Antoine de Saint-Exupéry • Voo Noturno

March 24, 2018 | Author: Muniz Armando F | Category: Sea, Sky, Love, Stars, Time


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I Na tarde dourada, já as colinas, sob o avião, iam cavando o seu rasto de sombra. Os campos tornavam-se luminosos, de uma luminosidade perene: naquelas regiões, os campos não cessam de espalhar seu ouro, assim como no inverno não findam a sua apoteose de neve. E o piloto Fabien, conduzindo, do extremo sul para Buenos Aires, o correio da Patagônia, reconhecia a aproximação da noite pelos mesmos sinais das águas de um porto: aquela calina, as pregas tênues esboçadas por nuvens tranquilas. Entrava numa enseada vasta e feliz. Perante tão profunda calma, Fabien poderia também julgar-se em longo passeio, como um pastor. Os pastores da Patagônia vão, sem pressa, dum rebanho a outro: ele ia duma cidade a outra, era o pastor das pequenas cidades. De duas em duas horas encontrava uma, aplacando a sede à beira dum rio ou ruminando no meio do seu campo. Por vezes, após cem quilômetros de charnecas mais despovoadas do que o mar, Fabien cruzava com uma herdade perdida, que parecia arrastar consigo, numa onda de prados, uma carga de vidas humanas; e então o piloto saudava esse navio com as asas. "San Julian à vista; aterramos dentro de dez minutos." O radiotelegrafista transmitia a notícia a todos os postos da linha. Num percurso de mil e quinhentos quilômetros, do Estreito de Magalhães até Buenos Aires, sucediam-se escalas semelhantes; mas esta abria-se sobre as fronteiras da noite, como na África, à beira do mistério, se levanta a última aldeia conquistada. O radiotelegrafista deu um papel ao piloto: "As tempestades são tantas que os meus auscultadores estão cheios de descargas. Dormiremos em San Julian?" Fabien sorriu: o céu estava calmo como um aquário e dali para frente todas as escalas assinalavam: "Céu limpo, vento nulo". Respondeu : "Continuaremos". Mas o radiotelegrafista pressentia que as tempestades se haviam escondido em algum lugar, como os vermes se escondem nos frutos, a noite seria bela, mas estragada; repugnavalhe entrar naquela escuridão prestes a apodrecer. Ao descer sobre San Julian com o motor au ralenti, Fabien sentiu-se cansado. Crescia ao seu encontro tudo o que torna agradável a vida dos homens: as suas casas, os seus pequenos cafés, as árvores das suas avenidas. Fabien sentia-se como um conquistador após suas conquistas que, ao debruçar sobre as terras do seu império, descobrisse a felicidade dos homens. Precisava depor as armas, sentiu o seu próprio peso, o seu esgotamento, porque, às vezes, até as nossas misérias nos fazem ricos. Precisava ainda sentir-se um homem simples, contemplando da sua janela uma paisagem para sempre imutável. Teria aceito aquela minúscula aldeia: após havermos escolhido, contentamo-nos com o acaso que governa a nossa existência e podemos amá-lo. Limita-nos como o amor. Fabien desejaria viver muito tempo neste lugar, desfrutando a sua pequena parcela de eternidade, pois as cidadezinhas onde ficava uma hora e os seus jardins cercados por velhos muros, que ele cruzava, pareciam-lhe eternos, porque perduravam fora dele. E a aldeia crescia ao encontro da tripulação e abria-se-lhe. E Fabien sonhava com amizades, com a suavidade das moças, com a intimidade criada por toalhas brancas, com tudo o que lentamente o nosso coração vai conservando para todo o sempre. As asas quase roçavam a aldeia, que corria, desvendando o mistério dos seus jardins encerrados em muros que já não os protegiam. Mas, tendo aterrado, Fabien compreendeu que vira apenas o lento arrastar dum punhado de homens no meio das suas pedras. A esta aldeia, bastava-lhe a imobilidade para garantir o segredo das suas paixões e para negar-lhe, a ele, a sua suavidade: se a quisesse conquistar, teria de renunciar à ação. Passados os dez minutos previstos para a escala, Fabien teve de partir. Voltou-se para San Julian: agora era apenas um punhado de luzes, depois de estrelas, depois, até a poeira, que por último o tentara, se dissipara. "Já não vejo os mostradores: vou acender as luzes." Ligou, mas na "atmosfera azulada as lâmpadas vermelhas da carlinga projetaram sobre as agulhas uma luz ainda tão diluída que não conseguiu iluminá-las. Passou a mão pela lâmpada: os dedos ficaram apenas róseos. "Cedo demais." Porém, como um fumo escuro, a noite ia crescendo e já enchia os vales, confundindo-os com os campos. E também já se alumiavam as aldeias, e as constelações que elas formavam respondiam umas às outras. E ele, por sua vez, acendendo e apagando as luzes de posição respondia às aldeias. A terra enchia-se de apelos luminosos, cada lar ateando a sua estrela perante a noite imensa, tal como a luz dum farol voltado para o mar. Tudo o que abrigava uma vida humana cintilava já. Fabien maravilhava-se ao ver que desta vez a entrada na noite fazia lembrar a chegada, lenta e bela, a uma enseada. Enfiou a cabeça na carlinga. O rádio das agulhas começava a luzir. O piloto verificou os números um por um e ficou satisfeito. Sentia-se solidamente sentado no céu. As pontas dos seus dedos afloraram uma longarina de aço e Fabien sentiu a vida pulsar no metal: o metal não vibrava, vivia. Os quinhentos cavalos do motor faziam passar pela matéria rígida uma corrente muito doce, que transformava o gelo em carne veludínea. Uma vez mais, o piloto não sentia, ao voar, nem vertigem, nem embriaguez mas o trabalhar misterioso duma carne com vida. O seu mundo estava agora recomposto e Fabien ajeitava-se para se instalar bem comodamente nele. Tocou levemente no quadro de distribuição elétrica e em seguida em, cada um dos contatos, mexeu-se um pouco, encostou-se mais confortavelmente e procurou a posição em que melhor pudesse sentir o balançar das cinco toneladas de metal que a noite movediça soerguia. Depois, às apalpadelas, procurou a lâmpada de socorro, empurrou-a para seu lugar, perdeu-a, passou a vigiar apenas. sentados à mesa junto do candeeiro. embebido num sentimento de vitória. o altímetro e o regime do motor estavam em ordem. no campo de aterragem de Buenos Aires. mas a oitenta quilômetros de distância. E agora. adestrando os dedos para um mundo de cego. Mantinha-se silencioso. mal sabem o que desejam: ignoram que. no painel. do Chile e do Paraguai voltavam assim do sul. Fabien descobre esse alcance e sente que vagas profundas fazem subir e descer o avião que respira. aquelas luzes. Uma estrela que se apaga: é um lar que se fecha no seu amor. no coração da noite. o seu desejo tem um tão grande alcance. vindo de mil quilômetros de distância. em que se goza uma esperança inexplicável. decidiu-se a acender uma lâmpada. como países em guerra. É uma casa que cessa de acenar ao resto do mundo.voltou a encontrá-la. aquela inquietação. alguém já distinguiu o apêlo dessa luz. porque para ele. vibrava ou tremia e que o giroscópio. apoiou a nuca no assento de couro e deixou-se levar por aquela profunda meditação do voo. do oeste e do norte para Buenos Aires. como se desse um mergulho. Um operário acercou-se de Rivière para lhe comunicar uma mensagem do posto de rádio: . por volta da meia-noite. responsável por toda a rede. estirou-se um pouco. a jornada encontrava-se povoada de temores. numa ilha deserta. Fabien descobre que a noite mostra o homem: aqueles apelos. aquelas luzes. uma a uma. até à margem. E. como um vigia. reduzindo a parcela de desconhecido e trazendo as suas tripulações. iam meditando no seu próprio voo e baixando lentamente de um céu de tormenta ou de paz sobre a cidade imensa. a entrada da noite. Os camponeses. Ou no seu tédio. à medida que ia recebendo os telegramas. desesperados. Os camponeses crêem que a luz do seu lampião ilumina apenas a mesa humilde. E só então. andava de um lado para outro. separados por clareiras de luar. II Os três aviões postais da Patagônia. cada qual à ré de um nariz de avião maciço como uma barcaça. Mas. Rivière. arrancadas à noite. certificou-se de que não escorregaria. após ter atravessado dez tempestades. sentindo-os bem adestrados. visto que nada vacilava. Três pilotos perdidos na noite. Depois. deixando-a de novo para bater levemente com a ponta dos dedos em cada alavanca. na imensa noite que os contém. Rivière tinha a consciência de arrancar um pedaço ao destino. onde se aguardava sua carga para dar o sinal de partida. como se aqueles homens a balouçassem. automaticamente. ao avião da Europa. Minuto a minuto. que veio iluminar a carlinga de instrumentos exatos. quais estranhos camponeses descendo das suas serras. até chegarem os três aviões. em frente do mar. ao atingir. Esta simples estrela na escuridão: o isolamento duma casa. O prazer do ofício apossara-se de novo dele. . "É preciso dizer nas oficinas para deixarem essas peças mais folgadas. num melancólico murmúrio. todas as coisas boas que sempre afastara de si: um oceano perdido. "Estou a envelhecer…" Ele envelhecia. Pela primeira vez na vida. não obstante. que se sentia cansado." Rivière inclinou-se sobre o eixo. Para ele representaria. apenas e sempre. acabou-se". — Você é como eu: nunca teve tempo. Quando. um velho contramestre que estava entregue ao seu trabalho. E. E mais tarde. aquela bem-aventurada paz que imaginamos. Não existe uma chegada definitiva de todos os correios. Rivière escutaria em breve o ruído desse avião: a noite já devolvia um. Diretor sabe. não era um mundo diferente que ia encontrar. Talvez não haja vitória. Leroux. mas consegui. provenientes do cansaço dirigiu-se ao hangar. aquele homem mostrava-se tranquilamente satisfeito. com espanto. o correio da Europa iria enchê-lo de inquietação. As tripulações cansadas iriam dormir. Teve a impressão de estar há muito levantando. Até o fazia sorrir: — Ouça. — Lá muito. Sempre. pensou Rivière. não. você dedicou muito tempo ao amor na sua vida? — Oh!. Fazia já também quarenta anos que Leroux trabalhava e o seu trabalho exigia-lhe todas as forças. a fim de perceber se a resposta era amarga: não o era. esse abandono não representava uma evasão. Findaria então o dia. "Tudo isso está então tão perto?…" Compreendeu que tinha feito recuar. como se se ganhasse." Tocou com os dedos os sinais deixados pela fricção dos metais. E seria sempre assim. um fardo enorme: um esforço sem descanso. Admirou-se de agitar problemas que para ele nunca tinham existido. a minha vida está feita. o amor! O Sr. se de fato já não encontrasse unicamente na ação o seu contentamento. pois já se . com todas as suas forças. ao cabo da vida. Rivière parou em frente de Leroux. depois de mil outros passos iguais. "Pronto. para a velhice o que torna doce a vida dum homem. chegavam-lhe. substituídas por tripulações novas." E afastando as ideias tristes.. ‘"Estava bem apertado. depois olhou de novo para Leroux."O correio do Chile anuncia que já vê as luzes de Buenos Aires". uma pergunta absurda subiu-lhe aos lábios. como um mar cheio de fluxo e refluxo e de mistérios entrega à praia o tesouro que longo tempo andou balouçando. Leroux voltava para casa. Perante aquelas rugas severas. Como se realmente se pudesse ter tempo um dia. mais um passo. por volta das dez ou meia-noite. pouco a pouco. Perante a sua vida passada. A chegada dos aviões não representaria nunca a vitória que termina uma guerra e abre uma era de paz bem-aventurada.. o velho lutador verificava. Rivière observava o tom da sua voz. . como o carpinteiro que exclama ao acabar de polir uma boa prancha: "Pronto. Mas a paz não existe. — Está bem. nem esperança. Mas Rivière não teria descanso: por sua vez. Rivière sorriu para aquele homem que levantava o rosto endurecido para lhe indicar um eixo azulado. o mesmo mar entregaria os outros dois. Pensou primeiro em insultálos por estarem ali tão sossegados. duvidamos nem sabemos de quê.. Fez um esforço para se recordar. silencioso. como se fossem propriedade sua. Era a preparação duma festa. o piloto não se dignou responder. As lâmpadas vermelhas das balizas descobriram um hangar. A luta no meio do ciclone era. III O ruído daquele motor longínquo tornava–se cada vez mais denso. aquela cidade com o seu bulício. Parecia estar a contá-los. inclinado para a frente.ouvia roncar o avião do Chile. assim como aquele hangar em festa. Provavelmente. Chegava ao extremo. Abanava lentamente a cabeça e. Que grande alegria! Mas depois. sem dúvida. o piloto Pellerin não se moveu. mais longe. a medi-los. Brilhava como se fosse novo. Mas. uma coisa real. pois podia tocá-los. uma coisa limpa ao contrário do semblante das coisas. S. No momento em que o carro o transportava a Buenos Aires. Por fim voltou-se para os chefes e para os camaradas. decerto. gozando o luar. a pesá-los e pensava que. o que é que você espera para descer?" Entregue a algum misterioso trabalho. Acenderam-se as luzes. sem receios pelas suas próprias vidas. quando nos lembramos. foi–se. Pellerin pensava : "É tal qual uma revolta: semblantes que empalidecem apenas um pouco. mas que se transformam completamente". "Ei-lo!" O avião já fora apanhado pelo facho de projetores. aquele cimento firme e. Quis contar a sua viagem : "Se soubessem…’"’ Achando. representavam o seu premio. quando por fim parou em frente do hangar e enquanto os mecânicos e os operários se apressavam para descarregar o correio. como súditos. as suas mulheres e o seu calor. ter dito o suficiente. e olhou-os. Segurava aquele povo com suas mãos fortes. em companhia dum inspetor soturno e de Rivière. F. um terreno quadrado. manipulava não se sabia o quê. para despir a jaqueta de couro. daquele semblante que elas tomam quando se julgam sós. . "Então. Mas foi generoso: "… Vão pagar-me uma bebida!" E desceu. postes de T. Pellerin sentiu-se entristecer: é uma coisa agradável vermo-nos livres de tudo e proferir umas boas injúrias ao pôr de novo o pé em terra. escutava ainda o ruído do voo que o trespassava. gravemente. ao menos. ouvi-los e insultá-los. . As arestas. e uma extraordinária e imensa tranquilidade. um após outro. Sem ter de lutar. nem um homem mais. dir-se-ia tocados sucessivamente por um invisível estafeta. cortados a pique. Porque nos primeiros momentos não viu nada. em frente. pareceu-lhe que mudavam de rumo e derivavam à sua volta. e mantos de pedra. E. aos primeiros redemoinhos do ar. pairando docemente como um véu ao longo das neves. envolto numa onda de cólera. nem um sopro de vida. como alguém que se julgasse só. . "Estou perdido. irrompeu a neve: um vulcão de neve. como os de um animal que se prepara para o salto. como proas. Mas antes dele! Aquele nosso estranho encontro!" Parecia-lhe reconhecer. como os séculos a impõem aos castelos abandonados. mas impregnada dum estranho poder. Foi nas imediações do pico Tupungato. contudo. o vento rijo. Refletiu. entre mil. nenhuma ameaçadora tempestade se vizinhava. apenas um pouco mais cinzentos e que. Só arestas verticais. aquelas arestas. naquele lugar. com um inexplicável aperto no coração. mas era certo que perante ele só havia calma. aqueles cumes inocentes. contudo. aquelas cristas de neve. As neves hibernais tinham imposto a paz àquela massa. raivosamente. Numa área de duzentos quilômetros. começavam a tomar vida — como se fossem um povo. A ação violenta deixa poucos sinais: já se apagara a recordação dos violentos redemoinhos que o tinham levado aos tombos. Viu-se. Foi então que. um mundo. Lembrava-se apenas de ter-se debatido. misturada com o ar. Depois o mesmo sucedeu num segundo pico. Era isso. tudo ficou cortante: sentia-os cortando. um certo semblante e. que as asas roçam a seis mil metros de altitude. E depois surgiu. As neves hibernais pesavam sobre ela com toda a sua paz. "O ciclone não tem importância nenhuma. Refletiu. Saímos dele com vida. Mas. demasiado tarde e sem perceber bem como. E do mesmo modo. um pouco à direita. Os seus músculos retesavam-se. Pellerin voltou-se para trás e estremeceu: por trás dele toda a cordilheira parecia fermentar. uma poeira. à maneira dos navios gigantes escolhendo a posição de combate. Depois tudo se tomou cortante. já o esquecera. se inflamaram. todos os picos. depois. ele apertava as alavancas de comando com as mãos. buscando uma saída em caso de retirada forçada. surgia do outro. Pellerin olhava. calma. já não o estivesse e se sentisse vigiado. penas um pouco diferente." Dum dos picos. tranquilo. Preparava-se qualquer coisa que não compreendia. a cordilheira dos Andes. Sim. Então.Transpunha. Donde proviria ela? Como percebia que a cólera escorria das pedras e da neve? Pois nada parecia vir ao seu encontro. no meio daquelas chamas pardas. . Foi realmente nessas paragens que ele assistiu a um milagre. sentindo-se apenas contrafeito. nem um esforço. os cumes. uma poeira que subia. em volta do piloto as montanhas oscilaram. Fez a sua descrição porque." Explicou. a planície. quando descesse do carro. ao desembocar num céu limpo. Mostrando hesitação. . — É um ciclone do Pacífico de que fomos prevenidos demasiado tarde. os aplausos vulgares. embebido em alguma recordação. Mas agora Pellerin conservava toda a sua grandeza. gasto e penoso. em primeiro lugar.IV Rivière observava Pellerin. "Dei por isso de repente. aprovou. voltou-se para . há homens que não se distinguem dos outros e são prodigiosos mensageiros. maldita profissão!" E confessasse à sua mulher qualquer coisa nesse gênero: "Está-se melhor aqui do que sobrevoando os Andes"." Rivière temia certos admiradores que. mais ou menos a três mil metros. "Nunca vi uma coisa assim…" Depois calou-se. dizia. sem vento. não compreendendo o caráter sagrado da aventura. "Não se podia prever que aquele continuaria para leste. percebe?" Mais tarde. Pellerin explicou. Uma a uma." Também falou do giroscópio. maçantes mas queridas. . rente às cristas durante toda a travessia. outras rajadas fizeram Pellerin tombar e. Sem mesmo saber se voltaria a encontrar as amigas de infância. Quase se desculpava: "É certo que não tinha escolha". Daí a vinte minutos. cuja tomada de ar deveria ser mudada: a neve obstruía-a: "Forma uma camada de geada. E nem eles próprios sabem disso. — Também havia tempestade em Mendoza? — Não. tornando menor o homem. A não ser que. sem ter a certeza de que aquela cidade ofuscante de luzes seria de novo dele. pois sabia. A seguir não vira mais nada: a neve cegava-o. surpreendia-se de não ter ainda chocado com alguma coisa. O cimo perdia-se muito alto. com certeza. "No meio de qualquer multidão. enfim. 0 piloto iria misturar-se à multidão. Acabara de passar algumas horas do outro lado da cena. mas a base rolava sobre a planície como uma lava negra. Por isso mesmo Rivière felicitou-o: "Como foi que você venceu?" E Pellerin entrou-lhe no coração. nas nuvens de neve." O inspetor. tudo o que prende os homens tão fortemente desprendera-se dele quase que por completo: conhecera a miséria das coisas. Rivière voltou-se para o inspetor. porque falava do trabalho com simplicidade. É que já sobrevoava. . "Mantive-me. Aliás esses ciclones nunca ultrapassam os Andes. como vira cortada a retirada. "de qualquer forma era uma coisa estranha". o que vale o mundo visto sob certo prisma e afastava de si. que tivera nesse instante a sensação de sair duma caverna. . que não percebia nada disso. as cidades iam sendo tragadas. Aterrei com céu limpo. com um soberbo desdém. Talvez pensasse: "Estou cansadíssimo. pensava Rivière. que são as pequenas imperfeições do ser humano. considerando o seu voo como um ferreiro considera a sua bigorna. melhor do que ninguém. E apesar disso. Mas violentas rajadas salvaram-no. Mas a tempestade seguia-me de perto. estragam-na com suas exclamações. elevando-o a sete mil metros. você deve suprimir os prêmios de regularidade. se consegue melhorar o tempo. a partir desse dia. Não tinha o direito de tomar uma bebida em boa companhia. Não tinha o direito de . a sua cabeça acenava a tudo que vinha ao seu encontro.Pellerin e o seu pomo-de-adão mexeu. recompôs a sua melancólica dignidade. por um inconcebível acaso. ele renunciara a propor. a pontualidade. mas para redigir relatórios. Sr. infligindo castigo aos homens. às cinco e trinta não se distinguia nada a dez metros de distância! — Ê o regulamento. Robineau. nós não podemos varrer o nevoeiro! E Robineau entrincheirava-se no seu mistério. contentado-se em menear a cabeça. para Robineau. pensava. como se saltasse sobre o pão de cada dia. Desde o dia em que Rivière escrevera: "Pede-se ao inspetor Robineau para fornecer relatórios e não poemas. ele era o único que sabia que. E Robineau sentia uma espécie de orgulho por ter um chefe tão forte que nem temia ser injusto. o inspetor sentia-se embaraçado pelas suas mãos enormes e pela dignidade do seu ofício. nos seus escritos. "É duro. o piloto que fazia saltar muitas vezes o avião à aterragem. Isso provocava o pânico nas consciências pouco limpas e contribuía para a boa conservação do material. por ofício. Um regulamento fixado por Rivière representava para este o conhecimento dos homens. — Mas. — Robineau — disse-lhe um dia Rivière — Sempre que haja atraso nas partidas. chamado por Rivière para se ocupar de vagos misteres. a não ser que. Sr. porém. só existia a consciência do regulamento. E o próprio Robineau ganhava uma certa majestade com um poder de tal forma agressivo. Tendo desembarcado na véspera na Argentina. — Mesmo em caso de força maior? Mesmo que haja nevoeiro? — Mesmo que haja nevoeiro. Esta dignidade ia com ele como uma bagagem." A bem dizer. Entre aqueles paus-mandados. encontrasse na mesma escala um outro inspetor. o chefe do campo de aviação que passava noites em claro.apreciar a fantasia. Por isso. Após refletir. de tratar por "você" um camarada. pois um inspetor não é criado para as delícias do amor. . Rivière dizia dele: "Não é muito inteligente. aos chefes do Aeroporto — não poderemos pagar-lhes o premio. Robineau. ser um juiz. Ele fazia parte da direção. — Os senhores deram o sinal de partida às leis e quinze — dizia ele. métodos novos e soluções técnicas. O inspetor Robineau deve usar da sua competência para estimular o zelo do pessoal". Robineau saltava sobre as fraquezas humanas. nem de arriscar um trocadilho. olhando fixamente para a frente. por isso mesmo presta esplêndidos serviços". — Mas. Mas calou-se. depois. nem o estro: apreciava. Ninguém lhe queria bem. Ignorante de tudo. ele não julgava. Sobre o mecânico que bebia. para uma vida rude. que representava um convite ao descanso. Se um piloto quebrava um aparelho. o culto do correio tinha a primazia sobre tudo. — Sobre um bosque também. mas que é a única coisa que conta. "É preciso encaminhá-los. mas sim liberá-los de si próprios. "O regulamento. — Lamento — dizia ele. sem pestanejar. Os burgueses das pequenas cidades passeiam à noite à roda do coreto da praça e Rivière pensava: "Justo ou injusto para eles. perdia o direito ao premio atribuído aos que nada danificassem. cometia um ato de injustiça mas fazia convergir a vontade de cada escala para a partida. obrigava-os a esperar impacientemente pela aberta. Talvez essas palavras nem sequer tivessem sentido algum para ele. | com uma viva exaltação — lamento mesmo muito. Sr. criar-lhe uma vontade. V Ora. é coisa sem sentido: essa gente não existe". aos pilotos. E Robineau acatava o estipulado." O carro chegava à cidade e Rivière ordenou que o levassem ao seu escritório na Companhia. depois. assemelha-se aos ritos duma religião. Robineau. o que evita que faça raciocínios errados". que parecem absurdos. Talvez fizesse sofrer os homens mas também proporcionava-lhes grandes alegrias. Tornava-se necessário dar uma alma a essa matéria. descobrira .Rivière dizia a seu respeito: "Este homem não raciocina. Ao castigar qualquer atraso. Não pensava escravizá-los com essa severidade. não se pode escolher! — É o regulamento. numa área de quinze mil quilômetros. que traz dores e alegrias. Robineau olhou-o e entreabriu os lábios para falar. Rivière dizia às vezes : "Esses homens são felizes porque gostam do seu trabalho e se gostam dele é porque sou severo". partida!" Graças a Rivière. Perante Pellerin vitorioso. era ele quem criava esta vontade. mas deveriam ter tido a avaria noutro lugar." Para Rivière tanto fazia parecer justo ou injusto. pensava Rivière. mas moldam os homens. e essa espera humilhava secretamente até o mais obscuro dos operários. — Mas se a pane se verificou sobre um bosque? — perguntara Robineau. nessa noite Robineau sentia-se deprimido. Considerava o homem uma cera virgem que é preciso amassar. pensava. Ficando só com Pellerin. Não consentindo que os homens se regozijassem com um tempo fechado. — Mas. Estava-se assim atento ao primeiro defeito na armadura: "Aberta ao norte. que ele. Mas logo corrigiu. Teria gostado de falar disso. Descobrira. De Toulouse a Buenos Aires. Robineau duvidava do seu próprio papel. pior de tudo. por cima dessa ferrugem. Atrapalhara-se nas contas. do tipo B 6. Mas nessa noite Robineau só pensava na sua própria miséria: o corpo atacado por um incomodo eczema. confundindo-a com uma do tipo B 4. com ar fúnebre. Gostaria de salvar a Companhia de qualquer perigo grave. seu único segredo verdadeiro. e os velhacos dos mecânicos tinham-no deixado. a sua própria ignorância. ao verificar as disponibilidades de gasolina e o próprio agente que ele quisera apanhar. Pensavam: "Se ele ainda não encontrou nada para pôr no relatório. tirava da mala um maço de papel. não encontrando consolação no orgulho. este avião acaba de chegar de lá". sobretudo. talvez se achasse mesmo um pouco ridículo. Pela primeira vez Robineau sentia admiração. escrevia lentamente "Relatório". sobretudo. — Então. durante vinte minutos. Lá se fechava. essa mulher começava a embirrar com ele e Robineau desejaria falar dela. o meu ofício é por vezes bem difícil. que se condoessem dele e. Pellerin aceitou. janta comigo? Condescendente. . ganhar uma amizade. encolhido no canto do carro. para não descer tão depressa: — Tenho tantas responsabilidades! Os seus subalternos não gostavam muito de envolver Robineau na sua vida privada. Estava cansado da viagem e dos reveses do dia. criticara a montagem duma bomba de óleo. Tentando aproximar-se de Pellerin. acabara por fazê-las para ele. Mas. Robineau. mas. . descrevia as suas inspeções. Mas a Companhia não corria perigo algum. perante um chefe de aeroporto que aliás lhe respondera: "Dirija-se à escala precedente. Passara lentamente o dedo. precisamente. arriscava duas ou três linhas e rasgava tudo. valia menos do que aquele homem morto de fadiga. Precisava. E precisava confessá-la. pediu-lhe: — Quer jantar comigo? Necessito de dois dedos de conversa. VI . ele voltava invariavelmente para o Quarto. nas noites de retorno. buscá-la na humildade. O seu quarto de hotel também lhe inspirava receios. Também tinha em França uma amante a quem. cônscio dos segredos que o amarfanhavam. de olhos cerrados e mãos negras de óleo.que a sua própria vida era sem cor. a fim de deslumbrá-la um pouco e de fazer-se amado. como está esfomeado. tomado de compaixão. findo o trabalho. apesar do seu título de inspetor e da sua autoridade. Não tinha salvo até à data senão um eixo de hélice mordido pela ferrugem. atolar-se "numa ignorância sem par". devorame". Parou em frente de uma janela aberta e compreendeu a noite. guarda na noite vigiando metade do mundo.Quando Rivière entrou no escritório de Buenos Aires. mostrava as suas luzes de bordo aos pescadores da Patagônia. ao pairar sobre Rivière. cuja voz se ouvia nos auscultadores de T. mas. dum extremo ao outro da linha. vivia-se." . como uma vasta nave. numa noite de guarda. Ele não tirara o sobretudo nem o chapéu: lembrava um eterno viajante e passava quase despercebido. o céu transparente. E." Cada aeroporto elogiava o bom tempo que lá havia. o chefe de seção examinou rapidamente os últimos papéis. com o roncar do motor. uma onda de zelo animou aos homens. O zelo das coisas provocou grande contentamento em Rivière. os secretários dormitavam. Rivière afastou o caderno. as máquinas de escrever tilintaram. fazia rápidos progressos. em que tudo entra harmoniosamente na sua ordem. estava adiantado. sob a mesma abóbada profunda. o correio da Patagônia estava em luta com a aventura. num ponto qualquer." E saiu para dar uma vista de olhos pelas várias seções. em que o avião lhe parecia perigosamente embrenhado na noite e tão custoso de socorrer. Que angústia no canto menor dum correio. Não se admirou desse sentimento de grandeza: o céu de Santiago do Chile era um céu estrangeiro. Os secretários agitaram-se. "Tudo bem. "Mandem-me chamar Robineau. uma vez que o correio estava a caminho de Santiago do Chile. sobre as capitais e as províncias. a sua pequena estatura deslocava pouco ar e os seus cabelos grisalhos e o vestuário anônimo adaptavam-se a todos os cenários. lançado como uma flecha cega contra os obstáculos da noite! Rivière achou que. o lugar de um inspetor é no escritório. A beleza da onda musical era abafada por essa capa espessa. mas também. S. O telefonista introduzia as fichas no quadro e assentava os telegramas num livro espesso. contudo. relia a história de um dia feliz. O correio da Patagônia. a brisa amena. Aquela inquietação dum avião voando. Depois da prova do Chile. No posto de rádio de Buenos Aires seguia-se o seu queixume misturado ao crepitar das tempestades. Agora o outro correio. toda a América. em que as mensagens. pois os ventos faziam correr do sul para o norte uma vasta onda favorável. são simples boletins de vitória. "Mostre-me os comunicados meteorológicos. pairava igualmente. A América engalanara-se com uma tarde de ouro. de que se libertam um a um os aeroportos transpostos. F. por sua vez. mas com todas as probabilidades de vitória.. A essa hora. A noite calma tornava Rivière feliz fazendo-o recordar certas noites de agitação. Rivière sentou-se e leu. Ela continha Buenos] Aires. . Custou-nos muitos homens. que rasgavam uma janela sobre o mistério. Depois soltando-o finalmente das mãos: "Trouxe isto do Saara. Diretor. Mostrava a sua prisão. muitos homens novos. . cuidadosamente embrulhado. ao sair dum sonho. com um ar severo.Robineau estava prestes a transformar um piloto em amigo. estendal da sua miséria. Na sua vida. Passando bastante tempo. Experimentara um suave contentamento ao tirar do fundo da mala. Na verdade. o inspetor não pensava nada a propósito do mapa. no hotel. a sua mala. Rivière prosseguia em silêncio a sua meditação: "O traçado desta rede é belo mas difícil. como para todos os homens. Sr. "Tenho de deixá-lo porque o Sr. . Rivière perguntou-lhe: — Que pensa deste mapa. havia uma pequena esperança. — Esse mapa." Na altura em que Robineau entrou no escritório. Corando um pouco mais: “Encontram-se iguais no Brasil…" E Pellerin batera amigavelmente no ombro dum inspetor debruçado sobre a Atlântida. em frente do piloto. fazia uma inspeção geral da Europa e da América. continuando a olhar fixamente para o mapa. aquelas pequenas coisas que assemelham os inspetores ao resto dos homens: algumas camisas de mau gosto. umas pedrinhas escuras. Rivière já se esquecera dele. e de toda esta triste verdade. De resto. Consolavam-no de todas as decepções e do infortúnio conjugal. mostrando. um estojo de viagem e também a fotografia de uma mulher magra. Robineau tornou-se triste. que o inspetor foi pendurar na parede. Robineau? Por vezes. em que a rede da Companhia fora marcada a vermelho. Alinhando miseravelmente os seus tesouros. só as pedras tinham sido suaves para ele. a Pellerin. De pé junto dele. mas para nós quantos problemas levanta!" Porém. só o fim contava. . um pequeno saco. fazia. Rivière precisa de mim para tomar certas decisões graves. olhando-o fixamente. Mas para Robineau. Rivière punha o interlocutor perante verdadeiras charadas. Um eczema moral. assim. Impõem-se aqui com a autoridade das coisas realizadas. Fora também por pudor que Pellerin perguntara: — Gosta de geologia? — É a minha paixão. mas. O inspetor aguardou ordens. a confissão humilde dos seus pesares. Estava meditando em frente dum mapa mural. para ele. mas recuperou a sua dignidade. Tinha aberto perante ele. Quando o chamaram. Fazia assim. Robineau ia-se pouco a . Acariciara-o durante longos momentos sem pronunciar uma palavra. sem voltar a cabeça." O inspetor corara ao ousar uma confidência destas. Não pode exigir por si próprio qualquer espécie de sacrifício. Rivière. sim — assentiu Robineau. cada noite. Rivière pensou que era assim que. Você é o chefe. Não contava com compaixão alguma por parte de Rivière." Fora um gracejo incompleto. uma ação se desenvolvia no céu. arrastava consigo Robineau. Rivière deu meia volta e. o penhor cometeu um engano. que Robineau não compreendeu. — Simplesmente… simplesmente o senhor é o chefe. o senhor comete igualmente um engano: de todos os modos terão de obedecer. Sente-se ali. que Leroux devia a sua grandeza. não é o papel desses homens valerem-lhe. confessando a sua vida estragada por causa daquela ridícula enfermidade e Rivière tinha-lhe respondido com um gracejo : "Se por um lado isso não o deixa dormir. aflorou-lhe aos lábios. — Vou pô-lo no seu lugar. Um dia mostrara Leroux. que fizera consagrar a sua vida exclusivamente ao ofício. Tentara uma vez a sua sorte. e de homens que valem mais do que o Senhor… Pareceu hesitar: — É uma coisa muito grave.pouco fortalecendo. dispõe quase da vida dos homens. — Deve manter-se no seu papel. "Repare como é bela esta fealdade que afugenta o amor…" Era talvez àquela fealdade. sim… — Desta forma. de cabeça inclinada. se eles julgarem que a sua amizade os fará escapar a qualquer trabalho obrigatório. Uma quebra de vontade podia acarretar a ruína e talvez se tivesse de lutar encarniçadamente até ao romper do dia. A sua fraqueza é ridícula. — Eu… — Escreva : "O inspetor Robineau aplica ao piloto Pellerin tal castigo por tal . por outro. Escreva. Rivière escolhia as palavras . — Pode dar-se o caso de ter de ordenar à esse piloto na próxima noite uma partida perigosa: ele deverá obedecer. — O senhor está em muito boas relações com Pellerin? — Hum!… — Não estou a censurá-lo. E. andando com passos curtos. Um pálido sorriso. Robineau. continuando a andar com passos miúdos. Se se sente deprimido. Rivière costumava asseverar: "Se as insônias de um músico o fazem criar obras belas são belas insônias". — Sim. como um drama. estimulará a sua atividade. calou-se durante alguns segundos. — Sim. Rivière com uma leve pressão da mão encaminhou Robineau para a sua secretária. — Se eles lhe obedecerem por amizade. — Pois não… evidentemente. Sr.motivo…" Você descobrirá um motivo qualquer. Passaram-se dez minutos. emocionante e bela. Vieram a seguir alguns nomes de cidades ultrapassadas e. Avião indica: "Baixa de regime. — Mas. Mas. — Esplêndido. Um campo de socorro comunicou pelo T. Rivière cuidava-a: — Que tal o tempo? — mandou perguntar à tripulação. para Rivière. Levava a vida dentro de si. Mas sem lhes dizer que os ama. "Uma noite destas a perder-se!" Fixava com rancor.: "Avião à vista. Ame aqueles em quem manda. o céu sem nuvens. essas balizas divinas. elas representavam para Rivière terras conquistadas. . toda essa riqueza desperdiçada. da janela. no meio desta luta. cintilante de estrelas. Perder-se-ia certamente uma meia hora. e a lua. Diretor! — Faça como se compreendesse. aquela noite voltou a ser. F. como um teatro sem ator. Rivière foi presa daquela irritação que se sente quando o rápido pára na linha e os minutos que passam já não oferecem a sua sucessão de campinas. vou aterrar". Robineau faria limpar eixos de hélice. A agulha grande do relógio percorria agora um espaço morto: tantos acontecimentos poderiam ter ocorrido naquele compasso de espera! Rivière saiu para esquecer o atraso e a noite pareceu-lhe vazia. Novamente cheio de zelo. assim que o avião levantou voo. S. Robineau. O telegrafista tocou no ombro de Fabien. depois parecia evaporar-se. Tudo o que nesse rosto se concentrava de sentimentos para enfrentar uma tempestade: certa expressão. em frente deles. a cólera. fixava aquela nuca sombria. o telegrafista pressentia a força concentrada na imobilidade daquele vulto e isso acalmava-o. iluminado decerto por cada clarão. lentamente. Contudo. O telegrafista esboçou um gesto para tocar no ombro de Fabien. permanecia para ele impenetrável. sob a proteção exclusiva duma lâmpada de mineiro. À esquerda. preveni-lo. Sentiu-se aborrecido. apertadas nas alavancas de comando. ele pairou sozinho na noite. E como nada mais via no mundo. mas viu-o voltar lentamente a cabeça e manter o rosto. Não compreendia a tática do piloto. ia saboreando 0 que aquela massa escura à sua frente representava de material e de força. mas protegia-o. sem socorro. Os ombros sempre . todo o duelo que se travava entre aquele rosto pálido e os clarões lá longe. inclinado para a frente sobre ela. Debruçou-se para a terra: procurava as luzes das aldeias. Então. bem de frente para aquele novo inimigo. Os primeiros redemoinhos da tempestade distante atacavam o avião. agarrado convulsivamente ao aço. com ambas as mãos. estremeceu ao sentir-se baixar no seio das trevas. o radiotelegrafista do correio da Patagônia sentiu-se soerguido como por um ombro. um cintilar quase imperceptível: a luz frouxa duma forja. agarrou-se com força às longarinas de aço. a vontade. junto à linha do horizonte. retomar a primitiva posição. mas nada brilhava naquela erva negra. já faziam sentir o seu peso sobre a tempestade. semelhantes a pirilampos escondidos na erva. E agora. levado à garupa naquele galope a caminho do fogo. depois. mas as espáduas cheias de força permaneciam imóveis e sentiase que conservavam uma imensa reserva. Decerto aquelas mãos. frouxo como um farol de rotação. Aquele corpo era apenas um vulto escuro. Divisava agora. fundir-se e durante alguns segundos. Não se atrevia a distrair o piloto para saber o que ele decidiria e. o rosto voltado para a tempestade. durante alguns segundos. um pouco inclinado para a esquerda. Olhou à sua volta: pesadas nuvens apagavam as estrelas. Aquela força levá-lo-ia para a tempestade. O telegrafista considerou que afinal o piloto era o responsável. terreno ganho que é preciso devolver. como se fosse um muro. parecia-lhe que se iria chocar mais longe com a espessura da noite. mas este não se moveu. senão a lâmpada vermelha da carlinga. prevendo uma noite difícil: idas e voltas. Soerguida suavemente. Só uma cabeça e uns ombros imóveis emergiam da fraca claridade. o que ela representava de duradouro. a massa metálica premia o corpo do telegrafista. como no cachaço dum animal. um novo foco iluminou-se.VII Uma hora mais tarde. ". quase apagadas pelos letreiros luminosos. passeando à roda do coreto. que vai andando lentamente entre a multidão. a nuca colada à gola de couro. "Talvez. pensou ainda: "Não me hei de zangar. lentamente. encaminhou-se para o escritório. por volta das onze da noite. Voltou-lhe à mente uma frase musical: algumas notas duma sonata que escutara na véspera juntamente com uns amigos. A mensagem dessa música vinha até ele. Os seus amigos não tinham compreendido: "Essa arte aborrece-nos e aborrece-o. Iria encontrar em qualquer recanto o único secretário de guarda. sentira-se solitário.imóveis. As máquinas de escrever dormiam sob as cobertas. a multidão que estacionava às entradas dos cinemas. Falavam-lhe. tornando-se pessoal. Pensou que. sou responsável por um céu inteiro. . refletia. No passeio empurravam-no. mas por vezes também carregada de dramas: a doença. mas bem depressa descobrira a sorte duma tal solidão. vultos. simplesmente você não o quer confessar". Olhou para os homens. no meio dos medíocres. o amor. Procurava distinguir entre eles os que levam consigo lentamente a sua invenção ou o seu amor e imaginava o isolamento dos guardas de faróis. Ele. . um a um. que vivia para a ação. Os armários fechados guardavam os processos em dia. com a suavidade dum segredo. Como agora. Dez anos de experiência e de trabalho. via que dum modo estranho o drama se transformava. Aquela estrela representa um Binai que me busca nesta multidão e me encontra: é por isso que me sinto como se não pertencesse a este mundo um pouco solitário". como o ouro dos bancos. lentamente. só até ele. VIII Rivière saíra para dar uns passos e esquecer o mal-estar que sentia de novo. Leva consigo o profundo silêncio da sua casa". Atravessou-os. Um homem trabalhava . Imaginou que estava visitando as caves dum banco. por cima de tantas cabeças. e pensou: "Esta noite. uma ação dramática. os lutos e que talvez… O seu próprio mal ensinava-lhe muita coisa: "Isto rasga certas janelas sobre novos horizontes". respondera. Pensava que cada um daqueles registros continha mais do que ouro: uma força viva. como respirasse mais facilmente. Ia notando. tendo dois dos meus correios em pleno voo. Ergueu os olhos para as estrelas brilhando sobre o caminho estreito. os habitantes das pequenas cidades viviam uma vida aparentemente silenciosa. e só os seus passos eram ouvidos. onde as riquezas dormem. Depois. numa linguagem que só ele compreendia. Era assim o sinal da estrela. O silêncio que reinava nos escritórios agradou-lhe. Sou como o pai duma criança doente. Uma força viva mas adormecida. depois outra vez : "Fala do posto de rádio. depois uma voz: "Vou pô-lo em comunicação com o posto de rádio". de material. sobre um segredo indecifrável. Vamos comunicar os telegramas". Depois. o das fichas no quadro. então o secretário de guarda levantava-se e ia atender essa chamada repetida. sem. preenchê-la. obstinada. "Aqui fala Rivière." Um pequeno tumulto. que a solidão tornava lento como um nadador entre duas águas. à custa de braços cegos. Rivière ouvia o seu eco amortecido naquelas campainhadas discretas. "Não se levante. Novo tumulto. livrarem-se como dum mar. peito contra peito. . no entanto. desafiavam as trevas sem nada conhecerem além das coisas movediças. de que era preciso. Mensagens regulares de serviço. Vaga que primeiramente é fraca. O bater duma única máquina de escrever dava sentido a este silêncio. com as mãos e os joelhos. E. de cada vez. O secretário de guarda levantava o fone e a angústia invisível acalmava-se: entabulava-se uma doce conversa. . tão longe do grito lançado. Montevidéu falava do tempo em Mendoza. O que resta do mundo e que é preciso salvar. Eu atendo. Que terríveis confissões. como um mergulhador que volta à superfície. E. — E os correios? . por vezes: "Iluminei as mãos para vê-las. Eram os ruídos familiares da casa. os movimentos do empregado. Que ameaça numa chamada que vem da noite envolvente quando dois correios estão em pleno voo! Rivière pensava nos telegramas que previnem as famílias em volta do candeeiro à noite e em seguida a desgraça que. durante segundos quase eternos. uma praia luminosa. num canto de sombra. de cada vez." Rivière levantou o fone. Riviere anotava-os e assentava com a cabeça : "Esta bem." A doçura das mãos apenas revelada naquele banho vermelho de fotógrafo. Rivière empurrou a porta da seção de exploração. triste. Rio de Janeiro pedia uma informação. para que a vontade fosse contínua. invisíveis. A campainha do telefone estremecia por vezes. Era necessário prestar assistência a esses homens que. O voo noturno seguia o seu curso como uma doença: era necessário estar de guarda. pareciam-lhe carregados de mistérios. conserva o seu segredo no rosto do pai. num ângulo." Em algum ponto os correios lutavam. para que de Toulouse a Buenos Aires a cadeia nunca se rompesse. tão calma. recebendo o zumbido do mundo. . voltando da sombra para junto de seu candeeiro. o empregado regressava à sua secretária a expressão fechada. Uma única lâmpada acesa formava. e o mesmo estaria sucedendo em cada escala.em qualquer lugar para que a vida fosse contínua. pela solidão e pelo sono. impassível. Está bem…" Nada de importante. . "Esse homem ignora o quanto vale. com um maço de papéis na mão. lutei. aplicaremos ao responsável uma severa sanção. limpou umas bagas de suor e quando se sentiu melhor lançou-se ao trabalho. mudei o curso dos acontecimentos e eis agora o que me preocupa e me domina. . — Está bem. manietado como um leão velho e uma grande tristeza invadiuo. pensava Rivière. fazendo a minha formação. Mas aquela dor no lado direito." Assinou. . mais uma vez. "Como medida disciplinar será transferido de lugar o chefe de aeroporto Richard. Não conseguimos ouvir os aviões. durante cinquenta anos fui preenchendo a minha vida. Rivière voltou a sentir aquela dor aguda no lado direito que há algumas semanas o atormentava. as estrelas brilhavam. — Até logo! Rivière levantava-se.— O tempo está tempestuoso. continuava presente e nova ." Assinou. . "Tanto trabalho para chegar a isto! Tenho cinquenta anos. Certamente nunca virá a saber como esta noite de vigília nos aproximou. Depois conseguiu chegar até à cadeira. Sentia-se. . Rivière pensou que a noite aqui era pura. Rivière sentia nascer uma grande amizade por este homem. uma amizade que o peso daquela noite carregava. que…" Assinou. "Isto vai mal…" Encostou-se um instante à parede: "É ridículo". "Um companheiro de luta." Esperou. mas os radiotelegrafistas descobriam nela o premindo de tempestades longínquas. Examinava lentamente as ordens de serviço. tornando-se mais importante do que o mundo… É ridículo. "Verificamos em Buenos Aires." IX Ao dirigir-se à sua mesa de trabalho. "Não tendo a escala de Florianópolis seguido as ordens. o secretário acercou-se: — As ordens de serviço para assinar… — Está bem. durante a desmontagem do motor 301. se bem que adormecida. obrigando-o a pensar em si. senhor. e Rivière sentiu-se quase amargo. mas que passava por ele. — Isto é de 1910. . pensava Rivière. "Sou justo ou injusto? Ignoro-o. Ou então afastamse quando o mal passa por eles. Se eu fosse muito justo. . Sr. Rivière pensou: "Não é este homem que eu despedi assim. Quando castigo. . Sr. de fazer parte do nosso pessoal. — Não. Uma vez. . Diretor!. isso não.como um sentido novo da vida. Rivière notava o tremor daquelas velhas mãos ostentando a sua ingênua glória. Diretor. ia folheando as ordens de serviço. se não vencermos toda a gente. — E os meus filhos." "Ainda lhe quero dizer…" "Que desejaria dizer aquele pobre velho? Que lhe arrancavam as suas velhas alegrias? Que gostava de ouvir o ruído das ferramentas batendo no . senhor! Tenho filhos! — Já lhe disse: ofereço-lhe um lugar de servente. ." Veio-lhe um certo cansaço por ter traçado o caminho com tanta dureza. a partir de hoje. . — Mas a minha dignidade. Ainda lhe quero dizer. Fui eu que fiz aqui a montagem do primeiro avião da Argentina! A aviação de 1910 para cá. senhor. "Porque os acontecimentos podem ser comandados. as avarias diminuem. Sr. . Diretor.. O responsável não é o homem. é uma espécie de potência oculta que se não consegue nunca vencer. — Mas. — Um lugar de servente. Sr. senhor. Diretor. recuso-o! E as velhas mãos tremiam e Rivière afastava os olhos daquela pele enrugada. senhor. . . . . . Absorto nos seus pensamentos. . brutalmente: é o mal. Diretor. Pensou que a piedade é um sentimento agradável. — Um lugar de servente. uma vez só. — Recuso-o. deixa. senhor! Aquela carteira velha e a folha de jornal onde Roblet rapaz se mostrava em pose. E os novos. "… no que se refere a Roblet. — Pode retirar-se.. grossa e bela. veja bem! E trabalhei durante toda a vida! — É preciso dar um exemplo! — Mas.. vinte anos de aviação. a minha dignidade! Compreenda." Pareceu-lhe ver de novo aquele velhote e reviveu a conversa dessa tarde: — Que quer? Um exemplo é um exemplo. Ah! Vão rir de bom gosto! — Isso então é-me completamente indiferente. Ora veja. são vinte anos! Como pode então dizer. . um voo noturno representaria cada vez uma probabilidade de morte. e obedecem e assim cria-se uma obra. . de que talvez não seja responsável. um velho operário como eu. E os homens são pobres coisas e também se criam. Sr. como vão rir lá na oficina!. de pé junto dum avião. continuava a escrever a máquina. Pronto. está tudo pronto. como uma grande força oculta se revela. que cresce. Numa carícia a febre subia pelo seu corpo. Bastaria dizer: "Pronto. — E por que não está pronta? — Eu… — Temos de ver isso. . Rivière sonhava com a alegria que brotava daquelas mãos. mas tivemos. Se dá licença. . "É espantoso. pareceu-lhe a coisa mais bela do mundo. Rivière pensava: "Se não se corta o mal quando o encontramos. Diretor. de refazer o circuito elétrico porque :is ligações estavam mal feitas. que é preciso viver?" "Estou muito cansado". E essa alegria que exprimiriam. pensava Rivière. não esse rosto. Batendo com os dedos na folha. não te despedem? — Ora! Ora! Fui eu quem fez a montagem do primeiro avião da Argentina! E os jovens que já não ririam. como a que levanta as florestas virgens. Imaginava o tímido gesto que esboçariam para se juntar. o veterano I tendo reconquistado o seu prestígio. O secretário. — Está bem. Falaram por fim: — Aqui fala do campo. depois a ressonância. mas sim aquelas velhas mãos de operário. Fique". surge" por todos os lados em volta das grandes obras. à última hora. — Isso que é? — A contabilidade da quinzena. o 650 está na pista. força. que não dera por nada." Rivière pensava nos templos que frágeis trepadeiras fazem desmoronar. como os acontecimentos nos dominam. que iam exprimir.aço dos aviões. — Sr. Um longo momento. Quem fala? — Rivière. a profundidade que o vento e o espaço dão às vozes humanas. pensava: "Agradava-me a cara daquele velho camarada…" E Rivière revia aquelas mãos. — Enfim. que privavam a sua vida duma grande poesia. Rivière levantou o fone. . e a volta a casa e o modesto orgulho: — Então. . "Vou rasgar esta ordem?" E a família do velho. produzem-se avarias de eletricidade: é um crime deixá-lo escapar quando por acaso ele põe a descoberto os seus servidores: Roblet deixará a Companhia". — Está bem. Quem montou o circuito? — Vamos verificar. seja onde for. tomaremos medidas severas: uma avaria na eletricidade de bordo pode ser grave! — Evidentemente. e também. "Rasgo?" O telefone tocava. . Mas permanecer."Uma grande obra…" Pensou ainda. . . temos de nos desvencilhar dela como podemos. Nem a piedade. Se não der um apertão nos meus homens. depois chamou. a noite inquietá-los-á sempre". " Sonhou." O seu coração dava pancadas rápidas que o faziam sofrer. trocar o nosso corpo perecível.. "Não sei se o que fiz está certo. Nem uma mão que treme." Pensava: "Esse correio não deve voltar inutilmente para trás. mas não é contra eles que eu luto. nem da justiça. Não sei exatamente quanto vale a alegria dum homem. Que venha falar comigo antes de partir. . . Não sei qual é o valor exato da vida humana. "Telefone ao piloto do correio da Europa." Rivière refletiu. "A vida contradiz-se de tal modo. . para tranquilizar-se: "Quero bem a todos esses homens. criar. É contra o que passa por eles. nem a doçura. . nem do desgosto. A mulher contemplava estes braços fortes que. "Às armas!"e que um único homem. Ele abriu os olhos. A mulher levantou-se. Vai durar pelo menos até ao Brasil. a onda e trazia àquele leito a calma como se acalmasse. A cidade encerrara os homens nas suas cem mil fortalezas. espreguiçando-se. Contemplava aquele peito nu. Ela conhecia o sorriso daquele homem. ela afastava dele aquela contrariedade. Esta cidade adormecida já não o protegia: quando se levantasse do seu pó. teriam sob a sua guarda o destino do correio da Europa. não para si própria. a ameaça. que lembrava um belo navio. os seus cuidados de amante. como um jovem deus. Ele descansava por enquanto. e. vinham melodias. como num porto. amor. vigiara-o. mas para esta noite que ia arrebatar-lhe. Aquele quarto dominava Buenos Aires. pois era hora dos prazeres e do repouso. Prendia-o com doces amarras: música. Observou a lua e sentiu-se afortunado. mas esta mulher tinha a impressão de que iam gritar. mas ignorava quais as suas divinas cóleras no meio das tempestades. onde se dançava. vitórias que ela desconheceria. — Que horas são? — Meia-noite. era o único que estava pronto para o estranho sacrifício. Sentiu-se desgostosa. Duma casa vizinha. o seu. Ele também escaparia à sua ternura. mas. abriu a janela e o vento fustigou-lhe o rosto. Ele se levantou e. despertada pelo telefone. dentro de uma hora. ao soar a hora da partida. para que nada agitasse o seu sono. as amarras quebravam-se sem que isso parecesse provocar-lhe o mínimo sofrimento. Para lutas. — Não sentirei muito frio. entre milhões de semelhantes. Qual é a direção do vento? — Como quer que eu saiba… O homem debruçou-se : — Sul. flores. o mar. Este homem. Ela nutrira-o. Estas mãos carinhosas estavam apenas domesticadas e o seu verdadeiro trabalho era obscuro. O seu olhar desceu então até à cidade. E essa ideia a perturbou. responsáveis por algo de grandioso. as luzes parecer-lhe-iam inúteis. olhou para o marido e pensou: "Vou deixá-lo dormir um pouco mais". Esplêndido. Ele descansava tranquilamente na cama. com mão divina. — Como está o tempo? — Não sei…. foi até à janela. com um bonito arcabouço. tudo era calmo e seguro. angústias. mas o seu repouso era como o temível repouso das reservas que vão ser chamadas. assim como a sorte duma cidade. responderia ao apelo.X A mulher do piloto. . acariciara-o. trazidas pelo vento. Puxa-se a alavanca do gás. estarei tão depressa longe dela. para conquistá-los. cidades. que o ajudou a calçar as botas. Escolhia para aquela festa os tecidos mais grossos. ao mar. Estes ombros largos já pesavam contra o céu." A mulher do piloto pensava em tudo aquilo que é preciso abandonar para correr em busca de conquistas. com certeza. — Estas botas incomodam-me. "Esta cidade. Foi ela própria que lhe afivelou o cinto. mas seja prudente! — Serei prudente. mais crescia a admiração de sua mulher. A cidade passa a ser apenas um fundo marinho. Ele riu. — Arranje-me um cordão para a minha lâmpada de socorro. — Você tem um tempo lindíssimo. . E riu-se novamente. dez dias.Não a achou convidativa. Também sabia que dentro de uma hora já teria possuído e abandonado Buenos Aires. Tinha a impressão de partir. Vai partir por quanto tempo?" Oito. Mostrou-lho. livre de entraves. montanhas. "Você nem sequer está triste. voa-se para o norte. Fazia ela própria desaparecer um último defeito na armadura: agora tudo ajustava bem. . voltado para o sul e dez segundos mais tarde modifica-se a paisagem. Partir de noite é um belo espetáculo. como faria antes de se deitar. Sorriu. .. . — Estão ali as outras. Triste. nu. por quê? Campos. . . "Em que está pensando?" O piloto pensava que possivelmente haveria bruma para os lados de Porto Alegre. Sei por onde devo contornar. Respirava profundamente. — Você não gosta de sua casa? — Gosto de minha casa… Mas a mulher notava que ele já estava a caminho. nem reconfortante. O seu caminho está juncado de estrelas. nem luminosa. . Ela pôs a mão sobre o ombro dele e enterneceu-se ao sentir o seu calor: seria possível que aquela carne estivesse ameaçada?. Não estava certo. o couro mais forte. . — Você é muito forte. — De fato. Ia-se vestindo. não." Continuava a debruçar-se. Ela o contemplava.. Quanto mais pesado ele se tornava. . "Tenho a minha tática. vestia-se como um camponês. Já via fugir-lhe a poeira inútil das suas luzes. que o motor aquecia. que teve medo. — Tenho ciúmes… Ele se riu mais uma vez. — É em honra às estrelas? — É para não me achar velho. — Já não via absolutamente nada. O seu estado é perfeito. apertou-a contra o seu vestuário grosso. — Não é verdade. baixei cem metros. Tudo isso no meio das trevas. o primeiro passo da sua conquista. como se fosse uma criança. . rindo sempre.. olhando tristemente as flores. levantou-a. Já nem via o giroscópio. talvez… o T. Quis acender a lâmpada de posição para ao menos ver a asa: não vi coisa alguma. . . por entre a massa desconhecida dos noctâmbulos. — Não é verdade? — Não. que a pressão do óleo descia. beijo-a. Mas a minha lâmpada de bordo enfraqueceu e já nem podia distinguir as mãos. Depois ergue a cabeça e olha bem de frente para Rivière: — Tive. o piloto cala-se. como uma doença. Depois. . XI Rivière recebeu-o: — Pregou-me uma peça no seu último correio. toda aquela suavidade que para ele representava apenas um fundo marinho. . Quando quis tomar altitude. Esfrega lentamente uma mão na outra. mais longe. S. Tive a impressão de estar no fundo dum poço de que era difícil sair. e. — E quem não teria medo! As montanhas estavam acima de mim. Depois. Rivière sente piedade por este rapaz tão corajoso. Mas julga-se sempre que o motor vibra quando se tem medo.— Você está bonito. os livros. Nessa altura o motor começou a vibrar. Ela ficou ali. Teve medo? Surpreendido. Voltou para trás se bem que as previsões meteorológicas fossem boas: podia passar. deitou-a: — Dorme! E fechando a porta atrás de si deu na rua. . No fundo de si próprio. encontrei violentos redemoinhos. anunciava. O piloto tenta desculpar-se. . É evidente que. nem sequer os manômetros. Examinamo-lo depois disso. Senti-me bem feliz ao . viu-o pentear-se com esmero. O senhor sabe… os redemoinhos quando se não distingue nada. estendendo os braços. F. Em vez de subir. Parecia-me que o regime do motor baixava. É como se só a minha vontade impedisse os aviões de se quebrarem em voo." Depois. no meu escritório. uma questão de vida ou de morte. No decorrer do seu ofício. se tomo a sério a sua aventura. sem nem sequer ter o auxílio da pequena lâmpada de mineiro. Mas eu sirvo os acontecimentos. "É. de todos os meus homens. nessa luta. a duzentos quilômetros por hora. Lembra-se do piloto : "Arranco-o ao medo. Eram homens da mesma equipe que sentiam um igual desejo de vitória. basta manifestar compaixão. Eu não me compadeço facilmente ou escondo-o. como uma selva inexplorada. ele se vai imaginar de volta duma terra misteriosa e é precisamente o mistério que ele teme. Se lhe dou ouvidos. Retire-se. Não é ele que eu ataco. surgem os incidentes. De noite. então. . um médico encontra-as. mas sim. Se não me domino. sinto nitidamente essa lei obscura. aquela resistência que paralisa os homens perante o desconhecido.rever uma cidade iluminada. Fico por vezes surpreso com o meu poder". se consinto que os acontecimentos. Também assim é a luta contínua do jardineiro cuidando da relva. através dele. que apenas ilumina as mãos ou a asa. bombardeia-se e volta-se ao mesmo campo. Rivière acomoda-se no seu lugar e passa a mão pelos cabelos grisalhos." . sigam o seu curso. ao voltar à superfície. É preciso que este homem se embrenhe na profundidade da noite. Mas os serviços regulares não teriam êxito de noite. Esse domínio das sombras era temido nos círculos oficiais. E o piloto vai-se embora. se o lastimo. mas que cria um estreito fosso entre si e o desconhecido".. Lançar uma tripulação. em relação às estradas de ferro e aos navios. parecia-lhes uma aventura tolerável para a aviação militar: parte-se dum campo em noite clara. de envolver-me de amizade e de doçura humanas. ou a tempestade de atrasar o correio que segue o seu caminho. Bem gostaria. visto que perdemos cada noite o avanço ganho durante o dia. mas estou a curá-lo do medo. Apesar de tudo. Tenho de moldar os homens para que eles os sirvam também. nas trevas espessas. retorquira Rivière. Rivière aos seus pilotos. bem ordenados. Mas Rivière recorda outros combates que tivera para conquistar a noite. o mais corajoso. contra as tempestades. — Você tem imaginação demais. declarem que não viram nada. O que ele conseguiu naquela noite foi magnífico. no entanto. lá no fundo. E reflete ainda : "Talvez isto seja claro. os nevoeiros e os obstáculos que a noite -guarda escondidos no seu seio. A força da sua mão obriga a terra a guardar nas suas profundezas a floresta primitiva que t ela eternamente apronta". como lhe voltasse uma ponta de fraqueza: "Para que nos amem. uma fraternidade sem palavras ligava. É preciso que haja homens que tenham descido a esse poço sombrio e que. perante itinerários de viagem. misteriosamente. "Representa para nós. XII Entretanto. pensava Rivière. Uns diziam "graças à sua fé". as palmas das mãos nas alavancas de comando para começar a reduzir a altitude. outros "graças à sua tenacidade. não aterravam senão uma hora apenas depois do pôr do sol. o correio da Patagônia abeirava–se da tempestade e Fabien renunciava a contorná-la. navegaria a cerca de setecentos. para viver. . falar de balanços. Rivière chama o telegrafista para tomar conhecimento das últimas mensagens transmitidas pelos aviões no espaço. qualquer coisa que tem mais importância do que tudo isso. porque se obstinara sempre na direção certa. se as coisas corressem mal. pois os relâmpagos estendiam-se numa linha que corria para o interior do país e revelava fortalezas de nuvens. A princípio. Considerado como de pouco interesse. Rivière lembrava-se das mesas de reunião. que estremeceu ainda mais fortemente: Fabien . .. Um redemoinho fez mergulhar o avião.Rivière escutara. Verificou a altitude: mil e setecentos metros. Estas pareciam-lhe inúteis. Considerava-a demasiado extensa. o queixo apoiado num punho. cheio de tédio. Rivière obtivera a vitória. que ousou lançar os correios nas profundezas da noite. que infinidade de precauções foram precisas! Os aviões só partiam uma hora antes de levantar o dia. vencerei. com a vista. segundo ele. . O motor vibrou fortemente e o avião estremeceu. o ângulo de descida e em seguida verificou no mapa a altura das colmas: quinhentos metros. Fabien corrigiu. tinha ouvido. Tentaria passar por baixo e. o conhecimento das leis. quase desaprovado. Sacrificava assim a altitude como quem arrisca uma fortuna. mas era indispensável preparar essa solução inevitável. Após um ano inteiro de luta. junto das quais. tomado dum extraordinário sentimento de força. Rivière não sabia quando nem como a aviação comercial chegaria aos voos noturnos. com força. O que tem vida passa por cima de tudo para viver e cria. Para conservar uma margem. resolveria voltar para trás. tantas objeções. entregava-se agora a uma luta solitária. de seguros e sobretudo de opinião pública: "A opinião pública. respondera ele. . pode ser dirigida!" Pensava: "Quanto tempo perdido! Há qualquer coisa. nunca precedeu a experiência". de antemão condenadas pela vida. É irresistível"." Quando lhe exigiam soluções perfeitas. à sua forca bruta de urso em movimento". E sentia a sua própria força concentrada. "As minhas razões tem força. mais simplesmente. Apoiou. Foi somente quando Rivière se julgou mais seguro da sua experiência. É o desenvolvimento normal dos acontecimentos. respondia. mas. as suas próprias leis. que afastassem todos os riscos: "É a experiência que ditará as leis. — San António respondeu: "Levanta-se vento oeste e tempestade a oeste. escreveu à pressa ao telegrafista: "Ignoro se poderei. Já não ousava acender as fracas lâmpadas vermelhas. para alentar a sua esperança de salvação. destroços. Fabien começava a descortinar a ofensiva insólita que. Já não sabia quanto tempo. o ciclone levaria as cidades. Antes de poder atingi-las. Estamos atravessando uma tempestade. provavelmente. sujo e amarrotado. Céu coberto . que tinha desdobrado e lido vezes sem conta: "Trelew: céu coberto a três quartos. mas que. derramavam uma pálida claridade astral. E. apoiado à esquerda. — Informe-se do tempo em San António. Se Trelew estava coberto a três quartos. A resposta consternou-o. Imaginou que voltava para trás e deparava com cem mil estrelas. partindo da cordilheira dos Andes. Fabien mergulhava a cabeça na carlinga para examinar o giroscópio e o compasso. nem quantos esforços seriam necessários para libertar-se daquela escuridão. ver-se-iam as suas luzes na fenda das nuvens. o piloto enchiase de inquietação. ou um cansaço da vista. No meio das agulhas e dos números.sentia-se ameaçado por invisíveis derrocadas. mas todos os aparelhos. mas não modificou a direção nem de um grau. Olhou-a. passar. A noite e tudo quanto ela arrastava de rochedos. Incomodava-o a chama do tubo de escape. voltava à sua terrível vigia. presa ao motor como um ramo de fogo. agarrava-se apenas àquele pedaço de papel. como duvidava. tentava perceber o que significavam os clarões confusos que. nas noites mais cerradas. Apenas diferenças de densidade. na espessura das sombras. pois. Inclinado para a esquerda contra a massa de vento. colinas. A não ser que… A promessa duma pálida claridade mais longe incitava-o a prosseguir. Veja se sabe se o bom tempo continua para trás de nós". o piloto deixava-se embalar por urna enganadora segurança: a mesma que se sente no beliche dum navio que a onda galga. Tempestade". Chegava quase a duvidar que o conseguisse jamais. Inclinou-se mais. continuam a surgir. . O vento mantinha-a direita. Trelew. absorvia o mundo visível. neste cimento negro.. se tanto. como a chama duma tocha. Fabien fazia o cálculo das suas probabilidades: tratava-se. tão pálido que o luar apagá-lo-ia. Tratava–se de passar vinte minutos. De trinta em trinta segundos. corria para o mar. nesta escuridão. Mas já nem eram clarões. porém. duma tempestade local. passava também pelo avião. que o deixavam cego durante muito tempo. vento oeste fraco". com os seus números luminosos. assinalava céu coberto a três quartos. Respondeu: "Não sei. com a mesma espantosa fatalidade. seguindo a bússola". "Commodoro indica: "Regresso aqui impossível. repetia-lhe o operador. "Onde estamos?". Desdobrou um papel que lhe entregava o telegrafista: "Onde estamos?" Fabien teria dado tudo para sabê-lo. visto que a escala seguinte. Fabien erguia de novo a cabeça e. contudo. visto que não poderia alcançar nenhum porto (pareciam todos inacessíveis) nem a aurora: a gasolina faltaria daí a uma hora e quarenta minutos. tudo teria de se resolver no meio daquela prisão. assim que chegar o correio de Asunción. — É provável que não esperemos por ele para mandar decolar o avião da Europa. A terra firme traria as herdades adormecidas. Bem ou mal. onde o sol vivia: havia. ele julgou certas vezes que começava a convalescer. — Pergunte o tempo a Trelew. Essas florestas. Tenham tudo pronto. o abrigo das planícies. Que devemos fazer?" Para o piloto esta noite não tinha fim. com que vontade vogaria em direção ao dia! Considerou que estava cercado. onde encalhariam depois desta terrível noite. É verdade: ao nascer do sol. — Comunique a Buenos Aires: "Passagens cortadas por todos os lados. San António escuta mui dificilmente por causa dos parasitas. vento nulo". que parece encontrar-se em dificuldades. peça-nos instruções. Surgiria. sob o avião ameaçado. previmos um grande atraso do correio da Patagônia. lua cheia. Pergunte o tempo a Bahia Blanca… — Bahia Blanca respondeu: "Previmos em menos de vinte minutos violento temporal oeste sobre Bahia Blanca". Se ele pudesse. Visto que se veria obrigado. Sr. As montanhas do Brasil. mais cedo ou mais tarde. os rebanhos e as colinas. Se conseguisse alcançar o dia… Fabien via a aurora como uma praia de areias douradas. iam banhar nas ondas prateadas do mar a sua vasta cabeleira de florestas negras. As suas indicações abriam ao correio da Europa uma rota de luar: "Céu limpo. tempestade desenvolve-se numa área de mil quilômetros. Escuto mal também. — Sim. que era impossível vencê-la. XIII — O correio de Asunción está em bom andamento. Todos os escolhos que nasciam nas trevas tornar-se–iam inofensivos. entre eles. Parece-me que dentro em breve serei obrigado a recolher a antena por causa das descargas. Vamos tê-lo aqui por volta das duas horas. já não distinguimos nada. — Trelew respondeu: "Tufão vinte metros segundo oeste e rajadas de chuva".a quatro quartos". Rivière relia agora os telegramas de proteção das escalas Norte. Mas de que lhe serviria agora cravar o olhar no leste. Pelo contrário. a deixar-se afundar às cegas no meio daquela massa negra. recortando-se com nitidez no céu brilhante. Iremos para trás? Que projetos tem? — Não me aborreça. tal profundidade noturna. Rivière. sobre as quais . — Trelew está à escuta? — Não ouvimos Trelew. não provava mais nada. para insistir. porque a fé de Rivière não estava abalada: uma fissura na sua obra dera ensejo ao’ drama. uma lua sem desgaste: uma fonte de luz. no espaço de algumas horas. Mesmo que ele tentasse. Os seus adversários aproveitariam um desastre na Patagônia para alcançar uma posição moral tão forte. informava-se: — Por que não nos transmitem nada? — Não ouvimos o correio. E durante todo o caminho. Cinco minutos mais tarde." Pensava ainda: "Tenho. Muito pesado. Os reveses fortalecem os fortes. E fica-se amarrado por causa duma aparência de derrota. — Calou-se? — Não sabemos. toda a noite brandamente iluminado. as ilhas. Todos mencionavam o mesmo . Infelizmente. Os relâmpagos aproximam-se rapidamente. Um silêncio. a tripulação do correio da Europa entraria num mundo estável. estragar um céu inteiro.brilham incessantemente. Rivière chamou. Que tempo está aí? — Ameaçador. — Telefonem. — Bahia Blanca continua a não comunicar nada pelo T. sem lhes dar cor. Existe ao menos uma causa de possível acidente: a que se revelou". Temos de ver isso. Se Rivière mandasse partir. F. S. Perante aquela cintilação. Telefonem daqui a dez minutos." E Rivière folheou os telegramas das escalas Sul. Rivière hesitava como um pesquisador de ouro perante um filão proibido. "Talvez sejam necessários postos de observação a oeste. "Bahia Blanca? Estão ouvindo? Bem. E no mar. único defensor dos voos noturnos. não o ouviríamos. — Há vento? — Fraco por enquanto. Há tantas tempestades. negras também. — Já tentamos: a linha está cortada. mas isto não durará dez minutos. mas o drama punha apenas a fissura a descoberto. Um mundo onde nada ameaçava o equilíbrio das massas negras e da luz. as mesmas razões sólidas. — Ponha-me em comunicação telefônica com essa escala.? — Não. se refrescam. que tornaria talvez para sempre impotente a fé de Rivière. podem. os raios de luar. joga-se contra os homens um jogo em que o verdadeiro sentido das coisas tem tão pouco peso. O que acontecia no sul desacreditava Rivière. Relâmpagos a oeste e ao sul. Ganha-se ou perde-se conforme as aparências. não têm o mínimo valor os pontos que se marcam. senhor. como destroços. Onde nem sequer se infiltraria a carícia daqueles ventos puros que. Um secretário acercou-se dele : — Sr. Cada cidade que podia responder. antes da destruição das linhas. . Numa área de dois mil quilômetros. mas sim que executar. dominavam ainda Buenos Aires. avisar imediatamente Buenos Aires. pois telegrafara a mais de trinta cidades da província para saber o estado do céu e as respostas começavam a chegar às suas mãos. com todas as suas portas fechadas e cada casa das suas ruas sem luz. Um porto. embrenhado nas suas profundezas. em direção ao mar. . que de resto se encontrava fora do raio de ação da tripulação. Encaminhou-se tranquilamente para o chefe de escritório: — É uma hora e dez. — Está bem. tocada e apodrecida por um vento ruim. fossem suspensos os voos noturnos e que o próprio correio da Europa já partiria apenas quando chegasse a manha. Noite ameaçadora. Num ponto qualquer. mantinha ainda a esperança de descobrir um refúgio de céu limpo. As mãos atrás das costas. Só a aurora as viria libertar. Deste modo. na sua totalidade. "Vem do interior. os postos de rádio tinham recebido ordens para. deu meia volta lentamente e encaminhou-se para uma janela aberta. Noite difícil de vencer. muito perto deles. As estrelas. obtemos poucas respostas. a posição do refúgio. Mas todas as vozes se extinguiram: Rivière acabava de surgir à porta do seu gabinete. ia crescendo a mancha das províncias mudas." . bruscamente aos bocados. . no caso de um deles conseguir obter um chamado do avião. Varre todo o caminho. Falavam em voz baixa de Fabien. Rivière. tinham voltado aos escritórios. E aí tomavam. para ser transmitida a Fabien. misteriosamente. mas aquilo era apenas um oásis e duraria um instante. no mapa. Os secretários. Noite estranha! Estragava-se. tão isolada do mundo e perdida na noite como um navio. onde as pequenas cidades já eram presas do ciclone. como um eterno viajante. Os papéis do correio da Europa estão em ordem? — Eu. o chapéu caindo-lhe sobre os olhos. o ar demasiado úmido. . talvez. observava a noite. um avião estava em perigo: na margem firme havia uma vã agitação. do ciclone e sobretudo de Rivière. Apesar de tudo. Rivière achava as estrelas demasiado brilhantes. . como a polpa dum fruto luminoso. cada mensagem representava uma ameaça para o correio. convocados para a uma da manhã. Informaram-nos do interior do país que muitas linhas telegráficas já foram destruídas. metido no sobretudo. que lhe comunicaria. . minuto a minuto mais acabrunhado com este desmentido natural. falava do avanço do ciclone. da Cordilheira. conhecimento de que. imóvel.silêncio do avião. eu pensei… — O senhor não tem nada que pensar. Diretor. . debruçado sobre o mapa. Algumas das escalas já não respondiam a Buenos Aires e. como se se tratasse de uma invasão. Rivière. Pressentiam-no ali. . Um atraso não tem importância." Às vezes a lua passeava como um pastor. o secretário passou o fone ao chefe do escritório. . Então a mulher do piloto ia novamente deitar-se. mas quando se prolonga… — Ah!… e a que horas chegará? . Na noite de cada chegada ela calculava o andamento do correio da Patagônia: "Deve estar decolando de Trelew. — Vem… atrasado. não tem importância nenhuma . — Ah!. já deve distinguir as luzes da terra".. — Quem fala? — Simone Fabien.. pelos milhares de presenças à volta de seu marido. . com um café bem quente: "Está tão frio lá em cima…" Aguardava-o sempre como se ele acabasse de chegar duma montanha coberta de neve: — "Você está com frio? — Que ideia! — Aqueça-se. — Ah! um momento. Naquela noite.. — Vem atrasado? — Vem… Novo silêncio. Por volta de uma hora. deve avistar Buenos Aires…" Levantava-se. depois respondeu laconicamente: — Ainda não. Levantava-se então.. . Telefonava então. ." Por volta de uma e um quarto estava tudo pronto. . informou-se: — O Fabien já aterrou? O secretário que a atendia ficou um pouco embaraçado: — Quem fala? — Simone Fabien. que deseja. . Era um "ah!" de carne ferida. então. Um pouco mais tarde: "Deve estar perto de San António. . . . minha senhora? — Meu marido já aterrou? Houve um silêncio que deve ter parecido inexplicável. afastava as cortinas e observava o céu: "Tantas nuvens devem incomodá-lo. como nas outras.XIV A mulher de Fabien telefonou. de novo e preparava-lhe uma refeição. no entanto. tranquilizada pela lua e as estrelas. calculava que ele estava perto: "Já não deve estar muito longe. Não ousando responder. ." Adormecia em seguida. — Ah!. . — Minha senhora. Pensou primeiramente cm afastá-los: as mães e as mulheres não têm entradas nas salas de operação. Não obtinha senão o eco das suas perguntas. nós não sabemos. Muito atrasado. acalme-se.. responda-me! Onde estará ele? Ouça. francamente. minha senhora… — Espere! Espere! Quero falar com o Diretor! — O Sr. assim que soubermos alguma coisa telefonamos-lhe. . Sucedia qualquer coisa por detrás daquele muro. Porque não ajuda a salvar os homens. — Um momento.. . . . com um tempo destes. . — Um momento… —Empurrou a porta de Rivière : "Pronto. — Ah! sim. . Ouviu aquela pobre voz longínqua. . eis o que eu temia". Que injustiça. está em reunião. que hipocrisia a daquela lua ali. Os elementos afetivos do drama começam a tomar forma. . O encontro seria. percebe-se… as suas mensagens não são ouvidas. Também se faz calar a emoção nos navios em perigo. . . — Um tempo destes! — Fica então combinado. Contudo aceitou : — Ligue para o meu escritório. tremula e compreendeu logo que não lhe poderia responder. . Ela encontrava agora uma espécie de muro à sua frente. Aquela inércia fazia-a sofrer. minha senhora. — Não me interessa. Isso. por favor. — E depois? — Depois?. — O que ele diz? Evidentemente. Decidiram-se.— A que horas chegará? Nós. pensou Rivière. não me interessa! Quero falar com ele! O chefe do escritório limpou o suor. para ambos. minha senhora. — Fabien está voando há seis horas a caminho de Trelew? Mas ele envia mensagens! Que diz ele?. . . — Fabien decolou de Commodoro às dezenove horas e trinta. . o mau tempo. — Ah! Não sabem nada… — Até logo. — Suplico-lhe. suplico-lhe! No nosso ofício é tão frequente esperar muito tempo por notícias. … Muito atrasado devido ao mau tempo. . absolutamente estéril. descuidadamente adormecida sobre Buenos Aires! A mulher de Fabien lembrou-se de repente que bastavam duas horas para vir de Commodoro a Trelew. Diretor está ocupadíssimo. "Em nome de quê. constroem-se pontes. que vão talvez desaparecer. aquele canto tão triste. Rivière sentiu um aperto no coração. mas tão diferente das outras. A ação. será para salvar essa parte do homem que Rivière trabalha? Doutro modo a ação não se justifica. Uma vez. amar somente. E ele. um dia. a sua própria verdade revela-se inexprimível e desumana. tendo exaurido a força de seus fracos punhos contra um muro. agimos sempre como se qualquer coisa fosse mais valiosa do que ela. que é preciso salvar. retorquira-lhe mais tarde Rivière. mas nada podia opor à verdade daquela mulher. quase a seus pés. o condutor de povos de outrora. Exigia o que lhe pertencia e tinha razão. Rivière. obrigando as multidões a acarretar com . Pedras erguidas ao céu. os santuários dourados somem-se como miragens. para economizar um desvio pela ponte seguinte. Talvez exista algo mais duradouro." Lembrou-se dum templo erguido em honra do deus do sol pelos antigos incas do Peru. A velhice e a morte." Via rostos inclinados no santuário dourado dos candeeiros à noite. também tinha razão. um engenheiro dissera a Rivière: "Valerá esta ponte o preço dum rosto esmagado?" Nem um só camponês teria aceito. mas inimigo: Pois nem a ação. Ou talvez se tratasse igualmente duma ternura. eu os tirei daí?" Em nome* de quê. O inundo de uma claridade de candeeiro sobre a mesa. . Voltou-lhe à mente uma frase: "Tratasse de torná-los eternos…" Onde teria lido isso? "O que buscamos vai morrendo conosco. junto duma ponte em construção. em plena montanha. a carne que reclama a sua carne. À luz dum humilde candeeiro doméstico. de ternuras. debruçados sobre um ferido. mais cruéis do que ele próprio. Que restaria. como um remorso? "Em nome de que dureza. poderiam ter vivido felizes. no entanto. Rivière tinha a impressão de que. Na sua frente erguia-se não a mulher de Fabien.Rivière tinha chegado àquele ponto em que se coloca. Rivière já não podia deixar de perguntar: "Em nome de quê?" "Estes homens. não o problema duma mísera angústia individual. Rivière só podia ouvir e lastimar aquela pobre voz. E. no entanto. nem a felicidade individual admitem a partilha: estão em conflito. . de recordações. destrói felicidades. uma pátria de esperanças. se elas não existissem. mas o da própria ação. é um beco sem saída!" Rivière teve a noção obscura dum dever mais forte do que o de amar. ou de que estranho amor. mas sim um sentido diverso da vida. de uma civilização poderosa que pesava. a mutilação medonha deste rosto. O engenheiro acrescentara: "O interesse geral é formado de interesses particulares: não justifica mais coisa alguma. E no entanto. fatalmente. "Amar. apesar de a vida humana não ter preço. "Minha senhora…" Ela já não escutava. mesmo a que consiste em construir uma ponte. arrancara-os à felicidade individual? Não é uma lei de primeiro grau proteger essas felicidades? Mas ele próprio as anula. a mulher caíra inanimada. Era certo que aquela mulher falava em nome de um mundo absoluto e dos seus deveres e dos seus direitos. destroem-nos. à noite. com toda a carga de suas pedras. sobre o homem dos nossos dias. Mas o quê?" Pensando na tripulação. — E. E levava o seu povo a erguer pelo menos pedras. essa armadura …". Fabien teria seguido todos os conselhos. debruçados sobre mapas. mas piedade pela espécie que o mar de areia apagará. . as multidões das pequenas cidades. como se. Não pela sua morte individual. os seus camaradas. Pareceu-lhe que a matéria também se revoltava. lhes impôs assim o dever de erigir a sua eternidade?" Rivière voltou a ver. quis responder. se não sentiu piedade pelo sofrimento do homem. pôr-se em contacto com Buenos Aires. como um farol. pois saltam-me faíscas aos dedos. A cada mergulho. contanto que lhe fossem gritados. O piloto ergueu e agitou o punho naquela luz avermelhada." Fabien. Fabien respirou profundamente. . E ele que sabia. à noite. o motor vibrava tão . "Impossível manter comunicação com Buenos Aires. . ao abrigo de candeeiros belos como flores. uma lanterna de pousada quase inútil. nas suas cinco toneladas de metal. suaves sob grandes manchas de luar. vinda dum mundo que já quase não existia. à mercê das rajadas e das chamas. mas o companheiro. necessitava pelo menos de uma voz. Se ordenassem a Fabien: "Governe a duzentos e quarenta. instruídos como sábios. debruçado sobre o espaço devastado. as luzes mortas. para que o outro lá atrás compreendesse essa trágica verdade. Lá longe. a sua lava negra? Não se podia abandonar dois homens no meio das nuvens. Era preciso.aquele templo para o topo da montanha. refletia. sentiu uma imensa piedade pela sua morte. em sonhos. todo-poderosos. a existência da terra. à chegada. . Se o telegrafista recolhesse a antena. Fabien partir-lhe-ia a cara. não a entendeu. As suas mãos prenderam de novo a onda e fizeram-na desaparecer.". ele governaria a duzentos e quarenta. à volta do coreto da praça: "Essa espécie de felicidade. sentiu-se levado por uma espécie de onda fortíssima: os redemoinhos levantavam-no. mas quando as suas mãos largaram as alavancas de comando para escrever. fora dos redemoinhos e da noite que lançava contra ele. Mas estava só. sabem onde essas terras existem. Fabien desdobrou-o. a mais de mil e quinhentos quilômetros de distância. a todo custo. mas que teria provado. Não se podia fazer uma coisa dessas. uma só. XV Talvez aquele papel dobrado em quatro o I pudesse salvar. com as cidades soterradas. irritado. Já nem sequer posso manipular. O condutor de povos de outrora. fosse possível lançar-lhes um cabo neste abismo. passeando. Pensava: "E se me dizem para andar à roda. que o deserto não poderia soterrar. ando à roda. com medo da tempestade. cerrando os dentes. com a rapidez duma derrocada. e se me dizem para voar direito ao sul." Existia em qualquer lado as terras de paz. Desistiu de escrever. Não conseguindo vislumbrar qualquer luz tremula. e sacudiam-no. lutava dificilmente. iluminou uma superfície plana e nela se apagou: era o mar. algumas estrelas. E como as sacudidelas do volante só se sentiam nos ombros doloridos. E eis que deixara de sentir as mãos que o esforço adormecera. como uma vertigem. cujo cerco cada vez mais se apertava. . No meio daqueles redemoinhos que desfechavam golpes de aríete. E o seu camarada. lançou o seu único foguete luminoso. e começavam a girar. perdia altitude. então. Fabien ia perdendo as forças. e a menor esmagá-lo-ia. pois. rodopiou. altura do nível das colinas. E assim continuava. apesar de tudo. Ele pensou de fato que era uma cilada: vêem-se três estrelas num buraco. Correndo o risco de espatifar-se. como se se enchesse de cólera. Às minhas mãos vão abrir-se. agarrara-se com ambas as mãos a esse volante. Pensou: "Sem foguete. . como uma isca morta e no fundo duma armadilha. os erros atraem-nos. e seguia perdido numa escuridão onde tudo se misturava. E para evitar ao menos as colinas. pois pareceu-lhe que desta vez as mãos obedeciam à obscura força da imagem e se abriam lentamente na escuridão. . à sua volta. sobe-se ao seu encontro. tentar a sua sorte: a fatalidade exterior não existe. o olhar fixo no horizonte giroscópico. Mas há uma fatalidade interior: há um momento em que nos sentimos vulneráveis. eram como que arrancadas do seu suporte. Pensou: "Tenho de me convencer fortemente de que estou a apertar". . ébrias. num rasgão da tempestade. para entregá-lo. como uma leve poeira. depois já não se pode descer e lá se fica mordendo as estrelas. Sentiu as suas vagas vertiginosas lançarem-se contra ele." Mas já não lhe queria mal por isso. ele já não conseguia distinguir a massa do céu da terra. a fim de amortecer as sacudidelas do volante.. Era qualquer coisa de estranho que terminava os seus braços. desvieime. agora vou morrer". que de outro modo despedaçariam os cabos das alavancas de comando. Isto tinha de suceder um dia. tornava-se difícil segui-las. Quarenta graus de correção. Para que lado fica a terra?" Seguiria direito a oeste. Mas as agulhas dos indicadores de posição oscilavam cada vez mais. . que elas enganavam. O foguete inflamou-se." Mas assustou-se por se permitir tais palavras. Tinha nas suas mãos o bater do coração do seu companheiro e o de seu próprio coração. Poderia ainda lutar. Não percebeu se o pensamento atingia as mãos. "Com certeza já recolheu a antena. Tomou uma resolução. atrás. a vida de ambos desapareceria logo. Verificou a altura a que voava: "quinhentos metros". aterraria fosse onde fosse. tentando dominar o avião. Pensou rapidamente: "Perdido. Havia ao seu redor uma espécie de dança profunda. È um ciclone. deixando-se atolar naquela sombra. uma escuridão de começo dos mundos. . lá fora. Se ele próprio abrisse simplesmente as mãos. pensou: "O volante vai escapar. Quis mexer os dedos para experimentar: não percebeu se eles lhe obedeciam. a cabeça metida na carlinga. Umas bexigas insensíveis e moles. desparafusadas. E foi num momento destes que sobre a sua cabeça brilharam. E de súbito suas mãos assustaram-no. ali. Já o piloto.fortemente que toda a massa do avião se punha a tremer. Percebia também que todas as massas do solo. O seu ímã pálido atraía-o. graças à indicação das estrelas. o seu vestuário. debaixo dele. Elevava-se pouco a pouco.Mas a sua fome de luz era tal que Fabien subiu. Encontrava-se num canto do céu ignorado e escondido. seria capaz de dar voltas. por um instante. Como um barco que transpõe o dique. Mas a lua cheia e todas as constelações transformavam-nas em vagas deslumbrantes. Sentindo-se afortunado com aquele pobre clarão. fazendo diminuir os balanços. E também as da direita e da esquerda. a claridade era tal que o ofuscava. a não ser ele e o seu companheiro. . como as de um prisioneiro que deixam caminhar só. E à medida que subia. pensava Fabien. Teve de fechar os olhos durante alguns segundos. num mundo onde nada mais. mil braços obscuros tinham-no largado. Corria um leite de luz. só os sorrisos se transmitiam. imensamente ricos. entrava em águas reservadas. as nuvens iam perdendo a sua cor escura de lama. à sua volta. o avião recuperou a calma. passavam a seu lado como vagas cada vez mais puras e brancas. tinha vida. entre flores. daquelas imensas massas brancas. refletiam toda a neve que recebiam da lua. Vagueava no meio de estrelas amontoadas como um tesouro." Contudo. em torno daquele sinal de que andava faminto. pensou Fabien. — Isto vai melhor! — exclamava ele. que já não largaria mesmo a mais confusa. Tinham-se quebrado as cadeias. por trombas d’água. Porque a luz não descia dos astros. "Estar a sorrir é pura loucura. percorrido por rajadas. Dum só golpe. mas emanava. uma calma que parecia extraordinária. mas condenados. abaixo dele. pois tudo se tornava luminoso: as suas mãos. XVI Subiu. embaixo. Por entre pedrarias gélidas. Fabien tinha a sensação de ter chegado a limbos estranhos. altas como castelos. as suas asas. E ei-lo subindo até os campos de luz. como a baía das ilhas bem-aventuradas. em espiral. a tempestade constituía um outro mundo de três mil metros de espessura. no mesmo instante em que emergia. Nunca imaginara que de noite as nuvens pudessem ofuscar. Sofrera tanto em busca duma luz. Nenhuma onda o fazia inclinar-se. Mas a voz perdia-se no ruído do voo. absolutamente nada mais. donde nunca mais conseguirão sair. até cair morto. por relâmpagos. Foi imensa a sua surpresa. Aquelas nuvens. num poço que se abrira e se fechava. mas oferecia aos astros uma face de cristal e neve. em que a tripulação se banhava. Fabien viu que o telegrafista sorria. estamos perdidos. "Belo demais". Voltando-se. Fabien emergiu. Semelhantes a esses ladrões das cidades fabulosas enclausurados na sala dos tesouros. Abaixo dele. Fabien e o companheiro vagueiam. — Temporais? O telegrafista disse que "sim" com a cabeça. Inclinavam-se sobre um papel completamente em branco e fortemente iluminado. no ciclone que a arrastaria até ao solo. A mão do operador hesitava ainda e o lápis tremia. pois deriváramos para o mar. Por baixo está tudo fechado. de vigia em vigia. Ignoramos se ainda sobrevoamos o mar. por causa dos temporais. Quanto lhes resta de gasolina?" "Uma meia hora. no espaço de trinta minutos. Navegamos para o interior em direção oeste. As macieiras de noite aguardam o dia com todas as suas flores. a três mil e oitocentos metros." E esta frase. impotentes. e parecendo dormir. se agruparam à volta desse homem. teve um gesto brusco e todos os que no posto. A mão do operador mantinha ainda prisioneiras as letras. Para transmitir este telegrama a Buenos Aires. na noite.XVII Um dos radiotelegrafistas de Commodoro Rivadavia. escala de Patagônia. Por fim pôde-se restabelecer o texto: "Bloqueados. flores que não . Depois alinhou alguns sinais indecifráveis. Rivière recordava uma visão que lhe ficou da infância: esvaziavam um tanque para encontrar um corpo. até que voltem à luz essas areias. A mensagem avançava. o braço tapando o rosto. estavam de quarto. inclinando-se. esses trigais. chegou até Buenos Aires. Mas a noite as terá afogado. Já não tem esperança: aquela tripulação perder-se-á em qualquer ponto. foi preciso. esses campos. XVIII E Rivière medita. como em mares fabulosos. Também não se encontrará nada até que a massa de sombra abandone a terra. Buenos Aires mandou responder : "Tempestade geral no interior. O seu crepitar impedia-o de compreender. Rudes camponeses encontrarão talvez duas crianças. Depois palavras. sobre um fundo dourado e calmo. acima da tempestade. formar cadeia de posto para posto. Rivière sonha com os tesouros escondidos nas profundezas da noite. como um fogo que se acende de torre em torre. Informem se tempestade se estende para o interior". mas já os dedos tremiam. na noite. caídas na erva. A tripulação estava condenada a afundar-se. Diretor. Mas no meio das colinas. uma modulação menor liga ainda Fabien ao mundo. é a eternidade. e dos prados e dos cordeiros. o inútil tesouro. aguardava. A mulher de Fabien fez-se anunciar. como um brinquedo a uma criança pobre. Só uma onda musical.. os bosques orvalhados. mas sim para escapar a uma única sanção. o peso da riqueza humana e carrega desesperado. Não um grito. E Robineau. agora inútil. Levada pela inquietação. Aquela mão que era milagrosa. Por isso Robineau limitava o seu papel à criação duma força em movimento. mais abaixo. Encontrava sempre soluções que Rivière nunca escutava: "Você percebe. agora inofensivas. como uma mão divina. vagueava sem préstimo pelos escritórios. surgirão na manha os campos fartos. . cheia de perfumes. O seu título de inspetor não tinha qualquer poder sobre os temporais. de cordeiros adormecidos e de flores ainda incolores. eu pensei. que terá de devolver à força. Fabien vagueia por cima do esplendor dum mar de nuvens à noite. os frescos silvados. nem sobre uma tripulação fantasma. Robineau. Aquela mão que pousou sobre um rosto e que transformou esse rosto. Gostaria tanto de encontrar uma solução e procurava-a como quem procura a chave de uma charada. Pouco a pouco. no escritório . porém. Mas os acontecimentos desta noite apanhavam Robineau desarmado. E qualquer coisa terá fugido do mundo visível para o outro. Rivière imagina a mão de Fabien.servem ainda. Mas o som mais puro que o desespero jamais criou. Não uma queixa. duma estrela para outra. na vida não há soluções. que durante alguns minutos ainda segurará o seu destino nas alavancas de comando. Há forças em movimento: é preciso criá-las e as soluções sobrevêm". Aperta ainda o mundo com as mãos e embala-o contra o seu peito. no seu volante. naquela bela ordenação da terra. Aquela mão que pousou sobre um seio. Rivière supõe que um posto de rádio ainda o escuta. Rivière sabe como a mulher de Fabien é inquieta e terna: aquele amor foi-lhe apenas emprestado. . duas crianças parecerão dormir. . Aquela mão que acariciou. que impedia a ferrugem de atacar os eixos de hélice. A noite é rica. XIX Robineau veio arrancá-lo à sua solidão: — Sr. Está perdido no meio de constelações onde só ele habita. que anulava as de Robineau: a morte. fazendo surgir um tumulto. Segura. que verdadeiramente já não se debatia para ganhar um premio de regularidade. podia-se talvez tentar… Não tinha nada a propor. mas testemunhava assim a sua boa vontade. Fabien deixaria lentamente a sua casa. teria desejado esconder-se e. os seus lábios começaram a tremer levemente. . inconveniente. observavam o seu rosto. quando agimos. um pouco cansado. O que me faz sofrer são as pequenas coisas. Achava-se insólita. sem o saber. — Não. Mas a verdade dela era tão forte que os olhares fugitivos voltavam. "Mas ela ajudou-me a descobrir o que eu procurava. quase lamentava ter vindo. . Desejou poder desaparecer: — Venho incomodá-lo. à recordação. estes processos onde a vida humana. Tudo se opunha à piedade. De novo. Os seus lábios tremiam um pouco.. Ela procurava sinais que lhe falassem de Fabien. Rivière abafava uma profunda compaixão. Esta mulher era muito bela. egoísta. santo Deus!. da sua carne jovem." Uma jovem mãe confessara um dia a Rivière: "A morte do meu filho. temendo fazer-se demasiado notada. pois ninguém levantava a voz na sua presença. do seu café na mesa. à amizade. continha-se para não tossir ou chorar. . aquela ternura que apesar de tudo se apodera do meu coração e é agora inútil. se acordo de noite. como se estivesse nua. como se espezinhassem um corpo. Rivière recebeu-a. infatigavelmente. quase imperceptivelmente. Ela encolheu os ombros. Sob tantos olhares a mulher fechou os olhos. que nós expedimos para Santos". para descobri–la no seu rosto. com um sorriso quase humilde. Sentia uma espécie de vergonha que a fazia olhar medrosamente à volta: ali tudo a repudiava. sem saber. Em sua casa tudo indicava esta ausência: a cama entreaberta. . podemos destruir. que exprimia ali uma verdade inimiga. Depois olhou para a parede donde pendia um mapa. Ela também descobria que neste mundo diferente a sua própria verdade era inexprimível. a ceia na mesa. em cada objeto. a sua roupinha que encontro por acaso e. com embaraço. A mulher ia-se embora. em cada ato daí em diante vão. Os secretários. tanto a senhora como eu. Infelizmente. mas Rivière compreendeu o sentido daquele gesto: "Para que servem a lâmpada. Ela percebia. que Rivière a recebesse. Ela revelava a paz imensa que. Rivière sentou-se. foi uma imprecação proferida por um empregado que reclamava um registro: "…O registro de dínamos. parecia-lhe tomar ali um ar importuno. Revelava aos homens o mundo sagrado da felicidade. A única frase que ouviu. como o meu leite…" Para aquela mulher também a morte de Fabien iria apenas começar amanhã. quase imperceptivelmente. às ocultas. Ela vinha timidamente fazer a defesa das suas flores. Tudo o que sentia em si de amor quase selvagem — de tal modo era fervoroso — de dedicação. Não descobria sinal algum. o sofrimento humano só deixavam um resto de frios algarismos. Revelava em que matéria sublime tocamos. o mais que podemos fazer é esperar. Ergueu os olhos para esse homem com uma expressão de infinito espanto. ainda não a compreendi bem. às ocultas. o café na mesa.dos secretários. um vaso com flores. minha senhora — disse-lhe Rivière — não me incomoda. ignorante da sua própria força. naquele escritório mais frio ainda.. as flores que voltarei a encontrar. Estes homens que continuavam a trabalhar. Para o carregar com a sua esperança. agora inútil. Os secretários que preparavam os papéis do correio da Europa. A ficha do R. o avião de Fabien. Quando a vida reanimar esta obra. Ouviu a voz de Robineau: — Sr. ei-la". As funções de vida tinham-se afrouxado. com uma fé de apaixonados. o seu sentido dramático. O vazio que nos rodeia faz-se então sentir…" O seu olhar pousou nos telegramas: "E eis por onde a morte entra aqui: estas mensagens que já não fazem sentido…" Olhou para Robineau. Todos engrandecidos. Pensou nas pequenas cidades de antigamente que. "A morte. os serventes. contra a morte. pensou Rivière. quando tiver dado aos telegramas o seu verdadeiro sentido. por detrás deles. trabalhavam mal. no quadro mural. bem evidente. às equipes de vigia e a sua inquietação e aos pilotos. Rivière disse-lhe quase em tom áspero: — Será preciso que eu próprio lhe dê trabalho? Depois Rivière empurrou a porta que dava para a sala dos secretários e o desaparecimento de Fabien saltou-lhe aos olhos. os pilotos. "O objetivo talvez não justifique nada. Aquele homem medíocre. no mar. construíam o seu navio. Sonhava. . eles estavam casados há seis semanas… — Vá trabalhar. sabendo que este partiria com atraso. em sinais que a senhora Fabien não soubera ver. na coluna do material indisponível. todos aqueles que o tinham ajudado na sua obra. todos arrancados de si próprios. ordens para as equipes que agora velavam sem objetivo. já não fazia sentido. como o vento reanima um veleiro do mar. Era um navio que fazia prolongar a vida desses homens. Nos não pedimos para ser eternos. mas apenas para não ver os atos e as coisas perderem subitamente o seu sentido. A sua obra parecia um veleiro parado. Pediam do campo. todos libertos por um navio." E Rivière também terá lutado. Rivière continuava a olhar para os secretários e. pelo telefone. B. sem vento.Batia levemente com as pontas dos dedos nos telegramas de proteção das escalas Norte. 903. Para que os homens pudessem ver a sua esperança enfunar as velas sobre o mar. . mas a ação liberta da morte. Diretor. figurava já. os mecânicos. ouvindo falar das "Ilhas". . Ter-se-á acabado a gasolina ou é o piloto que. O silêncio vai ganhando terreno. mas aqui se fica surdo. Como ao cabo das viagens. vinte séculos de desgaste concentram-se em cada segundo e ameaçam uma tripulação. silenciosos. já se manifesta. F. Cumpriu-se qualquer coisa. Então alguém faz notar : — Uma hora e quarenta. vem à boca um travo amargo e enjoativo. Entramos nas nuvens…" Depois estas duas palavras dum texto obscuro apareceram no posto de Trelew : "… ver nada…" As ondas curtas são assim. durante vinte séculos. Se o avião e as suas luzes de bordo subirem de novo até às estrelas. antes da pane. Do mesmo modo que. abre o seu caminho no granito e o desfaz em pó." Vão talvez apanhar aquela nota que seria um sinal de vida. "Não respondem?" "Não respondem. O posto de escuta de T. Cada segundo leva consigo qualquer coisa. fora do espaço. mas. qualquer coisa repulsiva. Captam-se ali. E a paz desceu. eles talvez ouçam o canto daquela estrela… Os segundos correm. cobre e manômetros. "Descemos. Um silêncio cada vez mais pesado que cai sobre a tripulação como o peso dum mar. cuja posição permanece desconhecida. o sorriso. parecem entregues a uma experiência. a mil quilômetros de distância. Último limite da gasolina: é impossível que voem ainda. Os seus dedos delicados afloram os instrumentos. aos vivos. Depois. Todo .E eis que o tempo que passa parece destruir. Estarão ainda voando? Cada segundo faz surgir uma probabilidade. de que se ignora tudo. fora do tempo e nas folhas brancas dos postos de rádio já são fantasmas que escrevem. sem razão. rede de condutores. as coisas mudam. E no meio dos tubos de níquel e destas artérias de cobre. . Os operadores de avental branco. Aquela tripulação.XX Commodoro Rivadavia já não ouve nada. sente-se a mesma tristeza que reina nas fábricas arrumadas. Correm verdadeiramente como sangue. Bahia Blanca capta uma segunda mensagem. vinte minutos mais tarde. o tempo se apossa dum templo. S. pesquisadores buscando o filão de ouro. parece-se com um laboratório: níquel. joga a sua última cartada: chegar ao solo sem se esmagar? A voz de Buenos Aires ordena a Trelew: "Perguntem-lho". A voz de Fabien. exploram o céu magnético. o riso de Fabien. "Devia tê-lo mandado passear". à sua frente. puxamos lentamente. Robineau. sem aliás saber por quê. seria anulado e só partiria de dia. Robineau deu por este. sem sabermos o que trará. mas tudo era inútil. meu amigo…. Rivière sente uma calma que só é possível por ocasião dos grandes desastres. Ele pôs. Os empregados. E Robineau assusta-se com esta igualdade perante sombras. Continuava-se a receber. Para não atrasar demais correio da Europa. Ao folhear. Rivière. Dentro de algumas horas a Argentina inteira vai surgir à luz do dia e aqueles homens lá ficarão. as mensagens de proteção das escalas Norte. . Um deserto de luar e pedras. . visto que aquele correio. Inclina-se um pouco para a frente. Mas lembra-se de qualquer coisa. irritado. é preciso esperar. inútil. um processo em que estava trabalhando o chefe do escritório. os rostos sisudos. olhando para a rede que puxamos.este material parece pesado. Os pilotos ficam proibidos de ultrapassar mil e novecentas rotações: estão a dar-me cabo dos motores. previsto para as duas horas. — Sr. fora de uso: um peso de ramos secos. num ritmo regular. E para não esquecê-la. Rivière inclinou-se um pouco mais. Rivière faz sinal a Robineau : — Telegrama para as escalas Norte: "Prevemos grande atraso do correio da Patagônia. Mas a ordem deve reinar mesmo na casa dos mortos. como se estivessem na praia. Já não pode fazer mais nada. pelos escritórios. não é verdade? isso é meu. A vida da Companhia parara. de pé. Ah! sim.em estado de alarma todas as autoridades duma província. Resta apenas esperar o dia. XXI Robineau vagueava agora. — Está bem. O chefe de escritório voltou ao seu lugar com um ar de grande altivez. e os seus "vento nulo" sugeriam a imagem dum reino estéril. de estar só: — Vá. as suas "lua cheia". esperando com um respeito insolente que ele lhe devolvesse os documentos. sobretudo. mas os seus "céus limpos". juntaremos correio da Patagônia ao próximo correio da Europa". Pode ir. era importante. O seu ar dizia: "Quando quiser. mas não encontrou réplica alguma e. Sente necessidade. no momento em que a fatalidade liberta o homem. Rivière? — O senhor redigirá uma ordem." Essa atitude dum inferior chocou o inspetor. continuavam de vigília. pensou . estendeu-lhe o processo. melancólico. Sr. No seu escritório. — Robineau. dava com aquela cabeça inclinada a três quartos. . mas cada vez que levantava os olhos. Rivière puxou o relógio e disse simplesmente : — São duas horas. Então. E Robineau dirigiu-se ao chefe de escritório: — Traga-me esse processo para que eu o verifique.. Animou-o um sentimento que lhe pareceu duma grande beleza. tão distante que talvez nem tivesse dado ainda pela presença de Robineau. sem querer. ali fechado no seu gabinete e que lhe tinha dito: "Meu amigo…" Nunca homem algum estivera a tal ponto falto de apoio. finalmente Robineau com um infinito embaraço e sem saber por quê. E quando o chefe de escritório parou em frente dele : . Robineau buscava palavras cada vez mais tocadas de dedicação. Despertava de um sonho tão profundo. E Robineau. Diretor. Rivière lá estava. nem o general. Depois surgiu-lhe a imagem dum Rivière. O correio de Asunción aterrará às duas e dez. Rivière ergueu a cabeça e olhou para ele. Pela primeira vez. aqueles lábios que fechavam tanta amargura. Robineau teve uma grande pena dele. Nem o sargento. nem o que ele sentia. Mesmo abatido. disse : — Vim para receber as suas ordens. nem a metralha podiam agora ser para ali chamados. aconteça o que acontecer". Rivière fixou Robineau durante muito tempo. Rivière continuava a olhar para ele. já não se atrevia a falar. parecia querer dizer Robineau. retirou a mão da algibeira esquerda. sob a metralha. Então Robineau. Mande decolar o correio da Europa às duas horas e um quarto. um pouco como um amigo. Não obteve resposta. Então. Rivière continuava a olhar para ele. Quanto mais Rivière olhava para Robineau. para não perder a linha. Quanto mais Rivière olhava para Robineau. um pouco. "Estou a seu lado. Passava-se algo de inexplicável. com uma boa vontade enternecedora e uma espontaneidade infeliz. E mais parecia a Rivière que Robineau tinha vindo ali testemunhar. Aquele desastre implicaria o descrédito duma política e Robineau chorava um duplo luto. Não se atreveu a bater com mais força e empurrou a porta. Robineau sentiu-se embaraçado. o leão intimidava-o. de cabeça caída. como se esse fosse a testemunha viva de qualquer coisa. quase como um igual. E Robineau espalhou a espantosa notícia: não se suspendiam os voos noturnos. aqueles cabelos grisalhos. de pé à sua frente. Por fim decidiu-se : — Sr. olhava para as mãos. corrigiu um pouco a sua atitude. como o sargento que se junta. pensando no drama. Robineau sentia-se perturbado. Robineau entrava no gabinete de Rivière. a consolar. Perpassaram-lhe pela cabeça várias frases obscuramente destinadas a lastimar. mais aflorava aos seus lábios uma expressão de ironia incompreensível. deu uns passos.Robineau. E ninguém soube nunca qual foi o seu sonho. pensava ele. nem a imensidão do luto que cobria a sua alma. mais este corava. Rivière permanecia calado e. Então foi bater mansamente à porta. a estupidez dos homens. ao general ferido e o acompanha na derrota e se torna seu companheiro de exílio. — O avião da Patagônia já chegou? — Não o esperamos: desapareceu. "Não há ciclones todas as noites. com os olhos bem abertos e cheios de luar. a cabeça inclinada para trás. telegrama a telegrama. pois as pequenas cidades da Argentina já desfiavam. Está bom tempo? — Esplêndido. a sua marcha feliz. como uma vitrina cheia de jóias. Mesmo nas horas mais difíceis. Aquele voo feliz anunciava. a prova. de escala em escala. Rivière tinha seguido. depois recolheu a antena. de casas baixas e de águas mansas o avião vogava à beira dum ciclone que não lhe escondia uma única estrela. espreguiçou-se um pouco bocejou e sorriu: "Chegamos". Ao aterrar. aconchegados nas suas mantas de viagem. sob o ouro mais pálido das cidades de estrelas. aquele voo representava para ele a desforra da sua fé. a nuca encostada à carlinga. de mãos nos bolsos. encostavam a testa à janela. como os acordes finais duma sonata que tivesse dedilhado. Sentia nascer um imenso poder e foi tomado por uma forte alegria. O telegrafista fazia partir com os seus dedos ágeis os últimos telegramas. todo o seu ouro." Rivière pensava ainda: "Uma vez o caminho traçado. como os de um pastor. pelos seus telegramas. — É você que continua? — Sou. Buenos Aires já abrasava o horizonte com o seu fogo suave e em breve cintilaria como um tesouro fabuloso. No meio da confusão. — Carregado? — disse uma voz. — Então podem ligar. já não se pode deixar de segui-lo!" Vindo do Paraguai. sempre imóvel. na noite.— Espere. o piloto encontrou o seu camarada do correio da Europa encostado ao seu avião. O piloto. mil outros voos igualmente felizes. Fabien desapareceu? Trocaram poucas palavras a esse respeito. . Uma grande fraternidade dispensava-os das frases. como dum adorável jardim cheio de flores. alegremente. E o chefe de escritório esperou. à frente. XXII O correio de Asunción anunciou que ia aterrar. sustinha com as mãos aquele precioso carregamento de vidas humanas. olhava as estrelas. Nove passageiros. no céu e de que Rivière compreendia a melodia. Fazia-se o transbordo para o avião da Europa dos sacos em trânsito de Asunción e o piloto. Dentro de cinco minutos os postos de T. . montanhas. hein! Não escutou o conselho do seu camarada. Se tivesse suspendido uma única partida. não partirá. . o Grande.F. Em frente duma janela aberta.O piloto não se mexeu. terão dado o sinal de alerta às escalas. Punham o seu motor em marcha. A derrota que Rivière sofreu é talvez uma promessa que torna mais próxima a verdadeira vitória. e o fazia estremecer vivamente dos pés à cabeça. como a brisa passa pela folhagem das árvores. pára. em passos lentos. A vida está por debaixo dessas imagens e já prepara novas imagens. quer ouvi-lo. o Vitorioso. voltado para as nuvens. Mas. passa por entre os secretários. no meio dos secretários que o seu olhar duro faz curvar. — Cuidado com a noite. encostadas ao avião. Só o conhecimento em marcha é que conta. Sentiria em breve nas suas espáduas. mas que passava através dele. Quer ouvi-lo nascer. Rivière. Rivière. que volta à luta. uma derrota acorda outro. E Rivière. os rios e os mares.. rios e mares.S. fora tomado por um riso silencioso. — O que é que você tem? — Aquele idiota do Rivière que me. volta ao seu trabalho. a causa dos voos noturnos estaria perdida. o aparelho viver. Um riso frouxo. Numa área de mil e quinhentos quilômetros o frêmito da vida resolverá todos os problemas. na noite. Rivière largou. escuta e sonha. partirá! Os seus lábios entreabriram-se e os dentes brilharam sob o luar como os de um jovem felino. . mas muito mais forte do que as nuvens. as montanhas. O piloto tranquilizava-se finalmente. Uma vitória enfraquece um povo. Já se eleva um canto de órgão: o avião. após tantas falsas notícias: partirá. De mãos nos bolsos. . . que julga que eu tenho medo! XXIII Dentro dum minuto o avião sobrevoará Buenos Aires e Rivière. troar e desvanecer-se como o passo formidável de um exército em marcha nas estrelas. antecipando-se aos fracos. carregando a sua pesada vitória. . . derrota… estas palavras não têm sentido algum. Rivière. de braços cruzados. . outra tripulação. que amanha o reprovarão. Um riso frouxo. Vitória. a cabeça inclinada. doc ..ePub 2013 .
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