os homens de bem não querem governar nem por causa das riquezas. em que a justiça seja a conveniência do mais forte. De tal maneira que todo aquele que fosse sensato preferiria receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar ele os outros. se se pretende que eles consistam em governar. Ora estes é que detêm a força. como agora as há para alcançar o poder. leis democráticas. se houvesse um Estado de homens de bem. Uma vez promulgadas essas leis. 24). Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós. e tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência. meu excelente amigo. Trasímaco -. a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhe convém. e castigam os transgressores. arriscar-nos-íamos. tirando vantagens da sua posição. para quem pensar corretamente. nem para com ele gozar. pois. porquanto não querem ser apodados de mercenários. que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte. A República. de onde vem que se arrisca a ser considerado uma vergonha ir voluntariamente para o poder. ética. derivado da palavra peripatos que significa um claustro34 que rodeava o liceu.C. discorreu sobre História da Filosofia e psicologia. Alexandre financiou suas pesquisas sobre a flora e a fauna no Mediterrâneo.. em Pela capital da Macedônia. a pedido de Alexandre. Durante esse período estudou política e os assuntos de governo. política e pensamentos. Se governo com alguma glória. uma fusão cultural. Dessa enorme produção ‘Se a meu pai devo a existência a meu preceptor devo a arte de me saber conduzir. Por outro lado. que pôs fim à relação entre ambos. Aristóteles defendia a estrutura da pólis tradicional. a ele [Aristóteles] sou devedor”. pois Alexandre sonhava com a unificação dos gregos. observações científicas. casou-se duas vezes e dedicouse à família. Narra a tradição que foi o assassinato de Calístenes. ou seja. Desenvolveu estudos sobre as leis da argumentação e da lógica. Os Pensadores.Introdução Aristóteles foi o patriarca das Ciências Naturais.) “Os verdadeiros prazeres do homem são as ações conforme a virtude” (Aristóteles) 1 . Aos 17 anos ingressou na Academia de Platão (este já sexagenário) em Atenas. Ensinava passeando à sombra das árvores do liceu.A justiça na concepção de Aristóteles (384-322 a. Em 342 a. Seu pai Nicômaco foi médico da corte de Amintas II. pelo Rei Filipe da Macedônia. Este grande pensador nasceu em Estagira. Por volta de 335 a.. Após a morte de Platão em 347 a. o Grande. fundou o seu liceu no bosque sagrado de Apolo – nordeste de Atenas. Por essa ocasião já possuía grande saber e era conhecido por justamente apresentar o que hoje denominamos de conhecimento enciclopédico. surgiram divergências políticas que se tornaram cada vez maiores entre o discípulo e o mestre. sobrinho de Aristóteles. colônia grega da Cálcida.C. Aristóteles escreveu em torno de 400 trabalhos sobre os seguintes temas: educação. mar da Trácia.C. daí seus discípulos serem chamados de peripatéticos. 34 Casa religiosa com clausura. recinto fechado. foi nomeado tutor de Alexandre 33. ou seja. 33 48 . In: Col. Embora esse pensador tenha sido tutor de Alexandre.Parte III .C. etc. os neoplatônicos: Porfírio (séc.. aos herdeiros de Neleu. na Ilha de Eubeia. pela dificuldade em explicá-lo e apresentou uma concepção diferente da realidade.C. IV d.C.C. Simplício (séc. Essa abordagem aparece também na Política. ao aluno deste.sobreviveram apenas 50 ou 49 obras. Os primeiros comentadores das obras de Aristóteles foram: Alexandre de Afrodisías (séc. que temendo o ataque dos príncipes tiranos de Pérgamo. IV d. seus escritos e sua biblioteca passaram às mãos do discípulo Teofrastos e. 35 49 . em nosso espírito que abstrai das coisas em estado de individualidade. por conseguinte. em Cálcis. Aristóteles demonstrou um realismo moderado e um espírito analítico apegado aos fatos. de procedência social distinta.C. Antes do ano 100 a. IV d. enterraram os escritos em um subterrâneo. forma – mundo inteligível. as coisas individuais e perecíveis deixam de ser meras “sombras ilusórias”. O mundo platônico é uma ficção. Efetivamente eram homens de temperamentos diferentes. III d. Podemos considerar sua Metafísica como uma obra que desvela uma história da filosofia. que os publicou com inúmeros erros. enfeita igrejas.) e Filopon (séc. Aquele que constrói navios mercantes. Aristóteles compreendia que as essências só existiam em uma inteligência.). posteriormente. Platão havia separado as essências36 dos objetos.C. Neleu e. Aristóteles iniciou o que entendemos por estudo dos problemas filosóficos através do exame crítico das opiniões de seus antecessores. em 86 a. quando analisa as teorias anteriores acerca da convivência humana.). 36 Essência. salões de festas. II d. posteriormente. no entendimento humano sobre as coisas. Quando morreram perderam-se os manuscritos de Aristóteles. sem mencionar a tradição familiar e a primeira formação. Por ocasião da tomada de Atenas pelos romanos. os escritos passaram às mãos do tirano de Sila e. ornamenta livros. Aristóteles rejeitou o dualismo platônico. Temístio (séc.C. às mãos de Andrônico de Rodes que os catalogou e os editou. os herdeiros de Neleu descobriram e venderam ao armador35 de livros Apelicon de Teos. ou seja.). Houve uma grande independência doutrinal em relação a Platão. Quando faleceu.C.). que denota com maior precisão a sua filosofia: a ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas. Dentro dessa concepção da inteligibilidade da realidade sensível. mas define a justiça em função do Direito. Esse conhecimento estaria subdividido em: conhecimento prático (praxis) e nesse campo encontramos os estudos sobre ética e política. Para esse filósofo. O conhecimento tem seu início com a experiência. a filosofia primeira ou metafísica37 estuda o ser primeiro ou causa primeira. 37 50 . Ao contrário de Platão. a realidade sensível é também inteligível e. Substituiu o idealismo de Platão por um empirismo que buscava seu ideal numa concepção de felicidade alcançável pela ação. nesse sentido. Esta não foi usada por ele e sim a expressão Filosofia Primeira. o que desvela a importância do método. formulou sua teoria teleológica segundo a qual todas as coisas existem para um fim e todas as coisas alcançam a perfeição na medida em que cumprem esse fim. Aristóteles não define o direito a partir da idéia de justiça. Esta idéia resume-se no princípio de que o todo é anterior às partes. Assim. que por sua vez. por meio da abstração. conhecimento teórico que por sua vez se divide em: física. Metafísica: palavra de origem grega. que estuda o mundo natural e estudos matemáticos. usada para nomear o conjunto de textos de Aristóteles. em seguida à experiência (capacidade de estabelecer relações entre os dados sensoriais). denominou Organon. à arte/técnica (regras – capacidade de ensinar). torna-se objeto da justiça e é somente possível no interior de uma pólis.Aristóteles foi o fundador da física experimental. os tratados de lógica em seu conjunto. Aristóteles apresentou uma divisão do conhecimento. que trata da quantidade e do número. conhecimento produtivo (poiesis). Aristóteles apresenta a Lógica ou analytika como um saber instrumental. estudo da estética. alcançando por fim o nível da teoria/ciência que chamou de episteme (conhecimento de conceitos e princípios). Entendeu o conhecimento como processo cumulativo partindo da sensação (prazer/sentidos) em direção à memória (retenção dos dados). reflexão e experiência e que se configurava no conceito de justiça. a ciência que estuda os fenômenos do mundo físico. o entendimento humano é capaz de descobrir a idéia oculta no objeto sensível. ou seja. 39 Pólis ou cidade-estado: nova forma de convivência centrada na ágora (praça pública) para o debate sobre interesses comuns. O seu objetivo nesta obra era descobrir a maneira de viver que conduz à felicidade humana. a saber: livros I. 38 51 . são as virtudes. a felicidade. O estilo de Aristóteles se desvela em suas próprias palavras a esse respeito. descoberto em 1891. cap. pois cada objeto particular é compreensível em função do todo que o pressupõe. II e III. consiste em disposições resultantes do esforço do homem para submeter os seus atos à razão e aos fins supremos da sua natureza. no livro II. O meio para consegui-la são os hábitos ou disposições do homem graças aos quais saberá realizar as suas obras.A política. descobrir a forma de governo e as instituições sociais capazes de assegurar aquela maneira de viver.no sentido lógico e metafísico. livros IV. O objeto de pesquisa da Política38 era o estudo das constituições das pólis39. aquele que fazendo uso público de sua razão. A virtude consiste no meio entre a falta e o excesso. Esse finalismo refletirá em sua concepção ética e política. a política é a ciência da felicidade humana. O bem é a plenitude e todo ser tende para esta plenitude. onde trata da teoria do Estado em geral e da classificação das várias espécies de constituições. a ética e a justiça. O homem ao longo da vida encontra uma hierarquia de bens até alcançar o bem supremo que coincide com o seu fim último. Surge a figura do cidadão. resultado do meio em que vive e destinado a desenvolver suas potencialidades na vida em sociedade. A obra está dividida em três partes. ou seja. V. V e VI. onde examina a política ideal. Para Aristóteles. ou seja. estuda a natureza das constituições existentes e dos princípios para seu bom funcionamento. delibera conjuntamente aos seus pares os destinos da cidade. que tratam da política prática. uma ciência prática que busca o conhecimento como meio para a ação e que se divide em ética e política. 2 . A felicidade em seu modo de ver significa certa maneira de viver específica do homem. animal social por natureza. livros VII e VIII. §4 -5: “o método de quem estuda filosoficamente Acrescenta-se a esta obra a República dos Atenienses ou Constituição de Atenas. 52 . filho de Aristóteles. baseadas na razão. Ética a Eudemo. Aristóteles escreveu a Ética a Nicômaco na fase em que vivia em Atenas. o mais importante tratado de moral dentre os quatro que escreveu sobre moral (Ética a Nicômaco. modo de vida habitual. a inteligência e a verdade. fundamentadas na vontade e as virtudes intelectuais. uma refundição da anterior. 40 funciona como elo entre a esfera jurídica e a esfera política. suntuosidade. provavelmente editada por Nicômaco. a magnificência 42. A sua ética compreende duas categorias de virtudes. uso. Significa caráter. Grande Moral e Tratado das virtudes e dos vícios). A ordem jurídica e a As virtudes intelectuais ou dianoéticas43 são: a sabedoria. por ter sido editada ou redigida pelo seu discípulo deste nome. p. a doçura. De um modo geral. Por isso. ou seja. noetikos – inteligente. em Aristóteles (Ética a Nicômaco. 43 Diánoia: entendimento. consiste em não negligenciar ou omitir qualquer detalhe”. o valor da opinião dos homens mais velhos e o indispensável valor da experiência da vida e dos costumes da cidade para a elaboração de qualquer Filosofia. Aristóteles aprofunda os ensinamentos de seu mestre Platão (República) na obra Ética a Nicômaco. podemos dizer que a sua teoria apresenta o procedimento do homem prudente como válido. característica. Como exemplo de virtudes morais temos: a coragem. Em Platão é o resultado do hábito (Leis. Uma ação pode ser A Ética a Nicômaco ou Nicomaquéia foi assim chamada por ter sido.C. Sabe-se que esta obra refere-se ao segundo curso que ministrou e que fora redigido entre 334 e 333 a. a temperança. a generosidade. Truyol y Serra. 42 Grandiosidade. Diferente de Platão. 792e). Aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos que pertencem a uma comunidade e que marca suas realizações ou manifestações culturais. organizando-a em 10 capítulos subdivididos em pequenas partes.C. 1139a) é mais moral do que intelectual. 40 A sua teoria ética foi elaborada sobre a base das estruturas morais vigentes na comunidade grega do séc.132. e não apenas seu aspecto prático. Aristóteles humanizou o fim último.qualquer matéria. Em Aristóteles é usada como um termo geral para atividade intelectual. um resumo posterior. a amizade e a justiça. o ético em Aristóteles é entendido a partir do ethos41 (do costume) da maneira concreta de viver vigente na sociedade. Noético (gr) relativo ao pensamento. V a. 41 Ethos do grego costume. a saber: as virtudes morais. Ética a Eudemo. esplendor. É exatamente o ethos aristotélico que ordem política pressupõem o ethos. o fim último foi afirmado no plano terrestre. A Grande Ética ou Ética Maior. Estes devem se submeter a outrem. Eudemonia e télos estão intrinsecamente ligados formando a base da ética do pensamento de Aristóteles. O objetivo da ação moral é a justiça. mas que exclui crianças. Aristóteles diz que o escravo é um instrumento indispensável na produção dos bens. a virtude e o prazer (recompensa natural da vida virtuosa). Em sentido estrito. Na verdade. a saber: a sabedoria. a justiça44 configura o exercício de todas as virtudes. O ponto central torna-se o conceito de atividade. encontra-se como uma virtude ética que implica o princípio da igualdade. uma moral que atinge a elite. livro V da Ética a Nicômaco. Aristóteles também 44 Cf. a verdade é o objetivo da ação intelectual.considerada como justa quando realiza o equilíbrio das virtudes morais e quando alcança as virtudes intelectuais. porque enfatiza a busca pelo bem viver e pela felicidade. Importa observar que a teoria moral de Aristóteles é aristocrática. assim como. três bens constituem a felicidade para Aristóteles. Este pensador considera ainda como importantes: a amizade. O homem deve desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim (télos). felizes e materialmente privilegiados. 53 . Em sentido lato. no sentido estrito de pleno desenvolvimento das disposições naturais. observando-se a instância da alteridade. Nesse sentido. a posse de bens (inclui-se aqui o escravo). O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça apresentado por Platão na obra A República. uma ética imanente da felicidade terrestre. atividade no sentido de que o homem deve realizar ao máximo suas disposições ou aptidões. sua perfeição. Sua ética é denominada de ética das virtudes ou ética eudemônica. a saúde. escravos e trabalhadores manuais. Platão e Aristóteles concebiam a escravidão como instituição natural que se justificava pela suposta incapacidade de certos homens para se autogovernar. O homem deve buscar esse aperfeiçoamento para com isso alcançar a felicidade. a sorte e os dons. Sob o ponto de vista econômico. para homens sábios. o summum bonum. Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade social de sua época. Este pensador enfatiza que o cultivo da inteligência é o bem supremo. são bens interiores à alma. compreende a noção de justiça como uma virtude45 que precisa ser praticada constantemente46 e não pode ser tomada como aquisição contínua.47 A justiça é um exercício político. No livro II-6, da Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta o sentido do conceito de virtude como hábito, ou seja, algo construído, algo que temos em potencial. A natureza oferece as condições de possibilidades para que o homem possa desenvolver suas aptidões conforme sua essência racional. A justiça enquanto um valor ético se desvela em nossos atos. “Toda virtude e toda técnica nascem e se desenvolvem pelo exercício”.48 Observa-se que a prática da virtude não se confunde com um mero saber técnico, não basta a conformidade, exige-se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado justo deve agir por força de sua vontade racional. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles enumera três condições para que um ato seja virtuoso: 1. O homem deve ter consciência da justiça de seu ato; 2. A vontade deve agir motivada pela própria ação; 3. Deve-se agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes são disposições ou hábitos adquiridos ao longo da vida e se fundamentam na idéia de que o homem deve deficiência. Para Aristóteles, a justiça é uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro e de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça, poderá ocorrer por falta ou por excesso. Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e a particular. A justiça universal, total ou integral significa a justiça em sentido amplo que pode ser definida como conformidade ao nomos (norma jurídica, costume, convenção social, tradição). Esta norma constituinte do nomos é dirigida a todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo que é o justo legal. “Aquele que contraria as leis contraria a 45 46 sempre realizar o melhor de si. A virtude será uma espécie de meio termo, de termo médio entre os extremos: o excesso e a Disposições constantes do espírito, as quais por esforço de vontade inclinam à prática do bem. Cf. livro II-4, 1105b, Ética a Nicômaco. 47 Ressalta-se que a conceituação da justiça como uma virtude não implica o caráter de uma idéia ontologicamente transcendente como acontece em Platão. 48 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p.33. 54 todos que são por elas protegidos e beneficiados; aquele que as acata, serve a todos que por elas são protegidos ou beneficiados”.49 O membro da pólis se relaciona com todos os demais, ainda que virtualmente, e compartilha com todos os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça universal ressalta a importância da legalidade como um dos aspectos que fundamenta a coesão social. A comunidade existe virtualmente na pessoa de cada membro. O homem virtuoso é aquele que ninguém). A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de realizar a igualdade. Este tipo de justiça refere-se ao outro no sentido de uma relação direta entre partes, típica da experiência citadina. Percebemos que este tipo de justiça vincula-se com a justiça universal, pois o transgressor da justiça particular nomos. O justo particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo particular distributivo que desvela a justiça distributiva e o justo particular corretivo que apresenta a justiça corretiva. A idéia de justiça distributiva surge no sentido de igualdade na devida proporção. Essa modalidade de justiça regula as ações da sociedade política com seus membros e tem por objeto a justa distribuição dos bens públicos: honras, riquezas, encargos sociais e obrigações. Essa distribuição também se fundamenta na igualdade que não se confunde com uma igualdade matemática e rígida, mas geométrica ou proporcional que observa o dever de dar a cada um o que lhe é devido; observa os dotes naturais do cidadão, sua dignidade, o nível de suas funções, sua formação e posição na hierarquia organizacional da pólis.50 O princípio de igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma desigualdade de tratamento, pois sendo diferentes segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos também devem ser diferentes. A outra modalidade de justiça particular é a justiça corretiva ou sinalagmática, que se divide em comutativa e judicial. Trata-se de um tipo 49 50 desvela em seu modo de agir a observância do princípio neminem laedere (Não prejudique a se compromete também diante do BITTAR, Eduardo. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001, p.91. PEGORARO, Olinto. Ética é justiça. Petrópolis, Vozes, 1995, pp.32- 33 55 de justiça que regula as relações entre cidadãos e utiliza o critério do justo meio aritmético ou igualdade matemática (se devo x, pagarei x). Observa-se que este tipo não focaliza em primeiro plano as pessoas, mas sim as coisas. Medem-se os benefícios ou prejuízos que as pessoas podem experimentar, ou seja, as coisas e os atos no seu valor efetivo. Nos casos de ações que geram constrangimento para uma das partes, caberá ao juiz restabelecer a igualdade rompida através de uma sentença. Quando há a vontade dos interessados como elemento principal, chama-se justo comutativo (sinalagma)51 e, quando por decisão do juiz a vontade de um deles é contrariada, como o caso dos crimes, chama-se justo judicial ou justo reparativo. Neste último caso o sujeito de uma injustiça é sancionado a reparar o dano provocado indevidamente a outrem.52 Podemos perceber que o princípio de igualdade que figura em seu pensamento recorda as especulações pitagóricas acerca da justiça. Já percebemos que Aristóteles atribui à palavra justiça diversos sentidos que demonstram a possibilidade de classificá-la de diferentes modos. Menciona a idéia de justiça política, quando se refere à comunidade, ou seja, a justiça que organiza a vida comunitária e que, em particular, deve observar o processo deliberativo social (o cidadão). Aristóteles fala em justo doméstico quando observa a esfera da família, ou seja, a justiça para com a mulher, o filho e os escravos – regras 53 necessárias à organização do lar. O justo político abrange duas outras formas de justiça: o justo natural e o justo legal. O justo natural significa o que será sempre o mesmo em toda parte, independe da vontade humana, ou melhor, para existir não precisa de qualquer decisão ou ato de positividade. O justo legal, que em princípio poderia ser cumprido de maneiras diferentes, passa a ser obrigatório por ser assumido pelo nomos vigente em uma pólis.54 Este tipo de justo decorre do ato legislativo e configura-se no Bilateral. Aqui percebemos que a idéia que fundamenta a responsabilidade civil já estava presente na experiência da pólis grega. 53 Os diversos modos de falar de justiça podem ser observados em: Grande Moral, 1194 b,1193b, Retórica,1373; Política, 1279a, 1301b. 54 Decretos, sentenças, as decisões do poder administrativo, caracterizam-se por circunstancialidade ou especialidade. 51 52 56 coloca-se como legislador. O justo natural é constituído por noções e princípios comuns que encontram fundamento na própria natureza racional do homem. Nesse sentido. em atenção à justiça natural.conjunto de disposições vigentes na pólis. Em seu modo de ver a Natureza experimenta o movimento. é o que em cada ser está latente como potência e se desenvolve em conformidade com o fim. um animal político é chamado a viver na pólis por força de sua própria essência. não eram concebidos por Aristóteles. Há uma lei natural ou direito natural que desvela a natureza da comunidade política. Tanto o justo natural quanto o justo legal constituem a ordem normativa da cidade. A natureza de uma coisa revela-se como Aristóteles concebeu a relação homem e pólis. pode ser positivado em norma que prevê uma punição para atos como o homicídio. lei e igualdade. a injúria etc. e opera 57 no termo deste desenvolvimento. a Natureza não é um princípio estático. Trata-se de um movimento perene que permeia todos os seres. um preceito da justiça natural. Esta relação se esclarece quando percebemos que caminhamos do geral para o particular. Para Aristóteles. ou seja. um princípio geral pode acarretar uma lei específica. Temos que observar que o justo legal encontra sua origem no justo natural. ou seja. A cidade-estado é uma realidade natural e nesse âmbito há uma relação entre razão. o homem. A justiça natural sofre as transformações típicas da racionalidade. O princípio neminem laedere que significa que não devemos prejudicar as pessoas. A eventual tensão entre a generalidade abstrata da lei e a singularidade concreta dos casos reais era mediada pela eqüidade (epieikéia). O ponto de partida é o princípio da naturalidade da sociedade política. o julgador. A teoria do ato e potência nos ajuda a compreender . Podemos compreender a mutabilidade da justiça natural a partir da concepção aristotélica de physis. atualização do ser (a doutrina do ato e potência). A eqüidade é a forma corretiva da justiça legal quando esta engendra certa injustiça pela própria generalidade de seus preceitos normativos. mas dinâmico. exceto em um sistema corrompido. Os conflitos entre preceitos jurídicos legais e preceitos jurídicos naturais não invalidavam a ordem jurídica da pólis grega. A lei escrita ou não escrita. A conformidade com a lei apresenta a relação que o sentido de justiça particular mantém com a idéia de eqüidade. A lei comum seria uma lei natural ou original. 1995.todos são iguais. dirá Aristóteles na Política. portanto. surge da experiência citadina e. mas que fundamenta seus juízos Se o objetivo da atividade humana é a vida na pólis. é intrinsecamente superior a qualquer decisão individual por mais sábia que seja. Aristóteles define o homem équo como aquele que não é rigoroso nos princípios da moral. em seguida na aldeia até alcançar a estrutura equivalente a uma pólis grega. porque a lei é a razão sem apetites”. A razão é comum a todos os homens . Nesse sentido. A cidade é por sua natureza uma unidade na diversidade. “a ordem é a lei e o governo da lei é preferível ao de qualquer cidadão. independente da opinião dos homens. pois teria validade geral. 56 Há no homem um impulso social que se desvela primeiramente na família. quando esta se configura como a pior solução. 55 58 . Joaquim Carlos. 55 na aplicação da justiça. embora não imutável porque até a própria natureza é mutável. A Idéia de Justiça em Kant. o nomos. Política. pp. No Direito da pólis há elementos naturais e permanentes e também convencionais e mutáveis. Todavia. 56 Cf. um homem équo. Por ser o nomos a razão desprovida de paixão deve ser a suprema autoridade da sociedade política. ou seja. Belo Horizonte: UFMG. Para Aristóteles. O grego reverenciava o nomos (a lei ou costume) porque era fundamental para a existência da própria pólis como comunidade éticapolítica. o nomos é razão porque realiza a igualdade jurídica formal. O termo eqüitativo desvela o sentido de que o justo ultrapassa a simples dimensão da lei escrita. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. o julgador assumindo a postura do legislador torna-se um homem preocupado com a correção ética da justiça. vai além da razão de ser da lei escrita e se liga diretamente ao sentido de lei natural. Capítulo 1. esta deve ser anterior ao indivíduo. historicamente a pólis é a ultima fase de um processo ascendente de sociabilidade. 40-41. na medida em que pode ser compreendido como um critério de ajuizamento da igualdade ditada pela SALGADO.a adaptação da lei ao caso concreto. 37. p. o sentido de igualdade que aparece em Aristóteles. aristotélico outro. O ato de justiça exige a mediação da vontade. busca uma felicidade no âmbito da comunidade. Os pensadores. O équo 57 é aquele que busca a igualdade no momento concreto da relação da justiça. A eqüidade surge para corrigir os lapsos da lei convencional. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. a igualdade. Ética a Nicômaco. 1995. A Idéia de Justiça em Kant. não corresponder à justiça. buscando uma igualdade entre as partes. 59 ARISTÓTELES. O homem injusto é aquele que age com injustiça.1130a. ou a conformidade com a lei. pp. Belo Horizonte: UFMG. São Paulo: Abril Cultural. Col. a A dimensão do ser racional 59 de justiça são: seja. embora não queira receber o ato injusto de outrem. pois a justiça é uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro de modo consciente. A noção de alteridade é fundamental ao seu conceito de justiça. 1134b. embora seja um conceito já pensado pelos pitagóricos. 1979. justo. ou 58 Os elementos que compõem o conceito o outro. O objetivo é realizar a felicidade na pólis num plano mais alto. 57 58 59 . A justiça no entendimento de Aristóteles se afigura em como fazer um bem para o outro. Joaquim Carlos. ou o bem comum de modo geral. O bem comum é o fim ou o bem principal da pólis. na medida em que procura o benefício da comunidade. sobretudo quando a lei.razão conforme à lei natural. na medida em que essa prática se destina à realização do seu elemento fundamental: a igualdade. As circunstâncias particulares exigem a aplicação da eqüidade para dirimir um caso concreto. Enfim. apresenta o caráter de definição da idéia de justiça. alteridade observada enquanto é fundamental para realização da justiça. Observo que a razão significa para Aristóteles uma forma superior da natureza humana. a consciência do ato (vontade). aplicada mecanicamente. a conformidade com a lei e o bem comum. A justiça seria o bem supremo no âmbito da política. O pressuposto fundamental do pensamento de Aristóteles acerca da justiça é a idéia de que o homem é um ser destinado naturalmente à vida em comunidade – a sociabilidade como um imperativo da natureza humana. Reto. SALGADO. só se realiza voluntariamente ou conscientemente. p. a ação que depende do agente e que este realiza conscientemente.Segundo Aristóteles. Vinculou-se 60 61 Idem ibidem. E apresentou um ponto de vista técnico-político preocupado com a conservação do poder e com a ética. p. Com Tomás de Aquino houve uma adaptação prévia do aristotelismo ao Cristianismo. ou seja. ou da norma costumeira ou ainda do padrão de comportamento partilhado na comunidade. uma maioria pobre. democracia radical. Cada pólis necessita de um governo que corresponda ao seu caráter e necessidades próprias. A teoria das formas de governo em Aristóteles segue a clássica organização apresentada por Platão no Político. Salgado observa que na pólis o justo não está separado do direito positivo em geral. uma virtude superior. XIII. 1135ª 60 . 61 A moralidade do ato fundamenta-se no critério da premeditação ou escolha deliberada. aristocracia. O aristotelismo alcançou o ocidente através dos árabes e judeus. isto é. ato voluntário significa aquele “cuja origem se acha no agente que conhece todas as circunstâncias da ação”. democracia moderada ou política. executiva e judicial. O fato é que Aristóteles usa um critério econômico para distinguir tais formas. Na Ética a Nicômaco. como disse anteriormente. sobretudo pela Escola de Toledo. fundamentou doutrinas opostas à Escolástica e muitas vezes incompatíveis com o Cristianismo. na monarquia e aristocracia. sem ignorar a pessoa que a ação afeta os meios empregados e o fim da ação”. 60 Somente o homem é capaz de possuir uma faculdade da vontade apta a discernir o menciona: “Chamo voluntário. na riqueza de uma minoria. três formas puras: monarquia. 1110ª Idem ibidem. tirania. oligarquia e democracia radical que equivale à demagogia. na fraude e violência. na Escolástica. e três impuras: tirania. Aristóteles também distinguiu as atividades do governo em deliberativas ou legislativas. Observa que o princípio de autoridade em cada um dos regimes repousa sobre a situação econômica: a oligarquia. em traduções latinas indiretas. até ser estudado diretamente e predominar a partir do séc. que deve fazer ou não. No Renascimento. Aristóteles também compreende que o melhor governo seria um governo misto. de novo ao Cristianismo através da neo-escolástica católica dos séculos XVI e XVII e com a escolástica protestante. No que se refere à sua filosofia prática até hoje o mundo aristotélicos. tem sido visto em boa parte com olhos 61 . A Filosofia no período medieval: Agostinho e Tomás de Aquino “(. A novidade da perspectiva religiosa cristã propiciou o que alguns compreendem como filosofia cristã. Isso fica mais claro quando comparamos o sábio estóico com o santo cristão: o sábio estóico se orgulha de se assemelhar à divindade. Deus não é só o Senhor dos Hebreus. ou seja.Parte IV . A idéia de filiação divina fortalece a solidariedade essencial para a comunidade que passa a se afigurar como uma pessoa moral que participa de uma história universal e..) não cuideis da carne com demasiados desejos”..O Mundo Medieval O cristianismo nasceu em um mundo helenizado impregnado de elementos religiosos orientais. Não podemos perder de vista como os povos primitivos e depois os gregos concebiam a concepção acerca da criação que engendra uma divindade. um pensamento que se desenvolve nos limites das verdades estabelecidas pela fé. próprio do judaísmo. o santo cristão. Paulo de Tarso 1 . Na idade média há uma nova relação entre Deus e criatura. A concepção grega do homem integrado na Natureza ou na pólis cede lugar à interioridade do sujeito. é transposto para o cristão e contribui para fortalecer o sentido da humildade como virtude. A novidade que a perspectiva cristã oferece é radical em sua concepção de Deus. conjugando em um só o poder e o amor. mas o Pai. 62 . O mundo torna-se o lugar da experiência que permitirá a superação espiritual para a salvação. O sentimento da grandeza de Deus. ressalta um só destino para o gênero humano. Surge uma nova absoluta dependência de tudo e todos para com Deus. A criação do homem “a imagem e semelhança de Deus” lhe confere certo esplendor: possui uma dignidade intrínseca. que não é um ser autônomo e sim criatura nada pode sem a graça divina. O homem vive o drama da queda e da redenção como fatos históricos. nesse sentido. na busca de fundamentos racionais. Este conflito marcou o fim do período antigo e o esforço da Idade Média em articular a sabedoria divina com a sabedoria humana. O cristianismo promoveu uma modificação nos valores éticos: operaram a transcendência do fim último. O período que se dá entre essas duas épocas se define por uma silenciosa afirmação social e política da cristandade medieval e sua cultura. A transfiguração da felicidade em bem-aventurança. Nesse sentido. Na sua fase inicial o pensamento cristão desenvolve-se paralelamente ao pensamento pagão da última fase. A sabedoria grega apresentava um interesse direcionado para o mundo. Dentro deste período antigo e depois medieval do cristianismo a tradição estabelece os seguintes limites: o pensamento patrístico e o escolástico. O medievalista Alain de Libera ensina em sua obra A 62 63 Deposição do imperador Rômulo Augústulo. destacaram as virtudes teologais (fé. onde Deus se torna o valor supremo. nas inspirações superiores. o que significa dizer que não é através da razão. Na sabedoria hebraica ou da salvação. mas da fé que o homem alcança a felicidade. Durante seis séculos firmou seus passos com êxito crescente até ser reconhecido oficialmente no Império Romano. na adivinhação etc. do XII ao XIV. E. Surge o Deus pessoal criador do mundo. A idade Média foi considerada a época intermediária entre a Antigüidade e os tempos modernos. Esta felicidade está expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de Deus. independente e livre. o seu paganismo lançava raízes no pensamento mágico. Deus é quem concebe a sabedoria ao homem. é o período compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente (476)62 e a tomada de Constantinopla63. o cristianismo pelas suas origens e suas primeiras lutas.Segundo Truyol y Serra. na boa ou má sorte. A vitória de Maomé II contra Constantino XII (1453). A razão grega partia da realidade tangível e visível. A razão grega acreditava no destino. 63 . por fim. Compreendemos que o mundo antigo nos oferecia o espetáculo da competição entre duas sabedorias: a grega e a hebraica. A Patrística tem seu lugar nos séculos II –VI e a Escolástica. pertence à Antigüidade. sendo ele perfeito. esperança e caridade) que passam a ofuscar as virtudes morais. do comportamento humano. do vir-a-ser. avaliam. Sutilezas vãs e bárbaras tomaram o lugar da antiga filosofia. pois fixa os objetos. Em seu Tratado da Opinião (1735). E que. (. que eram praticamente os únicos objetos dos filósofos de então”. a grega. uma filosofia tirada de Avicena e de outros comentadores africanos. o impulso e apogeu de uma cultura. a árabe-muçulmana e uma judaica. Na verdade. conquista de um só grupo os cristãos ocidentais. O período da Idade Média é. Para outros pensadores árabe-muçulmanos. Justiniano é um romano. do ponto de vista do cristianismo ocidental.. Ora. o 64 . o marquês Gilbert-Charles Le Grende de Saint-Aubin retrata a filosofia medieval de modo nada lisonjeiro: “Após a tomada de Constantinopla..) O espaço histórico em que se situa Justiniano não é medieval nem tardo-antigo: o tempo em que sua ação se inscreve é o da romanidade. portanto.. os franceses trouxeram os livros de Aristóteles comentados pelos árabes. “O século de Justiniano é. da suprema afirmação da romanidade bizantina. É um imperador romano que se esforça por acabar com a filosofia como instituição e realidade social. Este autor entendeu que o ocidente cristão foi filosoficamente estéril e só despertou do seu longo sono a partir Mencionou que das influências do oriente muçulmano para o ocidente muçulmano e depois para o ocidente cristão. a história da filosofia medieval é constituída por várias fases: a latina. e apoderaram-se da lógica e da metafísica. então. podam. imprimem suas diretrizes e direções. como a arquitetura e as demais artes haviam sido corrompidas pelo gosto gótico.. é nessa época que o poder político cristão decide erradicar a filosofia pagã. um período crucial: é o século da reconquista. da reconstrução da unidade do Império de Constantino. os problemas. Introduziu-se. interesses. Uma idéia aceita na visão de Alain de Libera é a de que a Idade Média viu a teologia cristã tomar definitivamente o lugar da filosofia grega. em geral. para nós.Filosofia Medieval (1998) que a história da filosofia medieval é escrita. impõem esquecimentos. os campos de investigação.) Portanto. tradições. e o mau gosto arabesco estragou as escolas. repartem segundo suas perspectivas. para alguns. (. a Idade Média configurou o nascimento. esse gesto não é isento de conseqüências. É preciso lembrar que este pensador conheceu a filosofia de Platão através dos filósofos neoplatônicos de Alexandria e de traduções latinas. na cidade de Tagaste. considerado “o pai da filosofia cristã”. não só como revelação divina. Compreendeu essa decadência como a mão de Deus castigando os homens da cidade terrena e anunciando o triunfo do cristianismo. momento da descoberta do pensamento de Aristóteles. a leitura de um determinado diálogo de Cícero. Agostinho vivenciou os últimos anos do Império Romano. p. Com o edito de Milão. 65 . aos 72 anos de idade. Tentou-se munir a fé com argumentos racionais.Aurélio de Agostinho A influência da filosofia cristã de Agostinho perdurou até o século XIII. Agostinho pregou uma aproximação entre o pensamento platônico e o pensamento cristão. Foi nesse contexto que surgiu a Filosofia Patrística com a missão de apresentar uma única versão do Evangelho. a Igreja de Roma foi erigida em centro da cristandade o que engendrou inúmeras disputas sobre divergências na interpretação da mensagem de Jesus. inicia-se um movimento de deslocamento ou de translação da ciência: a translatio studiorum. Na prática o cristianismo já possuía estrutura organizada denominada Igreja (ekklesia). nem a filosofia está morta. O confronto de opiniões fortaleceu a Igreja católica (em grego Igreja universal). Este pensador tornou-se mestre em retórica e. destacou-se Santo Agostinho. nessa época.14-5. 65 O cristianismo triunfa a partir de Constantino (c. 280 – 337) permitindo a liberdade de culto aos cristãos e reconhecendo a competência da autoridade episcopal nos processos civis. Ao contrário. Dentre os inúmeros padres da Igreja. segundo relata em suas Confissões. mas também como resultado de juízos racionais. que vai durar até o final da Idade Média”. província romana e faleceu como bispo de Hipona em 430. 64 65 Simplício e Damáscio.conflito entre o helenismo e o cristianismo não termina com o suposto exílio dos filósofos64 na Pérsia. 2 . Aurélio de Agostinho nasceu no Norte da África. Hortensius. Mais tarde interessou-se pelo sermão de Santo Ambrósio. independente da experiência que permite o processo do conhecer.427) nosso autor interpreta a história da humanidade desde o gênesis até o juízo final e a redenção.que exprime um verdadeiro elogio à filosofia. o despertou para os estudos filosóficos. Dessa concepção surgiu uma forte desvalorização mundo. Agostinho aderiu ao maniqueísmo. Contra os Acadêmicos. todavia desenvolveu uma teoria da interioridade e iluminação. Na escola de Alexandria. inatista.413. sua teoria do conhecimento com ênfase na subjetividade e uma teoria da história expressa na obra Cidade de Deus. Essa interioridade permite acessar a Verdade. III. Quando assumiu a diocese de Hipona redigiu Sobre a doutrina cristã. A sua filosofia foi elaborada a partir de uma aproximação entre neoplatonismo de Plotino e Porfírio com os ensinamentos de São Paulo e o evangelho de São João. Na obra Cidade de Deus (c. Com este pensamento Agostinho explica o ponto de partida do conhecimento humano. Para Agostinho a filosofia antiga consistia do em uma preparação da alma uma para a do contemplação da verdade revelada. Contra os Maniqueus e as Confissões. Essa noção de interioridade se configura como um prenúncio do conceito de subjetividade que surge no período moderno (In interiore homine habitat veritas). 66 . no séc. o platonismo era interpretado como uma antecipação do cristianismo. Escreveu os diálogos De magistro. Agostinho apresentou teoria conhecimento na mesma direção da filosofia platônica. há um conhecimento prévio. bispo de Milão. ou seja. Agostinho rejeitou a doutrina platônica da anamnese. A mente humana que é mutável e falível possui a centelha divina que é o seu intelecto – imagem e semelhança a Deus. Sua contribuição para o desenvolvimento de uma filosofia cristã se deve à sua formulação relacionando teologia e filosofia. religião de origem Persa. estudou os filósofos neoplatônicos em particular Plotino e em 386 converteu-se ao cristianismo. Sobre a trindade e Cidade de Deus. que apresentava uma visão dualista do mundo: o bem versus o mal. fundada por Mani. apresentando um fio condutor. e outro conhecimento necessário. a essência do ser humano .Assim. Agostinho afirmou que o erro está em querer que as sensações possam expressar uma verdade ao sujeito. o Papa acima dos Reis e nobres feudais. Agostinho representa o momento da cristianização da Europa Ocidental e ressalta a supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal. Nesta obra Agostinho apresenta a felicidade como a motivação do pensar filosófico e formula a tese segundo a qual o homem não tem razão para filosofar. passa a ser vista como indagação humana à procura da beatitude. pois aquele que não é não pode ser enganado” – apresentou a primeira certeza. A filosofia. Agostinho assimilou essa transcendência hierárquica da alma sobre o corpo e. Ocorre que esta idéia já estava presente em Platão e chegou a Agostinho através de Plotino. Esta está presente nas Sagradas Escrituras. Com esta idéia na Cidade de Deus. No que se refere à sua teoria do conhecimento. portanto. sem início e sem fim. daí resulta a necessidade da fé como um novo ânimo para viver. Quando formulou a seguinte frase: “eu me engano. enfatizou que a alma possui funções importantes dentre as quais a de permitir o conhecimento verdadeiro. formula a noção de história. Platão define o homem como uma alma que serve ao corpo. Há um saber prévio existindo de modo infuso que cria as condições de possibilidade para o 67 em que o seu pensar o difere da . rompendo com a concepção grega de uma visão cíclica. ou seja. No diálogo Alcebíades. Este sentido de história deveria incutir na mente humana que a história é aquela que exprime o triunfo da Cidade Divina. eu sou. Agostinho antecipou a reflexão do cogito cartesiano. Assim. excluindo-se. Mas como o homem que é mutável e falível acessa a Verdade? Para Agostinho. imutável e eterno.o homem como ser pensante materialidade do corpo. nesse sentido. exceto para atingir a felicidade. a percepção sensível. somente através de algo que transcende a própria alma humana: Deus. Agostinho utilizou a metáfora platônica da alegoria da caverna ou mito da caverna e apresentou o conhecimento verdadeiro como aquele que previamente foi iluminado pela luz divina. temos dois tipos diferentes de conhecimento: um limitado aos sentidos. por conseguinte. Importa perceber que Deus não substitui o intelecto humano. Agostinho quis dizer que a cada um será dado segundo o seu mérito. A queda do homem decorre do seu livre-arbítrio e. o sentido de igualdade perante a lei se configura no próprio princípio de justiça que preside o ato de criação. a privação do bem. lex naturalis e lex humana. Assim a suma justiça é a 66 Calvino (1509-1564) levou as teses agostinianas às últimas conseqüências. criador do Céu e da Terra. Nos dizeres de Joaquim Salgado. na verdade precisa dele. portanto iguais. a lei humana. Todavia essa igualdade não esgota a idéia de justiça. Essa especificidade se desvela nas faculdades da Alma: a memória. O que temos que perceber é que Agostinho está afirmando a tese segundo a qual todo conhecimento verdadeiro é resultado de um processo de iluminação divina. Com Agostinho. Deus é um Ser transcendente que daria fundamento à Verdade. depois. Agostinho assimilou a concepção estóica da existência de uma lei natural universal dividida em Lex aeterna. pois o homem deve dar-Lhe amor incondicionado. O homem é criatura privilegiada porquanto feito à semelhança de Deus. surge uma nova concepção de justiça: a justiça divina. o mal é o não-ser. Há que se falar também na graça como um tipo de justiça em sua doutrina da iluminação. a justiça consistirá à moda aristotélica da justiça distributiva. 66 Falar de uma Filosofia jurídica implícita no pensamento de Agostinho nos lembra a influência que Cícero exerceu em seu pensamento. a salvação depende de Deus. Esta última é a mais importante porque é o centro da personalidade humana: é livre e nela reside também a essência do pecado que é a transgressão da Lei Divina criada por Deus. a observância da lei de Deus. A percepção de um conteúdo na alma decorre da irradiação divina. onde figura a idéia de dar a cada um o que é seu. O homem é réprobo miserável condenado à danação eterna e só recuperável mediante a graça divina. não existe como um princípio poderoso a reger o mundo.conhecimento humano. 68 . ou seja. portanto. Para Agostinho. a inteligência e a vontade. O próprio Deus. a lei natural e. todos os homens são filhos de Deus e. Nesta nova concepção. Se todos são iguais. está no horizonte desse princípio ou fórmula. 67 Salgado. a lei natural prescreve a harmonia do homem com ele mesmo. Esta sua concepção legitimou a servidão. portanto consiste em dar a cada um o que é seu. nesse sentido. Segundo José Américo M. a cidade de Deus e a cidade dos homens em Santo Agostinho. Pessanha. é a submissão absoluta a Deus. Esta dignidade é o que confere o equilíbrio. 67 A finalidade última do homem é Deus e. Como os homens não são perfeitos e se tornam pecadores. 69 . Assim. com a natureza e com o sobrenatural. A lei eterna liga a criatura a Deus e a justiça se configura na submissão à vontade divina.adequação do agir humano com a vontade divina. A justiça. a justiça perfeita. pois a servidão nasce do pecado e serve ao propósito de expiação dos males praticados.58. Agostinho enfatizou que esta deve ter como fonte de referência a Lei natural. para que a justiça perfeita se opere na cidade. mas uma religião que servia de contestação da ordem imperial vigente (os romanos). A justiça está no reconhecimento do homem como imagem de Deus. Essa nova religião buscava no campo dos filósofos gregos os conteúdos para uma filosofia cristã. A igualdade dos homens entre si é posta por santo Agostinho como absoluta. só acontece na cidade de Deus. Joaquim. Na ordem natural. desprezando a carne e valorizando a alma. como igualdade de todos. a cidade que não observa esta ordem pratica a injustiça. No que se refere à Lei humana. mas somente na esfera da cidade de Deus”. Combater esse mal é um dever sem piedade. A Patrística de Agostinho foi marcadamente um período em que predominou o Novo Testamento como doutrina constituída por regras morais e pela crença na salvação através do sacrifício de Cristo. que por sua vez é ditado pela vontade de Deus. O homem tornado escravo não deve subverter a ordem social. Nesse sentido afirma Joaquim Salgado: “Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César é um princípio que fundamenta a doutrina da diferença entre o inteligível e o sensível. Agostinho justifica o castigo infligido aos maus. a nova fé não apresentava fundamentação filosófica. P. Além de Agostinho destacaram-se São Justino. Temos. em geral. o apogeu das formas literárias criadas no final do séc. Tal fato ressalta que os tradutores de Toledo interessavam-se mais pela filosofia árabemuçulmana e judaica do que pelo corpus aristotelicum.Tomás de Aquino O século XIII foi denominado de “século de São Tomás” e da “escolástica”. pensaram que Aristóteles compusera 70 . seu comentador. Górgias. também. sexta. Apologia de Sócrates e Banquete. pois a verdadeira difusão do pensamento de Platão ocorreu no séc. No início do séc. XIII. sétima e oitava cruzadas. XV com a tradução da República pelo emigrado bizantino Manuel Crisóloras. A obra de Aristóteles só foi conhecida em parte por volta do séc. XIII. Tais textos não tiveram grande repercussão no séc. XII: comentários de sentenças. Este momento é o período da quinta. XII o que gerou conseqüências para a história do aristotelismo medieval. Crítias. a criação das universidades. Clemente de Alexandria e Orígenes. 3 . os franciscanos ou “irmãos menores” de Francisco de Assis (João Bernardone). entre o que se sabe pela convicção interior e o que se demonstra racionalmente. Termina com as traduções de Platão e Plotino realizadas por Marsílio Ficino. portanto o problema da relação entre razão e fé. pois a obra de Avicena. sumas de teologia e a assimilação da filosofia natural peripatética.Predominaram nesta fase escritos que apresentavam o cristianismo em sintonia com as verdades racionais. o Mênon e o Fédon traduzidos por Henrique Aristipo da Catânia. as únicas obras de Platão acessíveis eram o fragmento do Timeu traduzido por Calcídio. prosseguindo com Leonardo Bruni que traduz o Fédon. novas traduções de Aristóteles e de Averróis. O problema central da Patrística foi. Nesse sentido. O período entre 1200 e 1300 é marcado pelo surgimento de duas ordens mendicantes: os dominicanos ou “irmãos pregadores” de Domingo de Gusmão. podemos dizer junto com Libera que nunca existiu o aristotelismo em estado puro e que Tomás de Aquino realizou uma certa desplatonização do pensamento aristotélico. fora conhecida antes. Segundo Libera: “Os medievais. O ingresso do pensamento de Aristóteles foi preparado pelo pensamento dos peripatéticos árabes. 3. de Aquino. XII em particular corresponde aos anos sombrios de uma verdadeira ditadura intelectual de Aristóteles. é um fenômeno supradeterminado. a o método que do as grande obras comentário. Somente na Universidade de Toulouse. incorporados pela tradição interpretativa. o conhecimento de Aristóteles pelos latinos é fenômeno tardio. começa aproximadamente 700 anos após a queda do Império romano do Ocidente. um aristotelismo neoplatonizante. 71 . na verdade. Inocêncio IV estende a proibição até a Universidade de Toulouse. é um fenômeno ambíguo. Ledo engano. a composição nada tinha de intrinsecamente ligado”. Ademais. 359. sendo esta restrição reeditada em 1263. XII até a segunda metade do século XIII e intelectualmente trazido à cena a partir da segunda metade do séc.68 Para a maioria dos historiadores da filosofia medieval. a própria categoria “aristotelismo” é desconhecida na Idade Média e o avanço de Aristóteles foi institucionalmente combatido desde o final do séc. aos livros naturais e às sumas extraídas dessa. Eles não imaginaram a gênese interior do corpus nem as condições concretas de sua composição. levando em conta os numerosos apócrifos. Para compreender o lugar exato de Aristóteles no pensamento medieval latinófono é preciso ter em mente os três fatos elementares: 1. reduzida ao estritamente necessário se relacionou com a teologia da época. quando. pelo contrário. o papa Gregório IX previne os teólogos contra as novidades profanas. As proibições se dirigiam à Metafísica. Somente a Lógica de Aristóteles. Acreditava-se que a Lógica era neutra. Com Averróis e Tomás lógicas. Em 1230.orgânica e completamente suas obras. a querela do aristotelismo é transposta para o interior da faculdade de Teologia. levando em conta a redescoberta do texto aristotélico pelos comentários ou pelas leituras do peripatetismo árabe. Estagirita fundamentado em recortes do texto e na sua recomposição por divisões e subdivisões impôs idéia do apresentavam um plano perfeitamente ordenado. 68 P. Aristóteles é lido sem restrição – Aristóteles não seria mais corrigido. XIV. 2. o séc. pois entendia que a fé não teria mérito quando a razão humana estivesse a emprestar seus recursos. Importa perceber a diferença entre o sentido literal e o saber simbólico. pura abstração que o intelecto faz. 69 Em 1244. História da Filosofia. formando parte dos mesmos” Apud. ingressa como noviço na ordem dos Irmãos Disse Porfírio: “enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na sua pura inteligência.107. Os realistas sustentam que há uma existência efetiva dos universais. nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos. p. Veja-se a Rosa como símbolo de perfeição. seu pai foi conde de Aquino. A preocupação da Escolástica com as palavras resulta da investigação da Bíblia como portadora de verdades. discípulo de Plotino. no interior das Universidades. XII. Do século XI ao século XIII.todavia tornando-se letra morta. 70 Oblato: leigo que se oferece para o serviço monástico. nem. 72 . o problema que apaixonou a Idade Média e que orientou a reflexão filosófica foi o problema dos universais. levantado a propósito da obra Isagoge de Porfírio69. A partir do séc. O papado não teve poder para impedir a difusão do aristotelismo através de Averróis. neste período desenvolveuse grande estudo da linguagem para depois examinar a realidade das coisas. Essa existência pode ser à maneira platônica ou à moda aristotélica. Fato que constituía ameaça para o acordo entre a reflexão filosófica e a fé cristã. Tomás de Aquino nasceu em 1225. Por tanto. A indagação era: qual a relação entre as palavras e as coisas? O célebre romancista Umberto Eco escreveu a obra O nome da rosa para colocar essa questão medieval dos universais. as obras de Aristóteles começam a ser divulgadas por intermédio dos árabes que continuavam instalados em Espanha. no caso de subsistirem. fundada por Frederico II. O aristotelismo será conhecido através dos comentários dos árabes. meras palavras sem existência real. Os nominalistas compreendiam que os universais eram termos que designam idéias gerais. se são corpóreos ou incorpóreos. Por volta de 1239 retorna a casa dos pais antes de ingressar na Universidade de Nápoles. Aos cinco anos foi oferecido como oblato70 à abadia beneditina de Monte Cassino permanecendo até quatorze anos. A palavra rosa subsiste à morte da própria flor – qual seria a relação entre o nome e a coisa? Linguagem e realidade? Diante de tais indagações os medievais tomaram duas direções: o nominalismo e o realismo. morre de uma doença (1274) aos 49 anos. confiante no poder da razão relacionado à autoridade da fé. o averroísmo latino que negava a individualidade da alma humana e professava que o universo era tirado de Deus por necessidade e. Nenhuma verdade certa do ponto de vista da razão pode ser contrária à fé. De um lado. Em 1259 é chamado à Itália por Alexandre e torna-se o teólogo da cúria pontifícia. ou seja. Tomás escreve obras a pedido do papado com vistas a observar o Novo Testamento e o pensamento grego. agostinianos. De 1248 a 1252 viveu em Colônia sob a orientação de Alberto Magno. Em 1272. Regressa a Paris em 1252 e obtém o título de bacharel bíblico e sentenciário. contra os projetos de sua família. o título de mestre. o tomismo foi condenado simultaneamente pelo bispo de Paris. Elabora seus comentários sobre as obras de Aristóteles a partir da tradução de Guilherme de Moeberke. o papa João XXII encerra o processo de canonização de Tomás em 1323 e afirma que seus escritos são milagres. o papa Gregório X o envia para a Universidade de Nápoles. o papa Alexandre IV. de outro. Em 1269. Etienne Tempier e pelo primaz de Inglaterra. Nenhuma verdade de fé pode 73 a lecionar na Universidade de . Libertado por suas irmãs em 1245 foi para Universidade de Paris em busca do mestre Alberto Magno que empreendia a reforma dos estudos teológicos. Por ocasião de uma viagem com o objetivo de assistir o concílio de Lyon. encontra a universidade de Paris dividida por lutas doutrinais. Em 1277. para organizar um studium generale. do aristotelismo. por conseqüência. Em 1256 obtém de seu protetor. conservadores. Aquino estava firmemente agarrado ao princípio da não-contradição. Sua doutrina encontra inimigos entre os franciscanos e dominicanos. Por ocasião de sua ida à Paris em companhia do mestre geral da ordem. um centro de estudos teológicos. Robert Kildwarby. sob escolta. Começa Paris com 27 anos. Estava convencido da unicidade da Verdade. seus irmãos o levam para a casa de sua família. encarregado de comentar o livro das sentenças de Pedro Lombardo. inimigos de todas as novidades e.pregadores e renuncia ao abadado do Monte Cassino. os franciscanos. Todavia. Para Tomás. embora existam duas vias para atingir. não é um impulso cego da sensibilidade. Deus. a fé significa obediência e confiança na Palavra de Deus. suscita por si própria a pesquisa teológica.Fé e Razão Para Tomás de Aquino. a fé ultrapassa a razão. tal como não há conhecimento sobrenatural sem a possibilidade dum conhecimento natural.1 . Não existe fé para um ser privado de razão. A necessidade duma inclusão não do conhecimento a natural de no uma conhecimento sobrenatural significa necessidade anterioridade histórica do conhecimento filosófico de Deus relativamente ao ato de fé. a criação do mundo ou o mistério de um Deus em três pessoas. objeto adequado da fé. Não há um Deus para a fé e outro para a razão: só a afirmação de Deus pela fé difere da afirmação de Deus pela razão. por exemplo. Com a expressão Fides quaerens intellectus de Santo Anselmo se define no trabalho da teologia: a fé em busca da inteligência. A sua originalidade reside no equilíbrio interior que realiza entre a supremacia da teologia e a autonomia da filosofia.negar uma verdade natural. O teólogo apela para a razão natural. Mas estabelece uma relação que mostra a filosofia servindo tanto melhor à teologia quanto mais rigorosamente filosófica ela for. e menos ainda um sacrificium intellectus. não para provar este ou aquele artigo de fé. mas para explicitar o conteúdo desses artigos e captar a ordem dos argumentos pelos quais se passa de um para outro. e a teologia revela tanto melhor o caráter sobrenatural da fé quanto mais respeitar a luz natural da razão. Pela adesão total que ela exige dum ser dotado de razão e vontade. mas. O conhecimento da fé pressupõe e pré-exige a validade do conhecimento natural de Deus. 3. A verdade é só uma. mas também porque é o mesmo Deus que é visado pela razão e pela fé. não somente para dar um mínimo de sentido intelectual à palavra Deus. Seu tomismo não é uma simples justaposição da filosofia e da teologia. No entanto. a fé não está ligada a uma pesquisa da razão natural para demonstrar aquilo em que se acredita. mas é o próprio 74 . transcende o objeto próprio da razão. uma vez que Deus se conhece primeiramente a si mesmo e vê em si próprio todo o resto. todavia sob perspectivas diferentes. O que é objeto da fé não é da ciência. não recebe os seus princípios da filosofia. Gilson. Tomás de Aquino seguiu as trilhas de Aristóteles. ao mesmo tempo. no entanto. E segundo E. devido à sua maior semelhança com a Ciência Divina. mas diretamente de Deus. A teologia que é iluminada pela luz natural da fé. o teólogo encara-as na sua relação com Deus. A especulação teológica depende diretamente da fé. nem a razão é anexada pela fé. a Teologia é mais perfeita que a filosofia. Não cabe à Filosofia procurar para a teologia essa evidência do seu objeto que a tornaria uma ciência perfeita mesmo para nós. Nesse sentido. o acordo da Filosofia com a Teologia. encontram-se a si mesmas. O filósofo considera as criaturas em si mesmas. O Tomismo caracteriza-se na crença inabalável no acordo entre a verdade terrestre evidenciada pela razão e a verdade de fé recebida pela revelação. mas 75 . Para Tomás somos feitos de tal modo que o nosso intelecto deve partir dos conhecimentos obtidos através da luz natural da razão para ser encaminhado para os conhecimentos que ultrapassam a razão e formam o objeto da teologia. Mas Tomás acredita que para um mesmo objeto poderá haver fé e saber. entre a fé e a razão. e no mesmo indivíduo. a grandeza filosófica de Tomás de Aquino muitas vezes é esquecida ao denominá-la de “filosofia aristotélicotomista”. Nem a fé está subordinada à razão. o filósofo aprecia as causas segundas. Na visão de Édouard Hugon. O teólogo aprecia as causas primeiras. O mérito do Tomismo é manter assim.Deus o objeto real – objectum ut res – da fé e da razão. e. uma distinção sem separação e uma união sem confusão. Filosofia constitui simplesmente a pré-compreensão ou o preâmbulo necessário à inteligibilidade das verdades reveladas. elas vivem uma da outra e realizam-se numa promoção mútua e nessa relação recíproca. é conseqüência necessária das exigências da razão e não simples desejo. graças à revelação. a reflexão filosófica é essencialmente obra da razão. De fato. no Tomismo. Há uma inclusão do conhecimento natural no conhecimento sobrenatural. A priori é impossível saber e crer uma mesma coisa sob o mesmo ponto de vista. da contingência. para que melhor se atinja a realidade existencial das coisas. cuja realidade objetiva está tão somente na inteligência. da causalidade existente entre elas. por conseguinte. mas para que se manifeste a verdade” (De Coelo et Mundo. Os Princípios da Filosofia de Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Deus une todas as perfeições na infinitude de um ser que vem de si mesmo e que desconhece mudanças e sucessão. Deus seria a explicação de todas as coisas. Porto Alegre: EDIPUCRS.reformulou-os de tal modo que arquitetou uma nova filosofia. “Se o Tomismo admite entes de razão.14. Tomás de Aquino buscou as razões principais das coisas existentes. ou dizendo de outro modo. Introduziu na filosofia peripatética os conceitos de Deus como criador das coisas. Édouard. O ser é a própria natureza de Deus. das perfeições e da ordem harmoniosa das coisas. dirigindo-se às explicações últimas das mesmas. ou seja. sabemos através de uma operação lógica que Deus é e o conhecemos por meio de uma analogia. conceituadas pela inteligência. levando às últimas conseqüências aquilo que Aristóteles esboçara. Deus é o ser de ato puro destituído de 71 HUGON. p. 1998. I. Somente em Deus o ser atinge a sua suprema perfeição. seu realismo é a filosofia do ser e da verdade. O seu ponto de partida é a realidade das coisas e não das idéias imaginadas. as coisas. apreendidas pelos sentidos. O seu tomismo origina-se da percepção sensível do mundo para dela tirar no âmbito da inteligência um conjunto conseqüente e harmonioso de teses.71 Diz-nos Tomás de Aquino: “O estudo da filosofia não é para se saber o que os homens pensaram. os seres de razão nada mais são que idéias formuladas pela razão. em primeiro lugar o objeto e depois o sujeito. do próprio ser. A noção de ser é o fundamento primeiro das coisas e a última determinação da perfeição das mesmas. A noção do ser é a primeira que afeta nossa inteligência e perpassa todos os nossos conhecimentos. Em primeiro lugar. 76 . temporalidade da matéria-prima. depois a mente. “O critério supremo do tomismo é a verdade imparcialmente aceita”. Nessa trajetória partia das percepções mais primitivas até alcançar a certeza do Ser Supremo: das mudanças.22). O ponto fundamental de sua filosofia é o realismo. verdade que seria a correspondência da mente com as coisas. passa a figurar para os medievais somente no interior de cada ser humano e se articula com a idéia de vontade dividida entre bem e mal.. de experiências hauridas pela prática da ação.73 A sinderese atua para desvelar o bem. A sua filosofia denominou a razão prática de sinderese ou sinderesis que poderá ser entendida como um conjunto de conhecimentos conquistados a partir da experiência habitual. mas sim Idem ibidem. Nesse sentido. 3. de conceitos (. Isto quer dizer que os hábitos não são inatos.2 . A liberdade afigura-se como livre-arbítrio. A noção de responsabilidade assume um 77 . justos e injustos). Partindo dessa experiência podemos cunhar os principais conceitos acerca do que é bom ou mal. é capaz de formar um grupo de princípios. A concepção ética de Tomás de Aquino é teleológica. p. A atividade ética consiste no que denominamos de atividade da razão prática. capacidade racional de discernir o bem do mal para alcançar o fim último. ou seja. Na visão aquiniana o mal só encontra sentido enquanto “bem aparente” e isto significa dizer que decorre de um equívoco que pensa o mal como se fosse o bem. ou seja. Na verdade Tomás de Aquino compreendeu o mal como privação do bem ou estado de ignorância do verdadeiro Bem.) que permitem a decisão por hábitos (bons e maus. percebemos a despolitização da liberdade e a sua moralização junto à concepção de culpa originária. Surge a idéia do dever e da obrigação que exige submissão à papel novo: a responsabilidade individual.qualquer imperfeição ou potência – a perfeita posse e simultânea de todas as perfeições: é o ser eterno (Boécio) ”. aquilo que a todos agrada (bonum est quod omnia eppetunt). justo ou injusto.14. Enquanto para os antigos a liberdade era um conceito essencialmente político. porque enfatiza o fim último do obrar ético na noção de Bem Comum. Ver. ou seja. 72 73 72 a vontade divina. Livro VII: o agir ético como um agir pendular entre o vício e a virtude. Segundo Eduardo Bittar: “Todo conjunto de experiências sinderéticas.Justiça e Sinderesis O cristianismo opera um deslocamento no sentido da liberdade.. Ética a Nicômaco. do temor de sua onipresença e da vontade de orientar-se de acordo com a palavra que salva. ou seja. para a qual representa uma diretriz. A lei positivada é importante no sentido de que conduz o homem ao caminho virtuoso do Bem Comum e torna a convivência social pacífica. 74 78 . T. será. Uma lei racional. 2002. Liv. II. 75 Aquino. São Paulo: Saraiva. Encontramos ecos do pensamento aristotélico que concebia a justiça como uma virtude e o conceito romano de justiça como vontade perene de dar a cada um o que é seu. assim dirigida em sua finalidade. ou seja. Tomás de Aquino apresenta o seu conceito de justiça a partir do seu conceito de ethos. como já se disse fazer o bem e evitar o mal (bonum faciendum et male vitandum). cap.”74 Nesse modo de ver. A justiça é uma virtude.75 A igualdade que figura nesta definição de justiça é uma igualdade entre pessoas. Essa experiência formará a lei natural que apresentará as seguintes características: 1. Em outras palavras. Summa Contra Gentiles. originária que somente poderá ser considerada como princípio norteador. B. o homem deverá guiar-se por princípios extraídos da experiência sinderética. Justiça é um hábito que se desvela nas atitudes ou comportamentos dos homens. A ética exige o sentido de justiça no âmbito das relações entre homens. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. ou seja. Uma lei insuficiente e incompleta. é essa a base das operações da razão prática. Uma lei rudimentar. 3. sicut in rebus humanis patet. p. segundo uma razão geométrica. Tomás de Aquino afirma expressamente que justiça é dar a cada um o que é seu: Cum iustitiae actus sit reddere unicuique quod suum est. 2. no sentido de que exige o complemento de uma lei positiva. O princípio da razão prática.conquistados a partir da experiência. pois é fruto da experiência racional ou sinderética. podemos afirmar que BITTAR. XXVIII. Eduardo C. actum justitiae pracedit quo aliquid alicuius suum efficitur. 2. 232. o bem que se pratica é fruto da fé e do conhecimento da divindade. Bittar observa que na visão aquiniana é da interioridade virtuosa que o homem retira o necessário para a elaboração da conduta externa. o meio entre excesso e carência. a transfiguração da felicidade em bem-aventurança. Esta felicidade está expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de Deus. independente e livre. na adivinhação etc. 2. o que significa dizer que não é através da razão. do comportamento humano. Este conflito marcou o fim do período antigo e o esforço da Idade Média em articular a sabedoria divina com a sabedoria humana. mas da fé que o homem alcança a felicidade. as virtudes teologais (fé. A razão grega acreditava no destino. do vir-a-ser. nas inspirações superiores. esperança e caridade) se colocam acima das virtudes morais.Aquino quer dizer que a Lei divina (lex aeterna) possui uma supremacia que a coloca em uma instância superior em relação à lei natural e positiva. 3. A sabedoria grega apresentava um interesse direcionado para mundo. Deus é quem concebe a sabedoria ao homem. sendo ele perfeito. na boa ou má sorte. Na sabedoria hebraica ou da salvação. a transcendência do fim último. A razão grega partia da realidade tangível e visível. onde Deus se torna o valor supremo. O cristianismo promoveu uma modificação dos valores éticos: 1. Surge o Deus pessoal criador do mundo. o seu paganismo lançava raízes no pensamento mágico. Estudamos que o mundo antigo nos oferecia o espetáculo da competição entre duas sabedorias: a grega e a hebraica. 79 . Nesse sentido. O Jusnaturalismo 1 . Essa idéia acabou por reduzir o direito natural ao mero instinto. ou seja. A idade Média se identificava com a doutrina de um suposto direito natural revelado por Deus a Moisés e com o Evangelho (Graciniano – séc. governador do universo. exerceu grande influência no pensamento cristão dos primeiros séculos. Essa concepção apresentada em Roma por Cícero. portanto. racional e imanente. Esta concepção que se configura em uma versão naturalista. In: Coleção Os Pensadores. 76 “Epicuro”. se viram diante de uma grande tarefa: conciliar esse direito natural com a idéia de lei revelada. Na obra De Republica. que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a sua própria natureza humana. Os padres da igreja ao acolherem as idéias de Cícero.Parte V . Os juristas romanos também buscaram no estoicismo a idéia de um direito natural como. em versão racionalista. 1988. os motivados apenas por instinto. posteriormente retomado pelos estóicos. Ulpiano que chegou a definir o direito natural como aquilo que a natureza havia ensinado a todos os seres animados. Cícero76 defendeu a existência de uma lei verdadeira. posto que incluía também como seres animados os seres irracionais. foi adotada por muitos escritores medievais. Há a afirmação de um conceito de “justo por natureza” que se contrapõe ao “justo por lei” que fora enfatizado pelos sofistas que já entendiam a expressão “justo por natureza” de formas distintas e com conseqüências políticas também diversas. Foi Tomás de Aquino que compreendeu a lei natural como aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus. compreendia a Natureza como se fosse governada por uma lei universal. 80 . O mundo grego antigo desenvolveu um jusnaturalismo cosmológico. São Paulo: Nova Cultural. Temos. duas versões do direito natural: a versão naturalista de Ulpiano e a versão racionalista de Cícero. imutável e eterna. XII). O jusnaturalismo presente no pensamento de Platão e Aristóteles. por exemplo. conforme à razão. oposta à de Cícero.O jusnaturalismo no pensamento antigo e medieval As primeiras manifestações do jusnaturalismo aconteceram na Grécia. Enfim. O direito positivo como um direito especial ou particular de uma dada civitas. O direito natural é percebido como aquele contido na lei mosaica. inúmeros agrupamentos sociais cada qual dispondo seu próprio ordenamento jurídico. A doutrina tomista foi considerada por muitos comentadores como uma retomada do pensamento estóico-ciceroniano da lei verdadeira enquanto racional. 81 . 77 Conforme exprime Sófocles na tragédia grega sob o nome de Antígona. pois tanto um como outro se configuram como direito na mesma acepção do termo. A esse respeito ressalta Norberto Bobbio que se trata de uma distinção de grau e não de qualificação. Nesse contexto. o direito natural não era concebido como superior ao direito positivo. baseando-se no princípio de que o direito particular prevalece sobre o direito geral – “lex specialis derogat generali”. Desta concepção derivou a idéia jusnaturalista do direito natural como superior ao direito positivo. o termo Renascimento significa um movimento intelectual que se iniciou por volta do final do século XV. Tomás de Aquino foi severamente criticado por seus coetâneos.que se acha presente na razão humana – uma norma racional.Jusnaturalismo no pensamento renascentista e moderno Segundo os estudiosos. ou seja. para um retorno à Antigüidade clássica. 77 Não podemos olvidar que a sociedade medieval era marcadamente uma sociedade pluralista. pois constituiu a base do jusnaturalismo católico. mas tão somente era considerado como um direito comum. mas hoje é considerado o filósofo medieval mais importante do catolicismo. O seu jusnaturalismo foi de grande importância. 2 . o direito natural passara a ocupar status privilegiado. na época clássica. posto pela sociedade civil. O objetivo perseguido por esses intelectuais era abandonar as idéias medievais. o direito positivo assumira o caráter de fenômeno social. uma vez que adquirira o status de norma fundada na própria vontade de Deus – como a lei escrita por Deus no coração dos homens. No sentido amplo. no Velho Testamento e no Evangelho. Por outro lado. Somente com o advento do positivismo jurídico é que o direito natural é excluído da categoria do direito. das técnicas e das artes. na qual a observação assume papel fundamental. a Terra não era mais o centro do universo. Leonardo Da Vinci. a partir de uma nova ótica. Bocaccio. portanto. Galileu Galilei. Este é o século de Shakespeare. 78 XVI fortaleceu o individualismo intelectual e estético desse humanismo crescente. a exaltação do homem. Essa fase marcou também o momento inicial de uma filosofia do direito e do Estado explícita como resultado do homem em seu novo papel de criador no mundo social.Renascimento configura um momento de tensão entre duas autoridades: a do Papa e a das monarquias. a saber: 1. que nesta fase ressurge um interesse pela pesquisa natural. Kepler e tantos outros. aumentando a tensão entre os imperadores e o papado (liberdade política versus autoridade eclesiástica). a valorização da razão e da liberdade. Michelangelo. Os reformadores protestantes voltaram as costas à Giordano Bruno ( 1548-1600) foi condenado à morte por apresentar a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico ( 1473-1543) e a infinitude do universo. Observa-se. Dante. o homem como microcosmo e o conhecimento da Natureza através da magia natural (alquimia e astrologia). a partir do neoplatonismo e a descoberta do hermetismo que compreendiam a Natureza como um grande ser vivo. a “Reforma” que tem sido considerada responsável pelo surgimento do protestantismo no séc. Cervantes. Os pensadores florentinos que valorizavam a política e defendiam os ideais republicanos das cidades italianas contra o império romano-germânico. Trata-se de uma época de grande crise da consciência européia. 78 Foi um momento em que o homem perdeu suas certezas e verdades. afinal. o estudo da cultura greco-romana. A concepção do homem como artífice de seu próprio destino através do conhecimento. A inquisição foi reativada no Concílio de Trento (1545-63) 82 . ou seja. órgão da Igreja encarregado de descobrir e julgar os hereges. O pensamento platônico. devastada por inúmeras dissensões e uma esplêndida florescência do humanismo. 3. Tomas Morus. Camões. Três concepções predominaram no período do Renascimento. o céu não era finito e o homem deixava de ser criatura miserável. Erasmo de Rotterdam. Maquiavel. 2. Durante essa fase muitos precursores da ciência sofreram nos Tribunais da Inquisição. No âmbito religioso. Surgem cientistas e filósofos que revisitaram as questões medievais. da política. Na profundamente o cenário europeu: verdade vários acontecimentos contribuíram para essa mudança: o combate ao pluralismo feudal. num plano mais vasto. Não eclesiásticas ou leigas. Este autor sustentou que o direito natural é imutável e independente de Deus como legislador supremo. a expansão da economia no sentido de um capitalismo. Alguns autores entenderam que a origem do jusnaturalismo moderno estaria na doutrina de Hugo Grócio (1583-1645). pretendendo com isso reatar a Antigüidade cristã. fortaleceram a oposição à Escolástica medieval. o surgimento da palavra Estado . a criação da Imprensa. o descobrimento da América. um alterou o advento do Estado soberano. momento do surgimento de uma nova cultura. sob o aspecto terminológico. a tentativa de enfraquecer o papado. o pensamento de Grócio teria fortalecido o caminho para esse pensamento laicizado no âmbito da moral e da política. um retorno ao pensamento agostiniano. p.lo stato. dentre os acontecimentos mais do pensamento humano. XVII características laicas80 e no campo político. designando a idéia de coisa pública. independente de qualquer interferência divina. Hugo Grócio afirmou que o direito natural é ditado pela razão. crise que caracteriza a transição da Cristandade medieval para o Estado moderno. Como ressalta Truyol importantes desta etapa y Serra79. O que importa perceber é que.tradição medieval.81 de 1625. as viagens de exploração ultramarina pondo o Ocidente em contato com outros povos. enunciada na obra De iure belli ac pacis. Esta sua idéia anuncia o modo de ver da época que estaria por vir. Este é o momento de crise. características liberais. Na verdade o direito 79 80 81 Truyol y Serra. O jusnaturalismo moderno assumiu no séc. uma cultura laica e antiteológica. Segundo alguns comentadores. e.5 Do renascimento a Kant. Do direito da guerra e da paz 83 . Grócio diferenciou direito natural e direito positivo da seguinte maneira: “O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria natureza racional do homem”. a época do Iluminismo. e se deve à grande disputa entre as alas extremas do voluntarismo calvinista e o pensamento tomista de influência estóica-ciceroniana. a saber: a recta ratio e a appetitus societatis (desejo de uma sociedade tranqüila e ordenada). O jusnaturalismo de Grócio e o jusnaturalismo do séc. Tais idéias no seu conjunto contribuíram para o processo de laicização do direito. a saber: a valorização da natureza humana como fonte do direito natural. XVII foram de grande importância. o advento da Escola Clássica do Direito Natural. Spinoza. de John Locke. a existência de direito naturais inatos. por sua vez. A Escola Clássica do Direito Natural apresentou e defendeu algumas idéias. e eterno. universal Hobbes. a crença num suposto estado de natureza.Características do jusnaturalismo moderno A diferença marcante entre o jusnaturalismo antigo-medieval e o jusnaturalismo moderno repousa sobre o fato de que o primeiro vincula-se à idéia de que tal direito constituiria uma teoria do direito natural como norma objetiva. pois fundamentaram teoricamente o que entendemos por direito internacional daquela época que. escritos em 1680 e publicados em 1690 que já observava limitações ao poder real. Segundo Paulo Nader82. cuja fonte repousa exclusivamente na validade da sua conformidade com a razão humana. temos a obra Dois tratados sobre o governo.possui uma dupla origem. A obra de Grócio difundiu com grande sucesso a idéia de um direito natural. 2003. Locke. Tomásius e Rousseau foram o pensamento racionalista de Hugo Grócio forneceu as condições de possibilidades para considerados representantes dessa escola. Bobbio observa que entre 82 NADER. Filosofia do direito. Paulo. Rio de Janeiro: Forense. Puffendorf. Além de Hugo Grócio. Na Inglaterra. A conseqüência mais relevante do seu pensamento foi a idéia de adequar a lei positiva e a Constituição a esse direito natural e legitimar a possibilidade de resistência e desobediência civil em caso de conflito. 84 . apresentava-se sob o nome: Do direito natural e das gentes. 3 . ao largo do pensamento do holandês Hugo Grócio. o segundo momento do jusnaturalismo configura o momento de uma teoria dos direitos subjetivos. como também conduziram ao sentido de um direito natural imutável. a idéia de um contrato originário como origem da sociedade. O jusnaturalismo moderno enfatiza o aspecto subjetivo do direito natural. mas sim como obra voluntária dos indivíduos. Kant. Cumberland. mas continuidade. A legitimidade do Estado é assegurada por um pacto entre cidadãos e um soberano.o direito natural da Antigüidade clássica. XVII e XVIII fundamentou doutrinas políticas de tendência individualista e liberal. Wollf. visando salvaguardar os direitos naturais. a Declaração dos Direitos do 85 . Vattel. conquanto diversamente entendidos pelos vários expoentes do jusnaturalismo moderno (Grócio. Esse modo de ver modifica também a figura do Estado que passa a não ser mais visto como instituição necessária por natureza. Os indivíduos abandonam o estado de natureza (diversamente entendido. Isto quer dizer que se acham presentes em todas as doutrinas legítimas dessa corrente de pensamento político. ou mera idéia reguladora capaz de explicar racionalmente a realidade histórico-política da formação do Estado. Pufendorf. Por conta deste traço essencial. como também na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América (1776). isto é. Nesse sentido. a teoria do contrato afigurou-se como uma historieta de ficção. este contrato se desdobraria em dois momentos: o pacto de união e o pacto de sujeição. Milton. o da norma. Faz-se mister ressaltar que. do período medieval e do período moderno não há rupturas. Locke. o jusnaturalismo do séc. As doutrinas jusnaturalistas modernas consideraram a sociedade como efeito de um contrato entre os indivíduos. estado de natureza e contrato social. que afirmaram a existência de direitos do homem inalienáveis. mas sempre carente de organização política) e fazem surgir o Estado politicamente organizado e dotado de autoridade para garantir os direitos naturais. Direitos inatos. sobretudo em Rousseau e Kant. os direitos inatos. Fichte) são conceitos característicos desta corrente de pensamento. deixando de lado o aspecto objetivo. Rousseau. A tradição constitucionalista inglesa inspirou-se na doutrina do direito natural. ressaltando peremptoriamente a necessidade do respeito e reconhecimento desses direitos por parte da autoridade política. 2 . Kant (1724-1804). T.Homem e Cidadão (1789) configurou um dos primeiros atos da Revolução Francesa que proclamou a liberdade. Rousseau (17121778). Outro efeito importante do jusnaturalismo moderno foi a reformulação da legislação positiva para torná-la adequada às novas exigências. Althusius (1557-1638).As teorias do contrato e o direito natural Por contratualismo entendemos teorias diversas com problemas e soluções também diversas. Em sentido amplo. Sentiu-se em certo momento uma forte necessidade de reforma legislativa. Nesta concepção o fundamento da obrigação política repousa consenso expresso ou tácito que legitima uma autoridade que os represente e encarne (contratualismo clássico). Em sentido restrito. seria capaz de oferecer as bases doutrinais para uma reforma racional da legislação. XVIII. Locke (1632-1704).-J. S. podemos compreender dois níveis distintos. Pufendorf (1632-1694). J. assim. representa uma escola que floresceu na Europa entre os começos do séc. um acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos. que teve os seguintes expoentes: J. J. Spinoza (1632-1677). Tais autores apresentaram o uso comum de uma mesma sintaxe ou estrutura conceitual para racionalizar a força e alicerçar o poder no consenso. ou seja.O estado de natureza como mera hipótese lógica a fim de ressaltar a idéia racional ou jurídica do Estado. J. o contratualismo compreende aquelas teorias políticas que vêem a origem da sociedade e o fundamento do poder político na figura jurídica do contrato. Hobbes (1588-1679). 86 . 4 . XVII e fins do séc.Os que sustentavam a passagem do estado de natureza ao de sociedade como um fato histórico realmente ocorrido para dar conta do problema antropológico da origem do homem civilizado. a saber: 1 . acordo que assinalaria o fim do estado natural e o início do estado social e político. o jusnaturalismo com sua teoria de um direito absoluto e universalmente válido. I. a fraternidade e a igualdade. Desta forma. enquanto ditado pela razão. Qualquer atividade política que se oponha às normas do direito natural será considerada ilegítima. Todas essas versões partem do pressuposto que o direito natural é constituído de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado. as leis criadas pelo soberano que tenderiam a substituir o direito consuetudinário. a necessidade de legitimar o Estado. que a encontra dentro de si. caracterizando-se por possuir um direito natural. animal racional. a de lei ditada pela razão. ou seja. Enfim. 5 . Três fatores explicam essa idéia: a influência da escola do direito natural com a qual o contratualismo está relacionado. sem um poder político organizado. em caso de conflito. colocando como base de toda juridicidade o pacta sunt servanda. ou seja. seria anterior e superior ao direito positivo e. específica do homem. assim. os jusnaturalistas admitiam a existência de um suposto estado de natureza. 87 . uma forma de convivência onde existiam apenas relações intersubjetivas entre os homens. Na história da filosofia jurídico-política surgiram três versões do jusnaturalismo: a de lei estabelecida por vontade da divindade e por esta divindade levada aos homens. Este direito natural teria validade em si. construir um sistema jurídico que evidencie a autonomia dos sujeitos desse contrato. aquele estabelecido pelo Estado e cuja validade não dependeria de valores éticos. Este seria o momento anterior à formação da sociedade política. ele prevaleceria. a idéia do direito como a única fonte de racionalização das relações sociais.Encontramos. a de lei natural em sentido estrito e conatural a todos os seres animados. um sistema de normas de conduta diversa do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado.O conceito de jusnaturalismo segundo Guido Fassò O jusnaturalismo é uma doutrina que afirma a tese segundo a qual existe e pode ser conhecido um direito natural. O jusnaturalismo é uma doutrina oposta ao positivismo jurídico que enfatiza a existência de um só direito. Proposta para uma distinção entre direito natural e direito positivo Segundo ensina Norberto Bobbio. 2. são ações consideradas boas em si mesmas. O direito natural seria aquele que a natureza ensina aos homens e o direito positivo aquele organizado por um determinado povo em uma determinada época. pois este filósofo entendia que o direito natural poderia mudar no tempo. a clássica distinção entre direito natural e direito positivo já se encontra claramente exposta no cap. o direito positivo é mutável (Paulo). VII. na obra O positivismo jurídico. 83 88 . O segundo critério repousa sobre a diferença entre imutabilidade e mutabilidade: o direito natural é imutável. Nesta obra o direito positivo é denominado de direito legal.Critérios de distinção entre direito natural e direito positivo Norberto Bobbio enumera seis critérios para distinguir direito natural e direito positivo. devem observar o seu modo prescrito em lei. podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro. o direito positivo é aquele que estabelece ações que. Segundo Bobbio. O primeiro critério baseia-se na antítese universalidade/particularidade: o direito natural é universal. o primeiro tipo de direito corresponderia à natureza. à razão natural e o segundo tipo corresponderia às estatuições do povo. 7 . que seria o correlato ao nosso direito positivo. o direito natural se define pelos termos “justiça” e “direito”. Para Aristóteles. O direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas em que é posto. antes de serem reguladas.83 Observa-se que este critério não pode ser atribuído a Aristóteles. No direito romano a dicotomia direito natural e direito positivo pode ser vista a partir da distinção entre jus naturale (inclui-se aqui o jus gentium) e jus civile.6 . sua bondade é objetiva. da Ética a Nicômaco de Aristóteles. o direito positivo particular (Aristóteles). a saber: 1. o direito natural possui eficácia em toda parte e prescreve ações cujo valor não exige ajuizamentos. mas se imposta por lei. do Livro V. o comportamento observado pelo direito positivo depende da sua tipificação para ser justo ou injusto. sem se esgotar. exige o jurista prático. 6. pois deve influenciar na aplicação do Direito aos casos concretos. O pensamento jusnaturalista NADER. é de reconhecer que não podem as duas ordens se apresentar como departamentos alheios entre si. História da Filosofia: Do romantismo até nossos dias. Filosofia do direito. 2003. o direito positivo.163. pois a sua missão não lhe impõe o sacrifício da neutralidade axiológica. 5. Giovanni. São Paulo: Paulus. identificado este com o jurisfilósofo. O terceiro e mais importante critério refere-se à do povo (Grócio). o direito positivo o que é útil. pp. Rio de Janeiro: Forense. Não há dúvida de que o jusnaturalismo configura uma doutrina muito antiga que relacionou direito e justiça. Se o conjunto de princípios é alcançado pela reflexão. 1991. mas está presente em todas as dimensões da juridicidade. Este critério concerne ao objeto de cada direito: o comportamento regulado pelo direito natural poderá ser considerado bom ou mau por si mesmo. a esfera do realismo jurídico e a positivismo jurídico. o direito positivo é conhecido através de uma declaração de vontade. É preciso não perder de vista a importância do direito natural para a reflexão jurídica e que este direito não pode ser considerado como mera filosofia do direito positivo. Como a tarefa do Direito Natural não se limita na orientação ao legislador. a sua conversão em Direito Positivo. de acordo com o pensamento de Giovanni Reale85.907. a figura do jurista. o juiz deve possuir o pendor para a reflexão. 154-172. podemos observar. 85 REALE. fonte do direito: o direito natural funda-se no poder da razão. p. Paulo. Este critério refere-se ao modo pelo qual o direito é conhecido por seus destinatários: o direito natural é conhecido pela razão. Nos dizeres de Paulo Nader: “Se no Direito natural se destaca a atuação do filósofo e no Direito Positivo. p. Sugiro a leitura do capítulo XIII – “A doutrina do Direito Natural”. no poder 4.”84 De um modo geral. A formação do Direito Positivo e sua aplicação exigem a atuação do jurista prático e a presença do teórico.3. O último critério refere-se à valoração das ações: o direito natural estabelece o que é bom. 84 esfera do 89 . 86 Falarei do realismo jurídico e do positivismo na apostila “O positivismo Jurídico”. que os estudos de Filosofia do Direito ao longo de nossa história baseavam-se em três esferas distintas entre si86: a esfera do jusnaturalismo. porque temos como pano de fundo . concedendo arbitrariamente ou rejeitando os direitos do homem -. Nesse sentido.. portanto. Princípios que são a-históricos e. já que existem princípios jurídicos fundamentais mais fortes do que toda normatividade jurídica. porque o valor justiça é indispensável.. Quando estudamos o direito natural.). Onde a justiça não é sequer perseguida e onde a igualdade. Lutamos por direitos humanos e os pressupostos jusnaturalistas. o respeito à diferença e à paz. O direito natural não se reduz ao 90 o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado. quando submetidos à mutação. temos uma grande e árdua tarefa: a de refletir sobre essas questões. Desejamos direitos naturais como a liberdade. a tal ponto que uma lei que os contradiga carece de validade. Pode haver leis tão injustas e danosas socialmente que é preciso rejeitar-lhes seu caráter jurídico (. a lei não apenas é direito injusto. ao mesmo tempo em que se desvela como seu maior desafio. O maior problema da doutrina jusnaturalista está em compreender a seguinte questão: o que é a justiça? Seria possível encontrar critérios que nos permita estabelecer definitivamente o que é o justo? Essa pergunta constitui o pano de fundo do pensamento jusnaturalista. não estamos afastados da nossa realidade concreta. que constitui o núcleo da justiça . Todos nós. São princípios e não normas. mas em geral também carece de juridicidade”. falta-lhe validade (.. os anseios da doutrina jusnaturalista estão presentes na própria experiência vivida.de Gustav Radbruch (1878-1949) expresso na obra Filosofia do Direito (1932) apresenta claramente essa relação entre validade e justiça: “Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça – por exemplo. não se confundem com os desdobramentos posteriores. ou seja.) Oos juristas também devem encontrar a coragem para rejeitar-lhe o caráter jurídico. é conscientemente negada pelas normas do direito positivo.. a igualdade. mas imersos no pensamento dos seres humanos comuns ou medianos. independentes de credo. temos interesse por uma vida digna. justa. Podemos entender por direito natural os princípios que norteiam as fontes geradoras da norma jurídica e que também atuam efetivamente em sua aplicação. Os direitos naturais não configuram a base fundamental para a vida em sociedade? O Direito pode estar desvinculado dessa dimensão? Apesar dos esforços de muitos filósofos e juristas ou de juristas-filósofos. 8 . O direito natural é a própria expressão da natureza humana.Hobbes. capaz de promover a paz. somente possível em razão do poder coercitivo do Estado. à vontade do soberano que não é outra senão o interesse pelo bem comum. O direito natural. sua 87 O item 8 é de autoria de Wellington Trotta 91 . na certeza de que o mesmo é assegurado pela paz. normas de direito positivo com raiz costumeira e normas de direito positivo com fundamento no direito natural. O poder soberano no sistema hobbesiano é aquele exercido por um homem ou por uma assembléia de homens. não estabelece nenhuma relação de bilateralidade com este ou aquele membro da sociedade. mas a natureza humana. Temos. Os homens passam a viver sob a “espada pública” da lei. mas um direito costumeiro possui elementos do direito natural. Locke e Rousseau.1 . Nesse momento. do estado de guerra permanente de todos contra todos ao Estado enquanto centro ordenador da vida em sociedade. a segurança e o bem estar de todos os súditos.unidade necessária ao interesse do bem comum. não é figura contratante. O seu lugar ontológico não é a cultura. celebra-se o pacto maior quando todos põem suas vontades particulares ao serviço do bem maior. isto é. condição de eficácia dos pactos firmados. não resulta do mundo da vida. embora sendo fruto do pacto firmado por todos. portanto. o poder soberano é instituído no momento em que uma multidão de homens passa do estado de natureza ao Estado político.Thomas Hobbes (1588-1679) 87 No entendimento de Thomas Hobbes (1588-1679). 8.juiz capaz de impor uma só vontade . na verdade. uma vez cedido e transferido o domínio que cada um tem sobre si mesmo em favor do Estado .sentido de um direito costumeiro. Destaca-se que esse soberano. se confunde com os próprios princípios gerais do direito que estão na base da elaboração das normas e na sua aplicação ao caso concreto. não faz parte do pacto. todo e qualquer contrato válido deve ser cumprido. pois o soberano em suas determinações o tem como força instrumental na execução da justiça. O soberano é o supremo mandatário. caso assim não proceda. o soberano não pode promover injustiças e insegurança no plano interno e no plano externo. designou seu representante para exercer autoridade necessária e eficiente ao interesse da unidade dos homens. pois isso é a perfeita expressão de justiça. Sendo o Estado conditio sine qua non à preservação da paz e da justiça. os limites da soberania exercida por um só corpo político absoluto estão relacionados ao exercício de sua função. Finalizando. a garantia dos interesses firmados. Aquela multidão de homens quando instituiu o Estado. o firme e violento contra-ataque do seu exército é a medida da segurança territorial de toda e qualquer invasão externa. no respeito aos contratos válidos. Os membros dessa sociedade podem trabalhar. Sua ação é sempre justa.ação fundamenta-se no preceito erga omnis. exerce o poder no firme propósito de manter a paz e possibilitar as condições necessárias ao quotidiano da vida. não há nenhuma divisão de poder. ou seja. instala-se a insegurança. tanto no plano interno quanto no externo. é apenas instrumento de coesão das forças existentes. os limites do soberano. ter propriedade. visto que numa sociedade fundada na lei. sua finalidade consiste na esperança de todos celebrando e respeitando contratos. Tanto o bem 92 . a beligerância propriamente dita e sua permanente pré-disposição: a insegurança total. sair de casa sem nenhum medo de saque. utilizar as estradas em segurança. O soberano deve ser forte para impor sua autoridade. Entretanto. o receio da punição leva o respeito à lei por parte dos súditos. o poder soberano. garantindo justiça e paz. é o retorno ao estado de natureza. Em nome dessa obediência e da representatividade. expandir riquezas e dormir tranqüilamente. desenvolver a indústria e o comércio. sendo portanto livre no exercício do poder. Tais meios são absolutos. a guerra de todos contra todos em ato e potência. este mesmo Estado detém os meios necessários ao fim perseguido. Seu poder não é um fim em si mesmo. em troca oferecendo toda obediência possível. a fragmentação. O soberano representa a soberania do Estado e guarda zelosamente a sociedade constituída. Se de fato isso ocorre ou não na ordem material. Toma-se John Locke (16321704) por fundamento em razão de uma tese muito simples: ao se debruçar sobre a Constituição brasileira de 1988. Destarte dividiu-se o presente texto em três tópicos e uma conclusão. situando-o na tradição filosófica como um pensador preocupado com a ordem legal nas relações de sociedade. Quando esse fim não é alcançado e os súditos passam a viver sob o estado de insegurança. do trabalho.2 . instituído para fazer valer o bem comum. o que seria o retorno à barbárie. destaco o sentido de legalidade tanto como premissa fundamental para o pensamento de Locke. como vítimas de injustiças. não encontram no soberano o poder de solução (podendo ser até o soberano agente de injustiças e insegurança). N terceiro e último tópico. este é o legítimo representante daquele. 93 .John Locke (1632-1704) A proposta do presente seminário é analisar os conteúdos daquilo que comumente entendemos por direitos civis e em que medida o pensamento lockiano é suficiente para responder as exigências das novas relações políticas existentes em nossos dias. constitui um problema a ser devidamente estudo. da propriedade e da divisão dos poderes políticos com o propósito de organizar um governo civil capaz de atinar para as expectativas dos indivíduos. 8.do povo quanto o bem do soberano são inseparáveis. O primeiro tópico trabalho a noção de direitos civis a partir da Carta de 1988 sem travar nenhuma discussão doutrinária. garantir sua vida da melhor maneira possível. No segundo tópico faço uma pequena resenha do pensamento político de Locke. logo se percebe os valores da livre iniciativa. como uma realidade construída enquanto algo necessária ao bom termo da sociedade. o fim de todo Estado: justiça e segurança. manter sua existência. só lhes resta o uso da razão. mas também como necessariamente responsável pelo corpo social. portanto os direitos civis assumem a dimensão de necessidade social. Esses são os elementos que informam os direitos civis na constituição brasileira de 1988. A satisfação do indivíduo implica no equilíbrio da sociedade que é pensada como um corpo representado na perspectiva dos seus componentes. Tomemos como ponto de partida o significado de direito natural para depois situar seu pensamento. no seu art. pode-se pensar com Locke que o corpo político tem por fim a administração dos conflitos dos homens em sociedade no tocante ao respeito do direito de propriedade. Pode-se dizer que a propriedade assume um caráter imprescindível nas relações político-sociais. Entende-se que tais direitos são essenciais não só ao plano do indivíduo como também ao plano coletivo. 5º. 8.Noção de direitos civis dentro da Constituição de 1988 Primeiramente é preciso entender o significado de direitos civis e com isso verificar o grau de responsabilidade que a constituição de 1988 impôs ao Estado brasileiro na consecução de seu fim. A propriedade corrobora o nível do indivíduo na sociedade. à liberdade.Jusnaturalismo e a doutrina política de John Locke Partindo. Por direitos civis pode-se entender todos os direitos concernentes ao homem no tocante à vida. focalizou-se o item propriedade como problema central. O cientista político italiano Guido Fassò assevera que: 94 .2. No entanto.1 . porque implica o nível de liberdade do indivíduo e o sentir-se cidadão de fato.8. Para pensar os direitos civis (aqueles individuais e coletivos) face à exclusão social que atormenta a vida brasileira. para isso é preciso que analisemos o pensamento desse filósofo inglês.2. à segurança. Isso porque a propriedade no nosso sistema político assume a possibilidade do homem se manifestar não somente como igual. de tal premissa. à igualdade e à propriedade nos termos estabelecidos pela lei. pois.2 . A propriedade pronuncia o real sentido de cidadania porque sou cidadão quando disponho de mim mesmo como ser capaz de produzir. é anterior e superior ao direito positivo e. nenhuma diferença qualitativa no que diz respeito à felicidade. 95 . podemos perguntar ao velho Locke o que levou o homem a deixar o estado de natureza. cravadas no cotidiano legal da sociedade. em caso de conflito. aparentemente. posses e liberdade. para fundar uma sociedade civil. prosperidade diretamente relacionada ao sentido de propriedade. que para o filósofo inglês pode ser sintetizada em vida (bem estar). É nesse contexto que surge a figura de John Locke como um verdadeiro filho do século XVII. à propriedade e ao bem estar dos homens. A tese jusnaturalista moderna compreende que o direito natural expressa uma relação de princípios compreendidos pela razão. Para Locke. que por sua vez determina a forma de organização coletiva visando um modo de produção de bens à vida material. Este direito natural tem validade em si. Enquanto este constitui uma teoria dos direitos subjetivos. a começar pela distinção entre junaturalismo antigo e jusnaturalismo moderno. 88 Em contrapartida há especificidades dentro do pensamento jusnaturalista. O jusnaturalismo de Locke pressupõe uma ordem universal a partir de um Deus que criou os homens para o propósito segundo o qual. já que esta toma daquela a irrestrita liberdade e não apresenta. todos pelo trabalho. Tais direitos não seriam uma construção dos Estados ou das legislações. Enquanto epistemológica promove a compreensão da propriedade como chave dos movimentos políticos. Nesse contexto. todo homem tem direito ao fruto do seu trabalho. Nesse aspecto. situação de relativa paz. logo a propriedade assume o status de categoria político-epistemológica.) Dicionário de ciência política. 2000: 655. mas um ditame da justa razão que mostraria aos homens os limites daquilo que convém. Norberto (org. um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). E ele que deve prevalecer” . 88 Bobbio. a pudessem está construir sua prosperidade.“Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’. ou se quisermos como Locke. ou seja. Brasíkia: UnB. aquele se assenta na tese de que o direito natural deveria representar um sistema de normas objetivas. descoberta pela razão. que é justamente a capacidade de compreensão existente nos homens. O poder para Locke é sempre uma relação entre os homens. liberdade e posse. afirma Locke: “Ninguém pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem”. É na propriedade que os homens dimensionam suas possibilidades e constroem a felicidade por meio do trabalho.Locke. por isso a lei será o novo referencial. e que precisam contratar os meios pelos quais essas concessões serão respeitadas. e a sociedade civil apenas deve. tal princípio. Seu julgamento sempre será parcial e voltado para si mesmo. a ordenação precisa dessa mesma conduta. uma renúncia coletiva capaz de estabelecer padrões possíveis de conduta. com certeza. como propriedade: vida. capaz de resolver tudo pela onisciência. Locke aponta a lei como guardiã dessa vontade expressa pela racionalidade. uma espécie de ação por reflexo. A sociedade civil não tem outro fim senão defender tal valor. O poder absoluto não visa o bem comum. gênese do bem estar social. o imperioso é a vontade particular. Sendo a sociedade civil uma construção pelo consentimento. Nesse ponto. responderia que vivendo sob a sociedade civil o homem terá mais segurança para desfrutar daquilo que ele concebe. Em Locke não há como separar felicidade de liberdade. Em torno de tais perspectivas funda-se uma sociedade que será absorvida por uma organização política capaz de promover a justiça sob o primado da lei. No sistema absoluto. contrária aos interesses de todos. tal necessidade existencial. pela legalidade. é preciso que haja uma lei definidora para julgar corretamente cada caso apresentado ao conselho. lato sensu. É preciso a constituição de um juiz permanente. elaborada pela 96 . Isso porque pelo direito natural somos todos iguais. onde o poder total está em sua volta para inteira satisfação. Locke não concebe uma sociedade civil vivendo sob o arbítrio de um poder absoluto. justiça de bem estar comum. pois ameaça à propriedade e o resultado do seu trabalho. As garantias devem ser iguais para todos no corpo político. observa-se imediatamente a razão como instrumento dessas vontades particulares consentidas. imparcial e que governe seu julgamento sob a égide da lei. conhecido. riqueza sem esforço permanente. É a lei e não mais o absolutismo o parâmetro da vida em comunidade. trabalho de propriedade. ratificar tal princípio. sua finalidade é elaborar leis. por isso é supremo e a ele são submetidos os poderes executivo e federativo. que a sociedade sob um poder político. O Poder Legislativo só é o ordenador da sociedade porque tem representação popular e sua destinação é elaborar leis justas e precisas ao bem comum. o garante da justiça. Os exercícios dos poderes Executivo e Federativo podem ser realizados pelos mesmos membros. Locke deixa claro em seu Segundo Tratado Sobre O Governo Civil. O Estado não existe para satisfazer um grupo de pessoas. poder permanente na administração dos negócios públicos escolhidos pelo Legislativo. do bem estar comum. seu surgimento só pode ser construído pela discussão. bem como na execução da justiça entendida como bem estar comum. símbolo da sociedade civil. O Poder Federativo é uma extensão do executivo. quanto à guerra. o Estado. Outra característica do Legislativo é que sua atuação não é permanente. distintos do Legislativo. não pode transferir sua competência a outro poder. Atua no âmbito comunal. nos problemas intra-sociedade. e o fórum dessa discussão é o Legislativo. justamente associada aos interesses dos homens que deixaram as incertezas do estado de natureza para 97 . Nele está a esperança da preservação da sociedade que se constituiu para tirar o melhor proveito possível da propriedade. e que sua ação não seja mais que a chancela política de seus interesses. quanto à paz. Se a lei obedece ao critério da razão. Esse poder supremo é a representação da sociedade. orgânico. sua extensão visa a permitir que a sociedade seja a verdadeira fonte de poder. O Poder Legislativo não passa de representação popular. somente existe para promover a paz na possibilidade da segurança permitir o gozo e o uso da propriedade. sua função é relativa aos negócios estrangeiros. uma vez elaboradas extinguese a legislatura e seus membros voltam a ser súditos. chamado por Locke de poder supremo. A sociedade é um corpo político. sua ação positiva visa toda comunidade.mesma sociedade civil por meio de representação parlamentar. cujos membros não podem pertencer a outro poder. O Poder Executivo é aquele que executará as leis. O Legislativo sendo expressão da vontade da sociedade. comandada pelo princípio da legalidade que se constrói no parlamento. e sendo assim. forçosamente podemos pensar que o filósofo inglês trouxe algo de diferente. Para Locke.viverem sob uma ordem legal. por fim. Ao construir sua tese de que o homem abandona o estado de natureza e contrata com outros homens a sociedade civil para a preservação da propriedade.3 – Poder Legislativo e as leis como premissas de segurança política Ao iniciar o capítulo XI do Segundo Tratado. isto é. Na formulação política lockiana. ao que o nosso autor chama de propriedade. o papel do Poder Legislativo é de ordem primordial. Se o Poder 98 . Todavia. portanto não levando em consideração aqueles que não possuem alguma propriedade. o Executivo para aplicá-las. e os homens iguais. o Estado declarando guerra à sociedade em razão de sua insubordinação. seus atos não podem contrariar tal princípio. que sendo a propriedade um direito natural. portanto. Locke afirma que o corpo político está subordinado à sociedade. por fim estabelecer funções de poder distintas para que não haja arbitrariedade por parte dos poderes constituídos. tem a função de estabelecer normas necessárias à existência da sociedade como um corpo político. o poder legislativo institui normas para comandar a sociedade. supor que todos aqueles que formam uma sociedade devem ter direitos resguardados por ela. inclusive os que não possuem a si mesmos. e assim não acontecendo. o Poder Legislativo assume o status de poder supremo dentro de uma sociedade que pretende como governo a própria legalidade. enseja o direito à resistência e.2. sem distinção devem ser contemplados no seu direito ao uso. posse de bens e liberdade. todos. Locke enfatiza que o objetivo pelo qual o homem ingressa na sociedade civil consiste em construir normas para garantir a propriedade e. daquilo que constituiu pelo trabalho. gozo e disponibilidade. Locke está pensando naqueles homens proprietários de terra. por relação. nesse sentido cabe ao Legislativo o papel de edificá-las na proteção da vida. podese. Nesse sentido. mesmo não atentando para tal princípio. 8. o dissolverá para constituir um outro Legislativo para um novo governo. em seus atos.89 acorrentado por cadeia de elos convencionados. Assim JJ Rousseau (17121778) inicia a famosa obra. Mas o que importa é destacar a legalidade submetida ao povo. tais poderes públicos somente existem em função do soberano que é o povo. com uma observação pertinente: a liberdade não é algo relacionado à convenção ou mesmo uma prerrogativa legal. O contrato social. Caso ocorra. s/d: 28.Legislativo agir de forma diversa de sua destinação. algo intrínseco à própria condição humana. caberá ao próprio povo apelar para os céus no sentido de desobediência civil. o Legislativo submetido ao povo e a administração submetida a esse mesmo povo. O Contrato Social. logo seria absurdo um governo ou mesmo um Estado que fuja de suas funções essenciais. Para Locke. JJ. caberá ao povo destitui-lo e formar um outro que atenda ao pacto firmado como fim último. Claro que essa legalidade pode se tornar algo conservador para aqueles que estão fora do círculo dos proprietários que por sua vez organizam a sociedade. de administrar os limites das ações humanas em sociedade. 9 .Jean-Jaques Rousseau (1712-1778) “O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferro”. existencial. 99 . RJ: Edições de Ouro. ou se todos os poderes. não pode se furtar do dever de contemplar os seus membros em suas múltiplas expectativas. O dado da exclusão social é sem sombra de dúvida o fato de não possuir propriedade. mas uma condição natural. não respeitarem o povo. visto ser a liberdade uma necessidade pré-social. que é o verdadeiro soberano. ou pode se destituído de suas funções para que um outro modelo leve em conta os homens como realmente iguais. ou pelo menos não possuir a si mesmo como tal. Os homens acordam entre si os limites de suas ações para que esse limite seja administrado pela sociedade na pessoa do poder público. Ou o Estado exerce o seu papel na contemplação dos seus fins. isto posto leva ao raciocínio que o Estado em sua função precípua. É a liberdade a única e possível condição legítima de organização social. A legalidade é o espírito do sistema político lockiano. onde repousa toda autoridade subordinada à 89 Rousseau. a suprema fonte de poder da sociedade. O pacto social visa a conservar a liberdade garantindo a posse e sua transformação em propriedade pelo trabalho. e o gênero humano. o estágio primitivo já não podia subsistir. procurando manter-se tão livre quanto livre fora no estado de natureza. instância deliberativa do corpo político.vontade de uma idéia coletiva. positivamente sob forma de lei. s/d: 35). emanada do soberano. “Qual é o fim da associação política? A conservação e a prosperidade de seus membros. supõe que ocorreu nas condições em que os homens tinham pela frente obstáculos prejudiciais à sua conservação e limite de forças que cada um dispunha. sustentada por convenção e interesses mesquinhos. Rousseau concebe vontade geral como expressão de um desejo de todos. E qual é o meio melhor de que se conservam e progridem? Seu número e população” 90 O contrato social tem como fim buscar uma associação que guarde a pessoa e os seus bens. mas a materialização do soberano. 100 . a escravidão como antítese é a plena renúncia dessa humanidade. A 90 Idem: 120. pela cultura do cultivo e da produção. se não mudasse de modo de vida. Foi para garantir a liberdade e os bens que o homem superou as inconveniências do estado de natureza e instituiu o que chamamos de sociedade civil. a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação” (Rousseau. Os homens trocaram sua liberdade irrestrita pela liberdade civil. em que o povo se assume como ser livre sustentado pela igualdade. pereceria. unidos pelo mesmo objetivo. Sendo assim Rousseau dimensiona a liberdade como valor absoluto. como também não se organiza para proteger e gozar a propriedade por mais amplo que seja o seu conceito. A liberdade é a própria qualidade humana. cada um obedeça a si mesmo. Essa mesma vontade geral não é uma soma de vontades particulares. porém. Nesse sentido todos os cidadãos são iguais. ora garantida pela vontade geral. Tal passagem. “sendo. a do estado de natureza ao estado de sociedade. vontade comum. em que todos. A sociedade civil não se estrutura para livrar-se do medo permanente do homo homini lupus. Rousseau entende que não se pode representar vontades. estabelece todos os direitos e deveres dos cidadãos. mas o poder soberano não é obrigado aos súditos: “não há nem pode haver qualquer espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo. representando interesses particulares. O soberano só pode ser o povo no seu momento de deliberação legislativa. e no governo que se estabelece a relação do todo com o todo. que em Rousseau não existe a possibilidade do poder legislativo existir fora do soberano. visto que o soberano embora permanente enquanto garante da vontade geral se dá em assembléia. Gostaríamos de ressaltar. sua instituição obedece aos princípios da liberdade e da igualdade. o soberano não admite em seu seio homens desiguais. O poder executivo “é um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano”. ao finalizar o presente texto. poder absoluto sobre seus membros. pois se assim não fosse a soberania não seria uma emanação de poder e sim de lutas individuais. ou seja.igualdade é uma condição de semelhança na sociedade civil. nem sequer o contrato social” (45). de exposição da vontade geral. que só existe enquanto possibilidade jurídica graças à legitimação desta por parte do soberano. fonte da vontade geral. O limite do poder soberano está adstrito ao contrato social naquilo que se convencionam naquilo que ficou firmado como interesse público. O poder soberano exerce a função de ordenar a vida social. todos os súditos são obrigados ao poder soberano. meio que fixa. administrar as leis promulgadas. encarregado da manutenção das liberdades civil e política. inclusive sobre a propriedade. aquele que irá executar. do soberano com o Estado. corpo político da sociedade civil. O povo não pode prescindir do seu direito-dever de participar da vida 101 . É o interesse público o norte do poder soberano em suas deliberações. O pacto social dá ao poder soberano. O poder soberano pela sua própria natureza é quem institui o poder executivo. é o soberano a legitimação da ordem social onde se dará sob forma de assembléia. Não podemos esquecer que Rousseau desconsiderava importante qualquer mediação parlamentar. na lei como força da vontade geral. não podemos confundir o soberano com as instâncias administrativas do poder. a imensidão dos Estados. a ação do interesse particular. comissários do povo. é colocar sob perigo e mesmo arruinando toda organização estatal constituída. O povo é quem ratifica a lei. as conquistas. os abusos do governo fizeram com que se imaginassem o recurso dos deputados ou representantes do povo nas assembléias da nação” (Rousseau. nula é toda lei que não leva sua chancela. “A diminuição do amor à pátria. s/d: 131).política do seu Estado. É importante ressaltar que os deputados são 102 . abrir mão desta condição é arruinar todo o corpo político. A233-4. Durante os anos de 1747 e 1754 viveu momento de grandes dificuldades. contanto que não cause dano à liberdade de os outros (isto é. Schultz. A. Mais tarde em 1770 passou no concurso para professor ordinário com a dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis. dirigido pelo pastor pietista F. XVII. em uma cidade da Prússia Oriental denominada Königsberg. Kant recusava adulação em relação a protetores poderosos.Parte VI – A filosofia prática de Immanuel Kant (1724-1804) “Ninguém pode me constranger a ser feliz à sua maneira (. Entre 1740 e 1747 estudou na universidade de sua cidade freqüentando os cursos de ciência e filosofia. mas apesar das condições desfavoráveis estudou muito se atualizando. Por volta de 1778 chegou a receber um convite por parte do barão von Zedlitz para assumir uma cátedra em Halle. 103 . mas nada vale na prática (1793). segundo uma lei universal possível. e que pode coexistir com a liberdade de cada um. ao direito de outrem) aspirarem a um fim semelhante. Nesse período precisou trabalhar como preceptor.) mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa.” (KANT.. I. Uma das características mais marcantes do caráter moral de Kant além de metódico e sistemático.) 1. Estudou no Collegium Fridericianum. corrente radical do protestantismo prussiano. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria.Introdução Immanuel Kant nasceu em 1724. Naquela época o professor na categoria de livre-docente recebia somente um valor correspondente ao número de horas de ensino e ao número de alunos que freqüentavam o curso. Em 1755 obteve o título de doutor e conseguiu lecionar na Universidade de Königsberg como livre-docente. foi sua indeclinável aversão por qualquer forma de carreirismo. de forma totalmente desinteressada em relação a qualquer possibilidade de fama ou riqueza. Sua mãe o educou segundo os princípios do pietismo91. o que lhe renderia 91 qualquer forma de Movimento de intensificação da fé. Nosso autor se concentrava em sua pesquisa filosófica. Nasceu numa modesta e numerosa família de artesãos.. nascido na Igreja Luterana alemã no séc. um pagamento pelo menos três vezes maior do que o de Königsberg. Kant recusou tal oferta e com ela outra referente a um cargo público vinculado à mencionada cátedra. Em 1781 nasceu sua primeira crítica denominada de Crítica da Razão Pura, posteriormente em 1788, a Crítica da Razão Prática e, em 1790, a Crítica da Faculdade de Julgar. Cumpre dizer que este autor situou-se dentro da atmosfera intelectual que caracterizou o iluminismo alemão. O seu criticismo estabeleceu limites à razão humana quando afirmou que só podemos conhecer aquilo que nós mesmos criamos. O seu pensamento deve ser estudado como uma nova forma de filosofar que nasceu no interior das mudanças estruturais que tipificaram a própria modernidade: “A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.”92 Essa nova maneira de filosofar reivindica como pressuposto fundamental a liberdade, uma liberdade de fazer uso público da razão em todas as questões sem a direção de outrem. Esse uso público da razão significava para Kant a liberdade para pensar enquanto intelectual e a possibilidade de expressar suas idéias ao público leitor.93 Após a morte de Frederico, o Grande, monarca esclarecido, em 1786, seu sucessor, Frederico Guilherme II, desenvolveu uma política antiiluminista. Kant recebeu uma advertência desse novo monarca que havia intensificado a tutela e a censura, por ter publicado a obra A religião nos limites da simples razão (1793). Kant acabou por silenciar suas críticas diante da advertência proferida pelo Gabinete Imperial. Após argumentar em favor do uso público da razão, prometeu obedecer, o que para alguns configurou momento de grande triunfo para os inimigos de uma filosofia crítica e inovadora. 92 93 Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, AXI. "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” (1783) In: Textos Seletos. Edição bilíngüe. Petrópolis: Editora Vozes, 1974. 104 O criticismo transcendental sofreu uma interpretação de cunho idealista, especialmente no pensamento de Fichte, a despeito de sua resistência e desprezo a essa interpretação. Nos seus últimos anos tornouse quase cego, perdeu a memória e a lucidez intelectual, sobrevindo sua morte em fevereiro de 1804. 2 - O conceito de liberdade no pensamento de Kant Para Kant, o homem está submetido às leis da natureza (determinismo) e, ao mesmo tempo, às leis da liberdade. O homem é capaz de perceber que ele próprio é a causa dos fenômenos que existem no mundo, ou seja, compreende que a razão humana é livre e determinante e, portanto, o homem possui uma liberdade que o difere dos animais. Kant denominou essa especificidade do homem de liberdade transcendental. É justamente no âmbito da vontade94 ou razão95 prática que posso perceber essa liberdade no seu uso prático, ou seja, a liberdade prática ou independência da vontade pode ser demonstrada quando a razão nos fornece a “regra de conduta”96, quando entra em jogo o que devemos ou não fazer. É exatamente nessa experiência interior, exclusivamente pessoal, que conhecemos a idéia de liberdade transcendental como um tipo de causalidade da razão capaz de determinar a vontade, a agir com ou sem as influências de impulsos sensíveis (interesses). O que Kant entendeu pela esfera da prática? Kant concebeu a liberdade transcendental, ou seja, o homem é dotado de livre-arbítrio e, portanto, tudo o que se relaciona com essa dimensão do livre-arbítrio “é chamado prático”.97 Resulta dessa afirmação que devo entender por prático o que diz respeito à moral e ao direito. Então, a liberdade prática, que significa liberdade da vontade, é uma variante da liberdade transcendental. Deve-se observar, portanto, que este autor se filiou a uma 94 Faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão. 95 Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar idéias universais; raciocínio, juízo. 96 Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A803 / B831. Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A802 / B830. 97 105 tradição filosófica que estabeleceu a separação entre uma faculdade superior (a razão) e uma faculdade sensitiva (as inclinações). Nesse sentido, a independência da vontade de motivos empíricos está estritamente relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana. Porque a moralidade implica o conceito de autonomia, que é conseqüência da existência de uma vontade livre de motivos sensíveis ou direções estranhas. Kant precisou de uma liberdade transcendental relacionada com a dimensão racional do homem para construir a sua teoria moral. Seu argumento se baseia na idéia de que sempre que nos pensamos como livres reconhecemos a consciência da possibilidade de autonomia. Se como ser racional o homem é dotado de uma vontade livre capaz da elevada função de permitir a moralidade, seria contraditório que este mesmo homem permanecesse sob tutelas. E, assim, associada à idéia de liberdade está a idéia da autonomia, que, por um lado, é entendida como liberdade em relação a direções estranhas e, por outro, como a liberdade da faculdade da vontade capaz de autolegislar. 3 - A ética e o imperativo categórico Immanuel Kant surgiu no contexto do Esclarecimento ou Iluminismo com sua famosa teoria moral que ressaltava o ser racional como absolutamente responsável por sua conduta. Nesse sentido, consagrou uma ética das normas contra as éticas finalistas. Destacou que a busca pelo bem não poderia fazer parte da moralidade, mas o cumprimento da lei pela lei98, enfatizando, com isso, que a ética significa a obediência à lei moral, lei esta que está em mim e que se identifica com a minha consciência. Sua teoria moral apresenta, portanto, três características fundamentais: o aspecto cognitivista, ou seja, a crença na possibilidade de decidir as questões prático-morais com base em razões, o que implica dizer que os juízos morais são passíveis de serem fundamentados; o sentido formalista, pois elabora um princípio moral (imperativo categórico) limitado às questões referentes à justiça e não ao “bem viver”; e, por fim, 98 Crítica da Razão Prática (1788). Lisboa, Edições 70, 1994, A111-115. 106 1995. Ao contrário. uma vez que os juízos morais devem erguer uma pretensão de validade universal. Esse imperativo formulado por Kant configurou um exercício típico do pensar esclarecido (iluminismo). Os princípios podem ser técnicos se valem para todos os seres racionais. “Observações críticas à Crítica da Razão Prática”. XLIV. O princípio moral vale universal e incondicionalmente. Em uma de suas formulações determina: “Age de tal maneira que trates a humanidade. 159 107 . na medida em que abstrairia da sensibilidade e buscaria “um ponto de vista universal”100. ela existe até mesmo contrariando o “eu quero”. válidos universalmente. os da moralidade.99 A ação adquire um valor moral. Vol. pois superei meus próprios obstáculos quando agi por dever. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Uma 99 nossa própria consciência a fim de identificar se as intenções que fundamentam uma determinada ação são moralmente interrogação estruturada numa indispensável compreensão das BRITO. A. Com isso.o caráter universalista. O seu princípio moral denominado imperativo categórico foi formulado pela primeira vez na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Assim. independente de qualquer inclinação pessoal. 1988. In: Revista Portuguesa de Filosofia. O formalismo moral de Kant refere-se à idéia de que a vontade racional deverá ser orientada por princípios a priori. a lei moral em Kant não precisa do aspecto volitivo no sentido do “eu quero” para existir. p. isso implica a capacidade do ser humano de agir segundo princípios ou determinar-se segundo a razão. mas condicionados pelo fim particular que se almeja. sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. os da prudência condicionam-se ao desejo e ao caráter do ser que age. Kant afastou o sentido do “eu quero” em favor do “eu devo”. que não aceitaria ser guiado por outrem. 544. empírico. tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro. p. mas entraria na perspectiva de todos os outros. J. princípios práticos objetivos que são válidos para todos os seres racionais – não decorrem de nenhum fim subjetivo.” Tal princípio funcionaria como um teste a ser realizado pela boas. 100 Crítica da Faculdade do Juízo (1793). 108 . a validade de uma máxima subjetiva somente poderia ser reconhecida pela razão como moralmente correta se apresentasse uma obrigação moral que qualquer um pudesse desejá-la. que significa a representação da lei como necessária à ação e que portanto converte a ação em dever. As leis éticas. as da liberdade denominadas de leis jurídicas e leis morais. Encontramos nesse ponto o problema inicial da filosofia do direito: a distinção entre as duas esferas.exigências antecipada. além das leis da natureza. ao contrário. temos o que Kant denominou de conhecimento teórico da possibilidade da regra prática e. no segundo. e um elemento subjetivo. No primeiro momento. o que efetivamente distingue as duas legislações não é tão somente o fato de uma legislação ser interna e a outra externa. que liga a representação da lei ao fundamento de determinação do arbítrio para realização de tal ação. Assim. A legislação jurídica diz respeito às ações sob o ponto de vista externo. o que configura o sentido de legalidade. Para entendermos melhor essa idéia temos que considerar que toda legislação – como diz Kant – possui dois elementos constitutivos. o dever como impulso. Nesse sentido. 4 .As leis da liberdade: as leis morais e as leis jurídicas Como nos mostra este filósofo. Na terceira parte da introdução geral. por reconhecê-la como válida. no caso da legislação jurídica temos o sentido de liberdade como exercício do arbítrio e no caso da legislação ética. mas em particular a idéia do dever como impulso. vinculam-se às determinações das ações e revelam a moralidade. de reciprocidade numa comunidade ética idealmente Esse imperativo categórico ou princípio moral serviria ao propósito de fornecer as condições de possibilidade para o desenvolvimento de um certo discernimento moral. a saber: o elemento objetivo. destacando a mera conformidade com o que prescreve a lei. a liberdade apresenta-se tanto no exercício externo quanto interno do arbítrio. Nesse sentido. o homem vivencia a tensão entre os impulsos e a razão e encontra. Kant concentra seus esforços na clássica distinção entre a legislação moral e a jurídica. Isso implica dizer que todos os deveres são também deveres éticos. pp. que não compreende esta última condição na lei e que admite também um motivo diferente da idéia do próprio dever é jurídica. diferentes da idéia do dever. dentre estas. há deveres éticos diretos (moralidade) e deveres éticos indiretos (legalidade). desde que sejam deveres. por ser mais ampla. 1994. 219. mas nem por isso sua legislação está sempre contida na ética”. porém não excluindo as externas.“A legislação que erige uma ação como dever. a legislação ética não pode ser externa (ainda que de uma vontade divina). Disto se infere que todos os deveres. todo dever é considerado dever de 101 102 103 104 La Metafísica de las Costumbres (1797). cuja determinação não pode transpor de modo algum em uma legislação externa. 218-9. e o dever.. Faz-se mister ressaltar com certa cautela que é preciso não esquecer que a legislação ética. 1994. 109 . de uma legislação externa. 225. cit. envolve também a legislação jurídica. Aquela. embora admita como impulsos em sua legislação deveres que desprendem de outra legislação. das inclinações e aversões e. pp. é ética. Op. Idem ibidem. pp. não um chamado atraente”.101 A implicação mais imediata desta distinção é o fato de que os deveres característicos da legislação jurídica são externos. ou seja. ao mesmo tempo como impulso. Madrid. pertencem à ética. Madrid: Editorial Tecnos. La Metafísica de las Costumbres (1797). têm que extrair-se de fundamentos patológicos da determinação do arbítrio. porque a legislação ética inclui também em sua lei o impulso interno da ação (a idéia do dever). Editorial Tecnos. o que justifica a afirmação de Kant a respeito da legislação ética como geral: “A legislação ética converte também em deveres ações internas. vemos facilmente que estes motivos. teremos a legalidade se houver uma simples conformidade externa com a lei. senão que afeta a tudo o que é dever em geral. simplesmente por serem deveres. Mas justamente por isso. quando “a máxima da ação [coincidir] com a lei”104 Há também deveres interiores que não são éticos e deveres exteriores que não são jurídicos.102 relacionada ao dever em Assim. pelo contrário. “a coincidência de uma ação com a lei do dever”103 e a moralidade quando o dever afigurar-se como impulso da ação. ou seja. das últimas porque tem que ser uma legislação que obrigue. No que diz respeito à esta última. pois não exigem a idéia de um dever interior. Kant relaciona o atributo de interno e externo ao conceito de liberdade. p. menoridade e os mais variados tipos de desrespeitos para com certas regras de convivência mútua. A esfera da ética vincula-se à liberdade interna e a esfera jurídica à liberdade externa.105 Os atributos de interno e externo apenas sinalizam para a forma de adesão. um outro critério de distinção que se baseia no sentido de liberdade interna e liberdade externa. O conceito de liberdade vincula-se necessariamente à idéia de uma sociedade. pois não podemos esperar que todos tenham motivação ética para o cumprimento das leis. 1986.194. V. 1995. pois se constitui no conceito limite capaz de conferir sentido e direção à conduta humana na esfera da vida em sociedade. Kant Lexikon. A liberdade torna-se o ponto chave entre as duas esferas. autonomia”. portanto. remete-nos à faculdade de agir no mundo exterior. Surge. p. 110 . observando ou não o animus com o qual é cumprida uma ação. Brasília: Unb. Então.578 apud Rohden. 1964.A liberdade interna e externa Depois de apreciar essa distinção entre legislação interna e externa. A partir desta concepção podemos dizer que o direito identifica-se com a idéia de autonomia. 79 GALEFFI. R. 125. Derivam da vontade humana legisladora. O conceito de direito coincide com o conceito de autonomia no sentido de que “A legislação própria da razão prática é a liberdade em sentido positivo. mas limitada pela mesma liberdade presente nas outras pessoas. Hildesheim. R. ou seja. A Política tensa: idéia e realidade na Filosofia da História de Kant. O primeiro tipo de liberdade refere-se à faculdade de agir segundo leis que a nossa própria razão nos fornece. liberdade ética e liberdade jurídica. daí o sentido de limitação recíproca. A Filosofia de Immanuel Kant. o 105 106 107 TERRA. As leis morais e jurídicas são leis da liberdade.106 As normas jurídicas e éticas derivam da razão e não da natureza.virtude. R. o segundo tipo de liberdade. leis que ordenam na medida em que somos livres. p. ou dizendo de um modo mais breve. São Paulo: Iluminuras.107 Esta relação entre direito e autonomia exclui qualquer possibilidade de violência. R. p. para esclarecer e justificar o seu conceito de direito. EISLER. a jurídica. 5 . como um legítimo representante do dizer que o direito se pensamento jusnaturalista. 111 . Kant. 1994.109 108 109 La Metafísica de las Costumbres (1797). Na verdade. Na relação entre liberdade e dever não podemos relacionar estritamente a liberdade interna com os deveres que Kant denomina de deveres para consigo próprio e a liberdade externa com deveres para com o próximo. no âmbito da ética e na esfera jurídica. deves considerar tuas ações primeiro desde o teu princípio subjetivo: todavia podes reconhecer se esse princípio pode ser também objetivamente válido”. diante do olhar dos outros. As leis externas positivas são aquelas cuja obrigação depende necessariamente de uma legislação externa efetiva. somos responsáveis por todas as nossas ações primeiramente diante de nossa própria consciência e depois. ou seja. em alguns casos. ainda que não haja nenhuma legislação jurídica a seu respeito. No âmbito da ética. pp. 1994. somos responsáveis frente à coletividade.âmbito da moralidade diz respeito à liberdade interna e o âmbito da legalidade à liberdade externa. somos responsáveis frente a nós mesmos. La Metafísica de las Costumbres (1797). as leis obrigatórias podem ser de dois tipos. 225. pp. 224. “Por conseguinte – afirma Kant -. Para Kant. a lei natural fundamenta a autoridade do legislador. entende que as leis positivas encontram seu fundamento nas leis naturais. ou seja. o que equivale fundamenta na moral. 108 Neste momento. Madrid: Editorial Tecnos. Tal relação exige a presença de dois seres humanos para a limitação recíproca da própria liberdade externa. a saber: as naturais e as positivas. na esfera do direito. As leis externas naturais são aquelas cuja obrigação é reconhecida a priori pela razão. embora a relação jurídica tenha como característica fundamental a intersubjetividade. No âmbito da legislação externa. confere a faculdade de poder obrigar outrem mediante seu arbítrio. Madrid: Editorial Tecnos. reforça a idéia do seu imperativo categórico no sentido de que prescreve a todos a necessidade de se pôr no papel de um suposto legislador para observar a possibilidade de universalização das máximas do agir. Podemos pensar a liberdade interna atuando nos dois momentos. como diz Rohden.111 Embora Kant afirme a existência de direitos inatos em À Paz Perpétua. na Metafísica dos Costumes ressalta que só há um único direito inato. BA99. 113 Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). 1995. ou. senão imediatamente à legislação concernente às máximas das ações (portanto. daí que seja também absolutamente necessária e não seja ela mesma suscetível de coerção alguma. “Razão Prática e Direito” In: Racionalidade e Ação. nem não livre. na medida em que pode coexistir com a liberdade de todo outro segundo uma lei universal.110 Kant estabeleceu a relação entre liberdade e arbítrio quando estabeleceu a possibilidade da liberdade ser percebida no sentido de autodeterminação pela razão. Col. 1994. porque não se refere às ações. V. 1992. da qual derivam os conceitos e leis tanto morais como jurídicas”. Kant. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. é o único direito originário. ROHDEN. pois fundamentou seu argumento no fato de que a vontade se refere tão somente à lei. Porto Alegre: Editora Universidade UFRGS/ Instituto Goethe – ICBA. Madrid: Editorial Tecnos. pois entende que as leis procedem da vontade e as máximas do arbítrio. pois 110 111 La Metafísica de las Costumbres (1797). O conceito de igualdade decorre desta idéia de liberdade como direito inato. 112 . Por conseguinte. 226. que no homem é livre. 1974 e Lisboa: Edições 70. ele é sob este aspecto livre do determinismo natural e tem uma vontade própria. pp. à razão prática mesma). não pode chamar-se nem livre. In: I. O arbítrio determinado diretamente pela razão pura é o livre-arbítrio. Madrid: Editorial Tecnos. somente podemos denominar livre o arbítrio”. 237. o arbítrio liga-se às ações e.Esse exercício nos permite conhecer nosso arbítrio e consequentemente nossa liberdade. pp. p.128 112 La Metafísica de las Costumbres (1797). portanto exige liberdade: “a vontade que não se refere senão à lei. 1994. pertencente a todo homem em virtude de sua humanidade”112 no sentido de independência do arbítrio de Apresentou na Fundamentação: “a liberdade tem de pressupor-se como propriedade da vontade de todos os seres racionais”113. o que implica dizer que o homem é livre por ser racional. “se o homem é capaz de determinarse por uma razão independente. que é a liberdade outrem: “A liberdade (independência do arbítrio necessitante de todo outro). Nesse sentido. Madrid. Kant justificou o ingresso no estado de direito a partir do conceito de racionalidade. a igualdade. a lei jurídica não é algo inato. 237-8 GALLEFFI.115 Essa circunstância nos leva a pensar que Kant nega a origem do direito como derivado da propriedade. direcionada a interesses particulares independentes de qualquer moralidade. nesse sentido. 1986. A Filosofia de Immanuel Kant. R. 1994. embora seja concebido como estado 114 115 La Metafísica de las Costumbres (1797). Trata-se de uma razão prática-jurídica e não pragmática. 6 . O direito consiste em limitar as ações: a minha liberdade de me apoderar das coisas encontra seu limite na liberdade do outro em agir da mesma forma. Este conceito torna-se um conceito limite que direciona a conduta dos indivíduos para uma vida em sociedade. Unb. Kant entende que só podemos nos considerar possuidores de algo quando há o reconhecimento dessa posse de forma não diretamente relacionada com a detenção física. Editorial Tecnos.A lei jurídica e a sociedade civil Para Kant.todos são igualmente independentes. mas um princípio da razão. mas surge do acordo entre indivíduos autônomos para justamente assegurar a realização da liberdade. A igualdade 114 inata é: “a independência que consiste em não ser obrigado por outros senão àquilo a que também reciprocamente podemos obrigar-lhes” homem íntegro e o conteúdo Na verdade. ser da formulação do imperativo categórico acima mencionado já se encontram no princípio da liberdade originária como elementos constitutivos dela. A racionalidade permite o reconhecimento recíproco e a unificação das vontades e. O direito é uma exigência da razão que apresenta aos homens um procedimento para solucionar conflitos. É a razão que nos impulsiona a abandonar o estado de natureza. pp. Brasília. sublinho mais uma vez que não é a experiência da violência como pensava Hobbes. ou seja. a qualidade do homem como sui iuris. pois o que seria a propriedade nos primórdios da sociedade senão o reconhecimento de uma posse arbitrária? O conceito de posse em Kant funda-se sobre a inata posse comum da superfície da Terra e sobre a vontade universal. 113 . onde não há uma razão privada. pp. portanto. p. N.50. A igualdade formal. a justiça pertence a ele. A legislação civil deve realizar o direito natural que serve de fundamento racional à legislação positiva. presente no texto “Idéia de uma História universal sob La Metafísica de las Costumbres (1797). Nesse sentido. Segundo N. Bobbio. Kant demonstrou uma grande aversão por um Estado do tipo paternalista que mantinha os súditos na condição de uma menoridade perpétua.de direito privado. em favor de um estado de direito. condenou o Estado eudemológico que pretendia tomar para si a tarefa de tornar seus súditos felizes. o Estado para Kant deve reconhecer em cada um a habilidade de ser seu próprio senhor e. pelo menos controlar os abusos. Brasília. 118 Ele acreditava que havia uma tendência natural da história humana para uma ordem jurídica universal. um ordenamento jurídico cosmopolita. 116 Isto posto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 1994. Bobbio. cuja meta seria assegurar a liberdade de cada um com base em uma lei universal racional e. Kant compreendia o direito natural como não estatutário e. portanto cognoscível pela razão de todo homem e. 1974. é uma conseqüência necessária do único direito inato: a liberdade. o Estado pode e deve usar a coerção mediante leis para senão eliminar. Petrópolis: Editora Vozes. portanto. com a doutrina do contrato e do direito natural. já que a verdadeira função do Estado não se confunde com essa tarefa. compreendendo o típico egoísmo humano. 1992. 118 "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” (1783) In: Textos Seletos. 117 Kant partiu em defesa desse modelo de Estado. Na sua idéia do homem como cidadão do mundo ou cidadania mundial. o Estado assume a figura de associação voluntária com vistas a defender alguns interesses. mas de oportunidade. Por felicidade entenda-se o pleno desenvolvimento de todas as suas disposições. Ednub. mas deve ser tão somente salvaguardar a liberdade que permita a cada um buscar a sua própria felicidade. nesse sentido. Edição bilíngüe. não permitir qualquer privilégio ou interesse especial protegido. Madrid: Editorial Tecnos. A 482-3 116 117 114 . mas um interesse comum e um tribunal capaz de assegurar e reconhecer os direitos de todos. 297-8. que não é igualdade de posses. por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liberdade”. que corresponde ao conhecimento sistemático da doutrina do direito natural (Ius naturae). Assim.119 O princípio universal do direito expressa a necessidade de coexistência dos arbítrios segundo uma lei universal. e nessa relação recíproca não interessa muito saber o fim a que se propõem. cujo interessado é o jurisperito (Iurisperitus). Kant inferiu duas máximas já mencionadas: o dever de hospitalidade e o direito de visita. Trata-se de uma relação jurídica particular que encontra de um lado o Estado e de outro um cidadão de um diferente Estado. Madrid. que constituem o que se chama direito positivo. Além da doutrina do direito e da encontramos a Ciência do Direito. 230.A doutrina do Direito Kant define a doutrina do direito como um conjunto de leis que se apresentam como leis externas ou exteriores. Para compreendermos o direito como idéia da justiça é preciso abandonar o campo empírico e dirigir-se à razão pura. distinto do direito privado que existia no Estado de Natureza. em última análise. estudo denominado pelo nome técnico de jurisprudência jurisprudência (Iurisprudentia). isto é. mas sim a forma da relação. mas entre arbítrios. trata-se de conciliar a liberdade de um com a liberdade do outro. Não se trata de uma relação entre um arbítrio e um desejo. aquele que conhece as leis externas em sua aplicação aos casos que se apresentam na experiência. Dessa idéia. pp. implica uma espécie nova de direito público em geral. Editorial Tecnos. 7 . a liberdade em sociedade. do direito público interno do Estado Civil e do direito público externo da ordem internacional. Uma lei universal do direito que determina que devo agir externamente de forma tal que preciso sempre respeitar a liberdade do arbítrio do outro nada mais é do 119 La Metafísica de las Costumbres (1797). 115 . Kant formula pela primeira vez na obra em foco o seu conceito de direito como “o conjunto das condições.o ponto de vista Cosmopolita” e que reaparece no opúsculo A Paz Perpétua e na Metafísica dos Costumes como Ius Cosmopoliticum. 1994. Kant entende que o conceito de direito diz respeito a uma relação externa entre pessoas cujas ações implicam-se mutuamente. 1990. O termo coerção pode ser entendido como a possibilidade de regular as relações humanas a partir de leis externamente válidas. Quando usamos a expressão coerção legal limitamos esse sentido para um tipo específico de controle baseado em leis positivas. ibidem. Editorial Tecnos. Thomasius122. há a possibilidade de conseguir provocar no outro certa conduta. sem nenhum componente ético ou intencional”. Num estágio pré-positivo. 231. mas tão somente com a forma. lembrando que: “A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve como auxiliar para este efeito. e concorda com o mesmo. A coerção garantias de que tal fato aconteça em que as leis positivas se vinculam e que podemos denominar de “coerção recíproca universal implica que se desista de procurar convencer os outros do que é ou não justo. Thomasius. pois está diretamente ligado a esse sentido de obrigar alguém a agir de uma forma e não de outra. está relacionado à coerção. e ANTISERI. Madrid.II.121 À primeira vista. G. Kant postula uma relação intrínseca entre direito e coerção. 116 . Mas inspirado em C. e REALI. explica como funciona tal coerção capaz de salvaguardar a liberdade. Cf. 1994. segundo uma lei universal”.que uma obrigação que me determina a razão: “age exteriormente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro.120 É preciso levar em conta os três elementos constitutivos do seu conceito de direito: o primeiro diz respeito apenas às relações externas. pode parecer contraditório relacionar o direito com a liberdade mediada pela coerção. mas sem efetivamente. O direito. Assim. e se fique limitado a regular a relação entre arbítrios. Tudo aquilo que é injusto é um impedimento para a liberdade enquanto esta está submetida a leis universais e a coerção é um obstáculo 120 121 122 La Metafísica de las Costumbres (1797). BOBBIO. D. aparentemente mais do que a moral. ou seja. São Paulo: Paulus. 817. História da Filosofia. pois o direito não concerne aos objetos particulares. é um direito intersubjetivo. o terceiro não se preocupa com a matéria do arbítrio. isto é. por meio da coerção. pp. Idem. o segundo estabelece a relação entre arbítrios. N. p. A origem da concepção coercitiva é atribuída a C. V. pois a intersubjetividade pode ocasionar lesões nos outros. enquanto serve para impedir um obstáculo posto à liberdade. SALGADO. cf. está de acordo com a própria liberdade. Cf ainda Aristóteles: “Livre é o homem que tem a si mesmo como fim e não o outro”( Metafísica. 126 123 124 O conceito de liberdade é comum à doutrina do direito (relacionada à 125 126 La Metafísica de las Costumbres (1797). 1111b).J. é injusto). ou seja. Do Contrato Social.123 Esta passagem indica que há certo uso da liberdade que se configura como obstáculo a um outro tipo de liberdade regrada e que a coerção. La Metafísica de las Costumbres (1797). 124 Com isso. a coexistência pública dos homens. 1996. que entendia a liberdade como a obediência à lei que o homem prescreve a si mesmo. Este modo de agir se afigura como uma forma deturpada de liberdade no sentido da capacidade do homem como ser racional. 117 . quando comenta a semelhança com a “lei da igualdade da ação e reação” 125. I. a definição Romana: “Liberdade é a faculdade natural de fazer o que se quer. se a autodeterminação é algo indisponível e envolve necessariamente um espaço público. então a coerção oposta a tal uso. p. Cf. III. Quando um certo uso da própria liberdade é um impedimento para a liberdade segundo leis universais (ou seja. 1994. nesse sentido. ainda Montesquieu. é indispensável ao direito. 232. ou seja. mas não de agir por livre escolha”( Ética à Nicômaco. Madrid: Editorial Tecnos. mas nada vale na prática” (1793) quando afirma que a lei da coerção recíproca corresponde à liberdade de cada um sob o princípio da liberdade universal e na Metafísica dos Costumes. p. J. pp. J. Cap. Esse vínculo da liberdade com a lei foi herdado por Kant do pensamento de Rousseau. V e XI. O acordo entre liberdade e coerção já havia sido apontado no texto “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria. 1995. 231. Espírito das Leis.2). 3.ou uma resistência à liberdade. fica excluída qualquer possibilidade de uma liberdade irrestrita ou irracional porque iria contradizer essa relação que fundamenta a moral e o direito e que ademais confere status privilegiado ao homem em relação à natureza. São Paulo: Martins Fontes. Se a razão implica liberdade. A idéia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. A liberdade exterior compatibilizada com a liberdade dos demais é a forma universalizada da possibilidade de convivência humana. 892b) e “o que não é senhor de si mesmo é capaz de desejar. 226-8. é justo”. a criação de um espaço público sem constrangimento injusto. Madrid: Editorial Tecnos. desde que o não impeça a força ou a lei”( Institutas. exercer a liberdade a qualquer custo ou o mal praticado por alguém fere a liberdade de outrem. ROUSSEAU. 1994. segundo leis universais. Belo Horizonte: UFMG. A ética e o direito Ao pensarmos o direito pensamos também a liberdade na idéia do arbítrio de todos unificados no conceito de vontade universal legisladora. Nesse sentido. Kant pode ser estudado como o filósofo do iluminismo. O sentido de justiça liga-se ao sentido de um estado jurídico. chama-se justiça pública. quando definiu o direito como o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal. 118 . e à doutrina da virtude (relacionada à condição formal da liberdade interna).311.condição formal da liberdade externa) afirmam a relação da liberdade com a lei. Kant teria inserido a temática filosóficodas condições transcendentais da experiência jurídica. A justiça consiste no respeito à vontade universal. 127 A relação da Constituição que consiste na vontade unificada. a Crítica da 127 128 La Metafísica de las Costumbres (1797). Kant estava vinculado a essa concepção liberal. 1992. uma vez que falar em direitos exige a existência de um “a priori originário”. ou seja. e o princípio formal de sua possibilidade considerado segundo a idéia de uma vontade universalmente legisladora. pois apresentou campos de cultura diferentes. a partir de um ordenamento instituído mediante a publicidade de suas leis para que todos possam usufruir de seus direitos: a Constituição. a liberdade. “aquela relação dos homens entre si que contém as condições sob as quais unicamente cada um torna-se partícipe de seu direito. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub. Madrid: Editorial Tecnos. Podemos dizer que os fundamentos passam históricos do por pensamento uma fase jurídico histórica contemporâneo necessariamente importante: o pensamento liberal do século XVIII . Bobbio. p.época de Kant. p. Assim surge o direito público da necessidade de coexistência inevitável. 1994. jurídico-política em termos de compreensão 128 Para alguns autores.73-4. com o sentido de estado civil somente é pensável a partir do conceito de autonomia. N. o que justifica a sua definição do direito estar formulada a partir do conceito de liberdade. Podemos até argumentar que ele formulou uma teoria da justiça como liberdade e que muito pode ter influenciado na elaboração dos fundamentos teóricos do Estado Liberal. igualdade. a relação que estabeleceu entre indivíduo. mas também pode relacionar-se com o sentido de cumprimento do dever por puro respeito à lei. a Crítica da razão prática. no âmbito prático e a Crítica do juízo no âmbito da arte. portanto. Princípios éticos universais como a justiça. o direito também exige um reconhecimento moral capaz de justificar a sua necessidade de limitação recíproca da liberdade. Por conseguinte. animado por um procedimento diferente do procedimento ético. na medida em que está intimamente vinculado à ética. contrato social como princípio regulativo. etc. Estado de Direito. mas também como transformação da nossa autocompreensão (racionalidade. Em particular. como a personificação do princípio da justiça. Ademais. mas ambos habitam o mesmo terreno. O Estado se revela. Habermas chamou (sob a ótica de sua teoria 119 . o que J. uma vez que não é possível pensar o direito sem necessariamente estar ligado à figura do Estado e ambos encontram sua fundamentação e legitimação na autonomia. é preciso considerar que para uma sociedade livremente associada. Ademais apontou noções como dignidade da pessoa humana. ética e direito se dirigem à conduta humana e. autonomia moral. reciprocidade. reputando indispensável a conquista da razão e da liberdade. conferindo sentido às normas jurídicas. personalidade e autonomia). portanto inspiram-se em valores morais comuns às duas esferas. A legislação jurídica não está adstrita somente ao âmbito da coerção. no Âmbito teórico. direitos naturais como princípios morais.razão pura. É possível que a preocupação de Kant com a fundamentação do cumprimento do direito como um dever moral se relacione com o fato de que o desenvolvimento humano e moral não acontecem senão por meio da interação social. sem dúvida. O direito é. Kant compreendeu a relação do direito com a moral a partir de uma intuição política e histórica da origem do Estado. como uma exigência da razão. pessoa moral e cidadão submetido às leis. liberdade. o direito pode ser entendido não apenas como imposição externa. dignidade da pessoa humana inspiram o direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 49-53. Vol.” obediência à lei. Kelsen e Radbruch. ligada à filosofia dos valores. E autores contemporâneos com suas éticas de inspiração kantiana como Jürgem Habermas e John Rawls. a saber: a Escola de Marburgo. HABERMAS. Stammler. uma valorizando a Crítica da Razão Pura. I. 1997. o que desvela a preferência pelo pensamento de Kant expresso na Crítica da Razão Pura. De tais escolas surgiram os mais importantes intérpretes neokantianos de uma filosofia voltada para a experiência jurídica como Renouvier. 129 120 . ligada às ciências sociais e jurídicas e a Escola de Baden. A fundação científico-positiva do Direito ensejou uma filosofia do direito inspirada no criticismo de Kant. Del Vecchio. p. J. Da filosofia kantiana surgiram duas correntes distintas. ou seja. a partir do qual se esboçara a passagem de uma análise do direito natural para o estudo da filosofia do direito. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. A Escola de Marburgo compreendeu o predomínio do problema lógico sobre o problema ético. o mundo do dever ser.da ação) de “duplo aspecto da validade do direito. outra se fundamentando na Crítica da Razão Prática. o mundo dos valores. 129 onde a legalidade pode ser obtida por meio da coação ou por consciência da necessidade de Essa relação entre ética e direito ultrapassa os limites da simples garantia dos direitos individuais e alcança também a importância de legitimar as leis jurídicas fundamentando-as na idéia de um sujeito racional autônomo na qualidade de co-legislador e no sentido da idéia de vontade geral. A Escola de Baden focalizou em especial os conceitos de valor e cultura. Na visão de alguns especialistas o termo positivismo foi utilizado pela primeira vez na escola de Saint-Simon. refere-se primeiramente à doutrina de August Comte (1793-1857) exposta nas obras Curso de filosofia positiva (1830-1842). 2000. cada escola jurídica oferece respostas a três indagações: o que é o direito. As escolas moralistas são aquelas que valorizam o direito natural e se caracterizam 130 Sabadell. se ligam mais a Condorcet do que a Comte. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ana Lúcia. De um modo geral. escolas que se inspiraram em outras dando continuidade às suas concepções. Nesse sentido. Discurso sobre o espírito positivo (1844). Várias escolas jurídicas surgiram ao longo dos anos. Catecismo positivo (1852) e Sistema de política positiva (1852-1854). segundo as próprias declarações deste. ou seja. em seu sentido estrito. 121 . renunciando a todo e qualquer conhecimento a priori. ou seja.Parte VII . suas regras.A origem do termo positivismo Sabemos que o termo positivismo. validade e conteúdos. p.As escolas Jurídicas Segundo ensina Ana Lúcia Sabadell130 podemos compreender a expressão “escola jurídica” como um grupo de autores que compartilham uma determinada visão sobre a função do direito. 17. como funciona o direito e como deveria ser configurado esse direito. Manual de sociologia jurídica. mestre de Comte e que o sentido de conjunto de idéias ou tendências intelectuais que atribui à constituição e ao progresso da ciência positiva uma importância preponderante para o progresso. segundo como designação de doutrinas que se ligam à de Comte ou que tem por tese comum a idéia de que só o conhecimento dos fatos é fecundo. Encontramos. inúmeras escolas rivais e outras que apresentam pontos de continuidade entre si. 2 . cada qual caracterizando sua época e sua cultura jurídica. podemos classificar as escolas em dois grandes grupos: as escolas moralistas e as positivistas. portanto. que o modelo da certeza é fornecido pelas ciências experimentais.O positivismo jurídico 1 . O positivismo Jurídico. A função legislativa seria. pois temia o perigo de leis destituídas de eficácia.1 . Na verdade. Para Savigny. portanto. o “espírito do povo”. Savigny invocou contra a lei escrita. N. Savigny respirou a atmosfera romântica dos alemães de Heidelberg. recebeu influência de vários autores como: Edmundo Burke (1729-1797). temos pela primeira vez uma refutação filosófica do direito natural. em particular no pensamento de Friedrich Karl Von Savigny (1779-1861). ou seja. a força viva dos costumes. p. As escolas positivistas são aquelas que entendem o direito como um sistema de normas que regulam o 2. comparando-o ao fenômeno da linguagem. Justus Moser (1720-1794). no campo filosófico-jurídico o historicismo se configurou na Escola Histórica do Direito. 45 122 . Segundo estudiosos. Trata-se do espírito do povo (Volksgeist) que produz o direito positivo. 131 contudo. a primeira preparou o segundo através de sua crítica radical do direito natural”.por um pensamento jusnaturalista. o historicismo foi um movimento filosófico-cultural contra a razão iluminista e que no âmbito jurídico pretendia a dessacralização do direito natural. comportamento social. Adam Muller e Gustav Hugo (1765-1844) que só considerava o direito positivo como objeto da ciência. a lei abstrata e racional. a expressão da necessidade de dar ao direito positivo uma existência exterior cognoscível. advertência de Norberto Bobbio: “Note-se bem escola histórica e positivismo jurídico não são a mesma coisa. Para este filósofo-jurista Ressaltamos aqui uma que direito e linguagem apresentam um início anônimo e visam atender tendências e interesses múltiplos de um povo. Assim. considerado um dos precursores do historicismo político-jurídico. o direito vive na consciência popular porque é do povo que ele nasce. reclamando uma visão mais concreta e social do Direito. 131 Bobbio.A Escola Histórica ou Romântica A escola Histórica ou romântica representou uma tendência importante no quadro anti-racionalista da primeira metade do século XIX. Joseph De Maistre (1754-1821). que representaram a realização política do princípio da onipotência do legislador”. XIX. a escola sociológica e a escola realista que no final do séc. por exemplo. Sistema de Direito Romano Atual (1840). a Escola Histórica do direito não foi precursora do positivismo jurídico. XVIII e o início do séc. ser investigado nas grandes codificações ocorridas entre o fim do séc. XIX. segundo o qual (De Maistre). o historicismo focaliza o seu caráter individual. Conforme ensina Norberto Bobbio. ao contrário. Enquanto os racionalistas consideravam o homem como integrante de uma humanidade abstrata. a saber: a intenção de substituir um olhar generalizante e abstrato da história humana por uma visão que considera o homem em sua individualidade. ambas se posicionaram criticamente em relação ao próprio juspositivismo. São Paulo: Ícone.Sua obra fundamental foi Da Vocação de nosso Tempo para a Legislação e a Jurisprudência (1814). p54. 123 . Bobbio enumera cinco características da Escola em apreço: 1. Ao observarmos as características da Escola Histórica temos que ressaltar um traço fundamental. além da obra que marcou o grande florescer do Direito romano na Alemanha. mas de certas correntes jusfilosóficas como. é possível falar em Homem com caracteres sempre iguais e imutáveis 132 O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. “O fato histórico que constitui a causa imediata do positivismo jurídico deve. onde objeta a codificação. Valorização da individualidade/diversidade histórica – pretende-se a superação do entendimento dos jusnaturalistas. 1995. Foi neste momento que houve uma certa identificação com o positivismo jurídico – o direito como expressão de uma autoridade legitimada para legislar. Assim.132 Sabemos que as codificações foram incentivadas pelo pensamento iluminista que congregou a idéia de um sistema de normas racionalmente elaboradas com a exigência de um código imposto pelo Estado. a saber: 1. Valorização do sentido irracional na história/há impulsos e paixões .a mola mestra da história não é a razão. Idealização do passado – valorizam o passado. Reviver o antigo direito germânico mais adequado ao povo alemão. 3. os seus seguidores limitaram-se a fazer a interpretação histórica. as origens. 4. a Escola Histórica passou a dar preferência à história dos textos legais. Os perigos da cristalização do direito numa única coletânea jurídica – perigo da codificação do direito germânico. portanto de ser um Historicismo de conteúdo social e passava a configurar um historicismo meramente lógico-dogmático. Valorização da descrença no progresso iluminista – há certo pessimismo antropológico porque não acredita nos magníficos destinos e progressos da humanidade (Burke). pois o direito passa a ser visto como um produto da história. A escola histórica do direito realizou estudos jurídicos a partir desse novo modo de pensar o homem e sua história. A impossibilidade de um direito único e igual em todos os tempos e lugares. 4. 2. 5. após a morte de Savigny. mas o elemento passional e emotivo do homem. Nesse sentido. o direito espontâneo. Com o passar dos anos. O costume é um direito que nasce diretamente do povo. 2. no sentido de ir buscar os antecedentes dogmáticos para conhecer melhor uma regra.2. ou seja. instituições e costumes da sociedade – esta idéia foi difundida por Herder e Burke que valorizavam os costumes formados através de um desenvolvimento lento e secular. Valorização das normas consuetudinárias que expressam verdadeiramente uma tradição. Valorização da tradição. O direito nasce do sentimento de justiça e não do cálculo racional. O Historicismo deixava. Bobbio observa que Savigny apresentou traços importantes no interior desse pensamento. Os iluministas desprezavam o passado e zombavam da ingenuidade e ignorância dos antigos (Justus Moser) 5.A polêmica entre Thibaut e Savigny sobre a codificação na Alemanha 124 . 3.2 . Bobbio. oprimidos. dentre eles: Rehberg que elaborou um artigo em defesa da tradição prussiana. como convite à coragem intelectual. Ocorre que grande polêmica surgiu por ocasião em que os exércitos da França revolucionária ocuparam uma parte da Alemanha. As diversidades locais expressam o arbítrio dos vários príncipes. exprimiu a germânico é insuficiente. portanto. separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes heterogêneos. N. Este código adotara princípios estranhos a um povo que vivia em situação semifeudal. de conciliação. tornadas célebres no Iluminismo como grito de batalha. uma estreita relação entre o movimento do iluminismo e o processo de O pensamento de Thibaut. mas fruto dos interesses.58. entre história e razão para a construção de um sistema de direito positivo. em parte irracionais e perniciosos. Esta situação gerou a oposição de vários conservadores alemães. Justamente agora se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma do direito civil como não se apresentava e talvez não se apresente mais em mil anos. difundindo o Código de Napoleão. Thibaut (1772-1840). Configura-se. Afirmou que: “Os alemães estão a muitos séculos paralisados. Thibaut 133 Apud. que figura no posição da chamada escola filosófica do direito. baseada em privilégios. onde a codificação prussiana de 1797 conservava a distinção da população em castas. Antes de Thibaut. obscuro e primitivo. logo o direito germano não é natural.”133 a autoridade do Estado. p. A inspiração iluminista de Thibaut pode ser expressa na citação do lema sapere aude. O positivismo jurídico. Immanuel Kant utilizou esse mote no texto “Resposta à pergunta: que é Iluminismo?” (1784). 125 . palavras de Horácio.Já compreendemos que os iluministas realizaram uma crítica demolidora do direito consuetudinário enquanto herança do século das trevas e um verdadeiro obstáculo aos princípios de uma nova civilização que valoriza a razão e codificação. ensaio Sobre a Para ele o direito necessidade de um direito civil geral para Alemanha (1814). famoso jurista alemão fez uma apreciação anônima do texto conservador de seu coetâneo. Na verdade assumiu uma posição moderada. o novo código se distanciou progressivamente da inspiração originária se reaproximando da tradição jurídica francesa do direito romano comum.3 . dentre elas as de Savigny que afirmou a artificialidade das legislações. O protagonista desta primeira fase de codificação foi Cambacérès (1753-1824). Em seus escritos ressalta a falta de maturidade do povo alemão para o processo de codificação. Mas a Alemanha de Savigny encontrava-se em crise. 2. Não era extremista e 126 . jurista e político prudente que participou da Convenção que decidiu a morte do Rei Luiz XVI. Para este pensador a codificação paralisa o desenvolvimento do direito. Os juristas da Revolução se propuseram a eliminar a multiplicidade de normas jurídicas pelo desenvolvimento histórico e instaurar no seu lugar um direito fundado na Natureza e adaptado às exigências universais humanas. Segundo Bobbio. Nesse sentido.reafirma a necessidade de uma legislação geral cujas vantagens são para os Juízes e a unificação da Alemanha. Savigny fundamenta seus argumentos em Bacon quando este autor afirma que para um povo proceder à instauração de um novo sistema jurídico é preciso que o nível civil e cultural seja superior. por isso propunha o renascimento e o desenvolvimento do direito popular. O fato é que a sociedade francesa encontrava-se fragmentada e na concepção racionalista as velhas leis deveriam ser substituídas por um direito simples e unitário. Os iluministas estavam convencidos de que existia um verdadeiro direito. Como fato histórico fundamental destacamos a Revolução Francesa. O processo de codificação das normas francesas encontra sua origem na cultura racionalista que predominou no interior do pensamento iluminista. Suas idéias provocaram recensões. porquanto serviu de base para várias codificações um verdadeiro corpo de posteriores e também porque configurou sistematicamente organizadas e normas expressamente elaboradas.O Código de Napoleão: Cambacérès e Portalis O Código de Napoleão entrou em vigor em 1804 ocasionando uma profunda mudança no pensamento jurídico moderno. momento em que a idéia de codificar o direito adquiriu consistência política. 18 Brumário. o dogma da onipotência 127 . O problemático art. a integração da lei e buscar no interior do próprio sistema legislativo resolver o silêncio da lei. do Código dispõe: “O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio. O papel mais importante foi realizado por Portalis (1746-1807). crítico do pensamento kantiano. a adoção do princípio da onipotência do legislador – um dos dogmas fundamentais do positivismo jurídico. fundada em princípios como igualdade dos cônjuges. 1794 e 1796. Durante a Convenção este jurista apresentou três projetos para um novo código de clara inspiração jusnaturalista. O projeto definitivo do novo código abandonou decididamente a concepção jusnaturalista. da obscuridade ou da insuficiência da lei.chegou a se opor a Robespierre. foi este último que apresentou características mais técnicas e uma notável atenuação das idéias jusnaturalistas que influenciou na elaboração de um projeto definitivo do Código Civil Francês. O juiz deve usar a interpretação. a possibilidade do divórcio e da comunidade patrimonial. Neste caso. proposição radicalmente nova. O código de Napoleão representou. Em um dos seus projetos já equiparava filhos naturais aos legítimos. a expressão orgânica e sintética da tradição francesa do direito comum. perseguido por Robespierre e posteriormente protegido no governo de Napoleão. poderá ser processado como culpável de justiça denegada”. foi nomeado segundo-cônsul e depois arquichanceler. O projeto do Código Civil foi obra de uma comissão criada por Napoleão. Na verdade este autor evocou a definição ciceroniana do direito natural. Elaborou severa crítica contra os excessos da revolução e representou em certo sentido o início do movimento de Restauração. Os projetos inspirados nas idéias do jusnaturalismo racionalista representavam a Revolução quando esta queria fazer tábula rasa de todo o passado. 4o. liberal moderado. Dos três projetos. na realidade. Com o golpe de Estado operado por Napoleão. Na verdade foram os primeiros intérpretes que e no consideraram o novo código uma ruptura com o passado entendimento de Bobbio. o de 1793. Mas as intenções da comissão napoleônica pretendia elaborar uma síntese do passado que não deveria excluir os costumes e o direito comum romano. os mais jurisprudência.4 .do legislador impõe ao juiz a necessidade de encontrar resposta para todos os problemas. 4o. gerando um outro dogma. advento. que limita o juiz na sua esfera de afigurando-se através 128 . visavam como Para costume. sem recorrer operadores 2. Para essa escola o direito está feito.A Escola de Exegese A outra escola importante é a Escola de Exegese que em sentido amplo significava a interpretação passiva dos Códigos. a escola de exegese. doutrina Podemos enumerar algumas causas para o seu caminhos simples para resolver conflitos. A intenção dos legisladores do novo Código era evitar a possibilidade de uma prática judiciária. pela qual os juízes se abstinham de decidir e devolviam os atos ao poder legislativo para obter disposições a propósito. A possível terceira causa é a tripartição dos poderes. Os intérpretes compreenderam que este artigo a necessidade de buscar na própria lei a solução. A crença na vontade do legislador expressa de modo seguro e completo e a necessidade de limitarse aos ditames dessa autoridade legislativa. Foi essa visão consagrada pelos intérpretes que se configurou na escola dos primeiros intérpretes do Código de Napoleão. fundamento competência. a do outras direito fontes etc. Além do art. Com o surgimento dos códigos emergiu também a necessidade de interpretar a letra da lei. portanto o estudo do direito deve ser substituído pelo estudo dos códigos.. Esta escola foi acusada de fetichismo da lei por considerar o novo código uma ruptura com o direito precedente. a saber: 1. 2. ideológico da estrutura apenas do Estado da moderno. o art 9o. 3. estes. indicava os critérios com base nos quais pode o juiz decidir na hipótese do silêncio ou qualquer incerteza. o da completude do ordenamento jurídico. não apresentando senão lacunas aparentes. busca-se na vontade do legislador a correta interpretação da lei nos casos de obscuridades e lacunas. Concepção rigidamente estatal do direito: as normas jurídicas legítimas são aquelas impostas pelo Estado. Interpretação da lei fundada no legislador: se a lei é manifestação da vontade do Estado. 3. de 1830 a 1880. que são normas gerais escritas emanadas pelo Estado. Desvalorização da importância e significado do direito natural para o jurista. um processo lógico. sendo o Direito um sistema de conceitos bem articulados e coerentes. 4. ou seja. a idéia de que o direito fornece um critério seguro de conduta que permite antecipar os resultados – uma regra certa. excluindo-se assim as concepções das teorias gerais do direito e as concepções jusnaturalistas. de 1880 até o fim do séc. O culto ao texto da lei: o operador do direito deve seguir rigorosamente o que está escrito. O princípio da certeza do direito. A tese fundamental da Escola é a de que o Direito por excelência é o revelado pelas leis. O verdadeiro jurista deve partir 129 . 2. o seu declínio. XIX. considerado período do seu apogeu. 4. A escola exegética configurou um procedimento específico de análise comentando artigo por artigo do Código Napoleônico. A história da influência dessa escola pode ser dividida em três fases: de 1804 a 1830. 5. O respeito pelo princípio de autoridade: os primeiros comentadores do código gozaram de grande prestígio e influenciaram inúmeros juristas posteriores. constitutivas de direito e instauradoras de faculdades e obrigações.seguinte metáfora: “a boca através da qual fala a lei”. 5. o seu início. As pressões políticas que foram operadas pelo regime napoleônico em favor do ensino acadêmico centrado somente no direito positivo. As características fundamentais dessa escola são: 1. No campo filosófico-jurídico. conjunto das ciências do Direito que busca o conhecimento do Direito Público e Privado (Radbruch). na obra O positivismo jurídico. se confundia com a própria Filosofia. prática dos tribunais (Capitant). que a interpretação se limitava a um trabalho rigorosamente declaratório. escritas e sua sistematização. No sentido romano.do Direito Positivo. disciplina jurídica no sentido geral (Austin). Estudam-se as regras vigentes. 2. Os romanos não atribuíram a característica de ciência. Qualquer mudança na lei deveria seguir o processo legislativo. alguns acontecimentos que foram importantes para o surgimento do positivismo jurídico. ou seja. mas a de juris-prudentia. O exemplo clássico dessa crítica foi a reflexão anti-racionalista elaborada pelo historicismo do séc. Essa concepção (normativista e conceitual do Direito) compreendia que a lei deveria ser atingida em seu espírito e. como objeto do jurista. a corrente historicista se configurou a partir da denominada escola histórica do direito. sem procurar respostas fora das leis. 3 . Significa dizer que existe uma ratio iuris específica. Objeto: norma imposta pelo legislador. eram os princípios que constituíam o melhor de sua preocupação. temos jurisprudência como: 1. 135 É preciso entender o que significa jurisprudência. Na verdade.O surgimento do positivismo jurídico Norberto Bobbio aponta. jurisprudência significava o conhecimento das coisas divinas e humanas. A juris-prudentia estaria situada entre o logos (razão) e o ethos (prática). O historicismo compreendia o homem na sua individualidade. o que nos remete a Aristóteles em sua classificação das virtudes. onde este autor concebe o direito natural como um conjunto de considerações filosóficas sobre o próprio direito positivo. XIX encontrando em Karl Friedrich von Savigny seu maior expoente. o direito natural passa a Dogmática jurídica – ciência empírica do direito positivo. a obra que antecipa o pensamento da escola histórica foi a obra de Gustavo Hugo sob o título Tratado do direito natural como filosofia do direito positivo de 1798. na Alemanha. ao contrário da corrente do jusnaturalismo que considerava a humanidade abstratamente. cuja finalidade era realizar o justo. ou seja. No sentido moderno. prudência do direito. Surge assim a idéia de uma Dogmática Jurídica134 conceitual ou uma Jurisprudência135 conceitual. Os romanos não eram tão voltados para ratio scripta. Todavia. em particular o termo Phrônesis fundamental para a ação honesta. XIX. convém ressaltar. 3. ou seja. porquanto formularam críticas ao direito natural. leal e justa. 134 130 . entre o fim do século XVIII e o começo do séc. que propiciou o desenvolvimento de certo desencantamento em relação ao direito natural. uma interpretação conceitual de regras do Direito. de maneira que tudo já estivesse de certo modo ordenado no sistema legislativo. na proteção da propriedade privada. ou seja. dentre eles a igualdade jurídica.ser uma filosofia do direito positivo. O juiz através de um trabalho de exegese poderá sempre encontrar uma solução para cada caso. Essa visão de mundo propiciou o surgimento da Escola de Exegese. na liberdade e na segurança das relações jurídicas. canônico e a opinião dos doutores. contribuindo assim para o surgimento de um novo modo de considerar o direito. Dois princípios se tornaram concretos: a igualdade perante a lei e a lei geral para todos. Segundo Miguel Reale. reunindo em seu seio os maiores civilistas da Europa. pelos preceitos do direito Romano. portanto o grande entusiasmo que provocou o Código Civil Napoleônico. O surgimento dessa nova postura consistia na defesa intransigente do indivíduo e de suas iniciativas. Observa-se que este direito positivo significa aquele direito que existe ou pode existir em qualquer Estado. para se obter respostas convenientes a todas as lides e demandas. O positivismo jurídico apresenta o Direito como avalorativo. de 1804. na obra Filosofia do Direito. Tratava-se de um sistema jurídico complexo constituído pelos usos e costumes. levar a cabo a tarefa de materializar seus ideais. restou à Revolução Francesa de 1789. antes da Revolução Francesa. o Direito estava dividido em sistemas particulares. Representou um corpo harmônico e lógico de preceitos. Com essa obra este autor opera a passagem do jusnaturalismo (lato sensu) para o pensamento juspositivista. Compreende-se. Com a promulgação deste código fortaleceu-se a convicção de que a sua tarefa fundamental deveria consistir em interpretar os textos de maneira autêntica. bastaria o trabalho de interpretação. além do Direito natural. como expressão da razão. na França. Percebiam-se abusos legislativa multifacetada e empírica e fraudes. Enfatiza a separação entre juízos de fato (o direito tal qual é) e juízos de valor (o 131 . Não admitiam lacunas. uma vez que esgota e esvazia a tradição jusnaturalista. capaz de atender a todas as hipóteses ocorrentes na vida. Diante desta obra comprometida pela força dos interesses. como o individualismo econômico a concebia. cada região possuía seu sistema de regras. direito como deveria ser). A justiça decorre da sua validade. Isto significa dizer que o jurista deve estudar o direito do mesmo modo como o cientista estuda a realidade natural. A teoria do ordenamento jurídico considera o conjunto de normas jurídicas vigentes numa sociedade e implica uma teoria da coerência e da completude deste ordenamento jurídico. Nesse sentido. 4. Este é um 136 O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. implicando em uma teoria imperativista do direito. A ciência deve excluir de sua esfera juízos de valor. pois pretende um conhecimento objetivo da realidade.136 Estamos no âmbito da avaloratividade do direito enquanto ciência. p. O positivismo jurídico compreende a norma como um comando (teoria da norma jurídica). Nesse sentido. Observa o autor supracitado que este caráter do direito não é exclusividade do juspositivismo. 2. O positivismo jurídico compreende o direito como um fato e não um valor. O direito é definido em função do conceito de coação. 6. Segundo N. na separação entre juízos de fato e juízos de valor. 5. Na relação entre lei e costume admite-se apenas o costume secundum legem e eventualmente o praeter legem. Bobbio podemos observar sete problemas fundamentais nessa doutrina: 1. A teoria da legislação como fonte do direito. o positivismo entende o Direito como Ciência. O direito não recebe o qualificativo de bom ou mau. o termo direito se afigura como avalorativo ou não valorativo. Deste modo de ver surge uma teoria da validade do direito denominada formalismo jurídico. 132 . não formulando juízos de valor. 1995. ou seja. De acordo com os ensinamentos de Norberto Bobbio. O positivismo sustenta a teoria da interpretação mecanicista que consiste em enfatizar o aspecto declarativo em detrimento de uma análise criativa ou produtiva. naturais e sociais”. 135. O positivismo jurídico sustenta a idéia da obediência absoluta à lei. pois foi apresentado pelo jusnaturalista Christian Tomasius. São Paulo: Ícone. cuja validade do direito repousa na sua estrutura formal. “O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas. situação esta que propicia o aparecimento de uma teoria chamada teoria da coatividade do direito. 3. 7. A validade da norma jurídica decorre da sua origem em um ordenamento jurídico. uma definição filosófica pode ser considerada ideológica. justa (legítima). Com a distinção entre juízos de valor e juízos de fato. a filosofia do direito pode ser definida como o estudo ou investigação acerca do direito a partir de certo ponto de vista valorativo. uma vez que uma norma jurídica é válida quando faz parte de um ordenamento jurídico real. determinada norma será válida se pertencer a um ordenamento jurídico e. Segundo Bobbio. Desta dicotomia podemos observar duas possibilidades para definir o direito. portanto. Com efeito. enquanto que o filósofo do direito considera imprescindível investigar o fundamento e a justificação do direito.traço fundamental na separação entre o mundo antigo e o moderno: o homem moderno renuncia a uma visão metafísica da realidade. há uma separação entre ciência do direito e filosofia do direito. que o conceito de valor não se confunde com o de validade. pois define o direito tal como deve ser para plenitude de determinado valor. efetivamente existe em uma determinada sociedade. a saber: a definição científica e a definição filosófica. Encontramos aqui uma dois critérios independentes entre si. Observa-se. Uma definição científica tem como característica o fato de ser avalorativa define o direito como ele é. há uma passagem na obra de N. O juspositivista estuda o direito independente de juízos de valor. O positivismo estuda o direito tal qual é e não como deveria ser. Uma norma jurídica será justa quando corresponder a esse direito ideal. para fins didáticos. Para o juspositivista há uma redução da concepção valorativa na concepção validativa. ou seja. juspositivista estuda o direito real sem se vincular com um suposto direito ideal. 133 . ou seja. ou seja. segundo satisfaça ou não um certo requisito deontológico) restringem arbitrariamente a área dos fenômenos sociais que empírica e factualmente são direitos”. ou valorativa ou deontológica. Bobbio que expressa a crítica que os juspositivistas fazem aos filósofos do direito: “Os positivistas jurídicos não aceitam as definições filosóficas porque estas (introduzindo uma qualificação valorativa que distingue o direito em verdadeiro e aparente. O valor de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma conforme sua relação com um suposto direito ideal. definem o direito relacionado a um fim (telos). ou ainda o bem comum. ou seja. As mais tradicionais definem o direito como um ordenamento jurídico necessário para alcançar a justiça. As definições juspositivistas Kelsen. as definições de Hobbes. ou o bem comum.137 A justiça. ou ainda a liberdade individual são valores que o direito deve realizar. a definição do direito em Kant 134 . são definições neutras. Como 137 Cf. o direito é definido como uma exemplo. Austin e simples técnica.As definições valorativas apresentam uma estrutura teleológica. Parte VIII .O pensamento de Hans Kelsen (1881-1973) “O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. a mentalidade escolástica que preparou a abordagem lógica das questões filosóficas. O objetivo da obra seria discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica. portanto. Sua obra foi de extrema importância para o pensamento jurídico do séc. Olga Neurath. Sua obra mais importante foi Teoria Pura do Direito (1934). do empirismo e do utilitarismo. Foi iniciador do que se denomina de lógica jurídica e autor intelectual da Constituição republicana austríaca. Kelsen vivenciava uma época marcada pelo 135 . a ética e a religião do âmbito científico. Kelsen freqüentou o conhecido Círculo de Viena que reunia intelectuais como Carnap. um grupo de pensadores que contribuíram para o surgimento do neopositivismo professores da vienense. Félix Kaufmann. pensadores antimetafísicos. reflexo dos debates metodológicos que ocuparam os intelectuais do séc. A cidade de Viena era propícia ao surgimento do neopositivismo porque nesta região se desenvolveu durante a segunda metade do séc. o liberalismo com seu patrimônio de idéias originadas do Iluminismo. XIX. sociólogo e juiz (entre 1921-1930) da Corte Constitucional da Áustria. ficou imune à corrente do idealismo. procura essa felicidade dentro da sociedade” Kelsen 1 – Introdução Este pensador foi jurista de notável valor. dentre eles destacamos: Hans Hahn. Os filósofos de do Círculo de Viena eram Universidade Viena. Carnap e tantos outros. filósofo. Otto Neurath. Exilou-se nos Estados Unidos por ocasião do advento do nazismo e lecionou na Universidade de Berkeley. A universidade de Viena se mantivera sob a influência católica e. Kelsen foi influenciado pela filosofia do Círculo de Viena que era. XIX. O círculo de Viena era constituído por um grupo de jovens doutores em Filosofia da ciência que organizavam colóquios semanais. Wittgenstein e Freud. portanto. Foi. na verdade. XX. filósofos da ciência. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado. Uma das teses do Círculo de Viena era afastar o conhecimento metafísico. alguns entendiam a metodologia correta como aquela que aproxima o direito e as demais ciências humanas. abandonar a dimensão social e valorativa (para alguns. produto da vontade humana que proíbe. normas são prescrições de dever-ser que 138 Isto posto podemos focalizar o conceito de norma em Kelsen. oferece o seguinte exemplo: existe a categoria de ser e a do dever ser. o direito é um fenômeno complexo. trata-se de um comando. o pensamento de Kelsen se comprometia com a busca de um método e objeto próprios. o ato de levantar o braço em uma palestra poderá Sugiro a leitura do capítulo 10 – “conceito de lei e norma jurídica” na obra MONTORO. Para este autor. Esse momento colocava em relevo a própria autonomia do direito enquanto ciência jurídica. Sem dúvida. Tércio Sampaio Ferraz Jr. 293320. ou seja. São Paulo. Nesse sentido. portanto. conferem ao comportamento humano um sentido prescritivo e. O que podemos entender por norma senão uma regra de conduta que poderá ser moral. as prescrições são prescrições de dever ser. mas no seu modo de ver deveria ser observado autonomamente pelo jurista sob pena de incorrer em debates infindáveis. Franco. Essa proposta causou polêmica. obriga ou permite determinado comportamento. ou seja. Revista dos Tribunais. 1997. todavia não tenha sido essa a sua intenção. religiosa e jurídica.positivismo jurídico nas suas diversas tendências e pelos teóricos da livre interpretação do direito. Introdução à ciência do direito. Nesse entrecruzamento de correntes. isto quer dizer que. o direito deveria ser visto como norma e não como fato social ou valor transcendente. o que resultou na acusação de reduzir o direito à norma. segundo o qual o método e o objeto específicos da ciência jurídica deveriam ter o enfoque normativo. Kelsen propôs o princípio da pureza. As normas morais e religiosas fundam sua obrigatoriedade na consciência pessoal. Há que se falar também na tentativa de uma volta aos parâmetros do direito natural. as jurídicas são protegidas por uma eventual força coercitiva externa. despir o direito de caracteres humanos). Outros compreendiam a ciência jurídica como esfera autônoma. desvinculado de qualquer ideologia. 138 136 . Com esse objetivo. Kelsen procurou um conhecimento objetivo. capazes de superar as confusões metodológicas e dar mais autonomia científica ao jurista. pp. livre de qualquer juízo valorativo. Essa norma adquire existência independente de seu autor. O cientista do direito deve abster-se de valores estranhos ao objeto da ciência jurídica. Kelsen também elaborou uma teoria da norma fundamental onde a norma somente será considerada jurídica e legítima se. Isto implica dizer que o Estado se configura num conjunto de normas estabelecidas prescrevendo uma sanção para determinados comportamentos. será válida e legítima desde que decorra de uma norma fundamental legítima. Ainda que haja uma norma injusta. compreendendo a necessidade do direito se afigurar como uma esfera autônoma em relação à moral e a política. o Estado deixaria de existir no sentido jurídico.Princípio metodológico fundamental Tal princípio significa a condição primeira para que a doutrina do direito se torne ciência. Kelsen foi grande defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica. for estabelecida em conformidade com as prescrições contidas na norma fundamental. valorativamente neutra. Para Kelsen. posta por um poder eficaz). Nesse sentido. pois não é da competência da doutrina jurídica discutir acerca dos valores buscados pelo direito e sim ressaltar uma preocupação eminentemente jurídico-científica. . Kelsen compreende a ciência jurídica como uma ciência pura de normas e as investiga no seu encadeamento hierárquico. 2 . Disto decorre que todo o ordenamento jurídico vale e é legítimo em função dessa norma fundamental (constituição.ter dois sentidos. Direito e Estado se confundem. O conhecimento para ser científico deve ser neutro em relação aos valores. Sem essa ordem normativa. e somente se. A validade de uma norma está ligada a normas superiores que culminam numa norma fundamental. um descritivo onde interessa apenas observar que alguém levantou o braço e um sentido prescritivo onde levantar o braço deve ser entendido como voto a favor de uma proposta. essa existência chama-se validade. O objeto da ciência do direito é a norma posta por o que o princípio metodológico 137 autoridade competente. Esses são os limites apresentados pelo princípio metodológico fundamental. Antecedente: dados determinados pressupostos. Kelsen pretendia acentuar ainda mais a diferença entre a atividade de aplicação do direito e a desenvolvida pelo cientista jurídico. Ou 138 . A utilização do princípio metodológico fundamental implica uma hermenêutica jurídica que se abstém da idéia de um único sentido correto para a norma jurídica. “Proposições jurídicas são. afirma que uma determinada conduta típica implica em certa sanção – tem caráter descritivo. resulta do ato de vontade. temos: sob determinados pressupostos fixados pela ordem jurídica. se alguém é atacado de doença contagiosa. por exemplo. Procurando uma fórmula geral. Percebemos que a proposição liga dois elementos. deve ser-lhe aplicada uma pena. uma proposição jurídica que é um juízo hipotético ou condicional. As normas jurídicas recebem o qualificativo de válidas ou inválidas e as proposições podem ser consideradas como verdadeiras ou falsas. 2. sempre na forma estabelecida pela ordem jurídica.Norma jurídica e proposição jurídica A distinção entre norma jurídica e proposição jurídica é considerada uma das mais importantes para a teoria kelseana. pela mesma ordem jurídica estabelecida. econômicos. as seguintes: se alguém comete um crime. deve ser internado num estabelecimento adequado. culturais. 3 . Conseqüente: decorre a efetuação de um ato de coerção.fundamental exige é a exclusão do âmbito de interesse do jurídico os fatores especificamente sociais. Como diz Kelsen na obra Teoria Pura do Direito. juízos sobre as normas jurídicas. É esta a forma fundamental da proposição jurídica”. A norma jurídica prescreve a sanção que se deve aplicar no caso de ações ilícitas – tem caráter prescritivo. Com essa distinção entre norma jurídica e proposição jurídica. Podemos dizer que as proposições jurídicas são reflexões. mas busca uma pluralidade de significações cientificamente pertinentes e fixa esse limite. deve efetivar-se um ato de coação. resulta do ato de conhecimento. morais ou políticos interferentes na produção da norma e também os valores prestigiados em sua edição. deve proceder-se a uma execução forçada de seu patrimônio. se alguém não paga uma dívida. a saber: 1. 140 Coelho. As proposições jurídicas se referem a enunciados deontológicos139. O primeiro tipo aplica-se para a generalidade dos casos e o segundo em situações específicas. tratado dos deveres. a saber: ou temos uma ligação deôntica entre uma ação/omissão e uma sanção. 36. afirma Fábio U. ou seja. Coelho que “As normas jurídicas. São Paulo: Max Limonad. uma vez que qualquer proibição pode ser Deontologia. ou entre diversas condutas humanas com diversos atos coativos na qualidade de sanção. O argumento de Kelsen se baseia em duas observações. por descreverem a conduta tida por ilícita como antecedente e a punição como conseqüente”. ou relacionar intrinsecamente as normas proibitivas e obrigatórias. estudos dos princípios. 4 . Nesse sentido. p. Para entender Kelsen. Fábio U. do grego déontos. a segunda. com relação às normas revogatórias e conceituais. assim. fundamentos e sistemas da moral. têm a estrutura de uma proibição. Dessa estrutura básica podemos inferir duas possibilidades de conexão. uma lei poderá ser válida ou não conforme a sua existência no mundo jurídico e uma proposição acerca de uma lei poderá ser ou não verdadeira. 1999. A primeira refere-se ao fato de que existe a possibilidade de interdefinir. poderá ocorrer que um jurista qualquer tenha formulado um juízo equivocado acerca da tal lei – sua proposição será falsa. 139 139 . em terceiro lugar. Ligam uma determinada previsão com atos de coação: se fulano cometeu homicídio deverá ser punido com reclusão de seis a vinte anos.140 O fato de Kelsen ter reduzido as normas jurídicas a uma estrutura de proibição gerou algumas objeções: a primeira delas relativa às normas que não proíbem.Estrutura da norma jurídica Sabemos que o direito se distingue de outras ordens sociais por meio do uso da coação prescrita em suas normas.dizendo de outro modo. enunciados que prescrevem alguma conduta através do verbo dever ser. em relação às normas permissivas. mas que obrigam determinados atos ou omissões. Kelsen se mantém nos limites da primeira alternativa: a estrutura da norma jurídica é descrita pela proposição jurídica como a ligação deôntica entre a referência a certo comportamento e a sanção correspondente. Kelsen denominou tais normas não autônomas de secundárias e as sancionadoras de primárias. 5 . Para Kelsen certas normas não possuem autonomia. p. a de que validade e eficácia se identifiquem. inc.Validade e eficácia A validade da norma jurídica para Kelsen vincula-se inicialmente à sua relação com a norma fundamental. Fábio U. do CP: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I . 140 . 1999. a partir da dicotomia entre a norma singularmente considerada e a ordem positiva como um todo. mas na permissão positiva a manifestação de uma proibição à qual se liga. nosso autor rejeita duas idéias: a de que a validade não depende da eficácia. sobretudo no que concerne ao problema da manifestação de vontade de uma autoridade competente: “A norma jurídica é válida se emanada de autoridade com competência para editá-la.traduzida por uma obrigatoriedade e vice-versa. Proibir certa conduta equivale a obrigar a omissão da mesma conduta. Para entender Kelsen. Coelho menciona as hipóteses de exclusão de ilicitude previstas no art. II – em legítima defesa. normas não autônomas precisam de normas sancionadoras. Nesse caso. O argumento usado em favor das normas permissivas baseia-se na possibilidade de distinguir a permissão em negativa (o que não é proibido é permitido) e positiva (dependente das normas proibitórias). Como exemplo desse tipo de normas permissivas positivas. 141 Coelho.em estado de necessidade. como também. 23. II. III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Fábio U.141 Como um legítimo representante do pensamento jurídico-positivista. Kelsen relaciona validade e eficácia.. encontramos na permissão negativa a inexistência de proibição. nesse ponto. 41. São Paulo: Max Limonad. A validade exige também a eficácia da norma jurídica e. ainda que o respectivo comando não se compatibilize com disposição contida em normas de hierarquia superior”. mas encontram em outras normas proibitivas o complemento para seu sentido no mundo jurídico. Tais hipóteses configuram o sentido de normas permissivas positivas (a atitude em si poderia configurar um ilícito penal). A eficácia necessária à vigência da ordem jurídica é medida em termos globais. isto é. mas exige a prova de seu acontecimento. os cientistas do direito operam de forma diferente dos cientistas sociais. global da ordem jurídica. A reivindicação do representante do tráfico organizado e a do agente fiscal diferem fundamentalmente por não ter a primeira validade jurídica. Segundo Kelsen. nesse sentido. Todavia. ainda que alguns dos seus artigos sejam totalmente ineficazes e conseqüentemente inválidos. a eficácia se revela como condição de validade em ambas as instâncias e nesse sentido qualquer norma jurídica totalmente ineficaz é inválida. 141 . este autor sustenta que as normas deixam de ser válidas se perderem a eficácia. São três os pressupostos que condicionam a validade da norma jurídica. mas relações de imputação. ou seja. a saber: 1. O direito pertence a uma ciência normativa que não visa O mínimo de eficácia que A eficácia desconsidera a inobservância episódica ou temporária.Qual seria a posição de Kelsen? Observando as duas instâncias: a da norma singularmente considerada e a da ordem positiva. A validade da ordem jurídica não depende da eficácia de todas as normas que a constituem.Causalidade e imputação O objeto da ciência jurídica compreende as normas e. a norma singularmente considerada perde eficácia se houver ineficácia global da ordem jurídica. com base na norma hipotética fundamental. porque o direito instituído pelo Estado se revela eficaz e torna legítima tal situação. se a legislação de um país vigora. a segunda reivindicação é válida. 6 . entre dois fatos como. na medida em que não se sustenta em norma hipotética alguma. A competência da autoridade que a editou. Isto quer dizer que. o inverso é possível. mas guardam forte relação entre si. 2. pois não estabelecem relações de causalidade. Validade e eficácia não são termos sinônimos. por exemplo. 3. um homicídio e a punição correspondente há uma ligação de outra ordem e esta ligação é a imputação. A sanção referente ao homicídio não foi causada pela conduta em si mesma. saber: 1. creditar algo que não seja evidente ou decorra analiticamente. A multiplicidade de valores sobre o justo reafirma a possibilidade de o direito positivo se chocar pelo menos com algum sentido de justiça. claramente definidos na proposição jurídica.prescrever condutas. Como doutrinas morais não fazem parte do conhecimento dos juristas. a causalidade implica em infinitude. a justiça possui valor inconstante. não há uma cadeia de sucessões. uma cadeia de sucessões. A imputação não deriva de nenhum outro conseqüente imputado. a causalidade independe dessa interferência. Há o ponto inicial e o terminal. ou uma ligação de causa e efeito também utilizada pelas ciências sociais como. a sociologia que vincula por causalidade a taxa de desemprego e o índice de Duas distinções são relevantes entre causalidade e imputação. mas tão somente examinar as normas e estruturar seus enunciados a partir do princípio da imputação. A imputação depende da vontade humana. pois estes estão preocupados com as normas jurídicas. Causalidade significa uma relação necessária e universal entre dois termos no caso das ciências naturais. 142 . ou seja. 2. relativo. Trata-se de um julgamento de valor que possui caráter subjetivo.Direito e Justiça Para Kelsen. 7 . dissolúvel e mutável. a violência. o direito positivo desvinculase de questões de justiça. por exemplo. Imputar significa atribuir coisa desonrosa ou criminosa a uma pessoa. legislação fiscal. fato e valor. como se houvesse um direito para o jurista e um outro para o filósofo.Introdução Miguel Reale ocupa lugar de destaque no pensamento filosóficojurídico brasileiro. sua vida foi marcada por intensa participação nos movimentos estudantis e políticos de sua época. o aspecto fático.A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910 -). rumo a determinado valor”. (Miguel Reale) 1 . CRETELLA JUNIOR. ou seja. sem que a tarefa de um repercutisse. Foi professor de latim. ocupou a cátedra outrora ocupada por João Arruda. axiológico e prescritivo do Direito. Miguel Teoria Tridimensional do Direito. porém para percorrer um caminho devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato. de modo dialético relacionando diferente das diversas teorias tridimensionais que correlacionaram norma. São Paulo.Parte IX . de maneira direta e permanente. Em 1941. Reale ressaltou a insuficiência daqueles que defendiam “um verdadeiro dualismo ou uma justaposição de perspectivas. até mesmo quando o estudioso se REALE. uma apreciação panorâmica e completa dos elementos do Direito em detrimento de uma postura unilateral baseada apenas no fato jurídico. p. Miguel Reale tentou uma “síntese entre o sujeito ético do kantismo e o espírito histórico do hegelianismo”. 143 Reale formulou uma teoria tridimensional do direito com caráter três termos (fato. 142 143 143 . cada um deles isolado em seu domínio. 1989. psicologia. pois. português. apresentou sua concepção culturalista do Direito. Em seu modo de ver: “Quem assume. porém. Com esta obra. Novíssima história da filosofia. p.. na tarefa do outro ” 142 Segundo exprime Cretella Júnior. com a apresentação da tese Fundamentos do Direito. valor e norma). ou seja. Bacharel em Direito desde 1934. segundo a qual o estudo do fenômeno jurídico somente será possível a partir de um estudo integral. num sentido estático. escreveu inúmeros artigos e livros. aos 31 anos. direito comercial. “A norma jurídica é a indicação de um caminho. já está a meio caminho andado da compreensão do direito em termos de experiência concreta . uma posição tridimensionalista. José. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Saraiva.3.288. 1994. divide-se em três partes. p. ou de normativo na vida do direito”. Miguel Teoria Tridimensional do Direito. a saber: seja. no seu entender. social e histórica. o direito não é um objeto natural. já está revelando salutar repúdio a quaisquer imagens parciais ou setorizadas. a culturologia jurídica que estuda o Direito como cultura. 11. 2 . do sociólogo e do jurista.A tridimensionalidade da lei Segundo Miguel Reale.contenta com a articulação final dos pontos de vista do filósofo. 1994. Para os culturalistas. Nesse sentido. por isso a Filosofia do Direito. valor e norma. a ontognoseologia jurídica que indaga as estruturas objetivas e como são pensadas em conceitos. ideal ou simplesmente valorativo. ou o direito em sua estrutura ôntica e em sua estrutura racional. não se contentando apenas com o estudo dogmático do direito. 144 . observando sua natureza e implicações. de axiológico ou ideal. a epistemologia jurídica que estuda os objetos das diversas ciências jurídicas. a partir de estudos sociológicos e filosóficos. na qual o direito se considera em seus três elementos indispensáveis: fato. Nesse sentido o jurista precisa interpretar o problema da justiça. no campo das ciências sociais encontramos palavras que apresentam uma multiplicidade de acepções ao longo do devir histórico. embora consciente de que cada uma destas matérias tem seus métodos próprios. a ciência jurídica encontra problemas de natureza axiológica. 144 Segundo Reale. a deontologia jurídica que indaga o fundamento da ordem jurídica e a razão da obrigatoriedade das normas de Direito. a palavra Direito assumiu sentidos diferentes conforme interesses e preferências que em cada momento 144 REALE. com o reconhecimento da insuficiência das perspectivas resultantes da consideração isolada do que há de fático. como esforço humano de conquista e preservação daquilo que se concebeu como válido. Esta última posição é a da teoria tridimensional do direito sustentada vigorosamente por Miguel Reale. da legitimidade da obediência às leis. o mundo das normas faz parte de uma área maior que é o mundo da cultura humana em geral. São Paulo: Saraiva. mas um objeto cultural que supera o dualismo de ser e dever ser. como os significados da palavra Direito se delinearam segundo três elementos fundamentais: o elemento valor. Filosofia do Direito. depois essa idéia cedeu lugar para a intuição do direito como sentimento do justo e conseqüentemente ao sentido de obrigação jurídica. temos uma norma jurídica – artigo 121 do CP – que prevê uma sanção para. E. como condição da conduta. p. Se não houvesse na base uma categoria axiológica – o valor vida – não teriam sentido tanto a elaboração de uma norma que visa à preservação do valor 145 REALE. . Inicialmente o homem vivenciava o direito como um fato. por fim. No fato está implícito o atentado contra um valor ético fundamental – o valor da vida. 1998. 145 . estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada de deontologia Jurídica. de algum modo. Para entendermos melhor essa relação entre norma. São Paulo: Saraiva. objeto de investigação da Sociologia e da Etnologia do Direito e da Filosofia do Direito na parte denominada Culturologia Jurídica. 509. como intuição primordial. que hoje se nos apresenta como algo intuitivo e evidente. o elemento fato.histórico recebeu certo destaque. também podemos estudar o Direito como fato social e histórico. Podemos observar o Direito enquanto valor. coincidindo a análise histórica com a da realidade jurídica fenomenologicamente observada”. finalmente.o desrespeito ao valor. portanto. No dizer de Reale. A importância do Direito Romano se afigura na ciência que denominavam de jurisprudência (senso prudente de medida) que focalizava o Direito como norma. podemos ainda observá-lo como norma ordenadora da conduta. através de um estudo sumário da experiência das estimativas históricas.compensar .145 Miguel Reale observa que encontraremos os três elementos onde quer que se encontre a experiência jurídica e é nesse modo de ver que podemos falar em triplo enfoque do Direito. podemos pensar no exemplo oferecido por Severo Hryniewicz: “tomemos um exemplo do Direito Penal: a prática de um homicídio. como medida de concreção do valioso no plano da conduta social: e. “Eis aí. Miguel. Temos primeiro um fato – fulano matou sicrano. o elemento norma. fato e valor. base empírica da ligação intersubjetiva. objeto de estudo da Ciência do Direito ou Jurisprudência e da Filosofia do Direito na esfera da Epistemologia. vida, quanto todos os procedimentos posteriores ao fato no âmbito penal”.146 Reale afirma que a teoria tridimensional é fruto da verificação objetiva da consistência fático-axiológica-normativa de qualquer porção ou momento da experiência jurídica. É formada de consciência de todas as implicações do direito – a essência triádica do direito. Uma análise rigorosa desta teoria implica formular algumas questões: como se garante a unidade a partir desses três fatores? Como se correlacionam? Como se distinguem? Para Reale, fato, valor e norma estão sempre correlacionados não importa o ponto de vista: se filosófico, sociológico ou jurídico. Tal correlação possui natureza dialética, uma mútua implicação entre esses elementos – entre fato e valor que implica em um momento normativo. Segundo exprime nosso autor, o direito “não é puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente”. A novidade da teoria de Reale está na utilização do conceito de dialética, retirado do sentido do termo alemão lebenswelt, que significa mundo da vida presente na obra Crise das Ciências do filósofo alemão Edmundo Husserl (1859-1938) que desenvolveu um pensamento crítico do positivismo (em sua pretensão de objetivismo e verdade científica). Para Husserl, toda consciência é intencional, ou seja, não há consciência separada do mundo, não há objeto em si, afastado da consciência que o percebe. Isto significa dizer que não há fatos com objetividade pretendida, pois o mundo que percebo é o mundo para mim. A crise da ciência se desvela na sua tentativa de redução da razão à racionalidade científica. Na verdade, a ciência não tem nada a nos dizer sobre nossa liberdade. A mera ciência do fato exclui o homem de sua análise. Assim, Reale insere o conceito de dialética na relação entre fato, valor e norma, a partir do sentido de mundo da vida (lebenswelt) que expressa o complexo de noções, opiniões, regras, valores e etc, ou seja, uma vida cultural que está em constante acontecer, o lugar de nossas originárias formações de sentido. O direito está, portanto, 146 inserido na HRYNIEWICZ, Severo. Para Filosofar hoje. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1999, p.135. 146 fervilhante experiência do mundo da vida. E essa tridimensionalidade não se limita à esfera jurídica. A função da Filosofia para Reale está na tarefa de libertar a história da fetichização da ciência e da técnica – da clausura para desvelar a verdadeira humanidade. O mundo da vida é o mundo da criatividade intencional da subjetividade. Reale entende que a norma jurídica é muito mais do que simples proposição lógica de natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero instrumento técnico de medida no plano ético da conduta; a sua elaboração não é mera expressão do arbítrio do poder e nem resulta da tensão fático-axiológica, mas um processo onde o poder é condicionado por um complexo de fatos e valores. A experiência jurídica é a experiência histórica cultural, na qual o valor atua como um dos fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitante, como prisma de compreensão da realidade por ele constituída (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta (função deontológica) – tripla função do valor revela a historicidade do homem e a experiência histórica do direito. Reale difere de Kelsen, pois este jurista separou as três esferas na tentativa de desacreditar a sociologia jurídica e a filosofia jurídica e preservar a Teoria pura do direito. Queria desacreditar a jurisprudência sociológica ou a teoria da justiça como campos apropriados de indagação de natureza jurídica. Kelsen formulou, segundo Reale, uma tridimensionalidade metodológica negativa, só a ciência do direito possui caráter jurídico. Na verdade o direito acontece no seio da vida humana. Trata-se de um processo existencial do indivíduo e da coletividade imersos no mundo da vida. 147 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Bobbio, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub, 1992. _____.Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant. Brasília: UnB, 1992. _____. Dicionário de Política. Brasília: Unb, 1997. _____.Teoria do ordenamento jurídico. 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