Antonio Vieira

March 26, 2018 | Author: Drpulquerio | Category: Portugal, Religion And Belief


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históriA e culturAPadre António Vieira Padre António Vieira sua vida e suas lutas No ano em que passam quatrocentos anos sobre o nascimento de Padre António Vieira, a Cidade Solidária pela mão do autor evoca a vida e a obra de um homem de saber perpétuo Texto de AnTónio MeirA MArques Henriques* O Padre António Vieira foi uma das figuras marcantes do século XVII português, e foi-o não apenas como religioso, mas também como diplomata, conselheiro da corte, combatente da Inquisição, teólogo e profeta, defensor dos cristãos-novos, dos índios e dos escravos. Homem de Deus e homem do mundo, tanto vivia nas cortes da Europa como nos sertões do Brasil, sempre empenhado nas causas dos indefesos. A sua vida, inflamada pelo zelo missionário, foi um constante peregrinar por continentes e oceanos. A sua fala, através sobretudo das pregações, tanto ecoava em improvisadas ermidas de missão, como nos púlpitos solenes da Capela Real ou da Igreja de São Roque. Neste templo, sede da ordem jesuíta em Portugal, o eloquente Vieira pregou alguns assinaláveis sermões, nomeadamente o célebre “Sermão das 40 Horas”, no ano de 16421. No mesmo ano, pregou também o “Sermão de S. Roque” na festa que dedicou ao santo padroeiro, António Telles da Silva. Este sermão é dividido em duas partes distintas: uma panegírica, outra política. A peroração ou conclusão é eloquentíssima, sendo a mais nobre de todo o discurso. A mesma igreja seria palco da sua presença numa tardia passagem por Lisboa, em 1657, tendo proferido o sermão anual de São Roque2. Este sermão seria pregado no mesmo dia na Capela Real e na Igreja da Casa Professa. É um discurso panegírico, riquíssimo na forma, igual aos modelos mais primorosos da oratória francesa da época. Evocar o Padre António Vieira, em 2008, significa celebrar a sua intensa vida, como intensa e variada foi a sua obra, numa entrega total ao serviço de Deus e do homem multicultural. Significa também evocar a personalidade genial que 1. O “Sermão das Quarenta Horas” tinha lugar por ocasião do Jubileu das Quarenta Horas, na Igreja de São Roque, nos dias chamados de Entrudo ou Carnaval. 2. P. António Vieira, Sermões, vol. 8, Porto, Livraria Chardron, 1907. 126 JULHO 2008 CiDADe soLiDÁriA CiDADe soLiDÁriA JULHO 2008 127 históriA e culturA Padre António Vieira O Padre António Vieira foi uma das figuras marcantes do século XVii português, e foi-o não apenas como religioso, mas também como diplomata, conselheiro da corte, combatente da inquisição, teólogo e profeta, defensor dos cristãos-novos, dos índios e dos escravos foi um dos expoentes da cultura portuguesa de todos os tempos e um dos mais exímios utilizadores da língua de Camões. António Vieira nasceu em Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608, na freguesia da Sé, perto do local onde quatro séculos antes nascera o insigne português, Santo António3. Era filho primogénito de Cristóvão Vieira Ravasco e de Maria Azevedo, uma família de recursos modestos 4. Seu pai, que era escrivão da corte, embarcou para a Bahia, em 1609, no nordeste brasileiro, para exercer funções na Relação do Brasil. Ali se juntou a restante família, em 1614, decorrendo desde então no colégio jesuíta da cidade baiana os primeiros anos de formação do futuro pregador. Vieira cresceu enquanto a nação portuguesa se encontrava sob o domínio da coroa espanhola, facto que explicaria o veemente entusiasmo com que acolheu a restauração da independência de Portugal. Aos 15 anos de idade, ingressa no noviciado da Companhia de Jesus, no Brasil, passando a residir na Aldeia do Espírito Santo (hoje, Vila de Abrantes). Em 1626, com 18 anos de idade, o ainda noviço António Vieira é encarregue de redigir a “Carta Annua” ao Geral dos Jesuítas, uma espécie de relatório anual circunstanciado da Companhia de Jesus no Brasil, o qual constitui o seu primeiro escrito conhecido, que iniciaria desde logo um currículo epistolar sem precedentes5. Na Bahia assiste ao ataque holandês de 1624, o qual descreverá em carta dirigida ao Superior Provincial de Portugal, dois anos mais tarde. “Com a luz do dia seguinte apareceu a Armada inimiga, que repartida em esquadras vinha entrando. Tocavam-se em todas as naus trombetas bastardas a som de guerra; que com o vermelho dos pavetes vinham ao longe publicando sangue. Divisavam-se as bandeiras holandesas, flâmulas e estandartes, que ondeando das antenas e mastaréus mais altos, desciam até varrer o mar com tanta majestade e graça que, a quem se não temera, podiam fazer uma alegre e formosa vista (...) E foi tal a tempestade de fogo e ferro, tal o estrondo e confusão, que a muitos principalmente aos poucos experimentados, causou perturbação e espanto, porque por uma parte os muitos relâmpagos fuzilando feriam os olhos, e com a nuvem espessa do fumo não havia quem se visse; por outra, o contínuo trovão da artilharia tolhia o uso das línguas e orelhas, e tudo junto de mistura com as trombetas e mais instrumentos bélicos, era terror a muitos e confusão a todos.” (P. António Vieira, Annua ou Annaes da Provincia do Brazil dos dous annos de 1624 e de 1625...) Em 1633, ainda estudante de teologia, prega o seu primeiro sermão público – Sermão do Nascimento do Menino Deus – na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador. A 10 de Dezembro de 1634 é ordenado sacerdote. Terminada a formação académica Vieira é nomeado Professor de Teologia. Entretanto, prosseguem os assédios dos Holandeses à Bahia. O clima de ansiedade reflecte-se bem nos sermões proferidos nesta época. Em 1640, antevendo já no horizonte a Restauração de Portugal, prega o famoso Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, 3. Uma lápide antiga, situada no átrio da Sé de Lisboa, assinala o nascimento do P. António Vieira nesta Freguesia. 4. No Registo do Baptismo de António Vieira consta que era filho de Cristóvão Vieira Ravasco (escrivão) e de Maria de Azevedo, moradores na Rua dos Cónegos, freguesia da Sé de Lisboa. O baptismo foi celebrado a 15 de Fevereiro. Cf. Registos Paroquiais da Sé de Lisboa, L. 4-M (baptizados), f. 101 v., Lisboa IAN/TT. 5. A “Carta Annua” revela-se como um precioso documento do ponto de vista histórico, sendo uma fonte essencial para o estudo do conturbado período da presença holandesa no Brasil, de que a conquista da cidade de Salvador acabou por ser um prelúdio para o domínio calvinista daquela parcela do Nordeste brasileiro, no período compreendido entre 1630 e 1645. em Salvador. O Sermão seria traduzido para espanhol, francês, latim, alemão, existindo mais de vinte edições do texto original. Profundamente animado pela Restauração de Portugal, viaja para Lisboa no início de 1641, integrando uma comitiva de locais que veio manifestar a D. João IV a adesão do Brasil à causa da Restauração; permanecerá em Portugal até 1646, sendo este o cenário ideal para desenvolver uma actividade incessante de contactos políticos e apostólicos. Lembremo-nos que certos sectores da nobreza e do clero não apoiavam D. João IV. Também muitos estados europeus, entre os quais a Santa Sé, ainda permaneciam vinculados à hegemonia espanhola, não reconhecendo portanto o novo rei. Escasseavam igualmente os meios financeiros para sustentar a defesa da nação restaurada, bem como os meios diplomáticos que era preciso empreender. Neste contexto, Vieira serviu o Reino como seu “embaixador” em França, na Holanda e em Roma. O seu zelo patriótico aliado a uma poderosa dialéctica e à fina elegância no uso da língua foram fundamentais para granjear apoios. Entre 1642-1644, prega na Capela Real, tendo iniciado com o Sermão dos Bons Anos. Em atenção ao brilhantismo das suas prédicas recebe, em 1644, o título de “Pregador de Sua Majestade”. É igualmente nomeado “Tribuno da Restauração”. Na semana santa de 1645, prega o Sermão do Mandato, na Capela Real, em Lisboa. No ano seguinte, a 21 de Janeiro de 1646, faz a sua profissão de votos solenes na Igreja jesuítica de São Roque. Entre 1646 e 1652 exerce o papel de pregador e conselheiro de D. João IV. Nesta qualidade, é enviado em missões diplomáticas a França e à Holanda, negociando a situação política de Pernambuco, a paz europeia, o financiamento da guerra contra Castela e a futura Companhia Comercial do Brasil. Esta última seria sustentada com a participação de capitais dos cristãos-novos6. É o período de maior actividade “diplomática” de Vieira, que se desloca por grande parte da Europa, representando e defendendo os interesses de Portugal. Faz ainda parte da embaixada portuguesa nas negociações da “Paz de Münster”, cujo objectivo era pôr fim à Guerra dos Trinta Anos. De passagem por Ruão e Amsterdão negoceia Vieira cresceu enquanto a nação portuguesa se encontrava sob o domínio da coroa espanhola, facto que explicaria o veemente entusiasmo com que acolheu a restauração da independência de Portugal com representantes da comunidade judaica portuguesa, aí refugiada, a questão de Pernambuco, o que lhe valeria, desde então, a hostilidade do Santo Ofício. Com efeito, o relacionamento com os cristãos-novos seria para Vieira uma das suas fortes paixões e simultâneamente campo de incompreensões. Em 1653, regressa ao Brasil, a fim de se dedicar às missões junto dos índios do Pará e do Maranhão, dos quais assumirá corajosamente a defesa contra os interesses esclavagistas dos colonos portugueses. Com efeito, a sua acção junto dos índios e a dos jesuítas, em geral, no Brasil, com a constituição das célebres “reduções”, originou uma agressiva oposição dos colonos, que se viam assim limitados na captura de mão-de-obra escrava. Ao mesmo tempo, as suas incursões missionárias levam-no a extasiar-se com a beleza do território, 6. A iniciativa visava a criação de duas Companhias comerciais instituídas com capitais privados, à semelhança das que existiam na Holanda – uma para fomentar o comércio da Índia e outra para o comércio brasileiro. Os capitais a serem investidos nestas companhias deviam ficar isentos de impostos. 128 JULHO 2008 CiDADe soLiDÁriA CiDADe soLiDÁriA JULHO 2008 129 históriA e culturA Padre António Vieira “Não são só ladrões os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os Reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das Províncias, ou a administração das Cidades, os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades e Reinos; os outros, furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista, viu que uma grande tropa de varas e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”. (Extracto do Sermão do Bom ladrão, §5, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, no ano de 1655) evocar o Padre António Vieira, em 2008, significa celebrar a sua intensa vida, como intensa e variada foi a sua obra, numa entrega total ao serviço de Deus e do homem multicultural a variedade das tribos indígenas, o exotismo da fauna e flora, extraindo descrições admiráveis para o conhecimento do Brasil daquela época. Entretanto, em 1654 prega o famoso Sermão de Santo António aos Peixes7, nas vésperas de embarcar para Lisboa onde, numa breve visita, pedirá ao Rei providências favoráveis aos índios e às missões do Maranhão. No ano seguinte, prega durante a Quaresma de 1655, na Capela Real, o Sermão da Sexagésima8, igualmente o Sermão do Mandato e fecha com o Sermão do Bom Ladrão, na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha). Com a morte de D. João IV, ocorrida em 1656, perdeu Vieira o seu melhor amigo, e o missionário só encontra consolação no sonho de o ver de novo voltado à vida. Ensombrado pelo luto e pela saudade do rei, embarca com destino ao Brasil. No regresso a Belém do Pará, encontrando-se doente, redige, em 1659, o seu primeiro tratado futurológico - “Esperanças de Portugal, V Império do Mundo”, destinado a consolar a rainha viúva, D. Luísa de Gusmão, no qual antevia o regresso de D. João IV e o estabelecimento de um império de concórdia mundial sob o domínio do rei português. Em resultado do seu persistente combate em favor dos índios, Vieira e os seus companheiros jesuítas são expulsos do Maranhão, em 1661, e embarcados para Lisboa. Em 1662, prega o Sermão da Epifania diante da Rainha-regente, D. Luísa de Gusmão, na capela Real. Entre 1663 e 1667 é desterrado para Coimbra onde será preso pela Inquisição, que o perseguia devido sobretudo às suas ideias milenaristas e pouco ortodoxas, inspiradas no profetismo do Bandarra , bem como pelas alegadas simpatias pelos Judeus. Em 1666, é retirado da sua residência fixa no Colégio de Coimbra, sendo levado para um cárcere normal, numa cela miserável. Aqui, isolado de todos, e tendo como sua companhia uma Bíblia e o Breviário, redige duas “Representações de Defesa” e, em segredo, parte do seu livro “História do Futuro”. Em 1667, é proferida a sentença sobre ele: “... seja privado para sempre de voz activa e passiva e do poder de pregar (...)”. Terminou, porém, o seu cativeiro, em 12 de Junho de 1668, já no reinado de D. Pedro II. Logo depois, segue para Lisboa, hospedando-se no Noviciado da Cotovia da ordem jesuíta. Em 1670, viaja para Roma em busca de revisão da sua sentença, onde permanecerá seis anos; aí prega em italiano aos cardeais da Cúria Romana e à exilada rainha Cristina da Suécia9. A partir de Roma luta sem tréguas contra a Inquisição. Em 1675, regressa a Lisboa, munido de um Breve do Papa Clemente X, isentando-o “por toda a vida de qualquer jurisdição, poder e autoridade dos inquisidores presentes e futuros de Portugal”, mas permanecendo sob a autoridade da Cúria Romana. Este estatuto de excepção seria, contudo, mal acolhido em Lisboa por D. Pedro II. Em 1679 declina o convite da rainha Cristina da Suécia, para ser seu confessor, e regressa a Portugal. Em 1681, desiludido com a vida cortesã e com o desamparo do rei D. Pedro II, decide regressar ao Brasil, após mais de vinte anos de ausência. Isolou-se, então, na Quinta do Tanque, casa de campo do colégio da Bahia, onde, longe do activismo de outros tempos, prepara a publicação dos Sermões e a Clavis Prophetarum, obra inacabada, em que alimentava o sonho messiânico de um Quinto Império português. Em 1688, Vieira é nomeado Visitador-Geral da Província do Brasil, cargo que exerceu até 1691. Em 1690 promove a construção da Missão dos índios Carirís, na Baía, financiando-a com o lucro da venda dos seus livros. Em 1695 envia uma carta-circular de despedida à nobreza de Portugal e amigos, por não poder escrever a todos em particular. No ano seguinte, por razões de velhice e de saúde é transferido da Quinta do Tanque para o Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus. Em 1697, termina a revisão do tomo XI dos Sermões publicados ainda em vida10. A 12 de Julho, dita a sua última carta ao Geral da Companhia de Jesus, Tirso Gonzalez, carta escrita pela mão de um amanuense, devido à cegueira que o atormentou nos últimos anos de vida. A 18 de Julho, morre com 89 anos, tendo ficado sepultado na Igreja da Companhia de Jesus. VieirA e A OrAtóriA BArrOcA Ao contrário do “Cultismo” e do “Gongorismo” que utilizavam um vocabulário precioso e rebuscado na busca de efeitos meramente sonantes, Vieira optou nos seus Sermões por uma linguagem chã e sóbria, com vista a atingir todas O eloquente Vieira pregou alguns assinaláveis sermões, nomeadamente o célebre “sermão das 40 horas” igreja de s. roque – Púlpito, lado nascente. 7. Este célebre Sermão foi pregado em S. Luís do Maranhão, em 1654, três dias antes de embarcar para Lisboa. Quase todo o sermão é uma alegoria em que “Santo António” se dirige aos peixes porque os homens não o querem ouvir, usando as diversas categorias de peixes como analogia para criticar os vícios humanos. 8. Ao preparar a 1ª edição (Princeps) dos seus Sermões, Vieira abriu a série de quinze volumes com o Sermão da Sexagésima, pregado em 1655, certamente por considerar nele o paradigma do método de pregar. 9. Um conjunto de 5 Sermões foi pregado em Roma, na corte da Rainha Cristina da Suécia, em 1674 . “Le cinque pietre della fionda di David” (Cinco pedras da funda de David), editados em italiano e em castelhano pelo próprio autor. 10. A obra do P. António Vieira compreende cerca de 200 Sermões, 750 cartas e outros escritos de natureza diversa. A edição princeps dos seus Sermões consta de 15 volumes e foi publicada entre 1679 e 1748. A sua epistolografia começou a ser divulgada em 1735, quase 40 anos após a sua morte. 11. A ideia do Quinto Império herdou-a Vieira da doutrina medieval de Joaquim de Fiora (1132-1202), que advogava três idades para a realização do Reino de Cristo na terra, sendo a última a do Quinto Império. 130 JULHO 2008 CiDADe soLiDÁriA CiDADe soLiDÁriA JULHO 2008 131 históriA e culturA Padre António Vieira Ao contrário do “cultismo” e do “Gongorismo” que utilizavam um vocabulário precioso e rebuscado na busca de efeitos meramente sonantes, Vieira optou nos seus sermões por uma linguagem chã e sóbria, com vista a atingir todas as classes de público; o seu vocabulário e fraseologia são essencialmente funcionais e correntes as classes de público; o seu vocabulário e fraseologia são essencialmente funcionais e correntes; ele consegue o equilíbrio perfeito entre a linguagem falada e a escrita, entre a solenidade e a familiaridade. Os seus argumentos e o encadeamento de ideias, pretendiam mais captar a imaginação do que o entendimento; a sua análise dos textos bíblicos procurava o aproveitamento engenhoso das virtualidades das palavras e seus nexos. Em Vieira a estrutura geral do Sermão é muito livre, em forma aberta, sem o esquema dedutivo e rigoroso da maneira francesa de Bossuet e Bourdaloue. Através de um domínio admirável da linguagem, conseguirá alcançar uma dialéctica inventiva, ao modo de reflexos sucessivos e encadeados, recheados de metáforas e hipérboles, dirigidas ao grande público. São sermões desenvolvidos em parágrafos, à imagem de ondas concêntricas, com múltiplos reflexos e múltiplas aplicações. A sua lógica, aparentemente irregular, amplia-se através de aspectos novos e de alusões, tal como a talha do retábulo barroco, com vista a captar o enlevo dos ouvintes, a empolgar a emoção estética e, por fim, a mudança de comportamentos. Deste modo, o insigne Pregador ultrapassou, no conteúdo e na forma, a oratória sagrada, dominante no século XVII, excessivamente formal mas vazia de conteúdos. O MessiAnisMO De VieirA Profundamente imbuído de um messianismo atlantista, cujas raízes mergulhavam na epopeia dos descobrimentos e no catolicismo expansionis132 JULHO 2008 CiDADe soLiDÁriA ta da Contra-Reforma, Vieira alimentou, ainda mais, o espírito profético na sua vasta cultura bíblica e na espiritualidade militante da ordem inaciana. A tragédia sebastianista e a decadência que se lhe seguiu seriam o pretexto para dar largas ao visionarismo e à grandiosa miragem do Quinto Império português. Gradualmente, tornar-se-ia o grande arauto do messianismo lusitano no século XVII. Desde os primeiros sermões brasileiros, Vieira decidiu romper com o mito sebastianista do regresso do rei D. Sebastião. Os tempos eram outros e as mentalidades já tinham evoluído.11 As profecias relativas ao “Desejado” ou “Encoberto” transferiu-as ele para D. João IV logo que chegou a Lisboa (Sermão do Ano Bom, de 1642); para isso, combinou textos bíblicos com as populares profecias do Bandarra. Profetizou ainda que o rei viria para vencer os Turcos que ameaçavam a cristandade, para reconduzir os Judeus à lei de Cristo e para extirpar todas as heresias, impondo assim uma paz universal em que haveria um só papa e um só rei... Como D. João IV morresse sem ter realizado as suas utopias, Vieira, reinterpretando os textos, formula em 1659 a profecia de que este rei ressuscitaria para os cumprir. Porém, o ano de 1666, que ele apontara como o desse grande acontecimento, passou-se sem nada ter acontecido. Vieira inventou logo novas interpretações, que recaíram em D. Afonso VI, então reinante, e, posteriormente, no príncipe D. Pedro, que lhe sucedeu. A astrologia entrava também nestas congeminações. Esta curiosa interpretação dos sinais, a que dedicou muito dos seus anos, compreende-se pelo ambiente de psicose geral que acompanhou a Restauração de Portugal e pelo grande sentimento de frustração nos anos que se sucederam, de uma nação em declínio, profundamente saudosa da grandeza do seu império. A questãO DA escrAVAturA Vieira foi também sensível ao problema da escravatura e da exploração dos negros. A situação legal de uns e de outros era todavia diferente na época, consoante se tratasse de Ameríndios ou de Negros Africanos. Desde 1572 a lei portuguesa estatuía para os índios o princípio da liberdade. Este princípio, acerrimamente defendido pelos jesuítas era, porém, ignorado ou violado pelos colonos. Para solucionar esta sistemática violação, os jesuítas portugueses e espanhóis concentravam os índios convertidos em comunidades geridas pelos missionários - as chamadas “Reduções”; nestas “aldeias” o trabalho era obrigatório, a propriedade era comum, a família monogâmica, a vida em geral pautada pelo serviço religioso. Tratava-se, com efeito, de um regime teocrático, em que tudo estava ordenado, nessas comunidades, pela lei religiosa e a autoridade dos padres, que não conhecia limites. Quanto aos Negros, que eram comprados na costa africana e transportados para o Brasil, como mercadoria, os teólogos e casuístas da época consideravam-nos como “escravos” em território americano, defendendo, deste modo, a sua condição de dependência em relação aos donos, por motivos de “protecção legal”. Compreende-se, assim, a posição do jesuíta Tirso de Molina (1593-1609), grande jurista da Universidade de Évora que, no seu tratado De iustitia et de iure defendia o estatuto dos escravos, explicando-o por razões particulares de servidão civil (guerra, condenação penal, compra). Vieira nunca contestou esta posição, antes implicitamente a aceitou, embora tenha censurado amplamente os maus tratos infligidos pelos proprietários aos escravos. No entanto, a aparente aceitação deste statu quo não impediu o pregador de lembrar aos colonos que os Negros eram cristãos e, por conseguinte, com igual dignidade que os brancos, redimidos uns e outros pelo sangue de Cristo... cOnclusãO Vieira foi uma figura ímpar do século XVII português. A sua cultura, enraizada numa formação exigente, foi vasta e profunda, no campo do sagrado e do profano. Ele realizou de um modo admirável o ideal jesuíta da síntese entre a “contemplação” e a “acção”, do homem “teorético” e do homem “político” ou, por outras palavras, do profeta e do activista... Com uma inteligência poderosíssima, arquitectou mundos à medida dos seus sonhos. E, quando esses sonhos não se concretizavam, voltava a reformular novas interpretações ou “visões”... Tendo grande facilidade em aprender línguas, expressou-se com brio admirável nos círculos diplomáticos europeus. Dominou igualmente idiomas nativos, talento que lhe proporcionou enorme êxito na actividade missionária. Apesar do seu espírito combativo, teve numerosos admiradores e amigos, que ficavam arrebatados com a sua retórica, com a argúcia do seu raciocínio, com as arrojadas propostas que formulava e pelas quais se batia... Através da sua exuberante oratória e epistolografia foi o grande artífice da prosa portuguesa, “Imperador da língua portuguesa” (Fernando Pessoa). Manifestou grande nobreza no trato, sabendo conciliar a justiça, a humanidade e a benevolência com a defesa intransigente dos valores éticos. Não deixou Vieira no esquecimento nenhuma das causas fundamentais que agitavam a vida pública do seu tempo. Efectivamente, nunca receou denunciar a exploração dos indígenas ou a discriminação dos judeus, cuja defesa lhe trouxe a perseguição e o cárcere. Por outro lado, a sua vivência do Absoluto, como religioso e missionário, proporcionoulhe um invulgar arrojo, que fez dele uma figura arrebatada, desmedida, verdadeiro protótipo do homem barroco. É evidente que, para a compreensão de Vieira torna-se indispensável situá-lo no contexto da cultura portuguesa seiscentista, de que ele foi um digno protagonista. n *Técnico Superior, Museu de São Roque BiBliOGrAFiA ANÓNIMO, História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo I, Lisboa, 1705, ed. da Câmara Municipal de Lisboa, 1972. CARNEIRO Roberto (Coord. 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