1UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA        LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA       Prof a  Cristina Prates    MOÇAMBIQUE                                                                                                                                                                                  MOÇAMBIQUE                                                                    2013/2            2 •  Anos 200-300 (Era Cristã)  •  Povos bantos: Império de Monomopata.      •  Séculos XI-XV  •  Povos árabes: Sultão Musa-Nbiki (nome do país).      •  Século XV: chegada dos portugueses (1498)  •  Atração pelo ouro; expulsam os mercadores orientais.      •  Revoltas contra os portugueses  •  Macuas (1775); Rongas  (1822); Reis vátuas  Manicusse,  Mazila, Gugunhana .      •  1895: portugueses toma o poder                                •  1505-1693  •  Exploração do ouro      •  1603-1750  •  Exploração do marfim    •  1750-1860  •  Tráfico negreiro      •  1751  •  Administração a cargo de Goa (Índia portuguesa)      •  1884: Conferência de Berlim  •  Partilha da África      •  Século XIX(1885)  •  Ocupação militar dos portugueses       •  Século XX  •  Administração colonial      •  1957: Frelimo (Frente Nacional de  Moçambique)  •  Fundada por Eduardo Mondlane       •  1964-1975: Guerra Colonial  •  Lutas contra Salazar      •  1969: Morte de Eduardo Mondlane  •  Assume Samora Machel (1º Presidente de  Moçambique). Ocupou o cargo até a sua morte (1886)      •  25 de junho de 1975  •  Independência de Moçambique      •  Guerra civil: 1976-1992  •  Frelimo(Samora Machel) ≠ Renamo(Resistência de  Moçambique)    •  4 de outubro de 1992  •  Fim da guerra civil                •  Frelimo  •  Vence as eleições de 1994, 1998 e 2004.      •  Regime presidencialista  •  Presidente atual: Armando Emílio Guebuza        Indicadores    Capital:  Maputo;  Localização:costa  oriental  da  África,fazendo  fronteira  com  a  Zâmbia,  Malawii  e  Tanzânia  (Norte);  Canal  de  Moçambique  e  Oceano    Índico  (Leste);  Zimbabwe  e  África  do  Sul  (Oeste);  África  do  Sul  e  Suazilândia (Sul) Clima:tropical  e úmido (norte e costa); tropical seco (interior,sul e província de Tete) ; tropical  árido  (interior  da  provínia  de  Gaza);  chuvas  (outubro  a  abril)  e  seca  (maio  a  setembro);  Superfície:799.390km2;População:23.515.934(2011);macuasangones,macondes,aianas,nhanjas,tongas,bitongas,m uchopes,suahilis  e  outros;indianos,árabes  e  europeus.Línguas  nacionais:ronga,macua,sena,changana  e  outras;Língua  oficial:português;Recursos  naturais:energia  hidrelétrica,gás,carvão,madeira;terra  cultivável,algodão,cana-de-açucar,castanha  de  caju,mandioca;minerais:sal,pedras  preciosas,bauxita,grafite  e  outros.Exportação:camarão,caju,  açúcar,copra(polpa  de  coco)  e  chá.  Subdivisão:10  províncias:Cabo  Delgado,Niassa, Nampula, Tete, Zambézia, Manica,Sofala,Inhambane, Gaza, Maputo.          3 Paradigmas para a Literatura Moçambicana*            HISTÓRIA    TEMÁTICA    ESCRITORES  1 °   P A R A D I G M A             1940-1944    •  Literatura colonial: perspectiva  eurocêntrica;  •  Estado colonial português;  •  Criação do jornal O brado africano;  (1918), pelos irmãos José e João  Albasini: protestos contra os abusos  dos colonizadores; ação política e  pedagógica.      •  Lírica: Rui de Noronha. Sonetos;    •  Ficção:  Irmãos  Albasini.    O  livro  da  dor.      2 °   P A R A D I G M A             1944 a 1960    Antecedentes:   1912:  Revigoração  da  música  africana  nos  estados  Unidos,  Langston  Hughes;    1914: Revolução no Haiti;    1930:  1º  livro  do  poeta  cubano  Nicolás  Guillén:  influência  das  raízes  africanas, musicalidade;    1932:  Movimento  da  Negritude  em  Paris:  termo  criado  pelo  poeta  da  Martinica  Aimé  Césaire.  Valorização  das  raízes  africanas,  crioulas  e  populares:  América,  Haiti,  Cuba,  Estados  Unidos;    1934: Revista O Estudante  Negro:  fundada  em  Paris  pelo  poeta  senegalês  Leopold  Sénghor,  por  Césaire e Dumas (ganês);    1944-1965:  Fundação  em  Lisboa  da  Casa  do  estudante do Império.     → →→ → Literatura da moçambicanidade:   •  Buscas das raízes africanas;  •  Literatura publicada em jornal;  •  Predomínio da poesia;  •  Poética da terra e do rio;    • Divisão da lírica moçambicana em duas  vertentes:    1.    Uma  voltada  para  as  raízes  negro- africana,  enfatizando  a  denúncia  e  politicamente comprometida.     2. Outra, marcada pelo lirismo, afastando- se de compromissos ideológicos.      • •• •Ficção social: João Dias. Godido e outros  contos.  (1952)  -  Denúncia  do  homem  moçambicano num sistema colonialista.    1. Lírica comprometida:  •1956:  Primeira  antologia  da  poesia  negra:  Nicolás Guillén, Craveirinha, Noémia de Sousa  (moçambicanos)  e  Agostinho  Neto  e  Jofre  Rocha (angolanos);    José  Craveirinha  (1922-  2003)  -  Obra  marcada por várias fases;  1º  livro:  Chibugo  (1964).  Poemas  longos;  palavras  africanas;  ancestralidade  e  utopia;  bairros  pobres  (“musseques”);  ritmo  da  memória,  repetições  (anáforas);  religiosidade;  tambor: grande metáfora da ancestralidade;    Noémia  de  Souza  (1926-1997).  Mora  na  Casa  do  estudante  do  Império.  Jornalista  que  participa  ativamente  das  guerras  coloniais  em  África.  Poema  “Deixa  passar  meu  povo”:  influência  do  Movimento  da  Negritude,  mensagem  para   is negros na diáspora.            2. Lirismo Subjetivo    Rui Knopfi (1932-1997): poética do artefato  verbal,  da  cicatriz  e  da  memória;  poesia  universal.  Livros:  O  país  dos  outros  (1959)  e  Memória Consentida (1982);    Virgílio  de  Lemos  (1929):  Temática  social  e  combativa,  associada  a  uma  poética  dos  desejos  e  dúvidas  existenciais;  escritura  fragmentada,  metáforas  imprevistas,  envolvendo o erotismo do fazer poético;      Fernando  Couto,  poeta,  advogado  e  jornalista  (Porto,  1924).  Obra: Poemas  junto  à  fronteira,  Jangada  do  inconformismo,  Moçambique  1974  -  O  Fim  do  Império  e  o  Nascimento da Nação (2011);    Glória  Sant’Anna  (Lisboa-  1925-2009).  Crítica  aos  preconceitos  raciais;  ethos  existencial  e  humano, condena  a  violência  que  destruiu  os  macondes,  celebrando  suas  esculturas.    Último livro: Ao Ritmo da Memória (2003).    4 3 °   P A R A D I G M A     1964 a 1975    1957:  Eduardo  Mondlane  (1920-  1969):  doutor  em  sociologia  nos  Estados  Unidos  foi  um  dos  fundadores  e  primeiro  presidente  da  Frente  de  Libertação  de  Moçambique  (FRELIMO),  a  organização  que  lutou  pela  independência  de  Moçambique  do  domínio  colonial  português.  Foi  assassinado  por  um  livro- bomba.  Guerra  Colonial:  1964- 1975.     → →→ → Literatura guerrilheira:   •  Guerra civil;  •  Poética do fogo;  •  Utopia;  •  Literatura  como  forma  de  conscientização;  •  Romances de denúncia social;  •  Paradigma que vai criar a voz;;  •  Ficção social.      Luis  Bernardo  Honwana  (Maputo,  1942):  Militante  da  FRELIMO  foi  preso  em  1964  e  permaneceu encarcerado por três anos.  Obra.  Contos:  Nós  matamos  o  cão  tinhoso  (1964)  -  Questiona  a  discriminação  racial  e  apresenta a criança como motivo recorrente.      Orlando  Mendes  (1916-1990):  Profundamente  influenciado  pelo  neo-realismo  português,  poeta,  romancista,  dramaturgo,  crítico  literário,  produziu  uma  vasta  obra  literária,  como  Trajectória  (1940),  Portagem.  (1966),  Um  minuto  de  Silêncio  (1970),  A  Fome das Larvas (1975), entre outros.   4 °   P A R A D I G M A                Anos 80    Guerra Civil: 1976- 1992;    Queda  do  Muro  de  Berlim;    Criação  da  Revista  Charrua:  oito  números  de  1984  a  1986.  Apresenta  uma  geração  com  tendências  ecléticas,  mas  que na qual predominou um  lirismo  subjetivo  e  uma  poética  elaborada  em  termos estéticos e dotada de  revisão crítica da tradição.       Várias tendências:    1.        Lírica  Social:  mantém-se,  em  parte,  a  poética  de  teor  político-ideológico,  coerente  com a euforia pela independência do país.    2.  Lírica  subjetiva:  lírica  intimista  que  supera  o  tom  engajado  da  poética  de  combate,  recuperando  o  antigo  lirismo  moçambicano.  •Consciência  das  mutilações  da  guerra,  mas  também da necessidade de exaltar o amor, os  sonhos, a imaginação;  •Metapoesia:  plasticidade  verbal,  erotismo  da linguagem;  • •• •Poética  do  ar  e  da  água-  Motivos  recorrentes: vento, mar, sonhos;  •Influência  do  2º  paradigma:  poesia  das  distopias  sociais,  mas  que  resiste  através  do “sonho da escrita.”    3. Distopias sociais: O “boom da prosa pós  – 1975”    • •• •A  “griotização”  do  narrador.  O  narrador  performático, aquele que encena, uma espécie  de  ator;  comporta-se  como  o  velho  da  oralidade;  • •• •Oralidade: real;  • •• •Oraliteratura: real + ficção;  Revisão crítica da História: crítica ao passado  colonial e à corrupção do neocolonialismo;  Recriar  poética  e  ficcionalmente  as  tradições  e mitos;  Repensar  o  lugar  dos  oprimidos.  Crítica  ao  passado colonial.                      1.  Antologia  Poesia  de  Combate,  volume  3,  publicada pela FRELIMO (1980).    2. Lírica Subjetiva:      Mia  Couto:  (Beira,  1955).  Biólogo  e  escritor.  Livro:  Raiz  de  orvalho  (1980)  -  Lirismo  dos  afetos;  Subjetividade:  ”Não  mais  os  fuzis  da  guerra, mas os fuzis da imaginação.”       Luis Carlos Patraquim (Maputo, 1953)  Livro:  Monção  (1980)  -  Poesia  do  Eu,  intimista,  existencial;  Sonho,  Voo;  Reescritura  dos  mitos  e  da  tradição;  Semelhanças  com  Sentimento  do  mundo,  de  Drummond;  O  sonho da escrita.    Eduardo  White  (Moçambique,  1963).  Fundador  da  Revista  Charrua.  Livro:  Amar  sobre o Indico (1984). Reescritura dos mitos e  da tradição; preocupação com as origens.  •O sonho da escrita: reescrever poeticamente a  sua história e a de Moçambique;  •Tentativa de apagar as  marcas da guerra e de  dignificar a vida humana;  •Amor diversificado que pode ser pela amada,  pela  terra  ou  mesmo  pela  própria  poesia,  sempre  num  tom  de  ternura,  de  onirismo,  de  musicalidade e de erotismo.    3. Distopias sociais: Ficção    Mia Couto; Paulina Chiziane; Nelson Saúte.    João Paulo Borge; Suleiman Cassano.        5 5 °   P A R A D I G M A      Anos 90-2000      Criação  dos  Cadernos  Literários  XIPHEFO  (candeeiro).  1987  por  Momed  Kadir  e  Adriano  Alcântara.              Geração  70:  1ª  geração  urbana  surgida  após  a  independência.  Fundada  na  década  de  90  por  jovens  nascidos  nos  anos 70.    Jornal Lua Nova (1994)  Dificuldades  no  campo  social, político e cultural.       1. Lírica com um projeto individual:  •Decepção  com  a  falência  do  projeto  revolucionário;  •O sonho  não como evasão,  mas como força  geradora do despertar político;  •Recuperação  dos  elementos  matriciais  da  cultura moçambicana;  •Influências  de  Knopfli,  Virgílio  de  Lemos,  Patraquim, Eduardo White.    2. Lirismo regionalista e universal:  • •• •Comprometimento com a realidade social;  • •• •Poética da dissonância;  • •• •Intertextualidade  com  o  lirismo  de  Patraquim e Eduardo White.      3.  Poesia  satírica,  irreverente.  Crítica  à  política econômica neoliberal:  •Influência  da  ironia  de  Craveirinha  e  Rui  Knopli.    4. Metapoética e erotismo.    1. Nelson Saúte   Projeto individual  Livros:  Os  habitantes  da  memória  (1988);  A  pátria dividida (1993).    Outros  poetas:  Afonso  dos  Santos;  Gulamo  Khan; Júlio Kazembe; Eduardo Pitta.      2.  Momed  Kadir.  Livro:  Impaciência  e  desencantos.  Outros poetas:  Francisco Guita Jr. Livro: Rescaldo.  Francisco Muñoz. Livro: É noite na alma.      3. Poetas:   Chagas  Levene,  Celso  Manguana,  Rui  Jorge,  Manecas  Cândido,  Ruy  Ligeiro,  Amin Nordine.    4. Andes Chivangue, Sangare Okapi, Mbate  Pedro, Dinis Muhai, Tânia Tomé.        *Anotações realizadas a partir das aulas da professora Carmem Tindó Secco.                                                              6 Parte I: a lírica moçambicana          Texto I                                 POR QUE ESTA ILHA? 1                                              Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco                   Ao  presidirmos  o  ato  de  instalação  do  Colóquio  A  ILHA  DE  MOÇAMBIQUE:  O  ENTRECRUZAR  DE  CULTURAS,  SONHOS  E  MEMÓRIAS,  organizado  pela  Cátedra    Jorge  de  Sena  para  Estudos  Literários  Luso- Afro-Brasileiros,  que  completa  dois  anos  de  existência,  começamos  por  apresentar  nossos  cumprimentos  às  autoridades  e  a  todos  os  presentes  que  aqui  nos  prestigiam.  Em  seguida,  expressamos  nossos  sinceros  agradecimentos  à  FAPERJ,  ao  CNPq  e  ao  Instituto  Camões  pelas  subvenções  concedidas  para  a  realização  deste  evento; à Faculdade de Letras da UFRJ e ao Setor Cultural - Faculdade Letras-UFRJ, pela infra-estrutura fornecida;  aos funcionários e aos bolsistas desta faculdade, que, mesmo em greve, foram incansáveis. Não podemos deixar de  externar  ainda  nosso  reconhecimento  à  Fundação  Calouste  Gulbenkian,  de  quem  a  Cátedra  vem  recebendo  apoio  constante para seu funcionamento.  De pronto, queremos ressaltar a importância deste Colóquio, o primeiro sobre o assunto realizado no Brasil.  Sendo a Ilha de Moçambique um local de cruzamento de várias culturas, decidimos elegê-la como tema deste  Colóquio.  Historicamente,  essa  Ilha  guarda  a  memória  de  conflituosas  e  tensas  relações  entre  África,  Brasil  e  Portugal.  Literariamente,  foi  cantada  por  vozes  de  grande  expressão:  Camões,  Jorge  de  Sena,  Tomás  António  Gonzaga  (exilado  na  Ilha)  e,  naturalmente,  por  muitos  poetas  moçambicanos:  Rui Knopfli,  Alberto  de  Lacerda,  Orlando  Mendes,  Glória  de  Sant'Anna,  Virgílio  de  Lemos,  Luís  Carlos  Patraquim,  Eduardo  White,  Nelson  Saúte e outros.  A  importância conferida  «à  Ilha  se  deve  não  só por ter  sido  um  porto  seguro  à navegação  que  se  realizou no  Índico,  mas  também  por  ter  atraído  diferentes  mercadores  que  ali  se  fixaram,  visando  ao  comércio  do  ouro,  das  especiarias,  do  marfim  e,  também,  dos  escravos,  muitos  dos  quais  foram  embarcados  para  o  Brasil.  Pela  Ilha  de  Moçambique  passaram  diversos  navegadores  da  Europa,  do  Oriente  e  da  Arábia.  A  matriz  bantu  absorveu  muitas  heranças  de  que  estes  povos  foram  portadores  e,  por isso, ainda  hoje,  encontramos,  nos  usos e  práticas sociais,  na  religião, na própria língua, na indumentária, nas danças, sinais da interação cultural que ali se desenvolveu” 2 .  Além  dessas  motivações  histórico-culturais,  lembramos  que  o  arquétipo  dos  espaços  insulares  é  recorrente  em  diferentes tempos e culturas. Desde o maravilhoso arcaico aos dias atuais, o imaginário das ilhas sempre esteve  ligado  aos  temas  das  viagens,  das  utopias.  Para  alguns  povos,  as  ilhas  se  afiguravam  como  lugares  paradisíacos, locais de proteção e refúgio. Para outros, entretanto, se apresentavam como espaços de perigo,  morada de monstros e seres tenebrosos.  Geralmente concebidas como instâncias redentoras, territórios de promessas e eldorados, as ilhas se instituem  como  paisagens  privilegiadas  onde  se  concentram  as  energias  cósmicas  e  as  forças  estruturantes  de  um  onirismo  primordial. Quase todas as ilhas incitam à imaginação, ora suscitando aventuras instigantes, ora se oferecendo como  “locus ameno” de repouso e paz, ora se abrindo ao voo livre da mente, à faculdade de sonhar.  Com suas configurações circulares e fechadas, ovais ou arredondadas, as ilhas, cercadas por águas profundas,  representam  um  convite  a  descobertas  que  tanto  podem  ser  físicas,  como  psíquicas.  Afastadas  do  continente,  resistem  às  rápidas  mudanças  advindas  da  modernidade,  conservando  traços  originários  de  culturas  e  tempos  históricos  diversos.  Desencadeiam,  portanto,  sonhos  e  anseios  tanto  em  relação  ao  passado,  fazendo  com  que  muitos partam em busca de utópicas memórias. Corno local por excelência de utopias, as ilhas se ligam aos desejos  inconscientes  que  foram  recalcados  nos  silêncios  do  outrora,  projetando  também,  entretanto,  esperanças  a  se  realizarem em tempos futuros.  No  caso  de  Moçambique,  a  maioria  das  ilhas  eram  despovoadas.  As  etnias  africanas  de  origem  bantu  habitavam o continente. Em meados do século VII os árabes islamizaram a costa oriental da África. Quando  os  portugueses  aportaram,  no  século  XV,  na  Ilha  de  Moçambique,  encontraram  ali  um  xecado  árabe.  Empre- enderam, então, a conquista, tentando impor seu poder. Textos de cronistas e poetas relatam como os portugueses,  ao ocuparem a Ilha, ergueram fortalezas e igrejas, buscando sobrepor sua cultura à dos mouros.  Segundo  Edward  Said,  em  seu  livro  Orientalismo,  a  relação  entre  o  Ocidente  e  o  Oriente  foi  edificada  em  torno  de  questões  de  poder;  e,  para  que  este  fosse  alcançado,  o  Ocidente  sempre  representou  negativamente  os  árabes  e  indianos,  caracterizando-os  como  povos  nómades,  exóticos,  desonestos,  ladrões,  traficantes  de  escravos,  ouro e marfim. Desse modo, conforme Said, a imagem do “Oriente foi, quase sempre, tecida como uma invenção do  Ocidente” 3  para justificar a hegemonia deste último.            Não  conseguindo  extirpar  totalmente  os  cultos  e  costumes  árabes,  a  política  lusitana  foi  a  de  segregá-los,  principalmente a partir da segunda metade do século XIX, época em que se desenvolveu a verdadeira colonização  portuguesa em África, pois, até então, Portugal estivera ocupado com o comércio do ouro e com o tráfico negreiro    7 para o Brasil. A Ilha de Moçambique fez parte da rota da escravidão, funcionando como depósito dos escravos que  eram  vendidos  para  as  Américas.  Com  o  fim  do  tráfico,  a  Ilha  entrou  em  decadência,  mas  os  povos  que  por  lá  passaram  deixaram  suas  marcas  culturais  presentes  em  costumes  e  cultos  que  continuaram  a  ser  praticados  como  registra,  por  exemplo,  José  Craveirinha,  na  crónica  “A  Voz  de  Maulide”,  onde  focaliza  velhos  macuas,  islamizados, a lerem o livro sagrado e a entoarem cânticos animados pelo som da daíra.  Durante  a  ocupação  portuguesa,  as  ilhas  se  tornaram  pontos  estratégicos  de  defesa  do  continente;  foram  também  locais  de  exílio  e  prisões.  Mais  tarde,  com  as  lutas  pela  Independência  e,  posteriormente,  com  a  guerra  civil, cujas batalhas foram travadas, na maioria das vezes, no interior do continente, alguns desses espaços insulares  foram usados como lugares de detenção e tortura; outros serviram de refúgio aos deslocados de guerra.  Esquecidas durante anos, algumas dessas ilhas guardaram, contudo, em suas entranhas, arquitetura e costumes,  muitas  das  tradições,  tornando-se,  desse  modo,  metafóricos  depósitos  de  vestígios  culturais  que  sobreviveram  a  séculos de opressão.  Lembrada  pela  voz  de  poetas  e  pelas  telas  de  pintores,  a  Ilha  de  Moçambique,  embora  ameaçada  de  desaparecimento  pelo  abandono  que  durante  tantos  anos  lhe  foi  imputado,  se  revela,  entretanto,  um  lugar  privilegiado de sonhos e culturas, cujos fios entrecruzados resistem sob os destroços do tempo. Ao lado da literatura  e  das  artes,  que  apresentam  uma  visão  transfiguradora  do  real,  pretendemos  que  a  memória  da  Ilha  seja  também  repensada por uma perspectiva crítica da história. Por isso, convidamos, além dos poetas e pintores, historiadores e  sociólogos.  A  Ilha  de  Moçambique,  «Património  Cultural  da  Humanidade»,  tombada  pela  UNESCO,  tem  um  valor  inestimável, necessitando de ser melhor conhecida pelo mundo. Nosso Colóquio, pois, pretende contribuir para uma  maior visibilidade desse espaço insular culturalmente tão rico.      1   Texto  proferido  pela  presidente  do  Colóquio,  Doutora  Carmen  Lúcia  Tindó  Ribeiro  Secco,  que  é  professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora do  livro Além da idade da razão: longevidade e saber na ficção brasileira (1994).  2  Trecho da autoria de Adriano Afonso Maleiane, retirado do site  http://www.janelanaweb.com/viagens/mocambique.html    Texto  “Por  que  essa  ilha?,  de  Carmen  Lúcia  Tindó  Secco,  retirado  do  site:
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[email protected]      Texto II       O IMAGINÁRIO DAS ILHAS EM ALGUNS POETAS MOÇAMBICANOS                                                                     Carmen Lucia Tindó Secco    1. A SIMBOLOGIA DAS ILHAS    O  arquétipo  dos  espaços  insulares  é  recorrente  em  diferentes  tempos  e  culturas.  Desde  o  maravilhoso  arcaico  aos  dias atuais,  o imaginário  das  ilhas  sempre  esteve  ligado  aos temas  das  viagens, das  utopias.  Para  alguns  povos,  as  ilhas  se  afiguravam  como  lugares  paradisíacos,  locais  de  proteção  e  refúgio.  Para  outros,  entretanto,  se  apresentavam como espaços de perigo, morada de monstros e seres tenebrosos.  Geralmente concebidas como instâncias redentoras, territórios de promessas e eldorados, as ilhas se instituem como  paisagens  privilegiadas  onde  se  concentram  as  energias  cósmicas  e  as  forças  estruturantes  de  um  onirismo  primordial. Quase todas as ilhas incitam à imaginação, ora suscitando aventuras instigantes, ora se oferecendo como  “locus ameno” de repouso e paz, ora se abrindo ao vôo livre da mente, à faculdade de sonhar.   Com  suas  configurações  circulares,  fechadas  e  arredondadas,  as  ilhas,  cercadas  por  águas  profundas,  representam  um convite a descobertas que tanto podem ser físicas, como psíquicas. Afastadas do continente, resistem às rápidas  mudanças  advindas  da  modernidade,  conservando  traços  originários  de  culturas  e  tempos  históricos  diversos.  Desencadeiam, portanto, sonhos e anseios tanto em relação ao passado, fazendo com que muitos partam em busca  de utópicas memórias. Como local por excelência de utopias, as ilhas se ligam aos desejos inconscientes que foram  recalcados nos silêncios do outrora; projetam também, entretanto, esperanças a se realizarem em tempos futuros.    2. O QUE É UTOPIA?    A utopia é uma força inerente aos homens que os faz reagir às decepções. Encontra-se, desse modo, relacionada ao  “princípio esperança” de que fala Ernest Bloch, consistindo em atitudes sonhadoras contrárias a tudo o que sufoca o  ser humano.     8 Porém,  a  utopia  não  pode  ser  confundida  com  o  sonho  puramente  romântico  que  se  caracteriza  como  fuga  à  realidade.  As  utopias  produzem  sonhos  ativos,  encharcados  de  desejos,  os  quais  se  apresentam  como  agentes  impulsionadores da travessia existencial e social do homem. Dessa forma, impedem o imobilismo cultural.  Esse  conceito  de  utopia  se  aproxima  muito  mais  do  de  imaginação,  categoria  que  se  define  como  “força  de  contradição”,  ou  seja,  como  capacidade  de  superar  os  limites  medíocres  da realidade, levando  os seres  humanos  a  buscarem, pela transgressão, outros mundos possíveis. Quando falamos de imaginação, não nos referimos apenas ao  domínio do individual, mas, principalmente, às instâncias do social, já que estas também exigem uma criatividade  capaz de prolongar o real em direção ao futuro. Alguns teóricos contemporâneos chamam de imaginação exigente  ou  imaginação  utópica  a  esse  ponto  de  contato  entre  o  real  e  o  sonho,  que  luta  pela  materialização  dos  desejos  submersos  e  que,  portanto,  nunca  se  esgota,  pois  opera  sempre  com  um  excedente  inventivo  a  funcionar  como  elemento  propulsor  de  mudanças.  Esse  conceito  de  utopia  se  avizinha  da  concepção  do  filósofo  alemão  Walter  Benjamin,  para  quem  o  pensamento  utópico  impulsiona  as  transformações,  sendo,  por  isso,  uma  forma  de  resistência cultural.  Essa  acepção  de  utopia  nada  tem  a  ver  com  as  formas  utópicas  clássicas  que  privilegiam  o  espaço;  ao  contrário  dessas, prioriza o tempo, projetando o futuro, a partir de uma problematização crítica do passado e do presente.  O conceito de utopia surgiu no século XVI, com Thomas More, que criou a estória da Ilha da Utopia, “ou-topos”, “o  não-lugar”, metáfora que, na verdade, foi uma forma simbólica de criticar a repressão existente na Inglaterra dessa  época.  As  utopias,  entretanto,  embora  não fossem  assim  designadas,  existiam  desde  Platão,  quando  este,  nos  séculos V  e  IV  a.C.  defendia,  em  A  República,  Atenas  como  a  “polis  ideal”.  Esse  tipo  de  utopia  enfatizava  a  necessidade  da  ordem, da Lei, da razão. Sob o signo do apolíneo, Atenas foi idealizada por Platão como a “cidade perfeita”.  Thomas More propôs outro modelo de utopia clássica: sonhou com uma ilha perdida onde os homens “sem cidade e  sem país” viveriam num paraíso regido, entretanto, por rígidas convenções. Essas duas formas de utopia revelam-se,  ao  fim  e  ao  cabo,  como  sistemas  autoritários  que  não  dão  voz  às  diferenças,  convertendo-se  em  verdadeiras  “ditaduras utópicas”.  No  final  do  século  XIX  e  no  princípio  do  XX,  entrou  em  circulação  um  novo  tipo  de  utopia:  a  socialista,  de  orientação  marxista.  Enveredando  por  vertentes  ortodoxas,  esse  modelo  de  utopia  acabou  por  inverter  a  relação  entre  dominadores  e  dominados.  Por  essa  razão,  muitas  fissuras  se  abriram,  afastando  os  discursos  da  prática.  Em  muitos países onde governos socialistas subiram ao poder, a palavra libertária não se cumpriu de todo, havendo atos  tão autoritários quanto os praticados por antigas ditaduras de direita. Esses três tipos constituem as utopias clássicas,  todas elas totalitárias.  No fim dos anos 80, com a queda do Muro de Berlim, alguns historiadores proclamaram o fim das utopias. Mas não  foram estas que morreram; apenas as utopias políticas é que entraram em falência. Porém, surgiram e surgem ainda  novas  formas  utópicas.  O  mundo  se  estilhaçou  e  a  estética  dos  fractais  se  erigiu  como  paradigma  do  pensamento  filosófico  contemporâneo.  As  utopias  se  tornaram  fragmentárias,  deslizantes  no  tempo  e  no  espaço.  Como  mencionamos  anteriormente,  o  filósofo  Walter  Benjamin  já  propunha,  desde  fins  do  século  XIX,  um  conceito  de  utopia mais ligado ao tempo que ao espaço. Defendia as utopias subjetivas, relacionadas aos sonhos recalcados no  inconsciente histórico. Nesse sentido, propunha um novo conceito de sonho que lidava com a memória interior e se  afigurava  como  “imaginação  exigente”,  sendo  capaz  de  redefinir  o  presente  e  o  futuro  à  luz  da  problematização  crítica do passado.  Nos  tempos  atuais,  as  utopias  deixaram  de  ser  apenas  sociais  e  políticas,  contemplando  também  os  aspectos  existenciais e individuais da vida humana. Antes, as utopias eram espaciais, buscavam locais idealizados; agora, as  utopias são temporais e procuram captar subjetividades encobertas, silenciadas, sob os desvãos da História. Poetas e  escritores, hoje, desenvolvem projetos utópicos que se assentam, principalmente, em dimensões estéticas e eróticas  da escritura literária.    3. UM POUCO DA HISTÓRIA DA ILHA DE MOÇAMBIQUE    No caso de Moçambique, a maioria das ilhas eram despovoadas. As etnias africanas de origem banto habitavam o  continente. Em meados do século VII, os árabes islamizaram a costa oriental da África.  Quando  os  portugueses  aportaram,  no  século  XV,  na  Ilha  de  Moçambique  encontraram  ali  um  xecado  árabe.  Empreenderam,  então,  a  conquista,  tentando  impor  seu  poder.  Textos  de  cronistas  e  poetas  relatam  como  os  portugueses, ao ocuparem a Ilha de Moçambique, ergueram fortalezas e igrejas, buscando sobrepor sua cultura à dos  mouros:    A povoação portuguesa organizou-se, no século XVI, à volta da Torre Velha, situando-se  a dos árabes ou mouros no sítio do Celeiro. O fosso religioso que na época separava os  homens obrigava-os a terem bairros diferentes, cada qual com seus templos privativos.(1)      9 O domínio português difundiu seus estereótipos e seus fetiches, tratando como Outros não só os negros de origem  banto,  mas  também  os  indianos,  os  árabes  e  os  “mouros  negros”  da  região,  passando  aos  colonizados  seus  preconceitos contra os orientais .  Segundo Edward Said, em seu livro Orientalismo, a relação entre o Ocidente e o Oriente foi edificada em torno de  questões  de  poder;  e,  para  que  este  fosse  alcançado,  o  Ocidente  sempre  representou  negativamente  os  árabes  e  indianos,  caracterizando-os  como  povos  nômades,  exóticos,  desonestos,  ladrões,  traficantes  de  escravos,  ouro  e  marfim.  Desse  modo,  a  imagem  do  “Oriente  foi,  quase  sempre,  tecida  como  uma  invenção  do  Ocidente  (2)  para  justificar a hegemonia deste último”.    Com  essa  caracterização  discriminatória,  a  colonização  lusitana  procurou  silenciar  os  traços  orientais  da  cultura  moçambicana, fazendo com que esta se esquecesse de que “não foi pela mão dos portugueses que a pequena Ilha de  Moçambique entrou na História, mas pela dos árabes, que nela se instalaram ao longo da costa oriental da África”  (3), bem antes da chegada de Vasco da Gama.    A responsabilidade pelo fato de a história mais remota da Ilha de Moçambique ser mal conhecida deve- se,  pelo  menos  em  parte,  aos  próprios  portugueses,  cuja  política  de  ocupação  da  ilha  conduziu  à  dispersão  e  ao  desaparecimento  das  comunidades  muçulmanas  que  ali  habitavam  durante  a  era  pré- gâmica. Com isso, se esgarçaram as lendas fundadoras e as tradições que narravam a história do xecado  e do sultanato ali existentes. (4)    Não  conseguindo  extirpar  totalmente  os  cultos  e  costumes  árabes,  a  política  lusitana  foi  a  de  segregá-los,  impingindo  uma  visão  preconceituosa  a  respeito  deles,  principalmente  a  partir  da  segunda  metade  do  século  XIX,  época  em  que  se  desenvolveu  a  verdadeira  colonização  portuguesa  em  África,  pois,  até  então,  Portugal  estivera  ocupado com o comércio do ouro e com o tráfico negreiro para o Brasil. A Ilha de Moçambique fez parte da rota da  escravidão, funcionando como depósito dos escravos que eram vendidos para as Américas. Com o fim do tráfico, a  Ilha  entrou  em  decadência,  mas  os  povos  que  por  lá  passaram  deixaram  suas  marcas  culturais  presentes  em  costumes  e  cultos  que  continuaram  a  ser  praticados  como  registra,  por  exemplo,  José  Craveirinha,  na  crônica  “A  Voz  de  Maulide”,  onde  focaliza  velhos  macuas,  islamizados,  a  lerem  o  livro  sagrado  e  a  entoarem  cânticos  animados pelo som da daíra, num ritual de “paciência e fatalismo orientais”. (5)    Durante  a  ocupação  portuguesa,  as  ilhas  se  tornaram  pontos  estratégicos  de  defesa  do  continente;  foram  também  locais de exílio e prisões. Mais tarde, com as lutas pela Independência e, posteriormente, com a guerra civil, cujas  batalhas  foram  travadas,  na  maioria  das  vezes,  no  interior  do  continente,  alguns  desses  espaços  insulares  foram  usados como lugares de detenção e tortura; outros serviram de refúgio aos deslocados de guerra. Esquecidas durante  anos,  algumas  dessas  ilhas  guardaram,  entretanto,  em  suas  entranhas,  muitas  das  tradições,  tornando-se,  desse  modo, metafóricos depósitos de vestígios culturais que resistiram ao tempo e à opressão.    4. AS ILHAS PELAS VOZES DA POESIA EM MOÇAMBIQUE    No  fim  dos  anos  80  e  início  dos  90,  com  o  enfraquecimento  das  utopias  revolucionárias,  poetas  e  escritores,  ao  verem  o  continente  aviltado  pelos  longos  períodos  de  guerra,  buscaram  os  espaços  menos  atingidos  por  esta.  Voltaram-se, então, para o imaginário do mar e das ilhas, à procura de Eros, do Amor e das origens. Essa é uma das  tendências da poesia dessa época, constatada a partir de levantamentos feitos em poemas de Luís Carlos Patraquim,  Mia Couto, Nelson Saúte e Eduardo White.    As  ilhas,  entretanto,  foram  cantadas  também  por  outras  vozes  anteriores,  dentre  as  quais:  as  de  Rui  Knopfli,  Orlando Mendes,  Glória de  Sant’Anna,  Virgílio  de  Lemos,  os  dois  últimos  conhecidos  como  os  poetas do  mar  do norte de Moçambique. Rui Knopfli, por exemplo, conseguiu captar as múltiplas religiosidades presentes na Ilha  de  Moçambique,  chamando  a  atenção  para  alguns  traços  característicos  do  Oriente:  Mas  retomo  devagarinho  às  tuas  ruas  vagarosas,  caminhos  sempre  abertos  para o  mar,  brancos  e  amarelos  filigranados  de  tempo  e sal,  uma  lentura brâmane (ou muçulmana?) durando no ar... (6).    Muitos  outros  poetas  e  cronistas  escreveram  sobre  essa  Ilha,  chamada  inicialmente  Muhipíti,  cujas  paisagens  e  monumentos  revelam  diferentes  heranças  culturais.  Rui  Knopfli  a  chamou  de  Ilha  Dourada  e  descreveu  suas  fortalezas portuguesas e naves mouras. Orlando Mendes lembrou que    Por  ali  estiveram  Camões  das  amarguras  itinerantes  e  Gonzaga  da  Inconfidência  no  desterro  em  lado  oposto. Era a rota dos gemidos e das raivas putrefactas E dos partos que haviam de povoar as Américas  com braços marcados a ferro nas lavras e colheitas. (7)    10   Também Glória de Sant’Anna, cuja linguagem poética se caracterizou por fluir numa liquidez profunda, articulada  por  uma  semântica  marítima  e  abissal, saudou essa  Ilha.  Por  ter  nascido  em  Lisboa  e  por  ser  sua  poesia  de  cunho  predominantemente  universal,  versando  sobre temas  existenciais,  a  poesia  de  Glória  de  Sant’Anna,  durante  algum  tempo,  não  foi  considerada  como  pertencente  ao  patrimônio  literário  moçambicano,  embora  grande  parte  de  seus  poemas tenha sido produzida durante os vinte e três anos vividos em Moçambique. Bastante discutível esse critério,  ainda bem que se encontra hoje superado.    Atualmente, são reconhecidos em sua poética os pactos afetivos de identificação, tecidos durante sua longa vivência  em  terras  africanas,  cujas  cartografias  geográficas,  culturais  e  humanas  integram  o  imaginário  literário  de  seus  versos, como ocorre, por exemplo, no poema “ Ilha de Moçambique”:    (...) É uma ilha toda com fecho de prata _ sua fortaleza muito bem lavrada (...). E palmares e casas ao pé  de outros bairros descidos na terra que se amolda e talha para gente negra tão esbelta e tão grave. (8)    Embora fazendo a opção pelo silêncio e pela metáfora, nas entrelinhas do poema, o eu - lírico denuncia os espaços  diferenciados  que,  no  passado,  isolaram  os  dominadores  portugueses,  em  suas  fortalezas,  da  gente  negra,  levada  para os bairros pobres da Ilha.     Virgílio de Lemos é outro poeta, cuja obsessão pelas ilhas do Índico é intensa. Em toda sua produção está presente  o mar, cujas metafóricas imagens são múltiplas, abrindo-se em vertiginosos movimentos, que se voltam tanto para  as  oceânicas  recordações  matriciais,  como  para  o  azul  infinito  da  imaginação  criadora.  O  oceano  remete  ao  inconsciente  profundo  do  poeta, ao  mergulho  em  direção  às  origens,  de  onde retira  elementos  para  as  construções  surreais que povoam seu universo poético.     Nascido, na Ilha de Ibo, que integra o arquipélago das Quirimbas, na costa norte moçambicana, Virgílio aprendeu a  amar a ilha natal, um dos últimos locais de resistência macua e swahili à colonização lusitana. Um dos defensores  da  criação  de  uma  poiesis  moçambicana,  antropofágica  e  descentrada  em  relação  ao  fazer  literário  imposto  pela  colonização,  Virgílio  propunha,  nos  anos  50  e  60,  uma  poesia  rebelde,  reveladora  dos  múltiplos  sabores  culturais  presentes  no  tecido  social  moçambicano.  Mesmo  nessa  época,  seu  lirismo,  entretanto,  nunca  se  circunscreveu  apenas às cores locais, bebendo sempre de uma ânsia universal. Sua poesia se organiza por ciclos e subciclos que se  movimentam em espirais, numa estrutura barroca puramente estética, transgressora, erótica. Ao mesmo tempo que  faz o eu - lírico se sentir atraído pela sedução do abismo e pelo vazio da morte, o incita também a reagir, voltando- se para Eros e para a História. No poema “A Fortaleza e o Mar”, evoca a memória da Ilha de Moçambique e, pela  meditação,  busca  exorcizar  “os  fantasmas  e  paradoxos”  da  história,  cuja  ambição  e  cobiça  ultrajaram  o  chão  insular:    O tempo quebrado invade  o canonizado lugar e o Amor  deixa-se viver, Eros, talvez mar  desta reflexiva via, meditação.  O tempo e o lugar resistem    como o fruto e a flor. E teu olhar  sobre as coisas vigilante se nutre  de estrelas, de areia, sobressaltos.  Os mesmos fantasmas se cruzam  pela praia, nos paradoxos repetidos  entre a cobiça e o cego desejo.(9)    O  eu  -  poético  desse  poema  tem  consciência  de  que  é  preciso  de  novo  recuperar  o  “lugar  canonizado”  do  Amor,  introjetando Eros para apagar os “sobressaltos” do passado. Cantar o amor e os sentimentos humanos universais é  outra  tendência  também  presente  na  geração  de  poetas  moçambicanos  surgidos  nos  anos  80,  como  Luís  Carlos  Patraquim,  Eduardo  White,  Mia  Couto,  Nelson  Saúte,  que  reivindicaram  uma  poética  não  mais  revolucionária  apenas  no  sentido  ideológico  e  social,  mas  também  no  plano  individual,  existencial  e  literário.  Esses  poetas  propunham  uma  poesia  capaz  de  recuperar  as  emoções  pessoais.  Nela,  os  versos  deviam-se  tornar  canto,  arma  de  reflexão sobre a vida, a história e a poesia. Para Eduardo White:        11 Felizes os homens  que cantam o amor.  A eles a vontade do inexplicável  e a forma dúbia dos oceanos.(10)    De  novo  a  metáfora  marinha  assinala  a  dubiedade  de  uma  identidade  problemática,  porque  engendrada  na  encruzilhada de dois oceanos: o Índico que banha o litoral do país e serviu à rota oriental dos mercadores árabes e o  Atlântico que, embora distante, a ocidente, trouxe as caravelas e o imaginário lusitano. Eduardo White, apesar de  cantar o amor, não esquece as questões sociais, mostrando a morte que sufocou Maputo, durante os anos de guerra  civil: “Amor! / Os nossos mortos estão apodrecendo pelas ruas”. (11)    Essa  geração  teve  a  clareza  de  que  o  rigor  do  marxismo  ortodoxo,  cujos  princípios  orientaram  certos  discursos ideológicos dos tempos da poesia do combate, tornou sem expressão os sentimentos individuais.  O  aspecto  surreal  dessa  poesia  expressou  poeticamente  o  absurdo  e  a  violência  da  própria  realidade;  apontou  também  para  os  sonhos  dispersos  que  se  encontravam  adormecidos  no  imaginário  dilacerado  de  Moçambique.  Procurou, assim, redefinir a identidade do país, reconhecendo-a mestiça e plural. Como navegantes à deriva, vários  poetas  assumiram,  então,  a  consciência  da  “pátria  dividida”  e  mergulharam  seus  versos  em  direção  às  origens,  tentando  recuperar,  através  das  correntes  subterrâneas  da  memória,  as  ruínas  do  passado  submerso,  como  comprovam os seguintes versos de Nelson Saúte:    (...) Mulher de m’siro feitiço do Oriente  os poemas do irredimível encantamento  levantam-se sobre as ruínas.  Na proa da memória a evocação das velas  sonolentas na imaginária romaria(...)  A odisséia celebra o nome da pátria  na errância das naus pelo Índico.  Os homens a terra e o tempo:  suas vozes descubro na História.(12)    Através da errância dessa poesia que objetiva desvendar as fendas e fraturas da própria identidade, as vozes poéticas  retornam  aos  espaços  matriciais  da  colonização,  percebendo  que  até  estes  locais  se  encontram  cindidos  pelas  lembranças de culturas várias, em que estavam presentes tanto as tradições e os ritmos africanos das etnias negras  do  chão  banto,  como  as  marcas  ocidentais  trazidas  pelos  portugueses  e  os  temperos  acres  deixados  pelos  comerciantes  árabes  e  pelos  indianos.  Luís  Carlos  Patraquim,  por  exemplo,  cantou  essa  mesclagem  de  traços,  presentes na Ilha de Moçambique:    (...)  tufo  persa,  arábia  das  noites  à  deriva,  memória  do  sal,  langor  plasmando-se  em  marítimas  vozes  sensuais....  Foste  uma  vez  a  sumptuosidade  mercantil.  (...)  Sobre  a  flor  árabe  a  excisão  esboçada.  (...)  Fadário quinhentista de “armas e varões assinalados”. (13)    Subvertendo o conhecido verso camoniano, o eu-poético declara sua recusa à conquista lusitana que descaracterizou  seu  país  durante  longos  anos.  Redescobrindo  a  sensualidade  e  o  paladar  árabes  ainda  existentes  na  Ilha  de  Moçambique, inscreve-os na textualidade de sua poesia, reconhecendo o multiculturalismo presente no imaginário  moçambicano:     “(...) ao princípio era o mar e a Ilha. Simbad e  Ulisses. Xerazade e Penélope.  Nomes sobre nomes. Língua de línguas em macua matriciadas.”(14)    A  eroticidade  marítima  invade  a  da  linguagem,  convertendo-a  em  um  ritual  de  metapoesia,  em  que  o  corpo  da  ilha, o da mulher e o do poema se entrelaçam, na busca das híbridas raízes moçambicanas.  Procedimento  semelhante  é  encontrado  também  na  poesia  de  Eduardo  White:  Sou  ao  Norte  a  minha  Ilha,  os  sinais  e  as  sedas  que  ali  se  trocaram  e  nessa  beleza  busco-te  e  para  mim  algum  percurso,  alguma  linguagem  submarina  e  pulsional,  busco-te  por  entre  as  negras  enroladas  em  suas  capulanas  arrepiadas,  altas,  magras,  frágeis e  belas como  as  missangas  (...)  Que  viagens  eu  viajo,  meu  amor,  para tocar-te esses  búzios  (...)  Amo-te  sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes (...)(15)      12 Conforme  palavras  de  Mia  Couto  (16)  e  Fátima  Mendonça  (17),  em  prefácios  a  livros  de  Eduardo  White,  voar  através  de  Eros  e  dos  sonhos  é  um  dos  caminhos  encontrados  por  essa  poesia  que  se  insurge  contra  a  solidão  da  sociedade  moçambicana,  ainda  fraturada  em  conseqüência  da  guerra.  A  denúncia  social  é  feita  por  intermédio  do  apelo ao poético e ao onírico, à leveza do vento e do ar, símbolos da imaginação criadora.    Também a poesia de Nelson Saúte opera nessa linha de resgate da memória por via do desejo. O corpo do poema,  da História e da Ilha se fundem em busca das matrizes moçambicanas:    Ó m’siro  encantamento de meus olhos  perfaz a tua insular imagem.  No litoral do teu corpo  a apoteótica espuma  do orgasmo das ondas.(18)    Ilha, sedução, encantamentos do Oriente _ presença constante na memória dos poetas. Ilha, lugar do reencontro com  as origens, local do repensar da poesia e da história, como se depreende do seguinte poema de Mia Couto:         Ilha de Ibo    Pequena borboleta  com asas de corais vermelhos  a nossa ilha  não foi criada para cela  onde morrem os meus irmãos  o nosso mar  não foi feito para grades  onde se ensombram os olhos,  os olhos negros dos meus irmãos. (...)    —assim me contaram os que sobreviveram. E enquanto os olhos dos peixes guardavam a luz e levavam o  dia para o fundo do mar as mãos assassinas dos carrascos vasculhavam segredos rasgando na carne dos  prisioneiros a incurável ferida de serem homens, companheiros firmes e leais.  Dizem ainda que eram os pescadores que remando entre a fome e a ilha da fortaleza traziam a lua perto  das  marimbas  cujo  canto  se  espalhava  sobre  as  ondas  inquietas  e  sossegava  o  peito  cansado  dos  meus  irmãos.  Mas  os  carrascos  não  sabiam  (talvez  porque  fossem  ainda  mais  prisioneiros  que  os  meus  irmãos)  que  uma  fortaleza  cheia  de  crimes  incontáveis  pesa  demasiado  para  uma  pequena  borboleta  vermelha  com  asas  de  corais  vermelhos  e  a  ilha-prisão  submergiu  levando  consigo  um  tempo  manchado  de  sangue  de  sangue dos meus irmãos. (19)    A  poesia  dessa  geração,  representada,  entre  outros,  por  Patraquim,  Mia  Couto,  Eduardo  White,  Nelson  Saúte,  tenta, portanto, exorcizar o tempo de opressão em que as ilhas foram transformadas em prisões, lupanares, espaços  de  exílio  e  tortura.  Essa  poética  busca  reinventar  os  territórios  insulares,  recuperando  as  imagens  das  ilhas  como  espaços  eróticos  do  sem-limite,  da  liberdade  e  da  imaginação  criadora,  onde  mar  e  poesia  se  irmanam,  refletindo  sobre  o  próprio  fazer  poético.  Essa  postura  é  encontrada  também  na  obra  poética  de  Virgílio  de  Lemos,  tanto  em  seus  poemas  dos  anos  50  e  60,  como  na  sua  produção  mais  recente,  quando,  nos  anos  90,  revisita  a  Ilha  de  Moçambique e a define assim:    A ilha é o elíptico retomar dos regressados sinais ausência e memória futura, mar surreal memória que  os mitos tecem, história na história exílios dentro do exílio na tragédia da palavra (...) (20)    Fecho esta comunicação, com esse poema de Virgílio de Lemos, poeta em que a presença insular é uma constante  na sua obra, desde os anos 50. Ele foi um dos grandes cantores das ilhas de Moçambique no passado e, no presente,  continua a sê-lo, acompanhado de vozes, como as de Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, entre outras, cuja  poesia também persegue recorrentemente os arquétipos insulares. Para esses poetas, as ilhas nunca foram apenas um    13 tema.  Sempre  se  constituíram,  visceralmente,  como  corpo  da  própria  poesia,  plasmando-se  claramente  relacionadas à procura das origens e da beleza estética.    Na  poesia  de  Virgílio,  as  ilhas  se  encontram  ligadas  ao  erotismo  próprio  de  seu  “barroquismo  estético”,  que  se  expressa  enquanto  jogo,  perda,  desperdício  e  gozo  em  relação  ao  objeto  perdido.  A  “ilha,  resumo  metafísico  do  mundo”, segundo palavras do próprio Virgílio, é o que é buscado, embora o importante seja a viagem. Ibo, espaço  matricial, se torna o lugar da meditação e do reencontro com as paisagens remotas, assim como também as outras  ilhas de sua poesia, espaços cheios de luz e cor, de raios solares incandescentes. Da sua errância marítima e insular,  emergem  a  memória  do  azul,  os  sons  do  swahili,  do  oriente  africano,  as  imagens  de  peixes  e  pássaros,  de  íbis  cruzando os horizontes, que lembram ao sujeito poético os quadros de Klee, Miró e Kandinsky. A intertextualidade  da poesia virgiliana não se restringe, apenas, à literatura; é mais ampla, estabelecendo diálogos e correspondências  também com a pintura moderna. Virgílio pinta com palavras. Plástica e visual, sua poética brinca barrocamente com  a  sedução  das  cores,  dos  ritmos,  com  a  forma  das  palavras,  das  rochas  e  dos  corais,  com  o  brilho  do  sol,  com  os  reflexos da água do mar, lugar do movimento, do labirinto, da vertigem, da dispersão do eu lírico, sempre em busca  das grutas de silêncio e do mistério do indizível. Concluindo, observa-se que o imaginário moçambicano das ilhas,  tanto  para  Virgílio  de  Lemos,  como  para  os  poetas  anteriormente  referidos,  se  institui  como  local  do  erotismo  primordial, lugar  matricial onde  a  linguagem  rejuvenesce a  cada instante,  encharcada de  desejo e  sensualidade,  de  poeticidade  e  lirismo.  As  ilhas  se  apresentam  também  como  espaços  de  revisão  crítica  da  história  e  da  memória,  como lugares metafóricos da metapoesia, onde os poetas refletem sobre o próprio fazer literário. Em suma, as ilhas  se  apresentam  como  instâncias  simbólicas,  a  partir  das  quais  se  torna  possível  ainda  inventar  novos  caminhos  e  outras utopias.         NOTAS:    1. LOBATO, Alexandre. “A Ilha de Moçambique: notícia histórica”. In: SAÚTE, Nelson e SOPA,  António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edições 70, 1992. p.171.  2. SAID, Edward. Orientalismo. SP: Companhia das Letras,1990.p.13.  3.LOBATO, Alexandre. “A Ilha de Moçambique: notícia histórica”. In: SAÚTE, Nelson e SOPA,  António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edições 70, 1992. p.169.  4.  LOBATO,  Manuel.  “A  Ilha  de  Moçambique  antes  de  1800”.  In:  Oceanos.  –  no  25.  Revista  da  Comissão  Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa, jan.- março 1996, p. 11.  5.CRAVEIRINHA, José. “A Voz de Maulide”. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela  voz dos poetas. Lisboa : Edições 70, 1992. p.133.  6. KNOPFLI, Rui. In: SAÚTE, Nelson (1992) p. 35 .  7. MENDES, Orlando. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa :  Edições 70, 1992. p.39.  8. SANT’ ANNA, Glória de. “Ilha de Moçambique”. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique  pela voz dos poetas. Lisboa : Edições 70, 1992. p. 28.  9. SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edições 70, 1992. p.76.  10. WHITE, Eduardo . In: SAÚTE, Nelson. Antologia da nova poesia moçambicana. Maputo: AEMO,, 1993. p.88.  11. idem, ibidem. p.88.  12. SAÚTE, Nelson.(1992)p.163.  13. PATRAQUIM, Luís Carlos. In : SAÚTE, Nelson(1992) p.55.  14. idem,ibidem.p.55.  15. WHITE, Eduardo. Os Materiais do amor seguido de O Desafio à tristeza. Lisboa: Caminho, 1996. p. 24-27.  16.  COUTO,  Mia.  Prefácio.In:  WHITE,  Eduardo.Poemas  da  ciência  de  voar  e  da  engenharia  de  ser  ave.  Lisboa:  Caminho,  1992. p. 9-10.  17. MENDONÇA, Fátima. Prefácio. In: WHITE, Eduardo. Os Materiais do amor seguido de O Desafio à tristeza.  Lisboa: Caminho, 1996. p. 10-11.  18. SAÚTE, Nelson (1992) p.123.  19. COUTO, Mia. Apud SAÚTE, Nelson: 1993, p.313 e 314.  20. LEMOS, Virgílio de. Ilha do Ibo, julho de 1996. ( poema inédito)            14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS    COUTO,  Mia.  Prefácio.  In:  WHITE,  Eduardo.Poemas  da  ciência  de  voar  e  da  engenharia  de  ser  ave.  Lisboa:  Caminho, 1992.  __________. “Ilha de Ibo”. In: SAÚTE, Nelson. Antologia da nova poesia moçambicana. Maputo: AEMO, 1993.  CRAVEIRINHA,  José.  “A  Voz  de  Maulide”.  In:  SAÚTE,  Nelson  e  SOPA,  António.  A  Ilha  de  Moçambique  pela  voz dos poetas. Lisboa: Edições 70, 1992.  KNOPFLI, Rui. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edições  70, 1992.  LEMOS, Virgílio de. Ilha do Ibo, julho de 1996 ( poema inédito ).  LOBATO, Alexandre. “A Ilha de Moçambique: notícia histórica”. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de  Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edições 70, 1992.  MENDONÇA,  Fátima.  Prefácio.  In:  WHITE,  Eduardo.  Os  Materiais  do  amor  seguido  de  O  Desafio  à  tristeza.  Lisboa: Caminho, 1996.  PATRAQUIM,  Luís  Carlos.  In:  SAÚTE,  Nelson  e  SOPA,  António.  A  Ilha  de  Moçambique  pela  voz  dos  poetas.  Lisboa: Edições 70, 1992.  SAID, Edward. Orientalismo. SP: Companhia das Letras, 1990.  SANT’ANNA,  Glória  de.  “Ilha  de  Moçambique”.  In:  SAÚTE,  Nelson  e  SOPA,  António.  A  Ilha  de  Moçambique  pela voz dos poetas. Lisboa: Edições 70, 1992.  SAÚTE, Nelson. Antologia da nova poesia moçambicana. Maputo: AEMO, 1993.  _____________ e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edições 70, 1992.  WHITE, Eduardo. In: SAÚTE, Nelson. Antologia da nova poesia moçambicana. Maputo: AEMO, 1993.  ______________. Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992.  ______________. Os Materiais do amor seguido de O Desafio à tristeza. Lisboa: Caminho, 1996          Cultura de Moçambique:    • A música de Moçambique é uma das mais importantes manifestações da cultura deste país. A música tradicional  tem  características  bantu  e  influência  árabe  principalmente  na  zona  norte  e,  como  tal,  é  normalmente  criada  para  acompanhar  cerimónias  sociais,  principalmente  na  forma  de  dança.  A  música  comercial  tem  raízes  na  música  tradicional,  mas  muitas  vezes  usando  ritmos  e  tecnologias  importadas  de  outras  culturas.  Um  dos  tipos  de  música  comercial  mais  conhecidos  é  a  marrabenta,  originária do  sul  do país,  que  não  é  apenas  música  de  dança,  mas  tem  frequentemente  uma  letra  com  grande  conteúdo  social.A  mbila  chope,  um  instrumento  musical  tradicional,  foi  considerado pela Unesco, em 2005, Património Imaterial da Humanidade.  •  Moçambique  é  reconhecido  por  seus  artistas  plásticos:  escultores  (principalmente  da  etnia  Makonde)  e  pintores  (inclusive  em  tecido, técnica  batik).  Artistas como  Malangatana,  Gemuce,  Naguib,  Ismael  Abdula,  Samat  e  Idasse  destacam-se na área de pintura.   Textos Críticos      MEU NOME É ÁFRICA - MIA COUTO    Durante anos, dei aulas em diferentes faculdades da Universidade Eduardo Mondlane.  Meus colegas professores queixavam-se da progressiva falta de preparo dos estudantes. Eu notava algo  que,  para  mim,  era  ainda  mais  grave:  um  cada  vez  maior  distanciamento  desses  jovens  em  relação  ao  seu  próprio país. Quando saíam de Maputo em trabalhos de campo, comportavam-se como se estivessem emigrando  para  um  universo  estranho  e  adverso.  Não  sabiam  as  línguas,  desconheciam  os  códigos  culturais,  sentiam-se  deslocados e com saudades de Maputo.  Alguns  sofriam  dos  mesmos  fantasmas  dos  exploradores  coloniais:  as  feras,  as  cobras,  os  monstros  invisíveis.  Aquelas zonas rurais eram, afinal, o espaço onde viveram seus avós, e todos os seus antepassados. Mas  eles  não  se  reconheciam  como  herdeiros  desse  patrimônio.  O  país  deles  era  outro.  Pior  ainda:  não  gostavam    15 desta  outra  nação.  E  ainda  mais  grave:  sentiam  vergonha  de  a  ela  estarem  ligados.  A  verdade  é  simples:  esses  jovens  estão  mais  à  vontade  dentro  de  um  vídeoclip  de  Michael  Jackson  do  que  no  quintal  de  um  camponês  moçambicano.  O  que  se  passa,  e  isso  parece  inevitável,  é  que  estamos  criando  cidadanias  diversas  dentro  de  Moçambique. E existem várias categorias: há os urbanos, moradores da cidade alta, esses que foram mais vezes  a Nelspruit [capital de Mpumalanga, província da África do Sul] do que aos arredores da sua própria cidade.  Depois,  há  uns  que  moram  na  periferia,  os  da  chamada  cidade  baixa.  E  há  ainda  os  rurais,  os  que  são  uma  espécie  de  imagem  desfocada  do  retrato  nacional.  Essa  gente  parece  condenada  a  não  ter  rosto  e  a  falar  sempre pela voz de outros.  A  criação  de  cidadanias  diferentes  (ou,  o  que  é  mais  grave,  de  diferentes  graus  de  uma  mesma  cidadania)  pode  ou  não  ser  problemática.  Tudo  isso  depende  da  capacidade  de  manter  em  diálogo  esses  diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta é: Será que esses diferentes Moçambiques falam uns com  os outros?   Nossa  riqueza  provém  da  nossa  disponibilidade  em  efetuarmos  trocas  culturais  com  os  outros.  Num  texto muito recente, o presidente Chissano perguntava o que Moçambique tem de especial que atrai a paixão de  tantos visitantes.  Esse  não  sei  quê  especial  existe,  de  fato.  Essa  magia  está  ainda  viva.  Mas  ninguém  pensa,  razoavelmente, que esse poder de sedução resulta de sermos naturalmente melhores que os outros. Essa magia  nasce, sim, da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos mestiçagens. Essa magia nasce da capacidade de  sermos nós, sendo outros.  Quero falar aqui de um diálogo muito particular, de que poucas vezes se faz alusão. Refiro-me à nossa  conversa  com  nossos  próprios  fantasmas.  O  tempo  trabalhou  nossa  alma  coletiva  por  via  de  três  materiais:  o  passado, o presente e o futuro. Nenhum desses materiais parece estar feito para uso imediato.  O  passado  foi  mal  embalado  e  chega-nos  deformado,  carregado  de  mitos  e  preconceitos.  O  presente  vem vestido de roupa emprestada.   E o futuro foi encomendado por interesses que nos são alheios.  Não digo nada de novo: nosso país não é pobre, mas foi empobrecido. Minha tese é que o empobrecimento de  Moçambique  não  começa  nas  razões  econômicas.  O  maior  empobrecimento  provém  da  falta  de  idéias,  da  erosão da criatividade e da ausência interna de debate. Mais do que pobres, tornamo-nos inférteis.  Vou questionar  essas  três dimensões  do  tempo,  apenas  para sacudir  alguma  poeira.  Comecemos  pelo  passado.  Para constatarmos que esse passado, afinal, ainda não passou. O que fomos: um retrato feito por empréstimo.  O  colonialismo  não  morreu  com  as  independências.  Mudou  de  turno  e  de  executores.  O  atual  colonialismo dispensa colonos e tornou-se indígena em nossos territórios. Não só se naturalizou, como passou a  ser co-gerido numa parceria entre ex-colonizadores e ex-colonizados.  Uma  grande  parte  da  visão  que  temos  do  passado  do  nosso  país  e  do  nosso  continente  é  ditada  pelos  mesmos  pressupostos  que  ergueram  a  história  colonial.  Ou  melhor,  a  história  colonizada.  O  que  se  fez  foi  colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a idéia de que a África pré-colonial era um universo  intemporal, sem conflitos, nem disputas, um paraíso feito só de harmonias.  Essa imagem romântica do passado alimenta a idéia redutora e simplista de uma condição presente em que tudo  seria  bom  e  decorreria  às  mil  maravilhas  se  não  fosse  a  interferência  exterior.  Os  únicos  culpados  dos  nossos  problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes  dos de fora.   Esta  visão  já  estava  presente  no  discurso  da  luta  armada,  quando  se  retratava  os  inimigos  como  "infiltrados".  Isto  acontecia,  apesar  do  aviso  do  poeta  que  dizia  que  "não  basta  que  seja  pura  e  justa  a  nossa  causa; é preciso que a justiça e a pureza existam dentro de nós". Nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como  sendo compostas apenas de gente "pura".   Se havia mancha, ela vinha de fora, que era o lugar onde morava o inimigo.   O  modo  maniqueísta  e  simplificador  com  que  se  redigiu  o  chamado  "tempo  que  passou"  teve,  porém,  outra conseqüência: fez persistir a idéia de que a responsabilidade única e exclusiva da criação da escravatura e  do colonialismo cabe aos europeus.  Na  realidade,  quando  os  navegadores  europeus  começaram  a  encher  de  escravos  os  seus  navios,  eles  não  estavam  estreando  o  comércio  de  criaturas  humanas.  A  escravatura  já  tinha  sido  inventada  em  todos  os  continentes.  Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os asiáticos e os próprios africanos. A escravatura  foi  uma  invenção  da  espécie  humana.  O  que  sucedeu  foi  que  o  tráfico  de  escravos  se  converteu  num  sistema  global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma a enriquecer o seu centro: a Europa e a América.  Vou  contar  um  episódio  curioso,  que  envolve  uma  senhora  africana  chamada  Honória  Bailor  Caulker  num momento em que ela visitava os Estados Unidos da América.    16 Dona Honória é presidente da câmara da vila costeira de Shenge, na Serra Leoa. A vila é pequena, mas  carregada  de  história.  Dali  partiam  escravos,  aos  milhares,  que  atravessavam  o  Atlântico  e  trabalhavam  nas  plantações americanas de cana-de-açúcar.  Dona  Honória  foi  convidada  para  discursar  nos  Estados  Unidos  da  América.  Perante  uma  distinta  assembléia,  a  senhora  subiu  ao  pódio  e  fez  questão  de  exibir  seus  dotes  vocais.  Cantou  o  hino  religioso  "Amazing  Grace".  No  final,  disse:  "Quem  compôs  este  hino  foi  um  filho  de  escravos,  descendente  de  uma  família que saiu da minha pequena vila de Shenge." Foi como que um  golpe  mágico, e o auditório se repartiu  entre  lágrimas  e  aplausos.  De  pé,  talvez  movidos  por  uma  mistura  de  sentimento  solidário  e  certa  má- consciência, ergueram-se para aclamar Honória. “Aplaudem-me”  Como descendente de escravos?”“, perguntou aos que a escutavam.  A resposta foi um eloqüente "sim". Aquela mulher negra representava, afinal, o sofrimento de milhões  de escravos, a quem a América devia tanto.  "Pois eu", disse Honória, "não sou uma descendente de escravos. Sou, sim, descendente de vendedores  de escravos. Meus bisavôs enriquecerem vendendo escravos."  Honória teve a coragem de assumir-se com a verdade, com a antítese do lugar-comum. Mas seu caso é  tão raro que arrisca ficar perdido e apagado.   O  colonialismo  foi  outro  desastre  cuja  dimensão  humana  não  pode  ser  aligeirada.  Mas,  tal  como  a  escravatura, também na dominação colonial houve mão de dentro. Diversas elites africanas foram coniventes e  beneficiárias desse fenômeno histórico.   Por  que  estou  a  falar  disto?  Por  que  creio  que  a  história  oficial  do  nosso  continente  foi  submetida  a  várias  falsificações.  A  primeira  e  mais  grosseira  destinou-se  a  justificar  a  exploração  que  fez  enriquecer  a  Europa. Mas outras falsificações se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar responsabilidades internas, a  lavar  a  má  consciência  de  grupos  sociais  africanos  que  participaram  desde  sempre  na  opressão  dos  povos  e  nações da África. Esta leitura deturpada do passado não é apenas um desvio teórico.   Acaba por fomentar uma atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianças sem princípios.   É  importante  fazermos  nova  luz  sobre  o  passado,  porque  o  que  se  passa  hoje  em  nossos  países  não  é  mais do que a atualização de conivências antigas entre a mão de dentro e a mão de fora. Estamos revivendo um  passado  que  nos  chega  tão  distorcido  que  não  somos  capazes  de  o  reconhecer.  Não  estamos  muito  longe  dos  estudantes universitários que, ao saírem de Maputo, já não se reconhecem como sucessores dos mais velhos.   O  que  somos:  um  espelho  à  procura  de  sua  imagem  Se  o  passado  nos  chega  deformado,  o  presente  deságua  em  nossas  vidas  de  forma  incompleta.  Alguns  vivem  isso  como  um  drama.  E  partem  em  corrida  nervosa à procura daquilo que chamam "nossa identidade". Grande parte das vezes, essa identidade é uma casa  mobiliada  por  nós,  mas  a  mobília  e  a  própria  casa  foram  construídas  por  outros.  Outros  acreditam  que  a  afirmação da sua identidade nasce da negação da identidade dos outros. O certo é que a afirmação do que somos  está baseada em inúmeros equívocos.  Temos  de  afirmar  o  que  é  nosso,  dizem  uns.  E  têm  razão.  Num  momento  em  que  o  convite  é  sermos  todos americanos, esse apelo tem toda a razão de ser.  Mas  a  pergunta  é:  O  que  é  verdadeiramente  nosso?  Há  aqui  alguns  mal-entendidos.  Por  exemplo,  uns  acreditam  que  a  capulana  é  um  vestuário  originário,  tipicamente  moçambicano.  Fiz  por  diversas  vezes  esta  pergunta a estudantes universitários: Que frutos são os nossos, por oposição ao morango, ao pêssego, à maçã?  As  respostas,  uma  outra  vez,  são  curiosas.  As  pessoas  acreditam  que  são  originariamente  africanos  o  caju,  a  manga,  a  goiaba,  a  papaia.  E  por  aí  fora.  Ora,  nenhum  desses  frutos  é  nosso,  no  sentido  de  ser  natural  do  continente.  Outras  vezes,  sugere-se  que  nossa  afirmação  se  faça  na  base  da  nossa  culinária.  O  emblema  do  tipicamente  nacional  passa  agora  para  o  coco,  a  mandioca,  a  batata  doce,  o  amendoim  -  produtos  que  foram  introduzidos em Moçambique e na África.  Mas aqui se coloca a questão: essas coisas acabam sendo nossas por que, para além da sua origem, lhes  demos a volta e as refabricamos à nossa maneira. A capulana pode ter origem exterior, mas é moçambicana pelo  modo como a amarramos. E pelo modo como esse pano passou a falar conosco. O coco é indonésio, a mandioca  é mais latino-americana que a Jennifer Lopez, mas o prato que preparamos é nosso, porque o fomos caldeando à  nossa maneira.   Os  conceitos  devem  ser  ferramentas  vitais  na  procura  desse  nosso  retrato.  Contudo,  muito  do  quadro  conceitual  com  que  olhamos  Moçambique  assenta  em  chavões  que,  à  força  de  serem  repetidos,  acabaram  não  produzindo  sentido.  Dou  exemplos.  Falamos  muito  de  poder  tradicional,  sociedade  civil,  comunidades  rurais,  agricultura de subsistência. Perdoem-me a incursão abusiva nestes domínios. Mas tenho sinceras dúvidas sobre  o rigor e a operacionalidade desses conceitos.  Tenho dúvidas sobre o modo como essas categorias cabem em nossa mão e produzem mudanças reais.  Uma  língua  chamada  "desenvolvimentês"  E  é  isso  que  me  preocupa:  mais  do  que  incentivar  um  pensamento  inovador  e  criativo,  estamos  a  trabalhar  no  que  é  superficial.  Técnicos  e  especialistas  moçambicanos estão reproduzindo a linguagem dos outros, preocupados com poder agradar e fazer boa figura    17 nos  "workshops". Trata-se  de  um  logro,  um  jogo  de  aparências.  Alguns  de  nós  parecemos  bem  preparados, por  que  sabemos  falar  essa  língua,  o  desenvolvimentês.  Postos  perante  a  procura  de  soluções  profundas  para  as  questões  nacionais,  estamos  tão  perdidos  como  qualquer  outro  cidadão  comum.  Palavras-chave  como  boa  governação,  "accountability",  parcerias,  desenvolvimento  sustentável,  capacitação  institucional,  auditoria  e  monitoramento,  equidade,  advocacia,  todas  estas  palavras  da  moda  acrescentam  uma  grande  mais-valia  (eis  outra palavra da moda) às chamadas "comunicações" (deve-se, de preferência, dizer "papers").  Mas deve-se evitar traduções feitas à letra, se não acontece-nos como o palestrante - já ouvi chamarem  de  painelista,  o  que,  além  de  ser  designação  pouco  simpática,  é  palavra  perigosa  -  pois  esse  palestrante,  para  evitar dizer que ia fazer uma apresentação em "power-point", acabou dizendo que ia fazer uma apresentação em  "ponta-poderosa". O que pode sugerir maliciosas interpretações.  O  problema  do  desenvolvimentês  é  que  só  convida  a  pensar  o  que  já  está  pensado  por  outros.  Somos  consumidores  e  não  produtores  de  pensamento.  Mas  não  foi  apenas  uma  língua  que  inventamos:  criou-se  um  exército de especialistas, alguns com nomes curiosos: já vi especialistas em resolução de conflitos, facilitadores  de  conferências,  workshopistas,  experts  em  advocacia,  engenheiros  políticos.  Estamos  empenhando  o  nosso  melhor manancial humano em algo cuja utilidade deve ser interrogada.  A grande tentação de hoje é reduzirmos os assuntos à sua dimensão lingüística. Falamos, e tendo falado,  pensamos ter agido. Muitas vezes, a mesma palavra já dançou com variadíssimos parceiros. Tantos, que já não  há festa sem que certas expressões abram o baile. Uma dessas palavras é "pobreza". A pobreza já dançou com  um par que se chamava "a década contra o subdesenvolvimento". Outro dançarino tinha por nome "luta absoluta  contra a pobreza". Agora, dança com alguém que se intitula "luta contra a pobreza absoluta". Outro caso é o do  povo. O povo especializou-se sobretudo em danças de máscaras. E já se mascarou de "massas populares". Já foi  "massas trabalhadoras". Depois, foi "população".  Agora, dança com o rosto de "comunidades locais".  A  verdade  é  que  ainda  mantemos  um  grande  desconhecimento  das  dinâmicas  profundas,  dos  mecanismos  vivos  e  funcionais  que  esse  tal  povo  inventa  para  sobreviver.  Sabemos  pouco  sobre  assuntos  de  urgente e primordial importância.  Listo apenas alguns que agora me ocorrem:  1 - a vitalidade do comércio informal (mais do que comercial, é toda uma economia informal);  2 – os mecanismos de troca entre a família rural e sua sucursal urbana (e vice-versa)  3  -  o  papel  das  mulheres  nessa  rede  de  trocas  invisíveis,  o  trânsito  transfronteiriço  de  mercadorias  (o  chamado "mukero").  Como podemos ver, não são apenas os jovens estudantes que olham para o universo rural como se fosse  um abismo.  Também para nós há um Moçambique que permanece invisível.  Mais  grave  que  estas  omissões  é  a  imagem  que  se  foi  criando  para  substituir  a  realidade.  Tornou-se  comum a idéia de que o desenvolvimento é o resultado acumulado de conferências, workshops e projetos. Não  conheço  país  nenhum  que  se  tivesse  desenvolvido  à  custa  de  projetos.  Mas  quem  lê  os  jornais  verifica  como  está enraizada esta crença. Isto apenas ilustra a atitude apelativa, que prevalece entre nós, de que os outros (na  nossa linguagem moderna, os "stakeholders") é que têm a obrigação histórica de nos retirar da miséria.  É aqui que a questão se coloca: Qual a cultura da nossa economia? Qual é a economia da nossa cultura?  Ou, dito de modo mais rigoroso: Como é que as nossas culturas dialogam com as nossas economias? O sermos  mundo: a procura de uma família Numa conferência de que participei na Europa, alguém me perguntou: "O que  é, para você, ser africano?"  E eu lhe perguntei, de volta: "E para você, o que é ser europeu?”.  Ele  não  sabia  responder.  Também  ninguém  sabe  exatamente  o  que  é  africanidade.  Neste  domínio  há  muita bugiganga, muito folclore. Há alguns que dizem que o "tipicamente africano" é aquele ou aquilo que tem  um peso espiritual maior.  Ouvi alguém dizer que nós, africanos, somos diferentes dos outros por que damos muito valor à nossa  cultura.  Um  africanista,  numa  conferência  em  Praga,  disse  que  o  que  media  a  africanidade  era  um  conceito  chamado "ubuntu". E que esse conceito diz que "sou os outros".  Ora,  todos  estes  pressupostos  me  parecem  vagos  e  difusos,  tudo  isto  surge  por  que  se  toma  como  substância  aquilo  que  é  histórico.  As  definições  apressadas  da  africanidade  assentam  numa  base  exótica,  como  se  os  africanos fossem particularmente diferentes dos outros, ou como se as suas diferenças fossem o resultado de um  dado de essência.  A África não pode ser reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. Nosso continente é feito de  profunda  diversidade  e  de  complexas  mestiçagens.  Longas  e  irreversíveis  misturas  de  culturas  moldaram  um  mosaico  de  diferenças  que  são  um  dos  mais  valiosos  patrimônios  do  nosso  continente.  Quando  mencionamos  essas mestiçagens, falamos com algum receio, como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas    18 não  existe  pureza  quando  se  fala  da espécie  humana. Dizem  que  não  há  economia atual que não se alicerce  em  trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.  O que queremos e podemos ser.  Vou falar  de um  episódio real, decorrido aqui  perto,  na  África  do  Sul, em  1856. Um  célebre sangoma  [feiticeiro], de nome Mhalakaza, reclamou que espíritos dos antepassados lhe tinham transmitido uma profecia.  E  que  uma  grande  ressurreição  haveria  de  acontecer  e  que  os  britânicos  seriam  expulsos.  Para  isso,  o  povo  Xhosa deveria destruir todo o seu gado e todas as suas machambas [pequenas lavouras familiares]. Esse seria o  sinal de fé para que, das profundezas do  chão,  brotassem  riqueza  e  abundância  para  todos.  Mhalakaza  convenceu  os  soberanos  do  reino  da  veracidade  desta visão.  O chefe Sarili, da casa real do Tshawe, proclamou a profecia como doutrina oficial. Para além da visão  do  adivinho,  Sarili  tinha  uma  estranha  convicção:  era  de  que  os  russos  seriam  os  antepassados  dos  Xhosas  e  seriam eles, os russos, que brotariam do chão, de acordo com a prometida ressurreição. Esta idéia surgia por que  os monarcas Xhosa tinham ouvido falar da guerra da Criméia e do fato de os russos estarem a bater-se contra os  ingleses.  Espalhou-se rapidamente a idéia de que os russos, depois de vencerem os britânicos na Europa, viriam  expulsá-los  da  África  do  Sul.  E  o  que  é  ainda  mais  curioso:  estava  assente  que  os  russos  seriam  pretos,  no  pressuposto de que todos os que se opunham ao domínio britânico seriam de raça negra.  Não  me  demoro  no  episódio  histórico.  A  realidade  é  que,  depois  de  desaparecerem  o  gado  e  a  agricultura, a fome dizimou mais de dois terços do povo Xhosa. Estava consumada uma das maiores tragédias  da  toda  a  história  da  África.  Este  drama  foi  aproveitado  pela  ideologia  colonial  como  prova  da  dimensão  da  crendice entre os africanos. Mas a realidade é que esta história é bem mais complexa que uma simples crença.  Por detrás deste cenário, ocultavam-se graves disputas políticas. Dentro da monarquia Xhosa criou-se uma forte  dissidência contra este suicídio coletivo. Mas este grupo foi rapidamente intitulado de "infiéis" e uma força de  milícias denominada de "os crentes" foi criada para reprimir os que estavam em desacordo.  É  evidente  que  esta  história,  infelizmente  real,  não  pode  ser  repetida  hoje  com  este  mesmo  formato.  Mas  é  provável  que  se  encontrem  paralelos  com  ocorrências  atuais  na  nossa  região  austral,  na  África,  no  mundo. Aprendizes de feiticeiros seguem construindo profecias messiânicas e arrastam, de forma triste, povos  inteiros para o sofrimento e o desespero.  Aflige-me  a  facilidade  com  que  vamos  a  reboque  de  idéias  e  conceitos  que  desconhecemos.  Em  lugar  de as interrogarmos cientificamente e de ajuizarmos sua adequação cultural, transformamo-nos em funcionários  de serviço, caixas de ressonância de batuques produzidos nas instâncias dos poderes políticos. Na nossa história  já  se  acumularam  lemas  e  bandeiras.  Já  tivemos:  a  década  contra  o  subdesenvolvimento;  o  Plano  Prospectivo  Indicativo (o famoso PPI); o PRE (com seu "ajustamento estrutural"); parceria inteligente, e outras.  Estas  bandeiras  tiveram  suas  vantagens  e  desvantagens.  Mas  raramente  foram  sujeitas  ao  necessário  questionamento por parte dos nossos economistas, dos nossos intelectuais. Novas bandeiras e lemas estão sendo  hasteados nos mastros, sem que esse espírito crítico assegure sua viabilidade histórica.  Há, por vezes, um certo cinismo.  Poucos  são  os  que  realmente  acreditam  naquilo  que  propalam.  Mas  estas  novas  teologias  têm  os  seus  missionários fervorosos. Assim que essas teses desabam, esses sacerdotes são os primeiros a despir as batinas.  Foi  o  que  sucedeu  com  o  fim  da  nossa  chamada  Primeira  República.  Samora  morreu  e  ninguém  mais  foi  corresponsável pelo primeiro governo.  Samora existiu sozinho, é essa a conclusão a que somos obrigados a chegar.  A cultura e a economia: o que fazer?  O  que  podemos  fazer  é  interrogar  sem  medo  e  dialogar  com  espírito  crítico.  Infelizmente,  nosso  ambiente  de  debate  se  revela  pobre.  Mais  grave  ainda,  tornou-se  perverso:  em  lugar  de  confrontar  idéias,  agridem-se pessoas. O que podemos fazer com os conceitos sócio-econômicos é reproduzir aquilo que fizemos  com  a  capulana  e  com  a  mandioca.  E  já  agora  com  a  língua  portuguesa.  Tornamo-los  nossos,  porque  os  experimentamos e vivemos à nossa maneira.   Como um parêntesis, queria fazer aqui referência a algo que assume o estatuto de pouca-vergonha. Já vi  pessoas  credenciadas  defender  a  tese  da  acumulação  primitiva  do  capital,  justificando  o  comportamento  criminoso  de  alguns  dos  nossos  novos-ricos.  Isto  já  não  é  apenas  ignorância:  é  má-fé,  ausência  completa  de  escrúpulos morais e intelectuais.  Estamos  hoje  a  construir  nossa  própria  modernidade.  E  quero  congratular  esta  ocasião  em  que  um  homem  das  letras  (que  se  confessa  ignorante  em  matérias  de  economia)  tenha  a  possibilidade  de  partilhar  algumas  reflexões.  A  economia  necessita  de  falar,  de  namorar  com  as  outras  esferas  da  vida  nacional.  O  discurso econômico não pode ser a religião dessa nossa modernidade, nem a economia pode ser um altar ante o  qual nos ajoelhamos. Não podemos entregar a especialistas o direito de conduzir as nossas vidas pessoais e os  nossos destinos nacionais.    19 O que mais nos falta em Moçambique não é formação técnica, não é a acumulação de saber acadêmico.  O que mais falta em Moçambique é capacidade de gerar um pensamento original, um pensamento soberano, que  não  ande  a  reboque  daquilo  que  outros  já  pensaram.  Falta  libertarmo-nos  daquilo  que  uns  já  chamaram  a  ditadura do desenvolvimento.  Queremos  ter  uma  força  patriótica  que  nos  avise  dos  perigos  de  uma  nova  evangelização  e  de  uma  entrega  cega  a  essa  nova  mensagem  messiânica:  o  desenvolvimento  -  que  no  quadro  do  desenvolvimentês  se  deve chamar sempre de desenvolvimento sustentável.  O  economista  não  é  apenas  aquele  que  sabe  de  economia.  É  aquele  que  pode  sair  do  pensamento  econômico, aquele que se liberta da sua formação para a ela melhor regressar. Esta possibilidade de emigração  da sua própria condição é fundamental para que tenhamos economistas nossos que se distanciem da economia o  suficiente para a poder interrogar.  A  situação  do  nosso  país  e  do  nosso  continente  é  tão  séria  que  já  não  podemos  continuar  fazendo  de  conta que fazemos.  Temos que fazer. Temos que criar, construir alternativas e desenhar caminhos verdadeiros e credíveis.  Precisamos  exercer  os  direitos  humanos  como  o  direito  à  tolerância  (eis  outra  palavra  do  vocabulário  workshopista),  mas  temos  que  manter  acesso  a  um  direito  fundamental,  que  é  o  direito  à  indignação.  Quando  nos  deixarmos  de  nos  indignar,  então  estaremos  a  aceitar  que  os  poderes  políticos  nos  tratem  como  seres  que  não  pensam.  Falo  do  direito  à  indignação  perante  o  mega-cabritismo,  perante  crimes  como  os  que  mataram  Siba-Siba  e  Carlos  Cardoso.  Perante  idéia  de  que  a  desorganização,  o  roubo  e  o  caos  são  parte  integrante  da  nossa natureza "tropical".  Nosso  continente  corre  o  risco  de  ser  um  território  esquecido,  secundarizado  pelas  estratégias  de  integração global.  Quando  digo  "esquecido",  pensarão  que  me  refiro  à  atitude  das  grandes  potências.  Mas  refiro-me  às  nossas  próprias  elites,  que  viraram  as  costas  às  responsabilidades  para  os  seus  povos,  à  forma  como  o  seu  comportamento predador ajuda a denegrir nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos. O discurso de  grande  parte  dos  políticos  é  feito  de  lugares-comuns,  incapazes  de  entender  a  complexidade  da  condição  dos  nossos países e dos nossos povos.  A demagogia fácil continua a substituir a procura de soluções.  A  facilidade  com  que  ditadores  se  apropriam  dos  destinos  de  nações  inteiras  é  algo  que  nos  deve  assustar.  A  facilidade  com  que  se  continua  a  explicar  erros  do  presente  através  da  culpabilização  do  passado  deve  ser  uma  preocupação  nossa.  É  verdade  que  a  corrupção  e  o  abuso  do  poder  não  são,  como  pretendem  alguns,  exclusivas  do  nosso  continente.  Mas  a  margem  de  manobra  que  concedemos  a  tiranos  é  espantosa.  É  urgente  reduzir  os  territórios  de  vaidade,  arrogância  e  impunidade  dos  que  enriquecem  à  custa  do  roubo.  É  urgente redefinir as premissas da construção de modelos de gestão que excluem aqueles que vivem na oralidade  e na periferia da lógica e da racionalidade européias.  Nós todos, escritores e economistas, estamos vivendo com perplexidade um momento muito particular  da nossa história.   Até  aqui,  Moçambique  acreditou  dispensar  uma  reflexão  radical  sobre  seus  próprios  fundamentos.  A  nação moçambicana conquistou um sentido épico na luta contra monstros exteriores. O inferno era sempre fora,  o inimigo estava para além das fronteiras. Era Ian Smith, o "apartheid", o imperialismo. Nosso país fazia, afinal,  o que fazemos na nossa vida quotidiana: inventamos monstros para nos desassossegar.  Mas os  monstros  também  servem  para  nos tranqüilizar.  Dá-nos  sossego  saber  que  moram  fora de  nós.  De  repente,  o  mundo  mudou  e  somos  forçados  a  procurar  nossos  demônios  dentro  de  casa.  O  inimigo,  o  pior  dos inimigos, sempre esteve dentro de nós. Descobrimos essa verdade tão simples e ficamos a sós com nossos  próprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu antes.  Este  é  um  momento  de  abismo  e  desesperanças.  Mas  pode  ser,  ao  mesmo  tempo,  um  momento  de  crescimento.  Confrontados com nossas mais fundas fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas,  ensaiar  outras  escritas.  Vamos  ficando,  cada  vez  mais,  a  sós  com  nossa  própria  responsabilidade  histórica  de  criar uma outra história.  Não  podemos  mendigar  ao  mundo  uma  outra  imagem.  Não  podemos  insistir  numa  atitude  apelativa.  Nossa  única  saída  é  continuar  o  difícil  e  longo  caminho  de  conquistar  um  lugar  digno  para  nós  e  para  nossa  pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria criação.    (Intervenção  na  cerimônia  de  atribuição  do  Prêmio  Internacional  dos  12  Melhores  Romances  de  África,Cape  Town,  Julho  de  2002)  O  escritor,  jornalista  e  biólogo  Mia  Couto  (Antonio  Emílio  Leite  Couto)  nasceu  na  cidade  da  Beira,  Moçambique,  em  1955.  Estreou  com  um  livro  de  poemas,  "Raiz  de  Orvalho",  em  1983.  "Terra  Sonâmbula"  foi  seu  primeiro  romance  (1992).  No  Brasil,  é  editado  pela  Companhia  das  Letras,  que recentemente publicou seu romance "Um Rio Chamado tempo.”.    20   Texto III A questão do sujeito moçambicano na poesia de José Craveirinha                                                                              Por José Oliano Machado    No  vasto  universo  africano  de  língua  portuguesa,  dominado  pela  política  do  colonialismo,  a  produção  poética projetou aos poucos a imagem de uma nação – Moçambique – e paralelo a isso uma nova imagem do sujeito  moçambicano  também  surgiu  imerso  nas  produções  literárias  durante  o  período  da  independência.  Seria  uma  espécie de resgate da identidade nacional tendo em vista que em Moçambique o período de colonização durou por  mais  de  quatrocentos  anos  e  que  seu  contato  com  a  cultura  européia,  mais  precisamente  a  portuguesa,  favoreceu  para que a identidade de sujeito do sujeito nacional fosse aos poucos desaparecendo em virtude do colonialismo.   Dessa forma o objetivo deste artigo é enfocar a questão da representação do sujeito na poesia moçambicana  durante o período de independência territorial. E na impossibilidade de examinarmos a obra de todos os poetas deste  período,  levaremos  em  conta  neste  trabalho  apenas  a  poesia  de  José  Craveirinha  cuja  produção  literária  em  sua  maioria esteve voltada para a temática a ser aqui abordada.   A  dominação  colonial  foi  um  instrumento  primordial  para  o  processo  de  periferização  das  culturas  principalmente de países que tiveram como regime político o colonialismo, como é o caso de Moçambique. E uma  vez  que  o  Português  se  apropria  da  identidade  do  Moçambicano  e  para  a  construção  da  imagem  do  colonizado  é  autorizado ao colonizador ter posse do outro, ocorre, com isso, um processo de desumanização, um desrespeito em  relação  aos  valores  locais,o  que  levou  aos  poucos  o  povo  dessa  nação  a  perder  em  parte  a  sua  noção  de  sujeito.  Como afirma Claudia de lima Costa, “O sujeito se constrói dentro dos sistemas de significado e de representações  culturais”  (COSTA,  1998,  p.  57)  partindo  do  principio  que  todo  e  qualquer  parâmetro  do  sistema  sócio  -  cultural  dessa  região  foi  subordinado  ao  poder  da  metrópole  podemos  constatar  que  esse  povo  chegou  a  perder  sua  identidade de sujeito passando a condição de objeto vítima da exploração desse sistema político.   Em  sua  obra,  Os  Condenados  Da  Terra,  Franz  Fanon  sintetiza  bem  essa  questão  da  exploração  do  colonizado  quando  afirma  que  a  “miséria  do  povo,  opressão  nacional  e  inibição  da  cultura,  são  uma  e  a  mesma  coisa”  (FANON,  1979,  p.233).  O  mesmo  autor  refere-se  a  ideologia  nacional  como  ponto  fundamental  para  que  uma  população  possa  assumir  seu  papel  de  sujeito  e  resgatar  seus  valores  culturais  frente  a  outras  políticas  de  caráter dominador.    Num país colonizado o nacionalismo mais elementar, mais brutal, mais indiferenciado é a  forma  mais  eficaz  de  defesa  da  cultura  nacional.  A  cultura  é  em  primeiro  lugar  a  expressão de uma nação, de suas preferências, de suas interdições dos seus modelos. E em  todos  os  estágios  da  sociedade  global  que  se  constituem  outras  interdições,  outros  modelos. (FANON, 1979, p. 204).        Dessa forma,  chega  um  momento  em  que  os  modelos  herdados  do  colonizador tendem  a  ser rompidos e a  consciência  de  sujeito  é  aos  poucos  retomada  pelo  colonizado.  Em  se  tratando  de  Moçambique,  esse  processo  foi  denominado  por  Matusse  de  “Moçambicanidade”  termo  que  pode  ser  entendido  como  uma  forma  de  marcar  a  diferença no âmbito pós-colonial.    [...] uma prática deliberada através da qual os autores moçambicanos, inseridos num sistema primariamente gerado  numa  tradição  literária  portuguesa  em  contexto  de  Simione  colonial,  movidos  por  um  desejo  de  afirmar  uma  identidade  própria,  produzem  estratégias  textuais  que  representam  uma  atitude  de  ruptura  com  essa  referência  (Matusse,1988,p.74)    Se levarmos em consideração que ao conquistar a independência em 25 de julho de 1975 Moçambique tinha  um  índice  de  analfabetismo  estimado  em  quase  100%  e  praticamente  toda  a  educação  e  cultura  era  baseada  na  oralidade,  podemos  considerar  que  se  houve  uma  negligencia  à  sua  produção  literária,  isto  decorreu  tanto  de  problemas  ligados  às  estruturas    sócio-econômicas  moçambicanas,  como  também  da  diversidade  cultural  presente  no território nacional. Talvez por isso a partir dos anos 50 e 60 emergiram escritores negros como José Craveirinha  e  Rui  Knopfi  (poesia)  e  Luis  B.  Honwanna  (contos)  que  a  principio  foram  considerados  apenas  como  ingênuos  representantes  de  um  grupo  sem  direito  a  voz,  mas  com  o  decorrer  do  tempo  tornaram-se  grandes  precursores  na  construção de uma identidade literária nacional.    Um conjunto de autores que produziram, na África, a sua obra com total espírito de independência relativamente a  códigos  estéticos  coloniais  ou  nacionalismos,  mais  ou  menos  exacerbados.  Autores  que,  todavia,  deixaram  marca na vida literária e intelectual das antigas colônias portuguesas da África. (TRIGO, 1987: p 156).      21 Ao  abordarmos  a  importância  desses  escritores  para  o  resgate  da  idéia  de  sujeito  na  cultura  desse  país,  atentaremos  em  especial  neste  artigo  a  obra  do  poeta  José  Craveirinha,  o  qual  teve  um  papel  fundamental  na  construção  da  imagem  do  colonizado  procurando  resgatar  sua  memória  social  e  coletiva  com  uma  poesia  de  forte  impacto  social,  recusando  com  isso  a  identidade  que  fora  imposta  pelos  portugueses  aos  moçambicanos.  Pois,  se  partimos da abordagem feita por Albert Memmi em O Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador,  observaremos  que  essa  questão  de  impor  ao  outro  “colonizado”,  uma  identidade  mais  ou  menos  marginalizada  frente aos ideais europeus era uma atitude comum até mesmo primordial no processo de colonização. “Assim como  a  burguesia  propõe  uma  imagem  do  proletário,  a  existência  do  colonizador  reclama  e  impõe  uma  imagem  do  colonizado (...) o que é verdadeiramente o colonizado pouco importa ao colonizador” (MEMMI, 1977: p 80).  Devido  a  esse  tratamento  do  colonizador  para  com  o  colonizado,  que  o  poeta  José  Craveirinha,  a  que  passaremos  a  chamar  apenas  de  Craveirinha,  se  destacou  nos  movimentos  culturais  das  cidades  Moçambicanas  enquanto intelectual  e  aos poucos  sua  obra  poética  se  afirmou  no  meio literário e  através dela  exprime  as  sofridas  angustias e denuncia a iniqüidades e injustiças para com os nativos, reclamando de forma direta ao colonizador um  espaço  na  sociedade  urbana,  que  mesmo  após  a  independência  territorial  continuava  sob  o  domínio  intelectual  Português, que na maioria das vezes colocava o escritor moçambicano às margens da sociedade moderna, vendo-o  apenas como diferente, como colonizado.  Filho  de  pai  português  e  mãe  africana,  craveirinha  era  o  típico  mestiço,  o  híbrido,  conseqüência  da  colonização e mesmo tendo acesso aos meios de comunicação, trabalhando como jornalista no O Brado Africano e  colaborado  com  diversos  órgãos  de  informação  de  Moçambique,  não  deixou  de  ser  visto  com  diferença,  pois  de  acordo com o ponto de vista eurocêntrico ele sempre seria um colonizado e assim como outros escritores como, por  exemplo,  Estácio  Dias  também  da  mesma  época,  sua discriminação  não  estaria na  diversidade  de comportamento,  mais sim na cor da pele. É o que afirma também José Luis Cabaço em um dos artigos que publicou e que ressalta  essa  questão  da  diferença  na  Literatura  Moçambicana:  “Naquele  contexto,  gradualmente  adquire  consciência  de  que,  a  despeito  de  sua  cultura  urbana,  ele  nunca  seria  aceito  como  cidadão  pleno,  mas  seria  sempre  visto  como  diferente, como colonizado” (CABAÇO, 1999: p 63).  Opondo-se  a  esse  sistema,  Craveirinha  não  deixou  de  assumir  sua  identidade  de  moçambicano  mestiço  e  engendrou-se nos meios de produção cultural e torna evidente em sua obra a noção de diferença e de representação  do sujeito na literatura local. Afinal, ainda de acordo com José Luis Cabaço, a “África era e é naturalmente marcada  pela diferença em relação à referencia Universal do mundo em que somos periferia, o da cultura Euro-americana.”  (CABAÇO,1999:  p63).  E  paralelo  a  isso  vários  autores  dessa  região  também  são  submetidos  a  esse  julgamento  vindo da (s) ex metrópole (s), inclusive Craveirinha.      O SUJEITO MOÇAMBICANO REPRESENTADO NO POEMA “ÁFRICA”  Posto o breve referencial teórico explanado anteriormente juntamente com o histórico acerca do autor e da  sociedade  na  qual  está  inserido,  passaremos  a  seguir  a  análise  do  poema  África,  de  José  Craverinha  que  está  intimamente ligado ao objetivo desse trabalho.     África    Em meus lábios grossos fermenta  a  farinha  do  sarcasmo  que  coloniza  minha  Mãe  África  e meus ouvidos não levam ao coração seco  misturado com o sal dos pensamentos  a sintaxe anglo-latina de novas palavras.  Amam-me  com  a  única  verdade  dos  seus  evangelhos  a mística das suas missangas e da sua pólvora  a lógica das suas rajadas de metralhadora  e enchem-me de sons que não sinto  das canções das suas terras  que não conheço.   [...]  E  em  vez  dos  meus  amuletos  de  garras  de  leopardo  vendem-me a sua desinfectante benção  a  vergonha  de  uma  certidão  de  filho  de  pai  incógnito  uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro  de vinho tinto com graduação de álcool de branco  exacta só para negro  um gramofone de magaíça  um  filme  de  heróis  de  carabina  ao  vencer  traiçoeiros  selvagens armados de penas e flechas  e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos  civiliza o meu casto impudor africano.  [...]  E ao som másculo dos tantãs tribais o eros  do  meu  grito  fecunda  o  húmus  dos  navios  negreiros...  E ergo no equinócio da minha Terra  o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga  e  na  insólita  brancura  dos  rins  da  plena  Madrugada  a necessária carícia dos meus dedos selvagens  é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças  belas como altivos falos de ouro  erectos no ventre nervoso da noite africana.  (Xigubo.  Maputo:  AEMO,  1995,  pp.  10-12)   22     Logo nos primeiros versos do poema África, notamos que o poeta procura estabelecer uma identidade,  uma espécie de nacionalidade afim de extrair da sua poesia uma cultura, uma personalidade artística e humana.  Este  é  um  aspecto  significativo  se  levarmos  em  consideração  a  posição  assumida  por  ele  em  relação  à  sua  negritude  e ao  seu  ponto de  vista  reacionário sobre  a visão  sócio/política  que  tem  sobre  a  África  de  um  modo  geral.  “Em  meus  lábios  grossos  fermenta  /  a  farinha  do  sarcasmo  que  coloniza  minha  Mãe  África”.  Também  torna interessante observar que mesmo escrevendo em Língua Portuguesa o poeta não deixa de criticar a forma  como o colonizador tenta através do idioma implantar ao colonizado uma nova maneira de pensar sua cultura;  “e meus ouvidos não levam ao coração seco / misturado com o sal dos pensamentos / a sintaxe anglo-latina de  novas palavras”. Podemos perceber que há uma espécie de dualidade da língua o que pode ser comprovado se  tomarmos como base a afirmação dada por Saussure na obra Course de Linguistique Générale;    Uma  das  características  básicas  do  processo  de  significação  é  que  o  relacionamento  entre  os  signos  e  a  natureza  (o  real)  é  arbitrário.  Em  outras  palavras,  a  mesma  realidade  pode  ser  representada  por  signos  diferentes  em  contextos  diferentes,  enquanto o mesmo signo pode se referir a realidades diferentes (SAUSSURE, 1967, p.  97).       Notamos que Craveirinha a todo o momento usa signos lingüísticos típicos do Português para denunciar  a  forma  como  o  colonizador  tenta  impor  sua  cultura  e  seus  métodos  políticos  ignorando  o  ponto  de  vista  do  outro, o colonizado. “Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos / a mística das suas missangas e da  sua  pólvora  [...]  e  enchem-me  de  sons  que  não  sinto  /  das  canções  das  suas  terras  que  não  conheço”.  Para  o  poeta,  utilizar-se  do  veículo  de  expressão  do  colonizador,  neste  caso  a  língua  e  os  elementos  culturais,  não  transforma  sua  linguagem,  ou  seja,  não  lhe  interessa  forjar  e/ou  dar  ao  seu  Português  uma  tonalidade  original  adequando-o à sua cultura local, ao contrario, apenas capta a realidade em que está inserido e a transcreve em  forma  de  versos  simples  e  descritivos.  Segundo  José  Luis  Cabaço,  essa  é  uma  característica  positiva  para  o  resgate  da  identidade  nacional  do  sujeito  que  compõe  uma  sociedade  que  tem  sua  tradição  literária  ainda  calcada nos princípios da oralidade.    A dialética da formação da identidade exige a clareza sobre os pontos de partida. E se  são  diversos  os  caminhos  percorridos  pelos  nossos  escritores,  é  mais  ou  menos  pacifico para todos eles que a literatura moçambicana caminha, com maior ou menor  ênfase,  sobre  dois  carris:  a  língua  portuguesa,  como  meio  de  expressão  escrita  e  processo  de  inculturação  –  não  como  referente  intertextual  marcante  –  e  a  tradição  oral  (e  agora  a  tradição  inventada  do  processo  revolucionário)  como  permanente  busca de uma intertextualidade nacional. (CABAÇO, 2004, p.66).      Na  verdade,  dentro  do  âmbito  social  que  está  inserido  o  poeta,  o  significado  atribuído  a  uma  certa  unidade literária, neste caso a poesia, não depende exclusivamente de relações de causalidade ou de influencias  históricas, mas de um revide às imposições do colonizador, pois é através da aversão ao modo de vida imposto  pela metrópole que o poeta tenta resgatar sua identidade e impor-se novamente enquanto sujeito. “E em vez de  meus amuletos de garras de leopardo / vendem-me a sua desinfectante benção / uma educativa sessão de “strip- tease”  e meio litro de vinho tinto [...] um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros / selvagens armados  de  penas  e  flechas  /  e  o  ósculo  das  balas  e  aos  gases  lacrimogêneos  /  civiliza  o  meu  casto  impudor  africano”.  Vimos até o momento que os versos citados acima nos remetem de forma irônica uma resistência à dominação  imposta pelo sistema político vigente.    Não  obstante,  Craveirinha  mesmo  sendo  um  poeta  realista,  evoca  ao  final  do  poema  África  os  frescos  campos distantes em que vivia o seu povo antes do processo de colonização e os contrapõe ao período em que  foram  colonizados.  “E  ao  som  másculo  dos  tantãs  tribais  o  Eros  /  do  meu  grito  fecunda  o  húmus  dos  navios  negreiros... / e ergo no equinócio da minha Terra / o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga”. Notamos  que  o  poema  gradativamente  vai  resgatando  certos  aspectos  da  história  tanto  do  povo  africano  de  um  modo  geral  como  também  do  Moçambicano  propriamente  dito.  Aos  poucos,  os  versos  que  concluem  o  poema  vão  adquirindo  características  mais  próximas  a  cultura  local  e  com  isso  resgata  os  valores  ideológicos  até  então  esquecidos, colocando-os a frente do que viria a tornar-se uma espécie de representatividade da história de luta  contra os valores eurocêntricos.     Por  isso,  os  símbolos  rurais  são  utilizados  neste  poema  com  significado  regressivo  levando  o  poeta  a  uma espécie de exaltação momentânea do sentimento de negritude do poeta, de resgate de sua identidade. “E na  insólita  brancura  dos  rins  da  plena  Madrugada  /  a  necessária  caricia  dos  meus  dedos  selvagens  /  é  a  táctica    23 harmonia de azagaias no cio das raças / belas como altivos falos de ouro / erectos no ventre nervoso da noite  africana”.    Lembrando  que  de  acordo  com  Ashcroft,  “negritude  também  pode  ser  entendida  como  o  ponto  de  vista  do  africano  sobre  sua  estética  literária  que  muitas  vezes  possui  mais  características  emocionais  que  racionais justamente o que o distingue do estilo Europeu, que parte do principio inverso” (ASHCROFT, 1989,  p.21).     Ainda valendo-se da analise do texto “África”, podemos notar que em vários momentos o poeta utiliza  vocábulos  típicos  da  cultura  Moçambicana  como,  por  exemplo:  Tantãs  tribais,  canto  xi-ronga,  azagaias  etc.  podemos dizer que esses elementos podem integrar a questão da diferença na poesia de Craveirinha. Por outro  lado,  não  é  menos  verdade  que  por  se  um  poeta  que  trata  do  sofrimento  do  homem  negro  e  também  dos  sentimentos  de  luta  e  revolta,  podemos  afirmar  que  ao  aproximar  esses  elementos  típicos  da  cultura  local  ele  consegue  resgatar  valores  da  identidade  nacional  Moçambicana  que  se  perderam  com  o  tempo  durante  o  processo de colonização.    Se  a  representação  do  sujeito  Moçambicano  é  um  dado  na  poesia  de  Craveirinha  e  que  podem  ser  notados  através  dos  elementos  apresentados  durante  a  analise,  veremos  que  aquilo  que  incomoda  o  poeta  é  o  sofrimento do seu povo, que tem como determinante as condições em que se processam as relações econômico  – sociais e a própria conseqüência da exploração do trabalho na sociedade Moçambicana que mesmo após a sua  independência  territorial  continuou  dependente  de  um  sistema  político/econômico  oriundo  quase  que  exclusivamente  de  Portugal,  principal  responsável  pela  colonização  do  país.  Dado  que  muitas  vezes  torna-se  irrelevante  à  população  local,  mas  que  aflige  o  poeta  que  gradativamente  vai  transferindo  para  sua  produção  literária as conseqüências exacerbadas do sistema social a que faz parte como afirma Raymond Willians em sua  obra O Campo e a Cidade.    A  vulnerabilidade  e  os  sofrimentos  do  escritor,  em  sua  situação  social  própria,  são  identificados  com  os  fatos  de  uma  história  social  que  o  transcende.  Não  que  ele  não  consiga  ver  a  realidade  dessa  história;  pelo  contrário,  em  muitos  casos  ele  é  particularmente  sensível  a  ela,  enquanto  fato  presente.  Mas  a  identificação  dos  sofrimentos pessoais do escritor com os de um grupo social que o transcende termina  inevitavelmente por ser negativa (WILLIAMS, 1989, p. 111).    Seria  como  se  o  poeta  tivesse  certeza  apenas  dos  fatos  relacionados  ao  tempo  presente  e  as  duvidas  e  incertezas do futuro ou lembranças de um passado o fizesse, mesmo incerto, estruturar seu discurso tornando-o  próprio de um contexto, porem com características universais de uma obra literária. É o que foi possível notar  na poesia de José Craverinha e que pode ser verificado em uma série de outros autores Moçambicanos que não  fizeram parte dessa análise.    A  análise  do  poema  África  nos  permite  a  compreensão  dos  valores  e  das  visões  de  mundo  correspondentes ao momento histórico no qual foram constituídas. Alem disso, nos remetem à posição da qual  foram  enunciadas,  ou  seja,  do  ponto  de  vista  de  um  poeta  reacionário  que  ao  estruturar  e  dar  materialidade  ao  seu discurso poético visou responder às questões ligadas a representatividade do sujeito colonizado africano na  literatura  de  Moçambique.  Por  sua  vez,  tais  questões  estiveram  relacionadas  a  conflitos  de  ordem  político  /  cultural que aos poucos demarcaram a posição de escritores e intelectuais das mais variadas áreas exercendo de  forma  mais  prática  possível  o  resgate  de  uma  identidade  nacional  e  posteriormente  representá-la  em  sua  literatura  e/ou  em  outra  área  voltada  a  formação  do  sujeito  de  uma  nação,  e  o  resgate  de  sua  identidade  em  especifico aqui a de Moçambique.      REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS     ASCHCROFT, Bill. Postcolonial London Rewriting the Metropolis. Routledge: London, 2004.  CABAÇO,  José  Luis.  A  Questão  da  Diferença  na  Literatura  Moçambicana.  Universidade  de  São  Paulo:  Via  Atlântica n º 7 outubro de 2007.   COSTA,  Cláudia  de  Lima.  O  feminismo  e  o  pós-modernismo/pós-estruturalismo:  as  (in)  determinações  da  identidade  nas  (entre)  linhas  do  (con)texto.  In:  PEDRO,  Joana  Maria;  GROSSI,  Miriam  Pillar  (Org.)  et  al.  Masculino, feminino, plural – gênero na interdisciplinaridade. Santa Catarina: Mulheres, 1998, p. 57-90.  CRAVEIRINHA, José. Seleção de Poemas do Autor. Xigubo. Maputo: AEMO, 1995, pp. 10-12.  FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1979.  MATUSE,  Gilberto.  A  Construção  da  Imagem  de  Moçambicanidade  em  José  Craveirinha.  Maputo:  Livraria  Universitária / Universidade Eduardo Mondlane, 1998.  MEMMI,  Albert.  Retrato  do  colonizado  Precedido  do  Retrato  do  Colonizador.  2a.  ed.  Rio  de  Janeiro:  Terra,  1997.  SAUSSURE, Ferdinad de. Cours de Linguistique Générale. Organizada por Charles Bally e Albertt Sechehaye.  Paris: Payout 1967.    24 TRIGO,  Salvato.  Literatura  colonial  /  Literaturas  africanas.  IN:  AA.VV  –  Literaturas  Africanas  de  Língua  Portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1987.  WILLIAMS,  Raymond.  O  campo  e  a  cidade  na  história  e  na  Literatura.  São  Paulo:  Companhia  das  Letras,  1989.  O texto de autoria de Marcelo Oliano Machado, retirado da Revista Cronópios, de 24/03/2007,  site http://www.cronopios.com.br/blogdotexto/blog.asp?id=2381  *Marcelo Oliano Machado nasceu em Douradina (PR). Em 1996, ingressou no curso de Letras da Universidade  Estadual  de  Maringá  UEM.  Depois  de  formado  passou  a  trabalhar  no  departamento  de  cultura  da  cidade  de  Sarandi no Paraná, onde atuou como professor e diretor de teatro para adolescentes e adultos. Em junho de 1999  escreveu a Comédia da Família Feliz. Atualmente, residente na cidade de Maringá PR, é aluno não regular do  curso  de  Mestrado  em  Literatura,  trabalha  como  professor  de  Literatura  e  escritor.  Está  preste  a  publicar  seu  primeiro livro, no qual constam todos os episódios de: A Comédia da Família Feliz.     Antologia de Poetas Moçambicanos        RUI DE NORONHA (1909-1943)     Nasceu em Maputo, assinou-se também António Ruy de Noronha e Carranquinha de Aguilar. Mestiço, filho de  índio e negra. Com seus Sonetos é tido como o precursor da poesia moçambicana.    NO CAIS    Há vibrações metálicas chispando  Nas sossegadas águas da baía.  Gaivotas brancas vão e vêm bicando  Os peixes numa louca gritaria.     Escurece. Do largo vão chegando  As velas com a farta pescaria.  As bóias põem no mar um choro brando    De luzes a cantar em romaria.    E, entretanto no cais as lidas crescem.  Arcos voltaicos súbito amanhecem,  A alumiar guindastes e traineiras...    E ouve-se então mais forte, mais vibrante,  Os pretos a cantar, noite adiante,  Por entre a bulha e o pó das carvoeiras...          NOÉMIA DE SOUSA  (1926-2002)    Nasceu em Catembe, Moçambique, em 1926 e faleceu em Cascais, Portugal, em 2002. Poeta, jornalista de agências  de notícias internacionais viajou por toda a África durante as lutas pela independência de vários países. Só publicou  tardiamente seu livro de poesias Sangue Negro, em 2001.    DEIXA PASSAR O MEU POVO    Noite morna de Moçambique  e sons longínquos de marimba chegam até mim  -certos e constantes-  vindos nem eu sei donde.  Em minha casa de madeira e zinco,  abro o rádio e deixo-me embalar...  Mas as vozes da América remexem-me a alma e os  nervos.  E Robeson e Marian cantam para mim  Spirituals negros de Harlem.   ″Let my people go″  - oh deixa passar o meu povo,  deixa passar o meu povo -,  dizem.  E eu abro os olhos e já não posso dormir.  Dentro de mim soam-me Anderson e Paul  e não são doces vozes de embalo.  ″Let my people go″    Nervosamente,  sento-me à mesa e escrevo...  dentro de mim,  deixa passar o meu povo,  ″Let my people go″  E já não sou mais que instrumento  do meu sangue em turbilhão  com sua voz profunda – minha irmã.    Escrevo...  Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.      Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado  e revoltas, dores, humilhações;    25 tatuando de negro o virgem papel branco.  E Paulo, que não conheço  mas é do mesmo sangue da mesma seiva amada de  Moçambique,  e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,  algodais, e meu inesquecível companheiro branco,  e Zé – meu irmão – e Saul,  e tu, Amigo de doce olhar azul,  pegando na minha mão e me obrigando a escrever  com o fel que me vem da revolta.  Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,  Enquanto escrevo, noite adiante,      com Marian e Robeson vigiando pelo olho  luminoso do rádio.  oh let my people go.  ″Let my people go″    E enquanto me vierem de Harlem  vozes de lamentação  e os meus vultos familiares me visitarem  em longas noites de insônia,  não poderei deixar-me embalar pela música fútil  das valsas de Strauss.  Escreverei, escreverei,  com Robeson e Marian gritando comigo:  ″Let my people go″    OH DEIXA PASSAR O MEU POVO.    (Apud: FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban III, 3.ed., 1985)           JOSÉ CRAVEIRINHA (1922-2003)  Nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique). 1   Autodidata,  desempenhou  diversas  atividades  tais  como  funcionário  da  Imprensa  Nacional  de  Lourenço  Marques,  jornalista,  futebolista,  tendo  também  colaborado  em  diversas  publicações  periódicas,  nomeadamente  O  Brado  Africano, Itinerário, Notícias, Mensagem, Notícias do Bloqueio e Caliban.  Foi preso pela PIDE, mantendo-se na prisão durante 5 anos. Posteriormente após a independência de Moçambique  foi membro da Frelimo e presidiu à Associação Africana.   Recebeu o Prêmio Alexandre Dáskalos, o Prêmio Nacional, em Itália, o Prêmio Lótus, da Associação Afro-Asiática  de  Escritores  e  o  Prêmio  Camões,  em  1991.  É  um  dos  mais  reconhecidos  poetas  da  língua  portuguesa  e  um  dos  maiores escritores africanos.  Os  temas  fundamentais  são:  escravatura,  raça,  crítica  à  civilização  ocidental,  vitalismo,  sensualidade,  revalorização  da  tradição  negra,  culto  da  Natureza,  animização,  etc.,  com  recurso  aos  modelos  da  Black  Renaissance, Negritude e Neo-realismo, no intuito de construir uma identidade poética moçambicana.     Obra: Xibugo, 1964; Cântico a um Dio de Catrane, 1966; Karingana Ua Karingana, 1974; Cela 1, 1980 e Maria,  1988.      QUERO SER TAMBOR*    Tambor está velho de gritar  Oh velho Deus dos homens  deixa-me ser tambor  corpo e alma só tambor  só tambor gritando na noite quente dos trópicos.    Nem flor nascida no mato do desespero  Nem rio correndo para o mar do desespero  Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero  Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.                                                        1 - LEITE, Ana Mafalda. A poética de José Craveirinha. Lisboa: Vega, 1991. p. 30 e 33.    26     Nem nada!    Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra  Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra  Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.    Eu  Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala  Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra  Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.    Oh velho Deus dos homens  eu quero ser tambor  e nem rio  e nem flor  e nem zagaia por enquanto  e nem mesmo poesia.  Só tambor ecoando como a canção da força e da vida  Só tambor noite e dia  dia e noite só tambor  até à consumação da grande festa do batuque!  Oh velho Deus dos homens  deixa-me ser tambor  só tambor!      KARINGANA UA KARINGANA* 2      Este jeito  de contar as nossas coisas  à maneira simples das profecias  — Karingana ua Karingana —  é que faz o poeta sentir-se  gente.     E nem  de outra forma se inventa  o que é propriedade dos poetas  nem em plena vida se transforma  a visão do que parece impossível  em sonho do que vai ser.      — Karingana!                                                          2  Obs. Fórmula clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”.      27    GRITO NEGRO    Eu sou carvão!  E tu arrancas-me brutalmente do chão  e fazes-me tua mina, patrão.  Eu sou carvão!  E tu acendes-me, patrão  para te servir eternamente como força motriz  mas eternamente não, patrão  Eu sou carvão  e tenho que arder, sim  e queimar tudo com a força da minha combustão.  Eu sou carvão  tenho que arder na exploração  arder até as cinzas da maldição  arder vivo como alcatrão, meu irmão  até não ser mais a tua mina, patrão.  Eu sou carvão  Tenho que arder  queimar tudo com o fogo da minha combustão  Sim!  Eu serei o teu carvão, patrão!      (CRAVEIRINHA, José. Grito Negro. In: Xigubo. Maputo: INLD, 1980. p. 13)          VIRGÍLIO DE LEMOS     Poeta  e  jornalista  moçambicano,  Diogo  de  Lemos  Virgílio  nasceu  em  Novembro  de  1929,  na  ilha  de  Ibo,  Moçambique. Os primeiros poemas do poeta datam de 1944 a 1948, revelando uma fruição e uma profundidade na  utilização  da  palavra  e  na  escrita  da  sua  própria  poesia.  Entre  1947  e  1948,  colaborou  no  Jornal  da  Mocidade  Portuguesa  de  Moçambique,  com  o  seu  irmão  Eugénio  de  Lemos  e  com  Guilherme  de  Melo,  onde  foi  redator  até  1949. O jornal tornou-se essencial no panorama da literatura moçambicana, quando um grupo de jovens, entre os 14  e os 22 anos, como Rui Knopfli, Noémia de Sousa, Fonseca Amaral, entre outros, iniciaram a sua participação no  jornal.   Sendo  um  dos  grandes  impulsionadores  do  movimento  literário  moçambicano  nos  finais  dos  anos  40  e  anos  50,  Vírgilio de Lemos foi colaborador e editor, em 1952, juntamente com Domingos Azevedo e Reinaldo Ferreira, da  folha  de  poesia  Msaho  (contemporânea  da  revista  Négritude  de  Césaire)  que  procurou  enaltecer  as  culturas  locais  moçambicanas  e  criar  uma  poética  moçambicana,  que  rompesse  com  os  paradigmas  literários  impostos  pela  colonização. Após ter sido absolvido de um processo judicial por crime de desrespeito à bandeira portuguesa com  um poema escrito, em 1954, pelo heterônimo Duarte Galvão, Virgílio de Lemos colaborou, entre 1954 e 1961, com  a resistência moçambicana, escrevendo para várias publicações como O Brado Africano; A Voz de Moçambique, o  jornal  de  esquerda  da  altura;  Tribuna,  Notícias.  Entre  1961  e  1962,  o  poeta  esteve  preso,  acusado  pela  PIDE  de  subversão com o propósito de focar a Independência de Moçambique. Dado o clima de repressão política, Virgílio  de  Lemos  saiu  de  Moçambique,  percorreu  as  ilhas  do  oceano  Índico,  mais  tarde,  as  do  Dodecanese  (Grécia)  e  da  América Central, passando, em 1963, a viver e a trabalhar em Paris, onde tem sido jornalista no canal de televisão  TF1.     Obras: Poemas do Tempo Presente (1960), obra apreendida pelo órgão de censura da época - a PIDE;   L'Obscene  Pensée  d'Alice  (1989),  Ilha  de  Moçambique:  a  língua  é  o  exílio  do  que  sonhas  (1999),  Negra  Azul  (1999)  e  Eroticus  Mozambicanus  (1999).  Numa  escrita  poética fragmentária,  sintética,  com  imagens  surrealistas  e  numa  dimensão  cósmica,  Virgílio  de  Lemos,  um  dos  vanguardistas  da  lírica  moçambicana,  aborda,  sobretudo  as  temáticas  do  onirismo,  da  liberdade  de  desejos,  das  problemáticas  existências,  do  erotismo  enquanto  atividade  lúdica.  O  lirismo  de  Virgílio  não  desprezou,  no  entanto,  a  crítica  às  injustiças  sociais  e  a  repressão  colonial.  O  poeta  foi  dos  raros  moçambicanos  a  deixar-se  influenciar  pela  poesia  inglesa  de  Whitman,  Shakespeare,  Osborne,  e  também  pela  poesia  francesa  de  Rimbaud,  Baudelaire,  Verlaine,  Michel  Leris  e  St.  John  Perse.  Virgílio de Lemos criou três heterônimos que se destacam entre si: Lee-Li Yang, pelo seu erotismo; Duarte Galvão,    28 pelo seu engajamento, e Bruno dos Reis, pela sua Yang, pelo seu erotismo; Duarte Galvão, Bruno dos Reis, pela  sua poesia geracional .      A ILHA E O SEGREDO    Visão  colada à bruma  no infinito ponho  do rosto do eterno  a transparência Persa negro e branco  cabaias e cofiós  de seda e linho,  em pontilhado, aurora  minha utopia que sangra.  Nos mármores róseos  da fortaleza  tua consciência, livre  recria o nada.      RUI KNOPFLI (1932-1997)    Nasceu em Inhambane, Moçambique. Poeta.  Jornalista. Sua estreia deu-se com o livro O País dos Outros (1959).  Lançou,  com  João  Pedro  Grabato  Dias,  Os  cadernos  de  poesia  Caliban  (1971-72).  Trabalhou  como  adido  de  imprensa, na delegação portuguesa à Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque (1974) onde participa  dos trabalhos da Comissão de Descolonização. Publicou Memória Consentida (1982) e em 1984 recebeu o prêmio  de poesia do PEN Clube.         ILHA DOURADA    A fortaleza mergulha no mar  os cansados flancos  e sonha com impossíveis  naves moiras  Tudo mais são ruas prisioneiras  e casas velhas a mirar o tédio  As gentes calam na  voz  uma vontade antiga de lágrimas  e um riquexó de sono  desce a Travessa da "Amizade"  Em pleno dia claro  vejo-te adormecer na distância,  Ilha de Moçambique,  e faço-te estes versos  de sal e esquecimento                                               29     MARCELINO DOS SANTOS    Marcelino dos Santos (Lumbo, 20 de Maio de 1929) é um político e poeta moçambicano. Foi membro fundador da  Frente  de  Libertação  de  Moçambique,  aonde  chegou  a  vice-presidente.  Depois  da  independência  de  Moçambique, Marcelino dos Santos foi o primeiro Ministro da Planificação e Desenvolvimento, cargo que deixou  em 1977 com a constituição do primeiro parlamento do país (nessa altura designado “Assembleia Popular”), do qual  foi presidente até à realização das primeiras eleições multipartidárias, em 1994.  Com  os  pseudônimos  Kalungano  e  Lilinho  Micaia  tem  poemas  seus  publicados  no  Brado  Africano  e  em  duas  antologias publicadas pela Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Com o seu nome oficial, tem um único livro  publicado pela Associação dos Escritores Moçambicanos, em 1987, intitulado Canto do Amor Natural.    NAMPIALI  Verde carmim azul e violeta  e nós  marchando no planalto    Em baixo  o vale  e as machambas de Nachinhoco      Mais longe  nas encostas do Nampiali  as árvores   verde carmim azul e violeta  enchem os nossos olhos    É já o por do sol    Vamos marchando  e as vozes vão cantando    “somos soldados  da FRELIMOOO...”    Verde carmim azul e violeta  e nós  marchando no planalto  seguindo sempre para além    verde carmim azul e violeta    Aqui os portugueses foram esmagados  Aqui os portugueses não voltarão    Agora nascem os campos de produção    Nós   marchando no planalto  seguindo sempre para a frente    30   e as vozes cantando    “Decididos  Nós lutaremos...”    Nós  marchando no planalto  seguindo para além    e sempre nos nossos olhos  as cores suaves e doces  de verde carmim azul e violeta  na paisagem quente  da terra livre de Moçambique        LUÍS CARLOS PATRAQUIM     (Maputo, 26 de Março de 1953)    É um poeta, autor teatral e jornalista moçambicano.  Refugiado na Suécia em 1973, regressa a Moçambique em 1975, onde vai trabalhar no jornal A Tribuna. Encerrado  o jornal, integra o grupo fundador da Agência de Informação de Moçambique (AIM) sob a direcção de Mia Couto.  De  1977  a  1986  trabalha  no  Instituto  Nacional  de  Cinema  de  Moçambique  (INC)  como  autor  de  roteiros  e  de  argumentos e como redactor do jornal cinematográfico Kuxa Kanema. Em conjunto com Calane da Silva e Gulamo  Khan, coordenou, entre 1984 e 1986, a Gazeta de Artes e Letras da revista Tempo. Reside em Portugal desde 1986.  Colabora na imprensa moçambicana e portuguesa, em roteiros para cinema e escreve para teatro.  É coordenador redactorial da revista Lusografias.    Obras  publicadas:  Monção  (1989);  A  inadiável  viagem  (1985);  Vinte  e  tal  novas  formulações  e  uma  elegia  carnívora (1991); Mariscando luas (1992); Lindemburgo blues (1997).  LÍNGUA     Mpurukuma, Língua, corpo quase,   o que sou de sobrepostas vozes,   Bayete!   E tu, pássaro da alma, Mpipi adejando   sobre o losango tumultuante de cores,   Templo onde me cerco,   não me abandones, cão inflando para o rio   uma escarninha balada que nos enforca.   Esfumou-se a Torre na praia nocturna,   a preposição que olfactava o nervo   e Ele dorme ainda e expulso.   Quando a palavra surge, inteira, das águas   e os espíritos batem a respiração do batuque,   Ele tacteia os nomes nas abóbadas de sangue     e entra pelo silêncio, dobrando-se   em número.   Leva-o nas tuas asas, ó sombra   que as patas de cinza espargiram no vento,   soluço de Leanor   em saínhos sete de capulanas mil,   Ilha mineral, Mpipi hílare no azul   onde me cego.   Que sinais sobre que mar do exílio ou   som de algas lavando-te o rosto, se inscreveram   em ti, mulher larga no Índico,   língua por dentro dos lábios cavando, obscuro,   um reino por achar?   Língua, Mpurukuma quase.              31   MIA COUTO     Mia Couto é autor de Terra sonâmbula, considerado por um júri da Feira Internacional de Zimbabwe como um dos  dez  melhores  livros  africanos  do  século  XX.  Antonio  Emílio  Leite  Couto  é  moçambicano  da  cidade  de  Beira.  O  apelido  Mia  surgiu  na  infância,  por  conta  do  irmão  mais  novo  que  não  conseguia  pronunciar  'Emílio'.  Biólogo,  romancista, contista e poeta, ganhou em 1999 o Prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra. Recebeu o Prêmio  da União Latina de Literaturas Românicas em 2007. É, aos 51 anos, um dos mais notáveis autores contemporâneos  da  língua  portuguesa.  Foi  ele  quem  abriu  o  caminho  para  outros  autores  africanos  no  Brasil.  Entre  suas  obras  de  ficção destacam-se Cronicando (1996), Cada homem é uma raça (contos), O gato e o escuro (infanto-juvenil, com  ilustrações de Danuta Wojciechowska, 2001) e O outro pé da sereia (2006). Pela Língua Geral, publicou O beijo da  palavrinha, na coleção Mama África.    QUISSICO  1. Deixei o sol  na praia de Quissico  De bruços  sobre o Verão  eu deixei o Sol  na extensão do tempo  Molhando, quase líquido,  o dia afundava  nas fundas águas do Índico  A terra  se via estar nua  lembrando, distante,  seu parto de carne e lua    2. Não o pássaro: era o céu  que voava  O ombro da terra  amparava o dia  A luz  tombava ferida  pingando  como um pulso suicida  um minhas ocultas asas            NELSON SAÚTE    Nelson  Saúte  nasceu  em  Maputo,  Moçambique,  em  1967.  Formou-se  em  Ciências  da  Comunicação  pela  Universidade  Nova  de  Lisboa.  Como  jornalista,  trabalhou  na  revista  Tempo  e  na  Rádio  Moçambique.  Como  cronista, escreveu em diversos periódicos, entre os quais Notícias e Zambeze. Na televisão moçambicana manteve  um  programa  sobre  livros.  Foi  também  comentarista  político.  No  tempo  em  que  permaneceu  em  Portugal,  foi  colaborador permanente do JL, Público e de um programa - Estórias em Português - transmitido pela TSF. Publicou  livros de poesia, entrevistas, contos e um romance em Moçambique, Portugal e Itália. Entre os seus títulos aparecem  A  pátria  dividida (1993), O  apóstolo da  desgraça (1999)  e  Os  narradores  da sobrevivência  (2000).  Atua também  como  administrador  executivo  na  empresa  Portos  e  Caminhos  de  Ferro  de  Moçambique  (E.P.-CFM).  Pela  Língua  Geral, publicou, em 2006, O homem que não podia olhar para trás, na coleção Mama África.    32   MARRABENTA PARA FANNY MPFUMO    ao Zé Flávio Teixeira    Fanny Mpfumo cantava I love you so  eu era menino e nem sabia o que era tindjombo:  - ó a va sati valomo! –  mas já dizia hodi nos quintais contíguos  do meu Bairro Indígena.  Unga tlhupheque nkata que ouvia na rádio  por sobre o móvel da sala  na casa da minha avó  nomeava todas as mulheres que derrubavam  à passagem os meus inocentes e desprevenidos anos  ali na varanda do Muchina.  O king ya marrabenta era suposto  conviver conosco todos os dias.  Também ouvíamos Elisa gomara saia  nos tempos em que os Djambo 70 conjuravam  e o destino dos meus pais não era só  os míticos bailes da cidade de caniço.  O mufana que eu era também gostava  maningue do Gonzana e de todo o conjunto João Domingos  Massoriana no palato daqueles tempos.  Algumas vezes ouvia o João Wate  e outros que a memória não acautelou.  O Alexandre Langa foi mais tarde  que me empolgou – Rosa Maria.  Tínhamos atravessado  para lá do asfalto e alcandorados estávamos  na Polana onde inaugurávamos a nossa condição  de habitantes de fogos suspensos,  alcançados mais tarde em obscuras escadas  disputadas por bidões de água  acartados do jardim Tunduro.  Minha avó falava naqueles velhos anos  do Artur Garrido, conterrâneo lá de Ressano Garcia.  Mais tarde vi Fanny Mpfumo no Scala  - não muitos anos depois no Estrela Vermelha –  marrabentando uma guitarra eléctrica  no frémito do seu amor por Georgina waka Nwamba.    MAPUTO    Preciso dizer-te com caráter de urgência.  Preciso revelar-te na palavra e no silêncio.  Preciso sublimar a minha solidão na sombra  das palavras e dos gestos acordando  na imensidão dos dias vozes duendes  como se me albergasses na infância  Preciso amar-te com urgência. Amar-te  como palavras. Sussurrar-te minhas ânsias.  Adormecer minha voz no teu ouvido.  Perscrutar o som do silêncio. Dizer-te  com urgência inadiável que te amo.   Preciso amar-te ó meu amor amado.  Preciso amar-te como quem ama    33 pela última vez. Amar-te como se fosse  um vôo agônico. Amar-te na margem  da ausência tua. Amar-te nas canções  que oiço pela manhã. Nas vozes espantadas  das mulheres no Xipamanine. Preciso  de te amar neste trajecto dorido por Maputo  com estas vozes que atravessam a noite.  Preciso amar-te com urgência. Amar-te agora e sempre.  Preciso de te amar somente.  Dizer-te: amo-te, minha musa, meu amor amado.  Preciso de te amar. Amar. Amar-te simplesmente      •  Sugestões de leituras:    1. A ilha de Moçambique: entre as palvras e o silêncio, Rita Chaves.  Disponível em: http://www.macua.org/coloquio/A_ILHA_DE_MOCAMBIQUE.htm    2. José Craveirinha: antiquíssimos astros da África, Fabrício Carpinejar  Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag34craveirinha.htm  3. O lugar da cultura acústica moçambicana numa antropologia dos sentidos, José de Sousa Miguel Lopes  Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7102.pdf    4. Ficção angolana: http://literaturaslinguaportuguesa.blogspot.com/2009/11/alda-lara.html    5. Tradição oral africana e literatura no contexto escolar.  Disponível em: http://www.simonecaputogomes.com/ppt/Tradicao%20oral%20africana.pdf    6. José Craveirinaha: poesia com sons e gestos da oralidade.  Disponível em: http://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta12/Conteudo/N12_Parte03_art07.pdf