APOSTILA DE HOMEM E SOCIEDADE2009 – PRIMEIRO SEMESTRE 1 ÍNDICE A teoria evolucionista..........................................03 Cultura: um conceito antropológico...................08 Etnocentrismos.....................................................24 O que é cultura......................................................28 Trabalho de Campo...............................................59 Uma ruptura metodológica...................................64 Preto e Branco.......................................................67 Sampa.....................................................................68 O que é etnocentrismo..........................................72 2 A TEORIA EVOLUCIONISTA Porque existe um número tão grande de espécies, freqüentemente tão semelhantes entre si que só podem se distinguir aos olhos de um especialista? As espécies se modificaram, ao longo de sua história, por meio de transformações lentas e progressivas, num processo de permanente adaptação às circunstâncias do meio externo. As formas dos vegetais e animais de hoje são originadas de formas anteriores, muitas delas já extintas. EVOLUÇÃO A palavra evoluir tem origem latina, significando literalmente desenrolar, isto é, passar progressivamente de um a outro estado. Aplica-se a inúmeras circunstâncias, como quando dizemos: “a evolução das idéias”, ou “evolução de duma doença”. Aplicada ao estudo dos seres vivos, porém, a palavra evolução tem o significado bem preciso de transformação de espécies vegetais ou animais em novas espécies. Foi o francês Georges-Louis-Marie Le Clerc de Buffon (1707-1788), um grande naturalista, quem primeiro demonstrou a existência de uma série de substituições de espécies ao longo dos tempos. Ele chegou à conclusão de que “a forma da espécie animal não é inalterável. Ela pode mudar e até mesmo transformar-se completamente, acompanhando a mudança do meio onde vive”. Um aspecto muito importante da concepção de Buffon é que ele relacionou essas mudanças a alterações ocorridas na conformação geológica dos continentes, tendo sido, pois, o primeiro cientista a contestar a idade atribuída à terra pela Bíblia, admitindo que ela é, na verdade, muito mais antiga. Buffon chegou a comparar a fauna de diversas regiões do planeta, concluindo que a história da Terra compreende diversas etapas geológicas e que o Novo Mundo já esteve ligado ao Antigo. A observação dos fósseis, encontrados em diversos lugares em todo o mundo, constituía, já havia muito tempo, uma fonte de enigmas indecifráveis. Foi Buffon quem apresentou, pela primeira vez, uma teoria transformista unificada da natureza. Seu importante trabalho Épocas da natureza mostra, apoiado na observação dos fósseis e na comparação de animais de diferentes regiões do planeta, que o universo inteiro nasceu de um lento processo de transformação. Foi ele quem, finalmente, abriu para os naturalistas o caminho para a compreensão evolucionista do mundo vivo. O QUE É UMA TEORIA CIENTÍFICA A ciência, aos reunir uma grande quantidade de informações a respeito do objeto de sua pesquisa, ordena-as segundo uma seqüência lógica ou histórica e 3 Para que essa teoria seja válida e aceita pela exigente comunidade científica. DARWIN E A TEORIA DA SELEÇÃO NATURAL Em 1859. era devido à existência de limitações naturais (ou sociais. Por conseguinte.cria uma teoria explicativa do fenômeno em questão. aquilo que se conhece. as causas da destruição das formas de vida menos adaptadas. a descoberta de um grande número de antropóides fósseis no leste da África. A teoria científica representa. pois. no caso humano) restringindo a natalidade ou a proporção de nascidos que chegam à idade adulta. fossem mais capazes de se ajustar às peculiaridades ambientais. que produzem várias gerações por ano. Em 1838. ou menos “aptas”. em dado momento. Nessa obra era demonstrado que os meios de subsistência na natureza e na sociedade não conseguem crescer na mesma proporção em que se multiplicam as populações. veio 4 . As únicas alterações de caráter evolutivo que podem ser presenciadas ou experimentadas pelos cientistas são as que ocorrem em pequenos animais invertebrados. a escassez de alimentos e outras formas de restrições impostas ao ambiente. sobreviveriam sempre – e apenas – as espécies mais capazes de aproveitá-las. a teoria anterior tem que ser abandonada. principalmente o recolhimento pelos cientistas de evidências materiais na forma ossos e objetos fossilizados. Darwin teve a oportunidade de ler o livro de um sociólogo – o reverendo Malthus. a fome generalizada. Se essas características mudarem. isto é. em que seria viável apenas a forma que melhores condições apresentasse em função das características do meio ambiente. Dizia Malthus. essa mesma questão. Mas. Seriam. não podem ser submetidos à experimentação de laboratório nem repetidos para verificação – o que também acontece com os fatos astronômicos e históricos. em microorganismos. de disponibilidade de alimentos ou outras quaisquer. se surgir outra teoria que explique melhor. muitos deles com características “humanóides”. segundo acrescentaria Darwin. se os povos de todo o mundo continuassem a crescer continuamente. intitulado abreviadamente Teoria das populações. mas sim de um processo de seleção passiva. no entanto. A teoria científica origina-se da observação e experimentação dos fatos e fenômenos da natureza. pois. em favor da segunda. UMA VISÃO PANORÂMICA SOBRE O SURGIMENTO DO HOMEM NA TERRA Nas últimas décadas. que a transformação das espécies não seria resultado de um “esforço ativo” da própria espécie no sentido de adaptar-se – como afirmava nessa época Lamarck -. com várias gerações por dia. Ela usa outras maneiras para comprovação de suas afirmações. é necessário que ela explique o maior número possível de fatos e que não apresente incoerências internas e nem contradições em relação aos fatos. ou com maior abrangência. Darwin imaginou. em favor das que. pois. sobre um assunto determinado. o naturalista inglês Charles DARWIN publicou um livro de impacto imediato e gigantesco: Origens das espécies através da seleção natural. Se isto não ocorria. por alguma singularidade constitucional. deveria ocorrer um colapso. por força de alterações de clima. Os fatos da teoria evolucionista. ou melhor ainda. há várias espécies que apresentam postura ereta permanente. seriam totalmente incompatíveis com as formas de vida hoje existentes. constituíram as causas principais de severas modificações climáticas em toda aquela vasta região. possui. vivendo sob as árvores”. Na verdade. mas também da superfície do cérebro. embora o nível de inteligência. da Arábia e do oriente africano era coberta por espessas florestas onde viviam. Em conseqüência das transformações climáticas. em média. não possa ser deduzido a partir desse parâmetro. As condições vigentes. ainda. unto à costa oriental africana. como existiam no Mioceno. levando à formação do homem. espécie à qual pertencemos e que representa a única sobrevivente do gênero. Estes são considerados hominídeos. Brain: “Parece razoável admitir-se que. iniciado há 200 milhões de anos. desde os últimos 50 milhões de anos. O Homo sapiens sapiens. a modificação adaptativa das espécies vegetais e animais. inúmeras espécies de símios arborícolas. como. por exemplo. grandes deformações de relevo ocorreram na África e na Ásia. Há cerca de 12 milhões de anos ocorreu na África uma série de importantes modificações na superfície terrestre. entre outros fatores. essas florestas foram se tornando mais rarefeitas. disse o antropólogo sul-africano C. por exemplo. no sentido norte-sul. Tais mudanças climáticas progressivas constituíram. sabemos que a Terra. segundo alguns. Por outro lado. Já vimos que as características ambientais – em particular o clima – constituem o principal fator que irá determinar. dentro de uma mesma espécie. há cerca de 300 milhões de anos. substituídas na maior parte por vegetação mais rala e rasteira. K. parece que episódios de grande resfriamento do planeta foram acompanhados. como se tratasse de “experiências novas” realizadas pela natureza. Essas significativas alterações de relevo. se não tivessem ocorrido grandes mudanças ligadas à temperatura do ambiente em que viviam os primeiros hominídeos. porém um volume cerebral não superior a 500 centímetros cúbicos. há 12 milhões de anos. ao longo da série dos vertebrados. De fato. devido à sua alta temperatura e às elevadas concentrações de gás carbônico. porém não pertencentes ainda ao gênero Homo. Nesse gênero são incluídos apenas os hominídeos de maior capacidade cerebral. no Período Carbonífero. pois. ou seja. da Índia. sendo que os especialistas divergem quanto a um valor mínimo: 750 centímetros cúbicos. nós ainda estaríamos ao abrigo de algumas floresta quente hospitaleira. e 650. constituindo o Vale do Grande Rift. vem sofrendo várias modificações climáticas que fatalmente teriam causado a extinção da vida terrestre se esta não fosse dotada de uma grande plasticidade.trazer novas luzes para a questão da origem do homem. por meio da seleção natural. segundo outros. 1350 centímetros cúbicos. Nessa época. desde a sua formação. mas esse valor pode variar muito. no sentido de transformar-se adaptativamente de maneira contínua. ao longo do tempo. de extinções em massa de espécies e significativas modificações adaptativas. do processo de separação dos continentes. o principal fator selecionador das novas formas que “espontaneamente” foram surgindo. a maior parte de Europa. as quais teriam desempenhado um papel decisivo no processo de transformações adaptativas de antropóides. Passaram a predominar as espécies herbáceas e arbustos de 5 . observa-se um aumento gradual não só do volume. Entre esses fósseis. Como conseqüência. acompanhadas de um resfriamento constante da superfície terrestre. Com relação ao ser humano. sempre. o levantamento da cordilheira do Himalaia e a abertura de uma enorme brecha. descoberto há poucos anos na Etiópia. não oferecem as mesmas condições de proteção a um animal arborícola. dos quais o mais antigo que se conhece foi denominado Homo habilis. começaram a aparecer. da qual são conhecidos. proporcionava-lhe a liberação das mãos. em média. mais que de frutos carnosos. vários representantes fósseis (nenhum sobrevivente). como os leões e outros felinos. um grande número de esqueletos fósseis dessa espécie tem sido desenterrado na África oriental por Richard Leakey e seus colaboradores. e essa espécie. Particularmente. o contato com o frio. Esses animais teriam vivido na África oriental há cerca de 5 milhões de anos. ao que tudo indica. originaram-se várias outras espécies de Australopithecus. Trata-se do Homo erectus. que atualmente se estendem por grande parte do território africano. Essas migrações parecem ter tido uma grande influência na evolução do homem. 30% maiores e 45% mais pesados. Há cerca de 2 milhões de anos. com grande capacidade para trituração. A capacidade craniana do Homo erectus é de 900 centímetros cúbicos. A partir de Lucy. hoje.menor porte. Estas. outros tipos de hominídeos. o que. Eram animais com uma estrutura social semelhante à dos chimpanzés atuais e sua dentição indica uma alimentação vegetariana.6 milhões de anos. UMA NOVA “OPÇÃO” ADAPTATIVA O novo ambiente favorecia particularmente outro tipo de adaptação. ans mesmas regiões. foi batizado com o cognome afetivo de “Lucy”. Sua estatura era um pouco mais de 1 metro e seu cérebro tinha cerca de 500 centímetros cúbicos. primeiramente descoberto na Ilha de Java. nas grandes glaciações que 6 . São os do gênero Homo. Não há muitos frutos nem grandes árvores onde se esconder e. por terem colocado essa espécie primitiva em confronto com diferentes situações ambientais. Também nessa época. Nos últimos anos. descoberto. antigamente conhecido como Pithecantropus erectus. que vieram a constituir as savanas de hoje. A capacidade craniana do Homo habilis era de apenas 680 centímetros cúbicos. constituem um ambiente muito favorável aos grandes predadores. além de lhe permitir realizar longas caminhadas à procura de alimentos. O primeiro espécime encontrado. típica de animais que se alimentam de sementes e outras partes fibrosas. em 1960. sendo os primeiros. além disso. como os símios arborícolas. O mais antigo deles parece ter sido o Australopithecus afarensis. uma fêmea. entretanto. que passaram a ser utilizadas em sua defesa. sobretudo com o uso de artefatos que ele começou a elaborar e a empregar com habilidade crescente. pois. que tinham em comum a bipedia e uma notável diferença de talhe entre machos e fêmeas. surge um novo personagem nesse cenário. há cerca de 1 milhão de anos começou a espalhar-se pelo mundo. Animais com essas características constituíram a família dos hominídeos primitivos. condicionou várias modificações importantes na morfologia e hábitos desses animais. porém dotados de capacidade cerebral bem maior. principalmente pertencentes ao gênero Australopithecus. 2 milhões de anos. Era a situação ideal para um símio capaz de caminhar em pé. pelo antropólogo africano Louis Leakey. Há cerca de 1. aquela região da África era habitada por inúmeros hominídeos. há cerca de 220 mil anos. deve ter exercido forte pressão no sentido de uma hominização mais rápida. O Homo erectus parece ter sido o primeiro hominídeo a utilizar o fogo. estão longe de ser bem conhecidas. porém mais robusto e que não deixou descendentes. deixou seus primeiros traços nas cavernas dos Pirineus e outras regiões da Europa e da Ásia.ocorreram durante o último milhão de anos. porém. muito semelhante ao atual. o Homo sapiens sapiens. 7 . como o neandertalense (antigamente considerado uma espécie diferente. tendo como característica singular uma grande habilidade manual e artística. Migrando para regiões frias. Finalmente. As relações entre essas diversas variedades de Homo erectus. aprendeu a viver em cavernas. denominada Homo neandertalensis). Dessa espécie ter-seiam originado diferentes variedades de Homo sapiens. contemporâneo ao anterior e provável causador da sua extinção. que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros. uma criança sueca e a colocarmos sob os cuidados de uma família sertaneja. o mesmo acontecerá: ela terá as mesmas oportunidades de desenvolvimento que os seus novos irmãos. ela crescerá como tal e não se diferenciará mentalmente em nada de seus irmãos de criação. que os portugueses são muito trabalhadores e pouco inteligentes. pela história cultural de cada grupo. uma das características específicas do Homo sapiens. geneticistas. 15. se retirarmos uma criança xinguana de seu meio e a educarmos como filha de uma família de classe média alta de Ipanema. antropólogos físicos e culturais. que os norte-americanos são empreendedores e interesseiros. e. de fato. Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura. Os dados científicos de que dispomos atualmente não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias constituiriam um fator de importância primordial entre as causas das diferenças que se manifestam entre a s culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos étnicos. Esta dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos. Ou ainda. quando o mundo se refazia da catástrofe e do terror do racismo nazista.CULTURA: um conceito antropológico Roque de Barros Laraia O DETERMINISMO BIOLÓGICO São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específicas inatas a “raças” ou a outros grupos humanos. logo após o seu nascimento. reunidos em Paris sob os auspícios da Unesco. pelo contrário. biólogos e outros especialistas. se for colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado”. não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos 8 . Ela constitui. antes de tudo. b) No estado atual de nossos conhecimentos. Em outras palavras. Em 1950. finalmente. Eles nos informam. que os judeus são avarentos e negociantes. que os alemães têm mais habilidade para mecânica. “não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais. se transportarmos para o Brasil. Os fatores que tiveram um papel preponderante na evolução do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais. Segundo Felix Keesing. traiçoeiros e cruéis. redigiram uma declaração da qual extraímos dois parágrafos: 10. que os japoneses são muito trabalhadores. que os ciganos são nômades por instinto. que essas diferenças se explicam. a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses. Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes que os negros. Mesmos as diferenças determinadas pelo aparelho reprodutor humano determinam diferentes manifestações culturais. A partir de 1920. ganharam uma grande popularidade. arma de uso exclusivo dos homens. Resumindo. O transporte de água para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu (como nas favelas cariocas). um esforço físico considerável. o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado. A Antropologia tem demonstrado que muitas atividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídas aos homens em outra. em seu livro Civilization and Climate (1915). Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios. quer se trate de inteligência ou temperamento. Bodin e outros. E mais: que é possível e comum 9 . refutaram este tipo de determinismo e demonstraram que existe uma limitação na influência geográfica sobre os fatores culturais. mesmo depois da maciça admissão de mulheres soldados. Carregar cerca de vinte litros de água sobre a cabeça implica. Wissler. do tipo das formuladas por Pollio. antropólogos como Boas. E os índios Tupis mostram que o marido pode ser o protagonista mais importante do parto. A verificação de qualquer sistema de divisão sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e não em função de uma racionalidade biológica. É ele que se recolhe à rede. O DETERMINISMO GEOGRÁFICO O determinismo geográfico considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural. mas é falso que as diferenças de comportamento existentes entre as pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente. entre outros. e faz o resguardo considerado importante para a sua saúde e à do recém-nascido. eram exclusivamente masculinos. de um processo que chamamos de endoculturação. São explicações existentes desde a Antiguidade. considerando o clima como um fator importante na dinâmica do progresso. e não a mulher.traços psicologicamente inatos. Exemplo significativo desse tipo de pensamento pode ser encontrado em Huntington. A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologicamente através do dimorfismo sexual. Até muito pouco tempo. mas em decorrência de uma educação diferenciada. como vimos anteriormente. O exército de Israel demonstrou que a sua eficiência bélica continua intacta. Estas teorias. muito maior do que o necessário para o manejo de um arco. entre outros exemplos. na verdade. a carreira diplomática e o quadro de funcionários do Banco do Brasil. Kroeber. Margareth Mead (1971) mostra que até a amamentação pode ser transferida a um marido moderno por meio da mamadeira. no qual formula uma relação entre a latitude e os centros de civilização. que foram desenvolvidas principalmente por geógrafos no século XIX e no início do século XX. Ibn Khaldun. As pesquisas científicas revelam que o nível das aptidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos. do sudoeste americano. 33). obtendo ovinos dos europeus. dentro dos limites do Parque Nacional Xingu. Mas. vivendo espalhados com seus rebanhos em grupos de famílias. Os lapões. como primeiro exemplo. que se alimentavam de castanhas selvagens. ocupam essencialmente o mesmo habitat. Ambos habitam a calota polar norte. Quando desejam mudar os seus acampamentos. os lapões e os esquimós. Os Navajo são descendentes de apanhadores de víveres. Os grupos Pueblo são aldeões. Kalapalo. sementes de capins e de caça. etc) desprezam toda a reserva de proteínas 10 . em ambientes geográficos muito semelhantes. que encontrassem as mesmas respostas culturais para a sobrevivência em um ambiente hostil. O terceiro exemplo pode ser encontrado no interior de nosso país. então. enquanto tradicionalmente os esquimós limitam-se à caça desses mamíferos. Vivem. p. Por dentro a cãs é forrada com peles de animais e com o auxílio do fogo conseguem manter o seu interior suficientemente quente. sendo que alguns índios Pueblo até vivem hoje em “bolsões” dentro da reserva Navajo. (Cliford Geertz. no mesmo habitat. por sua vez. transcrito de Felix Keesing. colonizadores americanos tiveram que criar outros sistemas de vida baseados na pecuária. de sorte que não foram fatores de habitat que proporcionaram a determinante principal. Waurá. é a variação cultural observada entre os índios do sudoeste norte-americano: Os índios Pueblo e Navajo. Posteriormente. 22). 1978. com uma economia agrícola baseada principalmente no milho.existir uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico. cultivo. Os xinguanos propriamente ditos (Kamayurá. necessitam realizar um árduo trabalho que se inicia pelo desmonte. Quando deseja. pela secagem das mesmas e o seu transporte para o novo sítio. caracterizados por um longo e rigoroso inverno. pastoreio – no mesmo ambiente natural. enquanto no exterior da casa a temperatura situa-se a muitos graus abaixo de zero grau centígrado. o esquimó abandona a casa tendo que carregar apenas os seus pertences e vai construir um novo retiro. vivem em tendas de peles de rena. Trumai. Ambos têm ao seu dispor flora e fauna semelhantes. os primeiros no norte da Europa e os segundos no norte da América. pois. na agricultura irrigada e na urbanização (Pertti Pelto. mais ou menos como os Apache e outros grupos vizinhos têm feito até os tempos modernos. Mas isto não ocorre: Os esquimós constroem suas casas (iglus) cortando blocos de neve e amontoando-os num formato de colméia. p. Em compensação. os Navajo são hoje mais pastoreadores. os lapões são excelentes criadores de renas. desvencilhar-se das pesadas roupas. pela retirada de gelo que se acumulou sobre as peles. portanto. Era de se esperar. Um segundo exemplo. A aparente pobreza glacial não impede que os esquimós tenham uma desenvolvida arte de esculturas em pedra-sabão e nem que resolvam os seus conflitos com uma sofisticada competição de canções entre os competidores. É possível. Tomemos. 1967. O espírito criador do homem pode assim envolver três alternativas culturais bem diferentes – apanha víveres. dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento. Mas. provido de insignificante força física. cuja caça lhe é interditada por motivos culturais. Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana. moral. e se dedicam mais intensamente à pesca e caça de aves. a caititu. definido pela primeira vez por Tylor. dominou os ares. sem guelras ou membranas próprias. e não casualmente. são excelentes caçadores e pretendem justamente os mamíferos de grande porte. com efeito. pelo menos como utilizado atualmente. Mas o que ele fez foi formalizar uma idéia que vinha crescendo na mente humana. ou seja. através de um processo que hoje chamamos de endoculturação. crenças. portanto. etc. estava ganhando consistência talvez mesmo antes de John Locke (1632-1704) que. Sem asas. além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata. em 1690. Os Kayabi. foi. Locke refutou fortemente as idéias correntes da época (e que ainda se manifestam até hoje) de princípios ou verdades inatas impressos hereditariamente na mente humana. As diferenças existentes entre os homens. dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. o veado. ao mesmo tempo em que ensaiou os primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar que os homens têm princípios práticos opostos: “Quem investigar cuidadosamente a história da humanidade. examinar por toda parte as várias 11 . Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture. leis. transmitida por mecanismos biológicos. a admissão da “ação mecânica das forças naturais sobre uma humanidade puramente receptiva”. A posição da moderna Antropologia é que a “cultura age seletivamente”. não podem ser explicadas em termos de limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. procurou demonstrar que a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento. A idéia de cultura. enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura. que habitam o Norte do Parque. O conceito de Cultura. portanto. o que é cultura? ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO CONCEITO DE CULTURA No final do século XVII e no princípio do seguinte. “explorando determinadas possibilidades e limites de desenvolvimento. ao escrever o Ensaio acerca do entendimento humano. Estes três exemplos mostram que não é possível admitir a idéia do determinismo geográfico. sobre o meio ambiente. arte. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil. como a anta.existentes nos grandes mamíferos. costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade. conquistou os mares. par o qual as forças decisivas estão na própria cultura e na história da cultura”. que “tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos. Com esta definição. o universo conceitual tinha atingido tal dimensão que somente com uma contração poderia ser novamente colocado dentro de uma perspectiva antropológica. Jacques Turgot (1727-1781). chegando mesmo ao exagero de acreditar que este processo teria a possibilidade de completar a transição entre os grandes macacos (chimpanzé. as centenas de definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites do conceito. Esta definição é equivalente às que foram formuladas. Mas. Em outras palavras. Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o biológico. Em 1917. cap. Meio século depois. (O grifo é nosso). Tal expectativa seria coerente com o otimismo de Kroeber que. governadas por opiniões práticas e regras de conduta bem contrárias umas às outras” (Livro I. Geertz escreveu que o tema mais importante da moderna teoria antropológica era o de “diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente”. parágrafo 10). postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu artigo.. II. Tylor definiu cultura como sendo todo comportamento aprendido. comunicá-las para outros homens e transmiti-las para os seus descendentes como uma herança sempre crescente. Completava-se. gorila e orangotango) e os homens. como diríamos hoje. gostaríamos de citar o antropólogo americano Marvin Harris (1969) que expressa bem as implicações da obra de Locke para a época: “Nenhuma ordem social é baseada em verdades inatas. ao escrever o seu Plano para dois discursos sobre a história universal. com referência a John Locke. afirmou: Possuidor de um tesouro de signos que tem a faculdade de multiplicar infinitamente. mais de um século depois. Basta apenas a retirada da palavra erudita para que esta afirmação de Turgot possa ser considerada uma definição aceitável do conceito de cultura (embora em nenhum momento faça menção a este vocábulo).. então. como o leitor constatará no decorrer deste trabalho. hoje clássico. o homem é capaz de assegurar a retenção de suas idéias eruditas. que não seja em alguma parte ou outra. Em 1871. em 1950. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). na verdade. uma mudança no ambiente resulta numa mudança no comportamento”. será capaz de convencer-se de que raramente há princípios de moralidade para serem designados. era de se esperar que existisse hoje um razoável acordo entre os antropólogos a respeito do conceito. seguiu os passos de Locke e de Turgot ao atribuir um grande papel à educação. em 1775. Mais de um século transcorrido desde a definição de Tylor. em1973. Finalmente. tudo aquilo que independe de uma transmissão genética. menosprezado e condenado pela moda geral de todas as sociedades de homens. que consistiu inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal 12 . um processo iniciado por Lineu. em seu Discurso sobre a origem e o estabelecimento da desigualdade entre os homens. Tanto é que. por Bronislaw Malinowski e Leslie White. ou regra de virtude para ser considerada.tribos de homens e com indiferença observar as suas ações. escreveu que “a maior realização da Antropologia na primeira metade do século XX foi a ampliação e a clarificação do conceito de cultura”. “O Superorgânico”. Neste trabalho. A reconstrução deste momento conceitual.sobrenatural e colocá-lo dentro da ordem da natureza. o início do desenvolvimento do cérebro humano é uma conseqüência da vida arborícola de seus remotos antepassados. onde o faro perdeu muito de sua importância. capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico. o monumento teórico que se destacava pela sua excessiva simplicidade. através dessa explicação. no decorrer de sua evolução. foi responsável pela eclosão de uma visão estereoscópica. como o homem adquiriu este processo extra-somático que o diferenciou de todos os animais e lhe deu um lugar privilegiado na vida terrestre? Uma resposta simplificada da questão seria a de que o homem adquiriu. iniciado por Tylor e completado por Kroeber. e que não deixa de nos conduzir a uma outra pergunta: mas como e por que o cérebro do primata foi modificado. Em outras palavras. abriu para os primatas. O fato de poder pegar e examinar um objeto atribui a este significado próprio. um mundo tridimensional. Esta. modificado pelo processo evolutivo dos primatas. IDÉIA SOBRE A ORIGEM DA CULTURA Uma das primeiras preocupações dos estudiosos com relação à cultura refere-se a sua origem. inexistente para qualquer outro mamífero. combinada com a capacidade de utilização das mãos. foi capaz de assim proceder. seguiremos apenas os procedimentos básicos desta elaboração. representou o afastamento crescente dos dois domínios. estabelecer uma distinção de gênero e não apenas de grau em relação aos demais seres vivos. foi destruído pelas tentativas posteriores de clarificação do conceito. Os fundadores de nossa ciência. Esta vida arborícola. a partir de uma diversidade de fragmentos teóricos. No período que decorreu entre Tylor e a afirmação de Kroeber. principalmente os superiores. entre eles Richard Leackey e Roger Lewin. elaborada no período iluminista. Mas. A forma e a cor podem ser correlacionadas com a resistência e o peso (não deixando ainda de lado a 13 . produziu cultura a partir do momento em que seu cérebro. construído a partir de uma visão da natureza humana. ou melhor. pois a maioria destes preocupa-se muito mais em explicar a separação da cultura em relação à natureza do que com as especulações de ordem cosmogônica. Em suma. é uma das tarefas primordiais da Antropologia moderna. a nossa espécie tinha conseguido. com um odor tautológico. Não resta dúvida de que se trata de uma resposta insatisfatória. entretanto. o cultural e o natural. em 1950. O “anjo caído” foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor dias notáveis propriedades: a possibilidade da comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos. estas duas propriedades permitem uma afirmação mais ampla: o homem é o único ser possuidor de cultura. a ponto de atingir a dimensão e a complexidade que permitiriam o aparecimento do homem? Segundo diversos autores. tinham repetido a temática quase universal dos mitos de origem. O segundo passo deste processo. considera que a cultura surgiu no momento em que o homem convencionou a primeira regra. para transportar objetos (alimentos ou filhotes). Vimos algumas explicações sobre o aparecimento da cultura. Uma criança do gênero Homo torna-se humana somente é introduzida e participa da ordem de fenômenos superorgânico que é a cultura. temos de concordar que é impossível para um animal compreender os significados que os objetos recebem de uma cultura. possibilitada pela posição erecta. o mais destacado antropólogo francês. esta seria a proibição do incesto. não um ser humano. David Pilbeam refere-se ao bipedismo como uma característica exclusiva dos primatas entre todos os mamíferos. Toda cultura depende de símbolos. é oportuno tomar conhecimento do pensamento de dois importantes antropólogos sociais contemporâneos a respeito do momento em que o primata transforma-se em homem. mas seu significado não pode ser percebido pelos sentidos”. O comportamento humano é o comportamento simbólico. a mãe. Kenneth P. afirma ele. Todas as civilizações se espalharam e perpetuaram somente pelo uso de símbolos. sacudido ao vento. provavelmente.. Oakley destaca a importância da habilidade manual. Leslie White. Com efeito. o resultado de um cérebro mais volumoso e complexo. para perceber o significado de um símbolo é necessário conhecer a cultura que o criou. antropólogo norte-americano contemporâneo. para utilizar armas (cacete ou lança) e para aumentar a visibilidade”. e o meio de participação nele. Para Lévi-Strauss. então.. Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais antropóides em homens e fê-los humanos. é o símbolo. com o conseqüente desenvolvimento da inteligência humana. Isto porque. a primeira norma. e uma bandeira desfraldada. por exemplo.. Sem o símbolo não haveria cultura. Todas elas proíbem a relação sexual de um homem com certas categorias de mulheres (entre nós. a filha e a irmã). A cultura seria. É o exercício da capacidade de simbolização que cria a cultua e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação. pois do contrário não podem penetrar em nossa experiência. Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos.. padrão de comportamento comum a toas as sociedades humanas. considera que a passagem do estado animal para o humano ocorreu quando o cérebro do homem foi capaz de gerar símbolos. A seguir considera que o bipedismo foi. e o homem seria apenas animal. Ou seja. fornecendo uma nova percepção. como afirmou o próprio White. o resultado de todo um conjunto de pressões seletivas: “para o animal parecer maior e mais intimidante.tradicional forma de investigação dos mamíferos: o olfato). “Quase todos os primatas vivos se comportam como bípedes de vez em quando”. Como. Explicações de natureza física e social. Claude Lévi-Strauss. E a chave deste mundo. ao proporcionar maiores estímulos ao cérebro. “todos os símbolos devem ter uma forma física. a cor preta significa luto entre nós e entre os chineses é o branco que exprime esse sentimento. Deixando de lado as explicações da paleontologia humana. Mesmo um símio não saberia fazer a distinção entre um pedaço de pano. Algumas delas tendem implícita ou explicitamente a 14 . Um verdadeiro salto da natureza para a humanidade. continua: “O fato de ser errônea a teoria do ponto crítico (pois o desenvolvimento cultural já vinha se processando bem antes de cessar o desenvolvimento orgânico) é de importância fundamental para o nosso ponto de vista sobre a natureza do homem que se torna. O Australopiteco parece ser. improvável que possuísse uma linguagem. aprender. caça esporádica. uma espécie de homem que evidentemente era capaz de adquirir alguns elementos da cultura – fabricação de instrumentos simples. embora mais atrasado do que a fala humana -. de cultura. O conhecimento científico atual está convencido de que o salto da natureza para a cultura foi contínuo e incrivelmente lento. por isso mesmo. não foi promovido da noite para o dia ao posto de homem. simultaneamente com o próprio equipamento biológico e é. pois. um ramo dessa família sofreu uma alteração orgânica e tornou-se capaz de “exprimir-se. a explanação acima não é muito diferente da formulada por alguns pensadores católicos. Em essência. mais do que um evento maravilhoso. O Australopiteco Africano (cujas datações recentes realizadas na Tanzânia atribuem-lhe uma antiguidade muito maior que 2 milhões de anos). embora dotado de um cérebro 1/3 menor que o nosso e uma estatura não superior a 1. entretanto. como ironizou um antropólogo físico. antropólogo norte-americano. mas também. é hoje considerado uma impossibilidade científica: a natureza não age por saltos. ensinar e de fazer generalizações a partir da infinita cadeia de sensações e objetivos isolados”. porém incapaz de adquirir outros.20m. Clifford Geertz. Assim. compreendida como uma das características da espécie.admitir que a cultura apareceu de repente. assim. ao lado do bipedismo e de um adequado volume cerebral. num sentido especificamente biológico. Devido à dimensão do seu cérebro parece. Tal postura implica a aceitação de um ponto crítico. mostra em seu artigo “A transição para a humanidade” como a paleontologia humana demonstrou que o corpo humano formou-se aos poucos. O primata. um salto quantitativo na filogenia dos primatas: em um dado momento. O fato de que o cérebro do Australopiteco media 1/3 do nosso leva Geertz a concluir que “logicamente a maior parte do crescimento cortical humano foi posterior e não anterior ao início da cultura”. num dado momento. 15 . O ponto crítico. portanto. E esta somente foi atribuída ao primata no momento em que a Divindade considerou que o corpo do mesmo tinha evoluído organicamente o suficiente para tornar-se digno de uma alma e. na moderna acepção da palavra. A cultura desenvolveu-se. expressão esta utilizada por Alfred Kroeber ao conceber a eclosão da cultura como um acontecimento súbito. consequentemente. e talvez um sistema de comunicação mais avançado do que o dos macacos contemporâneos. o que lança certa dúvida sobre a teoria do ponto crítico. o produto da cultura”. segundo a qual o homem adquiriu cultura no momento em que recebeu do Criador uma alma imortal. não apenas o produtor da cultura. já manufaturava objetos e caçava pequenos animais. preocupados com a conciliação entre a doutrina e a ciência. ” Em segundo lugar. que subdivide em três diferentes abordagens. refere-se às teorias idealistas de cultura. esta posição foi reformulada criativamente por Sahlins. deve manter uma relação adaptativa com o meio circundante para sobreviver. A nossa missão será facilitada com a utilização do esquema elaborado pelo antropólogo Roger Keesing em seu artigo “Theories of Culture”.” 2 “Mudança cultural é primariamente um processo de adaptação equivalente à seleção natural” (“O homem é um animal e. às teorias que consideram a cultura como um sistema adaptativo. Vayda e outros que. a economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura. Keesing refere-se. no início deste trabalho. Neste capítulo. a análise dos modelos construídos pelos membros da comunidade a respeito de seu próprio universo. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica. Roger Keesing. Rappaport. e assim por diante. É neste domínio que usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se ramificam. crenças e práticas religiosas. etc. no qual classifica as tentativas modernas de obter uma precisão conceitual. da manutenção do ecossistema. desenvolvido por Marvin Harris. Carneiro.TEORIAS MODERNAS SOBRE A CULTURA Vimos. 4 “Os componentes ideológicos dos sistemas culturais podem ter conseqüências adaptativas no controle da população. Embora ele consiga esta adaptação através da cultura. apesar das fortes divergências que apresentam entre si. que uma das tarefas da antropologia moderna tem sido a reconstrução do conceito de cultura. fragmentado por numerosas reformulações. Esta abordagem antropológica tem se distinguido pelo estudo dos sistemas de classificação folk. procuraremos sintetizar os principais esforços para a obtenção deste objetivo. o processo é dirigido pelas mesmas regras de seleção natural que governam a adaptação biológica. A primeira delas é a dos que consideram cultura como sistema cognitivo. Difundida por neo-evolucionistas como Leslie White. Keesing comenta que se a cultura for assim concebida ela fica 16 . Existem. no evolucionismo cultural de Elman Service e entre os ecologistas culturais. produto dos chamados “novos etnógrafos”. cultura é um sistema de conhecimento: “consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade”. inicialmente. 3 “A tecnologia. Harris. da subsistência. concordam que: 1 “Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. divergências sobre como opera este processo. como Steward. Goodenough. Meggers. isto é. entretanto. padrões de estabelecimento. na dialética social dos marxistas. Assim. para W. Estas divergências podem ser notadas nas posições do materialismo cultural. 1977). como todos os animais. B. de agrupamento social e organização política. perto da qual as demais eram distorções ou aproximações. Esta amplitude de possibilidades.tais como a lógica de contrastes binários. Daí o fato de que a Antropologia cognitiva (a praticada pelos “novos etnógrafos”) Tem se apropriado dos métodos lingüísticos. mas nem todos sabem prever o que fariam nessas situações. de relações e transformações – que controlam as manifestações empíricas de um dado grupo. portanto. decorrente do iluminismo e da Antropologia clássica. Lévi-Strauss. a criança está apta ao nascer a ser socializada em qualquer cultura existente. como um evento observável. O seu trabalho tem sido o de descobrir na estruturação dos domínios culturais – mito. instruções (que os técnicos de computadores chamam programa) para governar o comportamento”. como. Geertz considera que a Antropologia busca interpretações. Cada um de nós sabe o que fazer em determinadas situações. arte. E esta formulação – que consideramos uma nova maneira de encarar a unidade da espécie – permitiu a Geertz afirmar que “um dos mais significativos fatos sobre nós pode ser finalmente a constatação de que todos nascemos com um equipamento para viver mil vidas. A última das três abordagens. os símbolos e significados são partilhados pelos atores (os membros do sistema cultural) entre eles. mas terminamos no fim tendo vivido uma só!” Em outras palavras. ou seja. a cultura deve ser considerada “não um complexo de comportamentos concretos mas um conjunto de mecanismos de controle. será limitada pelo contexto real e específico onde de fato ela crescer. Com isto. planos. a análise componencial. regras. Assim. receitas. O primeiro deles busca uma definição de homem baseada na definição de cultura. Assim procedendo. Para isto. Assim.situada epistemologicamente no mesmo domínio da linguagem. Estudar a cultura é. que em um dado momento teve uma grande aceitação no meio acadêmico brasileiro. Esta posição foi desenvolvida nos Estados Unidos principalmente por dois antropólogos: o já conhecido Clifford Geertz e David Schneider. E. a perspectiva desenvolvida por Lévi-Strauss. Keesing é muito sucinto na análise dessa abordagem. mas não dentro deles. Voltando a Keesing. A segunda abordagem é aquela que considera cultura como sistemas estruturais. é a que considera cultura como sistemas simbólicos. São públicos e não privados. parentesco e linguagem – os princípios da mente que geram essas elaborações culturais”. e tente resolver o paradoxo (citado no início deste livro) de uma imensa variedade cultural que contrasta com a unidade da espécie humana. porque aceitar simplesmente os modelos conscientes de uma comunidade é admitir que os significados estão na cabeça das pessoas. a seu modo. estudar um código de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura. por exemplo. formula uma nova teoria da unidade psíquica da humanidade. “que define cultura como um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana. todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa. ou seja. este nos mostra que Geertz considera a abordagem dos novos etnógrafos como um formalismo reducionista e espúrio. e este programa é o que chamamos cultura. Para isto. ele abandona o otimismo de Goodenough que pretende 17 . entretanto. para Geertz. para Geertz. entre as teorias idealistas. um conjunto de princípios . os paralelismos culturais são por ele explicados pelo fato de que o pensamento humano está submetido a regras inconscientes. refuta a idéia de uma forma ideal de homem. e provavelmente nunca terminará. o homossexual era visto como um ser dotado de propriedades mágicas. Neste ponto. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e. pois uma compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana. desenvolvida através de inúmeras gerações. dos mais diversos tamanhos e com uma imensa variedade de tonalidades verdes. tema perene da incansável reflexão humana. mas divergem na maneira de exteriorizar este conhecimento”. no final desta primeira parte. A interpretação de um texto cultural será sempre uma tarefa difícil e vagarosa. eles freqüentemente usam determinadas árvores como ponto de referência. embora em muitos pontos semelhante à de Geertz. Ao invés de dizer como nós: “encontro-lhe na esquina junto ao edifício X”. A nossa herança cultural. Tal fato representa um tipo de comportamento padronizado por um sistema cultural. Esta atitude varia em outras culturas. Entre algumas tribos das planícies norte-americanas. o homossexual corria o risco de agressões físicas quando era identificado numa via pública e ainda hoje é objeto de termos depreciativos. Um outro exemplo de atitude diferente de comportamento desviante encontramos entre alguns povos da Antiguidade. onde a prostituição não constituía um fato anômalo: jovens da Lícia praticavam 18 . capaz de servir de mediador entre o mundo social e o sobrenatural. portanto. Por isso. Assim. por exemplo. ou a pretensão de Lévi-Strauss em decodificá-lo. ao contrário da visão de um mundo vegetal amorfo. a floresta amazônica não passa para o antropólogo – desprovido de um razoável conhecimento de botânica – de um amontoado confuso de árvores e arbustos. sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. O ponto de vista de Schneider sobre a cultura está claramente expresso na introdução do seu livro American Kinship: A Cultural Account: “Cultura é um sistema de símbolos e significados. a floresta é vista como um conjunto ordenado. respeitado. A CULTURA CONDICIONA A VISÃO DE MUNDO DO HOMEM Ruth Benedict escreveu em seu livro O crisântemo e a espada que a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. têm visões desencontradas das coisas. O status epistemológico das unidades ou ‘coisas’ culturais não depende da sua observabilidade: mesmo fantasmas e pessoas mortas podem ser categorias culturais”. Por exemplo. Compreende categorias ou unidades e regras sobre relações de modos de comportamento. Assim. discriminamos o comportamento desviante. só nos resta afirmar mineiramente como Murdock (1932): “Os antropólogos sabem de fato o que é cultura. constituído de formas vegetais bem definidas. Até recentemente. o leitor já deverá ter compreendido que a discussão não terminou – continua ainda -.captar o código cultural em uma gramática. portanto. A visão que um índio Tupi tem deste mesmo cenário é totalmente diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e uma referência espacial. e era. David Schneider tem uma abordagem distinta. Segundo Mauss. Ainda com referência às diferentes maneiras culturais de efetuar ações fisiológicas. comer. Todos os homens riem. podemos admitir com certeza que se “uma criança senta-se à mesa com os cotovelos junto ao corpo e permanece com as mãos nos joelhos. O repetitivo pastelão americano não encontra entre nós a mesma receptividade da comédia erótica italiana. O riso exprime quase sempre um estado de alegria. Pessoas de culturas diferentes riem de coisas diversas. Como exemplos dessas diferenças culturais em atos que podem ser classificados como naturais. Na verdade. pode ser bem diversa. que ela é inglesa. Temos certeza que os japoneses também estão convencidos que o riso varia de indivíduo para indivíduo dentro do Japão e que todos os ocidentais riem de um modo igual. quando não está comendo. mas o fazem de maneira diferente por motivos diversos. Por isso é que acreditamos que todos os japoneses riem de uma mesma maneira. mesmo em momentos evidentemente desagradáveis. caminhar. Rir é uma propriedade do homem e dos primatas superiores. no qual analisa as formas como os homens. primariamente. sem mencionar a evidência das diferenças lingüísticas. e não pelo observador de fora. podemos entender o fato de que indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de características. estão convencidos de que cada um deles tem um modo particular de rir. Mauss cita ainda as técnicas de nascimento e da 19 . apesar de toda a sua fisiologia. através da contração de determinados músculos da face e da emissão de um determinado tipo de som vocal. Tal fato se explica porque cada cultura tem um determinado padrão para este fim. assim. O modo de ver o mundo. ou seja. nessa mesma situação. Voltando aos japoneses: riem muitas vezes por uma questão de etiqueta. as diferenças percebidas pelos estudantes. gostaríamos de citar o clássico artigo de Marcel Mauss (1872-1950) “Noção de técnica corporal”. Não é difícil imaginar que a posição das crianças brasileiras. sabem servir-se de seus corpos. porque em nossa cultura a piada deve ser temperada com uma boa dose de sexo e não melada pelo arremesso de tortas e bolos na face do adversário. Tomemos. por exemplo. a fim de acumular um dote para o casamento. Enfim. Um jovem francês não sabe mais se dominar: ele abre os cotovelos em leque e apóia-os sobre a mesa”. poderíamos continuar indefinidamente mostrando que o riso é totalmente condicionado pelos padrões culturais. tais como o modo de agir. os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são. A partir do que foi dito acima. mas um observador estranho a nossa cultura comentará que todos eles riem da mesma forma. as apreciações de ordem moral e valorativa. por exemplo. o fato de mais imediata observação empírica. produtos de uma herança cultural. Os alunos de nossa sala de aula. O riso se expressa. o resultado da operação de uma determinada cultura. são variações de um mesmo padrão cultural. de sociedades diferentes. A emissão sonora. profundamente alta. Mesmo o exercício de atividades consideradas como parte da fisiologia humana podem refletir diferenças de cultura. assemelhava-se a imaginários gritos de guerra e a expressão facial em nada se assemelhava com aquilo que estávamos acostumados a ver. o riso. vestir. A primeira vez que vimos um índio Kaapor rir foi um motivo de susto.relações sexuais em troca de moedas de ouro. Mãya. mas vamos acrescentar mais um exemplo: o homem recupera a sua energia. a família deve toda se sentar à mesa. Ela deu à luz em pé. Como utilizamos garfos. a utilização do corpo é diferenciada em função do sexo. assim. no início do século. e entre os Tupis e outros índios brasileiros a posição é de cócoras. mas também pela maneira como agem à mesa. Segundo ele. esta é realizada de formas múltiplas e com alimentos diferentes. através da alimentação. Nas várias culturas. Freqüentemente. muitas outras modalidades culturais que estão à espera de um cadastramento etnográfico. e somente iniciar a alimentação. entre os ocidentais. Boa parte das mulheres da Índia ainda dá à luz desse modo”. Alguns rituais de boas maneiras exigem um forte arroto. de maneiras diferentes das dos homens. como indicador de má educação. como sinal de agrado da mesma. após a prece. Dentro de uma mesma cultura. todos os homens são dotados de um mesmo equipamento anatômico. Tal fato. esta diversidade é utilizada para classificações depreciativas. gesticulam. após a refeição. depende de um aprendizado e este consiste na cópia de padrões que fazem parte da herança cultural do grupo. no mínimo. provavelmente. entretanto. o ato de comer é um verdadeiro rito social. entre nós. com o chefe na cabeceira. As pessoas não se chocam apenas porque as outras comem coisas diferentes. etc. seria considerado.obstetrícia. a posição normal é a mãe deitada sobre as costas. a um ramo de árvore. em alguns casos. Não pretendemos nos estender nesse ponto porque os exemplos seriam inumeráveis. As mulheres sentam. 20 . Entre os latinos. “Buda nasceu estando sua mãe. os americanos denominavam os franceses de “comedores de rãs”. Para nós. pelos travestis. agarrada. Os índios Kaapor discriminam os Timbira chamando-os pejorativamente de “comedores de cobra”. surpreendemos-nos com o uso dos palitos pelos japoneses e das mãos por certos segmentos da nossa sociedade: Vida de Pará Vida de descanso Comer de arremesso E dormir de balanço. É evidente e amplamente conhecida a grande diversidade gastronômica da espécie humana. ao invés de ser determinada geneticamente (todas as formigas de uma dada espécie usam os seus membros uniformemente). mas a utilização do mesmo. a sua força de trabalho. segundo o qual. Entre estas técnicas pode-se incluir o chamado parto sem dor e. mas resta uma dúvida lingüística desde que em Tupi ela soa muito próximo da palavra que significa “comedores de fezes”. em outras uma atividade privada. Em algumas sociedades o ato de comer pode ser público. Resumindo. Estas posturas femininas são copiadas. E a palavra potiguara pode significar realmente “comedores de camarão”. reta. em horas determinadas. caminham. Em algumas regiões do meio rural existem cadeiras especiais para o parto sentado. O etnocentrismo. O costume de discriminar os que são diferentes. convencido de que agiu melhor do que insultar a anfitriã pela recusa de comida que lhe era oferecida. reflete a condição humana. Os australianos chamavam as roupas dos ingleses de “peles de fantasmas”. se autodenominavam “os entes humanos”. é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais. As autodenominações de diferentes grupos refletem este ponto de vista. da mesma forma que os Navajo se intitulavam “o povo”. Os primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado. Dentro de uma mesma sociedade. conforme o costume de seu país”. e. colegas de seu marido. O homem tem despendido grande parte da sua história na Terra. ou mesmo sua única expressão. O estudante asiático aceitou um segundo prato.Roger Keesing. a anfitriã perguntou quem gostaria de repetir. Finalmente. A projeção desta dicotomia para o plano extragrupal resulta nas manifestações nacionalistas ou formas extremadas de xenofobia. e um terceiro – enquanto a anfitriã ansiosamente preparava mais comida na cozinha. denominada de etnocentrismo. e os nossos Xavantes acreditam que o seu território tribal está situado bem no centro do mundo. A relação de parentesco consangüíneo afim pode ser tomada como exemplo. pois não acreditavam que estes (os ingleses) fossem parte da humanidade. no meio do seu quarto prato o estudante caiu ao solo. acrescenta Keesing. começa com uma parábola que aconteceu ser verdadeira: “Uma jovem da Bulgária ofereceu um jantar para os estudantes americanos. em seu manual News Perspectives in Cultural Antropology. e entre eles foi convidado um jovem asiático. consideravam-se “os homens”. pois uma anfitriã búlgara que deixasse os seus convidados se retirarem famintos estaria desgraçada. A dicotomia “nós e os outros” expressa em níveis diferentes essa tendência. freqüentemente. a maneira de neutralizar os inconvenientes da afinidade consistia em transformar a noiva em consangüínea. ou pelo menos a estranheza. Daí a reação. são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. separado em pequenos grupos. Tais crenças contêm o germe do racismo e da intolerância. porque pertencem a outro grupo. os esquimós também se denominavam “os homens”. incorporando-a no clã do noivo através do ritual de carrega-la através da soleira da porta (ritual este perpetuado por Hollywood). seus costumes e expectativas. mas o grupo. em relação aos estrangeiros. Após os convidados terem terminado os seus pratos. O fato de que o homem vê o mundo por meio de sua cultura tem como conseqüência a propensão em considerar seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. grupo Tupi do Sul do Pará. sua visão de mundo. pode ser encontrado no interior de uma mesma sociedade. O ponto fundamental de referência não é a humanidade. cada um com sua própria linguagem. Tal tendência. Entre os romanos. a divisão ocorre sob a forma de parentes e não-parentes. de fato. a fim de purifica-los e torna-los inofensivos. é um fenômeno universal. Esta parábola. Os Cheyene. Os Xamã Surui (índios Tupi do Pará) defumam com seus grandes charutos rituais os primeiros visitantes da aldeia. A chegada de um estranho em determinadas comunidades pode ser considerada como a quebra da ordem social ou sobrenatural. índios das planícies norte-americanas. É comum a crença de que a própria sociedade é o centro da humanidade. A noiva japonesa tem a cabeça coberta por um véu alto que esconde os “chifres” que representam a discórdia a ser implantada na família do noivo com 21 . os Akuáwa. ao regressar de uma caçada contou ter visto a alma do seu falecido pai perambulando pela floresta. Os africanos removidos violentamente de seu continente (ou seja. Um outro exemplo são as agressões verbais. conseqüentemente. Em lugar da superestima dos valores da sua própria sociedade. Ao perceberem que os seus recursos tecnológicos. outros simplesmente esperavam pela morte que não tardou. perdem a motivação que os mantém unidos e vivos. Foi. Traduzido como saudade. numa dada situação de crise os membros de uma cultura abandonam a crença na mesma e. Em 1967. perdiam toda a motivação de continuar vivos. a apatia que dizimou parte da população Kaingang de são Paulo. o banzo é de fato uma forma de morte decorrente da apatia. Práticas de outros sistemas culturais são catalogadas como absurdas. A vítima. Confiante nos poderes do branco. acreditando efetivamente no poder do mágico e de sua magia.o início da relação afim. É muito rica a etnografia africana no que se refere às mortes causadas por feitiçaria. praticadas contra os estranhos que se arriscam em determinados bairros periféricos de nossas grandes cidades. O principal protagonista de um filme. acabamos por fornecer-lhe um comprimido vermelho de vitaminas. e mesmo os seus seres sobrenaturais. estes índios perderam a crença em sua sociedade. Diversos exemplos desse tipo de comportamento anômico são encontrados em nossa própria história. Entre os índios Kaapor. Veremos agora como ela pode condicionar aspectos biológicos e até mesmo decidir sobre a vida e a morte dos membros do sistema. que é a apatia. e até físicas. habitada por pessoas de fenotipia. fomos procurados por uma mulher. nos solicitou um “anan-puhan” (remédio para fantasma). deprimentes e imorais. que teria visto um fantasma (um “anan”). costumes e línguas diferentes. quando teve o seu território invadido pelos construtores da Estrada de Ferro Noroeste. em estado de pânico. Diante de uma situação crítica. acredita-se que se uma pessoa vê um fantasma ela logo morrerá. acaba realmente morrendo. e outros acabavam sendo mortos pelo mal que foi denominado de banzo. realizado em 1953 por Darcy Ribeiro e Hains Forthmann. A CULTURA INTERFERE NO PLANO BIOLÓGICO Vimos acima que a cultura interfere na satisfação das necessidades fisiológicas básicas. o que é fisiologicamente a mesma coisa 22 . Comecemos pela reação oposta ao etnocentrismo. Muitos foram os suicídios praticados. de seu ecossistema e de seu contexto cultural) e transportados como escravos para uma terra estranha. a pressão sanguínea cai. grupo Tupi do Maranhão. o plasma sanguíneo escapa para os tecidos e o coração deteriora. também. Pertti Pelto descreve esse tipo de morte como sendo conseqüência de um profundo choque psicofisiológico: “A vítima perde o apetite e a sede. eram impotentes diante do poder da sociedade branca. Ela morre de choque. Comportamentos etnocêntricos resultam também em apreciações negativas dos padrões culturais de povos diferentes. durante a nossa permanência entre esses índios (quando a história acima nos foi contada). neste e em outros casos. Muitos abandonaram a tribo. O jovem índio deitou em uma rede e dois dias depois estava morto. que foi considerado muito eficaz. para neutralizar o malefício provocado pela visão de um morto. E de fato. não é importante. Interrompia a massagem para soprar fumaça nas mãos e esfregá-las uma na outra. Aí aplicou a boca e chupou com muita força. como se quisesse livrá-las de uma substância invisível. Estas são fortemente influenciadas pelos padrões culturais. Quem acredita que o leite e a manga constituem uma combinação perigosa. Entre nós é também comum os sintomas de mal-estar provocados pela ingestão combinada de alimentos. A massagem era dirigida para um ponto no peito do doente. e o pajé esfregava as mãos como se tivesse juntado qualquer coisa. podemos agora nos referir a um campo que vem sendo amplamente estudado: o das doenças psicossomáticas. conseguiu extrair e vomitar o Ymaé. e em muitos casos a cura se efetiva. A sensação de fome depende dos horários de alimentação que são estabelecidos diferentemente em cada cultura. intercalando-as com baforadas de cigarro e contrações como se fosse vomitar. Ajoelhando-se junto a ele. Um desses agentes é o xamã de nossas sociedades tribais (entre os Tupi. A descrição da cura dará. além da defumação do paciente com a fumaça de seus grandes charutos (petin). talvez. Queria assim passar o ymaé (a causa da doença. em alguns casos. em seguida. Após cerca de uma hora de cantar. por exemplo. Repetiu as massagens e sucções.) tenha sido ocultado dentro de sua boca. Estas curas ocorrem quando existe a fé do doente na eficácia do remédio ou no poder dos agentes culturais. uma idéia mais detalhada do processo. os pajés jamais mostraram o ymaé que extraíam dos doentes. quem não almoça assobia”. Guardavam-nos por 23 . sobre o corpo do paciente. Basicamente. “Meio-dia. esfregou-lhe o peito e o pescoço. certamente sentirá um forte incômodo estomacal se ingerir simultaneamente esses alimentos. por maior que tenha sido o nosso desjejum. o pajé recebeu o espírito. aquilo que um ser sobrenatural faz ao entrar no corpo da vítima) do doente para o seu próprio corpo. etc. reais ou imaginárias. Deixando de lado estes exemplos mais drásticos sobre a atuação da cultura sobre o biológico. desde o início do ritual. entretanto. dessa vez dirigidas para o ombro. O fato de que esse pequeno objeto (pedaço de osso. conhecidos pelo nome de pai’é ou pajé). primeiro sobre as próprias mãos e. diz um ditado popular. e a posterior retirada de um objeto estranho do interior do corpo do doente por meio de sucção. Nas curas a que assistimos. Após muitas massagens no doente. Muitos brasileiros. Aproximando-se do doente que estava sentado em um banco. o indivíduo pode passar um grande número de horas sem se alimentar e sem sentir a sensação de fome. estamos condicionados a sentir fome no meio do dia. Não o conseguiu e voltou a repetir as massagens. embora grande parte dos mesmos ignore até a localização do órgão. dançar e puxar no cigarro. insetos mortos. A cultura também é capaz de provocar curas de doenças. O que importa é que o doente é tomado de uma sensação de alívio. Finalmente. É de se supor que em todos os casos relatados o procedimento orgânico que leva ao desenlace tenha sido o mesmo. levantou-lhe os braços e encostou seu peito ao dele. estes horários foram estabelecidos diferentemente e. que fez desaparecer na mão. a técnica da cura do xamã consiste em uma sessão de cantos e danças.que choque de ferimento na guerra e nas mortes de acidente na estrada”. A mesma sensação se repetirá no horário determinado para o jantar. dizem padecer de doenças do fígado. Em muitas sociedades humanas. o pajé soprou fumaça. e algumas pessoas guardam pequenos objetos que acreditam terem sido retirados de seu corpo por um pajé.”. tem a sensação de se encontrar no centro de um universo privado. O nosso interesse incidirá nas representações simbólicas de tais etnocentrismos e nas suas conseqüências no comportamento cultural aos mais diversos níveis. o indivíduo está mais facilmente disposto a identificar-se com os membros do seu grupo: “Nós fazemos isto. tal egocentrismo é assinalado pelo uso extremamente freqüente de expressões na primeira pessoa do singular: “Eu faço isto.. Nas sociedades com uma diferente tradição cultural.. livre do cigarro. eles afirmam-se descendentes de um antepassado comum. E. ao mesmo tempo. geralmente. a população em causa é... qualquer que seja a sua identidade cultural. da convicção que daí deriva de que “nós somos todos parentes”. pelo menos em parte. Na parte do mundo ocidental contemporâneo que é dominada pela ética do individualismo competitivo. a grande maioria das comunidades que funcionaram como coletividades políticas corporativas era de dimensões extremamente reduzidas. Explicavam. Num sentido que não é precisamente determinado. Os traços distintivos comuns a esses micro-sistemas políticos incluem as seguintes características: a) Os membros individuais da sociedade acreditam partilhar uma história comum e uma origem biológica comum. o etnocentrismo é uma característica humana universal e não. à audiência a sua natureza. Ao longo de toda a história humana e até muito recentemente. Face aos objetivos do presente artigo. ETNOCENTRISMOS (EDMUND LEACH) 1. Introdução: o conceito de etnocentrismo Todo ser humano. “Nós fazemos aquilo.. O seu sentido de solidariedade depende.. etnocentrismo será entendido como referência a todo o âmbito de extensão do egocentrismo em que o “nós” tende a substituir o “eu” como centro de identificação.”. 2.. b) A comunicação de pessoa para pessoa é feita de modo direto através da oralidade. apenas uma peculiaridade do recente imperialismo capitalista. para fazê-lo desaparecer após. como por vezes se supõe. as restrições 24 .. porém. Dizem que os pajés mais poderosos o fazem.”. “uma comunidade aldeã”. c) A limitação dos recursos econômicos exclui a possibilidade de existência de uma diferença substancial entre o nível material de vida daqueles que governam e dos que são governados. “Eu faço aquilo. Quando os antropólogos se referem a “um bando de caçadores”. inferior a quinhentas pessoas e raramente vai além de alguns milhares.algum tempo dentro da mão. em detrimento da escrita ou de outros meios de expressão não-verbal. A generalidade do etnocentrismo Assim definido. “uma tribo”.”. o que parecia bastante. inferiores. eles são. contudo. diferentes de nós. Ambas as partes tratam os “outros” não só como inimigos que. 2) maneiras diferentes de vestir e pentear. católicos e protestantes comportam-se uns com os outros como se cada grupo seguisse o princípio segundo o qual só “nós” é que somos humanos. 5) língua e dialeto. de certo modo “outra coisa” em relação ao humano. mas também a inveja. seja na África do sul ou nos Estados Unidos. ambas as partes se comportam como se os outros se excluíssem da categoria de “seres humanos”. apesar de tudo. Isso leva. freqüentemente. em estreita interdependência econômica. está em posição de explorar os “outros” não-brancos. mas como animais selvagens a exterminar sem hesitações. econômica e politicamente dominante. e somos os únicos verdadeiros seres humanos. a todo e qualquer nível de identificação. são “pessoas como nós”. como bárbaros. Grupos de pessoas que vivem em contato umas com as outras. nós não somos “os outros”. não só porque tem costumes diferentes. mas. a conotação “homens’.econômicas impõem limites aos modos pelos quais as distinções “nós”/”eles” implícitas na hierarquia social e o etnocentrismo se podem manifestar. 4) estilo de vida em geral. com base em dogmas religiosos ou de outro gênero de preconceitos. Em Israel. a que olhemos “os outros” com desprezo e.] Se “nós” estamos no centro do universo. Reconhecemos quem são os “nós” com base em critérios negativos. mas porque são de uma espécie diferente. contrair matrimônio entre si. etc. mas que recusam. se outros grupos tribais são por nós reconhecidos. O traço essencial de tais sistemas reside em que. enquanto “eles” não passam de animais daninhos. 25 . conduz à violência de tipo mais brutal e irracional. desencadeiam uma hostilidade etnocêntrica mútua que. [ESTE É O MODELO NO QUAL SE BASEIA O COMPORTAMENTO ETNOCÊNTRICO]. politicamente dominante. em que o setor b4anco da comunidade. “Nós” e “os outros” formamos grupos opostos entre si. [Casos freqüentes de etnocentrismo podem ser observados entre grupos de diferentes filiações religiosas]. com o andar dos tempos. por vezes. [Em várias sociedades tribais]. Nas nossas atitudes em relação a eles misturam-se o medo e o ódio. Nos clássicos casos de racismo do mundo moderno. como noutros lados. o nome que as pessoas dão a si próprias tem. freqüentemente. O fenômeno é geral. Na Irlanda do Norte o modelo é o mesmo. 3) práticas religiosas. com temor. como animais. Eles não são homens verdadeiramente”. logo “os outros” que se encontram em contraste conosco são. ao mesmo tempo. “nós” estamos em condições de reconhecer a nossa existência como grupo agregado através da percepção de um contraste. como deuses. Uma multiplicidade de sinais pode servir como característica distintiva para esse fim: 1) diferenças raciais evidentes. a desprezar as capacidades intelectuais dos seus vizinhos negros. Isso acontece em todas as sociedades humanas. como a cor da pele e o tipo de cabelo. o etnocentrismo leva os membros da cultura branca. a tradicional hostilidade entre judeus e cristãos foi agora transformada numa nova hostilidade entre judeus e muçulmanos. [Podemos até classificar os outros fora da categoria de humanos. a atribuir-lhes uma potência sexual verdadeiramente excepcional! Esse tipo de comportamento não é exclusivo das modernas sociedades industriais ou coloniais e pós-coloniais. “Nós” podemos diferenciar-nos em relação aos “outros” de todas as maneiras reais e imaginárias. mas a ferocidade sem conta com que a atividade bélica internacional e o terrorismo interno têm sido conduzidos em todo o mundo nos últimos cinqüenta anos demonstra claramente que. mas também a de “destruir as obras do demônio”. 4. mas as mais poderosas imagens etnocêntricas são aquelas que aliam a solidariedade do “nós” étnico às paixões do “eu” etnocêntrico. de alguma forma. do “nosso povo” (com o correspondente massacre e a exploração dos “outros”. mas o tipo de etnocentrismo que realmente conta e que culmina na guerra santa. Há um pequeno número de missões cristãs. os missionários cristãos eram um braço da administração e eram sempre encarados como uma força civilizadora e era-lhes dado todo o tipo de encorajamento. um processo que implica a imposição total dos valores europeus e americanos aos seus cristãos conversos. O etnocentrismo dos missionários continua a ser explícito. tem defendido rigorosamente a posição de se encarar a cultura indígena em todas as suas manifestações como uma invenção do demônio. a maior parte das guerras de conquista muçulmana forma seguidas de uma forçada conversão religiosa da população conquistada. a única maneira de poderem ser qualificados como seres humanos era através da conversão ao cristianismo. especialmente nas áreas em que as autoridades coloniais consideravam os habitantes locais mais atrasados e primitivos. os homens podem ser levados a acreditar que qualquer categoria de seres humanos semelhantes é tão “outra” que poderá ser classificada de parasitária. em certos casos. Etnocentrismo. Voltemos ao ponto de partida: o etnocentrismo pode manifestar-se nos mais diversos campos e das mais diversas maneiras. especialmente os da ala evangélica do movimento. Neste tipo de contexto. Apesar de todas as formas de imperialismo e de dominação colonial serem. as guerras espanhola e portuguesa de conquista e colonização das Américas no século XVI foram absolutamente impiedosas. o grau com que os conquistadores insistem em impor os seus próprios valores morais aos conquistados é muito variável. mas pagãos. mas a maior parte dos missionários protestantes. em grande escala) extrai sempre os seus símbolos 26 . as represálias de Hitler contra os judeus e os ciganos) foram justificadas pelas características raciais e religiosas. a fim de preservar a pureza e a integridade do “nosso grupo”. Os conquistadores massacraram e escravizaram indiscriminadamente os habitantes locais. Conclusão: divisões sociais “reais” e “imaginárias”.A maior parte das tentativas históricas de exterminar “os outros’ à escala do genocídio (por exemplo. desde que existam instrumentos especiais de propaganda. não é só a de converter os pagãos ao cristianismo. se dispõe a reconhecer que a cultura indígena das populações entre as quais desenvolve a sua obra tem certo valor moral e estético que merece ser respeitado. A tarefa do missionário como salvador das almas. etnocêntricas. 3. geralmente de fé católica romana que. Analogamente. A justificação residia no princípio de que os nativos americanos não só eram selvagens. Desde os tempos do Profeta. colonialismo e missionários. as relações de domínio intergrupos dizem respeito. No mundo real. O resultado é muitas vezes. os problemas políticos “reais” residem em saber até que ponto e durante quanto tempo poderá a minoria dominante manter a sua posição atual de extremo privilégio econômico. ou antes. e em toda parte se verifica que a exploração encontra expressão simbólica em sintomas que foram aqui apresentados como marcas de etnocentrismo. a atmosfera acha-se altamente carregada de ficções saturadas de conteúdo emocional que pouco terão a ver com a economia. reforçam-se uma à outra. com a exploração do trabalho dos “outros” em proveito “nosso”. a realidade da exploração econômica e a irrealidade da diferenciação étnica. O tema geral deste artigo incidiu no fato de o presente estado de coisas ser extensivo a toda a humanidade. A exploração econômica e política de grupos de seres humanos por outros sucede por toda a parte. Na África do Sul contemporânea. mas no mundo imaginário dos valores etnocêntricos. deplorável. quem é que pode ou não utilizar as mesmas instalações sanitárias. 27 . quem é que se pode sentar à mesma mesa.das experiências privadas diretas do “eu”: nutrição/defecação. As duas faces da mesma moeda. a questões políticas e econômicas. com a exploração dos recursos naturais ocupados pelos “outros”. procriação/esterilidade. quase sempre. limpeza/sujidade. no qual as divisões cruciais são feitas depender da identidade nacional ou étnica. as questões etnocêntricas “imaginárias” ligam-se a quem é que pode ter relações sexuais com quem. sobretudo. mas somente numa Utopia poderá tal desvario encontrar o seu fim. erotismo/ascetismo. ........................55 Indicações para leitura.....................................................34 A cultura em nossa sociedade......................................44 Cultura e relações de poder.........O QUE É CULTURA JOSÉ LUÍS DOS SANTOS ÍNDICE Cultura e diversidade.......57 28 ...............................29 O que se entende por cultura........... A riqueza de formas das culturas e suas relações falam bem de perto a cada um de nós. bem viva nos tempos atuais. nações. a questão da cultura torna-se tanto mais concreta quanto adquire novos contornos. Saber se há uma realidade cultural comum à nossa sociedade torna-se uma questão importante. Por isso. Na verdade. se a compreensão da cultura exige que se pense nos diversos povos. cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos. sejam essas transformações movidas por suas forças internas ou em conseqüência desses contatos e conflitos. Do mesmo modo evidencia-se a necessidade de relacionar . que o convite a que se considere cada cultura em particular não pode ser dissociado da necessidade de se considerar as relações entre as culturas. já que convidam a que nos vejamos como seres sociais. relacionam-se com as condições materiais de sua existência. mais freqüentemente por ambos os motivos. Assim. De fato. São complexas as realidades dos agrupamentos humanos e as características que os unem e diferenciam. por exemplo. ao discutirmos sobre cultura temos sempre em mente a humanidade em toda a sua riqueza e multiplicidade de formas de existência. sociedades e grupos humanos. logo se constata a sua grande variação. Se não estivessem não haveria necessidade. nem motivo nem ocasião para que se considerasse variedade nenhuma. É preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos. A história registra com abundância as transformações por que passam as culturas. É uma preocupação em entender os muitos caminhos que conduziram os grupos humanos às suas relações presentes e suas perspectivas de futuro. a preocupação em entender isso é uma importante conquista contemporânea. de se vestir ou de distribuir os produtos do trabalho não são gratuitas. que devemos procurar conhecer para que as suas práticas. de se apropriar dos recursos naturais e transformá-los.CULTURA E DIVERSIDADE Cultura é uma preocupação contemporânea. nações. Entendido assim. é porque eles estão em interação. Ao trazermos a discussão para tão perto de nós. nos fazem pensar na natureza dos todos sociais de que fazemos parte. o estudo da cultura contribui no combate a preconceitos. oferecendo uma plataforma firme para o respeito e a dignidade nas relações humanas. nos fazem indagar das razões da realidade social de que partilhamos e das forças que as mantêm e as transformam. Saber em que medida as culturas variam e quais as razões da variedade das culturas humanas são questões que provocam muita discussão. concepções e as transformações pelas quais estas passam façam sentido. Por enquanto quero salientar que é sempre fundamental entender os sentidos que uma realidade cultural faz para aqueles que a vivem. porém. Notem. de conceber a realidade e expressá-la. Quando se considera as culturas particulares que existem ou existiram. sociedades e grupos humanos. são o resultado de sua história. ou nas maneiras de habitar. costumes. e a cultura as expressa. Cada realidade cultural tem uma lógica interna. Elas fazem sentido para os agrupamentos humanos que as vivem. As variações nas formas de família. O desenvolvimento da humanidade está marcado por contatos e conflitos entre modos diferentes de organizar a vida social. como a de formação de poderosas sociedades com instituições políticas centralizadas. pode-se traçar longas seqüências históricas e localizar etapas mostrando as transformações nas relações da sociedade com a natureza e principalmente nas relações de seus membros entre si. a viver em aldeias e vilas. Não apenas os recursos naturais devem ser considerados quando se pensa no desenvolvimento dos grupos humanos. que a discussão sobre cultura pode nos ajudar a pensar sobre nossa própria realidade social. Não só esses recursos são heterogêneos ao longo das terras habitáveis. o contato entre grupos humanos foi freqüente. não obstante a constatação de certas tendências globais. É também um tema repleto de equívocos e armadilhas. Muito já se discutiu sobre as maneiras de ordenar essas culturas de tanta variação. Para muitas delas. pois. mas do mesmo modo há aqui tendências dominantes. Ela só se tornou viável porque os grupos humanos envolvidos conseguiram reorganizar sua vida social de modo satisfatório. não é possível estabelecer seqüências fixas capazes de detalhar as 30 . São também variadas as formas de organização social.as manifestações e dimensões culturais com as diferentes classes e grupos que a constituem. Assim. os grupos humanos se expandiram progressivamente. por exemplo. e isso se realiza de modos diferentes e às vezes contraditórios. e os grupos isolados vão desaparecendo com a tendência à formação de uma civilização mundial. Nesse processo. Mais importante ainda é observar que o destino de cada agrupamento esteve marcado pelas maneiras de organizar e transformar a vida em sociedade e de superar os conflitos de interesse e as tensões geradas na vida social. Espero tê-los já convencidos de que o tema é importante e que vale a pena estudá-lo e seguir seus desdobramentos. bem-sucedidos. ocupando praticamente a totalidade dos continentes do planeta. no entanto. Apesar da existência de tendências gerais constatáveis nas histórias das sociedades. Isso se aplica. a sedentarização que mencionei antes não é uma simples resposta às condições dos recursos naturais. como para a européia ou a chinesa. De fato. acompanhando o desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais. O aceleramento desses contatos é recente. A minha preocupação principal aqui é contribuir para esclarecer esse assunto. às formas de utilização e transformação dos recursos naturais disponíveis. criando novas possibilidades de desenvolvimento. como a domesticação de animais e plantas o prova. Apesar dessa variabilidade são notórias algumas tendências dominantes. e ao fazer isso conseguiram inclusive alterar as condições dos recursos naturais. por exemplo. O desenvolvimento dos grupos humanos se fez segundo ritmos diversos e modalidades variáveis. Vejam. e muitas histórias paralelas marcaram o desenvolvimento dos grupos humanos. ela é uma maneira estratégica de pensar sobre nossa sociedade. como ainda territórios semelhantes foram ocupados de modo diferente por populações diferentes. Convém desde já que situemos um de seus principais focos de confusão: o de por que as culturas variam tanto e de quais os sentidos de tanta variação. isto é. Os esforços para colocar todas as culturas humanas num único e rígido esquema de etapas não foram. em vários lugares e épocas grupos humanos inicialmente nômades e dependentes da caça e da coleta para sua sobrevivência passaram a se sedentarizar. por exemplo. mas a intensidade desses contatos foi de forma a permitir muito isolamento. Assim. A partir de uma origem biológica comum. uma visão que utilizava concepções européias para construir a escala evolutiva. Por exemplo. dessa evolução em linha única. Até aqui estamos falando de cultura como tudo aquilo que caracteriza uma população humana. Segundo as versões mais comuns desses estudos. uma nômade praticando a caça e a coleta. poderemos pensar que uma é mais desenvolvida do que a outra. Vamos pensar um pouco mais sobre isso. e isso inclui também suas relações com outras culturas. pensa-se em hierarquizar essas culturas segundo algum critério. não haveria como julgá-la menos desenvolvida que a segunda com base nesse critério de comparação. Ou então. Não foi difícil perceber nessa concepção de evolução por estágios uma visão européia da humanidade. e que além do mais servia aos propósitos de legitimar o processo que se vivia de expansão e consolidação do domínio dos principais países capitalistas sobre os povos do mundo. Por exemplo. as tecnologias de metais. Na segunda possibilidade de relacionar diferentes culturas. falar. usando-se o critério de capacidade de produção material pode-se dizer que uma cultura é mais avançada do que outra. por exemplo. As concepções de evolução linear foram atacadas com a idéia de que cada cultura tem sua própria verdade e que a classificação dessas culturas em escalas hierarquizadas era impossível. a diversidade de sociedades existentes no século XIX representaria estágios diferentes da evolução humana: sociedades indígenas da Amazônia poderiam ser classificadas no estágio da selvageria. barbárie e civilização pode ajudar a entender o aparecimento da sociedade burguesa na Europa. Todas as sociedades humanas fariam necessariamente parte dessa escala evolutiva. duas são as possibilidades básicas de relacionarmos diferentes culturas entre si. as quais podem ter características bem diferentes. existentes ou extintas. a humanidade passaria por etapas sucessivas de evolução social que a conduziria desde um estágio primordial onde se iniciaria a distinção da espécie humana de outras espécies animais até a civilização tal como conhecida na Europa ocidental de então. Cada cultura é o resultado de uma história particular. Segundo aquele argumento. dada a multiplicidade de critérios culturais. por exemplo. 31 . mas não é suficiente para dar conta de culturas que por longo tempo se desenvolveram fora do âmbito dessa civilização. se compararmos essas culturas de acordo com seu controle de tecnologias específicas como. Argumenta-se aqui que cada cultura tem seus próprios critérios de avaliação e que para tal hierarquização ser construída é necessário subjugar uma cultura aos critérios de outra.fases por que passou cada realidade cultural. já que a domesticação de plantas da qual a agricultura é resultado não faz parte da primeira cultura. Quanto à Europa classificada no estágio da civilização. consideravase que ela já teria passado por aqueles outros estágios. outra habitando em vilas e praticando a agricultura. Assim. reinos africanos. nega-se que seja viável fazer qualquer hierarquização. no estágio da barbárie. Nesse caso. Cultura e evolução No século XIX foram feitos muitos estudos procurando hierarquizar todas as culturas humanas. vamos pensar em duas culturas primitivas. Assim. nas etapas humanas da selvageria. e essa segundo perspectiva que mencionei acima criticou-as fortemente. No primeiro caso. que os critérios que se usa para classificar uma cultura são também culturais. unidade biológica da espécie humana. e isso era usado como justificativa para seu domínio e exploração. Cultura e relativismo Em outras palavras. Ou seja. Por outro lado. substitui-se um equívoco por outro. A idéia de uma linha de evolução única para as sociedades humanas é. no entanto. tendo como instrumento uma capacidade de produção material que não é nem um pouco relativa. Passa-se assim da demonstração da diversidade das culturas para a constatação do relativismo cultural. Não existe relação necessária entre características físicas de grupos humanos e suas formas culturais. O absurdo daquela equação acima referida se manifesta no fato de que enquanto a ciência social dos países capitalistas centrais elaborava teorias relativistas da cultura. expressa possibilidades de vida social organizada e registra graus e formas diferentes de domínio humano sobre a natureza. A diversidade das culturas existentes acompanha a variedade da história humana. Consideremos um pouco mais este segundo. conquistando e destruindo povos e nações. por exemplo. Não há superioridade ou inferioridade de culturas ou traços culturais de modo absoluto. isso diria respeito a qualquer caso e não só ao da visão européia de evolução social única dos grupos humanos. Idéias racistas também se associaram àqueles esforços. àquela comparação entre duas sociedades primitivas de que falei atrás. nem tampouco a multiplicidade das culturas implica quebra da. a relativização total do estudo das culturas desvia a atenção de indagações importantes a respeito da história da humanidade. não há nenhuma lei natural que diga que as características de uma cultura a façam superior a outras. 32 . Existem. Ele deriva da constatação de que a avaliação de cada cultura e do conjunto das culturas existentes varia de acordo com a cultura particular da qual se efetue a observação e análise. Estudos sistemáticos e detalhados de muitas culturas permitiram destruir os falsos argumentos dessas concepções preconceituosas. sobre o resto do mundo. muitas vezes os povos não-europeus foram considerados inferiores. Se insistirmos em relativizar as culturas e só vê-las de dentro para fora. ingênua e esteve ligada ao preconceito e discriminação raciais. processos históricos que as relacionam e estabelecem marcas verdadeiras e concretas entre elas. segundo essa visão. sua civilização avançava implacavelmente. poderia ser aplicado. Observe o quanto essa equação é enganosa. pois. teremos de nos recusar a admitir os aspectos objetivos que o desenvolvimento histórico e da relação entre povos e nações impõe. que naqueles esquemas globais apareciam no topo da humanidade. Só se pode propriamente respeitar a diversidade cultural se entender a inserção dessas culturas particulares na história mundial. na avaliação de culturas e traços culturais tudo é relativo.Tais esforços de classificação de culturas não implicavam apenas a justificação do domínio das sociedades capitalistas centrais. Verifica-se assim que a observação de culturas alheias se faz segundo pontos de vista definidos pela cultura do observador. como é o caso da constatação de regularidades nos processos de transformação dos grupos humanos e da importância da produção material na história dessas transformações. Pensem. Isso se aplica não só às sociedades indígenas do território brasileiro. quando não seu fim. Elas certamente fazem parte de processos sociais mais globais. por exemplo. Este é um fato evidente da história contemporânea e não há como refletir sobre cultura ignorando essas desigualdades. Já agora a compreensão dessa civilização mundial exige o entendimento dos múltiplos percursos que levaram a ela. Existem realidades culturais internas à nossa sociedade que podem ser tratadas. a população nacional foi constituída com contingentes originários de várias partes do mundo. sua capacidade de emitir pronunciamentos. suas faixas de idade. por exemplo. Além disso. de interpretar a realidade que as produz. Pode-se tentar demonstrar suas lógicas internas. que faz com que essas realidades culturais se relacionem e se hierarquizem. como se fossem culturas estranhas. em que esse confronto de idéias se consolidou. que a questão não é só pensar na evolução de sociedades humanas. Assim. a população difere ainda internamente segundo. Observem que também no estudo de uma sociedade particular não faria sentido considerar de maneira isolada cada uma das formas culturais diversas nela existentes. de agir sobre essa realidade. indicava os caminhos de uma civilização mundial em que as muitas culturas humanas deveriam inevitavelmente encontrar o seu destino. contribuindo dessa forma para eliminar preconceitos e perseguições de que são vítimas grupos e categorias de pessoas. ela está também relacionada com as maneiras de atuar na vida social. e sempre se coloca a questão de como tratar esse assunto. A sociedade nacional tem classes e grupos sociais. sejam lugares isolados de características peculiares ou agrupamentos religiosos fechados que existem no interior das grandes metrópoles. por exemplo. O estudo das culturas e de suas transformações é fundamental para isso. Mesmo porque essa diversidade não é só feita de idéias. isso é de fato essencial para compreendermos melhor o país em que vivemos. As culturas e sociedades humanas se relacionam de modo desigual.Vemos. Enfatizar a relatividade de critérios culturais é uma questão estéril quando se depara com a história concreta. mas também a grupos de pessoas vivendo no campo ou na cidade. Cultura e sociedade Há muito em comum entre essas discussões sobre as relações entre culturas de sociedades diferentes quando se pensa sobre a cultura de uma sociedade particular. numa sociedade como a brasileira. e muitas vezes o são. É necessário reconhecê-las e buscar sua superação. As relações internacionais registram desigualdades de poder em todos os sentidos. Também aí a variedade de formas culturais se manifesta. um grupo religioso. A diversidade também se constitui de maneiras diferentes de viver. existe no interior de uma sociedade 33 . por mais particulares que sejam suas concepções e práticas de vida social. ou segundo seu grau de escolarização. cujas razões podem ser estudadas. é um elemento que faz parte das relações sociais no país. Tudo isso se reflete no plano cultural. O século XIX. mas fundamentalmente entender a história da humanidade. É importante considerar a diversidade cultural interna à nossa sociedade. tem regiões de características bem diferentes. pois. os quais hierarquizam de fato os povos e nações. A partir disso. cujas características e cujos problemas ele não pode evitar. tais como o rádio. em discutir sobre cultura. à sua comida. conduz a mudanças em sua forma de viver e as introduz a novas concepções de vida. das relações sociais dentro de cada qual e das relações entre elas. O que importa é que pensemos sobre os motivos de tanta variação. a novas técnicas. As duas concepções básicas de cultura 34 . Por vezes se fala de cultura para se referir unicamente às manifestações artísticas. entre povos e nações. A lista pode ser ampliada. apenas entender as realidades culturais no contexto da história de cada sociedade. como o teatro. Já eu tenho falado de cultura de maneira mais genérica. que localizemos as idéias e temas principais sobre os quais elas se sustentam.dinâmica. a escultura. As preocupações com cultura se voltaram tanto para a compreensão das sociedades modernas e industriais quanto daquelas que iam desaparecendo ou perdendo suas características originais em virtude daqueles contatos. educação. às lendas e crenças de um povo. no estudo da cultura em nossa sociedade. as culturas movem-se não apenas pelo que existe. Vejamos alguns desses sentidos comuns. Não há por que nos confundirmos com tanta variação de significado. a um novo idioma e a novos problemas. e a maneira como falei dela nas páginas anteriores é apenas um entre muitos sentidos comuns de cultura. Em geral. valem as mesmas observações feitas atrás em relação ao relativismo. toda essa preocupação não produziu uma definição clara e aceita por todos do que seja cultura. a pintura. coloca em risco sua sobrevivência física e cultural. Ou então cultura diz respeito às festas e cerimônias tradicionais. mas também pelas possibilidades e projetos do que pode vir a existir. mostrar que a diversidade existe não implica concluir que tudo é relativo. ou a seu modo de se vestir. formação escolar. Observem que vivemos numa sociedade que tem uma classe dominante cujos interesses prevalecem. Esses estudos se intensificaram na medida em que se aceleravam os contatos. Por cultura se entende muita coisa. Não há razão para querer imortalizar as facetas culturais que resultam da miséria e da opressão. Contudo. Assim. nem sempre pacíficos. cultura está associada a estudo. De modo que. O QUE SE ENTENDE POR CULTURA Desde o século passado tem havido preocupações sistemáticas em estudar as culturas humanas. tanto no estudo de culturas de sociedades diferentes quanto das formas culturais no interior de uma sociedade. Afinal. Nem tudo que é diverso o é da mesma forma. preocupado com tudo o que caracteriza uma população humana. a música. nós poderemos entender afinal o que é cultura e dar andamento às nossas discussões. Outras vezes. ao se falar na cultura da nossa época ela é quase que identificada com os meios de comunicação de massa. o cinema. a seu idioma. Se fôssemos relativizar os critérios culturais existentes no interior da sociedade acabaríamos por justificar as relações de dominação e o exercício tradicional do poder: eles também seriam relativos. a televisão. localizar os sentidos básicos da concepção de cultura. mostrar como eles se desenvolveram. Vamos então cercar o assunto. Mesmo as sociedades indígenas mais afastadas têm seu destino ligado à sociedade nacional que em sua expansão as envolve. Esse é um ponto muito importante. as re1ações pessoais e a espiritualidade. Podemos assim falar na cultura francesa ou na cultura xavante. com os quais partilhamos de poucas características em comum. Outro exemplo comum desta segunda concepção de cultura é a referência à cultura alternativa. O que ocorre é que há uma ênfase especial no conhecimento e dimensões associadas. Nesses casos. Neste caso. preocupando-se com a totalidade dessas características. fechado. e da mesma forma seus meios de divulgação. e que tem por temas principais a ecologia. seja na organização da sociedade. à sua literatura. às idéias e crenças. a alimentação. Como veremos a seguir. estagnado. Devo alertá-los de que ambas as concepções levam muitas vezes a que se entenda a cultura como uma realidade estanque. quando falarmos em cultura francesa poderemos estar fazendo referência à língua francesa. Vamos à segunda. cultura refere-se a realidades sociais bem distintas.As várias maneiras de entender o que é cultura derivam de um conjunto comum de preocupações que podemos localizar em duas concepções básicas. o sentido em que se fala de cultura é o mesmo: em cada caso dar conta das características dos agrupamentos a que se refere. a um domínio. científico e artístico produzido na França e às instituições mais de perto associadas a eles. ela é mais usual quando se fala de povos e de realidades sociais bem diferentes das nossas. A primeira dessas concepções preocupa-se com todos os aspectos de uma realidade social. idéias. compreendendo tendências de pensar a vida e a sociedade na qual a natureza e a realização individual são enfatizadas. cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo ou nação. o corpo. Entendemos neste caso que a cultura diz respeitei a uma esfera. da vida social. Conforme já dissemos. De acordo com esta segunda concepção. Assim. as próprias concepções de cultura estão ligadas muito de perto a esses processos. na forma de produzir o necessário para a sobrevivência ou nas maneiras de ver o mundo. digam elas respeito às maneiras de conceber e organizar a vida social ou aos seus aspectos materiais. como lojas de produtos naturais e clínicas de medicina alternativa. as culturas humanas são dinâmicas. quando falamos em cultura estamos nos referindo mais especificamente ao conhecimento. Desenvolvimento das preocupações com cultura 35 . O esforço de entender as culturas. Mas eu disse que havia duas concepções básicas de cultura. crenças sem pensar na sociedade à qual se referem. a principal vantagem de estudá-las é por contribuírem para o entendimento dos processos de transformação por que passam as sociedades contemporâneas. ao conhecimento filosófico. Do mesmo modo falamos na cultura camponesa ou então na cultura dos antigos astecas. ou então de grupos no interior de uma sociedade. Ao se falar em cultura alternativa inclui-se também as instituições associadas. No entanto. já que não se pode falar em conhecimento. Embora essa concepção de cultura possa ser usada de modo genérico. Observem que mesmo aqui a referência à totalidade de características de uma realidade social está presente. parada. assim como às maneiras como eles existem na vida social. De fato. de localizar traços e características que as distingam. pode acabar levando a que se pense a cultura como algo acabado. Mas retornemos ao significado moderno de cultura. que quer dizer cultivar. e isso está presente na expressão cultura da alma. as novas teorias biológicas e sociais desse século culminaram com uma visão da humanidade firmemente ancorada numa teoria da 36 . Aumentaram então os contatos entre as nações da Europa. É muito importante que vocês notem que a Alemanha era então uma nação dividida em várias unidades políticas. procurando dar conta sistematicamente de uma diversidade de maneiras de viver que já havia sido motivo de reflexão por séculos. Sociedades antes isoladas foram subjugadas e incorporadas ao âmbito de influência européia. Essas preocupações que cultura passou a expressar tornaram-se tanto mais importantes quanto a partir do século XIX foi-se intensificando o poderio das nações européias frente aos povos do mundo.A constatação da variedade de modos de vida entre povos e nações é um elemento fundamental das preocupações com cultura. Foi nessa época que a preocupação com cultura se generalizou como uma questão científica. em entender o desenvolvimento dos povos no contexto das condições materiais em que se desenvolviam. Pensadores romanos antigos ampliaram esse significado e a usaram para se referir ao refinamento pessoal. Como sinônimo de refinamento. Vem do verbo latino c o l e r e. Caminhou-se dessa maneira para consolidar as modernas preocupações com cultura. Em primeiro lugar. modos de vida. Tanto assim que é impossível discutirmos sobre cultura sem fazermos referência a ela. A ruptura com essa visão religiosa se fez através de preocupações com o entendimento da origem e transformação da sociedade e também das espécies de vida. servia para falar de todos os alemães na falta de uma organização política comum. não-religiosa. foi a partir de então que as ciências humanas passaram a tratar sistematicamente dela. Desenvolveram-se a partir de século XVIII na Alemanha. Essa é sem dúvida uma constatação registrada entre muitos povos desde a antiguidade. a visão de mundo cristã oferecia à Europa os modelos principais que ordenavam o conhecimento e a interpretação do mundo e das relações sociais. cultura foi usada constantemente desde então e o é até hoje. A discussão sobre cultura tinha assim um sentido muito especial: ela procurava expressar uma unidade viva daquela nação não unificada politicamente. industrializadas e sedentas de novos mercados. em compreender a particularidade dos costumes e crenças. Sabe-se também que de longa data se indagou sobre as razões que explicavam a existência de costumes. bem mais recentes. Observem porém que se essa preocupação já existia. a palavra cultura percorreu um longo caminho até adquirir esse sentido. Nesse sentido. Cultura era então uma preocupação de pensadores engajados em interpretar a história humana. práticas e crenças de povos diferentes. sofisticação pessoal. por exemplo. Até então o cristianismo tivera força para se impor na definição de práticas e comportamentos. e populações do resto do mundo. As preocupações sistemáticas com a questão da cultura são. porém. É preciso considerar dois aspectos principais aos quais a consolidação das preocupações com cultura esteve associada. Roma e China antigas. Pode-se encontrar reflexões sobre esses temas em autores da Grécia. do mundo social e da vida humana. foi no século XIX que se tornou dominante uma visão laica. quer dizer. educação elaborada de uma pessoa. Cultura é palavra de origem latina e em seu significado original está ligada às atividades agrícolas. e tudo que é humano é cultural. cultura servia tanto para diferenciar populações humanas entre si quanto para distinguir o humano de outras formas animais. Se fosse só por isso. As preocupações com cultura tinham essa marca de legitimadoras da dominação colonial. De fato. associei a discussão sobre cultura com a questão da variedade dos povos e modos de vida. como vocês podem ver. Esta é uma relação muito íntima. a idéia é muito genérica. de cunho religioso. como na visão de evolução linear das sociedades. Além disso. Lembrem que. Ela faz parte tanto da história do desenvolvimento científico quanto da história das relações internacionais de poder. não teria sido necessário esperar tantos séculos para que a discussão sobre cultura se firmasse. Isso ia contra as idéias anteriormente dominantes. Assim. Ela era alimentada por essa expansão política e econômica das sociedades industrializadas. pois além de a própria Europa ser diversificada em povos e nações. Há um segundo. uma divindade que atuava também na história das sociedades humanas. há um sentido em que tudo que é cultural é humano. este é um dos aspectos principais com que a consolidação das preocupações com cultura esteve associada: a sua vinculação com as novas preocupações de conhecimento científico do século XIX. Assim. Essa posição se realizou através da dominação política e econômica. numa humanidade com uma vida social também sujeita à evolução em virtude de fatores materiais que podiam ser estudados. O desenvolvimento dessas teorias científicas sobre a vida e a sociedade é de fato muito importante para entendermos as preocupações sistemáticas com cultura. Trata-se de uma idéia muito ampla. É que até então essas questões podiam ser respondidas. Nesse contexto de discussão sobre evolução. da humanidade como uma espécie animal produzida por transformações a partir de outras formas de vida. as preocupações com cultura contribuíram para delimitar intelectualmente a posição internacional do Ocidente. difícil de precisar. contatos com povos muito diversos eram antigos e as conquistas coloniais já tinham estabelecido relações sistemáticas com outras culturas desde o século XVI. que lhe fornecia campo de observação e possibilitava o acesso a material para estudo. e também da imposição de suas próprias concepções culturais aos povos sob domínio e controle. Novamente. As preocupações sistemáticas com cultura nasceram associadas a novas formas de conhecimento. e que pregavam ter sido o homem criado diretamente pela divindade. várias vezes. como cultura estava ligada à distinção entre o humano e o animal.evolução das espécies. A discussão sobre cultura estava ligada às preocupações de entender os povos e nações que se subjugava. o próprio entendimento moderno do que seja uma nação tem muito a ver com as 37 . incorporando nações e territórios em outros continentes e submetendo suas populações a seu mando político e controle militar. que permitiam fosse considerado superior tudo que fosse ocidental. cultura era uma palavra usada para expressar a totalidade das características e condições de vida de um povo. Assim a moderna preocupação com cultura nasceu associada tanto a necessidades do conhecimento quanto às realidades da dominação política. Lembrem-se que o debate intelectual ao qual as preocupações com cultura estavam associadas fornecia interpretações. ou seja. podiam ser enquadradas pela interpretação de cunho religioso. Nesse sentido. quando se comparava povos diferentes. Lembrem-se que as potências européias encontravam-se então em marcado processo de expansão. Daí derivam muitas das dificuldades em definir cultura. discussões sobre cultura. a realidade de cada país foi pensada tendo por referência a cultura dominante no Ocidente. diferentemente da Alemanha dos séculos anteriores. política e intelectualmente as mais poderosas nações européias. já que é importante para discutir sobre cultura em países como o nosso. Assim foi na Rússia do século XIX. em que fornecem elementos e características que dão a esta um caráter particular. Essas discussões estão mesmo ligadas ao processo de constituição de nações modernas. em relação às nações política e economicamente dominantes. específico. entendendo-se aí cultura tanto no seu aspecto material quanto de formas de conhecimento e concepções sobre a vida e a sociedade. Notem que em todas essas experiências históricas em que a discussão sobre cultura foi parenta da questão da nação houve um importante ponto em comum: tratavam-se de unidades políticas que queriam definir o que lhes era próprio. Cultura e nação Já vimos antes que em seu desenvolvimento a concepção de cultura esteve relacionada às particularidades da nação alemã. período em que a Inglaterra e França eram econômica. na Alemanha dos séculos XVIII e XIX a idéia de que havia uma cultura comum unindo as várias unidades políticas que constituíam a Alemanha servia para estabelecer um plano objetivo de unidade. podemos mencionar a Rússia do século XIX. nomes. as preocupações com cultura têm feito parte constantemente das reflexões sobre a realidade desses países. Sua importância para essas culturas nacionais só costuma ser reconhecida na medida em que contribuem para esta última. Vamos pensar um pouco mais sobre isso. Para citar ainda outro exemplo dessa relação entre cultura e nação. roupas. Nos Estados Unidos da América do Norte e na América Latina. as culturas de povos e nações que habitavam suas terras antes da conquista européia foram sistematicamente tratadas como mundos à parte das culturas nacionais que se desenvolveram. Elas servem de referências no processo de incorporação às sociedades nacionais de populações nativas dominadas pela conquista européia e de imigrantes de toda parte do mundo que para as Américas vieram. Assim. Da mesma forma são tratadas as contribuições 38 . O mesmo pode ser dito da América Latina. De fato. Nestes casos todos. um império contendo uma diversidade de povos e que estava igualmente preocupado em estabelecer uma realidade cultural comum. No caso. a preocupação com cultura continuou mesmo após a revolução comunista de 1917 e esteve presente na definição da política das nacionalidades do Estado soviético. tais como comidas. por exemplo. um país em posição inferior às potências européias. Assim. e o Brasil é bem um caso. e dos Estados Unidos antes que este país atingisse a condição de potência dominadora que hoje ocupa. lendas. cultura podia ser vista como a expressão de uma nação que não tinha Estado. São discussões que procuram saber o que há na cultura de especificamente estadunidense ou peruano ou brasileiro. Na América Latina. nas Américas do século XX. Foi assim na Alemanha do século XVIII. as discussões sobre cultura expressam projetos de nação em Estados derivados da colonização européia dessas terras. na falta de uma unidade política comum. culturais das populações que vieram para cá como imigrantes de outras partes do mundo, ou que para cá foram trazidas como escravas. Assim, é comum que na América Latina as discussões sobre cultura se refiram a uma história de contribuições culturais de múltipla origem, as quais têm por pólo de integração os processos que são dominantes no mundo ocidental no que concerne à produção econômica, à organização da sociedade, à estrutura da família, ao direito e às idéias, concepções e modos de conhecimentos. É preciso cautela com essa tendência a entender países como o nosso como uma mistura de traços culturais. Como veremos numa sessão posterior, o importante para pensarmos a nossa realidade cultural é entendermos o processo histórico que a produz, as relações de poder e o confronto de interesses dentro da sociedade. Preocupações da cultura Há algumas preocupações por assim dizer embutidas nas discussões sobre cultura que vêm de longa data e convém mencionar aqui. Cultura pode por um lado referir-se à alta cultura, à cultura dominante, e por outro, a qualquer cultura. No primeiro caso, cultura surge em oposição à selvageria, à barbárie; cultura é então a própria marca da civilização. Ou ainda, a alta cultura surge como marca das camadas dominantes da população de uma sociedade; se opõe à falta de domínio da língua escrita, ou à falta de acesso à ciência, à arte e à religião daquelas camadas dominantes. No segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana. Considera-se como cultura todas as maneiras de existência humana. Essa tensão entre referir-se a uma cultura dominante ou a qualquer cultura permanece, e explica em parte a multiplicidade de significados do que seja cultura, que mencionei anteriormente. Notem que é no segundo sentido que as ciências sociais costumam falar de cultura, e é neste sentido que tenho falado dela aqui. Nas transformações da idéia de cultura durante os séculos XVIII e XIX, a discussão sobre cultura surgiu associada a uma tentativa de distinguir entre aspectos materiais e não-materiais da vida social, entre a matéria e o espírito de uma sociedade. Até que o uso moderno de cultura se sedimentasse, cultura competiu com a idéia de civilização, muito embora seus conteúdos fossem freqüentemente trocados. Assim, civilização e cultura serviam para significar os aspectos materiais da vida social, o mesmo ocorrendo com o universo de idéias, concepções, crenças. Com o passar do tempo, cultura e civilização ficaram quase sinônimas, se bem que usualmente se reserve civilização para fazer referência a sociedades poderosas, de longa tradição histórica e grande âmbito de influência. Além do mais, usa-se cultura para falar não apenas em sociedades, mas também em grupos no seu interior, o que não ocorre com civilização. Quanto àquela preocupação em distinguir aspectos da vida social, ela permaneceu associada às discussões sobre cultura. Embora esta seja com freqüência entendida como a dimensão não-material da sociedade, a preocupação com os aspectos materiais não a abandonou. Apesar de todas as variações na maneira de conceber cultura, quero ressaltar que sua discussão contém tendências fortes e importantes, qual seja, que a discussão sobre cultura tem a humanidade como referência e ao mesmo tempo procura dar conta de particularidades de cada realidade cultural. Pensem 39 também que essa humanidade não é só uma idéia vaga, pois, com o processo de expansão dos centros de poder contemporâneos, de conquista e incorporação acelerada de povos e nações, do estabelecimento de relações perduráveis de interdependência e de processos comuns de mudança política, a humanidade surge com força no panorama da história comum a todos, da civilização mundial que cada vez mais toma corpo. É importante ainda lembrar que essas discussões sobre cultura firmaramse no mesmo período em que outras abordagens se preocupavam em estudar criticamente as características internas da sociedade capitalista, em estudar as condições para a sua superação e contribuir para as lutas operárias. Estudava-se assim a natureza das classes sociais e sua dinâmica, a expansão do capitalismo e seus fundamentos. Os dois planos de estudo, o da cultura e o da sociedade de classes, andam muitas vezes separados, mas nada impede que os pensemos conjuntamente. Relações entre as duas concepções básicas de cultura Como as páginas anteriores sugerem, desde muito tempo as preocupações com cultura orientam-se pelas duas concepções básicas que já havíamos discutido: ou tratam da totalidade das características de uma realidade social, ou dizem respeito ao conhecimento que a sociedade, povo, nação ou grupo social tem da realidade e à maneira como o expressam. Assim, a preocupação com a totalidade sedimentou-se na concepção de cultura da ciência do século XIX. Já a associação de cultura com conhecimento é mais antiga, vinda da relação de cultura com erudição, refinamento pessoal. É do relacionamento entre essas duas concepções básicas que se origina a maneira de entender cultura, que pode ser um instrumento de estudo das sociedades contemporâneas. Vejamos como isso ocorre. Falar da totalidade das características de um povo, nação, sociedade, é uma idéia muito ampla para cultura, algo muito vasto e difícil de operacionalizar. Apesar disso, é urna idéia útil quando estão em comparação realidades sociais muito distintas, resultados de experiências históricas muito diferentes. Sociedades assim comparadas podem diferir fundamentalmente em sua organização da vida social, nas maneiras de definir as relações de parentesco entre seus membros, de regular o casamento e a reprodução, na produção do necessário para a sobrevivência, nas técnicas, nos instrumentos e nos utensílios, nas suas concepções, crenças e em tantos outros aspectos. Preocupar-se com a totalidade dessas características é inevitável em casos assim, já que é tudo isso que torna cada uma das sociedades diferente. Mas o encontro entre sociedades assim vai-se tornando raro. Com a aceleração da interação entre povos, nações, culturas particulares, diminui a possibilidade de falar em cultura como totalidade, pois a tendência à formação de uma civilização mundial faz com que os povos, nações, culturas particulares existentes partilhem características comuns fundamentais. Falar de culturas isoladas e únicas vai perdendo a viabilidade, pois não seria essa realidade comum, a civilização mundial, que vai poder distinguir suas experiências particulares. Assim, por exemplo, por mais diferenças que possam existir entre países como o Brasil, o Peru, Quênia e Indonésia, todos eles partilham processos históricos comuns e contêm importantes semelhanças em sua existência social, buscam desenvolver suas economias dependentes, superar desigualdades 40 sociais internas e atingir padrões internacionais de qualidade de vida. É uma situação bem diferente, vejam bem, dos contatos iniciais da sociedade inglesa com sociedades nativas da Oceania ou com reinos da África, ou da sociedade brasileira com sociedades indígenas da Amazônia. Não é de se estranhar, pois, que prevaleça nas preocupações com cultura aquela tendência a procurar localizar e entender os aspectos da vida social não diretamente materiais. Lembrem-se de que a discussão de cultura está muito ligada à constatação da diversidade. E é nesses aspectos não-materiais que a diversidade se expressa com mais vigor. Mas notem que a preocupação em entender toda a vida social não foi abandonada nas discussões sobre cultura; ela foi transformada. De fato, cultura tende a se transformar numa área de reflexão sobre a realidade onde aquelas duas preocupações básicas se mesclam. Assim, cultura passa a ser entendida como uma dimensão da realidade social, a dimensão não-material, uma dimensão totalizadora, pois entrecorta os vários aspectos dessa realidade. Ou seja, em vez de se falar em cultura como a totalidade de características, fala-se agora em cultura como a totalidade de uma dimensão da sociedade. Essa dimensão é a do conhecimento num sentido ampliado, é todo conhecimento que uma sociedade tem sobre si mesma, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e sobre a própria existência. Cultura inclui ainda as maneiras como esse conhecimento é expresso por uma sociedade, como é o caso de sua arte, religião, esportes e jogos, tecnologia, ciência, política. O estudo da cultura assim compreendida volta-se para as maneiras pelas quais a realidade que se conhece é codificada por uma sociedade, através de palavras, idéias, doutrinas, teorias, práticas costumeiras e rituais. O estudo da cultura procura entender o sentido que fazem essas concepções e práticas para a sociedade que as vive, buscando seu desenvolvimento na história dessa sociedade e mostrando como a cultura se relaciona às forças sociais que movem a sociedade. Uma maneira mais complicada de apresentar essa dimensão é dizer que a cultura inclui o estudo de processos de simbolização, ou seja, de processos de substituição de uma coisa por aquilo que a significa, que permitem, por exemplo, que uma idéia expresse um acontecimento, descreva um sentimento ou uma paisagem; ou então que a distribuição de pessoas numa sala durante uma conversa formal possa expressar as relações de hierarquia entre elas. Assim, a idéia de uma divindade única pode ser vista como significando a unidade da sociedade; nas brincadeiras infantis tradicionais numa sociedade como a nossa pode-se mostrar a presença simbólica de mecanismos de competição e hierarquia do mundo dos adultos. De fato, os processos de simbolização são muito importantes no estudo da cultura. É a simbolização que permite que o conhecimento seja condensado, que as informações sejam processadas, que a experiência acumulada seja transmitida e transformada. Não se entusiasmem muito, porém, com os exemplos acima, a ponto de saírem por aí localizando significados ocultos em cada prática cultural, em cada elemento da cultura, em cada produto cultural. Isso pode atrapalhá-los, ao invés de contribuir para que vocês conheçam sua sociedade. Vejamos por quê. Em primeiro lugar, cultura diz sempre respeito a processos globais dentro da sociedade, e ficar enfatizando relações miúdas de significado pode fazer com que vocês percam de vista aqueles. Na verdade, tais elementos só fazem sentido dentro daqueles. Assim, só se pode entender a importância das brincadeiras 41 o que é cultura? Cultura é uma dimensão do processo social. cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social. Isso se aplica não apenas à percepção da cultura. a desigualdade porque existe desigualdade na vida social. por exemplo. É uma realidade e uma concepção que precisam ser apropriadas em favor do progresso social e da 42 . a cultura é um produto coletivo da vida humana. Em segundo lugar. que interesses expressa. pelos benefícios que pode assegurar. grupos e classes sociais no seu interior.infantis estudando toda a formação cultural que se dá às crianças e localizando-as dentro desta. Não diz respeito apenas a um conjunto de práticas e concepções como. algo que sempre expressa apaticamente alguma outra coisa. mas sempre temos em mente a sociedade como um todo. de servir não apenas para descrever a realidade e compreendê-la. Ou seja. não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Em terceiro lugar. Isso faz com que as duas concepções básicas de cultura de que lhes falei permaneçam presentes: ao falarmos de cultura nos referimos principalmente à dimensão de conhecimento de uma sociedade. Não é apenas uma parte da vida social como. Entendida dessa forma. seja como concepção. um conflito pela sua definição. mas também para apontar-lhe caminhos e contribuir para sua modificação. à importância que passa a ter. Ao contrário. que conflitos carrega. exige que se considere a organização social. a cultura não é algo natural. esse tipo de ênfase simbolista pode induzir vocês a entender cultura como uma dimensão neutra. Então. uma transformação de suas características e das relações entre categorias. se poderia dizer da ate. Cultura é um território bem atual das lutas sociais por um destino melhor. mas também à sua relevância. A essa transformação constante me referi falando de processo social. estudar o conjunto de suas concepções. Da mesma maneira mais importante que localizar o significado da divindade única é entender o que significa a religião numa sociedade. leva a pensar nas relações de poder. por exemplo. produto da história de cada sociedade. ver corno ela se organiza. algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe. Não se pode dizer que cultura seja algo independente da vida social. seja como dimensão do processo social. e com isso obscurecer o caráter transformador do conhecimento. Aplica-se ao conteúdo de cada cultura particular. Ou seja. o qual tem uma característica fundamental: o de ser fator de mudança social. Cultura é uma construção histórica. cujos elementos expressam. e não se pode dizer que ela exista em alguns contextos e não em outros. No entanto é preciso considerar que a própria cultura é um motivo de conflito de interesses nas sociedades contemporâneas. Vemos assim que cultura está sempre associada a outras preocupações do estudo da sociedade. se poderia falar da religião. pelo seu controle. reduzindo a cultura ao estudo do simbolismo de seus elementos pode-se acabar entendendo cultura como uma dimensão mecânica da vida social. O estudo da cultura exige que consideremos a transformação constante por que passam as sociedades. por exemplo. uma ênfase desse tipo pode desviar a atenção do fato de que cultura está associada a conhecimento. da vida de uma sociedade. Mas vejam que essas sociedades indígenas encontram-se em interação crescente com a sociedade nacional. passam a participar de processos sociais comuns. que não tenham sua dinâmica. Isso porque é comum que cultura seja pensada como algo parado. Lendas ou crenças. quanto se realiza de modo diverso em São Paulo. costumes ou tradições . Nesses casos. No entanto. uma coisa com começo. tanto se transformou do início do século para cá. o estudo de sociedades e culturas estranhas é também uma forma de. Como se tratam de sociedades com características que as diferenciam bastante. A discussão de cultura não tem. Assim. meio e fim.liberdade. quanto na preocupação em estudar sociedades diferentes. Nada do que é cultural pode ser estanque. que suas culturas se transformem para que as sociedades sobrevivam. o conteúdo do que é cultura. à história de sua sociedade. o carnaval brasileiro. Rio de Janeiro. eles apenas o dizem enquanto parte de uma cultura. por exemplo. Salvador ou Recife. Nesse processo. porque a cultura faz parte de uma realidade onde a mudança é um aspecto fundamental. Quero insistir na idéia de processo. É uma discussão que sempre ameaça extravasar para outras discussões e preocupações. Ao mesmo tempo. em favor da luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra. estático. é inevitável que incorporem novos conhecimentos para que possam melhor resistir. Apesar de se repetirem ao longo do tempo e em vários lugares. O fato de que as tradições de uma cultura possam ser identificáveis não quer dizer que não se transformem. Mas notem também que nem cultura é a mesma coisa lá e aqui. à cultura germânica. colocá-la sob controle. às vezes fala-se de uma cultura como se fosse um produto. a importância da cultura − tudo isso deve variar bastante. Elas podem ser marcas de resistência à sociedade que as quer subjugar. suas culturas mudam de conteúdo e de significado. a qual não pode ser entendida sem referência à realidade social de que faz parte. a dinâmica da cultura. à cultura francesa e tantas outras. Em ambos os casos. por exemplo. por comparação. o que se faz é extrair da 43 . em cultura das sociedades indígenas brasileiras. a partilhar de uma mesma história. Vejam o caso de eventos tradicionais. tanto na discussão sobre cultura.esses fenômenos não dizem nada por si mesmos. Nela se desenvolveram. em favor da superação da opressão e da desigualdade. É pelos olhos dessa civilização que a ciência vê o mundo e procura compreender a ela e a seus destinos. Apenas nesse sentido genérico de serem dimensão do processo social é que se pode falar igualmente em cultura. por exemplo. festas ou jogos. entender o que é mais de perto conhecido. os impulsos se localizam na civilização dominante. a mesma relevância nas sociedades tribais que tem nas sociedades de classe. nem seu significado é igual em ambos os casos. com características definidas e um ponto final. tomar suas terras. Por exemplo. Assim. da mesma maneira que o próprio estudo da sociedade tribal é mais relevante aqui do que lá. As preocupações contemporâneas com cultura estão muito relacionadas com a civilização ocidental. Notem que se pensarmos em cultura como dimensão do processo social podemos também falar em cultura numa sociedade primitiva. Facilmente encontramos referências à cultura grega. que por serem tradicionais podem convidar a serem vistos como imutáveis. discutir sobre cultura implica sempre discutir o processo social concreto. com seu crescimento se espalharam. não se pode dizer que esses eventos sejam sempre a mesma coisa. Assim. Sobram. Eles podem também servir para que se meça o desenvolvimento das sociedades humanas e suas direções. Ao mesmo tempo. Podem. no caso. resultado da separação de aspectos tratados como mais importantes na vida social. Esses modelos podem registrar desenvolvimentos particulares. extrai-se das atividades diretamente ligadas ao conhecimento no sentido amplo as áreas da ciência. Quase não preciso dizer que mesmo esses modelos mudam: não se entende o que é cultura grega hoje do mesmo modo que no século passado. que podem ser entendidos em relação ao processo social mais amplo. tornar ilustre a imagem de uma potência dominadora. Essa maneira de tratar a cultura é para nós. o teatro. por exemplo. por exemplo. bem claro. na ciência. as manifestações folclóricas em geral. E é claro que esses modelos não são a cultura como a estamos entendendo aqui. quero registrar mais uma para que o sentido em que vamos continuar falando de cultura fique. são eles mesmos elementos culturais. O que sobra é chamado de cultura. criadora. por exemplo. indicando. Cultura é com freqüência tratada como um resíduo. as quais são diferentes das que estamos desenvolvendo aqui. um dos sentidos da atuação dos órgãos públicos. inclusive a nossa própria. na arte. e iniciei esta parte mostrando várias delas. Essas construções podem servir a fins políticos. estilos. a pintura. das comunicações. ser maneiras de formação de um repertório universal de conhecimento humano. é comum que os interesses dominantes de uma sociedade veiculem uma definição para a cultura dessa sociedade que seja de seu agrado. Antes de concluir. ela mesma. uma dimensão fundamental das sociedades contemporâneas. da educação. É uma dimensão dinâmica. ela mesma em processo. é a grande diversificação interna. um conjunto de sobras. que trata de modo diferente a vários aspectos desta. um tema de estudo. o artesanato. que nós estamos aqui considerando como parte da cultura. a escultura. Elementos de uma história da humanidade gerados no processo de formação de uma civilização mundial. É como se fossem eliminados da preocupação com cultura todos os aspectos do conhecimento organizado tidos como mais relevantes para a lógica do sistema produtivo. A diferenciação 44 . e constrói-se com isso um modelo de cultura. às vezes a religião e os esportes. e ser também matéria de reflexão sobre a história. Que fique então claro que para nós a cultura é a dimensão da sociedade que inclui todo o conhecimento num sentido ampliado e todas as maneiras como esse conhecimento é expresso.experiência histórica de um povo produtos. a música. por exemplo. da tecnologia. na agricultura. revela um modo pelo qual se atua sobre a dimensão cultural. do sistema jurídico. enfim. épocas. formas. Há outras maneiras correntes de falar sobre cultura. A CULTURA EM NOSSA SOCIEDADE Uma das características de muitas das sociedades contemporâneas. Muitas vezes as políticas oficiais de cultura são especificamente voltadas para essas atividades. É preciso considerar que nem todos esses modelos se esgotam nesses fins. do sistema político. um sentido freqüentemente fracionador da dimensão cultural. desenvolvem-se políticas específicas. por contraste. como. já que para as outras áreas da vida social. Popular x erudito Comecemos por esta última indagação. cultura se transformou na descrição das formas de conhecimento 45 . no entanto. A realidade social enfrentada por trabalhadores rurais e suas famílias é diferente em muitos aspectos daquela enfrentada pelo operariado dos setores industriais de ponta. Poderemos nos indagar sobre as diferenciações que se notam segundo as afiliações e práticas religiosas. e há aqueles que constituem os trabalhadores dessas organizações. ou indagarmos sobre a cultura das classes sociais ou sobre a cultura popular. as quais são rotuladas de classes médias. contudo. Há diferenças de renda. pois não se pode dizer que as maneiras de viver sejam homogêneas nem dentro da classe trabalhadora nem dentro da classe proprietária. podemos nos preocupar em saber o que seria a cultura nacional. das mulheres de classe média.básica decorre do fato de que a população se posiciona de modos diferentes no processo de produção. dos católicos. de acesso às instituições públicas tais como escola. Basicamente há setores que são proprietários das fábricas. mais freqüentes do que outras e vamos centrar atenção nelas. bancos. mesmo porque teria de incluir as variações de cada um desses recortes no tempo. ou alimentares. por exemplo. fazendas. a diversificação acompanha a variedade de paisagens regionais do país. Será que cultura se resume em expressar esses pequenos mundos? Notem que logo se poderia querer falar. podem ser localizadas maneiras de ver o mundo que prevalecem mais em alguns do que em outros. as distinções entre as classes sociais nem sempre são tão nítidas na vida cotidiana como podem ser na definição acima. a qual é bem antiga na história das preocupações com cultura. Isso pode ser exemplificado pelo fato de que as grandes concentrações urbanas costumam registrar uma larga faixa de camadas sociais intermediárias. Ou quem sabe dos jovens bancários católicos. a partir de uma idéia de refinamento pessoal. na organização da vida familiar. Essas classes sociais têm formas de viver diferentes. na cultura dos jovens. basta que aproximemos o foco de nossa atenção do colorido da vida social concreta. Assim. A lista não teria fim. ou da vizinhança. Quando se fala sobre classe social é freqüentemente a respeito dessa diferenciação que se está fazendo referência. Se a cultura é dimensão do processo social. Algumas preocupações são. jovens e velhos. ou da amizade. Além do mais. Observem que os parágrafos acima podem ser ainda mais detalhados. Da mesma forma. de limites imprecisos e características variadas. ao estudarmos cultura no Brasil. enfrentam problemas diferentes na sua vida social. hospital. Nesses recortes da realidade social comum. centros de lazer. A diferenciação é. ou então dos comerciários. ou das mulheres de classe média na região Sul na década de 1960. ou então localizadas maneiras diferentes de se relacionar socialmente. de estilos de vida. mais complexa. É que. Poderemos então notar a diferenciação na vida social entre homens e mulheres. ou qual seria a importância dos meios de comunicação de massa na vida do país. crianças. dos bancários. Estou falando isso para que possamos iniciar uma reflexão sobre como tratar a dimensão cultural em nossa própria sociedade. A nossa questão é discutir o que tem tudo isso a ver com cultura. empresas em geral. a partir do exposto acima. ela deverá ser entendida de modo a poder dar conta dessas particularidades. ou segundo as práticas médicas. mesmo sendo suas contemporâneas. que mantêm as desigualdades básicas da sociedade em benefício da minoria da população. ao longo da história a cultura dominante desenvolveu um universo de legitimidade própria. por cultura popular as manifestações culturais dessas classes. As preocupações com cultura popular são tentativas de classificar as formas de pensamento e ação das populações mais pobres de uma sociedade. Nesse sentido. Assim. as academias. na formação de seu próprio universo de legitimidade. procurando entender a sua lógica interna.dominantes nos Estados nacionais que se formavam na Europa a partir do fim da Idade Média. essas instituições estão fora do controle das classes dominadas. por exemplo. sua expansão pode ser vista como uma expansão colonizadora. as ordens profissionais (de médicos. buscando o que há de específico nelas. sua cultura pode ser vista como tendo um conteúdo transformador. superado. Elas se desenvolvem a partir da polarização entre o erudito e o popular. 46 . e que aos poucos passou também a ser entendido como uma forma de cultura. então. atrasado. Esse aspecto das preocupações com a cultura nasce assim voltado para o conhecimento erudito ao qual só tinham acesso setores das classes dominantes desses países. o que se busca na cultura popular é seu caráter de resistência à dominação. expresso pela filosofia. e a cultura popular é pensada sempre em relação à cultura erudita. Por outro lado porque é o conhecimento dominante que decide o que é cultura popular. como a existência das classes dominadas denuncia as desigualdades sociais e a necessidade de superá-las. pode ser entendida como uma ampliação das formas de controle social. que existem independentemente delas. Aquela origem antiga dessas preocupações continua a influenciá-la. advogados. principalmente. que estão fora de suas instituições. participante de suas instituições dominantes. as implicações políticas que possam ter. ou seu caráter revolucionário em relação a esta. Devido à própria natureza da sociedade de classes em que vivemos. como a cultura erudita é desde sempre associada com as classes dominantes. Esse conhecimento erudito se contrapunha ao conhecimento havido pela maior parte da população. a qual transfere para a dimensão cultural a oposição entre os interesses das classes sociais na vida da sociedade. engenheiros e outras). É importante ressaltar que é a própria elite cultural da sociedade. muitas manifestações culturais são deixadas de fora. sua dinâmica e. através da expansão da rede de escolas e de atendimento médico. que desenvolve a concepção de cultura popular. um conhecimento que se supunha inferior. a ampliação de seus domínios como. pela ciência e pelo saber produzido e controlado em instituições da sociedade nacional. tais como a universidade. a cultura popular. Logo se nota que a polarização entre cultura popular e cultura erudita pode levar a conclusões complicadas. De fato. Da mesma forma. Entende-se. Por um lado porque. manifestações diferentes da cultura dominante. à alta cultura. a qual é de perto associada tanto no passado como no presente às classes dominantes. Há sempre uma preocupação de localizar marcas políticas quando se opera esse tipo de polarização entre as duas concepções de cultura. Vejamos como a cultura erudita e a cultura popular podem ser relacionadas nessas preocupações. Esta é assim duplamente produzida pelo conhecimento dominante. Isso tudo nos leva a pensar quão enganosa pode ser a polarização entre cultura popular e cultura erudita. das ciências físicas e biológicas. Assim. dominante. e como estamos entendendo a cultura como uma dimensão do processo social. para a música. Quando se procura estudar a cultura popular. não faria sentido taxar de eruditas as exigências das classes trabalhadoras de alfabetização e de educação universal e gratuita. é óbvio que a luta política tem manifestações culturais. ou como festas populares podem ser momentos de manifestação da repulsa dos oprimidos contra os opressores. Criam-se assim modelos de religião. literatura. como começar a discutir o que possa ser medicina popular? Vocês sabem por sua própria experiência de vida que há uma vasta gama de práticas e concepções de curas no país. Assim. objetivos ainda longe de serem adequadamente alcançados em países como o nosso. com as relações entre pessoas de sexo e idade diferentes ou de posições familiares diferentes. não são homogêneas nas classes oprimidas. seus limites se perdem na complexidade da vida social. por exemplo. para a literatura. de esboçar com clareza. e apenas algumas delas têm o beneplácito da aprovação oficial. Pode-se a partir daí considerar como as religiões populares podem servir aos propósitos de defender os interesses das classes oprimidas. Será que tudo que sobra é medicina popular? Essas práticas e concepções são difíceis de caracterizar. Na maior parte dos casos estão ausentes instituições e núcleos de sistematização. De fato. tende a se generalizar. fundamentalmente. a cultura popular tem de ser encarada não como uma criação das instituições dominantes. com modos de interpretar a comida. Ela cria problemas falsos. que se tente localizar na cultura o popular mais puro. no entanto. para a religião. que contenha ele sim o caráter revolucionário do saber popular em seu estado mais absoluto. ainda que se opondo a elas. Entre outros motivos porque elas não dizem respeito só à cura. da matemática. Outro problema é que é muito difícil numa sociedade como a nossa estudar manifestações culturais que não estejam relacionadas às poderosas instituições dominantes e suas concepções.Para ser pensada assim. E. medicinas populares. uma realidade que não depende de formas externas. Isso vale para a medicina. O que devemos reter dessas discussões é o quanto as concepções de cultura e o próprio conteúdo da cultura estiveram sempre associados às relações entre as classes sociais: a oposição entre cultura erudita e cultura popular é um produto dessas relações. outrora restrito a setores das classes dominantes. o domínio da escrita e da leitura. e se esvazia em 47 . O poder transformador da luta dos oprimidos contra os opressores é um fundamento das ciências sociais contemporâneas. deixando de ser um privilégio e não podendo mais ser considerado erudito. antes privilégio indiscutível de pequenas elites. a primeira dificuldade é a de como tratá-la. Parecem. Essa constatação pode levar a que nessas preocupações de que estamos falando se busque o mais popular do popular. tênues os argumentos a favor desse tipo de ênfase na cultura popular e seu poder revolucionário. O mesmo se pode dizer a respeito do conhecimento da história. ou à explicação da doença e seu curso: estão associadas com práticas religiosas. mas como um universo de saber em si mesmo constituído. Vale a pena pensar mais um pouco sobre essa questão. Notem que essa oposição permanece mesmo mudando o conteúdo do que pode ser considerado erudito ou popular. A única maneira de tratá-las é a partir de classificações que fazem sentido na cultura. um popular intocado e definitivamente original. e introduzidos pelas elites. A produção cultural. Apesar de sua origem. e a justiça . do qual não detêm o controle. são populares? E o carnaval? E o futebol? E o sistema escolar. O popular na cultura Deixando assim para trás essas preocupações polarizadoras. Ela se sustenta em bases frágeis. Pode-se dizer que as questões acima dizem respeito a dimensões de nossa vida social que têm origens históricas diferentes. Raciocínios parecidos poderiam ser feitos em relação ao espiritismo e à homeopatia. Surgem associadas ao processo político e representam projetos para as classes dominadas que partem das classes dominantes. As confusões que esse tipo de polarização podem provocar nos convidam a considerar a cultura nos processos sociais comuns desta sociedade de tantas contradições e conflitos de interesse. Mas é claro que nem o carnaval nem os cultos afro-brasileiros podem ser entendidos exclusivamente da ótica dessa origem que se pode chamar de popular. seja na sua organização. As classes dominadas existem em relação com as classes dominantes. Este sim é o cerne da questão da cultura em nossa sociedade. Desfaz-se assim a idéia frágil de que uma parcela tão fundamental da sociedade possa ser vista como uma realidade isolada no plano cultural. não sei bem como se poderia insistir em que o futebol não é popular no Brasil. se a origem do que existe na cultura fosse tão determinante. por exemplo. hospitalar e jurídico. Afinal é obviamente como parte do processo histórico da sociedade como um todo que ambos encontram condições de generalização. pois as preocupações com a cultura popular são preocupações da cultura dominante e suas elites. seja na sua prática. Transformam-se com o país e deixam de ser exclusivamente associados a uma parte da população. Nesse sentido pode-se estabelecer um contraste com. Consolidamse com o crescimento das cidades do país. partilham um processo social comum. com marcas muito fortes das origens africanas dessas populações. é o resultado dessa existência comum. o que mina na base aquela polarização. uma questão permanece: o que é ou pode ser considerado popular na cultura? Os cultos afro-brasileiros. embora seus benefícios e seu controle se repartam desigualmente. como é o caso de São Paulo e Rio de Janeiro.o que disso tudo é popular? Vemos pelo simples anunciado das questões que a indagação sobre o que é popular na cultura deve ser considerada com cuidado. introduzidos no século passado entre setores das classes dominantes e provenientes da França. De fato. Assim. e nos dá indicações de como a população oprimida emerge na cultura com expressões fortes. será notado que o carnaval e os cultos afro-brasileiros desenvolveram-se a partir de tradições das populações trabalhadoras. tanto em sua organização interna quanto em suas concepções. é um produto dessa história coletiva. Esse tipo de constatação é importante na medida em que nos leve a considerar as relações entre nossa cultura e nossa história. o futebol de origem inglesa e introduzido no Brasil por setores de elite no começo deste século não teria jamais conseguido a generalização que tem. o sistema escolar. toda a produção cultural. como a umbanda e o candomblé. encontram forte expressão nos centros políticos e econômicos mais importantes. generalizadas e reconhecidas. próprias. estes de origem européia.confronto com a realidade social. 48 . hospitalar. à qual a expressão faz menção. mas nem sempre é esse o caso. Pode-se assim discutir o que seja cultura de classe. em cultura popular ou cultura de classe pode ter implicações diferentes. processos que exigem sempre que se refira à sociedade como um todo. teríamos de separar do popular os setores operários que através de suas lutas. as características sociais básicas da sociedade. nós estaríamos enfatizando. Assim. De modo que para resgatar essas preocupações com cultura popular será necessário relacioná-las sempre com os processos sociais que são próprios às populações às quais se referem. nós poderíamos considerar que essas populações têm algumas características básicas derivadas de sua posição comum de inferioridade nas relações de poder na sociedade. E se a educação. que nem todo recorte da vida social tem o mesmo significado para a análise cultural. É comum que cultura popular diga respeito a esta última parcela da população. Observem que uma insistência em opor popular e erudito acabaria por operar às avessas: ao invés de nos preocuparmos com a realidade cultural de um setor da população. isso sim. procurar localizar características da cultura operária. Retomemos agora aquelas questões com as quais iniciei esta parte. conseguiram acesso à escolarização.Da mesma forma. Notem que isso é bem diferente de inventar uma cultura popular oposta a uma cultura erudita. Falar. nós poderíamos procurar entender quais são as expressões culturais dos processos sociais vividos pelas classes dominadas. buscando sua manifestação nos processos culturais comuns. Em certo sentido. como as citadas anteriormente. tornando-se um legado de toda a população. para indagarmos a respeito de qual é exatamente o recorte da vida social ao qual cultura popular se refere. é ainda mais difícil de definir do que classe social de que falamos no início. Ao falarmos então do popular na cultura nós tentaríamos ver em que medida essas características se manifestam culturalmente. como toda a população trabalhadora. em outro. A categoria povo. São populações bem diversas. a justiça não atendem aos interesses de toda a população. como se vê. por exemplo. incluindo-se nela os pequenos proprietários rurais ou urbanos. Pode revelar preocupações que não são as mesmas. Nós não estaríamos esperando encontrar formas de conhecimento e instituições necessariamente separadas de acordo com as classes sociais. só tem algum sentido falar em popular na cultura para marcar tudo que tenha a ver com o crescimento e fortalecimento das classes dominadas. à saúde pública. Isso produziria apenas confusão. povo pode ser entendido como sendo toda a população de um país. indicar visões diversas da sociedade e da vida política. Para tentar reter o que é popular na cultura. ver enfim como a opressão e a luta para superá-la marcam a esfera cultural. quando falei sobre as relações entre aspectos da vida social e a cultura. Julgo que essa atitude básica deva ser mantida quando se pensar em cultura em relação a outros recortes da vida social. nunca entendimento da vida social. Ao contrário. mas às desigualdades sociais que mercam a nossa sociedade. 49 . isso não se deve à sua origem. Mesmo com toda a falta de homogeneidade de que já falei. como a população mais pobre. definiríamos o setor da população de acordo com a realidade cultural. É preciso assinalar. ainda. as instituições dominantes de origem européia. porém. a saúde. à habitação etc. em outro. transformaram-se com o processo de transformação do país. levando aquela polarização ao limite. 50 . Elas também têm sua dinâmica própria. capazes de transmitir mensagens com rapidez para grandes quantidades de pessoas. não é um espelho amorfo. definitivo. como já disse. A cultura mantém relações complicadas com a sociedade de que faz parte. Tenho insistido em que ao pensar em cultura é preciso considerar os processos sociais que dizem respeito à sociedade como um todo. O que se pode fazer ao falar em cultura de uma classe social é procurar localizar os núcleos mais importantes de sua existência social. Mas essa é sempre uma preocupação limitada. É preciso ressaltar que nem sempre as preocupações com cultura popular ou cultura de classe têm exatamente essas implicações políticas e de visão da sociedade. que seja característico dela. as relações que definem essa existência. As manifestações culturais não podem ser totalmente reduzidas às relações sociais de que são produto. consumir e se conformar com seus destinos e sonhos. Na dimensão cultural é sempre possível antever e propor alterações nas condições de existência da sociedade. demonstram grande variação interna. procurando a expressão cultural deles. entender como se realiza a desigualdade social. falar em cultura de classe tem dificuldades em comum com o estudo da cultura popular. que seja homogêneo para toda uma classe social. pois só assim se poderá esclarecer os significados das várias particularizações de cultura. quanto porque está ligada à transformação destas. a cultura não é um mero reflexo dos outros aspectos da sociedade. fazê-las produzir.Assim. onde as instituições dominantes têm de prover e até mesmo criar as necessidades de multidões e de seus participantes anônimos. As próprias classes sociais. têm contornos imprecisos na prática. Assim. falar em cultura popular pode implicar uma ênfase no modo de ser e sentir que seja típico de uma população. devemos ficar atentos para o fato de que o modo como se pensa a cultura de uma sociedade está sempre ligado a outras preocupações e às maneiras como se julga poder agir sobre ela. também é fato que mantém com estas relações fundamentais. Apesar das diferenças que pode haver entre as duas preocupações. como se dá o exercício do poder na sociedade. Uma sociedade assim exige mecanismos culturais adequados. A mensagem política pode ser aí a da transformação dessas relações sociais. que seja mesmo um patrimônio seu. Ela é produto dessa sociedade. tanto porque está ligada à manutenção de concepções e de formas de organização e de vida. A questão é entender a dimensão cultural da sociedade de classes como um todo. De qualquer modo. mas também ajuda a produzi-la. É difícil elaborar um rol de suas características que seja acabado. Mas se a cultura não está presa a uma camisa-de-força das outras dimensões da sociedade. da mesma forma que desenvolvem mecanismos eficazes para controlar essas massas humanas. A questão principal aqui é saber como as características centrais da sociedade como um todo podem ser detectadas no plano cultural. A comunicação de massa No caso das modernas sociedades industrializadas é comum que elas sejam consideradas como sociedades de massa. A cultura é criativa. pode implicar a consideração da relação das classes sociais entre si. A mensagem política pode ser a de preservar e valorizar esse patrimônio. A discussão sobre cultura de classe pode ter uma ênfase diferente. Há também que considerar que as populações a que esses meios de comunicação se dirigem estão expostas a dificuldades sociais concretas e às tensões da vida cotidiana. esses meios de comunicação de massa fazem parte da paisagem social moderna. de amar. Do mesmo modo. a imprensa e o cinema. Assim. Tais instrumentos seriam. a indústria cultural é ela mesma uma esfera de atividade econômica. recrutamento de mão-de-obra especializada. Não há dúvida de que a indústria da cultura. Por todas essas razões. não parece que sejam capazes de produzir uma massificação tão eficaz a ponto de substituir totalmente a percepção que seus consumidores têm de suas relações sociais e de suas vidas. ultrapassando barreiras de classe social e facilitando. na participação política. nem a lógica do funcionamento da indústria cultural é necessariamente uma descrição da dimensão cultural da sociedade. Mas por mais homogêneo que fosse seu conteúdo. esses meios de comunicação são elementos fundamentais da própria organização social. propõem estilos de vida. É certo que os meios de comunicação também trabalham sobre essas esferas e procuram dar-lhes explicações e soluções. produção de bens e serviços. a começar do fato de que nela mesma os conflitos entre proprietários e empregados são comuns. é um elemento muito importante dessas sociedades modernas. maneiras de falar e de escrever. Eles também difundem maneiras de se comportar. niveladora. anda acompanhado de uma comunicação rápida e generalizada. Tais meios de comunicação não só transmitem informações. nas atividades religiosas. o rádio. desenvolvimento de novas técnicas. a indústria cultural. não só apregoam mensagens. no lazer. Parecem dirigir-se a cada indivíduo particularmente. No entanto. de lutar. A própria indústria cultural não é imune às contradições da vida social. a cultura na sociedade contemporânea não se reduz ao conteúdo dos meios de comunicação de massa. O ritmo acelerado de produção e consumo. essas sociedades continuam fortemente diferenciadas 51 . uma marca indiscutível da civilização mundial que se forma. no meio urbano ou rural. a televisão. As mensagens e informações circulam com velocidade compatível com a dos produtos materiais dessas sociedades. principalmente nos períodos de expansão das economias desses países. Eles penetram em todas as esferas da vida social. de arrumar a casa. é o amaciamento dos conflitos sociais. Na sua produção há muita padronização de formas e controle do conteúdo do que é transmitido. Essa cultura homogeneizadora. na educação. A lógica de sua maneira de funcionar é a homogeneização da sociedade. de sonhar. por essas razões. ainda que muito forte. o controle das massas. Ela seria uma característica vital deste século. São meios de comunicação poderosos. com todo suposto poder de homogeneização que têm os meios de comunicação de massa. não é absoluto.Costuma-se considerar que ela exige uma cultura capaz de homogeneizar a vida e a visão de mundo das diversificadas populações que formam essas sociedades. de se vestir. Além do mais. e estão sem dúvida associados ao exercício do poder e à ordenação da vida coletiva. o controle sobre as mensagens transmitidas. com inversões de capital. na vida profissional. embora suas mensagens sejam comuns a todos e procurem gerar necessidades e expectativas massificadas. de pensar. Examinemos um pouco essas questões. teria o núcleo de sua existência num setor específico de atividade. modos de organizar a vida cotidiana. Da mesma forma. principalmente. centrada nesses meios de comunicação de massa. de sofrer. ambas são áreas de preocupação que estiveram associadas de perto em seu desenvolvimento. as 52 . a Rússia. a transformação da sociedade exige sempre que o potencial tanto da cultura quanto da nação seja considerado. A cultura nacional é. Cultura e nação são dimensões de referência necessárias para se entender o mundo contemporâneo. já falamos disso exemplificando com a Alemanha. As mensagens da indústria cultural. Como as nações são unidades políticas da história contemporânea e como temos entendido aqui a cultura como uma dimensão do processo social. e suas histórias recentes são marcadas por conflitos de interesses entre classes e grupos sociais diversos. que as possa ignorar. Cultura nacional Se considerarmos cultura em relação à sociedade como um todo. estudando apenas as mensagens que esses meios de comunicação expressam. Assim. com propósitos de homogeneização e controle das populações. os países das Américas. podemos tranqüilamente pensar em cultura nacional. podem fazer parte de um projeto dos interesses dominantes da sociedade. mas não se pode dizer que prescinda delas. em seus modos de agir. sem levar em consideração a ambas. Mesmo assim. Do mesmo modo não se pode compreender as tendências constatáveis na atualidade de fortalecimento de vínculos internacionais e de formação de uma civilização mundial.internamente. conseqüência das formas como a nação se produziu. É uma realidade histórica. portanto. Sua presença produz conseqüências objetivas nas visões de mundo das várias camadas da população. a maneira como as nações modernas são concebidas é indissociável de preocupações com suas características culturais. códigos de ação. essas sociedades industriais têm mudado. já que ambas lhe fornecem arenas institucionais. projetos de desenvolvimento. apesar do suposto monolitismo e da suposta eficácia totalitária da cultura que produz para as massas. mas não são a cultura dessa sociedade. o modo como se dá o processo histórico garante que a cultura nacional assim descrita não seja uma invenção. Antes. dessa maneira. cultura é um conteúdo do que se entende por nação. e acreditando que a cultura da sociedade contemporânea está sintetizada naquilo que esses meios dizem. Nesse sentido. Mas para entendermos adequadamente a sua importância é preciso considerar os meios de comunicação de massa como elementos da vida social. elementos que não são absolutos. Mas a relação entre ambas é mais ampla do que isso. Podemos observar com firmeza que o confronto entre as classes sociais transforma tanto a cultura quanto a nação. os costumes. resultado de processos seculares de trabalho e produção de lutas sociais. resultado e aspecto de um processo histórico particular. Ela é. Se não fizermos isso. em que medida podemos falar de cultura nacional? Já vimos que entre cultura e nação há relações antigas. em seus planos de vida. mas que se realizam em contextos sociais mais amplos. como uma dimensão da sociedade e de sua história. Observem que mesmo o confronto entre as classes sociais e seus interesses tem a cultura e a nação como marcos e panos de fundo inevitáveis. não há dúvida de que essa cultura voltada para as massas é um elemento importante da discussão a respeito de cultura na sociedade moderna. mais do que a língua. corremos o risco de nos enganarmos. também sofrem alterações constantes. importante nos processos internos dessa sociedade. havendo então certa disputa sobre o grau de importância de europeus. não é assim que as coisas se passam: ao se falar em cultura brasileira. Notem que nem por isso as populaç5es indígenas existentes conseguiram garantir a posse de suas terras. Essa discussão implica sempre como se entende os destinos de uma sociedade. mas que tem mecanismos próprios de equilíbrio. pois. É claro que isto está ligado a uma maneira de ver a sociedade enfatizando suas elites. A discussão sobre cultura nacional tem sido um terreno fértil para a legitimação das 53 . Por razões diferentes as elites brasileiras deram muito valor no passado à herança indígena de nossa cultura: isso se deu acompanhando a consolidação da independência do país do domínio colonial europeu. e isso sugere que é sempre possível acomodar os interesses mais díspares e contraditórios. mas implicam sim o reconhecimento de uma ordem de poder. sempre valorativas. para delinear suas características. entender a cultura nacional como a cultura comum de uma sociedade nacional. Supostamente os brasileiros driblam as regras e exigências dos poderosos dando um jeitinho. Vejam. Esses dois exemplos que dei podem assim vir acompanhados de uma visão conservadora da sociedade. o que faz parte da cultura comum? Pode-se argumentar que se cultura é dimensão do processo social. uma dimensão dinâmica e viva. estão sempre ligadas a uma maneira de encarar a sociedade. assim. É uma aceitação de que tanto as posições nessa ordem quanto a própria ordem não estão. valorizam de modo diferente aspectos da dimensão cultural. sujeitas a transformação. e alguém poderia concluir que por serem capazes de burlar as relações de poder não estão muito preocupados em modificá-las. para definir os aspectos que a fazem única. há uma disputa para saber quais manifestações dessa dimensão cultural devem ser consideradas como fazendo parte dela. Há ainda toda uma tradição de falar no espírito conciliatório do brasileiro. desigual. apesar de sua presença maciça na população durante séculos. É hoje em dia comum que ao se falar em cultura brasileira se faça referência a certos comportamentos. então.tradições de um povo. portanto. a pergunta não se justifica muito: todas as manifestações dessa dimensão fazem parte da cultura comum. Essa visão de brasilidade descreve assim uma realidade estática. e esteve ligado à busca de diferenciação em relação às sociedades européias. Pode-se. os quais de resto são também dinâmicos. No passado foi muito comum atribuir valores diferentes às contribuições dos grupos humanos que constituíram a população brasileira. indígenas e africanos na formação da cultura brasileira. por exemplo. ao menos provisoriamente. e sua ênfase pode: levar a ignorar as lutas sociais em prol de uma vida melhor para a população. As definições sobre o que venha a ser a cultura brasileira são. importante para entender as relações internacionais. Mas. No entanto um aspecto foi comum: a tendência a minimizar a importância das populações de origem africana. Notem que para todas essas definições de brasilidade se pode encontrar exemplos. de uma hierarquia entre eles. Isso porque não faz sentido discutir sobre cultura sem explicitar a visão que se tem da sociedade e as opiniões que se tem sobre seu futuro. No entanto. os quais sempre dizem respeito a situações envolvendo desigualdade social ou política. que há problemas para saber qual o conteúdo de uma cultura nacional. Mas não há por que obscurecer o fato de que as práticas conciliatórias não querem dizer conversas entre pares. e que derivam da história de cada sociedade particular. É dessas disputas que fazem parte os modos diferentes de entender a cultura comum. dos setores em que a capacidade e a necessidade de investigação mais se desenvolveram. nas universidades e centros de pesquisa. formas. das instituições existentes e de sua dinâmica. formando uma teia que condiciona seu próprio desenvolvimento. As disputas no interior de uma sociedade a respeito das alternativas para sua existência tanto se expressam na dimensão cultural como se beneficiam de sua riqueza. matéria de produção. de decisões tomadas no passado. há sempre uma seleção ou rejeição de elementos de dentro da experiência histórica acumulada. Essas instituições são controladas pelas classes dominantes da sociedade. pensar que a cultura comum seja um conjunto delimitado de características consagradas. suas concepções. pois a delimitação desses conjuntos e a sua própria consagração fazem parte de movimentos contemporâneos. Assim. pois. Isso é muito importante nessas sociedades e temos de considerá-la ao pensarmos em sua cultura. a ciência e a tecnologia em particular são objeto de trabalho. É enganoso. Poderosas instituições consolidam essa dissociação. Há aspectos importantes. Ele é uma das bases da continuidade e da transformação de uma sociedade. Seja como for. Assim. Estão sempre ligados ao confronto de interesses em curso. Voltemos a eles. Apenas para dar um exemplo bem diferente daquele plano de relacionamento: o espiritismo e o espiritualismo têm uma presença bem marcada na vida cultural do Brasil. produtos. Ao pensarmos sobre cultura. Notem que nesse sentido o controle do conhecimento é relevante não só para pensarmos as relações entre as classes sociais no interior da sociedade. É importante ressaltar que a ciência e a tecnologia são aspectos da cultura por causa do impacto direto que têm nos destinos das sociedades atuais. posto que há uma concentração de desenvolvimento científico e tecnológico nas nações mais poderosas. O seu controle é um dos aspectos das relações de poder contemporâneas. Discutir sobre a cultura comum pode. diferentemente de outros 54 . O conhecimento acumulado e suas manifestações são produtos históricos da vida de uma sociedade e de suas relações com outras sociedades. as maneiras como seus setores. podemos estabelecer entre ela e a sociedade vários planos de relacionamentos. Assim. Da mesma forma é enganoso pensar que a história da sociedade seja irrelevante para entender a sua cultura. como vimos ao longo desta parte. das relações entre a cultura e a sociedade no Brasil que são comuns a outros países semelhantes. por exemplo. por exemplo. É que o legado cultural comum é um bem do qual diferentes tendências dentro da sociedade procuram se apropriar. o conhecimento em geral. instituições se relacionam. da mesma forma. podemos notar que nas sociedades de classe se opera uma dissociação entre a produção material e o conhecimento. É a história de cada sociedade que pode explicar as particularidades de cada cultura. técnicas. que são transformados em esferas de atuação separadas dentro da sociedade. ser uma maneira de tentar alterá-la.relações de poder na sociedade. as maneiras como a ciência e a tecnologia existem no país são também resultado de outros fatores além dos mencionados acima. A tendência a pensar na cultura como algo meio separado do processo produtivo leva a ignorar essa questão importante. de mudar seu desenvolvimento. mas também para pensarmos as próprias relações internacionais. Entre a cultura e a sociedade há também planos de relacionamento mais específicos. resultado de um século de existência no país. Podemos indagar sobre as tendências dessa dimensão cultural e discutir as propostas para seu desenvolvimento ou transformação. Desenvolveram sistemas adequados de divulgação de suas idéias e formação em suas doutrinas. Além disso. como cada uma de suas áreas e manifestações se desenvolve. CULTURA E RELAÇÕES DE PODER Podemos entender cultura como uma dimensão do processo social e utilizá-la como um instrumento para compreender as sociedades contemporâneas. mas também com os sistemas públicos de educação. à experiência histórica. as concepções nela presentes. É sempre necessário fazermos referência aos processos sociais mais amplos ao discutirmos questões culturais. Notem bem: o estudo da cultura não se reduz a isso. categorias de pessoas.países. Saber e poder 55 . como dimensão do processo social. Competiram com o catolicismo e as religiões afro-brasileiras no plano religioso. a cultura é um produto da história coletiva por cuja transformação e por cujos benefícios as forças sociais se defrontam. A discussão de cultura sempre remete ao processo. Expressaram uma mensagem de progresso lento e inevitável de larga aceitação pelas camadas sociais que se formaram no panorama urbano brasileiro no último século. ao mesmo tempo a expressa e a modifica. é claro. e que a opressão política. de atendimento à doença. como. Isso não quer dizer que não possamos estudá-la. se a cultura comum é usada para fortalecer os interesses das classes dominantes. Eu mesmo iniciei esta parte mostrando que a diversidade da vida social poderia sugerir uma multiplicidade de manifestações da cultura. a questão merece que pensemos um pouco mais sobre ela. Há outras maneiras de estudar a cultura. a cultura registra as tendências e conflitos da história contemporânea e suas transformações sociais e políticas. por exemplo. outros recortes a fazer. de grupos. ela deve ser por isso jogada fora. O que interessa é que a sociedade se democratize. Nesse período. Não há sentido em ver a cultura como um sistema fechado. tem sua dinâmica. mas esta é uma realidade que sempre se impõe. editoriais e outras. indagar quais os processos próprios dessa dimensão cultural. A cultura é um aspecto de nossa realidade e sua transformação. por exemplo. Para entender o seu crescimento no país tudo isso precisa ser levado em consideração. quais as instituições a ela ligadas mais de perto. as mensagens políticas que contêm. Assim é porque as próprias preocupações com cultura nasceram associadas às relações de poder. O que não podemos fazer é discutir sobre cultura ignorando as relações de poder dentro de uma sociedade ou entre sociedades. econômica e cultural seja eliminada. Nunca é demais ressaltar que nenhum grupo no interior de uma sociedade tem uma cultura autônoma ou isolada. Por tudo isso. de caridade. por exemplo. A cultura em nossa sociedade não é imune às relações de dominação que a caracterizam. outras ênfases a dar. Mas é ingênuo pensar que. de ensino. aos menores abandonados. Podemos. desenvolveram uma rede de instituições religiosas. E também porque. Note que o conhecimento não é só o conteúdo básico das concepções da cultura.O que quer dizer que as preocupações com cultura desenvolveram-se associadas às relações de poder? Lembrem-se que elas se consolidaram junto com o processo de formação de nações modernas dominadas por uma classe social. por exemplo. Expressam seus conflitos e interesses. consolidaram-se integrando a nova ciência do mundo contemporâneo. procuram defini-la. o controle do conhecimento e seus benefícios por uma pequena elite. pois se encararmos o que ocorre na dimensão cultural como relativo a cada cultura ou a cada pequeno contexto cultural. agir sobre seu desenvolvimento. então não haverá como emitirmos juízos de valor sobre o que ocorre na história: também a opressão. Como vocês podem ver. o analfabetismo. capaz de explicar a vida da sociedade e o comportamento de seus membros: se a cultura não mudasse não haveria o que fazer senão aceitar como naturais as suas características. fazem parte da própria organização social. da mesma forma. que rompia com o domínio da interpretação religiosa. entendê-la. Continuam associadas com as formas de dominação na sociedade. e continuam sendo instrumentos de conhecimento ligados ao progresso social. as quais se desenvolveram claramente associadas com relações de poder. controlá-la. As preocupações com cultura surgiram assim associadas tanto ao progresso da sociedade e do conhecimento quanto a novas formas de dominação. a cultura é uma esfera de atuação econômica. respondem a necessidades de conhecimento da sociedade. transformando a sociedade e a vida em esferas que podiam ser sistematicamente estudadas para que se pudesse agir sobre elas. Isso é particularmente importante quando se considera as mazelas culturais de um povo como o nosso. Por outro lado. Assim. Hoje em dia os centros de poder da sociedade se preocupam com a cultura. Nesse sentido podemos constatar como os interesses dominantes da sociedade podem ser beneficiados por tratamentos equivocados da cultura. a cultura pode ser tratada como uma realidade estanque. como. de características acabadas. a pobreza do serviço público de educação e de formação intelectual das novas gerações. junto ainda com uma marcada expansão de mercados das principais potências européias. acompanhando o desenvolvimento industrial do século passado. É uma característica dos movimentos sociais contemporâneos a exigência de que esse setor da vida social seja expandido e democratizado. Cultura e equívoco Com tudo isso. com empresas diretamente voltadas para ela. as preocupações com a cultura mantêm sua proximidade com as relações de poder. não é surpresa constatar que o modo de conduzir a discussão sobre cultura possa ser entendido pela associação que tenha com essas relações de poder. Da mesma forma. também o sofrimento das populações oprimidas serão vistos como relativos. e nelas os interesses dominantes da sociedade manifestam sua força. as preocupações com a cultura são institucionalizadas. e estariam justificadas assim as suas relações de poder. Vimos como o relativismo pode servir para encobrir aspectos mais candentes da organização social e da relação entre povos e nações. as próprias preocupações com cultura são instrumentos de conhecimento. Há instituições públicas encarregadas disso. Vimos como a discussão sobre cultura pode conduzir a falsas polarizações. como no caso da oposição entre erudito e 56 . É importante insistir. 57 . e contra as desigualdades básicas das relações sociais no interior das sociedades. e nem sempre nos temas e preocupações que essas maneiras revelam. Cultura e mudança social A cultura é uma produção coletiva. cultura é o legado comum de toda a humanidade. ou a uma idéia de onipotência dos interesses dominantes. apropriação. São lutas pela transformação da cultura. podemos reter da comparação entre culturas e realidades culturais diversas. O que nesse aspecto ocorre no interior das sociedades contemporâneas ocorre também na relação entre as sociedades. A relação a seguir destina-se àqueles que estão se iniciando nessas preocupações. assim. a compreensão de que suas características não são absolutas. Assim. os temas com que iniciamos este trabalho. Eles incluem maneiras diferentes de tratar os temas da cultura. como pode ser o caso com a maneira de encarar a indústria cultural ou as instituições públicas diretamente ligadas à cultura. mas nas sociedades de classe seu controle e benefícios não pertencem a todos. Da mesma maneira vimos que as preocupações com a cultura popular podem ser resgatadas se evitarmos a polarização com o erudito e ressaltarmos as relações entre as classes sociais. afirmando que num sentido mais amplo e também mais fundamental. como ocorre em discussões sobre a cultura nacional. pois podemos concluí-lo. Elas se dão no contexto das muitas sociedades existentes. desigualdades no plano cultural. no entanto. E como conseqüência disso. É por isso que as lutas pela universalização dos benefícios da cultura são ao mesmo tempo lutas contra as relações de dominação entre as sociedades contemporâneas. Também os aspectos da história comum de um povo podem ser selecionados e valorizados. e vocês poderão constatar que nem sempre expressam opiniões coincidentes com as apresentadas aqui. e que os meios de comunicação de massa e as instituições públicas de cultura são elementos importantes da cultura contemporânea. de tal modo que a apropriação dessa produção comum se faz em benefício dos interesses que dominam o processo social. as quais estão cada vez mais interligadas pelos processos históricos que vivenciamos. Quanto à cultura nacional. não há por que deixar que dela se apropriem as forças conservadoras da sociedade. INDICAÇÕES PARA LEITURA São inúmeros os textos que tratam de temas abordados neste trabalho. Retomamos. em que o equívoco está na maneira de tratar a cultura. Isso se deve ao fato de que as relações entre os membros dessas sociedades são marcadas por desigualdades profundas. de modo a ressaltar interesses estabelecidos. a própria cultura acaba por apresentar poderosas marcas de desigualdade. mas sim que são históricas e sujeitas a transformação. É bom que seja dessa forma. É uma relação pequena. Há aí controle.popular. e procurei indicar trabalhos que me parecem de fácil acesso. não respondem a exigências naturais. Teoria do Brasil. São textos no geral claros e de fácil leitura. de Antônio Augusto Arantes Neto. O que é ideologia. Carnavais. Contém uma sessão de discussão teórica das concepções de cultura nacional. de Marilena Chauí. Sugiro também: Antropologia Estrutural II. Malandros e Heróis. seu povo e cultura. O Caráter Nacional Brasileiro. procurando desvendar seus conteúdos ideológicos. e outra. A compreensão do texto pode ser dificultada se o leitor não tiver familiaridade com a linguagem sociológica. Editora Ática. reunindo escritos de épocas diferentes. de Peter Fry. Os Brasileiros: 1. Coletânea de textos do pensador e político peruano agrupados em 4 sessões: ideologia. de CIaude Lévi-Strauss. Zahar Editores. partindo de uma comparação com as paradas e as procissões. preocupados com identidade e política. Cortez e Moraes Editores. de Darcy Ribeiro. A Cultura do Povo. podemos destacar os seguintes: O que é cultura popular. Difusão Européia do Livro. de Florestan Fernandes. centrando nas relações entre as desigualdades raciais e sociais do país. Zahar Editores. de Roberto da Matta. O Negro no Mundo dos Brancos. cultura de classes e suas relações. arte e educação. Para Inglês Ver. Situa o Brasil em relação aos países das Américas e discute suas estruturas sociais e de poder. organizado por Manoel Bellotto e Anna Maria Correa. Editora Tempo Brasileiro. e focalizados 58 . Editora Vozes. Interpretação abrangente da formação do país. Coletânea de ensaios abordando temas da cultura brasileira. política internacional. Escrito para a UNESCO e destinado a um público geral. Editora Pioneira. Contém textos de vários autores sobre as questões da cultura popular. política americana. Coletânea de trabalhos do antropólogo francês.Dentre os incluídos na Coleção Primeiros Passos. organizado por Edênio Vale e José Queiroz. As dificuldades que o texto pode oferecer aos que se iniciam nessas reflexões são superáveis através de uma leitura dedicada. onde o estudo dos carnavais ocupa posição de relevo. Os textos têm graus variados de complexidade. de Dante Moreira Leite. São também analisados dois heróis da cultura a partir de fontes literárias. Análise aprofundada da formação da sociedade brasileira. da qual destaco o texto intitulado "Raça e História". Mariátegui. Interpretação do Brasil a partir de uma análise de sua cultura. de leitura mais acessível. discute as diferenças entre as culturas humanas e as maneiras de ordená-las. onde desenvolve uma análise sistemática das concepções sobre o Brasil e o caráter nacional brasileiro desde o século XVI. Dirigido ao público universitário. Dirigido a um público amplo. para Malinowski. rituais exóticos e “costumes irracionais”. Em outras palavras. qual seja: como uma vivência longa e profunda com outros modos de vida. do tipo realizado pelo psicólogo experimental na sua prática. Enquanto o cientista natural poderia repetir seu experimento. ao fazer com que a Antropologia deixasse de colecionar e classificar curiosidades ordenadas historicamente. portanto. Tal postura conseguiu arrancar o pesquisador de sua confortável poltrona fixa numa biblioteca em qualquer ponto da Europa Ocidental.em aspectos da influência africana no Brasil. ainda que contenham vocabulário específico ao meio acadêmico. portanto. com outros valores e com outros sistemas de relações sociais. tendo. conforme chamou nossa atenção tantas vezes Radcliffe-Brown. no limiar do século XX. conforme disse Malinowski. Tal mudança de atitude. isso não poderia ocorrer. já que o antropólogo social seria o último a buscar sua alteração como um teste para suas teorizações. teria que ser feito pela comparação de uma sociedade com outra e também pela convivência com o mundo social que se desejava conhecer cientificamente. Os textos têm linguagem acessível. Assim. Freqüentemente. TRABALHO DE CAMPO Roberto da Matta O Trabalho de Campo na Antropologia Social A partir do momento em que a Antropologia. mas a todos os aspectos práticos que tais mudanças demandam. “numa das disciplinas mais profundamente filosóficas. na sua observação participante. se o cientista natural tinha o seu aparato instrumental concreto para repetir experiências no teste de suas hipóteses de trabalho. obrigando-o a entrar num processo profundamente relativizador de todo o conjunto de crenças e valores que lhe é familiar. o etnólogo o experimentava de modo diverso. esclarecedoras e dignificantes para a pesquisa científica”. transformou nossa ciência. mas ficava inteiramente aberta a experimentação num sentido mais profundo. justamente por levar o estudioso a tomar contato direto com seus pesquisados. que se ajustar. O controle da experiência. ficou patente a importância do trabalho de campo ou pesquisa de campo como um modo característico de coleta de novos dados para reflexão teórica ou. a Antropologia Social não poderia. Deste modo. tudo isso em condições específicas. Nós já vimos como essa virada metodológica que se cristaliza na pesquisa de campo (e a constelação de valores que chega com ela) está profundamente associada ao chamado funcionalismo ou ao que denomino “revolução funcionalista”. como gostavam de colocar certos estudiosos de visão mais empiricista. a pesquisa estava limitada pelo próprio ritmo da vida social. Na sua disciplina estava fora de questão a experiência desenhada e fechada. para lançálo nas incertezas das viagens em mares povoados de recifes de coral. não somente a novos valores e ideologias. no caso do antropólogo. começou a abandonar a postura evolucionista. como o laboratório do antropólogo social. o etnólogo realizava a sua experiência em solidão existencial e longe de sua cultura de origem. ligar-se a nenhuma 59 . introduzindo ou retirando para propósito de controle suas variáveis. gente do porte de Franz Boas. deleitar-se com ele e ver sua singularidade aparente. em qualquer ponto do planeta. ridículos”. com qualquer tipo de tecnologia. o que. A partir do advento do trabalho de campo sistemático. olhá-lo como uma curiosidade e colecioná-lo no museu da própria memória ou num anedotário – essa atitude sempre me foi estranha ou repugnante”. É a descoberta desta coerência interna que torna a vida suportável e digna para todos. ele costuma fugir e. logo a seguir: “Há. gestos. Tal estilo de reproduzir a experiência com os nativos. um ponto de vista mais profundo e ainda mais importante do que o desejo de experimentar uma variedade de modos humanos de vida: o desejo de transformar tal conhecimento em sabedoria. Nosso objetivo final ainda é enriquecer e aprofundar nossa própria visão de mundo. caso a nossa tarefa fosse a de traçar uma detalhada história do método antropológico. traduz a essência da perspectiva antropológica. Embora possamos por um momento entrar na alma de um selvagem e através de seus olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve sentir-se ao sentir-se ele mesmo. implacavelmente satirizada por Malinowski na citação anterior. tornava-se impossível reduzir uma sociedade (ou uma cultura) a um conjunto de frases soltas entre si. Ou seja. às vezes. É. um conjunto coerente de vozes. um conjunto coerente em si mesmo. porém. Essa sábia reflexão de Malinowski. de colecionar todos os costumes era um objetivo evidente. 1978: 22). compreender nossa própria natureza e refina-la intelectual e artisticamente. De tudo o que permite tornar qualquer sociedade. isto é. ou. 1976: 374). sobretudo. como um autêntico ponto de vista. o papel da Antropologia e produzir interpretações das diferenças enquanto elas formam sistemas integrados. quando um homem encontra sua sogra os dois se agridem mutuamente e cada um se retira com um olho roxo”. como disse Malinowski. quando um nativo acidentalmente encontra uma garrafa de uísque pela estrada. essa descoberta tão simples e tão crítica que permitirá o nascimento da visão antropológica moderna. Como disse Malinowski num dos seus grandes momentos de reflexão: “Deter-se por um momento diante de um fato singular e estranho. dando-lhes um sentido 60 . após o que começa imediatamente procurar outra garrafa” (cf. Como diz o mesmo Malinowski. o urso o persegue”. estamos contribuindo para alargar nossa própria visão” (Malinowski. ainda. onde a idéia de classificar e. Evans-Pritchard. Ao captar a visão essencial dos outros com reverência e verdadeira compreensão que se deve mesmo aos selvagens. Isso porque a vivência propriamente antropológica – aquela nascida no contato direto do etnógrafo com o grupo em estudo por um período relativamente longo – dava a perceber o conjunto de ações sociais dos nativos como um sistema. lembra o modo pelo qual os evolucionistas clássicos escreviam seus relatórios de pesquisa: como uma espécie de catálogo telefônico cultural. articulações e valores. “Na antiga Caledônia. “fazia com que nós antropólogos parecêssemos idiotas e os selvagens. entretanto. na listagem dos costumes humanos dispostos em linha histórica. ou “Quando um brodiag encontra um urso polar. a qual poder-se-iam somar outras feitas por antropólogos pioneiros.compilação de costumes exóticos e na qual o etnólogo teria como objetivo a reprodução de uma lista infindável de “fatos”. bebe tudo de um só gole. reflexões. como o instrumento básico na transformação da Antropologia Social numa disciplina social. tais como: “Entre os brobdignacianos. como vimos. na sua busca daquilo que é essencial na vida dos outros. “ideologias” etc. Seja porque a definição anterior era por demais estreita. trazidas pela pesquisa de campo em profundidade. é difícil não produzir sistematicamente esse “estado de dúvida teórica”. com sorte. De fato. definindo (ou melhor. conceituando) o fato religioso como uma relação entre os homens e grupos humanos estabelecida por meio dos deuses que. realizando essa dialética da experiência concreta com as teorias aprendidas na universidade. portanto. quando a experiência da disciplina está voltada para o estudo de novas sociedades. Isso porque. o seu próprio “repensar a antropologia”. “comunidades”. segmento. pois é a partir dos seus próprios paradoxos que a Antropologia tem contribuído para todas as outras ciências do social. dos viajantes. A base do trabalho de campo como técnica de pesquisa é fácil de justificar abstratamente. forçam sempre uma nova abertura dos instrumentos anteriormente utilizados. sejam elas as dos cronistas. de um modo de buscar novos dados sem nenhuma intermediação de outras consciências. Em vez de encorajar uma ampliação teórica no limite de certos problemas ou teorias já estabelecidas. na geração seguinte. postura que – como nos revelou explicitamente Edmund Leach – é uma tarefa absolutamente fundamental para o bom desenvolvimento da disciplina. teorizar. Durkheim. Cada estudo desses traz não só a possibilidade de testar todos os conceitos anteriormente utilizados naquele domínio teórico específico. Mauss e outros situaram a problemática da religiosidade numa escala muito mais ampla e mais complexa. Assim. buscamos orientar o jovem pesquisador para uma perspectiva realmente pessoal e autêntica de cada problema. neste 61 . É porque os antropólogos conduzem sua existência como profissionais. dos historiadores ou dos missionários que andaram antes pela mesma área ou região. Uma dessas contradições é o fato da disciplina renovar sistematicamente sua carga de experiências empíricas a cada geração. basicamente. classe social ou sociedade. Esse contato direto do estudioso bem preparado teoricamente com o seu objeto de trabalho coloca muitos problemas e dilemas e é. destes dilemas que a disciplina tende a se nutrir. Ou melhor. a meu ver. tentamos conduzir o neófito para que venha a desenvolver um diálogo com as outras correntes. “favelas”. permite localizar. duvidamos das definições clássicas de religião “como crenças em seres espirituais”. “mitos”. Trata-se. Pois que se trata realmente de um treinamento onde se dá uma forte ênfase às conseqüências teóricas desta apropriação vivenciada nos conceitos e teorias aprendidos nos bancos da escola pós-graduada. como também o ponto de vista daquele grupo. como queria Tylor na sua colocação mínima e clássica do domínio religioso.pleno que a experiência de trabalho de campo. sobretudo em outra sociedade. Deste modo. Todo antropólogo realiza (ou tenta realizar). seja porque as novas descobertas. tudo isso a partir de sua experiência concreta com o “seu” grupo tribal ou segmento de uma sociedade moderna por ele estudada. que eles podem falar de “suas tribos”. E isso pode provocar novas revelações teóricas. seja do ponto de vista pessoal. discernir e. “classes sociais”. O resultado é que a Antropologia é certamente a disciplina que mais tem posto em dúvida e risco alguns dos seus conceitos e teorias básicas. teórico ou filosófico. bem como revoluções nos esquemas interpretativos utilizados até então. não há nenhum antropólogo contemporâneo que não tenha sido submetido a essa experiência tão importante quanto enriquecedora. Forçado pela orientação mais geral da disciplina – a de se renovar – os antropólogos têm duvidado de vários conceitos considerados básicos ao longo de muitas gerações. inclusive da nossa própria cultura. de “funcionalidade”. Esta postura crítica tem permitido à Antropologia Social relativizar a própria idéia de tempo concebido historicamente. Tais formas são transformações umas das outras num sentido mais complexo do que aquele dado pelo eixo exclusivo do tempo. Outro repensar se deu no campo dos estudos de parentesco. seitas. pela qual o fenômeno humano é estudado. se ela é uma em seus objetivos e na sua posição de respeito extremo por todas as formas de sociabilidade diferentes (por mais “primitivas” e “selvagens” que possam parecer). ela é múltipla na busca de seus dados de reflexão. a não ser aquela que constitui talvez seu próprio esqueleto e que diz que nós sabemos apenas que não sabemos! A Antropologia Social é uma disciplina sem ídolos ou heróis. sacerdotes e sacrifícios. muito embora 62 . Trata-se de uma verdadeira postura filosófica. a Antropologia sugere que estas variações combinatórias são “escolhas” que cada grupo pode realizar diante dos desafios históricos concretos. de “sincronia”. que permite vê-las como formas derivadas umas das outras. Tais problemas têm ocorrido em quase todos os domínios tradicionalmente estudados pelos antropólogos sociais e são variadas as suas respostas. um idioma. por algum capricho. Múltipla justamente no sentido de não se prender a nenhuma doutrina social. pois. imortais por oposição e definição) e classificar o fenômeno religioso numa escala que ia de relações mais simples e mais diretas entre homens e deuses. deixou de submeter à sua pressão modificadora. seria o movimento pelo qual o inconsciente estrutural seria realizado e limitado e não somente a zona de sua invenção e criação.contexto. caminho que pode abandonar o questionamento historizante. sugerindo muitas vezes a sua substituição por uma noção de “campo” ou de “inconsciente”. domínio considerado como especificamente antropológico desde que Morgan o fundou como esfera de reflexão sobre a singularidade social humana. até as mais “complicadas”. sem messias e teorias indiscutíveis e patenteadas. em vez de buscar a religião como uma relação entre homem e Deus (ou nós os mortais e os espíritos. Será. De fato. mas indicar como na antropologia – mais do que em qualquer outra disciplina – há uma longa. uma língua pela qual se pode totalizar e expressar uma dada problemática? Mas e as relações primárias que todo ser humano desenvolve desde o seu nascimento? Todas estas dúvidas metodológicas acabaram por permitir que o pensamento antropológico abrigasse uma nova via de conhecimento do homem. Não pode ser o “sangue” ou outra substância básica. muitas vezes de modo mais consciente do que se poderia imaginar. portanto. nada mais representam do que a própria sociedade na sua totalidade. gerada pela contradição básica da disciplina: o fato de a Antropologia Social ao mesmo tempo uma e múltipla. a escola de Durkheim situa a problemática do fenômeno dentro da própria sociedade. de “inconsciente” e revelar as diferenças entre sistemas sociais como formas específicas de combinações e de relações que são mais ou menos explícitas em sociedades e culturas segregadas pelo tempo e pelo espaço. zona onde todas as possibilidades e todas as relações humanas seriam encontradas de forma virtual. moral ou filosófica preestabelecida. demonstrando como as formas mais elementares da vida religiosa reproduziam no plano ideológico as formas mais elementares de relacionamento social. Hoje as discussões giram sobre qual o sentido e qual a essência disto que nós chamamos parentesco. A história. saudável e tradicional base pluralista. Nossa intenção aqui não é resolvê-los. Assim. de “estrutura”. para utilizar a noção de “sistema”. como queria Morgan e seus contemporâneos. e não parcelas de relações que o tempo. Assim. quando há uma intervenção das igrejas. para um diálogo fecundo. Pois é ali que ele pode vivenciar sem intermediários a diversidade humana na sua essência e nos seus dilemas. É. enquanto antropólogo. então. mas muito próxima da Lingüística. Diferentemente. da Geografia Humana. da Sociologia. tem razões que a nossa teoria pode desconhecer e – freqüentemente . descobrir. Nada deve ser excluído do processo de entendimento de uma forma de vida social diferente. qual a racionalidade dos grupos tribais. ela tem crescido ao sabor das lições aprendidas em outras sociedades. como pensam os “primitivos”. não obstante. assim. culturas e civilizações. É. Se existem fatos históricos. se existem fatos econômicos. da História. pois. muito importante constatar como a Antropologia Social. dentro da perspectiva segundo a qual a intermediação do conhecimento produzido é realizada pelo próprio nativo em relação direta com o investigador.desconhece. qualquer que seja a sua aparência. se há material político. Mas tudo isso. Isso fez com que a Antropologia Social desenvolvesse uma tradição distinta das outras ciências humanas. Mas. na postura às vezes difícil de ser entendida. desconhecida e ignorada no tempo e no espaço. para chegar a esta postura (ou para chegar próximo a ela) que o etnólogo empreende sua viagem e realiza sua pesquisa de campo. da Ciência Política e da Economia. as experiências humanas. sobretudo pela prática de viagens. que o “selvagem” tem uma lógica e uma dignidade que é minha obrigação. fundada na compreensão e na tolerância que forma a base de uma verdadeira perspectiva da sociedade humana. enfim. convém sempre acentuar. posto que se baseia num ponto crucial: que o nativo. Ou seja. Em parte. pois com ela ocorre a possibilidade de recuperar e colocar lado a lado. tem levado muito a sério o que dizem os “selvagens”. já que ela é uma filha dileta do colonialismo ocidental e é também uma ciência muita bem marcada pelos ideais do cientificismo europeu. com a grande tradição democrática. portanto. essa multiplicidade da antropologia diz respeito à sua substância. a Antropologia Social toma como ponto de partida a posição e o ponto de vista do outro. da Psicologia. Em tudo. isso também entra na reflexão. Pois foi realizando esse trabalho de aprender a “ouvir” e a “ver” todas as realidades e realizações humanas que ela pode efetivamente juntar a pequena tradição da aldeia perdida na floresta amazônica. ele não fica de fora. eles são usados.tenha um enorme coração onde cabem todas as sociedades e culturas. que permitirá relativizar-se e assim ter a esperança de transformar-se num homem verdadeiramente humano. 63 . problemas e paradoxos. submetida a todas as explorações políticas e econômicas. estudando-o por todos os meios disponíveis. Quanto a isso. proclame que. como o antropólogo. Para compreender o candomblé. análoga a organizações vegetais. o observador deve ficar com a última palavra. escreve Roger Bastide. provém de uma ruptura inicial em relação a qualquer modo de conhecimento abstrato e especulativo. o autor da Antropologia Estrutural. Não se pode. a sociedade tem preocupações religiosas. isto é. por exemplo. e termine o seu discurso insistindo sobre tudo o que deve a esses índios do Brasil. Pois a etnografia. dar conta o mais cientificamente possível da alteridade à qual é confrontado. se procura. a que todo pesquisador considera hoje como incontornável (ou necessária). O historiador. Se. ele próprio deve rezar com aqueles que o hospedam. de suas angústias. a cipós vivos”. tal como é percebida de dentro pelos atores sociais com os quais mantenho uma relação direta. Recolhe e 64 . “contra o teórico. de fato. nunca entra em contato direto com os homens e mulheres da sociedade que estuda. através de um método estritamente indutivo. “foi-me preciso mudar completamente minhas categorias lógicas”. e contra o observador. é significativo que Lévi-Strauss. o indígena”. de quem se considera um “aluno”. de seus ideais. mas em impregnarse dos temas obsessionais de uma sociedade. que é fundadora da Etnologia e da Antropologia – a tal ponto que alguns dos mestres de nossa disciplina (estou pensando particularmente em Boas) consideram que toda síntese é sempre prematura. de fato. quaisquer que sejam as suas opções teóricas. longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifestações “exteriores”. Assim. estudar os homens à maneira do botânico examinando a samambaia ou do zoólogo observando o crustáceo.UMA RUPTURA METODOLÓGICA: A Prioridade Dada à Experiência Pessoal do “Campo” François Laplantine A abordagem antropológica de base. consistindo em uma verdadeira aculturação invertida. O etnógrafo é aquele que deve ser capaz de viver nele mesmo a tendência principal da cultura que estuda. acrescentando: “Eu procurava uma compreensão mineralógica e. devo interiorizá-la nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos. comece sua exposição por uma “homenagem” ao “pensamento supersticioso”. a etnografia é antes a experiência de uma imersão total. que não estaria baseado na observação direta dos comportamentos sociais a partir de uma relação humana. e que alguns ainda hoje preferem qualificar-se de “etnógrafos” – não consiste apenas em coletar. Essa apreensão da sociedade. na qual. uma grande quantidade de informações. mais ainda. só se pode fazê-lo comunicando-se com eles: o que supõe que se compartilhe a sua existência de maneira durável ou transitória. é que distingue essencialmente a prática antropológica – prática de campo – da do historiador ou do sociólogo. parece ser capaz de encontrar uma explicação e fornecer soluções. Nunca encontra testemunhas vivas. anotado. De outro. isto é. Com a diferença. político. de condições necessárias. arriscando-se a perder em algum momento sua identidade e a não voltar totalmente ileso dessa experiência. mas também em conseqüência de especificidade do modo de conhecimento que persegue. o menor fenômeno deve ser apreendido na multiplicidade de suas dimensões (todo comportamento humano tem um aspecto econômico. Como também o encontro que surge freqüentemente com o imprevisto. Como escreve Mauss (1960). De um lado. No campo. psicológico. b) Diante de qualquer problema que lhe seja apresentado. pois o que esta pretende estudar é o próprio contexto no qual se situam esses objetos. por razões metodológicas (e evidentemente afetivas). se tornar um especialista. A prática sociológica: a) Comporta um distanciamento em relação a seu objeto. Não nos enganemos. pelo menos em suas principais tendências clássicas. isto é. tem algo de errante. é a rede densa das interações que estas constituem com a totalidade social em movimento. de que a sociologia clássica pensou poder tirar tantos benefícios científicos.analisa os testemunhos. como diz Lévi-Strauss a respeito do pensamento durkheimiano. Pois a prática antropológica só pode se dar com uma descoberta etnográfica. jurídica. E a razão pela qual toda abordagem que consistir em isolar experimentalmente objetos não cabe no modo de conhecimento próprio da Antropologia. etc. “o homem é indivisível” e “o estudo do concreto é o estudo do complexo”. O antropólogo não pode. constituem informações que o pesquisador deve levar em conta. só adquire significação antropológica sendo relacionado à sociedade como um todo no qual se inscreve e dentro da qual constitui um sistema complexo.). o evento que ocorre quando não esperávamos. porém. A busca etnográfica. uma programação estrita de sua pesquisa. em colocar-se o mais próximo possível do que é vivido por homens de carne e osso. demográfica. pelo contrário. As tentativas abordadas. várias características a distinguem da prática antropológica considerada sob o ângulo que detém aqui a nossa atenção.. com uma experiência que comporta uma parte de aventura pessoal. porém. c) O antropólogo evita. de que este se esforça. de estar atenta para que nada lhe seja escapado. e algo frio. um grande número de temporadas passadas em contato com uma sociedade que se procura compreender não o transformará ipso facto em um antropólogo. Objetar-se-á que pode. mesmo que não diga respeito diretamente ao assunto que pretendemos estudar. é claro. UMA EXIGÊNCIA: O Estudo da Totalidade Uma das características da abordagem antropológica é o seu esforço em levar tudo em conta. porém. um perito de uma área particular (econômica. A especialização científica é mais problemática para o antropólogo do que para qualquer outro pesquisador em ciências humanas. tudo deve ser observado. bem como a utilização de protocolos rígidos.. Da mesma forma que o fato de ter alcançado uma analítica não garante que você possa um dia se tornar psicanalista. de fato. Trata-se. os erros cometidos no campo. quanto às virtudes do campo. vivido. não apenas por temperamento. isto é. e “desencarnado”. social.) sem correr o risco de abolir o que é a base 65 . cultural. Quanto à prática da Sociologia. ser o caso do antropólogo. por exemplo. modificar ou transformar os fenômenos que estuda. mais surpreendidos pela disjunção histórica absolutamente única que a nossa cultura realizou entre a ciência e a moral. o divórcio. e. supõe também. e uma cientificidade extremamente positiva. enquanto antropólogos. Essa preocupação que tem a Antropologia de dar conta. das condutas suicidas. que consiste em: 1) cumprir sempre a mesma tarefa.. de fato.da própria especialidade da sua prática. mais tocados do que outros.. a ciência e a religião. de fato. É a razão pela qual somos provavelmente. as ciências econômicas. é freqüentemente levada a participar desse processo que pode causar uma verdadeira mutilação do ser humano. consumidor.. A própria Antropologia. Assim.. os processos cognitivos e afetivos. as ciências jurídicas. mas pouco reflexiva. os sistemas de crenças. apenas três formas de pensamento são. Como escreve Lévi-Strauss. do multidimensionamento de seus aspectos e da totalidade complexa na qual se inscreve e adquire sua significação inconsciente. O projeto antropológico retoma hoje. para além de todos mos questionários. esta última disciplina não é mais hoje um pensamento da totalidade dando-se como objetivo compreender os múltiplos aspectos do homem. parente. por estar baseada no parcelamento de territórios e sobre uma forma de objetividade que as próprias ciências exatas descartaram há muito tempo. comparada a outros modos de coleta de informações: trata-se.. dada a fraca positividade dos seus objetos de investigação. ser o especialista em uma única área. A prática da Antropologia. em primeiro lugar. no mundo contemporâneo. a criminalidade. o direito. Pessoalmente. O parcelamento disciplinar comporta.. A meu ver. sobre bases completamente diferentes (não mais a especulação sobre as 66 . nos quais as atividades são pouco especializadas e nos quais uma ideologia mestra (de tipo mitológico) dá conta da totalidade social. a ciência e a filosofia. um outro: o sistema de produção e troca de bens. o alcoolismo. e o pesquisador tende a se tornar o especialista de um campo exclusivo: sociologia do lazer. um risco fundamental: o de um desmantelamento do homem em produtor.. As ciências políticas se dão por objeto de investigação um certo aspecto do real: as instituições que regem as relações do poder. O drama das ciências humanas contemporâneas é a fratura entre uma atitude extremamente reflexiva (a da filosofia ou da moral). está relacionada à abordagem menos diretiva e pragmática da própria prática etnográfica. a partir de um fenômeno concreto singular. é claro. por mais aperfeiçoados que sejam. no horizonte científico contemporâneo. a antropologia me parece ser o antídoto não filosófico de uma concepção tayloriana da pesquisa. por meio da fragmentação e do desmembramento que impõe ao real. do esporte. de fazer surgir um questionamento mútuo. as ciências psicológicas. o marxismo e a Antropologia. acaba destruindo o próprio objeto que pretende estudar.. capazes de responder a essa definição: islamismo. artificialmente isolados em relação à totalidade do social. a pesquisa sociológica está cada vez mais especializada: estuda fenômenos particulares: a delinqüência. Tal preocupação diz respeito também à natureza das sociedades nas quais se desenvolveu nossa disciplina: conjuntos relativamente homogêneos. paradoxalmente. as ciências religiosas. Se olharmos mais de perto. de maneira pragmática. cidadão. mas que corre o risco de cair no vazio. 2) tentar. baseada numa extrema proximidade da realidade social estudada. um grande distanciamento (em relação à sociedade que procuro compreender e em relação à sociedade a qual pertenço). toda prática hiperespecializada. Mas todos estes são para os antropólogos fenômenos parciais. todo branco e sardento. De repente. é que percebia pela primeira vez: não podia ser mais preto. Sendo assim. ao americano. e mais ainda: incompatível com a ética ianque a ser mantida nas funções que passara a exercer. velho companheiro. que não era com ele. Não teve dúvidas: virou a cara quando o outro se aproximou e fingiu que não o via. o projeto que foi o da filosofia clássica. vendo o preto aproximar-se. É a razão pela qual muitos entre nós se recusam a entrar nas vias de uma hiperespecialização. jornalistas. com o gringo ali a seu lado. vale dizer. lidos depois do jantar. Passar fome era muito bonito nos romances de Knut Hamsum. o que nos levaria à posição de. o sambista abriu os braços para acolher o americano – também seu amigo. Pensou rapidamente em se esquivar – não dava tempo: o americano também se detivera. sem que ninguém soubesse: por constrangimento. já distraído dos seus passados tropeços. como mostrou Husserl. LAPLANTINE. 1996. e chegar até a impedir o próprio exercício do pensamento. Era seu amigo. chegara a passar fome. a salvação lhe apareceu na forma de um americano que lhe oferecia emprego numa agência. talvez ainda sem tê-lo visto. tropeçando obstinadamente no inglês com que se entendiam – quando vê do outro lado da rua um preto agitar a mão para ele. PRETO E BRANCO Fernando Sabino Perdera o emprego. Ocorreu-lhe desde logo que ao americano poderia parecer estranha tal amizade. tivesse paciência: mais tarde lhe explicava tudo.categorias do espírito humano. para garantir na sua nova função uma relativa estabilidade. antagonistas da reflexão. mas a observação direta de suas produções concretas). E não era mesmo com ele. afastara-se da roda boêmia que antes costumava freqüentar – escritores. Por via das dúvidas. mas. dos melhores mesmo que já conhecera – acaso jamais chegara sequer a se lembrar de que se tratava de um preto? Agora. EXERCÍCIOS: 67 . Era o sambista seu amigo. um bom sujeito. e sem credores à porta. Aprender Antropologia. Porque antes de cumprimentá-lo. mas viu em pânico que ele atravessava a rua e vinha em sua direção. haveria de compreender. um sambista de cor que vinha a ser seu mais velho companheiro de noitadas. E um belo dia vai seguindo com o chefe pela Rua México. São Paulo: Brasiliense. Agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade. Lembrou-se num átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu critério de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odiosa deformação. correspondeu ao cumprimento de seu amigo da maneira mais discreta que lhe foi possível. sorriso aberto e braços prontos para um abraço. b) Qual a atitude desse personagem diante do novo estado? 2 – O segundo parágrafo relata ainda uma nova mudança de estado referente ao personagem central. 5 – Como o personagem central correspondeu ao cumprimento do sambista? 6 – Quando pensou que o sambista vinha ao seu encontro para abraçá-lo: a) Qual a atitude que tomou? 68 . a) Identifique o estado anterior e o posterior. o personagem central sente-se ameaçado. Parágrafo). já esquecido dos dias de desempregado. a) Em que consiste essa ameaça? b) Explique porque ele se sente ameaçado.1 – No primeiro parágrafo do texto. que expediente adotou o novo empregado para garantir sua estabilidade? 4 – Numa passagem posterior (3o. a) Em que consiste essa mudança? b) Que personagem basicamente desencadeou essa mudança? 3 – Considerando que o emprego na agência era a sua salvação. o narrador relata uma mudança de estado que ocorreu na vida do personagem central da narrativa. Sampa Caetano Veloso Composição: Caetano Veloso Alguma coisa acontece No meu coração Que só quando cruza a Ipiranga E a Avenida São João É que quando eu cheguei por aqui 69 . o personagem teria tomado a atitude que tomou? 8 – Como se sabe. c) Não corresponde à verdade dos fatos dizer que os americanos têm preconceitos de cor. por detrás dos fatos narrados. e) Os brancos são mais traiçoeiros que os pretos. 7 – O desfecho da narrativa é inesperado. existe sempre um posicionamento crítico do narrador. d) A diferença cultural entre os povos leva a desentendimentos desconcertantes.b) Transcreva. podemos concluir que: a) A insegurança e a condição de dependência podem levar o homem a agir contra os seus princípios. Se soubesse desse desfecho. do texto. que se manifesta por meio da seleção dos episódios que relata. Com base no sentido global dessa narrativa. b) São próprias da natureza humana a ingratidão e a traição dos amigos. uma passagem em que o personagem procura justificar sua indiferença perante o negro. 70 .... Ainda não havia Para mim Rita Lee A tua mais completa tradução Alguma coisa acontece No meu coração Que só quando cruza a Ipiranga E a Avenida São João. E foste um difícil começo Afasto o que não conheço E quem vende outro sonho Feliz de cidade Aprende depressa A chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso Do avesso do avesso. mau gosto É que Narciso acha feio O que não é espelho E a mente apavora o que ainda Não é mesmo velho Nada do que não era antes Quando não somos mutantes..Eu nada entendi Da dura poesia concreta De tuas esquinas Da deselegância discreta De tuas meninas. Quando eu te encarei Frente a frente Não vi o meu rosto Chamei de mau gosto o que vi De mau gosto..... favelas Da força da grana que ergue E destrói coisas belas Da feia fumaça que sobe Apagando as estrelas Eu vejo surgir teus poetas De campos e espaços Tuas oficinas de florestas Teus deuses da chuva....Do povo oprimido nas filas Nas vilas. 71 .. Panaméricas De Áfricas utópicas Túmulo do samba Mais possível novo Quilombo de Zumbi E os novos baianos passeiam Na tua garoa E novos baianos te podem Curtir numa boa. nossas definições do que é a existência. também está no mundo e. acredita nos mesmos deuses. pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença. no plano afetivo. nos deparamos com um “outro”. mora no mesmo estilo. indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. também exista. Aí. um daqueles de mais unanimidade. Este problema não é exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. então. talvez. Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica está a experiência de um choque cultural. às vezes. semelhantemente. pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam nas emoções. os caminhos e razões. pensamentos. Grosso modo. a colocação central sobre o etnocentrismo pode ser expressa como a procura de sabermos os mecanismos. nossos modelos. ainda que diferente. veste igual. etc. nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural. enfim. hostilidade. Assim. pois. pois. De um lado. por muitas maneiras. Talvez o etnocentrismo seja. o grupo do “diferente” que. conhece problemas do mesmo tipo. E.O QUE É ETNOCENTRISMO Everardo P. No etnocentrismo. No plano intelectual. um mal-entendido sociológico. conhecemos um grupo do “eu”. as formas. gosta dela. Este choque gerador do etnocentrismo nasce. de repente. imagens e representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós. este “outro” também sobrevive à sua maneira. como sentimentos de estranheza. Perguntar sobre o que é etnocentrismo é. empresta à vida significados em comum e procede. estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas. o “nosso” grupo. mais grave ainda. na constatação das diferenças. gosta de coisas parecidas. Guimarães Rocha PENSANDO EM PARTIR Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores. casa igual. dentre os fatos humanos. O monólogo etnocêntrico pode. medo. distribui o poder da mesma forma. que come igual. seguir um caminho lógico mais ou menos assim: Como 72 . “excelentes” ou. é o fato de que. É onde existe o saber. pois. É o espaço da natureza. a melhor. modesto. Um dia. da selva que lembra. É representada como o espaço da cultura e da civilização por excelência. algumas sociedades chamam-se por nomes que querem dizer “perfeitos”. um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. a desarticulação. Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. de alguma maneira. uma mesma atitude informa os diferentes grupos. comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes. A sociedade do “outro” é atrasada. O etnocentrismo não é propriedade. fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas. ao estrangeiro. o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe. não sem dificuldade. no etnocentrismo. por vir. A surpresa maior estava. na nossa. etc. a natural. como sendo engraçado. do barulhento. por fim. espelhos. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia. de “macacos da terra” ou “ovos de piolho”. neste conjunto de idéias. a desordem. como já disse. por um lado.aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não. a certa. nunca o “igual” ao “eu”. a sociedade do “eu” é a melhor. O índio queria que o pastor 73 . Dias depois. O selvagem é o que vem da floresta. o índio fez o pastor divisar. bárbara. a superior. venceu as burocracias inevitáveis e. meio sem jeito e a contragosto. marcar segundos. alarmes. a vida animal. por vezes. Este processo resulta num considerável reforço da identidade do “nosso” grupo. São os selvagens. fazer contas. Ao chegar. Creio que é necessário examinar isto melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar. vencido por insistentes pedidos. A atitude etnocêntrica tem. especialmente. estes somos nós. um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreensão destas maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o “outro”. o progresso. os bárbaros. da sua visão a única possível ou. o pressuposto de que o “outro” deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo. O que importa realmente. muito simplesmente. chamam. muito feliz. cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa. é selvagem. o trabalho. colorida e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava frequentemente. seu trabalho. infalível. após alguns meses. O “outro” é o “aquém” ou o “além”. porém. “ser humano” e ao “outro”. anormal ou ininteligível. apesar de que. ao jovem índio. nessa lógica. De qualquer forma. de uma única sociedade. O grupo do “outro” fica.. São qualquer coisa menos humanos. então. paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra. O barbarismo evoca a confusão. mais discretamente se for o caso. absurdo. pentes. o pastor perdeu seu relógio dando-o. revestiu-se de um caráter ativista e colonizador com os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos. encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. No limite. Existe realmente. Tempos depois. a superior. Muito generoso. comprou para os selvagens contas. primitiva! Decisão hostil! O grupo do “eu” faz. a vida deles não presta. Nelas. aliás. esta estória representa o que se poderia chamar. infinitas vezes. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. trazia-lhe estranhas lembranças. ornamentais. de tanto ouvir absurdos sobre o índio. obviamente. decorativas de objetos que. Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Isso lembra o comentário. pode colocá-lo como “primitivo”. ainda por cima. de toda evidência. Esta estória. Em terceiro lugar. Ao “outro” negamos aquele 74 . arcos. a mesma coisa. Cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. de uma criança de um grande centro urbano que. seja na indústria cultural. bordunas. como “algo a ser destruído”. um famoso cientista do início do século vinte. são apenas uma representação. as relações entre a chamada “civilização ocidental” e as sociedades tribais. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”. tacapes. porém. Forase o relógio. os personagens de cada uma delas fizeram. quinze para as dez. de um etnocentrismo “cordial”. Para o pastor. já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem maiores conseqüências. tristemente exemplar. não necessariamente verdadeira. desempenhavam funções que seriam principalmente técnicas. o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto o que causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Privilegiaram ambos as funções estéticas. o relógio. contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no rosto do pastor. Assim. muito comum e de uso geral no etnocídio. neste choque de culturas. naquela manhã. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. pendurado a vários metros de altura. se isso fosse possível. seja nos livros didáticos. não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que. Levantou-se. Em segundo lugar. uma imagem distorcida que é manipulada como bem entendemos. dar uma revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. seja em casa. como “atraso ao desenvolvimento” (fórmula. Tanto no presente como no passado. na cultura do “outro”. deu uma olhada no relógio novo. agora mínimo e sem nenhuma função. Hermann von Ihering. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio. diretor do Museu Paulista. Quase indistinguível em meio às penas e contas e. Era hora de ir. bastante plausível. Em primeiro lugar. na matança dos índios). flechas. a lógica do extermínio regulou. da qual falamos na nossa sociedade. acabou por defini-los dizendo: “o índio é o maior amigo do homem”. o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. por exemplo. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do deu escritório. e até uma flauta formavam uma bela decoração. No mais das vezes. Rústica e sóbria ao mesmo tempo. justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. a estória ainda ensina que o “outro” e sua cultura. tanto aqui como em vários outros lugares. demonstra alguns dos mais importantes sentidos da questão do etnocentrismo. cocares. Como já vimos. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e.compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou nosso foguete. há alguns anos. nada nos impede de criarmos um marciano simpático. Eu mesmo realizei. A expressão “fulano é muito louco” pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. em outros. Com ela se fixam também imagens extremamente etnocêntricas. Claro. “sério” e “científico”. “brabos” e “mansos” são dois termos que muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o “humor” de determinados animais e o “estado” de várias tribos de índios ou de escravos negros. em função mesmo do seu destino e de sua natureza. Também. mais ainda. O caso dos índios brasileiros é bastante ilustrativo. que se recuse a trabalhar como escravo. via de regra. porque somos os autores destes filmes e livros. de um ponto de vista do grupo do “eu”. determinados estereótipos. pois são lidos e. os que estão fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e bondosos. em face do seu conteúdo. Tudo se passa como se fôssemos autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o quanto é cruel. por exemplo. A figura do louco. Alguns destes livros alcançam tiragens altíssimas e já tiveram mais de duzentas edições. é manipulada por uma série de representações que oscilam entre dois pólos. estudados por milhões de alunos pré-universitários nos mais diversos recantos do país. numa lavoura que não é a sua. na nossa sociedade. nas sociedades complexas e industriais contemporâneas. um ovo ou uma pessoa. Ora. acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos. sendo denegrida ou exaltada – como o marciano – ao sabor das intenções que se tenha. carregam um valor de autoridade. Em alguns momentos da história o louco foi acorrentado e torturado. como o marciano não diz nada. ocupam um lugar de supostos donos da verdade. que são permanentemente aplicados a estes índios. um estudo sobre as imagens do índio nos livros didáticos de História do Brasil. Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos. Nesse sentido. para a 75 . Assim. Na nossa chamada “civilização ocidental”. posso pensar dele o que quiser. pois alguns antropólogos estudiosos do assunto já identificaram determinadas visões básicas. como aplicar adjetivos tais como “indolente” e “preguiçosos” a alguém. Os livros didáticos. mas também em diferentes contextos no presente. Aliás. Através deles circula um “saber” altamente etnocêntrico – honrosas exceções – sobre os índios. Estes livros têm importância fundamental na formação de uma imagem do índio. o que faz com que as informações neles contidas acabem se fixando no fundo da memória de todos nós. Alguns livros colocavam que os índios eram incapazes de trabalhar nos engenhos de açúcar por serem indolentes e preguiçosos. Sua informação obtém este valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo passa nas provas. inteligente e superpoderoso que com incrível perícia salva a Terra de uma colisão fatal com um meteoro gigante. Os estudantes são testados. existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do “outro”. foi feito portador de uma palavra sagrada e respeitada. Isto não só ao longo da história.mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo. seu saber tende a ser visto como algo “rigoroso”. É no capítulo “Etnia brasileira”. publicidade. “pré-histórico”. os “velhos”. Isto era para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram “superiores” e “civilizados”. existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo. muito pelo contrário. Da mesma maneira. as “dondocas”. Em outras palavras. o índio é. os “colunáveis”. ela deve mostrar e esconder. repletas de resquícios de atitudes etnocêntricas. num corpo. os “negros”. num passe de mágica etnocêntrica.riqueza de um colonizador que nem sequer é seu amigo: antes. ele aparece como “selvagem”. No universo da indústria cultural é criado sistematicamente um enorme conjunto de “outros” que servem para reafirmar. são uma espécie de “conhecimento”. no mínimo. os “vagabundos”. O primeiro papel que o índio representa é no capítulo do descobrimento. Mas. As idéias etnocêntricas que temos sobre as “mulheres”. Assim. os “doidões”. como o “outro” é alguém calado. “almas virgens”. Este “escândalo” esconde. A “indústria cultural” – TV. O segundo papel do índio é no capítulo da catequese. para fazer parecer que os índios é que precisam da “proteção” que a religião lhes queria impingir. estamos relativizando. negros e “selvagens”? Então aparece um novo papel e o índio.. apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Nossas próprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades são. Quando o significado de um ato é visto não na sua 76 . que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com as diferenças. para o livro didático. os “empregados”. A estória do nosso amigo missionário serviu para a constatação das dificuldades de definir o sentido de um objeto – o relógio ou o arco – fora dos seus contextos culturais. Assim são as sutilezas. O terceiro papel é muito engraçado. “inocente”. Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição. Os exemplos se multiplicam no nosso cotidiano. os “paraíbas de obras”. a quem não é permitido dizer de si mesmo. os “caretas”. etc. nada garante que os índios andem nus a não ser a concepção que eles mesmos teriam de nudez e vestimenta. os gays e todos os demais “outros” com os quais temos familiaridade. “infantil”. como iriam falar de um povo – o nosso – formado por portugueses. cheio de “amor à liberdade”. “antropófago”. etc. violências. “altivo”. um “saber”. por oposição. Se o índio já havia aparecido como “selvagem” ou “criança”. muitas vezes. vira “corajoso”. esta recusa é. baseado em formulações ideológicas. o índio é “alugado” na História do Brasil para aparecer por três vezes em três papéis diferentes. Ali. uma série de valores de um grupo dominante que se autopromove a modelo de humanidade. mera imagem sem voz. “primitivo”. jornais. Uma das mais importantes é a da relativização. na verdade. persistências do que chamamos etnocentrismo. manipulado de acordo com desejos ideológicos. certo tipo de cinema. Outro fato também interessante é que um número significativo de livros didáticos começa com a seguinte informação: os índios andavam nus. negros e “crianças” ou um povo formado por portugueses. Nele o papel do índio é o de “criança”. sinal de saúde mental. rádio – está freqüentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. os “surfistas”. a nossa noção absolutizada do que deva ser uma roupa e o que. revistas. Ela também possui o compromisso da procura de superá-lo. Acredito até que. com maior ou menor grau de dificuldade. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia. de ver tudo isso – os conceitos da cultura nas teorias formais da Antropologia -. sacações e aberturas. De fato. gostaria. uma ciência sobre diferença ente os seres humanos. Alguém já disse que o antropólogo é aquele que pensa sobre as questões da cultura humana. há alguns séculos. O “velho” mundo buscando coisas cujas dimensões talvez nem soubesse. nasceu marcada pelo etnocentrismo. Esta ciência chama-se Antropologia Social. Povos assustados com o olhar o “outro” frente a frente. porque esta já se impunha na força de sua radicalidade.Trata-se dos séculos XV. Entender alguns movimentos deste jogo é acompanhar a superação do etnocentrismo na arena do intelecto e da razão e na arena da emoção e do sentimento. colonizações. mas com a alternativa. Ela não é uma hostilidade do “outro”. como alternativa e testemunho de muitos “outros”.dimensão absoluta. a diferença não se equaciona com a ameaça. mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença. cujas formas de existência sempre a presença do humano em sua singularidade. A diferença das escolhas humanas se fixa. convém fazer rápida passagem pelo panorama de uma época que acho ter sido fundamental para a constituição de um “sentimento” da Antropologia. estamos relativizando. busca a superação do etnocentrismo implicou diferentes movimentos e pode. Ver que a verdade está mais no olhar do que naquilo que é olhado. estamos relativizando. aqui e pelo mundo afora. Momento marcante a exigir que se começasse a pensar a diferença. mas no contexto em que acontece. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos. relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento. O “novo” mundo um tanto indefeso frente ao furacão que começava a envolve-lo. expedições. como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao “outro”. A nossa sociedade já vem. ser traduzida num humanismo de olhar mais conseqüente. PRIMEIROS MOVIMENTOS 77 . seguindo a pista dada pelos diferentes conceitos de cultura que a Antropologia dispõe perceberemos como esta foi vista de maneiras mais etnocêntricas que cederam espaço a outras visões mais relativizadoras. no conhecimento antropológico. Enfim. esta superação que ocorre na ciência que é a ponta de lança do conhecimento do “outro” possa. o movimento da Antropologia é no sentido de ver a diferença como forma pela qual os seres humanos deram soluções diversas a limites existenciais comuns. construindo um conhecimento ou. espantos. em superiores e inferiores ou em bem e mal. se quisermos. Diferentemente do saber de “senso comum”. Ela. na Antropologia. agora. mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu”. Assim. de acompanhar alguns movimentos pelos quais passou a Antropologia neste jogo de refletir sobre a diferença. Antes. Assim. capaz de ter um fim ou uma transformação. porém. Optei por traçar o caminho em torno de algumas visões do conceito de “cultura” dentro da Antropologia. alucinações. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. XVI e XVII com suas navegações. O percurso que. ser observado a partir de vários ângulos. no mínimo. É um momento básico de encontro com o “outro”. no plano da sociedade mais geral. num certo nível. . à outra a própria natureza humana. O que existe para além da Europa? Quem habita os espaços do outro mundo? Como navegar. Neste Portugal do final do século XV e início do século XVI. paradoxos. Destes encontros. Mesmo com as novas tecnologias. de compreensão ente as sociedades sem pensar que uma delas deva ser “dona da verdade”. freqüentemente. É de manhã e a agitação nos corredores da Escola de Sagres – menina dos olhos do rei – cessa completamente. Do palco do encontro inicial no século XVI fica marcada a 78 . Buracos sem fundo. interesses. Ali se inicia a busca dos modelos explicativos da diferença. serpentes. dizia o professor aos seus alunos (pilotos e comandantes supertrinados). Muita violência. o século XVI constituiu-se em uma das arenas principais. para o pensamento ocidental. que era preciso. ele foi sendo superado. entre a sociedade do “eu” e a sociedade do “outro”. A exposição do professor é acompanhada com a máxima atenção e versa sobre os limites do mundo. escrevia sobre estas dúvidas: Que gente será esta? Em si diziam. faz uma análise da diferentes teorias sobre o que poderia ser encontrado pelo navegante que se aventurasse em linha reta mar adentro. quedas no vazio e a quase total impossibilidade de voltar. T. frente ao “outro”. O mestre. poema épico aos navegantes e às aventuras portuguesas. sobre as possibilidades teóricas e os desenvolvimentos técnicos necessários à dilatação do império e à conseqüente alteração das fronteiras do mundo conhecido. As verbas da grande potência corriam soltas para a ampliação do universo e do domínio português até sobre coisas as quais ainda não se sabia o que seriam. Vamos procurar ver as principais formas pelas quais a Antropologia pensou a diferença ao longo de sua imensa literatura e da amplitude de seus estudos e reflexões. num certo sentido. Isto é a Antropologia Social ou Cultural. Em que pese a Antropologia ter nascido no chamado mundo ocidental. O objetivo deste livro sobre o etnocentrismo é o de mostrar como. espanto e perplexidade iriam regular as relações entre povos. pouco a pouco. se não por todos. compenetrado e falante. mesmo sem viver. discute-se e especula-se. que lei. que rei teriam?” Quantas questões se colocavam para aquela gente naquele tempo. o nativo do “novo mundo” teria alma? Lei? Poder? Política? Deus? Rei? Amor? Amizade? Casamento? Até o próprio Camões numa passagem de Os Lusíadas. sociedades e culturas tão impressionantemente diferentes a ponto de uma negar. a pensar a diferença. monstros. ao menos dentro da Antropologia.”. Os financiamentos eram conseguidos para pesquisas e explorações. nos centros avançados de estudo. As novas técnicas empolgavam os alunos. um conjunto radical de novas questões. Ninguém entendia nada. nascia ali. um esforço de compreensão da diferença. mas ali se esboçava algo que se tornaria uma constante: as formas pelas quais as diferenças foram pensadas. O mundo do “eu” se via obrigado. o risco era imenso. A bússola e o astrolábio de complexo manejo eram armas ainda pequenas frente a perigos tamanhos. seu esforço é no sentido de não torná-lo absoluto. Que costumes. (que aí já não era mais preciso!). Assim. O que significaria o “novo mundo”? Seriam “seres humanos” os seus habitantes ou uma versão “extraterrestre” modelo século XVI? Tal como um “E.As aulas apenas começaram. O primeiro destes pensamentos ocorridos na Antropologia. é o desenvolvimento obrigatório de uma determinada unidade que revela. sua formulação clássica. vai ser a permanência do etnocentrismo.idéia de uma forte perplexidade. Saindo de estádios mais primitivos numa trajetória de permanente progresso onde o tempo é a teia onde se tece a evolução. a diferença que se travestia em espanto e perplexidade. no seu sentido mais amplo. em meados do século XIX – na Inglaterra de Sir James George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor e. sempre mais matizados. é conhecido como Evolucionismo. E é esta perplexidade que vai. O evolucionismo biológico e o evolucionismo social se encontram e o segundo passa a ser o novo modelo explicador da diferença entre o “eu” e o “outro”. O resultado disso. a esta noção orgânica. avanço no tempo. o que é. é claro. evolução? Evolução. um espaço correto para um tipo de pensamento que. de Darwin. pelo processo evolutivo. Para o evolucionismo antropológico. É a transformação progressiva no sentido da realização completa de algo latente. Tudo isso forma um campo intelectual. É o caminho da manifestação plena do que estava oculto. a origem da humanidade tem de ser num passado longínquo para que as etapas se sucedam na direção de uma civilização mais e mais avançada. pois é no seu rumo que a história do homem se faz. O caminho é na direção de um estágio superior de civilização. em outras palavras. exatamente. Mas isto é o fim da estória e é importante que possamos ver mais a fundo o sistema de idéias que se monta em torno da idéia de evolução. Mas. A noção de evolução é um marco fundamental para o pensamento antropológico. nos séculos XV e XVI. Acredita-se na unidade básica da espécie humana e o fator tempo passa a ser bastante importante. e que procuram explicar a diferença. se transforma numa terceira e assim sucessivamente. equivale a desenvolvimento. A noção de evolução pode estar ligada ao orgânico. É um processo permanente onde uma unidade qualquer se transforma numa segunda que. Mas. na história dos saberes sobre o ser humano. quase que como uma âncora. Progresso. então. Evolução. então. evolução. no nível biológico do desenvolvimento. mostrando. em plena metade do século XIX. agora traduzido na sociedade do “eu” como o estágio mais adiantado e a sociedade do “outro” como o estágio mais atrasado. tem um lugar de destaque. Assim. iria contagiar todos os estudos sobre as sociedades humanas. uma segunda forma. pouco a pouco. uma nova explicação: o outro é diferente porque possui diferente grau de evolução. por sua vez. nos Estados Unidos. consciente de que a presença do homem sobre a Terra remontava a uma idéia muito mais antiga. Assim. procurando compreender as diferenças que. cedendo lugar a novos conjuntos de idéias. biológica de evolução. a noção de progresso torna-se fundamental. vão assumindo novas formas. O homem a caminho. mais e mais absoluta em suas conquistas. a cada vez. sua potencialidade. Vai aparecer como idéia básica para toda uma grande fase da teoria antropológica e. para os trabalhos e estudos que procuraram fazer da Antropologia uma ciência. E foi toda uma geração de antropólogos que. Este compromisso da idéia de evolução com o crescimento e a formação dos organismos tem no livro A Origem das Espécies. começou a produzir seus 79 . encontra. já se juntavam os pensamentos s discussões filosóficas dos chamados iluministas do século XVIII. nos séculos XVIII e XIX. Lewis Morgan -. Acredito que a solução está no próprio conceito de cultura adotado pelos evolucionistas. Assumiam que os itens da cultura se 80 . podese dizer que é. o Uruguai como intermediário e os Estados Unidos no estádio “primitivo”. Que. Numa palavra: transformar sociedades contemporâneas em retratos do passado. dentro da cultura. Extraídas dos seus contextos eles as absolutizavam e assumiam como se as idéias de sua própria sociedade fossem não apenas universais como as melhores e mais bem acabadas. restava ainda um problema teórico. Também transparece uma espécie de princípio geral. Se pensarmos nesta definição. diz o seguinte: “Cultura ou civilização.estudos. Postulavam uma unidade entre as culturas como se todas tivessem de dar conta de problemas idênticos e que. a era vitoriana. Estados Unidos e Uruguai e o “medidor” for “futebol”. A escolha e a definição dos critérios pelos quais seria possível medir o estágio de “avanço” de cada uma das sociedades existentes. os evolucionistas pensavam que os australianos haviam parado num estádio “primitivo” e os ingleses tinham avançado para um estádio “civilizado”. moral. para eles. Ele aparece no livro A Origem das Culturas de Sir Edward Tylor que. é este todo complexo que inclui conhecimento. a melhor por definição. que formam um “todo complexo”. A lógica do raciocínio é simples. é bom lembrar o missionário do primeiro capítulo. Sabemos que são relativos. Explicando melhor. os conteúdos destas idéias talvez nem existam. então. os “primitivos” chegariam às formas da “civilização”. o século XIX. no seu sentido etnográfico estrito. Aqui. como se os problemas colocados pelos seres humanos fossem. tendo aceitação. Sabedores dessa origem remota dos antepassados. separados. Também podiam pensar assim norte-americanos e outros europeus que se sentiam fazendo parte de uma civilização absoluta. talvez. fundamental a criação de algo que fizesse as vezes de critério. que em plena época da rainha Vitória. no mínimo um clássico. mais cedo ou mais tarde. unitários. lógica e possibilidade para o estudo comparativo. uma lei. O que e Arte? Lei? Moral?. a Inglaterra do século XIX era. espalhavam militarmente seu império pelo mundo inteiro. Era necessário um instrumento comparativo tipo um “medidor” de progresso. Se o medidor for o número de grupos de rock a ordem já é outra e assim haverá tantas ordenações da hierarquia das culturas quanto os “medidores” escolhidos. em toda parte os mesmos. arte. É claro que quem assim pensava eram os ingleses. leis. na direção do progresso. no entanto. teríamos o Brasil como o mais “civilizado”. Ao afirmar que todas as formações sociais humanas tinham origens remotas e caminhavam no mesmo sentido. podemos constatar que transparece uma visão da cultura como uma série de itens identificáveis. Faz-se. estas idéias eram nítidas e claras. por exemplo. porque se compararmos Brasil. etc. Mas. costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade”. o mais famoso da Antropologia e. por exemplo. de fato. procuraram escalonar as etapas de evolução das sociedades que encontravam pelo mundo. contemporânea dos aborígenes australianos. dentre mais de cento e cinqüenta definições da cultura que a disciplina produziu. Sim. Este conceito é. crença. logo na primeira página. Para os evolucionistas. em certas sociedades. O que fosse importante para a sua sociedade – a sociedade do “eu” – seria importante para todas as demais – as sociedades do “outro”. “família”. para onde teria ido?” Claro. Diz uma anedota que Sir James Frazer. No extremo inferior. descobertas e instituições. Este espírito teria. pois ele era visto como uma fase passada de mim mesmo. acabaram impossibilitados de achar alguns “cavalos” importantes. “propriedade”. Isto fez com que os evolucionistas pudessem pensar o “selvagem” sem conhecê-lo de perto.. por trás do ser “civilizado”. Para Morgan. Não é preciso dizer que a sociedade dele mesmo ocupava exemplarmente o lugar destinado à mais alta civilização. Dessa maneira. etc. ele procurou ordenar os estádios evolutivos em períodos que caracterizavam as fases passadas culturas humanas. Avaliando itens culturais tais como: “governo”. respondeu muito simples e sinceramente: “Deus me livre!”. Ainda mais. A contribuição de um dos antropólogos mais famosos da época – Lewis Morgan – foi exatamente calcular as sociedades segundo seu grau de evolução... postulavam uma permanência. importante antropólogo da época. É uma questão de sentar e meditar: “se eu fosse um primitivo. Dessa forma. por via do progresso. “religião”. paradoxalmente. Algo assim como se fosse possível saber a reação das crianças apenas porque um dia fomos crianças. ao ser perguntado se falaria algum dia com um selvagem.assemelhavam onde quer que se encontrasse a cultura.. ele nunca achou o cavalo. conseqüência do aperfeiçoamento do espírito científico. Lembra o cow-boy que perdeu seu cavalo e desesperado sentou e meditou: “se eu fosse um cavalo. De fato. temos dois marcos básicos. acreditando-se capazes de ter todo o conhecimento do “outro” dentro de si mesmos. Mas. os povos primitivos e no extremo superior. aqui no evolucionismo. fortemente entrincheirada. “meios de subsistência”. A relativização não tinha espaço. A mudança nas sociedades se daria pela invenção. divide os cem mil anos de história humana em três períodos básicos – selvageria. encontramos ainda. Assim como os evolucionistas ao dispensarem o “trabalho de campo” e a relativização. como eu faria isto ou aquilo?”. Os itens culturais faziam papel de régua com a qual se media a distância histórica entre os povos. pois que tudo já estava pronto. a visão etnocêntrica. Estudando invenções. Lembram um pouco o que dizia uma autoridade há alguns anos: “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Cada item da cultura serve para demonstrar o percurso do primitivismo à civilização e encontrar para as sociedades um lugar neste caminho. os povos ditos “civilizados”. soprado muito mais na sociedade do “eu” de modo a que. de modo a que estes e outros itens pudessem ser pensados como uma linha da evolução partindo de um pólo “primitivo” e. “arquitetura”. qualquer “trabalho de campo”.. evidentemente. uma eterna valorização destes itens para qualquer cultura. fôssemos encontrando séries de homens até seu irmão mais “primitivo”. O etnocentrismo estava em achar que o “outro” era completamente dispensável como elemento de transformação da teoria. a sua teoria dispensava qualquer contato com o “outro”. chegando ao pólo “civilizado”. Era uma questão de encaixar as culturas nos estádios já predeterminados da evolução. neste mesmo 81 . barbárie e civilização. a “acumulação do saber” e o progresso das “faculdades mentais e morais dos homens” vão marcando as mudanças de estádios no caminho da evolução. Alguns nomes fundamentais para ávida da disciplina fazem sua entrada aqui. Tanto aqui. Neste processo. que foram os séculos XV. Ou. XVI e XVII com seus novos e velhos mundos. podem ser mais etnocêntricos do que a reflexão sobre o “outro”. Como pode ser isto? Como um dos movimentos teóricos mais marcados pela ideologia da superioridade pode trazer dentro de si mesmo os germes da superação dessa ideologia? Acredito que a resposta é simples. É o que veremos a seguir. Entretanto. complexos do que isto. encontra-se uma lógica parecida: quanto mais sabemos. Menos evoluído. por assim dizer. esta consciência que vai levar a antropologia a explodir os esquemas simplificadores do evolucionismo e a ampliar. participar da mesma “natureza” humana do “outro”. o medo oculto. Relativiza-se mais e com isto complexifica-se o “outro” como objeto de estudo. seu campo de estudos. multiplicando muito. já apresenta alguma diferença. a sociedade do “eu” começa até a questionar a si própria. relativizando: é claro que a época do novo mundo. mas pode-se ver qual se distancia mais. o espanto. E vai ser. entre si. Agora. reside aí mesmo: na consciência de quão pouco se sabe. É certo que a escolha. Malinowski. mas nem “deus” nem “diabo”. minando o etnocentrismo dentro da Antropologia. Radcliffe-Brown são pesos-pesados dentro da Antropologia e das Ciências Sociais em geral. mas muito mais mesmo.] Assim. temos o que foi o evolucionismo como primeiro eixo sistemático de pensamento sobre o “outro” dentro da Antropologia. me parece que nesse sentido o evolucionismo. num resumo. já traz em si alguma semente de relativização. em termos da experiência do “eu” e do “outro”. cenários. Aqui fica um dilema interessante: dois sistemas de idéias – o “espanto” do século XVI e o “evolucionismo” do século XIX – são igualmente inadequados. que passa rapidamente a alcançar limites jamais pensados até então. enredo. pois que ambos são etnocêntricos na sua maneira de ver o “outro”.evolucionismo se armam as bases que virão. mais sabemos o quanto falta saber. Sabemos que ambos não são bons. vê-lo como atrasado e primitivo. a falta ou excesso de significações do “outro”. Durkheim. apresentam diferenças e. num primeiro momento. a visão caótica do “outro”. A história da passagem do etnocentrismo à relativização assume contornos insuspeitados. A magia. exatamente. a hipótese que coloco aqui é simples. VOANDO ALTO Diferentes atores. o evolucionismo e a comparação entre ambos são muito mais. Para a Antropologia é o momento de adquirir uma autonomia que vai render preciosos resultados. pelo menos. por se propor a “pensar” o “outro” e discuti-lo como sócio do clube da humanidade. um “outro” tão humano quanto o “eu”. pouco a pouco. neste processo. mas dotado de uma “natureza” humana da qual também participo. A ausência de um pensamento sistemático sobre o “outro”. Ainda comparamos as duas coisas em termos do que poderiam ter significado. Tivemos também um pequeno quadro do encontro fundamental. entre o ruim e o pior é sempre muito difícil. São importantes a ponto de 82 . como de resto em todas as coisas sobre as quais procuramos saber. Se o “eu” negava. demonstravam a permanência de um tema. específica. dessa maneira. A história. contribuiu. Vamos começar com Radcliffe-Brown porque fica mais nítido entender as idéias que vou retirar dele logo após termos visto o evolucionismo e o difusionismo. Explicaríamos o estado atual da partida através dos seus movimentos pregressos. desde o mais “primitivo” até o dito homem “civilizado”. o da “evolução”. Não se pode dizer. a sua maneira. etc. para o crescimento. É uma história com “h” minúsculo. de Adão e Eva ao Juízo Final. para a maturidade e complexidade da disciplina e. era uma única para toda a humanidade.. Se estivermos jogando uma partida de xadrez e pararmos no vigésimo movimento para analisá-la. controvertidas. interessantes. duas seriam as ações possíveis dessa partida. Estes dois termos exigem uma melhor explicação. e muito. O presente não precisava ser necessariamente explicado pelo passado. que a existência de uma preocupação com a história indicasse. troca e empréstimo que as caracterizavam. estavam vivos para assistir a passagem do século XIX para o XX. o pensamento difusionista propunha o estudo da história concreta de cada cultura. que era o do “progresso”. todos caminhassem num mesmo sentido. como um desafio permanente para o corpo teórico da Antropologia que dava seus primeiros passos. que a hipótese evolucionista criava. diferentemente. no entanto. A diferença é que a diacronia analisa o vigésimo movimento partindo da história dos dezenove movimentos anteriores e. para uma visão menos etnocêntrica e parcial do “outro”. Uma mesma preocupação com a história não se confunde com uma mesma história das preocupações e. estaríamos analisando sincronicamente. de cada cultura particular. era como uma estrada onde cada sociedade acumularia “progresso”. nos dois movimentos. Se analisarmos os movimentos e sua seqüência. cada uma a sua maneira. a sincronia – presente – não está submetida à diacronia . das posições das peças no vigésimo movimento. Para estes dois movimentos. no entanto. Por mais distantes que pareçam ter sido – e eu espero que isso tenha ficado claro – evolucionismo e difusionismo tinham algo ainda em comum. permanece como tema de importância central no estudo das culturas para as duas escolas. Em termos mais técnicos. via de regra. Todos eles tinham personalidades peculiares. por eles. os processos próprios de mudança. dos valores atuais dos peões. juntamente com Boas. Recapitulando: para o evolucionismo a história tinha “H” maiúsculo. uma mesma preocupação se fixou como questão fundamental.ninguém deixar de ler ao menos parte de suas obras se quiser fazer uma iniciação à Antropologia. o que nos interessa mais de perto. Era a história sempre a permear os estudos e reflexões em quase toda a literatura sobre as culturas humanas. Cada um. estabelece seu 83 . torres. Se. Tanto num – o evolucionismo – quanto noutro – o difusionismo – os trabalhos produzidos. faríamos uma análise diacrônica. desde o primeiro até o vigésimo.história. evolucionismo e difusionismo trataram diferentemente o problema. Por outro lado. O longo caminho da história. bispos. uma idêntica concepção da natureza da história. Como se. Radcliffe-Brown discordou dessa vinculação que existia entre a compreensão do presente de uma cultura e o estudo do seu passado. efetivássemos uma análise das forças dentro do tabuleiro. Todos os três. agora. inexoravelmente. O verdadeiro ponto de ruptura. caminha inexoravelmente no sentido de empurrar o estudo do “outro”. Chegou mesmo a escrever que o verdadeiro conflito teórico na Antropologia não acontecia nem entre os diferentes tipos de difusionismo. tem nesta forma de conceber o tempo um instrumento básico para sua apreensão da vida. Com isso. se pensarmos bem. Assim. especulativa. mais complexa. para uma hierarquia de sociedades atrasadas e avançadas. Mais simplesmente. que nem sempre poderá ser lá encontrada. se obriga. porque nem todas as sociedades buscaram valorizar o tempo linear. Sim. forças e significados internos a este movimento. o centro da reflexão estava menos na compreensão teórica das instituições e mais nas transformações diacrônicas pelas quais passaram estas instituições. E vai ser este adjetivo funcional que vai deixar uma marca profunda na opção da Antropologia em direção a relativizar. o estudioso. com seu corte teórico. nem entre estes e o evolucionismo. A nossa sociedade. Ao fazer esta opção. a diferença deixa de ser equacionada em torno do tempo histórico. aí. centra sua análise no momento determinado pelo vigésimo movimento e. da “diferença”. situava-se no plano das escolhas ou de uma abordagem historicista ou de uma abordagem funcional. Ao procurar ver o “funcionamento” de uma sociedade. não concordou Radcliffe-Brown. antes de tudo. se interessa pelas posições. definitivamente. Para ele. E. radcliffe-Brown. uma preocupação típica da sociedade do “eu”. que genericamente pode ser visto como um movimento que recobre uma parte muito significativa da produção antropológica. histórico. como no evolucionismo. Isto é uma relativização fundamental na medida em que. por seu turno. veremos que a preocupação com a história é. a sociedade do “eu”. e uma preocupação com ele. seja ele difusionista ou evolucionista. Quando Radcliffe-Brown desamarra a Antropologia da História abre um imenso espaço para que a sociedade do “outro” se mostre tal como ela é. Com isso. feito de acontecimentos sucessivos. Para os que pensavam na história como a via explicativa do presente cultural. A Antropologia se desvincula da história e parte para o estudo da sociedade do “outro” sem se preocupar com o passado dessa sociedade. para fora do etnocentrismo. É na trilha aberta por ele que a comparação dos diferentes se faz menos etnocêntrica. Nesta 84 . a história conjetural. A razão pela qual o funcionalismo relativizou pode ser encontrada no fato de que ele iria se opor ao estudo diacrônico e se conjugar com os estudos sincrônicos. por mais míope que seja. ao menos. O funcionalismo. estas duas abordagens resultam em perspectivas diferentes de como conduzir um estudo antropológico.conhecimento do vigésimo. como uma forma lógica e interessante para pensar sua própria existência. contrastava fortemente com sua proposta de estudo funcional das sociedades. dá outras dimensões à Antropologia. O jogo entre o “eu” e o “outro” deixa. A Antropologia. A sincronia. neste sentido. o presente se conhece pelo passado e estudar a história das culturas significa conhecer a verdadeira dimensão da cultura. a discussão realmente importante. Passando para a análise das culturas humanas. a pensar esta sociedade em seus próprios termos. mais relativa. de ter na hierarquia sua regra número um. o que a levava. como já disse. para o historicista. como que contrabandeava para a sociedade do “outro” uma concepção de tempo. descrita. por seu turno. A sociedade não morreria. possui uma estrutura composta de ossos. por analogia. Este. por sua vez. É esta amplitude de contato que acontece na vida em sociedade. sutis. os aplicava ao estudo da sociedade humana. a da “estrutura social”. Transportava termos da Ciências Naturais e. comparada e classificada pela Antropologia é um fluxo permanente. das ações. muito mais complexas. mas. as ações e interações do “processo social” que se tornam significativamente repetitivas. Em primeiro lugar. Este organismo. que a idéia de “função” complementa o esquema teórico.linha. compondo-se com os conceitos de “processo” e “estrutura”. outras “funções” cruciais. ao certo. além de mais amplas. tem a vida como um fluxo permanente que o habita. Nela. termina o processo vital e a estrutura orgânica. inteligentes e profundas que esta pretensa explicação. A função estabelece a correlação entre o processo vital e a estrutura orgânica. Comparava o sistema social ao corpo humano. a sincronia deveria ser analisada por conceitos bem precisos. É a ponte que permite o encadeamento lógico dos dois conceitos. no mesmo sentido em que o corpo morre suprimida a função do coração. como um organismo complexo que é. tecidos. Na sociedade. o coração. A realidade concreta a ser estudada. Para ele. tão a seu gosto. desempenha a função de bombear o sangue através do corpo. se descaracterizaria ao ponto de se transformar profundamente. onde outras instituições terão. etc. formam redes complexas de relações sociais onde cada um e todos se encontram envolvidos sistematicamente. É ela que irá fazer a ligação entre “processo” e “estrutura”. por exemplo. serve para explicar o conceito de “função” e sua relação com “processo” e “estrutura”. se constituía no objeto antropológico por excelência. também desaparece. Por outro lado. algumas instituições desempenham uma “função” crucial na manutenção do “processo” e da “estrutura”. que são cuidadosamente definidas para formarem um esquema interpretativo da realidade social. aqui. É o caso de noções como “processo”. procuro apenas 85 . por exemplo – aponte uma outra dimensão. Assim. vamos ver que a busca de rigor teórico e precisão conceitual têm um papel importante a desempenhar no conjunto de sua obra. o processo vital. repetitivas. dentro dessa imensa diversidade de fatos do “processo social”. de permanência obrigatória para a manutenção do organismo. fluidos. recorrente. Pode ser percebido como o encadeamento das relações. das interações entre seres humanos ocupando “papéis sociais”. observada. é um processo: o “processo social”. Se estas funções forem suprimidas. mais significativas que outras e que podem ser percebidas pela observação direta das ações cotidianas. Radcliffe-Brown achava conveniente estabelecer uma comparação entre a Antropologia e as Ciências Naturais. a constância de determinados tipos de relações – a disposição de pessoas num certo número de famílias. É evidente que as colocações teóricas de Radcliffe-Brown são. É nesse quadro. “estrutura” e “função”. A vida caracteriza um constante processo. Dentro desse “processo social”. enquanto estrutura viva. Mas. é importante que se saiba o que. Uma de tais analogias. a sociedade se transformará numa outra diferente. podemos perceber a existência de formas regulares. Se parar de executá-lo. Espero que ele me perdoe. atacada numa função básica. E. é necessário entendermos o quanto foi penoso e fundamental. passa a poder esboçar uma tentativa mais solta de compreender o “outro”. Durkheim afirma categoricamente uma ruptura: o social não se explica pelo individual. a conquista de um espaço autônomo de movimento para a Antropologia. produzido na sociedade do “eu”. São “coisas” porque autônomos. principalmente. em diferentes momentos e de várias formas. autônomos. o superior pelo inferior. tem de viajar. Antes. experimentando-se a si próprio como diferente. o social como objeto de estudo não apenas se afirma no presente. um tema aparece e se repete. Contando. na sincronia. Um outro nó. e não menos importante para a autonomia antropológica. também o todo – a sociedade – não se explica pela parte – o indivíduo. por estar. E. Isto quer dizer que não pode ser reduzido a explicações de natureza diferente. Já vimos o papel aí desempenhado pela ruptura que Radcliffe-Brown estabeleceu entre Antropologia e História. nesta afirmação Durkheim investe contra o reducionismo. Conhecer a diferença. assim.demonstrar que. com instrumentos teóricos que eram criados. mas também se afirma como entidade autônoma. mas seus projetos tinham rumos diversos. O antropólogo. na questão do etnocentrismo e de sua superação. Com isto. principalmente. então. fazendo “trabalho de campo” no “mundo do outro”. bela e complexa obra deste grande mestre francês pode perceber que. A Antropologia. o complexo pelo simples. que independe do indivíduo. Tem de ir morar. Os fatos sociais são externos. conseqüentemente teve de procurar. São “coisas”. São “coisas” ainda no sentido de que seu conhecimento requer certa atitude mental. ao colocar novas questões em jogo. Investe contra a possibilidade de se diluir o objeto específico da Sociologia e da Antropologia a simples conseqüências de outros tipos de fenômenos. vai ser desatado por Émile Durkheim. pagou o preço de uma forte relativização. por períodos significativos de tempo. Contra a tentação de explicar o fato social pela consciência individual. são fenômenos de natureza tal que recusam explicações outras que não a própria sociedade. histórico. O importante aqui não é entrarmos em difíceis e detalhadas discussões de seu pensamento. transformados ou suprimidos no contato direto do antropólogo com sociedades diversas. 86 . O significado de seus estudos e da expressão “trabalho de campo”. ao fazer a opção pelo estudo sincrônico. livre para estudar a sincronia. Assim como os fenômenos psíquicos não se explicam pelos biológicos. na produção teórica. novos instrumentos para pensá-las. Qualquer estudante da vasta. me parece. experimentar a existência junto ao “outro”. no sentido de sua concretude que independe da natureza. mas percebermos o quanto suas idéias repercutiram num abalo do etnocentrismo. Neste sentido. Isto significou que. um outro lado do laço. é de extrema importância e será visto um pouco mais adiante. abalaram o etnocentrismo principalmente por liberarem a explicação antropológica do “outro” de uma noção de tempo linear. independente do indivíduo. Colocou ele com precisão que as duas disciplinas poderiam cooperar de diversas maneiras. Fatos sociais são dotados de uma Sócio-lógica. para a Antropologia e para o processo de relativização. obrigado aos estudos sincrônicos. Malinowski foi o grande viajante da Antropologia. envolvido dentro da extensão de um determinado fato social. A nós. Na verdade. Em outras palavras. Estas conquistas que podem parecer. parece tudo muito simples e óbvio. ele é extenso ao querer e ao poder do indivíduo. agora. O social tem seu próprio caminho. vou utilizar o próprio Durkheim que. Ninguém. uma “coisa” que ultrapassa cada um. que o fato social coage. Alguém mais – Durkheim – mostra que o social tem uma particularidade que não se confunde com a soma dos indivíduos. em primeiro lugar. Esta autonomia de um fenômeno e de uma disciplina para estudá-lo tem a equivalência de um corte longo. Com isto ele queria demonstrar. ou então ainda. Esta autonomia tem a trajetória de um vôo alto. fixa ou não. racionalizações e interpretações provindas de um nível de lógica diverso desta realidade. Na definição de fato social está cristalizada a independência deste tipo específico de realidade – a social . o “outro” com todos os seus desafios. torna-se uma força diante da qual este é coagido a uma participação independente da sua vontade. procura defini-lo com muita clareza: “É fato social toda maneira de agir.diante de explicações. O estudioso dos fenômenos da sociedade recebe destas mãos a tarefa extremamente difícil de desvendar uma face da realidade – a face do social – cujo perfil mais radical começa. independente e própria. à primeira vista. intitulado “Que é Fato Social”. pressiona os indivíduos com uma autonomia que os submete à sua lógica. alguém – Radcliffe-Brown – mostra que a Antropologia tem um projeto e a História. Possui força autônoma. o fato social pressiona o indivíduo. o fato social se estende por todo o agrupamento onde ele acontece. novamente. As regras do jogo exigem muito mais dos parceiros. outro. independente das manifestações individuais que possa ter”. profundo. O fato social é. Em terceiro lugar. de um entendimento do “outro” e da “diferença” sem precedentes até então. me limito a rápidas pinceladas num aspecto do pensamento de Durkheim. algo externo a cada membro de uma sociedade enquanto uma consciência particular. por todos e para todos. apresentando uma existência própria. Diante de fatos sociais que me envolvam não me é possível deles me excluir. exigiram.Explicando melhor. suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior. Aqui. A “diferença” cara a cara. no intrincado bolo do saber. evidentes em si mesmas. É. dentre os fatos humanos ele é um tipo único que não pode ser reduzido a nenhum outro tipo. um longo esforço de relativização. que é geral na extensão de uma sociedade dada. 87 . vemos que o fato social é (1) coercitivo. pode dele se ausentar. o fato social. que embarcamos neste turismo antropológico procurando pensar juntos a passagem do etnocentrismo à relativização. Em segundo lugar. a ser traçado. Acompanhando esta definição. interessa antes de tudo ver que Durkheim levantou a questão da autonomia do social. De repente. (2) extenso e (3) externo. no entanto. para além das manifestações individuais. no primeiro capítulo do seu livro As Regras do Método Sociológico. eis aí! Está inaugurado. a grande “viagem” do “trabalho de campo” se realiza. fechar o ciclo e repensar o próprio “eu”. no repto lançado pela experimentação do relativismo. o Vôo alto de Malinowski na sociedade do “outro”. ao estudo de uma “festa”. Para a Antropologia. Sua obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental fala sobre o arquipélago formado pelas Ilhas Trobriand e das sociedades que as habitavam. de onde consegue. O importante. os índios trobriandeses eram navegadores e viajantes ousados. para os parceiros. No circuito do Kula. é que os objetos valem não pelos seus aspectos utilitários ou comerciais. mas pela sua 88 . na sociedade do “eu”. Malinowski foi a grande ousadia de navegar a “diferença”. não eram comerciais. neste contato com a “diferença”. O ideal é que. procurando o sentido dos objetos do Kula. que mais caracterizavam o Kula. Lá. neste processo. e os colares. Como estas transações. leitor. a força da passagem realizada por Malinowski á a transformação da visita ao mundo do “outro” pelo efetivo “trabalho de campo”. também. são sempre mantidos no circuito de cerca de duas dezenas de ilhas e demoram de 2 a 10 anos para dar a volta completa e retornar ao ponto de partida. feitos de conchas brancas. Imagine-se. uma nave lendária da mitologia. vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar a te desaparecer de vista. pela primeira vez. qual seria o sentido desta troca de braceletes e colares? Qual o valor que tinham? Por que eram tão importantes para os ilhéus de Trobriand? Aqui começa a grande viagem. observava as jóias da Coroa do Império Britânico e o guia da excursão começa a contar as estórias vinculadas a cada objeto. Malinowski teve a sensação de ser transportado para Trobriand e ouvir. ele vê que estes objetos possuem. trocavam-se braceletes e colares que. similares que podem ser comparados. o nome que se dá a qualquer navegador ousado. Os trinta e um meses vividos por ele nas aldeias das Ilhas Trobriand marcam a qualificação desta passagem. de conchas vermelhos. Com Malinowski. nas ilhas circunvizinhas. É. Objetos de valor britânicos e trobriandeses se equivalem se pensados na relação com seus contextos. no fim de cada ciclo. belas estórias ligadas aos braceletes e colares de conchas. rodeado apenas pelo seu equipamento. viajar o “outro”. na Antropologia. no abandono dos confortos e seguranças do etnocentrismo. escolhidos de Antemão. Malinowski dedicou-se. Visitando o castelo de Edimburgo. Para Malinowski. Os braceletes. Esta é o clima que se espelha logo na introdução do seu livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental. eram plenos de valor e significado. dos seus amigos nativos. Imaginou-se? Pois é. assim. Malinowski foi nosso grande viajante. Nisto. nas duas culturas. Esta “festa” chamava-se Kula e consistia muito simplesmente numa troca de presentes entre parceiros predeterminados. sozinho.E. tentasse obter mais do que aquilo que deu no início pagaria a pena de uma desonra dura e definitiva. Qualquer um que. entre outras tarefas. Neste momento. finalmente. aquele que é provavelmente o seu maior instrumento de relativização: o “trabalho de campo”. Um argonauta era um tripulante de Argo.. numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa. Não que antes dele não se tivesse visitado o mundo do “outro” com o intuito de conhecê-lo. Mas. os indivíduos participantes das trocas fiquem de posse dos objetos que tinham no início. posse pura e simples. aponta para um caminho fundamental: o “outro” é. Idéias. a comparação relativizadora. pode ter observado a existência constante de uma tentativa. fundadores e pioneiros da disciplina. Resta agora confirmar esta perspectiva.são. a Antropologia foi criando seus instrumentos de abertura. cada vez mais. Diferentemente do nosso missionário do primeiro capítulo que retirou objetos de um contexto cultural e aplicou-os em outro. A viagem de Malinowski e sua afirmação do trabalho de campo obrigam a ida na direção do “outro”. pelos sentimentos ligados ao prazer de possuí-los. e suas últimas palavras. sua palestra falando do “outro”. porém. A VOLTA POR CIMA Em 1908 muitos nomes citados ao longo dos capítulos anteriores estavam produzindo sua Antropologia. O “outro” é. fazendo com isso um uso estético de objetos originalmente técnicos. Tudo isso indica muito daquilo que venho procurando demonstrar deste longo caminho que a Antropologia percorreu no sentido da relativização. Passos gigantescos nessa disciplina que. todos os leitores já devem ter percebido que ele abriu o caminho de um novo tipo de comparação possível. teorias de compreensão da diferença foram fazendo das sociedades do “outro” um espelho para a sociedade do “eu” e não um fantasma a ser exorcizado. Lévi-Strauss homenageia os “índios dos trópicos e seus semelhantes pelo mundo afora”. também. Encerrou. Comparou relativizando o “eu” e o “outro”. a “diferença” feita alternativa possível de existência. ao dar a aula inaugural da cátedra de Antropologia Social no Collège de France. Diz-se. “discípulo e testemunha”. Trata-se de escapar ao etnocentrismo. entre nós. Em todos os passos dados por esta “ciência da diferença” você. leitor. ainda. Do etnocentrismo à relativização. eles valem pela glória. comparando com o relativismo. Com os vôos altos de Durkheim. Esquematicamente falando. a cada momento. também. Cerca de cinqüenta anos depois. ousou sempre. de transformação até. devedor do que aprendeu com eles. Malinowski comparou objetos com seus respectivos contextos e destes para outra cultura onde também examinou contexto e objetos. dar a volta por cima do etnocentrismo e eleger a diferença como conquista. o trabalho de campo. Ele mesmo. Radcliffe-Brown e Malinowski começa a se impor esta perspectiva relativizadora no jogo da Antropologia. métodos. Acompanhando Malinowski. quase um compromisso. Pelas estórias de feitos heróicos de lendários possuidores. No caso. nesta aula. a comparação de Malinowski foi dos braceletes e colares do Kula com seu significado na sociedade trobriandesa versus jóias da Coroa Britânica com seu significado na sociedade inglesa. A comparação relativizadora. merecedores de muita ternura. algumas das mais importantes obras da literatura antropológica. da própria sociedade do “eu”. que são. a uma percepção do “outro” que fosse 89 . para lembrar que destes “outros” gostaria de ser. faria uma homenagem a todos os grandes mestres. Claude Lévi-Strauss estava nascendo. uma fonte possível de reflexão. Com ele iriam nascer. para ele. a autonomia da Antropologia diante da História e do fato social frente ao individual são passos gigantescos. Assim. mesmo em seus momentos mais distantes. conjugado. Por exemplo. a força fundamental. com a crença num estilo de vida que exclui a diferença. norma constante. Este paradoxo levou. A própria opção de ser o estudo do “outro”. seria o óbvio. ou melhor. não como ameaça a ser destruída. aliados poderosos. Possui. chance. Mas. de um campo de conhecimento. acompanhamos como um dos seus conceitos centrais – o de cultura – foi se relativizando. Acho que a Antropologia sempre soube. no caso particular da nossa sociedade ocidental. pois o objetivo de qualquer sistema de produção é fazer subsistir os 90 . muitas vezes. Isto. os costumes. à flor da pele. sempre soube.centrada no próprio “eu”. de alguma forma. que conhecer a diferença. A Antropologia havia de pensar com instrumentos do mundo do “eu” porque este é o mundo onde se criou. as sociedades tribais. na verdade. de uma disciplina que foi obrigada a sentir mais de perto. durante muito tempo os primitivos. modelo. como uma experiência da diversidade. E o foi precisamente porque mais e mais a Antropologia alçava seu vôo autônomo. de uma busca de compreensão do sentido positivo da diferença. Se não vejamos: de todo este retrospecto de algumas das principais vertentes da Antropologia Social vimos sempre o conceito de cultura como que articulado. O etnocentrismo está calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do “eu”. ao longo de todas as diversas formas de se pensar antropologicamente. preso a uma determinada viso da história humana. de reflexão. numa ilha do Pacífico ou nas savanas do Brasil central. acredito. ao falar sobre o tema do etnocentrismo procurei fazê-lo exatamente por dentro de uma ciência. que cedo se instaurou como capaz de contrabalançar o etnocentrismo. comportamentos e idéias do mundo do “eu”. a “diferença” é generosa. já atesta. independente. como menos etnocentricamente convém chamá-las. colocou sempre problemas para uma compreensão relativizadora da sociedade do “outro” O paradoxo da Antropologia está no fato de ser um tipo de ciência. Creio que foi isto que o jogo da Antropologia. esta “vocação” da Antropologia de preservar a experiência da diversidade.Ela é o contraste e a possibilidade de escolha. a Antropologia a ter como parâmetro.. os índios. Foi este o lado da Antropologia que tentei buscar na medida em que o vejo como o principal motor. É alternativa. Nesta série de pequenas viagens pelo interior da Antropologia. para pensar o mundo do “outro”. abertura e projeto no conjunto que a humanidade possui de escolhas de existência. estando ele na porta da rua. com a ideologia da conquista. Para uma sociedade que tem poder de vida e morte sobre muitas outras. o etnocentrismo se conjuga com a lógica do progresso. essa questão do etnocentrismo. Trata-se. Esta experiência começa a invadir a própria teoria antropológica que passa assim a se influenciar pelo mundo do “outro”. Isto. foram vistas como sociedades de economia de subsistência. seria uma grande contribuição ao patrimônio de esperanças da humanidade. na vida concreta dos antropólogos. mas como alternativa a ser preservada. mais e mais repassava esta autonomia para a compreensão do “outro”. nascida e criada na sociedade do “eu” com vista ao estudo das formas diversas com que os seres humanos assumiram sua existência humana na terra. me parece. Com o “trabalho de campo” o mundo do “outro” começa a ter presença. de toda evidência. com o desejo da riqueza. uma outra . porque fizeram uma opção diferente. as noções de cultura estavam vinculadas à contrapartida de uma definição de história. em larga medida. a Antropologia contrariou sua vocação de preservar a experiência da diversidade. Ali se definia a história da humanidade como uma trajetória única. se desincumbe dela de forma tal que não falta nada para ninguém. que podem transformar a teoria antropológica. aconteceu uma exigência de compatibilidade entre os conceitos de cultura e história. será esta uma verdade integral e indiscutível? Parece que não! Observando. comparando. Com o evolucionismo tudo isso fica muito nítido. antropólogo Marshall Sahlins. Mas o que estava por trás desta idéia era a imagem da sociedade tribal como que lutando frente ao meio ecológico. Quando esse conceito. em economia de sobrevivência ou. seria necessariamente pobre e miserável. Para uma sociedade – a nossa – que tem o objetivo da acumulação sistemática. parecem ser suficientes para satisfazer materialmente a necessidades do grupo. Ora. Mas. E. Assim. quando a Antropologia se deixou guiar pelas certezas da sociedade do “eu”. ou melhor. Aqui podemos ter o exemplo do significado do respeito aos dados etnográficos. 91 . esta economia permite a existência de uma sociedade de abundância. Economia de subsistência se traduz. sobrevivência ou miséria. Assim. está muito longe da imagem de uma economia de subsistência. mais diretamente. uma máquina produtiva que. Parece que.indivíduos que dele fazem parte. quando havia uma determinada visão de cultura. Perceber que as sociedades tribais não acumulam não porque não podem. A esta visão da história correspondia a visão da cultura como listagem de fenômenos que definiriam o sentido da vida em qualquer lugar. em vários momentos da teoria antropológica. um professor americano. mas porque não querem. Muito pelo contrário. foi. Três ou quatro horas por dia.a deles -. mais que isto. essa forma de ver a passagem do tempo. nelas. encaixada com os conceitos de cultura. são reciprocamente definíveis. que não pratica essa acumulação. dados obtidos pelo trabalho de campo. utilizando seus parcos recursos técnicos para não morrer miseravelmente de fome. vice-versa. comprova que. sempre que estas certezas foram os modelos exportados como valor de verdade. como um grande rio no qual todas as sociedades navegavam juntas. neste sentido. Esta imagem de uma sociedade esmagada por uma incapacidade de maior produção é que se encontra por trás da noção de economia de subsistência. dedicando-se tão pouco a esta tarefa. já que todas eram impulsionadas pelo mesmo motor histórico.muito pouco tempo é dedicado a atividades econômicas. A cultura evolucionista e a história evolucionista são solidárias. é perceber o “outro” na sua autonomia. Isto se torna possível. então. de miséria. pelo trabalho de campo. se tornava mais “verdadeira”. a definição de história era legitimada. com muitas interrupções e com apenas parte da população se empregando na tarefa. Isso se deu de forma muito clara quando o modelo da Antropologia foi o conceito de história. estudando a vida destas sociedades. Como se a nossa maneira de conceber o tempo – a história – fosse um modelo eficaz para o estudo de todas as formas da experiência humana – a cultura. Todas as culturas teriam de viver experiências iguais. a complicação se tornou ainda maior. ou pela linguagem. Esta perspectiva só é possível quando se leva fé num caminho da humanidade em busca de um desenvolvimento acumulativo permanente. Colocava-se. quando se admite que a cultura é feita de itens iguais em toda parte. Com Durkheim. para conhecê-la. É claro que a acentuação num ou noutro destes fatores faz diferença. mas ainda bastante problemática. de um “movimento” onde a História era ordenadora dos estádios das culturas humanas para outro onde se torna particular a cada uma delas e chegamos ao movimento onde entender uma cultura dela independe. como capaz de explicá-la inteiramente. nitidamente a possibilidade de um entendimento da cultura humana de um ponto de vista não histórico. É um passado pelo qual já passei. É. Ainda assim. o conceito de tempo linear. na verdade. também particular. Nesta perspectiva o mundo é mostrado do Egito para a Grécia. Agora chega o “movimento” em que a Antropologia e. noções e concepções da sociedade do “eu” e passam a poder pensá-las e relativizá-las. Radcliffe-Brown e Malinowski a idéia de cultura ganha uma força extraordinária e se desprende da História. totalizador das “diferenças”. quando se acredita que todos sempre procuraram respostas para as mesmas perguntas. ou seja. No plano da observação do “outro” a regra do jogo é a sincronia e. Esta perspectiva – da história e da cultura – é o que podemos chamar de totalizadora. Lembram das aulas de história? Do vestibular? Do livro didático? Pois é. Outra vez os dois conceitos se conjugam. mas um traço comum atravessa todas estas abordagens. No plano teórico. Assim.À visão de cultura como listas de itens corresponde a da história como trajetória única. esta idéia de culturas particulares com problemas e soluções diversas tem. progredi. grande e completa explicação. A cultura deixa de ser uma lista de itens e é afogada na escolha de um único aspecto que domina tudo e acaba por defini-la. porque evoluí. histórico. Em outras palavras. numa idéia de história. no fundo está a se fazer uma redução da cultura global a um efeito reflexo deste lado privilegiado. A cultura vai ser entendida como moldada. É o que comumente se convencionou chamar “História da Civilização”. Totalizadora porque explica tudo e encaixa qualquer diferença concretamente existente numa única. desta para Roma e por aí vai até um capítulo final tipo “Panorama do Mundo Atual”. de trajetórias distintas. Do momento em que se privilegia um lado da cultura. 92 . ou pelo indivíduo. através dela. Nesta perspectiva. as noções da Antropologia tornam-se capazes de pensar igualmente a nossa sociedade e aquelas que dela diferem. tudo se relativiza. Numa palavra: o “diferente”. mas pagando o preço de reduzir a cultura a uma espécie de conseqüência de um de seus próprios lados. pode passar a ser questionado. o “outro” é atrasado. assim. a sociedade do “outro” deixam de ser pensadas por categorias. deve-se experimentar a barra da “diferença” através do trabalho de campo. qualquer que seja. ou pelo ambiente. pois. A noção de história deixa de ser a da humanidade como um todo e passa a ser procurada nos homens concretos com todas as suas diversidades. a noção de fato social consagra a autonomia do objeto de estudo das ciências sociais. Ainda mais. uma perspectiva nada relativizadora de pensar a diferença. Passamos. Já com o difusionismo de Boas e seus alunos a coisa parece menos etnocêntrica. sua contraparte. por esta pequena experiência de entender algo tão fundamental para o “outro” como o tempo. desdobrar-se. nos capítulos anteriores.Neste questionamento. diz ele. se sente fazendo história. Este é o último capítulo do livro. tal como para nós. o tempo e a sua passagem não são a cadeia onde se entrelaçam os acontecimentos. Você. Talvez isso possa parecer extremamente complexo. da maneira pela qual a nossa sociedade concebe a existência. muitas culturas e sociedades ao redor do mundo não acharam a perspectiva histórica (nossa maneira de pensar o tempo) suficientemente interessante para adotá-la. ele demonstra. uma linearidade ininterrupta. É. É. Esse tempo se contrapõe. na medida em que esta concepção do tempo nos exige que relativizemos a nossa. o quanto é difícil o processo de relativização. mas. tipo causa e conseqüência. Uma espécie de “tempo da aurora” universal onde o homem adquiriu sua existência. O passado é um tempo que se reflete no de hoje como um ciclo que permanentemente oscila entre dois pontos – “presente anterior” e “presente atual” -. para um Apinayé. estudando o que fazem aqueles que você acha que fazem história ou simplesmente pensando sobre tudo isso filosoficamente? O livro onde Lévi-strauss se faz estas perguntas chama-se Pensamento Selvagem. revirar-se para atingir uma compreensão de coisas como esta. Antes. que são como dois momentos fixos. o coração por assim dizer. O Apinayé concebe a existência de um “presente anterior” onde o mundo se forma. Dá para sentir o quanto a Antropologia foi obrigada a batalhar. simplesmente. Ou seja. O antropólogo brasileiro Roberto Da Matta conviveu com e estudou um grupo de índios do Brasil central chamado Apinayé. tentando explicar poeticamente. possuem muito pouco sentido no seu entendimento da existência. Será história aquilo que os homens fazem no seu cotidiano sem saberem que estão fazendo? Ou será o que fazem os historiadores sabendo que estão fazendo uma história dos homens? Pode. É o próprio Lévi-Strauss quem. Um exemplo pode nos facilitar muito aqui. outro no chão. Nas páginas onde se questiona sobre a história está travando um debate com as idéias de Jean-Paul Sartre. a continuidade do seu mundo não é fruto de uma noção de tempo. Para um Apinayé. E é mesmo. o tempo é sentido. Por incrível que possa parecer. O tempo não é. a unidade. sendo parte dela. a Antropologia vai atingir um dos centros principais. também. Houve o tempo da aurora onde se fixou a existência e há o tempo do agora onde se pratica aquela forma de existir. sem descartar o valor da história como instrumento de conhecimento. a existência de uma forma alternativa de se conceber o tempo. Um no céu. um jogo de espelhos. Dá para sentir. leitor. ser a interpretação filosófica feita tanto sobre a história dos homens quanto sobre a dos historiadores. um fluxo. Para elas. a concepção de uma sociedade entre outras e que vale tanto quanto qualquer outra. pensado e vivido como descontinuidade. Tudo o que foi realizado no “presente anterior” é o mesmo que se realiza no “presente atual”. estranho e ininteligível até. é espelho do “presente atual” que procura reproduzi-lo. entre outras coisas muito importantes para o conhecimento do ser humano. Muito mais simples seria dizer que o “outro” não sabe o que é o tempo ou que 93 . A Antropologia se permite mostrar que a nossa concepção de tempo não é absoluta nem universal. se pergunta sobre qual história estamos falando quando nossa sociedade quer fazer dela a principal forma de entender o “outro”. o fluxo. sabe, mas de maneira errada. Mais fácil, enfim, seria aplicar ao “outro” a nossa concepção de tempo pura e simplesmente. Estes e outros exercícios de sair de si mesmo, de relativizar, foram realizados pela Antropologia. A cada novo estudo antropológico que se realiza temos como que um movimento no sentido de procurar conhecer o “outro” na forma como esse “outro” experimenta a vida. Em termos mais simples, o que se quer saber é como os Apinayé, no caso, pensam o seu mundo, seu tempo, sua existência, e não explicar os Apinayé pelo nosso mundo, nosso tempo, nossa existência. Mas, para isto a Antropologia foi obrigada a municiar-se de teorias, métodos e, até mesmo, de uma redefinição de seu papel como ciência. Uma das idéias mais importantes nesta perspectiva foi colocada em discussão num livro chamado A Interpretação das Culturas, do antropólogo americano Clifford Geertz. Ele diz que a Antropologia não é uma ciência do tipo experimental que tenha como objetivo a procura de leis gerais e constantes. Ela é uma ciência interpretativa que busca apenas conhecer os significados que os seres humanos, tanto na sociedade do “eu” quanto do “outro”, dão às formas pelas quais escolheram viver suas vidas. Leva ainda adiante esta idéia apontando que uma das finalidades da disciplina é ser uma espécie de “arquivo universal”, de “catálogo geral” das alternativas humanas de existência. Os ilhéus de Trobriand que faziam a cerimônia do Kula, estudada por Malinowski, à qual nos referimos no capítulo anterior, não existem mais. No entanto, os trobriandeses estão aí vivos, enquanto uma experiência social alternativa à nossa, pelo trabalho de Malinowski. O mundo muda; destrói sociedades, cria outras. Aniquila experiências sociais e propões novos projetos de viver. A Antropologia, ao contrário, fixa de maneira recuperável as existências que se esvaem, as formas de experimentar a riqueza da vida que amanhã podem não estar mais disponíveis. Numa palavra: procura colocar ao alcance do ser humano as respostas existenciais que deram os vários “outros” pelo mundo afora. Esta tarefa, tanto humilde quanto generosa, passa a ser possível quando a Antropologia encontra o que parece ser uma espécie de vocação. Aquela de ser uma ciência, um saber, um conhecimento ou, se quisermos, uma literatura que não é das verdades absolutas, mas das interpretações relativas. Para tanto foi fundamental uma nova definição de cultura onde diferentes possibilidades foram exploradas. Para se pensar o fenômeno cultura, enfatizando sua dimensão interpretativa, um conceito de cultura suficientemente aberto permitindo o encontro com o “outro”. Melhor dizendo, o fenômeno das culturas humanas vai ser visto como a alternativa que sociedades concretas escolheram de organizar, classificar e praticar sua experiência. Assim, vários e importantes antropólogos procuraram juntar o conceito de cultura com a idéia de um código. Um código é uma espécie de “linguagem” compartilhada, pela qual “falamos” uns com os outros, trocamos mensagens, utilizando símbolos de diferentes tipos. Qualquer coisa pode se tornar um símbolo e estes se organizam em sistemas que são, por assim dizer, como que mapas, conjuntos de regras para o pensamento e a ação. A cultura, nessa linha, pode ser vista como um texto de teatro que aprendemos e representamos e os outros atores nos entendem e conosco contracenam porque também conhecem o texto. Pode também ser vista como 94 uma teia, metáfora explorada por Clifford Geertz, onde o homem tece seus significados e está a eles preso e dentro deles vive. Cada um de nós, enquanto ator social, existe e troca mensagens dentro de um código fundamental que temos em comum. Este código é a cultura. Nesse sentido, cada cultura atribui significados, sentidos, destinos próprios, seja ao seu “tempo”, seu “corpo”, sua “morte”, sua “sexualidade”, etc. Tal como um código, a cultura “fala” da existência. Ela simboliza esta existência segundo as regras do seu jogo. Sendo entendida como um sistema de comunicação que dá sentido à nossa vida, as culturas humanas constituem-se de conjuntos de verdades relativas aos atores sociais que nela aprenderam por que e como existir.As culturas são “versões” da vida; teias, imposições, escolhas de uma “política” dos significados que orientam e constroem nossas alternativas de ser e de estar no mundo. Todas as dimensões de uma cultura – da comida à música, da arquitetura à roupa e tantas mais – são pequenos conjuntos padronizados que trazem dentro de si algum tipo de informação sobre quem somos, o que pensamos e fazemos. Estes conjuntos são logicamente entrelaçados e compõem o código, o sistema de comunicação mais amplo, que seria a própria cultura de determinada sociedade. O que faz, então, a Antropologia diante da cultura assim definida? Qual sua forma para conhecer estes sistemas de comunicação nos quais vivem os seres humanos? O ofício do antropólogo é captar as lógicas e as práticas através das quais todos nós atualizamos os códigos de nossas culturas. Em termos mais precisos, seria interpretar este fluxo do discurso social, conhecer as diferentes realidades confeccionadas pelo homem, guardar, enfim, as alternativas existenciais através das quais a humanidade se move. Quaisquer que sejam as possibilidades da Antropologia ela, ao menos, livrou-se, definitivamente, de confundir a singularidade cultural da sociedade do “eu” com todas as formas possíveis de existência do “outro”. Quando pensamos na fuga ao etnocentrismo, que significa o questionamento de noções como “economia de subsistência” ou “tempo como história”, vemos o quanto a Antropologia já percorreu do caminho no sentido do “outro”. Este caminho, do etnocentrismo à relativização, é trilhado na medida em que, em todos e cada um dos domínios dentro de uma cultura, a Antropologia discorda do princípio da sociedade do “eu” como medida de todas as coisas. Este é, por exemplo, o caso do domínio das relações de parentesco. O nosso sistema supõe que a família deva transmitir e localizar toda uma série de bens, direitos e deveres. Herança, propriedade, nome e até mesmo um estilo de corpo e traços do rosto ou certa forma de personalidade e sentimento. Mas, de jeito nenhum supõe que ela determine com quem devo casar, quem serão meus amigos e aliados. Na nossa sociedade o casamento é assumido como um ato individual, uma escolha psicológica, dita livre e guiada pela ideologia do amor romântico. O sentimento que une os cônjuges expressa tendências, preferências e escolhas que pertencem ao indivíduo. Assim, sistemas de parentesco, encontrados nas sociedades do “outro”, que determinam não apenas os parentes consangüíneos – pais, irmãos, etc. – 95 mas também, e às vezes principalmente, parentes afins, como o cônjuge, pareciam, para dizer o mínimo, absurdos. Estes sistemas ficavam praticamente incompreensíveis aos nossos olhos ocidentais sempre que se tentava entendê-los tomando a família nuclear (marido, mulher e filhos) como o centro a partir do qual se deveria pensar todo o parentesco. Lévi-Strauss vai mostrar, num famoso livro, As Estruturas Elementares do Parentesco, que a nossa visão da família nuclear como coração do sistema e unidade auto-suficiente é etnocêntrica. Se entre nós a escolha do cônjuge, o lado da afinidade do parentesco é, portanto, decidida individualmente, em muitas sociedades do “outro” esta escolha é fortemente determinada. Isto quer dizer que, para entender estes sistemas de parentesco, é necessário ver que o coração, o centro deste sistema, a chave para a sua compreensão, está numa unidade que inclua também a afinidade. Disso resulta, nos próprios termos de Lévi-Strauss, um outro tipo de “átomo de parentesco” que junta os elos da fraternidade, descendência e afinidade. A afinidade nestes sistemas, mostra ele, não é um dado psicológico, de “foro íntimo”, mas um fator estrutural sem o que não se compreende sua lógica e seu sentido social. Tudo isso indica que a Antropologia, para compreender o “outro”, se obriga sistematicamente a sair das concepções da sociedade do “eu”. Qualquer que seja a arena onde se discute a cultura humana, seja no “parentesco” ou na “economia”, seja na “individualidade” ou na “história”, a compreensão do “outro” chega a um ponto irreversível: a recusa de assumir a sociedade do “eu” como juízo final onde se encontra a verdade. Aqui voltamos direto ao nosso tema. O que é, enfim, o etnocentrismo? Acredito que a resposta está dada em cada um destes pequenos, por vezes quase invisíveis, movimentos que aconteceram na Antropologia. Tudo isso é muito pouco, realmente, frente a um sem-número de ideologias, morais, princípios e juízos espalhados na nossa sociedade, constituindo um sem-número de estereótipos sobre o “outro”. A Antropologia é uma pequena ilha num oceano de pensamentos e práticas sociais marcadamente etnocêntricas. Nas relações internacionais, interétnicas, nos costumes políticos, na indústria cultural, sua exploração econômica e até mesmo na observação do comportamento do nosso vizinho ou em vários outros espaços de pensamento e de ação social, muito pouco se relativiza. O que se passou na Antropologia, como vimos nesta pequena viagem por algumas paisagens, foi ao preço de enfrentar a complexidade que significa sair do etnocentrismo. A Antropologia reflete, no jogo de seus movimentos, conjuntos de idéias, conceitos, métodos e técnicas que, na tensão do relacionamento entre o “eu” e o “outro”, procuram a relativização como possibilidade de conhecimento. O ser da sociedade do “eu” e os da sociedade do “outro” devem estar mais perto do espelho onde as diferenças se olham como escolha, esperança e generosidade. Devem estar, também, mais longe das hierarquias que se traduzem em formas de dominação. Enfim, o etnocentrismo é exorcizado. O mundo no qual a Antropologia pensa se torna complexo e relativo. Chegamos ao ponto de voltar dessa viagem. A ida ao “outro” se faz alternativa para o “eu”. O plano onde as diferenças se encontram (onde o “eu” e o “outro” se podem olhar como iguais e onde a comparação é traduzida num enriquecimento de possibilidades existenciais) é o 96 Aí. se relativizam. problematizada e generosa. no lugar em que ela exerce seu esforço de aprendizado. no encontro entre o “eu” e o “outro”. emerge uma compreensão do ser humano. Aí também. se transformam. pensamentos e práticas etnocêntricas se complexificam. sentimentos. Este.plano mais amplo e profundo de um humanismo do qual o etnocentrismo se ausenta. 97 . a um só tempo. é o plano para onde a Antropologia encaminha nosso pensamento. acredito.