ANÁLISE DA MÚSICA CÁLICE

March 28, 2018 | Author: Verônica Lopes | Category: Pop Culture, Liberty, State (Polity), Democracy, Violence


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ANÁLISE DA MÚSICA CÁLICEANALISE DAS METAFORAS DA MUSICA CALICE “Cálice” uma das músicas mais panfletárias do Chico Buarque, somando-se o fato dele ter como parceiro a genialidade do Gil, fizeram uma grande obra. A análise é extensa por conta de que todos os versos vêm imbuídos de metáforas usadas para contar o drama da tortura no Brasil no período da ditadura militar. (Pai, afasta de mim esse cálice) Sintetiza uma súplica por algo que se deseja ver à distância. Boa parte da música faz uma analogia entre a Paixão de Cristo e o sofrimento vivido pela população aterrorizada com o regime autoritário. O refrão faz uma alusão à agonia de Jesus no calvário, mas a ambigüidade da palavra “cálice” em relação ao imperativo “cale-se”, remete à atuação da censura. (De vinho tinto de sangue) O “cálice” é um objeto que contém algo em seu interior. Na Bíblia esse conteúdo é o sangue de Cristo, na música é o sangue derramado pelas vítimas da repressão e torturas. (Como beber dessa bebida amarga) A metáfora do verso remete à dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas eram subjugadas de forma desumana. (Tragar a dor, engolir a labuta) Significa a imposição de ter que agüentar a dor e aceitá-la como algo banal e corriqueiro. “Engolir a labuta” significa ter que aceitar uma condição de trabalho subumana de forma natural e passiva. (Mesmo calada a boca, resta o peito) Os poetas afirmam que mesmo a pessoa tendo a sua liberdade de pronunciar-se cerceada, ainda lhe resta o seu desejo, escondido e inviolável dentro do seu peito. (Silêncio na cidade não se escuta) O silêncio está metaforicamente relacionado à censura, que, desta forma, é entendida como uma quimera, um absurdo inexistente, porque, na medida em que o silêncio não se escuta, o silêncio não existe. (De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra) Não fugindo à temática da religião, Chico e Gil usam de metáforas para mostrar suas descrenças naquele regime político e rebaixam a figura da “pátria mãe” à condição inferior a de uma “prostituta”, termo que fica subentendido na palavra “outra”. em estado de alerta para o fim dessa conjuntura. (Tanta mentira. seria partir para o confronto. pai. Biblicamente. o espetáculo pode ser. pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa) Entretanto. (Atordoado. de forma clandestina. . ironicamente. fazendo-as perderem os sentidos. mas ao mesmo tempo apresenta a tarefa como sendo muito difícil. como se estivesse esperando um espetáculo que estaria por vir. (Esse silêncio todo me atordoa) Esse verso denuncia os métodos de torturas e repressão. que. abrir a porta) É expresso o apelo para que sejam diminuídas as dificuldades. O porco também é um símbolo da gula. sinaliza um novo tempo. já não funcionava. (Na arquibancada. A porta representa a saída de um contexto violento. (De muito usada a faca já não corta) Demonstra inoperância. (Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano) O eu-lírico admite a dificuldade de aceitar passivamente as imposições do regime. somente o surgimento de mais um mecanismo de imposição de poder do regime. representado pelo monstro da lagoa. tanta força bruta) O regime militar propagandeava que o país vivia um “milagre econômico” e todos eram obrigados a aceitar essa realidade como uma verdade absoluta. por conta de tanto desespero. utilizados para conseguir o silêncio das vítimas. (De muito gorda a porca já não anda) Essa “porca” refere-se ao sistema ditatorial. retomando a temática de religiosidade e elementos católicos. (Quero lançar um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado) Talvez porque ninguém escutasse as mensagens lançadas por vias pacíficas e ordeiras. que está entre os sete pecados capitais. mostra o desgaste de uma ferramenta política utilizada à exaustão.(Outra realidade menos morta) Seria uma outra realidade. principalmente diante das torturas e pressões que eram realizadas à noite. (Como é difícil. de tão corrupto e ineficiente. uma das possibilidades. Tudo era tão reprimido que necessitava ser feito às escondidas. na qual os homens não tivessem sua individualidade e seus direitos anulados. ou seja. eu permaneço atento) Mesmo atordoado o eu-lírico permanece atento. não eram molestados pelos torturadores. renovando suas esperanças. quais são seus erros. Quer decapitar a cabeça da ditadura e libertar-se do juízo imposto por ela. e não. (De que adianta ter boa vontade) É um autoquestionamento sobre a ânsia de lutar pela liberdade. contar e descrever a todos a repressão que está sendo imposta. enquanto nesta condição. (Quero morrer do meu próprio veneno) Neste verso está implícito que ele deseja ser punido pelos erros que ele vier a praticar seguindo o seu livre-arbítrio. dentro da sala os repressores queimavam óleo diesel. (Quero inventar o meu próprio pecado) Expressa a vontade de libertar-se da imposição do erro por outros para recriar suas próprias regras e definir por si só. tendo seu desejo cerceado. (Quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém me esqueça) Para encerrar. cuja fumaça deixava-os embriagados. e uma das artimanhas era justamente fingir-se desmaiado. a livre expressão. sem que outros o apontem.(Essa palavra presa na garganta) É a dificuldade para encontrar a liberdade. punido por erros que o sistema acha que ele poderá vir a cometer. Tem o significado de estar fora da lei. os subjugados também possuíam táticas antitortura. (Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado) A partir deste verso o eu-lírico sugere a possibilidade de a realidade vir a ser diferente. (Mesmo calado o peito resta a cuca dos bêbados do centro da cidade) Mesmo sem liberdade o homem não perde a mente e pode continuar pensando. para ser dono de suas próprias idéias. pois. Chico e Gil usaram uma imagem forte das táticas de tortura. (Esse pileque homérico no mundo) Refere-se ao desejo de liberdade contido no peito de cada cidadão dos países vivendo sob os vários regimes autoritários existentes no mundo. O verbo aproxima-se do desejo urgente e real de liberdade. uma vez que o mundo estava ao avesso. Para fazer com que os subjugados perdessem a noção da realidade. Refere-se a uma frase bíblica: “paz na terra aos homens de boa vontade”. (Quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder teu juízo) Traz a idéia de que o eu-lírico deseja ter seu próprio juízo e não o do poder repressor. É o desejo de falar. Entretanto. . decapita o artista. Na primeira estrofe há o verso: “mesmo calada a boca resta o peito”. representação da repressão sobre a produção cultural – a manifestação artística calada arbitrariamente pelo Estado. a impossibilidade de manifestação do pensamento por meio da palavra anula o próprio indivíduo. podendo ser encarada como uma metalinguagem da palavra expropriada. Acordar calado é difícil. no limite levando ao silêncio. para outros. como uma censura que vai se institucionalizando. muitas vezes. os artifícios para se driblar a censura. ela incentivou a criatividade. ou seja. como Chico Buarque. tão intrincados os sentidos das letras que atualmente o próprio compositor não recorda o sentido de determinadas passagens. por fim. pois existia “tanta mentira. O verso “silêncio na cidade não se escuta” mostra que existiam muit as vozes querendo se expressar. Se para alguns. além da censura. feita em parceria com Gilberto Gil. Na música. Ademais. ela significou um obstáculo. Na canção. pois trata da expressão contida. ou seja. profissionalizando e tornando-se mais forte. a própria cabeça é perdida. o peito. tanta força bruta”. gravada em 1973. a palavra cálice é repetida freqüentemente. Cálice. ceifando muitas idéias e possibilidades de uma música. gradualmente extinguiram-se as próprias faculdades humanas. a tortura e a morte para calar os chamados subversivos. isto é. como o maestro Júlio Medaglia. durante . a ameaça explícita e velada de uso da violência contra os opositores abafou as vozes das cidades. ou seja. Na terceira: “mesmo calado o peito resta a cuca”. progressivamente. é um exemplo de música alegórica a respeito da censura e das dificuldades de se compor sob ela. uma pedra no caminho da produção artística e intelectual brasileira. A composição. na última. E. porém a situação as obrigava a não se pronunciar. como o uso de metáforas. e sem ela há o silêncio total: “quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder seu juízo”. o silêncio imposto torna-se. parece dialogar diretamente com o governo Médici. Nesse trecho. adotando o sentido e a sonoridade de cale-se. corre-se o risco da danação noturna. deixaram. Chico revelou em várias entrevistas que o controle externo do conteúdo de suas canções interferia na criação. vista pelo compositor como um roubo da própria voz. mais violento a cada estrofe. a capacidade de sentir e a cabeça a capacidade de pensar. que usou. mas necessário. a palavra não saía da garganta. aqueles que ousavam falar. A violência volta a se relacionar com o silêncio nos versos “como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado”. a boca pode ser encarada como simbolizando a capacidade de comunicação. Chico Buarque representou em diversas músicas esta opressão sentida pela censura sistemática que sofria e pela negação política de sua obra.Censura: violência e silêncio na música Cálice Postado por Eduardo às 16:56 A censura oficial do regime militar brasileiro é motivo de diversas discussões entre artistas e músicos brasileiros. pois se não se cala. as classes médias dos centros das cidades iludidas com o crescimento econômico. invasor dos âmbitos privados. é história. há a possibilidade de resistência. O mundo que se espera com a transformação é aquele que permita “inventar o próprio pecado” e “morrer pelo próprio veneno”. longe dos olhos dos “cidadãos de bem”. portanto. encaradas. apesar da “palavra presa na garganta”. “Talvez o mundo não seja pequeno” procura quebrar certa visão lacônica e imediatista – geradora de conformismo. um interlocutor elíptico. um mundo bêbado. Então perder tua cabeça adquire um valor de negação da ilusão. classes que emperram a mudança. como representadas pelo “grito desumano”. gerando sua própria contradição. podendo culminar em tortura e até em morte. formas diferentes de se organizar um país e múltiplas soluções para os mesmos problemas. podendo ser visto como esta cabeça dos centros das cidades e dos donos do poder. que a vida dos homens é um processo. “minha cabeça perder teujuízo”. dos valores e da crença no status-quo. “De muito gorda a porca já não anda / de muito usada a faca já não corta” é a imagem de um Estado gigantesco. e não impor a verdade através de um Estado centralizador. segundo a vontade do autor. nessa análise. na estrofe seguinte. Quando se diz “quero perder de vez tua cabeça” refere-se a esse teu. ou seja. No verso seguinte. outros modelos de regime. a existência de inúmeras experiências políticas diferentes. isto é. “nem seja a vida um fato consumado”. onde apenas a vontade ou a idéia de mudar não bastam e onde os que pensam.a noite realizavam-se muitas das prisões políticas. não está escrita e não é monolítica. estão bêbados com o regime. Nos dois primeiros versos da última estrofe parece existir uma chama de esperança ou a tentativa de retirar o véu ideológico desse governo que provoca o silêncio para conter a reação. Todavia elas perderão a cabeça. existe a tenta tiva de quebrar o conformismo e a apatia e mostrar que as coisas são mutáveis. de uma ação transformadora. como nos regimes democráticos. vinho. fora de si. própria das camadas sociais beneficiadas pelo “milagre econômico” – e mostrar a vastidão do mundo. tema sugerido pela repetição das palavras pai. mas que no sacrifício – assim como nos sofrimentos de Jesus Cristo na cruz. sangue e cálice – se fazem ouvir. crescendo ainda mais. aqueles que ainda têm cuca. a faca que de tanto cortar perde sua utilidade. . consolidação e reprodução de valores favoráveis ou geradores da crença sobre este sistema político. governar-se. Chico pode estar referindo-se a essas classes médias que têm papel fundamental na manutenção do regime e contribuem significativamente com a formação. Na quarta e na quinta estrofes é possível interpretar o sentido dos versos como uma tentativa do autor mostrar que. que não necessariamente passem pela violência. o grito daqueles que perderam a humanidade pelas mãos dos torturadores. tentar e pagar pelo próprio erro. Enquanto o quarteto “esse pileque homérico do mundo / de que adianta ter boa vontade / mesmo calado o peito resta a cuca / dos bêbados do centro da cidade” evidencia um mundo ao avesso – a ditadura que destruiu a democracia em construção dos anos 1950 e 1960 -. sendo passível. permitir ao povo realizar-se. e buscar nesse instrumento de um governo a resposta para manifestações artísticas profícuas do período é no mínimo especular com a História. sua organização e sua reprodução. não explica o surgimento de grandes compositores populares sob a ditadura militar. que estabelecem seus domínios com a apropriação do pertencente à coletividade. é possível perceber na canção que o foco não está composição musical. pelo menos. de ordem. soando estranha ao ouvido. estava no programa que eu não posso cantar a música nem "Anna de Amsterdam". ou os velhos vocábulos: universalização. aquilo que deveria ser de acesso geral. É difícil separar. de Chico. ************************************* Abaixo. mesmo um pouco distante historicamente. equidade). peito. o Brasil sofreu um momento de efervescência cultural que durou. mas os artistas decidiram subir ao palco e apresentá-la com a letra distorcida. A letra da canção havia sido censurada. Quantos cale-se você não ouviu ultimamente? Do congresso? Da mídia? De empresas? De qualquer pessoa que tivesse algo a comprovar? A institucionalizada não é a forma mais refinada de censura. . no Anhembi. Mas desligar o som não precisava não". Esse negócio de desligar o som não estava no programa. As palavras finais dos versos anteriores são: labuta. O que está em jogo quando se fala em censura é a relação estabelecida entre o público e a coisa pública. juntamente com Anna de Amsterdã. principalmente a partir dos anos 1950. Então. video da música Cálice tocada por Chico e Gil no festival PHONO 73. contra interesses particularistas. No DVD é possível ouvir Chico dizer: "Estão me aporrinhando muito. Dizendo respeito tanto a conteúdos – artísticos. acesso. o que foi incentivado pela censura e o que foi impossibilitado. jornalísticos. até meados dos anos 1970. pois diz respeito à própria sociedade. os policiais exigiram que a mesa cortasse os microfones. santa. escuta. ou seja. por si só.A raiva e a vontade de fugir desse governo opressor aparecem já na primeira estrofe em “de que me serve ser filho da santa / melhor seria se filho da outra”. Porém. culturais. de transparência (só para usar uma palavra da moda) como a direitos e deveres estabelecidos em conjunto (não em um sentido conservador. Claro. logo em seguida aparece outra. E esta ligeira definição talvez ajude a mostrar que a composição de Chico Buarque e (do velho) Gilberto Gil não esteja tão velha assim. contudo é passível de reflexão o fato de que. distribuição. mas possui um caráter mais amplo. principalmente no governo Médici. Porém. Uma possibilidade para se entender esta agressividade é a censura sistemática da obra de Chico Buarque. a censura. Não vou cantar nenhuma das duas. mas de reconhecimento das desigualdades e da busca de uma saída para elas. pois as rimas são organizadas de forma a induzir o leitor a construir um palavrão.
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